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123 PONTEIROS
DE BRASIL
123 pointers
of Brazil
123 agujas
de Brasil
Elilson [Universidade de São Paulo, Brasil]*
RESUMO Neste texto, que intercruza características dos gêneros crônica e relato, desdobro em escrita o
trabalho “123 ponteiros”, realizado em 2021. Concatenando performance, memória oral, produção serigráfica,
arte postal e arte correio, o mote do trabalho era promover uma rede de contação de histórias sobre o Juquery,
colônia psiquiátrica que teve o serviço de internação de permanência desativado no início de 2021, após 123
anos de funcionamento ininterrupto. No trabalho, o número 123, além de se referir a esse marco temporal, indi-
ca a quantidade de pessoas que receberam telefonemas, mensagens de voz ou foram interpeladas nas ruas de
Franco da Rocha para partilhar ou ouvir memórias sobre o Juquery, como se cada participante fosse um ponteiro
mobilizador da História sempre em curso. Enquanto descrevo as ligações e agrupo as falas das pessoas interlo-
cutoras, sugiro reflexões sobre as noções de escuta e existência.
PALAVRASCHAVE Juquery; memória oral; arte postal; arte correio.
* Elilson é artista, pesquisador, professor e doutorando em Artes Visuais na USP. E-mail: elilson@hotmail.com. Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-7974-6304
ELILSON. 123 ponteiros
de Brasil. Revista Poiésis,
Niterói, v. 23, n. 39,
org/10.22409/poiesis.
v23i39.52953]
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NC) © 2022 Elilson
p. 115-130, jan./jun. 2022.
[DOI: https://doi.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 115-130, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52953]
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ABSTRACT In this text, which intersects both chronicle and narrative characteristics, I unfold in writing the work
“123 pointers”, performed in 2021. By concatenating performance, oral memory, silk screening and mail art, the
work aims to promote the storytelling about Juquery, a psychiatric colony that has ended its confinement pro-
gram in 2021, after 123 years of continual functioning. The number 123 not only refers to this timeframe, but also
indicates the amount of people that received phone calls, voice messages or that were consulted in the streets of
Franco da Rocha in order to share and hear memories about Juquery, as if each participant was a pointer and
a mobilizer of the ongoing History. While I describe the phone calls and assemble the participants’ speeches, I
take note on some reflections about the concepts of listening and existence.
KEYWORDS Juquery; oral memory; postal art
RESUMEN En este texto, que conecta características tanto de la crónica como de la narrativa, elaboro en
forma escrita el trabajo “123 agujas”, realizado en el año de 2021. Concatenando performance, memoria oral,
serigrafía y arte postal, el trabajo busca promover la narración de cuentos sobre Juquery, colonia psiquiátrica
que cerró su programa de internación permanente en 2021, tras 123 años de funcionamiento ininterrumpido. El
numero 123 no solo se refiere a este marco temporal, pero también indica la cantidad de personas que reci-
bieron llamadas telefónicas, mensajes de voz o que fueron consultadas en las calles de Franco da Rocha para
compartir y escuchar memorias sobre Juquery, como si cada participante fuera una aguja y un movilizador de
la Historia siempre en curso. Mientras describo las llamadas telefónicas y agrupo los diálogos con los partici-
pantes, reflexiono sobre los conceptos de escucha y existencia.
PALABRAS CLAVE Juquery; memoria oral; arte postal
ELILSON.
123
ponteiros
de Brasil.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 115-130, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52953]
ELILSON.
123
ponteiros
de Brasil.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 115-130, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52953]
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“Esses ponteiros, como a vida, fluem, ainda que
pareçam parados”. Esta frase é uma tradução
livre da inscrição em latim gravada no relógio
da Torre Central do Juquery, complexo hospita-
lar e colônia psiquiátrica fundada em 1898 na
cidade de Franco da Rocha, município da re-
gião metropolitana de São Paulo. Tal sentença
foi o mote para o trabalho “123 ponteiros”, que
realizei – juntamente a mais de uma centena
de vozes que compõem o presente texto – en-
tre agosto e setembro de 2021 como parte da
programação da 4ª edição do festival de artes
Soy Loco por ti Juquery¹.
Em 2021, ano marcado pela desativação do
serviço de internação psiquiátrica de perma-
nência após 123 anos de funcionamento, o
festival frisou, em sua chamada aberta para
intervenções, esse processo de transformação
do Juquery. Concebi, então, “123 ponteiros”
como uma ode a esse marco temporal. A ação
concatenou performance, história oral, escrita,
produção serigráfica, arte postal e arte correio.
O número 123 é indicativo da quantidade de pes-
soas – moradores e ex-moradores de Franco da
Rocha e arredores, agentes culturais, funcioná-
rios e ex-funcionários do Juquery - para as quais
telefonei de supetão, troquei mensagens de voz
ou abordei nas ruas de Franco em duas visitas.
Nessa rede multivocal, as pessoas partilharam
suas memórias mais marcantes em relação ao
Juquery, bem como previsões e provisões, isto
é, desejos de ações e indicações do que pode
se tornar esse espaço, agora em franca disputa
simbólica, discursiva e política. Posteriormen-
te, cada um dos 123 participantes recebeu – a
maioria via correios: interlocutores por cha-
madas e mensagens de voz; uma parte pesso-
almente: transeuntes abordados nas ruas de
Franco da Rocha – um envelope contendo um
cartão metalfilm [espelho] com a frase do reló-
gio impressa em serigrafia, além de uma carta
relatando algumas das conversas, memórias,
confissões e vontades expressas nos telefo-
nemas e trocas de áudios. Em linhas gerais, o
intuito era, via voz, estabelecer uma espécie de
engrenagem poética e política para agrupar
um recorte de imaginários e imaginações so-
bre o Juquery, simbolizando cada participante
como um ponteiro mobilizador dessa História
sempre em curso.
Assim, relatarei a seguir um conjunto das histó-
rias que conheci ao pé do ouvido. Memórias e
partilhas encadeadas por timbres que me fize-
ram não só imaginar minúcias dos rostos, ges-
tos e espaços domésticos de quem eu escutava,
mas também restituir estradas, corredores, pavi-
ELILSON.
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lhões, alas e pacientes do Juquery em diferentes
épocas. Talvez essa constituição visual acon-
teça também para você ao ler este texto, afinal,
a oralidade permite que façamos uma espécie
de cinema de voz: a contação, a prosódia, as
entonações, as pausas e as hesitações geram a
dramaturgia de imagens no pensamento.
Ao acionar dramaturgia e imagem, aproveito
para deixar evidente o fato de este texto ser um
recorte mínimo: não há pretensão nem mes-
mo possibilidade de, aqui, refletir a densidade
e a multiplicidade de camadas inerentes ao
Juquery: complexo de sucessivos apagamen-
tos, que nos anos 60 e 70 já chegou a ter mais
de 15 mil pessoas internadas de uma só vez.
Nesta massa, não só enfermos mentais, mas
todos aqueles que, como me disseram algumas
interlocutoras, “não deveriam ser vistos social-
mente”: prostitutas, mães solteiras, negros, ho-
mossexuais, transexuais, imigrantes, retirantes,
alcóolatras, pessoas desabrigadas, desorien-
tados pela Guerra, presos políticos... Enfim, um
depósito de indesejados e execrados”, uma
dispensação de gente que não servia ao siste-
ma”, um “centro oficial da eugenia”, uma “parte
do holocausto brasileiro”²
outorgado fora aci-
ma da lei
por um Estado que utilizava o Juquery
como “depósito de gente renegada e excluída”,
como um centro de operação institucionalizada
do racismo e das demais violências estruturais.
Em outros termos, podemos adjetivar o Juquery
como uma parcela significativa deste “indiges-
to trópico”, expressão certeira utilizada pelos
editores deste dossiê, visto que estamos falan-
do de 123 anos de história de Brasil.
Além dos tantos episódios de apagamentos da
vida intensificados ao longo das décadas por
incêndios, destruição de arquivos e registros de
torturas, em um lugar em que não foi incomum
funcionários se tornarem pacientes³, este tex-
to-coro também reúne um clamor das pessoas
para que se enxergue a convivência entre dor
e alegria no Juquery, onde “também havia e
há muita beleza por trás das paredes”, vide a
relação de amizade entre muitos funcionários
e pacientes, os festejos realizados coletiva-
mente, as faturas de natureza entre as alas do
Complexo e a expressividade dos artistas inter-
nos, cujas obras compõem o acervo de mais de
8000 obras do Museu de Arte Osório César4.
Em meio a tantos episódios de descaso e hor-
ror, também ficou evidente nas conversas que
compuseram este trabalho o elo afetivo das
pessoas com o Juquery: não só por parte dos
moradores de Franco da Rocha, que em sua
maioria absoluta se referem ao espaço com
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 115-130, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52953]
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o codinome “Juca”, quase como se falassem
de um membro da família, mas também das
pessoas que trabalharam no hospital entre a
década de 60 e os anos 2000, cujos relatos
desvelam, a partir da confusão pronominal
típica do ato de rememorar, a vivacidade das
lembranças:
no Juquery muitas vezes virava
ou
aqui
no Juquery na mesma frase. Antes de
vocalizar esse conjunto de imagens localizadas
verbalmente no tempo, agradeço a atenção
dos que fazem e leem esta revista, não deixan-
do de pedir licença a todas as vozes que com-
põem este trabalho: as nossas e as dos vivos
e mortos que passaram pelo Juquery, incontá-
veis nomes sem corpos e inumeráveis corpos
sem nomes, que são vivazes na memória da
cidade, de quem passou na cidade e, agora,
talvez também na nossa.
Pessoas que nasceram no Juquery, caminha-
ram por suas áreas verdes, trabalharam nas
alas psiquiátricas e administrativas, visitaram fa-
miliares internos, utilizaram serviços hospitala-
res e escolares, frequentaram padaria e bibliote-
ca, realizaram ou foram espectadores de ações
artísticas, famílias inteiras que trabalhavam no
“Juca”, pessoas que se apaixonaram e se as-
sustaram em seus corredores e pavilhões... As
memórias
confiadas
vão de questões muito ínti-
mas a relações afetivas, abusivas, profissionais
e vivências cotidianas. Para muitas pessoas, o
que se finca é sensorial: o preparo da massa e o
cheiro do pão assando na padaria do hospital;
o aroma da grama bem molhada pela chuva; os
cupinzeiros alaranjados em contraste constante
com a vegetação bem, bem verde; o barulho da
fonte de água; uma árvore nascida e presa no
teto; o odor de creolina e urina do pátio; mati-
lhas de cachorros soltos e latindo pelo espaço;
abacates e jabuticabas colhidos e caídos pelas
vias de terra; os sussurros dos internos por trás
dos muros ou os gritos de apelo dos que implo-
ravam, por trás das celas, ajuda para ir embora
Para outras, as memórias mais intensas são as
fachadas dos prédios, as escadarias da biblio-
teca e os paredões dos pátios. A maioria se
recordava
, ou seja,
trazia de volta ao coração
ações coletivas: peças de teatro, contações de
histórias e festas com os pacientes; visitas ao
Museu e excursões escolares; feiras de arte-
sanato, bicicletadas e piqueniques; conversas
com os internos que caminhavam pelo Juquery
ou com os que circulavam uniformizados pela
cidade e tentavam, sem sucesso, embarcar no
trem rumo à Estação da Luz.
Logo na primeira ligação, efetuada para um
agente cultural de Franco da Rocha integral-
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ponteiros
de Brasil.
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mente interessado e dedicado à preservação
memorial do que aconteceu por mais de um
século naquele espaço, entendi que a maté-
ria crucial deste trabalho é o princípio de que
a História pode ser reinventada pelo elo de
nossas memórias. Mesmo que seja impossível
alterar o passado, nosso ato de seguir contan-
do demarca o que deve ser cultivado e o que
não deve ser repetido. Como ele me disse, o
Juquery é um espelho do Brasil e, no caso de
Franco da Rocha, todas as narrativas, como
um rio, desaguam ali. Após descrever as pri-
meiras vezes que pisou ainda criança no Ju-
query e as primeiras coisas que leu a respeito
já adolescente, me fez um pedido: de que todo
mundo que viesse a ler sobre nossa conver-
sa tivesse em mente que, caso um dia visite o
Juquery, ande a esmo pelo espaço e pare onde
sua intuição decidir. Feche os olhos, respire
profundamente e pense em cada pessoa que
foi presa ou que morreu naquele lugar, balbucie
cada história que ainda não foi contada.
Nas semanas subsequentes, entre ligações
recusadas, números fora das áreas de cober-
tura, mensagens de voz respondidas, áudios
ignorados, telefonemas prolongados e chama-
das lacônicas, compreendi que a espera é um
substrato da escuta, e isto é um aprendizado
de corpo todo: a prontidão da coluna enquanto
o braço segura o telefone, em viva voz, às bei-
ras das orelhas; o pescoço curvado, os olhos
estatelados e os dedos pressionando os lábios
quando o relato contado do outro lado da linha
emudece por pavor ou encantamento; as pal-
mas das mãos suando em ânsia e a frustração
dos ombros caídos para baixo quando a cha-
mada dispara ou as ligações são repetidamente
declinadas; o sorriso desenhado por completo
no rosto e o olho passeando pelas paredes es-
boçando a curiosidade-desejo de querer cons-
tituir o rosto por trás do timbre; a lombar afun-
dada, após horas de mensagens a fio, como se
a cadeira virasse o próprio charco que se traduz
pelas retóricas: Como isso pôde acontecer? O
que é [im]possível depois disso? Os tímpanos e
as pálpebras latejando simultaneamente quan-
do se escuta algo completamente novo...
Ouvi que o primeiro interno do Juquery foi, possivelmente,
um escravizado alforriado. Houve a funcionária que, sen-
do admitida em 1982, afirma ter se deparado com 17 mil
internos, mas é de 2 deles que se lembra todos os dias: um
idoso que nunca falava e tinha uma tatuagem-marca de
um campo de concentração nazista; e uma japonesa bem
velha, fugida da Guerra para o Brasil, mandada do Porto
de Santos direto para o Juquery, que todo dia e o dia
todo gritava uma única frase:
[Darekaga watashi o koko kara tsuredashimasu!]5.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 115-130, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52953]
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Ouvi sobre um pai e avô internado compulsoria-
mente por “alcoolismo” e impedido de viver com
sua família por mais de quatro décadas. Houve
uma funcionária ainda em atuação que repetiu
três vezes a importância de não esquecermos
dos torturados pelos choques elétricos e pela
hidroterapia no porão e na rotunda. Ouvi de
outra trabalhadora sobre as denúncias sociais
presentes nas obras da artista e paciente Auro-
ra Cursino; a mesma funcionária me disse que
tudo que ela é hoje, na vida, deve a outra pacien-
te-artista: Cidinha. Houve o adolescente que
conclamou que a história deve ser mantida com
força. Ouvi de uma senhora que se um espaço
está em decomposição, a memória se esfarela.
Houve um paciente que viveu 86 anos no Ju-
query e só no final da vida, faltando mesmo pou-
quíssimos anos para morrer, conheceu o que
é
viver fora
. Ouvi que todos os presos políticos da
ditadura militar saíram do Juquery sem vida.
Houve um cobrador de ônibus que levava e
buscava os funcionários, sempre com uma ca-
neta bic encaixada na orelha e o
sorriso mais
largo que se vê na vida
. Ouvi que o Juquery é
um lugar constantemente
antiguecendo
. Hou-
ve uma árvore que nasceu do teto, em uma das
alas, que mudou por completo o pensamento
do jovem artista em relação àquele espaço.
Ouvi o rapaz que, por pura vontade, passou dez
dias acampado na área livre do Juquery e até
hoje diz sentir a presença da
multidão de ma-
chos que pintaram miséria naqueles prédios
. “É
mais de um século de afetação masculina in-
crustrada, você quer o quê?!”. Houve a mesma
árvore que brotou do teto sendo sumariamente
arrancada. Ouvi os cachorros soltos pelas áre-
as de convivência, latindo sem parar.
Houve o professor que saía de uma escola
próxima e entrava escondido para recolher
abacates. Ouvi os internos que andavam
soltos, cumprimentando a todos como se os
conhecessem há muito tempo. Houve uma
pinguela – ponte rústica de tronco que servia
de atalho entre algumas alas – que transmitia
uma firmeza de quem nunca iria cair. Ouvi um
ex-segurança que não se lembra de
absoluta-
mente nada, nada, nada, nadica de nada, tudo
se apagou,
e que não
desmente por mágoa,
só não lembra mesmo
. Há o ex-padeiro do
hospital que até hoje esfrega as mãos e sente
o cheiro da massa de pão. Ouvi que o universo
da loucura te acompanha desde menino se
você nasce em Franco da Rocha. Houve um
paciente que produzia bolas de meias para as
crianças da cidade. Ele pedia meias para todo
mundo, e bastava que você fosse lá e dissesse
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que tinha crianças para presentear, que prepa-
rava as bolas,
que eram fantásticas, durinhas,
tanto que até pululavam quando batiam no
chão!
Ouvi que um menininho vivia perguntan-
do: “Como ele pode ser de carne e osso e fazer
bolas de meia? Ele deveria ser de pano tam-
bém!”. Houve um carimbo no uniforme de brim
amarelo desse paciente que identificava seu
setor: Departamento de Psicopatas II.
Ouvi sobre os pacientes que passeavam “se-
mi-livremente” pela cidade, porque o uniforme
do hospital psiquiátrico limitava seu percurso
e impedia o acesso ao trem. Houve um funcio-
nário que montou uma peça de teatro nos anos
1970 chamada “Os loucos vêm de fora”, tentan-
do expressar
a visão do louco para o mundo e
não do mundo para o louco
. Ouvi que quando
o trem parava na estação Franco da Rocha os
passageiros sempre gritavam em coro: “Quem
é louco desce aqui!”. Houve o mesmo funcioná-
rio dizendo que o Juquery era apenas a central
de recolhimento, pois todos os loucos vinham
de fora. Ouvi outra funcionária dizendo que fun-
dou um grupo de intervenção artística chama-
do “Loucos pela vida”. Houve minha comoção
ao identificar, em telefonemas distintos, dois
funcionários que acharam amor no meio do
movimento grevista e se enamoraram por anos
nos corredores do Juquery, mas que há déca-
das não se falam ou se veem. Ouvi de um rapaz
que o Juquery é uma fábula fantástica impossí-
vel de ser traduzida.
Houve a enfermeira que fez uma prece em voz
alta na noite em que caiu a energia geral e ela
estava sozinha numa sala com vários inter-
nos. Ouvi as risadas da mulher que frequenta-
va quando criança todas as festas que seu pai
e sua mãe, ex-funcionários, promoviam men-
salmente para os pacientes. Houve a servente
que já chegou a distribuir comida sozinha para
mais de 700 pacientes, e que ainda chegou a
levar pontapés na barriga grávida da paciente
mais bonita, a que ficava reinando num quin-
tal
. Ouvi a voz embargada da funcionária que
se emociona só em dizer a palavra Juquery,
e que ainda se lembra da temperatura do sol
de 20 de março de 1974, o primeiro dia dos
34 anos em que trabalhou ali. Houve Altina, a
paciente que mais a ajudava, que não saía de
perto de jeito nenhum, que tinha a risada mais
gostosa e alta do Juquery, e que um dia pediu
uma Coca-Cola bem gelada, dizendo que era
seu último dia. “E você vai embora pra onde,
vai receber alta, tá mentindo agora?! E não
é que ela morreu naquela noite?”. Ouvi sobre
os inúmeros pacientes que recebiam alta e
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simplesmente sumiam e sobre os funcionários
que nunca eram informados disso e que, por-
tanto, tinham que aprender a não se apegar.
Ademais, “os ciclos são assim, têm ascensão
e queda o tempo todo. Se a gente não se ape-
ga, na vida se sofre menos”.
Houve o rapaz que ao término das aulas de
circo e de teatro sempre alisava o tablado,
passando a mão na borda toda, de um canto
a outro, sendo chamado de maluco pela tur-
ma. Ouvi a história da mulher que tinha 11 anos
quando a família de 8 pessoas saiu retirante
do Ceará, sem qualquer bem ou garantia. Seu
tio morava em Franco, tinha amigos que tra-
balhavam na Colônia e a primeira noite que
dormiram em São Paulo foi dentro do Juquery.
Ela nem precisa fechar os olhos para lembrar
dos gritos de dor, outros de susto. Houve essa
mesma mulher trabalhando na fase adulta no
Juquery, mas não conseguindo passar mais de
seis anos, já que sofria desde a hora em que
entrava. Ouvi sobre a paciente Carol, que an-
dava agarrada com uma boneca, tinha a língua
presa e exclamava o dia inteiro: “Ai, credo!”.
Por amar carne moída, Carol sempre pergun-
tava: “Hoje vai ter boi ralado?!”. Houve um fato
consumado e repetido: a maioria dos pacientes
sempre foram as mulheres!
Ouvi sobre um grupo de mulheres que passa-
va o dia fazendo tranças nos cabelos e ento-
ando cânticos divinos. Houve uma psicóloga
que só se acalmava quando parava e olhava
para elas. Ouvi de sua boca que quando a
gente canta acontece uma conexão com uma
coisa buscada de dentro, e que ela só não
enlouqueceu trabalhando ali, nem virou uma
interna, porque todos os dias, antes de botar
o primeiro pé dentro, falava em voz alta que
não tinha nenhum poder além de preencher
prontuários. Houve alguém que caracterizou
como tênue a linha entre ser paciente e fun-
cionário. Afinal, “dor e remédio, ali, se tinha de
sobra”. Ouvi o barulho das moedinhas sendo
arremessadas no chafariz e os gritos de “vai
voar cocô!”, quando se esquecia do perigo e se
passava bem perto do muro alto que beirava o
pronto-socorro. Há quem diga que o arremes-
so de merda era simultaneamente um jogo e
um recado dos pacientes. Ouve-se sempre um
monte de vozes falando ao mesmo tempo.
Há a moradora que só anda no Juquery uma
vez por ano a fim de ver o pai, que era funcioná-
rio e virou interno, em todos os cantos. Ouvi que
para trabalhar num lugar assim e permanecer
bem, você tem que fazer com que o coração es-
teja sempre fervendo. Houve Jandira de Paula,
ELILSON.
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paciente crônica, que conscientemente tinha
muitos rompantes e quebrava todos os vidros
só para ser mandada para a rotunda e gozar
do “direito de estar sozinha”. Ouvi uma mulher
que adotou dois pacientes que não tinham
ninguém, e eles moraram com sua família até
a morte. Havia o paciente Ambrósio, de dois
metros de altura, que tremia de medo assim
que avistava Mané, um dos menores dentre
todos os internos do Juquery. Houve também
Pequenininho-grandão, um paciente que se
apresentava assim, porque sempre se compa-
rava às crianças. Ouvi o “bom dia, Santa Rita”
que a funcionária falava diariamente, quantas
vezes passasse em frente à capela. Há o relato
sobre o “banal inexplicável” que é ver o exato
momento em que a fonte de água seca, justo
na última visita para o avô, que viria a morrer
em fração de minutos. Ouvi o som de helicóp-
tero, que às vezes abafa e acalma os gritos dos
pacientes. Ainda mais alta que o motor e as
hélices foi a voz de uma professora que falou
do dever e da necessidade de entendermos os
internos das colônias psiquiátricas brasileiras
como nossos antepassados.
Houve um professor que, sorrindo, falou que
pensar em termos de Juquery é ver os rostos
de Mário Pacanaro e Ranulfo Faria, artistas que
sempre encantaram o lugar com suas músi-
cas. Ouvi a moça que foi um bebê deixado no
Juquery, seu símbolo mor de origem e gatilho.
Houve a psicóloga que fazia treinamento no
Complexo e pairou o olhar na janela da sala de
aula a elaborar o trauma de um suicídio recen-
te. Ela ouviu uns pratos sendo jogados contra a
parede e finalmente percebeu estar muito per-
to do pátio, lugar que simbolizava, para ela, o
contrário de uma das principais lutas do campo
da psiquiatria: não tratar a doença mental com
encarceramento. Houve as detentas que alisa-
ram bastante seu cabelo. Ouvi sobre o medo
que o filho de uma funcionária tinha ao ver as
dezenas de pacientes nus. Houve também os
pacientes com os uniformes bem alinhados,
que saíam diariamente pela cidade para pedir
cigarro e conversar com os taxistas.
Ouvi sobre a internação de uma estrangeira ca-
deirante, “canadense ou alemã”, que aprendeu
um pouco de português e contava que foi parar
ali somente porque se apaixonou por um rapaz
de outra classe social. Há rumores de que ela
certamente morreu só. Havia o funcionário que
ordenava que a filha tapasse os olhos ao entrar
em sua ala de trabalho, porque os internos
sempre estavam despidos. Ouvi seu resmungo
de ironia ao confessar que sempre espiava,
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bem como seu suspiro prolongado tanto ao
lembrar do dia em que flagrou um homem levar
eletrochoques num porão, quanto a imitar os
gritos que nunca saem de sua cabeça. Houve a
funcionária que conversava diariamente com
os “inofensivos”, pacientes que circulavam li-
vremente entre os moradores da cidade, pedin-
do que telefonassem para algum familiar, pois
estavam ali sem qualquer motivo e contra suas
vontades. Ouvi que sua vontade era escrever
uma carta ao Estado até descobrir, prontuá-
rio por prontuário, que aquelas prisões eram
ações do próprio Estado. Houve Gertrudes, a
paciente que todo domingo ganhava macarro-
nada com galinha caipira da prima que reli-
giosamente a visitava. Ouvi de uma estudante
secundarista que o Juquery não pode ser resu-
mido e restringido à ideia de reserva ambiental.
Houve um homem que proclamou que um povo
que não olha para a história vive fadado a repe-
ti-la: os eletrochoques voltaram a circular como
itens nas listas de equipamentos em documen-
tos oficiais do Governo Federal em 2019. Ouvi
que o Carandiru e o Juquery foram projetados
pelo mesmo escritório de arquitetura, Ramos
de Azevedo. Houve uma faixa erguida pela voz:
DIFERENÇA NÃO É DOENÇA.
Na última mensagem de voz recebida, des-
cobri a história da funcionária, que, crente de
que estava grávida de um menino, até os nove
meses era interpelada diariamente por uma
paciente que a parava nos corredores para
entoar: “O nome dela é Jéssica, eu já falei para
você”. O refrão, que aparentemente sinalizava
o principal sintoma clínico daquela mulher, que
foi internada pelo simples fato de não parar de
cantar, acabou batizando a filha, que nasceu
sem nome, visto que supostamente seria um
garoto. Hoje, Jéssica estuda canto e trabalha
como cantora. Livremente, conta e canta.
Andando pelas vias do Juquery, após assistir às
últimas rodas de conversa e ações memoriais
do Festival e distribuir envelopes para partici-
pantes e transeuntes, me peguei cantarolando
“Jéssica” no pensamento ao tentar burlar as
regras de segurança patrimonial e me aproxi-
mar do relógio da torre central, com o desejo de
fotografá-lo refletido em um dos postais. Após
aparentemente ludibriar uma das seguran-
ças, presenteando-a com um envelope, isto é,
como um dos 123 ponteiros, consegui alcançar
o pátio da torre central. Eram 17h13 quando
outra segurança, após receber a informação
por rádio, se aproximou para coibir o acesso. O
relógio badalou um estrondo fora de compas-
ELILSON.
123
ponteiros
de Brasil.
129
so e de hora. Inexplicável, segundo a própria
segurança6. Tentando pontuar este texto, lem-
brei-me há pouco de uma ex-funcionária, que
me disse ao telefone que a memória é uma in-
venção. Ela lançou, por fim, uma pergunta que
não pude responder no dia, tampouco o farei
aqui: “Falar sobre a história faz a gente mover
a história?”. Por hora, me agarro à tentação
sonora de afirmar que escuta e existência são
cognatos políticos.
Exemplar do postal espelhado e carta enviados via correios ou distribuí-
dos pessoalmente no festival em envelopes carimbados com o título do
trabalho. Foto: Maria Capai]
Crédito: Portal Regional News. Relógio do Juquery voltou a funcionar
após décadas parado | [rnews.com.br] Acesso em: 18 set. 2021]
NOTAS
1 O título do festival é grafado dessa maneira, sem se separar
o termo Juquery por vírgula, como vocativo. Desde sua primei-
ra edição em 2018, o festival se propõe a ocupar o espaço
do Juquery com ações artísticas, rodas de conversa, exibições
de filmes, dentre outras atividades, com o objetivo de frisar a
relação fundamental entre arte e psiquiatria que perpassa a
história desse lugar, bem como estabelecer diálogos e reconsti-
tuir coletivamente as memórias em torno do Complexo, tentando
ressignificar, em seu título, a carga semântica negativa atrelada
ao termo “louco” e, consequentemente, o estigma de loucura
associado à cidade de Franco da Rocha e aos seus moradores.
Conheça mais em: home. | SoyLocoPorTiJuquery
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 115-130, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52953]
130
2 Todas as frases grafadas entre aspas neste texto são de
autoria das pessoas com as quais conversei por telefone.
Embora eu as liste no final do texto, como agradecimento
geral, preservo suas identidades em frases específicas por dois
motivos: frisar a polifonia como matéria principal deste trabalho
e respeitar o desejo de anonimato de alguns participantes. A
expressão “holocausto brasileiro”, de modo particular, se refere
ao título do livro da jornalista Daniela Arbex, que retrata os
inúmeros crimes contra a humanidade praticados no Hospital
Colônia de Barbacena, cujo histórico se assemelha bastante
ao que ocorreu no Juquery.
3 Dentre os inúmeros artigos acadêmicos e dossiês inves-
tigativos sobre o Juquery, deixo aqui dois títulos de livros que
podem interessar à leitora e ao leitor para ter dimensão desses
bastidores: “Cinzas do Juquery: os horrores do maior hospital
psiquiátrico do Brasil”, colaboração entre José da Conceição,
ex-funcionário e o jornalista Daniel Navarro Sonim, e “O espelho
do mundo: Juquery, a história de um asilo”, da autora Maria
Clementina Pereira Cunha.
4 Localizado e sediado no acesso ao Juquery, o Museu é
intitulado com o nome do médico que atuou como psiquiatra no
Complexo Hospitalar por mais de quatro décadas, sendo um
dos pioneiros no Brasil da aplicação da arte terapia a pacientes
psiquiátricos. Fundou e dirigiu a Escola Livre de Artes Plásticas,
que funcionou no hospital entre as décadas de 50 e 70. Após
um período de mais de dez anos fechado por conta dos impac-
tos de um incêndio no prédio administrativo do Juquery, o museu
passou por um processo de restauro e foi reaberto ao público
em 2020, com uma exposição permanente de desenhos, pintu-
ras e esculturas produzidas por internos, muitas dessas obras de
autoria desconhecida.
Fontes: https://masp.org.br/exposicoes/historias-da-loucu-
ra-desenhos-do-juquery http://francodarocha.sp.gov.br/fran-
co/artigo/noticia/9966 Acessos em: 08 nov. 2021.
5 Alguém me tira daqui!
6 Agradeço ao Caio Henrique Ramos, que viveu comigo
este instante, e que colaborou na confecção das centenas de
envelopes, assim como os amigos Gilson Rodrigues e Ma-
yara Millane. Agradeço imensamente àquelas e àqueles que
gentilmente atenderam os telefonemas, ouviram as mensagens
de voz e decidiram, timbre por timbre, partilhar como compõem
o Juquery: Matheus, Renata, Fernando, Silvia, Luana, Edmar,
Edna, Regina, Thiago, Amanda, Priscila, Rafaela, Bruna, Kadhi-
ja, Vanda, Laudy, Yuri, Silvia, Carlos, Juliana, Ágata, Ednaldo,
Gilvan, Sandro, Neiva, Tânia, Eda, Maria, Jesuína, Danilo, Olive,
Styven, Erineide, Ranulfo, Aparecida, Vanessa, Larissa, Cássia,
Pedro, André, Maria, Marlene, Giselle, George, Regina, Uendel,
Vanessa, Cida, João, Sílvia, George, Renata, Patrícia, Regiane,
Ana, Regiane, Sueli, Douglas, Josafá, Silmaria, Simone, Marcelo,
Edgar, Iraci, Elaine, Natasha, Andrea, Sílvia, Elaine, Jéssica, e
a todas as pessoas que encontrei caminhando por Franco da
Rocha e pelo Juquery. Agradeço por fim, e de modo especial, à
equipe do festival.
ELILSON.
123
ponteiros
de Brasil.