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COM O QUE SONHA O LULA? KRENAK SONHA COM LIVES
what does Lula dream about? Krenak dreams about lives
¿con qué sueña Lula? Krenak sueña con lives
Julia Raiz [Universidade Federal do Paraná, Brasil]*
Maré [Artista independente, Brasil]**
* Julia Raiz é doutoranda em estudos literários na UFPR. E-mail: julia.raiz@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4966-9568
** Maré é artista, nordestina y gogoia. E-mail: naomorratriste@gmail.com, @tornadaMare
RAIZ, Julia; MARÉ.
Com o que sonha o
Lula? Krenak sonha
com lives. Revista
Poiésis, Niterói,
v. 23, n. 39, p. 73-93,
jan./jun. 2022.
[DOI: https://doi.
org/10.22409/poie-
sis.v23i39.52946]
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BY-NC) © 2022 Julia
Raiz, Maré.
RESUMO COM O QUE SONHA O LULA? KRENAK SONHA COM LIVES não é só um texto, é uma
sondagem no escuro. A bandeira nos chamou para uma DR. Sonhamos com e sem ela. Depois recolhemos
o que deu das não-imagens, não-significações, não-identidades. Tudo no sonho muda como na natureza,
todas as formas caminham para a indefinição. COM O QUE SONHA O LULA? KRENAK SONHA COM
LIVES é registro da indefinição dos sonhos. Trabalhamos a partir do princípio de Estigmergia. Na estigmer-
gia não existe planejamento prévio, mas um encadeamento de ações que puxam outras ações. A gente vai
lá e faz para dar início a uma Ação Oportunista [Ritual Poético], dá um passo atrás pra ver o que acon-
teceu e depois faz de novo, dando início a outra Ação. Aqui sonhamos como gente e trabalhamos como
formigas. A bandeira não disse nada porque a bandeira não existe.
PALAVRASCHAVE sonhos; ação oportunista; estigmergia; pensamento decolonial.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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ABSTRACT WHAT DOES LULA DREAMS ABOUT? KRENAK DREAMS ABOUT LIVES STREAMS is not
just a text, is probing in the dark. The flag called us to DTR. We dream with and without her. Then we gather
what has become non-images, non-meanings, non-identities. Everything in dream changes as in nature,
all forms move towards indefiniteness. WHAT DOES LULA DREAMS ABOUT? KRENAK DREAMS ABOUT
LIVES STREAMS is a record of the indefiniteness of dreams. We work from the principle of stigmergia. In
stigmergy there is no prior planning, but a chain of actions that lead to other actions. We do something to
start an Opportunist Action [Poetic Ritual], take a step back to see what happened and then do it again,
starting another Action. Here we dream like people and work like ants. The flag didn't say anything because
the flag doesn't exist.
RESUMEN ¿CON QUÉ SUEÑA LULA? KRENAK SUEÑA CON LIVES no es solo un texto, es un sondeo
en la oscuridad. La bandera nos llamó por discutir la relación. Soñamos con y sin ella. Luego recopilamos
lo que se ha convertido en no-imágenes, no-significados, no-identidades. Todo en el sueño cambia como
en la naturaleza, todas las formas se mueven hacia la indefinición. ¿CON QUÉ SUEÑA LULA? KRENAK
SUEÑA CON LIVES es un registro de la indefinición de los sueños. Trabajamos desde el principio de Es-
tigmergia. En la estigmergia no existe una planificación previa, sino una cadena de acciones que desem-
bocan en otras acciones. Vamos allá y lo hacemos para iniciar una Acción Oportunista [Ritual Poético],
damos un paso atrás para ver qué pasó y luego lo volvemos a hacer, comenzando otra Acción. Aquí soña-
mos como personas y trabajamos como hormigas. La bandera no dijo nada porque la bandera no existe.
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
KEYWORDS dreams; opportunist action; stigmergia; decolonial thought.
PALABRAS CLAVE sueños; acción oportunista; estigmergia; pensamento decolonial.
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Tenho mania de ver muito. Vi muitas entrevistas e lives de Krenak falando, sua fala de árvore e jabuti sempre
me trazem as garras da onça a presas da onça, me sentia sempre silvestre e animal ao término das falas, e
em uma dessas lives, ouvir: Krenak só faz live se sonhar que a fez, ele recebe o convite e se sonhar ele con-
firma, se não sonhar ele nega, pensei em quanto poderia entrelaçar minha vida com o sonho, me lembro de
sonhar com os corredores da escola que só fui estudar depois de 5 anos do sonho ter acontecido. Me lem-
bro de sonhar que dava o cu para alguém em um quarto que nunca tinha vida, depois de 7 dias dei para uma
travesti nesse mesmo quarto, enquanto o pau dela estava dentro de mim, pensava no sonho e me sentia no
passado, em um futuro já passado, ela me comia como quem devora uma manga, sem medo de fiapos no
dentes. Krenak passando jenipapo na cara esperando não agredir um protocolo que o agride, quanta glória
existe no caçador que saúda sua presa, desenha a caça no útero da terra, para que nela existam mais da-
quela que foi caçada, que virou comida. Quero muito ser comida e desenhada no útero da terra, nas paredes
do meu útero está desenhado enormes cavalas, gigantescas éguas e búfalas e bixas da cara preta, e travas
pretas, e vários transmasculinos, seres de bucetas que não se rivalizam e glorificam um novo mundo, um
ritual está pintado na parede do meu útero.
<< esse trabalho é sobre isso, sabe, não só no contexto amplo, mas do sistema prisional
também, quando a Dilma foi...sofreu impeachment eu comecei a anotar alguns sonhos que
comecei a ter com esses símbolos do Estado brasileiro e...esse é o meu interesse, investigar
como todas essas questões impactam o nosso inconsciente para além do discurso racional,
para além do nosso dia-a-dia, para além do que a gente entende como nos impacta, sabe.
Porque sonhos também tem essa ambiguidade né, coisas que passam pela sua cabeça,
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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quando você está dormindo você tá processando e ao mesmo tempo é isso dos sonhos serem
mais do que metas...enfim...tem essa ambiguidade. E eu acho que é uma maneira de...eu
não digo humanizar as pessoas, mas é uma maneira de mostrar que todo mundo tem a sua
profundidade, assim. Eu acho que sonho pra mim, o inconsciente pra mim é isso. São camadas
mais profundas de relação, então a partir do momento que eu penso que todo mundo sonha ou
que todo mundo já sonhou ou que todo mundo tem essas imagens muito loucas passando pela
cabeça eu sei que todo mundo, pensei especificamente na minha bisa, especificamente a vó
Paulina, que já faleceu há uns anos. Você olhava a vida dela, nossa, que vida pacatinha, assim
sempre andando devagar, falando muito pouquinho, mas ela sonhava, ela também tinha essa
profundidade de inconsciente…>>
Bom dia presidente Lula,
Boa tarde presidente Lula, Boa noite presidente Lula.
Os sonhos do Lula apareceram na minha mente enquanto eu ouvia as pessoas fazendo
comida na frente da PF e gritando
Bom dia presidente Lula,
Boa tarde presidente Lula, Boa noite presidente Lula.
O que sonha o Lula?
Krenak sonha com Lives.
Com o que sonha o Lula?
Movimentos para se tornar uma presidenta
Dormi com a cara pintada de verde amarelo
se cobrir com a bandeira do brasil
deitar com a cabeça no cruzeiro do sul
rasgar a bandeira, vestir os farrapos. dormi.
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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Bom dia presidente Lula,
Boa tarde presidente Lula, Boa noite presidente Lula.
é muito bom pensar que jesus e barrabás são a mesma pessoa
é muito bom acessar barrabás e jesus de si
abel e caim
eva y adão
y a maçã y a cobra.
Com o que sonha o Lula? Krenak não sonhou com Live.
Os sonhos do Lula apareceram na minha mente enquanto eu ouvia as pessoas fazendo
comida na frente da PF e gritando
Bom dia presidente Lula,
Boa tarde presidente Lula, Boa noite presidente Lula.
Com o que sonha o Lula?
Não quero pensar o brasil como país do futuro. não quero mais nenhum futuro. quero me desa-
tar do passado. não quero recompensas pelas minhas boas ações nem castigo pelas minhas
ruins. quero parar a frutificação horrível da causa e consequência.
Isso aqui não é só um trabalho, é uma sondagem no escuro. Sonhando em mudar. Mudando pra sonhar.
Depois recolhendo o que dá das não-imagens, não-significações, não-identidades. Tudo no sonho muda
como na natureza,
todas as formas caminham para a indefinição.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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Percepção -> Ação pela Cognição Situada
Rituais Poéticos / Ações Oportunistas
As formigas não precisam de linguagem, não precisam de mapas ou memórias. Não existe para as formi-
gas ensinamentos, nem transmissão.
Só cheiro.
Hormônio liberado quando acham comida. Quanto mais comida, mais forte o hormônio. E as outras seguem
e fortalecem o rastro como seus cheiros. E assim
Todo mundo come
Sonhar para fazer todo mundo comer, que sonho bom!
ÃO OPORTUNISTA
COMPRAR UMA BANDEIRA DO BRASIL – DORMIR
COM ELA DEBAIXO DO COLCHÃO – ESCREVER
<< Comprei uma bandeira do Brasil
na Casa China e fiquei com vergonha
da atendente. Dormi com a bandeira
embaixo do colchão. A bandeira não
me disse nada.
Constatei por mim mesma que a
bandeira do Brasil no interior de São
Paulo é só no templo dos coxas, o
templo de plástico. Havana. A liberdade
que por aqui higienizou o bairro de
Puta acabando com o comércio de
muitas, chegou até rolar agressão em
uma das trabalhadoras do bairro por
esses caras fardados e fadados a uma
carreira curta, com cal e sal. E lá onde a
Dama Liberdade faz ponto na esquina,
é que encontrei a bandeira>>
O que eu estava pensando?
A bandeira é um pedaço de Pano. E as estrelas
estão tortas.
O pedaço de Pano foi transformado num símbolo,
contra a sua vontade.
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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O Pano está confuso e cansado. O Pano viajou até
aqui pra ser bandeira debaixo da minha cama. O
tecido foi violado.
Não presenteamos um bebê recém nascido com
uma bandeira, foi o que o Pano me fez pensar.
O tecido é áspero. O que queria ter sido o Pano?
A bandeira não disse nada porque ela não existe.
Com o Pano debaixo do colchão, sonhei com um
objeto cortante saindo do ponto em que me corta-
ram durante a cirurgia.
O objeto metálico depois virava um aparelho de
depilação, que virava depois um copo plástico com
tampa e canudo. As médicas do SUS tinham esque-
cido o copo dentro de mim enquanto conversavam
sobre a nova gravidez da Kylie Jenner. Elas disse-
ram: queríamos ter nascido da barriga da Kylie. O
médico assistente respondeu: Ainda dá tempo se
você se matar agora, para reencarnar no bebê.
Essas foram as últimas palavras que eu ouvi antes
de apagar com a anestesia.
Pano sem País, você tem alguma coisa a ver com
esse sonho de corte?
ÃO OPORTUNISTA
POR A BANDEIRA NO SOL – SENTIR O CALOR DO
PANO NO ROSTO – ASSOAR O NARIZ NA BANDEIRA
Tiro o celular da tomada antes de acabar toda a carga
Já pensei em terminar com vc 4 vezes só hoje
Não sei o que me impede de falar.
Sempre transformei silêncio em palavra
Escrever cartas de ódio
Escrever cartas de amor
Escrevo pois vc já dorme e eu não vim aqui para
dormir sozinha.
Estou adiando o nosso fim por que eu não sei
Sou criativa
Imagino mil fins
1
- vamos terminar
Acredito que preciso fazer isso por nós duas
Você não teria coragem, Brasil.
Você prefere fixar os olhos na paisagem
no azul do céu, no verde das matas
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e no ouro.
E esconder de mim aquilo que na verdade é
cemitério, terra saqueada,
sangue que sai da seringueira,
sangue de Chico Mendes.
Não quero entrar na sua mente mas
Você mesma que me falou
“Ordem e Progresso”
como progredir sem tapar a hemorragia das balas.
Posso apenas te regar e deixar ir
2
-vamos terminar
Ao teu lado eu me sinto sozinha
Me agrada apenas seu braço forte em minha
cintura quando dormimos
em lugar que não é meu, em casas que não são
minhas
em berços esplêndidos.
Gosto mais da gente dormindo
A vida nos quer acordada
Hoje não sei se irei dormir
Despertei com você e agora quero sair
Não sei nem porque vim. porque te chamar de Brasil
território que só em brasa queima.
que a árvore vermelha já não existe mais
Investigo deduzo e frito
Você mesmo já fritou e eu fiquei engordurada
Tomo uma Coca-Cola gelada para desentupir
Amor ruim
Pia entupida
Privada
Privatização
e Dívida Histórica.
Coca-Cola gelada cura até ressaca
Não pretendo beber para te esquecer
Quero é lembrar mais de mim
Ainda bem que lembrei
de ver a noite como um oceano
uma luta que vem para arrebatar
um olho que chora, apenas um olho que lacrimeja
e as gatinhas mortas
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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A gatinha pariu
Transcreveu
Acreditou
Parece que me dói te deixar
Como se fosse desistir de nós
E se for? E se eu for?
Eu vou. Arranjo outros.
Ficcionar um outro país onde as vidas não caem
onde os corpos voam
onde a fera que se aproxima vem para comer o Jesuíta.
Desatou o nó da minha garganta
Desato o nó da minha garganta
Passo mel
Passo a entender o lugar de falha
isso mesmo um lugar de falha
Construo mantas de cura
Desato o nó da minha garganta
Como uma santa
E desatado o nois
3 - Vamos terminar!
Enrosco
Embromo
Embolada e amarração
Desfaço o nó coxo do meu coração
Desato o nó coxo de minha garganta
Não tenho medo das reações
Das suas, das minhas.
Eu não preciso temer
Conhecer e necessário
Navegar é preciso
Travecar y edificar a vida
Firmar seus alicerce em outra coisa
que não colunas vertebrais humanas.
Agraciar as rédeas da vida
Com comando de mares
Mares e sol
Maré e Mares
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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<<Entrei. Procurei. Imagine em qual
departamento se coloca a bandeira do
Brasil, o espanto. É o templo do hor-
ror! A bandeira do Brasil fica na moda
masculina, do lado de camisas com
frases patéticas e idiotas, em verde e
amarelo. E fui ao caixa, pagar 19,90 em
um pedaço de pano que tem o peso de
mais de 550 anos de história, milhares
de hectares, ouro de garimpo e tonela-
das de corpos>>
ÃO OPORTUNISTA
SONHO COM R. – COM O QUE SONHAVA R. QUAN-
DO ESTAVA LÁ? – QUE TRABALHO BONITO, SABE,
VOCÊ ME EXPLICANDO NESSE ÁUDIO ACHO QUE
EU ENTENDI MELHOR, FA COMO VOCÊ QUISER –
TRANSCRIÇÃO DE ÁUDIO
Então, eu sonhava, sonhava bastante os 9 meses
que eu tava lá. Nos primeiros dias eu não conseguia
dormir, eu tava assustada com o quanto tudo era
feio e sujo. E ai nos primeiros dias eu dormi, não
lembro assim, acho que demorou muito pra eu dor-
mir, acho que eu fui dormir no sexto ou sétimo dia
de cansada assim.
Eu tinha muito pesadelo. Eu via muita mulher sem
dente, eu tinha muito medo de perder meus dentes
então eu sonhava comigo banguela. E assim várias
vezes eu acordava no meio da noite e contava os
dentes, passava a língua pra saber se eles estão lá.
E depois foi normalizando os meus sonhos assim,
é, eu sonhava muito, eu fazia mentalização antes
de dormir assim pra conseguir relaxar e pra deixar
aquele lugar menos ruim, sabe. Ai eu sonhava com
o que eu ia fazer quando eu saísse, que ia acabar,
tinha sonhos sabe com jardins, com... eu tentava
ser positiva assim.
Outra coisa, a gente revezava quando tava no bar-
racão 2 os dias de quem ia dormir deitada, quem ia
dormir em pé porque a cela era super lotada sabe.
A gente dividia em 10, cabiam 6. Mas foi um período
bem curto, eram uns 2 meses. E quando eu dormia
em pé eu sonhava muito que eu tava num barco,
que eu tava num ônibus, eu sentia um movimento
acho que de...de desequilibrando, de dormir, eu
tinha esse tipo de sonho. eu sonhava muito com
a minha família, eu tinha muito pesadelo também
de sair e as pessoas que eu...que meus avós tives-
sem morrido, que eu não fosse ver nunca mais.
Eu também tinha pesadelo com as pessoas não
falando comigo, mas eu tinha sonhos também que
as pessoas iam estar me esperando e que ia dar
tudo certo.
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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Ah, eu tinha uns sonhos bem loucos assim, isso
que eu nem passei muito tempo né, foram 9 meses.
Mas eu imaginava que quando eu ia sair o mundo ia
estar meio os Jetsons, já ia ter carro voador, umas
coisas assim.
Quando iam fazer inspeção com cachorro, eu
sonhava com cachorro à noite, sabe. E não era um
sonho negativo assim, era meio que a repetição
da cena, sabe. Ah, eu tinha muito pesadelo no
começo assim…
Minha mãe me ligou, desculpa. Então, eu me im-
pressionava muito com a sujeira, eu tinha muito pe-
sadelo assim e sonhava assim com a sujeira de lá
de uma maneira mais exagerada. Até hoje eu tenho
pesadelo, com a sujeira principalmente. Eu sinto
que estou num lugar sujo, que não consigo sair. Que
tem barata e rato, que aquele cheiro de comida re-
cozida às vezes vem. Hoje é o tipo de pesadelo que
eu tenho e eu tenho muito pesadelo de assim, sei
lá, nunca mais passar essa história, sabe. Sempre
ser a menina que passou por isso. Sempre ser a
mulher que passou por isso. Nunca evoluir na vida
por causa disso, assim. Mas eu acho que esse é um
sonho bem consciente porque acordada eu tam-
bém tenho.
E hoje quando eu penso nas mulheres que dividi-
ram cela, assim, que eu convivi, às vezes eu sonho
com elas. Algumas...a maioria eu perdi contato e eu
sonho com o que elas me contavam, se elas reali-
zaram ou não, enfim...eu sei que eu estou falando
de depois, acho que vocês queriam enquanto eu
tava lá dentro.
E eu lembrei que eu esqueci de dizer que quando
tinha rebelião na prisão dos macho e que dava
pra ouvir porque era na mesma quadra eu tinha
muito pesadelo com isso. Eu tinha muito medo que
virasse a nossa Piraquara ali, sabe. Era uma coisa
que me assustava, era uma coisa que me vinha
recorrente assim.
ÃO OPORTUNISTA
SENTAR NO CHÃO NO ESCURO – COLOCAR A
BANDEIRA EM CIMA DA CABEÇA COBRINDO OS
OLHOS – PSICOGRAFAR MENSAGEM DA BANDEIRA
[O PANO] – SONHAR – ESCREVER O SONHO
MUITO SANGUE.
PEDAÇOS DE PESSOAS CRESCENDO
EM ÁRVORE
EXIBIR PESSOAS QUE
FORAM MORTAS
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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O AMARELO ESCORRE
O VERDE ESCORRE
AS ESTRELAS GRUDAM NA
SUA CABEÇA
O QUE VOCÊ QUER SABER?
ESQUECE O QUE VOCÊ ACHA
QUE SABE SOBRE ESSA
TERRA
VOCÊS NÃO SABEM DE NADA
QUEM FAZ ESSA TERRA SÃO FUNGOS E BACTÉRIAS
QUE
DECOMPÕEM OS MORTOS
NÃO EXISTEM MORTOS
EXISTE COMIDA
LÁ EMBAIXO TODO MUNDO COME.
SEUS OLHOS ESTÃO PESADOS
VOCÊ TEM UM PAÍS
NA CABEÇA E ELE NÃO
É O QUE VOCÊ PENSA
SONHE FUNGOS E BACTÉRIAS
PEÇA PARA ELAS A INTELIGÊNCIA
QUE VOCÊ NÃO TEM.
SEUS OLHOS ESTÃO ARDENDO
O AS ESTRELAS
FERINDO SEUS OLHOS
A PALAVRA ORDEM A PALAVRA
PROGRESSO SÃO SÓ UNS
RISCOS
VOCÊS TÊM MEDO DE
TUDO
ATÉ DOS RISCOS
SE O VERDE PEGAR FOGO
SUA CABEÇA VAI PEGAR
FOGO
SE O AMARELO ESCORRER
VAI AGARRAR NA SUA CABEÇA
E O AZUL? O AZUL SAI
ROLANDO E ROLANDO PRA SEMPRE
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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COM O BRANCO VOCÊ MESMA FAZ UMA FAIXA
PRA TAPAR SUA BOCA
NÃO PENSE MAIS
OLHA PRA MIM! VOCÊ TEM
CORAGEM? EU SOU UM
PANO! VOCÊ TÁ COM UM
PANO NA CABEÇA. PAÍS, BANDEIRA, ESTRELA
ISSO É TUDO
COISA DA SUA CABEÇA!
um corpo meio arroxeado, meio verde,
que tentava falar e só água saia da sua boca
eu não senti medo, eu não sentia medo,
eu tentei olhar para ele nos olhos,
mas seus olhos cheios de veias vermelhas,
desviava do meu,
desviava,
não me encarava,
sentia vergonha de si?
Agachou no chão que era terra,
terra barrosa, pegou um pedaço de barro, e pôs na boca.
Não sei se essa bandeira é a perfeita por ser a mais
imperfeita formulação de ordem e progresso.
Atravessei uma ponte de tábua por cima de um cór-
rego. Cheguei na boca da floresta, entrei. Lá dentro
estão vagando um grupo de pessoas mais velhas,
em transe. Encontrei uma mulher e uma criança
sentadas no chão e um quati. O quati tem duas
grandes presas igual um javali. Na mata tem portas
que eu posso entrar e sair. Preciso tomar cuidado
por onde entro ou saio para não deixar o quati se
sentir acuado porque ele pode me atacar. Do outro
lado da ponte de tábua, da onde eu vim, desmon-
tam o Brasil como uma casa antes da mudança.
ÃO OPORTUNISTA
SE COBRIR COM A BANDEIRA – ESPERAR ALGO
ACONTECER
Ao me cobrir com o manto, percebo quanto é va-
gabundo seu tecido, viajo por camisa da seleção,
coxas de jogadores y Marta. Quantas releituras
apropriadas, quanto mais penso que Pelé se tornou
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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um símbolo e um local, que sua música abc ABC
toda criança tem que ler e escrever, ainda útil, ainda
sendo uma nação que analfabeta da língua por-
tuguesa, lingua cobrada pelo regime de Portugal,
hoje peleja para recordar a língua de seus povos, de
valorizar aqueles que falam o ritmo.
Pretoguês que existe, amém, obrigada por nos
afastar daquela enrolação de língua que os portu-
gueses têm.
Fui dormi e não sonhei com nada, repeti a ação no
dia seguinte antes de dormi, não tive vontade de
escrever nada.
ÃO OPORTUNISTA
COMER BANANA EM CIMA DA BANDEIRA – DEI-
XAR AS CASCAS CAIREM – AMARRAR A BANDEIRA
COMO UMA TROUXA DE ROUPAS, AS CASCAS
DENTRO – POR A TROUXA EM CIMA DA CABEÇA.
Nosso discurso político é teopolitico.
O mito uma cortina,
o mito uma fundação.
A versão do mito
O futuro do presente
Necessidade de conhecer o passado.
O presente é constituído pelas forças que estão em
ação há pelo menos 500 anos.
Tirar o mito da frente.
Estratégico.
Fazer um mito com pedaços da realidade.
Pedimos um passado que não conhecemos.
Ignorante.
Combater a ignorância no imaginário.
Combater a ignorância que não imagina
Não lutar pela repressão como se estivesse lutando
pela liberdade.
<<Há uma tensão em ter o objeto, a
uma coincidência dele sempre apa-
recer no chão na manhã do outro dia.
Tem aquela parte de dormir em berço
esplêndido, que sempre me ironiza a
noite, onde penso que nem berço e
nem esplêndido é onde durmo, que
muitas sem morada, na minha cidade
expulsão pessoas de casa pela orienta-
ção sexual delas, e vagas de emprego
desestimulam mais a trabalhadora.
falta de cuidado. falta de envolvimento,
o hábito de saquear corre solto entre
nós, o abandono nos fareja, e o tempo
faz meus cabelos crescerem>>
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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As meninas sempre estiveram certas
Bom Xi bom Xi bom bom bom
Onde o rico cada vez fica mais rico.
E o pobre cada vez fica mais pobre.
Mal sabia as meninas que pobres iriam acreditar
que eram ricos.
E o ricos iriam costurar, uma bandeira,
um mito, uma fundação que não revelasse a Funda-
ção.
Feita em cima de uma pluralidade, que morta, ainda
continua
Continua a pulsar na terra clamando por uma revi-
ravolta.
Uma bandeira delimita um campo
Um território.
um povo pasteurizado não dá conta de um país
A Pluralidade que não dá para ser reduzida.
E se reduzida, o cachimbo bate no touro, que bate
na gente
acabou-se o mundo.
ÃO OPORTUNISTA
ENCARAR A BANDEIRA – ENCARAR A SI MESMA –
TAMPAR SUA IMAGEM COM A BANDEIRA – OLHAR
E AGUARDAR
A bandeira verde e amarelo. Símbolo,
qual é a história dessa bandeira?
O que é?
O verde é a desesperança, o amarelo a tristeza, aí o
azul não sei...
os memes contam a história melhor que o mito.
As cores de nossa bandeira são as cores de
nossos colonizadores.
A gente se vende
Se venda
Revende
Caminha a supor um lugar final
Lema positivista.
Bandeiras não são só bandeiras
Cores não são só cores.
O projeto de extermínio
E toda América passou por isso e nossos vizinhos
contam a história e a gente não conta
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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Dizimadas
Dízimos
Dizimadas nas ruas
Dizimadas
Monocultura subjetiva
Só produzindo um modo de ser
violento que danifica o solo
Que mata o que diverge
Transformando florestas em pasto pra boy-escroto
pastar
Acumula no coração dos outros a vontade de ser
rico e admirado.
“Todo mundo quer comandar e não ser comandado”
disse o filósofo se esquecendo das práticas bdsm.
Multidão
Guerra
Essa é a bandeira de nossa guerra
A história do Brasil é eke atrás de eke.
Entender e deixar de jogá-lo
Como fazer isso jogando.
Combate público velado
Cuidado maiores
Cuidado menores
Capacidade de respirar
Reservas de paciência e calma para
continuar lutando
Reservas de ódio e raiva já abarrotados e lotados.
Continuar alegre mesmo que se lute contra o
absurdo que está ganhando.
A história conecta coisas
A teia da aranha
Questionar aquilo que se dá como uma certeza.
Realmente um pensamento estreito passa por mim:
O mito subsistindo a realidade? Ou a realidade é
uma construção de vários mitos?
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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<<Ainda me irrito ao ver que compa-
ram crianças com presidentes. Onde o
absurdo se torna possível, e se possível
fosse uma criança na presidência, te-
nho pra mim que ela tomaria a realida-
de a duras goladas, mas jamais arrisca-
ria tudo só pelo seu egoísmo. Crianças
são egoístas mas não são tolas. Erês
ensinem a eles que criança bixo-gente
sábio, que a anciã é sábia,
Ensina para nós Erês, o que já é sabido:
Quem planta o terror, a morte colhe,>>
criativa inventiva
hasteou pedaço de tecido as alturas
Fez mais de uma
criou para se identificar
Pelotão
Reinado
Países
Estados
Identidades
É muito mais
Bandeiras e eu
Se um dia nos beijarmos
Vamos nos decepcionar
Tem vivas que não encaixam
Tem dedos que se assustam com o entrelaçar
e ficam desconfortáveis
Tem desconfortos que são toleráveis
é sempre bom ter para quem dá a azeitona
Uma pessoa da minha família, sai de uma cozinha
que não conheço, passa por mim que estou sen-
tada em uma sala que não conheço, é uma casa
Os mitos podem cristalizar como se fossem uma
crença ou a realidade. O mito pode tornar a reali-
dade existente invisível. Os fatos não importam, o
que importa é como esses fatos são contados sem
comprometimento com a verdade. A bandeira, sim-
plesmente não existe.
Antônio Bandeira assim como eu
também diria
que signo, gesto y ação são tecnologias
A ser humana é muito ardilosa
para se unir foi capaz de muito
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]
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desconhecida, que nas paredes tem retratos, fotos
de família tradicional, a pessoa se senta na minha
frente, diz frases confusas
“Você irá destruir sua família”
“Você impedirá a continuidade de nossa família”
você é culpada”
Me encontro parada, querendo falar, mas continuo
calada, até que líquido dourado parecendo seiva de
árvore começa a sair da minha boca, tento evitar,
mas não consigo, abro a boca em ato de entrega,
a sala desconhecida começa a se encher de seiva,
âmbar por toda a sala, a pessoa continua a falar
como se não visse que estou a vomitar, a virar uma
fonte de seiva, um gosto doce vai surgindo em mi-
nha boca, a seiva já bate em minhas canelas, e da
minha boca a seiva não para, continua a cair, pelos
cantos da boca quando fecho a boca, e assim que
abro sai um jorro forte, meu corpo fica estranho, me
sinto bem e ao mesmo tempo como se estivesse
queimando em febre. A seiva já toca meus joelhos,
me levanto e percebo que não tem mais ninguém
naquela sala comigo, começo a andar pela casa
que é feita de corredores estreitos, a seiva está por
todos os lados, ando com uma certa dificuldade
pois a seiva é expeça, chego no quintal; e ao abrir
a porta a seiva começa a sair, conquista o quintal
com o andar do mel, devagar e espesso, percebo
que já não sai da minha boca nada, que conheço
aquele quinta, onde uma mangueira grandiosa ba-
lança seus galhos mesmo sem vento, ao me aproxi-
mar algo sussurra no meu ouvido
“Não tenha medo, o fim é só um outro começo”
ÃO OPORTUNISTA
COM UM TOPE DO BRASIL E CALCINHA, SAMBAR E
CANTAR MÚSICAS ROMÂNTICAS DA MPB
O verde pertence a casa de Bragança, de Dom
Pedro I
O amarelo vem da casa da Imperatriz Maria
Leopoldina.
O Azul, do traço cínico e canalha que força a
religião católica para
as indígenas e justifica a escravização
dos povos africanos.
Permanece deitado em um berço esplêndido um
beber engasgado e roxo, Brasil.
Jardim sem futuro. Sem passado.
Permanece acreditando em um sonho gigante, um
sonho gigante.
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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As nossas revoluções reduzidas a uma baderna.
Um sintoma
O sintoma de uma cultura nacionali lobotomizada,
encarcerada, acostumada a esquecer, desgastada,
cansada e forçada a ouvir anedotas.
Dizem que nós não podemos aceitar,
A paz ao preço da violência,
o preço de justificar a violência.
Há uma prática de pacificar,
uma ideia de profano para justificar a violência do
purificar.
Colocar as coisas em ordem
O modo de funcionamento: Destruição.
A República das Espadas, Marechal Deodoro da
Fonseca
e seu grande cuzão que declama o hino.
<< Vivemos em sociedades que se re-
cusam a refletir sobre suas divisões ori-
ginárias e que dissimulam as divisões
produzindo identidade e identificações
imaginárias. Se um mito funda a nossa
nação, talvez um mito destrua e deixe
outra coisa acontecer >>
<<
Não podemos desejar nenhum tipo
de retorno,
o fato para além do mito.
Queremos o real sem doer em nin-
guém>>
: Marilena me encarava com seus olhos de Erê.
Como naturalizar o sonho ?
Como pôr em curso um sonho?
Nós somos uma consciência encarnada em corpo
que não tem pura consciência.
Não somos pensamento puro. E nem puro somos.
O mundo não é um conjunto de fatos causais e
funcionais,
além do mundo existe um mundo
como lugar que vivemos com as outras,
um mundo cheio de camadas e caminhos,
lembranças, afetos.
Um mundo de conflito, esperança e paz.
Somos seres temporais, no tempo.
Seres especiais. A mata. O campo. O céu. O mundo
espacial. Dimensões. Grandes pequenas. O corpo
não é um feixe, e nem uma rede. O meu corpo é um
sensível que é sensível para si.
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Atopia
Acronia
O Fordismo é quando uma empresa detém e con-
trola a ponta inicial e a ponta final.
Ela é um pequeno planeta.
Ao ouvir Zâmbina falar sobre a confiança que se
tinha na confiança do PT no órgão público, no
funcionamento do estado, me pareceu óbvio que o
ataque seria nesse ponto, fazendo parecer que nem
mesmo o PT foi honesto no poder.
O poder e a honestidade estão opostos, ou a deso-
nestidade vem com a questão de tentar se manter
no poder?
Tem mais lógica ir em uma benzedeira do que ler a
República de Platão.
ÃO OPORTUNISTA
SE MASTURBAR E GOZAR NA BANDEIRA – TRANSAR
EM CIMA DA BANDEIRA
Desafogar mágoa rasteira
Gozar feitiços secretos
Conta as pedras da aruanda. Somar o número em
prosperidade
Ser o céu, voar em si, navegar em universos.
Calma
Paciência
Destreza
Prazer em ser imperfeita
Perfeita forma de prazer
Treinadora
Treinada
Traiçoeira
Mandingueira
Maria Mandinga
Maria Mulambo
RAIZ, Julia; MARÉ. Com o que sonha o Lula? Krenak sonha com lives.
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Padilhas e tranca rua.
As travas nas ruas são mais santas que as estátuas
no altar.
Na estigmergia não existe planejamento prévio,
mas um encadeamento de ações que puxam outras
ações. As formigas nos mostram sem se importar
com a gente. A gente vai lá e faz para dar início ao
Ritual [Ação Oportunista], dá um passo atrás pra ver
o que aconteceu e depois faz de novo.
Aqui sonhamos como gente e trabalhamos como
formigas. Partimos do princípio de Estigmergia.
Julia Raiz & Maré
outubro de 2021
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 73-93, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52946]