a palavra na poética de Ronald Duarte*

the word in the poetic of Ronald Duarte
la palavra en la poética de Ronald Duarte

Resumo Esta entrevista é a primeira do projeto de extensão universitário Performance em Debate, registrado na PROEX-UFES sob o número 1755. Participaram da entrevista com Ronald Duarte: Carlos Eduardo Dias Borges, Ricardo Maurício Gonzaga e a estudante de graduação Josélia Andrade Santos, com o apoio técnico de Magno Buscaroli. A entrevista foi realizada em 17/9/2020 por meio da plataforma webconference.
Palavras-chave entrevista; performance; palavra; poética; Ronald Duarte

Abstract This interview is the first of the university extension project Performance em Debate, registered at PROEX-UFES under number 1755. Participated in the interview with Ronald Duarte: Carlos Eduardo Dias Borges, Ricardo Maurício Gonzaga and the undergraduate student Josélia Andrade Santos, with the technical support of Magno Buscaroli. The interview was conducted on 9/17/2020 through the webconference platform.
Keywords interview; performance; word; poetic; Ronald Duarte

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© 2022 Ronald Duarte, Carlos Eduardo Dias Borges, Ricardo Maurício Gonzaga, Josélia Andrade Santos

* O material desta entrevista serviu como base para o projeto de Iniciação Científica da PRPPG-UFES, intitulado A palavra como elemento agregador nas ações de Ronald Duarte, concluído em 2021 e vinculado ao projeto de pesquisa Palagens I, do Professor Doutor Carlos Eduardo Dias Borges. A entrevista está disponível no canla do projeto no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCSymzAJWr6bAIpryZcjauMA. Para contato: Carlos Eduardo Borges (carlos_e_borges@yahoo.com).

Ronald Duarte
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)

Carlos Eduardo Dias Borges, Ricardo Maurício Gonzaga, Josélia Andrade Santos
(Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)


Resumen Esta entrevista es la primera del proyecto de extensión universitaria Performance em Debate, registrado en PROEX-UFES con el número 1755. Participaron en la entrevista con Ronald Duarte: Carlos Eduardo Dias Borges, Ricardo Maurício Gonzaga y la estudiante de pregrado Josélia Andrade Santos, con el apoyo técnico de Magno Buscaroli. La entrevista se realizó el 17/9/2020 a través de la plataforma de webconferencia.
Palabras clave entrevista; performance; palabra, poética; Ronald Duarte

Carlos Borges: Bom dia a todos, sejam bem-vindos! Este é o primeiro programa de uma série que a gente espera que seja grande. É um projeto de extensão, chamado Performance em debate. Estamos iniciando este debate com um convidado muito especial, Ronald Duarte. Bom dia, Ronald, bom dia, Ricardo, bom dia, Josélia!

Ronald Duarte: Bom dia, Carlinhos, bom dia, Ricardão, bom dia, Josélia!

Carlos Borges: Então, Ronald, com toda dificuldade que tem essa primeira entrevista, a gente colocou aqui essa imagem do trabalho. Você quer falar um pouquinho? Para quem não conhece você ainda, principalmente as pessoas que estão começando agora em artes, para conhecer você um pouquinho... esse trabalho ai em baixo é a boiada, não é isso?

Ronald Duarte: Primeiro eu quero agradecer, Carlinhos, agradecer o convite de estar participando, de estar sendo, inclusive, o primeiro da nossa jornada, que eu espero que isso se estenda por muito, pós-pandemia, e outras e outras que vierem. Porque eu acho que a gente tem que atravessar o tempo, além do bem e do mal, a gente tem essa liberdade. A gente está na missão porque agora a vida se tornou uma missão, não é? Sobreviver. E sim, essa aí é a Boiada de Ouro, e pra quem não me conhece, eu sou Ronald Duarte. Eu faço ações urbanas, ações ativas, artísticas, visíveis, possíveis de visibilizarem-se, de criar imagem do cotidiano, dentro do mundo real, de todos e discutindo questões prementes, questões que estão pulsando no momento, no aqui e agora, correndo atrás desse presente que foge constantemente do presente. Tá sempre correndo e correndo e cada vez numa velocidade maior. E essa é a Boiada De Ouro que aconteceu em Berlim e que foi jogos do tempo, jogos do kairós, jogos do tempo do atravessamento, que fez com que o trabalho chegasse a Berlim e, coincidentemente, de ouro. As coincidências não existem, não é? Porque elas são frutos das ações espontâneas subjetivas, que se convergem em algum instante e nos pegam de surpresa. Então, para mim mesmo, quando eu vejo essa imagem, eu vejo uma certa surpresa... Como é que isso tudo aconteceu não é? São longas histórias, e de ações de vida e que se intitula de artes né, e de artista, essa coisa crédula da sociedade civil. É isso. Vamos lá!

Carlos Borges: Você mudou aí, Ronald... agora mudando para o Fogo cruzado, não é isso?

Ronald Duarte: Sim, Fogo cruzado, esse aí é um pontapé. Um pontapé forte! Porque contra tudo e contra todos... O fogo cruzado continua, não é? A favor de tudo e a favor de todos, e o fogo cruzado continua. E o fogo agora está cada vez mais intenso, o fogo cruzado é internacional, não é? O fogo cruzado são os interesses que estão por trás de todo esse fogo, por trás de todo esse interesse que está queimando o Brasil, que está queimando a vida, que está acabando com a vida. Neste exato instante, o Brasil está incandescendo, está pegando fogo, e o Fogo cruzado, esse aí, é de 2000, vinte anos atrás. Ele é quase um prenúncio de tudo isso que está acontecendo, em chamas, no momento exato agora. Acho que o Fogo cruzado nunca foi tão atual, em todos os sentidos, no poder, na verba, da grana, da correria pela grana e na banalização da vida. Como agora você muda a imagem para O Q. rola Você V, não é? A gente está falando exatamente disso, de todos os comandos, não só o vermelho, mas o azul, o amarelo, o verde e todos os comandos, dos comandos militares, dos comandos milicianos, dos comandos dos bandidos, dos comandos dos poderes dos podres e dos pobres poderes. Eu acho que todos esses trabalhos estão muito presentes na vida da gente, cada vez mais. Eu falo assim, de coração disparado, porque é o tempo todo essa pressão...

Ricardo Maurício: Ronald, eu acho que seria interessante, muito impactante, assim... Nessa sua fala emocionada... Agora acho que seria interessante se você pudesse descrever um pouco os trabalhos para quem não sabe como eles aconteceram. Por exemplo, o Fogo cruzado eu conheço também, agora do trabalho anterior eu só conheço essa imagem. Eu acho que seria interessante você contextualizar um pouco para gente entender como é que a sua forma se articula com o trabalho em si, como é que o trabalho flui, e onde…

Ronald Duarte: O trabalho, quer dizer todos os trabalhos que eu faço, tudo o que sai são como feridas expostas, são como ralar no mundo, ralar na vida, ralar e ficar o sangue exposto e esse sangue, essa imagem de que rola, você vê. Contextualizando o momento, era um momento em que, algumas várias facções, como agora há pouco, semanas atrás, também em Santa Tereza, várias facções entraram em confronto e é um tiroteio, são horas de tiroteio, são horas de alguém se perguntando “será que não acerta ninguém?”, “será que não morre ninguém?”, é tanto barulho, é tanta bala, que certa vez, meu filho ainda era criança, hoje ele está com 24 anos, meu filho era bebê, há 24, 25 anos atrás... Esse trabalho aqui ele é de 1999, então, ele tem 21 anos, porque ele tá com 23. Quando ele estava com dois anos, eu estava chegando a casa com ele e tinha uma pessoa morta no portão de casa em Santa Tereza, ali na rua Ocidental, com tiros, com vários tiros e uma poça de sangue enorme no portão da minha casa. É um pânico, você entra em pânico, não acredita naquilo que você está vendo e a criança também, eu tapei os olhos do meu filho e desci a rua e liguei para Comlurb, para vir lavar, porque tinham levado o corpo, para lavarem a rua e a Comlurb, não lavou. E não saiu em jornal nenhum, não saiu nada, só eu levei aquele susto então eu não queria ver o sangue descendo a Rua Aarão Reis… o sangue descendo ali, na esquina, morro abaixo e ninguém via, então eu queria um nome, por isso entra esta questão do nome, não é, Carlinhos? É O Q. rola Você V, é o que você está vendo, o que rola e ninguém vê, quanta coisa acontece e ninguém sabe... A mídia corre atrás e faz todo esse sensacionalismo, eles necessitam para ter mais mídia, mais público, quer dizer, tem toda uma questão de vida e morte, uma questão de necessidade de vida que as pessoas precisam para viver... e morrem. Pessoas mortas constantemente, iguais se matam galinha no abatedouro, sei lá, ... é esse desvalor. Essas vidas que “valem mais”, que pensam que tem outras que valem menos, então essas que “valem menos” merecem morrer. Então, tem uma coisa, de uma banalização da vida e que ... eu percebi isso, como um negro, metralhado na rua é rebocado e ao lavar o sangue, desce aquela água, e eu vi isso, ficou na minha cabeça... Logo veio a possibilidade de apresentar este trabalho para uma proposta, no Primeiro Prêmio de Interferência Urbana de Santa Tereza. E eu então contei isso para o Alexandre Vogler aqui no ateliê. Ele falou: “apresenta isso pro Interferências Urbanas.” Eu apresentei, ganhei o prêmio, teve a grana e realizei [o projeto]. E ai deu policia, deu de tudo não é, de várias gerações, todo mundo achando que eu estava exaltando a violência, mas não é não, eu estava querendo que as pessoas vissem a quantidade de sangue que desce o morro todo o dia. Todo dia desce sangue morro a baixo e ninguém vê, e O Q. rola Você V é com a tentativa de fazer ver essa violência exacerbada, diante de várias facções que entram em guerra entre si, com a polícia, contra tudo e todos, estão envolvidos na guerra. Como disse Guga [Ferraz], “quando você... só de escutar o barulho do tiroteio, você já faz parte, você já é cúmplice da guerra, você já dorme com aquele barulho”, entendeu? Então, todos os trabalhos são pulsões de vida, o último suspiro, é a grama que nasce entre o paralelepípedo, sabe? É a vida insistindo. É mais ou menos assim que eu crio.

Carlos Borges: Ronald, aproveitando esse ensejo, naquela entrevista de 2013 da Arte & Ensaios, você fala isso, você fala que a grana que você ganhou que não dava nem para pagar o corante, que você pediu apoio a Comlurb, que foi parceira... e essa entrevista tem o nome assim Que palavra que eu vou gritar, não é? E o projeto de pesquisa que a gente está fazendo ai com a Josélia, sobre você, fala sobre essa relação da palavra, do título, não é? Eu queria saber, que palavra que você vai gritar hoje, em 2020, Ronald?

Ronald Duarte: Cara, que entrevista forte! Essa palavra está agarrada na garganta, mas eu acho que a palavra que vem primeiro é liberdade, sabe?, é liberdade, eu acho que a gente precisava. Nós estamos sendo cerceados, estamos sendo censurados, estamos sendo afastados, esmagados por esse sistema filho da puta, entendeu? Que está aí, nesse poder, com os seus 57 milhões de votos, mas nós somos mais do que 57 milhões de votos, entendeu? Eu acho que nós temos que perceber que houve um golpe tecnológico, sabe? Cadê o governador que está agora sendo cassado? Cadê o prefeito que tá sendo agora impichado? Cadê esses filhos da puta no poder agora aí...? Desculpa, não sei se vai ser editado ou não, mas peço para falar aqui, filho da puta mesmo! Entendeu? (Risos)

Ronald Duarte: Porque eu estou indignado... Cadê? Olha agora o ministério da cultura... Entendeu? Talvez a gente tenha que gritar “o quê?” Que a gente vai dizer “sim, senhor”? E o que a gente vai ter que gritar para o Ministério da Cultura, para um coronel, o nosso ministro? Ministro não, secretário da cultura? Cadê os artistas? Cadê? Eu não sei, acho que disseram que o coronel é muito sensível a vídeo, a arte. Eu espero que ele seja sensível a vida, sabe? A vida, primeiro a vida. O que tantos coronéis estão sendo coniventes com toda a queima da Amazônia e não tem ninguém do exército lá, agora, que até o próprio vice-presidente concordou que houve um erro de não mandarem as tropas para poder apagar o fogo, então está ardendo, o Brasil está ardendo em chamas, o planeta está ardendo, olha o que está acontecendo com o clima, olha o que está acontecendo com o planeta inteiro por conta de ganância, ganância, dinheiro, dinheiro, tudo pelo dinheiro, mata-se preto e pobre todo o dia para poder manter o sistema que é colonizador até hoje, não é? ... O mesmo branco, católico, sabe? Sempre ele que está de novo. Porra! Vamos acordar! Vamos acordar todo mundo para a vida, para a vida que está morrendo, para os bichos que estão morrendo no pantanal, está morrendo muito bicho queimado... A gente tem água abundante, só pegar vários aviões e jogar água lá e apagar, cara. Porque que está deixando queimar? Quais são os interesses, entendeu? É essa a indignação que está o tempo todo latente.

Carlos Borges: Continuando... Aqui outra coisa o Nimbo é um pouquinho diferente, não é Ronald? É outra história. Eu tive a oportunidade de participar com você na Bienal, foi em 2006 eu acho, não, em 2008, não é isso?

Ronald Duarte: Eu gosto de ver é quando você está pensando assim, “um pouquinho diferente”... Eu acho engraçado. É com esperança que você acha…

Carlos Borges: É mais esperança, não é, Ronald?

Ronald Duarte: Eu acho que é mais uma agonia, a esperança não, o desespero, pedindo a Deus, pelo amor de Deus, “me salve”, sabe? É todo mundo pedindo pelo amor de Deus, é um bilhete para Deus, sabe? É uma exaltação a vida de novo, é a mesma coisa, eu não estou aguentando mais, o Nimbo Oxalá é um cogumelo atômico de amor, sabe? De esperança, assim, de vontade de viver, você está entendendo? De botar toda essa potência, sabe? Pedindo a Oxalá, ao Grande, sabe? Ao Orixá, maravilhoso, que é essa nuvem branca, sabe? Aí o nome Nimbo, cúmulos nimbos é, onde está isso, não é? ... Toda vez que você olha para o céu, Deus tem que estar entre nós aqui, e falar com ele agora, aqui, na lata, sabe? Eu vou botar ele aqui no jogo da gente, sabe? É mais ou menos isso, é o tempo todo, a criação, o trabalho, a fluição do que acontece, é uma ânsia de viver, uma necessidade de viver, uma necessidade de exaltar e mostrar que a vida é abundante, ela é maravilhosa, não precisamos disso, não precisamos empilhar, não precisamos acumular, não precisamos disso tudo por causa da grana. Olha agora, estão queimando para abrir pasto, para botar de novo o boi lá, o boi não só vai passar não, o boi, ele está no pasto, o boi está na cabeça da galera, o boi vale ouro, o boi é... É o bicho, você está me entendendo? E agora vem a boiada, o boi da cara preta vem aí, entendeu? Vem a boiada negra e a galera vai acordar. A galera tá acordando, a galera tá sentindo e percebe que não dá para aguentar mais tanta opressão, tanta putaria, tanta sacanagem, a galera tem que virar a mesa e é por isso que eu estou aqui, não é? Na vida, é por isso que eu estou aqui na vida.

Carlos Borges: Ronald, eu falo... Exatamente porque tem uma coisa que você fala, inclusive, eu vi na entrevista do canal Curta, não é, que estava ouvindo ontem e você tem uma coisa diferente de provocar nas pessoas. Eu digo diferente, porque o Nimbo Oxalá, eu lembro que participei na Bienal e teve até uma cerimônia muito bacana, não é? E foi assim, realmente uma coisa de muita esperança, bem diferente dos outros, que você se sente mais cutucado mesmo. O “cutucão” é interativo, que eu acho que é um pouco diferente, do Nimbo, da série Guerra é Guerra.

Ronald Duarte: É... eu acho que a série Guerra é Guerra é toda mesclada de ânsia, de necessidade e de esperança, e de luz no fim do túnel. De achar que a vida vale a pena, sabe? Que vale a pena fazer tudo que a gente está fazendo, e muito mais, você está me entendendo? E cada um participando, vendo que o outro faz parte da sua própria vida também, de você está no outro, sabe? Eu andei nessa quarentena, que já ficou cinquentena, centenas aí, já passou de centenas, eu andei lendo Os indígenas, do “Ailton Krenak” e o Davi Kopenawa, e eu aprendi muito... o Ricardo Maurício participou da primeira boiada que era de papel machê, que era colorida, que era muito mais ingênua, muito menos drástica, ela era mais festiva, era quase um Brasil todo. Já a ouro, não, ela começou a perceber, a tomar uma consciência... Que esta cabeça tem valor, o quanto ela está desmatando e o quanto ela está matando pelo dinheiro, o quanto todo o grupo da carnificina, todos os desmatadores, que começou como matadouro de boiada e a boiada andava em fila na primeira ideia. Era como ela ia para o matadouro, entendeu? O boi vai para o matadouro andando em fila, sabe? E a de ouro, ela é convidada para ir a Berlim e ela só se torna de ouro por questões de não conseguir levar a boiada colorida e eu tenho que fazer uma, coincidentemente, muita gente achou que tivesse alguma ligação com o anjo de Berlim. Aí eu vi que tem essa ligação realmente. Isso tudo, como eu estava te falando, parece que não existe o acaso, por que tudo reverbera lá na frente, as imagens estão guardadas, estão imbuídas, como estão os traumas, como estão as cicatrizes, que vão saindo do próprio trabalho, conforme ele vai acontecendo no mundo, conforme ele vai para a rua. A reação dele na rua e como ele tem essa força, o próprio trabalho vai ganhando a própria personalidade e um tempo e lugar. E depois que leio o texto do professor da UnB Anderson Flor do Nascimento, é um professor de Filosofia... ele escreve sobre os corpos que valem mais e os corpos que valem menos e fala da questão da colonização do Brasil, que tem seus 520 anos, datada, e bem datada, e bem, vamos dizer assim, depurada, o que ela nunca deixou de ser. A colonização continua, eles continuam do mesmo jeito, dominando: os dominadores e os dominados. E é isso que a gente precisa detonar, é isso que a gente precisa despontar, não favorecer o sistema colonizador, tem que dar voz as pessoas, tem que trazer a boiada colorida, aquela que Ricardo Maurício participou, que eu tenho uma foto maravilhosa, vendo a cara de cada um dentro daquela pseudo-ingenuidade. É porque tem uma festividade, uma alegria em participar, em estar junto, colorido, todo mundo ali, parece que estava o Brasil inteiro, de todos os tipos, de todos os corpos, sabe? Todas as misturas. Quando ela se torna de ouro, ela fica branca, ela fica dourada, e agora ela vem com a cara preta. Está entendendo? A ideia deste trabalho vir se depurando, ele segue os sinais dos tempos... tudo ao mesmo tempo, agora. A questão do racismo está sendo discutido no mundo todo, será que não seria bom isso tudo vir à baila? Isso tudo vir à tona, você está me entendendo? Será que não vão parar de massacrar, não vão parar de matar, não vão parar de tacar fogo, não vão parar de criar boi, não vão parar de fazer grilagem de terra de índio, não vão parar de matar índio, será que a gente não vai parar? É isso. Será que a gente vai para o inferno mesmo, é isso? Sabe, isso tudo está em todos os trabalhos. A série Guerra é Guerra, por que eu percebi que guerra é guerra mesmo! A gente está numa guerra, entendeu? Por isso que na Bienal, quando eu fiz aquela primeira que você participa, Carlinhos, eu propus um exército, o exército de artistas. Eram 800 artistas em vinte ônibus, com 40 pessoas. Eles me deram um ônibus só com 40 pessoas, não foram 20, eu queria um exército. Tenho todo o projeto pronto, eu mandei para os curadores Agnaldo Faria e para o Moacir dos Anjos. O exército de artistas, nisto, já era um prenúncio do momento que a gente está vivendo agora, eles estão muito bem armados, o poder está muito bem armado, então eles estão desmontando a gente igual se mata formiga, pisando em cima, entendeu? Então, ou a gente sai da guerra e cria outra sociedade, em outro lugar, ou a gente entra na guerra e coloca a nossa posição, entendeu? E acho que cada trabalho meu é uma posição a tomar na vida, eu acho que todos os artistas, neste momento agora, têm que tomar uma posição no mundo, para o mundo! Além de Brasil, além de nação, do planeta que está queimando, que está acabando, não é só aqui, é em vários lugares do mundo, que está tacando fogo, esse ser humano. Esse ser humano.

Ricardo Maurício: É... Você falou uma coisa que me interessou, que eu fiquei pensando aqui, dessa certa ingenuidade daquela primeira boiada, não é? E eu penso um pouco assim, nessa sua visão utópica, coletivista você falou desse encontro, agora com os índios e, de certa forma, aquele momento foi um momento de alegria, como a figura que uso, que é do cavalo de troia, por que a boiada entrou lá na Feira de Arte do Rio, na Arte-Rio, então, eu fiquei pensando muito nesse confronto, entre o humano, entre a posição dos artistas, como um grupo, como um coletivo ali. E aquele contato com pessoas às vezes, absolutamente...

Ronald Duarte: Humanas...

Ricardo Maurício: Evidentemente aquela ação lá desagradava algumas pessoas. Não a todas... outras colecionadoras de artes, quer dizer, esse grande mundo da arte, do mercado de arte. Como é que você vê esse confronto? Você falou num exército de artistas, como é que você vê esse confronto entre essa inserção por essas vias, que inclusive inviabilizam possibilidades de carreira e ninguém quer dizer não a isso, mas ao mesmo tempo estão numa lógica capitalista, e essa outra lógica que é uma lógica da agregação, dos coletivos, do pensar como artista, do viver como artista , essa proximidade entre arte e vida, que tanto assusta, de repente, alguns colecionadores, alguns marchands, como aqueles que a gente via com as caras muito estupefatas, não é?

Ronald Duarte: É engraçado que eu participei de uma entrevista com o Alexandre Sá, o grande Xandão, maravilhoso lá da UERJ, e ele também me fez essa pergunta, como é a relação desse Ronald tupinambá, que a Lygia Pape me chamava de tupinambá, ele lembrou bem... e esse mercado de arte, que nós alimentamos e participamos... esse sistema que a gente tanto debate. Como é que é esse confronto? Eu acho que não há confronto, pelo contrário, eu acho que a gente procura os nossos pares. Eu só consegui fazer a boiada na Arte-Rio, só colocar esse confronto, como você viu as reações díspares, uns até achavam engraçadinhos, outros ficavam olhando com aquelas caras assim, mas só uma Paola, Paola dona da Galeria Projetil, uma pessoa maravilhosa, sensível, uma pessoa que ama a arte, como humano, como pessoa, você está me entendendo? Que não é uma capitalista selvagem, só uma pessoa assim, que compraria uma ideia dessas, que bancaria uma ideia dessas, você está me entendendo? Então, eu acho que na verdade, a gente transita nesses meios, procurando nossos pares, como o Artur Fidalgo, que é outro galerista que também está no mercado de arte também, mas é um sensível. Fez agora a última exposição, em 2018, foi um bambuzal dentro de uma galeria de arte. Quem é que topa umas ideias dessas, umas ideias orgânicas, uma ideia de vida? De acreditar que vai nascer um gramado lindo no meio de um paralelepípedo? Vou semear grama São Carlos nos paralelepípedos, para aquela grama nascer em volta do paralelepípedo. Então é essa insistência da vida… Para mim, pedra também é vida, mas eu estou dizendo como se fosse à analogia de um lugar que você nunca imaginaria que teria vida e tem. Então, eu acho que existe luz no fim do túnel, eu sou um otimista, eu sou um eterno otimista, acreditando que atingiremos um plano melhor de natureza, de vida melhor, de bem para todos, de uma horizontalidade, eu acredito nessa horizontalidade, eu acredito e vivo esta horizontalidade, não acredito naqueles que vão para os picos das pirâmides, você está me entendendo? Porque tudo isso pode diluir. Você vê, a pandemia mesmo quebrou muita gente, muita gente mudou, quer dizer, uma coisa que a própria natureza, eu acho que é uma reação da natureza, inclusive, tem vários pensadores que dizem que a própria ação do homem na natureza que está fortalecendo a existência do vírus e de todas as bactérias e de tudo que está acontecendo, por conta de um desequilíbrio mesmo, natural do planeta, então a própria natureza está reagindo, isso é uma reação, matar 130 mil pessoas no Brasil agora, sabe? Com a pandemia...

[Nota do Editor: Esses eram os números do momento da entrevista. Em junho de 2022, esse número já chega a 668 mil mortos no Brasil]

Ricardo Maurício: Tem a hipótese de Gaia...

Ronald Duarte: Isso, isso... Exatamente, exatamente. E esta hipótese de Gaia é a mãe natureza, ela também percebe, ela é sensível. Eu acredito nisso, eu acredito nisso, nessa sensibilidade da vida do planeta, como vida... é essa humanidade que o próprio Aílton Krenak diz, eu não participo desse humano que está ai, eu não sou parte dessa humanidade que está aí. Essa humanidade que taca fogo, essa humanidade que come carne, essa humanidade que cria boi. Isso é humanidade?

Ricardo Maurício: Ronald, como foi a passagem da Boiada de Ouro... Me remete um pouco ao boi lá em Wall Street. Tem alguma relação com isso? Alguma... Alguma vinculação inconsciente ou não, ou é só uma coincidência. Como é que você vê?

Ronald Duarte: Olha, eu juro para você que era tudo ingênuo e do inconsciente. Parece que eu não sabia, mas quando eu leio o texto do professor da UnB, Anderson, eu vejo que ele foi tão contundente e tão cristalino, tão transparente na questão dos corpos que valem mais e dos corpos que valem menos, dessas pessoas... que eles acreditam realmente nisso. Sempre, do jeito como ele fala, esse que sempre foi rico, o pai que sempre mandou, a mãe que sempre mandou, sempre tiveram empregados, sabe? A questão da colonização mesmo, do imperador mesmo, dos escravos mesmo, você está me entendendo? Isso se repete na sociedade atual e vem se repetindo, é como se fosse depurado, é uma colonização mais depurada, mas continua a mesma coisa. E aí eu percebi que quando a boiada deixa de ser plural, colorida, e passa a seguir uma cor só, e o plástico dourado veio a calhar por que era o plástico mais barato que tinha para quem me doou, “eu só tenho esse aqui, eu vou te doar o dourado”, e doou para fazer esse dourado, e não foi pensado. E quando chega lá em Berlim, eu vejo um anjo dourado, de ouro, e quanto vale uma cabeça de boi e quanto vale a carne do planeta, e a gente sendo o maior exportador? Aí foi fechando, as coisas foram… E esse texto é tão elucidativo, por isso que agora eu faço conscientemente, uma boiada toda com a cara preta, sabe? E pega essa criança que tem medo de careta. E vão ver quem são essas crianças que têm medo de careta, entendeu? Isso no nosso imaginário popular, e o boi no Maranhão. E aí quando eu fui pesquisar sobre o boi do Maranhão, o boi bumbá. É a língua do boi que o escravo, que é o casado com a mulher que está grávida e que tem uma Catirina e que tem o desejo de comer a língua do boi. O escravo, eles dois são escravos, são do senhorzinho, ela deseja comer a língua do boi reprodutor do senhorzinho da fazenda e ele mata o boi, tira a língua para dar pra ela, só que quando o senhorzinho da fazenda descobre isso, quer matá-lo, ele vai morrer, ele pede ajuda aos encantados, aos caboclos, vai para o candomblé, procurar lá saber como é que ele se livra dessa, e ele ressuscita o boi, e aí entrega o boi ao senhorzinho e não morre. Essa é a história do boi bumbá no Maranhão, você está me entendendo? Então, o que que é isso? De novo é a colonização, de novo é a opressão, de novo o boi. É a mesma coisa hoje, com todas as corrupções que acontecem de todos os envolvidos com carne, com tudo isso que está acontecendo hoje, igualzinho o boi bumbá do Maranhão. Então, parece que não mudou nada, você está me entendendo?

Ricardo Maurício: Ronald, você antecipou aqui algumas coisas que eu até queria te perguntar... Uma coisa que me incomoda muito na arte, apesar de toda a qualidade, da arte contemporânea brasileira, é que eu vejo muitos dos artistas brasileiros fazendo uma arte internacionalista, assim meio de costas pro Brasil, e uma coisa que eu acho muito interessante é esse modo como você lida... Eu acho que você falou logo no início, é essa organicidade que fica muito latente, quer dizer, dessa relação com a cultura popular, com as religiões afro-brasileiras, essa coisa de fazer uma arte muito de dentro do Brasil mesmo, não de costas para o Brasil, não é? Inclusive com os problemas das comunidades do Rio, tudo aquilo da violência, essa violência do cotidiano e tal. É de certa forma, é isso que você falou inclusive em relação a esse contato com o Boi Bumbá, já estava claro na sua opção lá pelo boi, lá da Arte-Rio, eu acho que você poderia falar um pouco mais sobre isso também, se você quiser…

Ronald Duarte: Sobre o boi bumbá ou sobre a Arte-Rio.

Ricardo Maurício: Não, sobre o contato com o Brasil, com este Brasil.

Ronald Duarte: Ah, esse Brasil é maravilhoso, cara. Porque, por exemplo, a primeira Boiada, ela é feita em Olinda em papel machê, pelo seu Isaías e a família, os filhos dele e todo mundo que faziam em papel machê lá em Olinda, e a Paola, eu mostro para ela nas fotos do seu Isaías e da cabeçada de boi que eu ia fazer e tudo, trazer para cá. Ela falou “como que a gente faz, para trazer de Olinda para cá, 40 cabeças?” E aí a gente trouxe de caminhão, sabe? Ela é uma guerreira, eu adoro os galeristas que estão ligados ao mercado que estão vivos, que incentivam o acontecer, ao acontecimento arte, que incentivam a palavra e a frase, quer dizer, não é só a palavra, você tem que fazer uma oração, inclusive até, eu me lembro da Marisa Flórido falando disso, em relação ao Nimbo Oxalá, no dia de Iemanjá, aquele do barquinho, e aquilo ali também, foi um acontecimento, que participa do Olalaô, também faz parte da série Guerra é Guerra. Aqui tá aparecendo no Nimbo Oxalá que foi feito no Parque Lage, mas tem um, que é do projeto Alalaô, que é ligado ao Ernesto Neto, ao Marco Wagner, à Laura Lima, pessoal da Gentil Carioca e eles que me convidaram e eu faço no dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá e eu faço um Nimbo Oxalá no mar, dentro de um barquinho, e foi maravilhoso, como disse a Marisa Flórido, como se fosse uma oração, parecia uma oração. A oração é uma evocação, ela tem uma sonoridade, tem um conjunto certo e um tom certo para que aconteça, então, até o próprio nome desse trabalho do Nimbo Oxalá. Cada Nimbo Oxalá... Você queria falar Ricardo?

Ricardo Maurício: Dia 2 de fevereiro foi o dia que o meu irmão morreu… (inaudível).

Ronald Duarte: Pois é, Iemanjá chamou... um presente, morrer nesse dia, ganhar os berços (...) berços de Iemanjá ... Mas é isso, cada Nimbo Oxalá e já tiveram vários Nimbos Oxalás, dedicados a vários outros Orixás, conforme a necessidade do trabalho. Quando eu faço a primeira vez o Nimbo Oxalá à noite, porque o Nimbo Oxalá é feito para ser feito de dia, e aí, eu o ilumino com vermelho, e aí eu faço ele Nuvem de Oxalá-Xangô, que Xangô é vermelho. E assim, eu vou fazendo outros, como o da Bélgica, eu fiz amarelo que é Oxum, e conforme as cores eu vou dialogando Oxalá com outros Orixás. Como eu sou filho de Xangô com Oxalá, eu faço o primeiro, vermelho e branco, lá em Brasília, no evento chamado Aberto Brasília, em um evento em que o Wagner Barja convidou uma galera maravilhosa, Nelson Felix, meu irmãozão,... Paulo Brusky, que pintou um cavalo, ficou ótimo, Chico Xaves que também tem uma história maravilhosa, poxa, o Guto Lacaz, que é ótimo também lá de São Paulo, fez um pedalinho, maravilhoso lá em Brasília, foi um evento muito legal. Tiveram vários... o Luís Alphonsus também fez um trabalho muito maneiro, então uma galera parceiraça, maravilhosa. Estava falando do Brasil, você tinha falado da relação com o Brasil. Recife foi uma experiência muito boa; fiz o Nimbo Oxalá também com a Rosa Melo, num evento no Salão Pernambucano de Arte, foi maravilhoso. Dentro do Rio. Fiz também em Maceió, fiz pela Rede Nacional de Artes Visuais, também foi muito maneiro, fiz em São Paulo, você foi a São Paulo, Ricardo? Não né, só o Carlinhos Borges que foi... Fiz o Nimbo Oxalá pelo Brasil, pelo nordeste, Maceió, Recife, deixa eu ver… Brasília… Nunca fiz no Espírito Santo, hein? Engraçado que, de repente pararam de pedir Nimbo Oxalá, não sei porquê. Foi em 2016 o último, tem quatro anos que não faço Nimbo Oxalá. No mundo... Vários lugares, porque é um trabalho, eu nunca falei isso, no Parque Lage são quarenta pessoas que estavam lá e ele foi pensado inicialmente para 40 pessoas, mas na época, que eu fiz o primeiro, eu fiz com 20 pessoas, porque não tinha a produção, a grana suficiente... Quase sempre a grana que eu consigo de produção, eu gasto toda e às vezes coloco alguma coisa, pego um patrocínio, como Carlinhos estava me perguntando, patrocínio e tudo para poder terminar de fazer o trabalho. Porque o trabalho começa a crescer e vai tendo custo, a grana que você ganha às vezes não dá nem para fazer o trabalho e você tem que correr atrás. E tem o pessoal dos extintores Zina, Zina extintores, ali da Leopoldina, que sempre me ajudou, sempre chegou junto, sempre faz um preço camarada, para ser viável o trabalho: eles que fizeram o do Parque Lage também...

Ricardo Maurício: Para quem não sabe, no Nimbo Oxalá, a fumaça é produzida pela carga dos extintores, que é um gás, não é?

Ronald Duarte: É o CO2, que quando entra em contato com o oxigênio fica água... Ficam uns floquinhos d’agua.

Ricardo Maurício: Aí o extintor esvazia…

Ronald Duarte: É… tem que esvaziar de uma vez só, não pode parar. É até o fim... É maravilhoso...


Ricardo Maurício: O primeiro foi na Funarte?

Ronald Duarte: O primeiro foi na Funarte; você já participou de algum, Ricardo?

Ricardo Maurício: Não… Quando foi o primeiro?

Ronald Duarte: O primeiro foi em 2004, o segundo foi em 2006, em São Paulo, na abertura do Museu Afro, que foi lindo, maravilhoso, o Arjan estava lá, o Carlos Contente também, o Emanuel Araújo que me convidou, veio aqui no ateliê me convidar, Emanuel chiquérrimo, maravilhoso, adoro o Emanuel e foi na abertura do Museu Afro, lá no Ibirapuera. Depois eu fiz na Bienal, que o Carlinhos até participou, foi em 2010, não é? 2010, foi isso, não é? A 29ª Bienal, 2010. Eu fiz o Ibirapuera de novo, mas pela fundação Bienal. Foi outra história e foram 40 pessoas também, que foram no ônibus comigo, que eu saí do Rio com o ônibus, todo mundo de branco, fizemos um piquenique de manhã, uma ceia maravilhosa nos jardins do Ibirapuera, tudo comida branca, tudo para Oxalá. Foi maravilhoso, foi muito axé. E aí o grupo Treme Terra do Aderbal, um Ogã do Candomblé, que eu também sou Ogã do Candomblé, foram todos, foi uma festa, foi um Axé maravilhoso, foi tudo bem, tudo maravilhoso e o pessoal da Zina Extintores saiu daqui do Rio de Janeiro com os extintores e levou os extintores lá para o Parque do Ibirapuera e foram daqui do Rio, foram também a Brasília, levaram os extintores a Brasília. Essa galera é bem legal, encontrar parcerias assim que acompanham você, e no mundo afora. Porque eu já fiz o Nimbo Oxalá... Bélgica, Galícia, Holanda, Ochuáia na Patagônia, Miami, Cuba, a Bienal de Cuba foi uma experiência louca... Alguém quer falar?

Josélia Andrade: Eu quero falar... Bom dia, Ricardo, bom dia Ronald, prazer. Eu sou a Josélia, eu sou graduanda aqui da Federal do Espírito Santo em Artes Visuais e, agora em 2020, comecei uma pesquisa de iniciação científica com o Carlos, e aí a gente está pesquisando a palavra como elemento agregador nas suas ações, nas ações dos seus trabalhos. E você falou sobre o trabalho O Q. rola Você V (interrupção)... E o que parece é que você nomeou esse trabalho como uma percepção sua daquele acontecimento, não é? Da questão lá, do genocídio da população negra. E eu queria saber de você, não só nesse trabalho, mas como acontece a escolha do nome do trabalho? Eu estou no meu processo de criação, ele é recente, e acontece assim: não tem nada muito determinado no meu processo, às vezes o trabalho acontece, como eu faço muito trabalho, pesquisa de performance e às vezes surge a ideia como um título e eu só a executo depois, então no caso, seria um nome, veio antes do trabalho e aí, depois, eu executei aquele nome, aquela ação. No caso do seu trabalho, da sua produção, o nome, ele vem antes, vem depois da produção, ele vem em contato com o público? No meu caso, eu tenho uma restrição de contato pessoal ao vivo com o público, não é? E isto também tem relação com o fato de eu ser uma mulher negra, então é uma coisa que eu coloco no meu processo de criação. Então, eu queria saber, de você, como acontecem essas escolhas de título ou sem título.

Ronald Duarte: É… Você estava falando, eu estava pensando, acho que é tudo ao mesmo tempo agora e tudo é misturado. Eu acho que o nome aparece sempre, o nome é aquela palavra que mais eu falo antes de eu executar o trabalho, porque eu sou o falador, sou um tagarela, falo pra caramba! E de tanto falar do trabalho, eu vou repetindo o que eu vou fazer. Por exemplo, o trabalho que eu estou pensando em fazer, um exemplo, é um trabalho sobre essas balas traçantes dos traficantes, que todo dia eu vejo da janela passar uma balinha vermelha, aí outra balinha vermelha e no réveillon veio uma rajada de balas traçantes que até saiu uma foto no jornal, como se fosse um rabo de pavão aberto, só de balas traçantes, então de tanto falar “traçante”, “traçante”, o nome do trabalho é Traçante. Ou então, de tanto falar “fogo cruzado”, do lado da minha casa tem um fogo cruzado, o nome do trabalho ficou Fogo Cruzado. Então, de tanto eu contar a história do que eu vou fazer… Por exemplo, o trabalho que eu tenho mais falado e que eu ainda não fiz, como o Exército de Artistas, o nome é exército de artistas de tanto eu falar do exército de artistas e que eu nunca fiz, e é o nome também da rede de engarrafamento. Eu quero fazer uma rede de engarrafamento e o nome do trabalho é Rede de Engarrafamento. Então, parece que de tanto eu falar do trabalho, o nome vai… Eu queria fazer uns Cúmulos Nimbo, uma nuvem para Oxalá, eu queria fazer uma nuvem para Oxalá, qual a nuvem? Cúmulos Nimbo. Quando fui ver o título Nimbo Oxalá. E aí pronto, os nomes eles vão saindo, eles são criados durante a própria ideia e a ideia já existe. Tem vários trabalhos que eu nunca fiz e que nunca existiram, tem vários trabalhos que eu queria ter feito que eu não fiz, e às vezes alguma pessoa faz um bem próximo daquilo, eu falo “caramba, bem próximo daquilo que eu queria ter feito e não fiz!” Mas então, eu acho que as ideias e esse espírito do tempo, ele está no ar, ele está no instante em que você vive, se você conecta esse aqui e agora, essa instantaneidade, do instante, que o Ericsson Pires falava muito, dessa instantaneidade do instante, esse aqui e agora, eu acho que (...interrupção) Eu te respondi, Josélia?

Josélia Andrade: Respondeu sim, mas é isso que acontece mesmo, o trabalho, às vezes já está acontecendo e depois a gente só percebe porque tem essa necessidade de nomear, para poder colocar no currículo, para se inscrever nos editais, então a gente precisa colocar um nome, mas o trabalho ele já acontece, continua acontecendo, mesmo que a gente não nomeie ou execute, assim, às vezes a gente acaba produzindo uma coisa que não é colocada no currículo.

Ronald Duarte: Inclusive, o próprio trabalho cria o seu próprio nome, por exemplo... O A Boiada nasce com o boi de piranha, o primeiro nome da boiada era Boi de Piranha. Não se sei você sabe o que representa essa expressão boi de piranha.

Josélia Andrade: Não

Ronald Duarte: O cara, para passar a boiada, como o nosso... nosso não, porque não é meu, mas o ministro que está aí no meio ambiente, falou que para passar a boiada no rio o dono da boiada bota o boi mais velho para as piranhas comerem, aí quando as piranhas começam a comer o boi mais velho, ele vai descendo rio abaixo, aquele cardume de piranhas comendo o boi, aí ele passa a boiada, para boiada não ser comida pelas piranhas, isso lá no norte do Brasil, onde tem piranha nos rios. Então, o boi de piranha é aquele que vai à frente para ser comido para boiada inteira passar. Entendeu? O trabalho boiada, hoje é Boi da Cara Preta, mas já foi Boiada de Ouro e já foi Matadouro Boiada, então ele vai trocando de nome de acordo com o tempo em que ele está sendo executado, e com a exigência dele próprio, sabe? Do próprio trabalho. Porque o trabalho ganha certa autonomia e eu olho a necessidade também. Criam-se muitas necessidades com o trabalho, entendeu? E esse trabalho, agora que ele foi para Berlim, ele virou de ouro, e agora ele é da cara preta, então, vem essa questão do racismo que está mais…

Josélia Andrade: Tem a relação com o lugar também, não é? …

Ronald Duarte: Sim, sempre tem relação com o lugar… Primeiro, que o Boi da Cara Preta vai acontecer no Brasil, aqui no Rio, ele vai acontecer na Pequena África, ali na Gamboa, que, inclusive, é um bairro negro, é um bairro preto. Tem muito mais preto. Acho que o Rio de Janeiro é preto, inclusive. É por que a galera só mostra o branquinho, mas eu acho que tem mais gente preta no Rio, igual na Bahia, se for comparar com Curitiba ou até mesmo São Paulo, que é mais misturado, não sei. Acho que o Rio de Janeiro é preto. Então ali na Gamboa também tem a ver com o lugar, mas o Boi da cara Preta ia para Portugal discutir a questão da colonização negra, essa questão de tantas invasões dos portugueses, porque os portugueses não descobriram coisa nenhuma, eles invadiram terras alheias. O meu avô era português, eu sou Duarte, então eu posso mexer na ferida…

Josélia Andrade: Você comentou também sobre o fato dos seus trabalhos terem apelidos, o que é uma novidade para mim, por que eu sabia dos nomes...

Ronald Duarte: É, muita gente não chama O Q. rola Você V, porque não consegue guardar O Q. rola Você V, como O Q. rola Você V. Chama: ah, o banho vermelho, o banho de sangue, aquele banho de sangue, sabe? Chamam de banho de sangue. Ou então o Fogo cruzado mesmo, chamam de fogo nos trilhos, são os apelidos, os nomes que as pessoas vão dando e acabam falando, às vezes até em entrevistas, apresentando o trabalho, citando com outro nome, entendeu? São os apelidos que eles vão ganhando. Como Nimbo Oxalá, muita gente chama de a nuvem, a grande nuvem, o cogumelo; em um jornal cubano saiu como a bomba da paz, não é a pomba não, a bomba da paz. Muito louco...

Carlos Borges: Aproveitando, não sei se vai dar tempo, a gente já tá estendendo um pouquinho, bastante aliás, mas eu já imaginava que isso fosse acontecer. Eu queria, se você pudesse, que falasse um pouquinho da Estrela de Fogo, que foi lá em Cuba, que acho que é uma história, assim, muito bacana, que você usou uma música até para evitar um problema com o pessoal lá, do religioso, não foi isso?

Ronald Duarte: É exatamente. O problema não era religioso, o problema era político mesmo. Porque quando eu falei da questão de atear o fogo e tudo, eu estava falando do tempo do fogo e depois eu apagaria, não é? Como o tempo da vida, não é? Então eles acharam que eu estava fazendo uma alusão ao envelhecimento. O que não deixa de ser, mas ao envelhecimento de Fidel, ele já estava próximo de morrer e… estava subentendido isso, mas não estava dito, mas eles pediram alguma coisa mais alegre, alguma coisa positiva. Eles me recusaram inicialmente, e aí eu mandei um cd da Escola de Samba Unidos da Tijuca e, inclusive, você chamou estrela de fogo, mas se chama Estrela de Luz, é o nome do samba, Estrela de Luz, que é aquela (canta): “Estrela de luz que conduz e que faz sonhar...”, o refrão é esse! Então, tem uma coisa mais positiva do que o apagamento da estrela, o fim de uma época, não é? Então, aí eles gostaram muito mais, vibraram muito mais, a coisa foi muito mais para um lado legal da história. Mesmo assim, tiveram reações locais, as pessoas disseram “Isso é uma provocação”, achando que eu estava ali para provocar. Não, eu não estava falando do aqui agora, da questão do tempo daquele instante, daquele momento que eu estava vivendo. Eu fui fazer junto com Lourival Cuquinha que fez a bandeira de dólar andando pela cidade, o Vogler também soltou uns balões com um olho grande, o Romano também fez uma sonora, foi o Não preste atenção, não preste atenção. o trabalho sonoro do Romano. A exposição chamava Vozes Diferenciadas em Cuba, foi logo depois da Bienal de Havana, foi em 2011 ou 2012... Acho que foi em 2011, uma coisa assim, mas foi legal, consegui fazer, inclusive, tive o apoio do Itamaraty, dos nossos consulares lá, do nosso Adido Cultural… Foi bem legal, foi bem legal, foi muito positiva a participação neste evento lá, em Cuba. E fazer esse trabalho também foi um desafio, foi botar também o dedo na ferida, mas de uma maneira bem elegante.

Carlos Borges: Outra época também, não é, Ronald? Aquela história: esse apoio cultural da diplomacia brasileira era em outra época, agora não aconteceria…

Ronald Duarte: Não, agora a gente não existe, tudo já foi desmontado. Eu acho que a gente tem que conversar com os nossos pares, fortalecer as micropolíticas, fazer com que nós busquemos atravessar essa ponte. Neste momento, não sei, por que eu não sei nem como deve ser ... dialogar com esse povo, não sei, parece que não tem diálogo, não sei.

Carlos Borges: Ronald, eu acho que a gente pode encerrar por aqui, não é Ricardo? Josélia...? Eu só queria fazer uma coisa. A gente estava com essa proposta de fazer uma curadoria, aqui deste programa, parecido com o que tinha no Imaginário Periférico, que tive a chance de participar com você. A gente sempre ir convidando pessoas e assim... Quem que você convidaria pra participar de outra entrevista, Ronald. Em quem que você pensaria?

Ronald Duarte: O Romano é um parceirão...

Carlos Borges: Vai ser o próximo.

Ronald Duarte: O Vogler é um cara legal, mas eu acho que o Guga também seria bem interessante, porque ele não está na academia, não tem essa relação de academia, então ele liberou o mestrado, eu acho isso bem interessante também por conta da linguagem, da forma de trabalhar, da liberdade, da palavra que eu quero gritar... acho que liberdade é a primeira de todas. Então eu acho que o Guga é um exaltador dessa liberdade, é um praticante dessa liberdade sabe, e também está com uns trabalhos... O Vogler também tem um trabalho super contundente. São os parceiros mais próximos... o Vogler, Guga, Romano. Tem a Gisele Camargo, que faz um trabalho maravilhoso também, eu acho maravilhosa, tem umas meninas novas também, estão despontando com alguns trabalhos assim… bem interessantes. Na Tipografia, eu fiquei um ano como curador e lá abria a curadoria junto com outras pessoas, o Andre Leal, junto com o Thiago Ortiz, e lá nós vimos uma produção muito grande, muita gente que precisa mostrar o seu trabalho, que precisa falar, e eu acho que tem uma gama enorme de artistas. Esses que eu falei são arroz de casa, são como Ricardo Maurício, é irmão, como você mesmo, irmão de longa data, de longo tempo, e que eu acompanho, que tem trabalho, que vejo como cada um está se virando, tem vários aí, tem muita gente aí. Lívia Flores também é uma parceirona, é ótima, a Analu Cunha tem uns vídeos maravilhosos, sabe? Inclusive essa imagem do Nimbo Oxalá que estava aí é dela, tem muita gente maneira que está produzindo e que vale a pena fazer uma entrevista, mostrar o trabalho e falar desses momentos. São exaltadores da vida. Regina de Paula tem um trabalho maravilhoso também, tem Malu Fatoreli. Tem a galera da UERJ, que é muito legal. Cristina Salgado também, eu adoro o trabalho dela, tem uma gama.

Carlos Borges: Minha orientadora...

Ronald Borges: A Cristina, o trabalho dela é fantástico, eu adoro o trabalho dela. O meu catálogo, inclusive, foi inspirado no catálogo dela. Vendo os trabalhos dela, eu falei: “eu quero um catálogo assim”. A Cristina é maravilhosa. Então, tem uma gama de artistas de todos os gostos, para todos os gostos, mas fica a seu critério aí. Eu adorei, obrigado, valeu Josélia, valeu ai, pena que é pouco tempo, eu sempre acho que é pouco tempo, mas…

Ricardo Maurício: Foi ótimo, Ronald. Obrigado.

Ronald Duarte: Ricardão, grande Ricardo! Quando tiver no Rio me fala, para eu te dar um abraço.

Josélia Andrade: Obrigado!

Carlos Borges: Obrigado Josélia, obrigado Ricardo, obrigado Magno, obrigado à equipe técnica do SEAD! Obrigado a você, Ronald, grande beijo. Bacana demais a experiência. Foi um prazer!

Ronald Duarte: Valeu, obrigado a vocês, valeu muito. Depois me mostra editado.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

Ronald Duarte, Boiada de ouro (Berlim, Alemanha), 2014 (Foto: Ronald Duarte).

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

Ronald Duarte, Fogo cruzado, 2002, estopa e querosene. (Foto: Wilton Montenegro)

Ronald Duarte, O que rola você vê (Banho de sangue), 2002, anilina, still de vídeo.

DUARTE, Ronald; BORGES, Carlos Eduardo; GONZAGA, Ricardo Maurício; SANTOS, Josélia Andrade. A palavra na poética de Ronald Duarte.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

Ronald Duarte, Nimbo Oxalá (Parque Lage, Rio de Janeiro), 2012.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

DUARTE, Ronald; BORGES, Carlos Eduardo; GONZAGA, Ricardo Maurício; SANTOS, Josélia Andrade. A palavra na poética de Ronald Duarte.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

DUARTE, Ronald; BORGES, Carlos Eduardo; GONZAGA, Ricardo Maurício; SANTOS, Josélia Andrade. A palavra na poética de Ronald Duarte.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

DUARTE, Ronald; BORGES, Carlos Eduardo; GONZAGA, Ricardo Maurício; SANTOS, Josélia Andrade. A palavra na poética de Ronald Duarte.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

DUARTE, Ronald; BORGES, Carlos Eduardo; GONZAGA, Ricardo Maurício; SANTOS, Josélia Andrade. A palavra na poética de Ronald Duarte.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

DUARTE, Ronald; BORGES, Carlos Eduardo; GONZAGA, Ricardo Maurício; SANTOS, Josélia Andrade. A palavra na poética de Ronald Duarte.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 105-125, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53064]

DUARTE, Ronald; BORGES, Carlos Eduardo; GONZAGA, Ricardo Maurício; SANTOS, Josélia Andrade. A palavra na poética de Ronald Duarte.