Três Modos Autorais: Indeterminado, Irônico e Estocástico

Three Modes of Authorship: Indeterminate, Ironic, and Stochastic

Tres Modos Autorales: Indeterminado, Irónico y Estocástico

Resumo Este breve artigo propõe três categorias de autoria que a concebem como forma ambígua de identidade segundo diferentes estratégias do fazer artístico. O módulo de sintetizador Sample&Hold, a escrita não-criativa e as cadeias de Markov ilustram modos distintos de tratar a questão de “como ser artista sem ser autor”, formulada através da indeterminação, ironia e estatística respectivamente. As observações feitas neste texto são resultados conceituais de um processo pessoal de pesquisa e práticas artísticas.
Palavras-chave arte; autoria; indeterminação; ironia; estatística

Abstract This brief article proposes three categories of authorship that conceive it as an ambiguous form of identity according to different strategies of artistic making. The Sample&Hold synthesizer module, uncreative writing and Markov chains illustrate distinct ways of dealing with the question of "how to be an artist without being an author", formulated through indeterminacy, irony and statistics respectively. Observations made in this text are conceptual results of a personal process of research and artistic practices.Keywords art; authorship; indeterminacy; irony; statistics

Este documento é distribuído nos termos da licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC)

© 2022 Leona Machado

Submetido: 14/2/2022

Aprovado: 4/5/2022

* Leona Machado é artista-pesquisadore e graduande de bacharelado em Artes pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: lhgmachado@id.uff.br; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6319-9016

Leona Machado *
(Universidade Federal Fluminense, Brasil)


Resumen Este breve artículo propone tres categorías de autoría que la conciben como una forma ambigua de identidad em funcion de diferentes estrategias de realización artística. El módulo de sintetizador Sample&Hold, la escritura no creativa y las cadenas de Márkov ilustran distintas formas de abordar la cuestión de "cómo ser artista sin ser autor", formulada a través de la indeterminación, la ironía y la estadística, respectivamente. Las observaciones realizadas en este texto son resultados conceptuales de un proceso personal de investigación y prácticas artísticas.
Palabras clave arte; autoría; indeterminación; ironía; estadística

Desde que dei início no que entendo hoje como sendo minha obra-pesquisa de arte, uma questão específica parece ter-me acompanhando todo o tempo: o que é autoria? Ou ainda, quais traços denotam autoria? Como se constrói a imagem de autore? De que forma o estatuto de artista reflete o de autore? Como ser artista sem ser autore? E a primeira resposta que me surgiu e constituiu um centro em minhas investigações foi a Indeterminação, de modo que parecesse, por ora, resolver a autoria em uma ironia bastante clara: não fui Eu que fiz, esta é apenas mais uma obra das forças do caos, são elas as autoras. Porém, com o tempo, tal fórmula mostrou ser, ainda, muito insuficiente ao que pretendia.

A indeterminação, à maneira a qual fazia, tem bastante similaridade com uma figura em especial: o módulo Sample&Hold dos sintetizadores, o qual esteve muito presente numa fase inicial dos meus estudos sobre arte. Seu belo funcionamento é simples: a partir de um tal dado input, quando algum sinal for dado, o S&H extrairá a frequência atual de seu input e a reproduzirá até que outro sinal seja dado – e consequentemente, outra frequência capturada e reproduzida. De muitos dos sons que podem servir de input, meus favoritos eram os ruídos, por serem dotados de uma riqueza de sinais arranjados segundo certo caos particular que não deixa de figurar um todo composto por multiplicidades, sempre trabalhando por mutações variáveis, por ora branco, por ora rosa, por ora marrom… Quando um ruído é posto em funcionamento através de um S&H, o módulo funcionará de forma miraculosa, tal qual em um ato de divinação: fará com que um som (“uma visão”), uma determinada frequência surja do intenso mundo de caos que compõe o ruído. O trabalho do S&H é precisamente de demarcação. O S&H captura uma tal frequência sem que o ruído deixe de funcionar; ele a demarca temporalmente e garante sua manutenção prolongada no espectro sonoro, não exatamente imitando-a, mas, antes, estendendo-a através de si ao emitir a mesma frequência em seu canal de saída. Quando o sinal que dá gatilho ao S&H é alimentado por um LFO (oscilador de frequências baixas), a variação de onda do mesmo fará com que uma determinada série temporal seja posta em funcionamento no sintetizador. Toda vez que frequência do LFO atinge seu pico, um gatilho é dado ao S&H e uma outra frequência é capturada do ruído e reproduzida pelo módulo. A variação do LFO dita, dessa maneira, um ritmo de recapturas e reproduções, sempre de frequências distintas, oriundas dessa sopa primordial caótica, o próprio ruído do qual um som anterior é descodificado para dar lugar a um novo output indeterminado. O diferencial entre as frequências, então, compõe um campo harmônico experimental e livre, que se reproduz ao acaso do ruído. As frequências reproduzidas devém música. O S&H e LFO tornam-se compositor e músico: inspiram-se nas forças do caos para inferir ordenamentos ao acaso, espaçados por dadas variações temporais, que animam um campo harmônico próprio, jamais existente e que jamais voltará a existir: uma música em que o acaso atua por inteiro. O módulo é interessante por isso: por ser um gênio musical que transforma o ruído caótico em uma sequência de notas, em uma canção, em uma música sempre diferente. E por algum tempo, acreditei na taumaturgia do S&H, em suas melodias milagrosas que se estendiam ao infinito, em sua imaginação cega e não-humana. E é certo que a matéria-forma sonora é amplamente aberta a multiplicidades e que o sintetizador é uma fábrica de sons por excelência, porém isto não resolve a questão da autoria: uma figura ainda me é fantasmagórica neste módulo.

O Artista Clássico é o fantasma que habita o S&H. Entretanto, O Artista Clássico é muito mais partidário de sua genialidade.

“Ele ventila os meios, separa-os, harmoniza-os, regulamenta suas misturas, passa de um a outro. O que ele afronta assim é o caos, as forças do caos, as forças de uma matéria bruta indomada, às quais as Formas devem impor-se para fazer substâncias, os Códigos, para fazer meios. Prodigiosa agilidade. A tarefa do Artista Clássico é a do próprio Deus, organizar o caos, e seu único grito é Criação! A Criação! A Árvore da Criação!” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 161)

E tudo deve passar por categorias de Um-Dois na Criação, seja em formas divididas, seja em partes reciprocamente singulares. É sempre em uma unidade binária de produção que tal Artista trabalha: territorializando o mundo caótico com harmoniosos ordenamentos, demarcando aquilo que é belo e aquilo que não é, organizando as linhas segundo os pontos do absoluto. Tudo é dividido por ele em formas e em partes duais opostas, segundo sistemas maiores de ordenamento biunívoco. E em tudo que se pode dizer de divino no trabalho de tais Artistas, pode-se dizer do trabalho do S&H. O módulo, alimentado por ruído, atua tal qual o Artista Clássico, ao evocar frequências oriundas de um profundo caos transmutadas em pontuações eletrônicas que organizam o som em determinado ritmo para devir música. A diferença da autoria implicada pelo S&H para a do Artista Clássico é que, no primeiro, Eu era uma vidente do caos e de sons feios e, não, de Deus, nem de sons belos – e logo bem entendi isto quando pus em primeira pessoa.

É que tanto a Harmonia quanto a Indeterminação resolvem de maneira parecida, mas diametralmente oposta, a questão da autoria. Ambas determinam a autoria por meio da Impessoalidade. A grandeza da obra está em razão inversamente proporcional à figura de autoria. Quem produz é sempre testemunho anônimo de um todo maravilhoso e transcendente que lhe foi revelado. A autoria procede na medida que traços de um Eu-artístico Criador dão lugar às forças divinas ou caóticas, advindas do cosmos ou do caosmos. A matéria bruta é gesticulada apenas segundo ordens ou desordens impessoais, que vêm de um mundo externo e são transfiguradas por um ato miraculoso. A identidade subjetiva é, então, vestida com máscaras e adornos tão belos (ou feios) que se camufla na obra, tamanha sua (im)perfeição. O Eu torna-se apenas testemunho esquecido da grande (des)ordem cósmica, para qual serviu de centelha ao mundo. Ele deve sumir da Criação para que esta brilhe, viver como fantasma exilado. Mas é daí que provém a perversidade do Eu: ele se disfarça para que atue como obscura antítese da glória de artista. O Eu esquecido, é ele mesmo, a outra ponta oposta que permite o reconhecimento dialético de sua Criação virtuosa. Seu nome é tão antigo quanto o de Deus, já se perdeu no tempo. Ele é virtuoso pela anonimidade e grandiosidade de sua Criação. Ele próprio atua como Deus, Demiurgo e Demônio em seu c(a)osmos, ou, melhor, como anjo intermediário das forças divinas, transfigurando a mensagem de Deus hierarquicamente em diferentes níveis de intensidade. Todavia, isso só faria sentido dentro de uma estrutura de pensamentos que separe, binariamente, um dentro e um fora, uma face subjetiva e outra objetiva, um interior particular e um mundo exterior e, acima de tudo, uma ordem e uma desordem.

Pois foi em certo momento que tomei consciência da primeira pessoa como uma invariável, ou melhor, uma espécie de variável (que em muito pode variar) presente em toda função de arte. Esta não distingue o fazer artístico dos outros, nem ao menos garante o estatuto de Artista, isto tudo é posterior ao fazer de arte, consequências do mesmo. Esta primeira pessoa corresponde apenas à forma enunciativa de um nome próprio. É este nome o agente de um infinitivo que se desenrola no fazer. O nome e o ato criador estão ligados em níveis tão profundos que talvez concernam a própria relação mão-ferramenta e rosto-linguagem, pois todo ente técnico, em suas vias de concretização, vai de encontro com uma memória, um raciocínio e um fazer capazes de aperfeiçoar alguma peça da máquina. De forma simples, sempre há interferência de um nome em um ato para que se desenvolva – agentes são necessários para realizar agenciamentos. A poética Impessoal faz esconder, ou tenta esconder, esta invariável condição de sempre existir um nome, mesmo que escondido ou reduzido, pois na fórmula artística sempre há artista de uma forma ou de outra – e por muito tempo fugi somente por oposição de sua forma inflada: O Artista.

A partir daí, a Indeterminação ganhou um tom cada vez mais irônico a mim. Impossível de fugir da condição de autoria por completo (senão parando de fazer arte), decidi não mais viver como sacerdotisa do caos, traindo duplamente em minhas visões: traindo o caos ao reduzir sua condição de linha-cacofonia absoluta de ruído a conjuntos de pontos-frequências que previ; me traindo ao esconder falsamente meu Eu por trás das forças do caos, ao constranger a multiplicidade de linhas que um nome pode percorrer, ao esquecer que um Eu pode reter apenas parar se desfazer novamente, ao dispensar a possibilidade de um Eu não mais pontual, mas multilinear. Se entendo que a ironia é uma arte própria das multiplicidades é no sentido que a ironia consegue arranjar intensidades, determinar diferenças, dar nomes, conferir valores, organizar indivíduos, ou seja, criar todo um juízo e funcionamento sobre a consistência e organização de uma Ideia e, mesmo assim, fixar um determinado conjunto de coordenadas que ironicamente ignoram a maleabilidade e multiplicidade que permitiram a fixação de tais valores, encarnando um resultado essencialmente irônico. A ironia é isto: reformular tudo para encarnar um resultado por ironia do destino, em suspensão do juízo que ela própria formulou. Sua graça vem da forma como seus processos são explicitamente escondidos por uma suspensão de juízo própria. E se a autoria funciona como uma destas encarnações irônicas, ela, consciente de sua ironia, faz graça de si mesma. É como nos diários de Andy Warhol transcritos e editados em milhares de páginas por sua assistente/ghost writer Pat Hackett, que deram origem a sua “autobiografia” póstuma. Hackett recebeu por anos telefonemas diários de Warhol nos quais registrava todos os gastos financeiros de Andy e o que ele fez no dia anterior. Depois que o artista morreu, as mais de 20 mil páginas foram editadas e publicadas como seu diário, contendo trechos datados que resumem quase todos os dias de 1976 a 1987. (HACKETT, 2012) O resultado é similar a um livro de fofocas, no qual a vida de Warhol é reditada, ironicamente, com um exagero de requintes, encontros com celebridades e tantos outros glamoures da vida de Artista, próprios de sua poética, que em muito tem a ver com projetos do artista nos anos 70 como a revista Interview. (GOLDSMITH, 2011, p. 143) O que há de mais interessante na obra está nessa obsessiva e meticulosa reconstrução da figura de artista em tal nível que apareça aqui totalmente subvertida: não mais criativa, harmoniosa e espontânea, mas, sim, não-criativa, irônica e meticulosa. O que difere a ironia da pura indeterminação é que todo seu trabalho molecular, a nível dos nomes, das coisas e dos valores, é muito mais expressivo que o puro caos cadenciado de um LFO em um S&H.

Domingo, 23 de janeiro, 1977 – Paris. Acordei às 10h. Hospedagem no apartamento de Fred. Combinei de almoçar com Peter Beard. Fui às compras e encontrei Mick Jagger. Fui ao desfile de Schiaparelli (táxi $3). Nos deram ótimos lugares e muita atenção. O desfile foi horrível, baseado nas “Três Graças” de Botticelli. Um vestido custava $2 milhões ou algo assim, e a melhor coisa eram os guardas armados em volta dele” (HACKETT, 2012)

É nesse sentido que a não-criatividade é totalmente irônica: ela inventa um grande plano de fuga da autoria. Traça meticulosamente um programa no qual traços de autoria passam despercebidos, de tal maneira que eles mesmos se tornem pontos de interesse na obra, pois eles próprios são artifícios de experimentação no trabalho artístico. E esse programa é cumprido passo a passo, pois a autoria é entendida como um frágil equilíbrio e limiar da obra. A autoria é ela própria tida como ironia. Simon Morris a demonstra bem em Getting Inside Jack Kerouac’s Head (2008), no qual redigita em seu blogue, letra por letra, uma página a cada dia, o clássico On The Road, que o próprio Morris nunca tinha lido antes. O resultado é o livro quase perfeitamente reescrito e invertido, mostrando a última página como última atualização do blog. (2008; GOLDSMITH, p. 155) O artista faz da cópia um programa performativo de leitura e escrita que propõe uma outra forma de fazer literário, na qual

comanda unicamente o texto copiado a alma daquele que está ocupado com ele, enquanto o mero leitor nunca fica conhecendo as novas perspectivas de seu interior, […] porque obedece ao movimento de seu eu no livre reino aéreo do devaneio, enquanto o copiador o faz ser comandado. (BENJAMIN, 1987, p. 16 apud MORRIS, 2018, p. 181)

Em 2014, Joe Hale propôs o mesmo programa de Morris aplicado ao livro rescrito. Getting Inside Simon Morris’ Head surge, então, como um duplo-negativo que inverte novamente o texto de Jack Kerouac à ordem original. Na capa dos dois livros é perceptível o “undesign” de Morris na reconstrução irônica de elementos de design “originais” do On The Road. Em todas as etapas da obra, a pergunta de quem é a autoria fica latente ao passo que tudo se resolve por um gesto de criação ironicamente não-criativo. E, é claro, a criatividade ainda está aí, não numa forma gestual de derramar tintas sobre uma tela em branco, mas no método geral que se encarna quando se faz arte, na forma como foi pensada, na maneira pela qual o programa foi seguido, na rigidez de suas regras. A poética não-criativa aborda todo o problema de autoria em função de um escondimento irônico da sua própria criatividade, que está claramente presente em qualquer obra do tipo, mas não deixa de ironizar-se para poder desenhar um certo diagrama que trace uma possível e improvável resolução do problema da autoria. Foi assim que entendi que arte tem mais a ver com programas do que gestos.

No entanto, o prefixo “não-” não me parece bem colocado em vias gerais. À primeira vista, o “não-” pode parecer implicar um “sim-” oculto, que denota a tese a qual faz antítese, demarcando duplamente uma “não-Ideia” e uma “(sim-)Ideia”. Todavia, se o prefixo “não-” continuar a ser visto apenas por sua face dialética, como atribuidor de um negativo oposto, muito se perderá de seu potencial, pois tudo se passará entre sins e nãos. O prefixo “não-” indica, antes de mais nada, todo um funcionamento molecular que atua por trás, toda uma multiplicidade que confunde a lógica binária usual e, não, um atribuidor negativo determinado por outro atribuidor positivo igualmente vazio. Mais do que o “não-” sendo a antítese de uma tese “(sim-)” em um sistema Um-Dois, devemos falar deste “não-” como sendo “Não-Um-Nem-Dois”. Este “não-” deve trabalhar em cada termo do problema de modo que toda máquina seja subvertida em um funcionamento plenamente positivo: cada átomo é saturado, cada partícula se encontra aberta a não mais um, nem dois valores, mas verdadeiramente a n valores múltiplos, exponenciais e intensivos. O prefixo “não-”, tal qual a ironia, tem tanto consciência do plano em que se organiza quanto do plano em que se constitui; e só se diz “não-” por ironia, porque é consciente de seus processos como sendo outros. Nada ocorre por negação, tudo é positivado em virtude do fim da oposição. O “não-” é apenas vestígio da inadequação a determinado plano de ordenamento biunívoco. É um erro de (des e re)codificação, de tra(ns)dução ou de “encoding” como é dito em computação. E a partir do momento em que o substantivo devém adjetivo (“não-criative”), o dinamismo do prefixo devém ao Ser. “(Sim-)Ser” ou “Não-Ser”: tudo o que indicam é a existência e reprodução de um “?-Ser” mais profundo, de movimentos maiores e menores que desenrolam-se nele, de aberturas inerentes ao código e de intensidades aquém e além, e, não, de uma dialética.

A partir deste momento, a autoria tornou-se uma questão consciente: ela procede pelo modo como irredutivelmente o Eu assina determinado processo o qual minimamente agencia, pelo menos em parte, numa obra qualquer. Obviamente esta fictícia assinatura engloba tudo o que concerne à influência de determinadas singularidades (compostas em parte pelo Eu, mas também por tantos outros meios, colaboradores e participantes) na produção do que seja a obra de arte. Foi assim que o Eu começou a ser um eixo importante na minha pesquisa sobre autoria, pois é Ele que reúne, de forma verdadeiramente majoritária, os traços que marcam vestígios de uma autoria que sempre retorna. E tudo parece tanto mais claro quanto mais se torna obscuro, confuso e contraditório. Pois é através das contradições (ou tautologias, ou, melhor, situações-limite) que o Eu consegue se dizer Maioria. E como, na maioria das vezes, uma Maioria nunca a é numérica, o Eu também não o é: este é uma mínima alma mórbida, vivente de frágeis nostalgias de 1=1. E, na verdade, para o Eu, é tudo 1=1, de forma que 1+1 seja também igual a 1. (I)Lógica do Eu: n + 1 = 1. A contradição (todo n que não seja igual a 0 será falso) ou a tautologia (todo n que seja igual a zero será verdadeiro) são as únicas duas formas pelas quais o Eu consegue atuar. E tudo por Ele é entendido como binário, pois tudo deve ser lido como sendo correspondente a Uma entre Duas instâncias opostas, mesmo que se desenvolva para um par binário sintético seguinte ou para uma estrutura maior. Para isso, o Eu retem todo movimento que percorre suas sucessivas operações, em prol de um ordenamento ditado por sua Unidade, por um rosto que lhe diz ser sEu. Ele induz um efeito de fechamento no corpo, como se o conjunto caísse e girasse numa espécie de buraco negro para que a singularidade convirja com a unidade sem movimento (n=0; 0+1=1; 1=1). Logo, o corpo estará mais conforme ao Eu quanto mais próximos de zero seus diferenciais estiverem. Por isso, n deve ser igual zero. E é claro que nunca é – e só seria se fosse possível agir tal qual o Demônio de Maxwell (LATOUR, 1997, p. 279). Esta hipótese considera um demônio capaz de manipular e ordenar molécula por molécula, produzindo uma máquina na qual a entropia corresponda a zero. Ela é falsa justamente por desconsiderar que o próprio demônio consome energia ao manter o sistema paralisado e que mais informação é gerada por sua manipulação, o que nos impossibilita dizer que entropia seja zero – da mesma forma, o Eu é apenas um ordenamento ilusório que não interrompe o funcionamento do eu, mas, pelo contrário, depende deste maquinário para ser perpetuado. Em suma, o Eu é unicamente um gregarismo contraditório, uma lei dos grandes números que não deixa de, a todo instante, refazer-se mesmo que em formas idênticas, para reforçar a ilusão de uma Unidade Maior; e, para o Eu, é tanto mais fácil a operação quanto menos variação houver no sistema, sendo seu funcionamento ideal um caso-limite no qual todos os meios estejam completamente paralisados (n+1=1 → n=0; entropia igual a zero). E mesmo assim, só há sujeito do devir como variável desterritorializada da Maioria, de forma que o Eu nunca o seja um devir, mas esse

ponto central que se desloca em todo o espaço ou sobre toda a tela, e que vai alimentar a cada vez uma oposição distintiva conforme o traço de rostidade retido: macho-(fêmea); adulto-(criança); branco-(negro, amarelo ou vermelho); razoável-(animal). O ponto central, ou terceiro olho, tem portanto a propriedade de organizar as distribuições binárias nas máquinas duais, de se reproduzir no termo principal da oposição, ao mesmo tempo que a oposição inteira ressoa nele. Constituição de uma ‘maioria’ como redundância. E o homem se constitui assim como uma gigantesca memória, com a posição do ponto central, sua frequência, visto ser ele necessariamente reproduzido por cada ponto dominante, sua ressonância, dado que o conjunto dos pontos remete a ele. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 94)

O estudo sobre autoria, assim, deveio um estudo do Eu, sua forma gregária. E tanto o Eu trabalha por e em limites que ele mesmo se torna um limite do mundo: uma estranha espécie de solipsismo é criada a partir do momento que se considera este Eu como representação de uma maioria numa singularidade sempre em movimento. Ele pode ser entendido como um limite do mundo no sentido de constituir-se como um limiar do bloco que conjuga a parte mínima repetida nos valores parciais distintos que uma singularidade comporta em movimentos relativos. E é em direção ao mundo que o Eu deixa de ser Eu; não por anulação, mas por efetivação aquém e além dos limiares. Tal alienação provoca toda uma repetição diferencial, na qual o Eu se dá por um eu-menor que em nada tem a ver com sua forma majoritária. O eu-menor participa como um meio, uma mídia, um suporte pelo qual sai da Maioria e integra uma realidade quimérica, sem se reduzir a uma minoria, mas movimentando todo o devir de suas partes e categorias. Ele salta de centro em centro de multiplicidades, em uma cadência de fuga mapeada pelo seu próprio programa antimemória, que apenas se retem no relativo para não se deixar levar tão subitamente pelo absoluto. No lugar dos ritmos miraculosos do S&H com LFO, as Cadeias de Markov. Modelo sem memória. E não que no S&H haja memória, porém, em Markov, existe um dado ordenamento do agora que atua simultaneamente ao nível das maiorias e dos grandes números, ou seja, ao nível do Eu-Maior, mas também ao nível dos estados particulares a serem processados, ou seja, ao nível do eu-menor. E elas fazem todo processo ser expressivo, constroem uma máquina estatística capaz de coordenar conteúdo e expressão mediante uma distribuição na qual vetores são traçados. A face maior e menor se encontram em um intensivo jogo estocástico, sempre em dupla-ironia de fazê-lo mais uma vez, tudo de novo, em eterno retorno sem memória; procedendo por aberturas no código que permitem desfazer valores para recodificar com outros. É um jogo de variáveis e distribuições. Faz seu programa antimemória atuar em todos os estratos e, mesmo que uma memória seja constituída posteriormente, é apenas por organização causal de seus estados temporais (n += 1). Esquecimento como limiar de desterritorialização do Eu. Markov reafirma a consciência do potencial de descodificação, tanto dos valores assumidos quanto das distribuições trabalhadas, numa profunda relação entre o relativo e absoluto que em muito ultrapassa a epistemologia do S&H e LFO. Não é uma máquina que visa um código do além para demarcar suas intensidades, mas uma máquina que trabalha no próprio código sob o qual movimentará devires sucessivos, sem deixar de demarcar latitudes e longitudes particulares em trabalho simultâneo do maior e do menor. Não se trata do milagre de uma peça e da modulação de outra, mas do trabalho geral de uma máquina abstrata sobre suas peças. Desse modo, Markov remonta em seu propósito artístico particular, na sua poética sem memória, uma figura de autoria específica: artista como sendo quem organiza distribuições e programas a serem trabalhados em colaboração com uma máquina estocástica.

Quando aplicado à matéria linguística, o modelo ganha uma expressividade ainda maior. Num texto, cada palavra será entendida como uma linha de probabilidades numa dada distribuição que comporta todas as palavras do texto, de modo que nada importe seus significados ou sintaxe, mas tão somente qual a probabilidade de uma palavra suceder qualquer outra. O texto gerado será o resultado do encadeamento de sucessivas operações que determinam uma próxima palavra dentre as mais prováveis de suceder a atual (Xn → Xn+1 → Xn+2 → ….). Assim, Markov trabalha palavra por palavra, ou letra por letra, dissimulando certos estatutos da língua para recodificá-los em matéria estatística, sendo ainda passível de decodificações por terceires que potencialmente se põem a resolver a obra – até que notem do que se trata. É como uma dupla decodificação, pela máquina e por quem lê, de modo que a língua já não seja mais uma só, mas múltiplas que tanto reafirmam a expressividade da decodificação quanto expressam uma mais-valia linguística oriunda das transduções. E, quando lidamos com os resultados de uma escrita markoviana, nós agenciamos algumas coerências extralinguísticas que a organizam como um discurso, de forma que ela pareça estranhamente linear, mas, na verdade, ela é particularmente multilinear. Faz com que seu agenciamento de leitura seja sempre um ato expressivo de invenção, de criação de sentido. A organização do discurso torna-se, então, uma cartografia inventiva de diagonais que cruzam os múltiplos estratos e meios que esta escrita pode percorrer. E nunca há um modo, uma direção específica a ser seguida, porque, afinal, estamos lidando mais com dados estatísticos do que linguísticos. Todas categorias estatuídas do idioma, por ora, tem seu estatuto de maioria fragilizado, e deixam transparecer formas opacas que delimitaram, até então, a consciência e razão humana. É desta maneira que podemos entender a escrita markoviana como uma máquina abstrata literária, passível de agenciar uma semiótica transcendente no que se refere à imanência de seus sucessivos e variados planos de organização e constituição.

É por essas razões que vejo Markov como uma forma contemporânea do fazer artístico, não por ser um meio novo, visto que tem mais de 100 anos, mas por lidar com dinâmicas em maneiras próprias de nosso tempo. Há claramente uma quimera entre o humano e a máquina aqui. Autoria como colaboração e hibridismo. E por mais que certos papéis possam ser mais atribuídos ao humano, como criador-programador, dado constituinte ou organizador de distribuições, todo o funcionamento do programa procede pela máquina, capaz de agenciar uma crescente quantidade de informação segundo poéticas próprias que se constituem pela expressividade das fórmulas matemáticas. Existe uma dependência mútua entre humano e máquina de modo que não se possa mais reconhecer uma figura unificada e isolada de autore, sem antes considerá-la como uma forma de híbrido. E todos os resultados de uma escrita markoviana, em si, são híbridos, que tanto podem ser pensados em conformidade com o aumento de velocidade e volume que os processos técnicos do século XXI estenderam à escrita, quanto podem ser lidos por seu funcionamento linguístico e matemático a uma só vez, fazendo a escrita devir, sem metáforas, não-humana. Entretanto, a computação e a internet em nada são uma ruptura; são, antes, partes resultantes do fluxo de modernidade que percorre até aqui sem admitir que tudo já é híbrido, mesmo que tudo já seja vivido como tal. Somos todes ciborgues em vias de perder o nosso direito de se desconectar. O mito não funciona mais, ou antes, funciona muito bem segundo forças reacionárias: somos fragmentades em cem mil pedaços de espelho forçosamente voltados a um único ponto focal, que quase sempre nos rediz, de muitos jeitos, a mesma coisa: minha entropia é igual a zero (n+1=1). Redundância à moda de um telefone sem fio: cada passagem de informação quer dizer a mesma coisa, porém é alterada em meio às transduções, com cada vez menos interferências – e talvez, daqui, poderíamos nos estender à discussão da Internet das Coisas, mas, por agora, paramos aqui. Markov é um método bastante consciente deste processo, e faz dele um jogo que não funciona mais segundo maiorias ou imitações, mas sim em zonas planas de intensidade, ou seja, em distribuições nas quais vetores de fuga não deixam de serem traçados a todo instante; trabalhando na saturação de cada átomo e palavra para buscar sentidos paralelos. Enfim, a autoria devém contemporânea: não mais forçar todos fragmentos a um único centro cuja entropia tende a zero, mas, sim, caminhar de fragmento em fragmento sem interferência alguma da memória, sem valor algum fixo à identidade, organizada e constituída apenas pelo que a concerne o agora.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol. 4. São Paulo: Editora 34, 1997.

GOLDSMITH, Kenneth. Uncreative Writting: Managing Language in the Digital age. Nova York: Columbia University Press, 2011.

HACKETT, Pat. Diários de Andy Warhol. Porto Alegre: ‎L&PM Pocket, 2012. E-book.

LATOUR, Bruno. Vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

MORRIS, Simon. Getting Inside Jack Kerouac’s Head. 2008, Disponível em http://www.informationasmaterial.org/portfolio/getting-inside-jack-kerouacs-head/ Acesso em 15/02/2022.

MORRIS, Simon. Learn to Read Differently, Book Presence in a Digital Age. Nova York: Bloomsbury Academic, 2018. Disponível em https://site-writing.co.uk/learn-to-read-differently-2018/.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 159-171, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53131]

MACHADO, Leona. Três modos autorais: indeterminado, irônico e estocástico.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 159-171, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53131]

Primeira edição de The Andy Warhol Diaries, editado por Pat Hackett, publicada pela Warner Communications Company em 1989. (Fonte: Catálogo das Artes. Disponível em https://www.catalogodasartes.com.br/obra/DzBBePzz/ )

MACHADO, Leona. Três modos autorais: indeterminado, irônico e estocástico.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 159-171, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53131]

Da direita à esquerda: edição do ano 2000 de On The Road por Jack Kerouac publicado pela Penguin Modern Classics; a edição física de Getting Inside Jack Kerouac’s Head por Simon Morris, publicado por editora própria, Information as Material, em 2010; e Getting Inside Simon Morris’ Head por Joe Hale, publicado pela mesma editora no ano de 2014. (Fonte: MORRIS, 2018)

MACHADO, Leona. Três modos autorais: indeterminado, irônico e estocástico.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 159-171, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53131]

MACHADO, Leona. Três modos autorais: indeterminado, irônico e estocástico.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 159-171, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53131]

MACHADO, Leona. Três modos autorais: indeterminado, irônico e estocástico.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 159-171, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.53131]

MACHADO, Leona. Três modos autorais: indeterminado, irônico e estocástico.