Estratégias estético-políticas para fugir da captura

Aesthetic-political strategies to escape capture
Estrategias estético-políticas para escapar de la captura

Resumo Escapar. Fugir. Criar rotas de fuga. Escapulir. Esvair-se. Todas essas são qualidades de corpos dissidentes, corpos que aqui nos interessam sob a perspectiva de criação de zonas fronteiriças que permitam a sua total e plena ação de contraversão dos gêneros. Sob a ótica da antiarte, da não-arte, da arte não intencional e da performance associada às ações estético-políticas, o artigo se apresenta como uma experimentação sobre as questões que atravessam os corpos transvestigeneres.
Palavras-chave performance; ações estético-política; dissidência; fuga; captura

Abstract Escape. To run away. Create escape routes. slip away. fade away. All these are qualities of dissident bodies, bodies that interest us here from the perspective of creating border zones that allow their total and full action of gender contraversion. From the point of view of anti-art, non-art, unintentional art and performance associated with aesthetic-political actions, the article presents itself as an experimentation on the issues that cross transvestigeneric bodies.
Keywords performance; aesthetic-political actions; dissent; escape; catch

Este documento é distribuído nos termos da licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC)

© 2022 Thigresa Almeida

* Thigresa Almeida, mestru em Comunição Social pela UERJ, doutorande no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF. E-mail: a.thigresa@gmail.com; Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2509-8203

Thigresa Almeida *
(Universidade Federal Fluminense, Brasil)

Resumen Escapar. Huir. Crear rutas de escape. deslizarse. desvanecerse. Todas estas son cualidades de los cuerpos disidentes, cuerpos que aquí nos interesan desde la perspectiva de crear zonas fronterizas que permitan su acción total y plena de contraversión de género. Desde el punto de vista del antiarte, el no-arte, el arte no intencional y la performance asociada a acciones estético-políticas, el artículo se presenta como una experimentación sobre las cuestiones que atraviesan los cuerpos transvestigenéricos.
Palabras clave performance; acciones estético-políticas; disentimiento; escapar; atrapar

A performance, concebida enquanto uma manifestação antiartística a partir da de-collage, se aproxima da ideia de ações estético-políticas, essa por sua vez uma criação antiartística e conceitual do Coletivo 28 de Maio. Uma das questões conceituais que poderiam aproximar as duas manifestações é que ambas recorrem a uma ação antiartística, ou seja, a destruição completa do regime e da ideia da espetacularização.

A performance assume a característica de antiarte ao lançar-se na tentativa de uma aproximação entre artevida. A ação estético-política, ao recusar os regimes disciplinadores das delimitações artísticas, alçando-se a um campo expandido da recusa da arte onde o importante é produzir uma ação e que ela contamine, produzindo reverberações de forma indisciplinada. Nas palavras de Jorge Vasconcellos e Mariana Pimentel – que integram o Coletivo –, a ação estético-política, em um dos seus devires conceituais, apresenta-se como:

Isso é da ordem da práxis, que não se confunde inteiramente com o sentido de prática. Práxis é mais que isso, é uma relação entre teoria e prática no sentido mais radical possível. Não se confunde com um processo artístico qualquer. Então, confunde-se com o que? Confunde-se com uma tomada de posição em que pensamento, ação e fazer se fazem o mesmo, a um só tempo. Simultaneamente… uma ação estético-política é arte sem artista. Mesmo que sejam artistas que a realizem, isso pouco importará, pois o que importa é justamente quando se instaura, por intermédio da ação, uma zona de indiscernibilidade, uma zona de risco (não de perigo, que fique claro) que não nos permite saber de fato do que se trata: arte ou protesto? arte ou crime?… uma ação estético-política é borda, fronteira de risco, abismo… amor fati! (COLETIVO 28 DE MAIO, 2017, p. 3-4)

Fiz questão de ressaltar a passagem da radicalidade – “no sentido mais radical possível” – que depois irá se desdobrar na penúltima sentença da citação em “fronteira de risco”. Sempre que me refiro à performance ou que me pedem para conceitualizar a linguagem da performance, tendo a indicar nesta direção: uma arte fronteiriça e radical em sua potencialidade.

Renato Cohen defende com veemência o caráter radical da linguagem da performance: “o discurso da performance é o discurso radical. O discurso do combate (que não se dá verbalmente, como no teatro engagée, mas visualmente, com as metáforas criadas pelo próprio sistema) da militância, do underground.” (COHEN, 2011, p. 88).

É evidente que tanto as ações estético-políticas quanto a performance guardam suas peculiaridades, ao mesmo tempo que é evidente que elas têm entre si pontos de intersecção, como esses que eu coloquei: o desejo de um movimento em direção à antiarte e a radicalidade. Minha ideia é jamais tentar tornar essas duas linguagens e expressões das emergências dos corpos uma única coisa, seria no mínimo desleal conceitualmente qualquer tentativa neste sentido. Ao mesmo tempo que é necessário o reconhecimento dos seus pontos de intersecção: a fuga.

Entre esses eixos há um importante campo de ação que é produzido pelas ações estético-políticas e pela performance, um imanente desejo – que por si só é uma tomada de posição – e ligação com estratégias de produções de fugas da captura. Diria ainda: tanto a ação estético-política quanto a performance, sendo as duas radicalmente indisciplinar e se concentrando em um terreno movediço do risco e do amor fati (que, à minha concepção, é uma movência do “amor ao destino” para um amor ao acaso), assumem uma posição da incaptura como forma de existência.

De forma substancial, o desejo ou o amor ao acaso que aqui se desembaraça é uma das articulações possíveis da incaptura como forma de se estar no mundo: uma forma indisciplinar de transduzir a ação do corpo, o desejo radical, o mundo [em] borderlands / fronteirizo e mais, uma retomada a uma desestabilização da ideia de processo criativo e de algo a se criar – que coloca o corpo-mundo em um regime de indeterminação.

Articulado à incaptura há a ideia de fuga. Ou seja, uma ação estético-política – a fuga – que possibilita o rompimento com o ímpeto da construção de uma linearidade: a captura.

Poderia dizer então que a fuga está concomitantemente para o desvio, assim como a incaptura está para a retomada do desejo radical. Logo, em um resultado impossível desta equação, que leva à quebra – uma ação contundente de fratura [irremediável] – de pilares que sustentam qualquer possibilidade de codificação e assimilação.

Nesta direção – que não é única, não é reta muito menos linear – é que se dá um acontecimento importante: as não codificações / uma tática contra assimilação. É a construção de um “espaço entre” que permite, além do embaraçar, uma confusão que se espelha e espalha na indecifrabilidade de formas de fazer mundo com o corpo.

Ação estético-política como chave mestra indecifrável à ação estético-política fuga incapturável.

O Acaso

De certo a tomada de posição radical em direção às ações estético-políticas é do âmbito de um amor fati. Quando disse que amor fati, compreendido enquanto amor ao destino poderia ser uma movência para o território do amor ao acaso, estava anunciando a primeira ação de incaptura que há de se desembaraçar: a estratégia do acaso.

Quero dizer que a movência não exclui. A movência permite uma existência conjunta: simultânea.

Pela simultaneidade do amor fati, sem medo de roubar algo que não é meu; Décio Pignatari definiu a guerrilha estética como prospecto e projeto (juntos, simultaneamente). Eu diria que amor fati [destino] e amor fati [acaso] são os prospectos e projetos de um estado de guerrilha, concomitante. Prospecto [destino] e projeto [acaso] são propostas estratégicas que permitem a confluência de ações indisciplinares. Antes, vamos a estratégia.

Antes de acaso há a estratégia. Ou, como o corpo desenha o mundo – como enunciar a sua política no território mundo? Essa é uma daquelas perguntas que eu digo que são impossíveis de serem respondidas, seja pela sua impossibilidade de resposta, seja porque as respostas são tão moventes quanto os corpos que a projetam.

Ao enunciar – corpo-mundo-impossibilidade-acaso – a ideia / ação de estratégia, estou abrindo mão de construir algo em concordância. A estratégia não permite o senso; aliás, a estratégia está no cerne do acaso – assim como uma das características fundantes da estratégia é o acaso. Assim como a sequência de espelhamentos que se dão entre os projetos e prospectos.

Não à toa usei pela segunda vez o espelho. Perdemo-nos no que o espelho provoca – o espelhamento. Quebra e fratura de lateralidades. Inversão de movimento. Funde-se, como na movência, as noções de distância, organização e, assim como nos prospectos que em algum momento almeja-se projetos, evoca-se a dissenso.

Quando me deparei com a performance – em sua dimensão estético-política – e sua construção ao acaso, sendo o acaso aquilo que não deveria acontecer, mas acontece, eu finalmente compreendi a partir de um tramar genealógico, o dissenso – não como mero desvio à norma / normalidade / normatividade – como fuga do eixo de equilíbrio.

Entre essas variações, jogos de palavras, ampliação de percepções não se busca, nem muito menos se quer, criar um caminho que leve a uma possível estabilidade. O que vai construir o acaso – a emergência – são as desestabilizações. Logo a ação estético-política e seu desejo a uma radicalidade é a necessidade chamuscante de produzir um mundo também em instabilidades.

Assim, sem redundâncias, o acaso é um corpo e habita corpos polifônicos que enunciam não uma chegada, mas a possibilidade de um novo corpo, para um novo mundo, que se dá nas variações de um acaso que, em suma, não é previsível, mas é possível de acontecer.

A palavra como objeto cortante –
línguas afiadas

Lâminas, arames farpados... Eu sempre me interessei por ações que fossem ativadas pelo corpo a partir de objetos afiados. Extremamente afiados.

Apesar de serem afiados, não quer dizer que eles são para cortar ou que são cortantes – eles podem cortar. Quando aciono meu corpo em conjunto com essas plataformas – estou entendendo o afiado para além da sua complexidade de objeto que pode ser manipulado para, dentre as suas capacidades, produzir fissuras; por isso, o coloco como uma plataforma de ação estético-política – pretendo um avançar em um terreno inóspito, novo e transversal que permita ampliar os campos de percepção entre o meu corpo, como lido com o acaso e o mundo.

Fiz um inventário de objetos cortantes – eles são partes integrais do meu corpo e são por onde o meu corpo transita. Cri[s]ei em meio ao período de isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19 uma videoperformance: “Rapunzel nº 1”. Apesar de sempre estarem como extensões do meu corpo, passei a me perguntar também se algo poderia ser gestado no meu corpo como objeto afiado.

É a partir da investigação de algo que esteja para além da extensão do corpo – que já é corpo / continuum –, mas que venha do corpo que passo a conceber esse campo de ações. Logo, processos disparados pela imagem da língua como um vírus, a linguagem como algo viral. Algo indomesticável – que não deveria acontecer / existir, mas está posto, assim como a tática do acaso – que está no corpo, na boca e está como ação estético-política no corpo-mundo.

A palavra desde a sua indomesticação, passando pelo seu caráter ruidoso, até o limite / a borda, provoca uma instabilidade em métodos organizacionais, tem por conseguinte uma potencialidade idiossincrática que é a sua capacidade de produzir ruídos – uma acolhida à polifonia e à cacofonia, colagens de sonoridades afiadas: a enunciação.

Assim como nas concepções conceituais das ações estético-políticas, acionada a partir da palavra, não é se lançar em uma zona de perigo, mas é gerar uma crise para um campo de risco do corpo. Viralizar a língua e lamber o mundo.

Lamber como a intenção de se afiar, assim como um felino afia suas garras. Afiar a língua para aprender a falar outras línguas, criar embocaduras para saborear outras camadas de mundos. Afiar a língua para aprender como devorar outras línguas e corpos.

Língua no seu sentido ampliado: a língua como órgão de contato sensorial / sinestésico que sente o mundo; a língua como idioma; e a língua como membrana que me conecta com o mundo.

Nessas intersecções há o que pode gerar a fissura. Trago novamente a ideia de algo afiado como não necessariamente feito para cortar, mas para produzir um outro corpo. Um corpo enunciativo.

Palavra como ação, refugiar-se em palavras / línguas – a língua como algo que extrapola e que quebra a lógica extrativista, que rompe com qualquer conceito territorial. A palavra provoca fissura, intencionalmente Sayak Valencia diz: “en el borde del border me llamo filo” [na borda da fronteira eu me chamo borda]. Partindo da ativista mexicana, o jogo de palavras borda / border / filo cria-se o espaço entre, de refúgio.

Não se trata de uma composição retórica para produzir confusão – ainda que essa tenha em algum momento peculiaridades que podem ajudar a afiar a língua para palavras cortantes –, segue na intenção de criar um campo movediço e de constante movências – o movimento contundente em sua essência errática – para um campo de experimentações radicais.

A língua afiada para palavras cortantes poderia ser ilustrada como um veio de rio, um manancial, há o que se vê e para além do que se vê: há a fenda.

Uma ação estético-política propicia reconstruções extra-geográficas a partir da palavra que ela enuncia tendo como ponto de partida a língua-afiada em territórios fronteiriços de ações radicais.

Refugiar-se entre línguas, fugir.

Meu corpo não existe – insurge

Sendo o acaso uma das táticas / práticas das ações estético-políticas e do desejo [radical]. Sendo o corpo o que produz fissuras, um corpo afiado como território impulsionador de questões que tangenciam, além da própria materialidade, a sua possibilidade de existência.

Por um tempo preferi sempre me referir ao corpo em emergência, depois parti para insurgência; no meu horizonte especulativo radicalmente afiado, insurgência carrega consigo uma indisciplina ao mesmo tempo em que discute, ao acionar o seu ato existencial de insurgir [o amor fati como acaso poderia ser uma das insurgências estético-políticas], se coloca em discordância, não por sua revolta, mas por sua necessidade e tomada de posição à indisciplina como algo em-vias-de-ser, que justamente ainda não é.

Esse desacordo inegociável que está em relação à indeterminação / indeterminabilidade é que produz a não existência. Ou ainda, algo que eu venho defendendo, enquanto construção antirretórica e estético-política: as possibilidades impossíveis de existência, a impossibilidade como possibilidade. Mão única, um caminho a um desejo avassalador.

Adiante assumir esse posicionamento – ou como diz o Coletivo 28 de Maio, ao tomar essa posição –, é evidente toda e qualquer recusa a uma prática extrativista e à propriedade privada. Por isso o corpo não existe, insurge ao acaso, provocando, dentre outras instabilidades, uma contundente fissura à forma que o estado se organiza.

Estar entre as brechas, na borda: e, para insurgir, não ter que sair da borda. E há de saber que assim como outros terrenos hostis, que só a experiência da insurgência permite, a borda [/ border / filo] é um desses lugares; portanto, a borda é o espaço da incaptura. É na coexistência entre as possibilidades impossíveis de existência, as táticas, a borda, a insurgência que se faz um movimento à revelia: devora-se.

Fuga - devorações

Assim como um agrupamento estético-político da periferia de São Paulo [CiA. dXs TeRrOrIsTaS], estou recuperando o fôlego gritando.

Gritando para fugir e já havia adiantado a minha concepção de fuga: não é correr, não é sem direção. É mais do que provocar uma inversão / intervenção: é torcer até esgarçar as formas de captura.

Penetrar no que cria a exterioridade – o que está fora –, não com o desejo de fazer parte, mas para desarticular, ser um corpo [ex]tratégico é inclusive aprender a se devorar para não ser a própria captura. Tramar o grito enquanto recupera-se o fôlego e ao grito a desorganização total.

Possibilitar nesses meios incertos um apocalipse indisciplinado, a devoração de qualquer tentativa de extrativismo emocional, intelectual, cultural. A devoração em seu caráter performático, comer tudo que vem pela frente, por qualquer orifício possível, que não seja só do corpo: devorar com a pele [meus poros comem incansavelmente olhares extrativistas], com os olhos, ouvidos, umbigo, ânus, penisvagina etc…

Organizar um outro corpo, que é da sua própria impossibilidade, organizar o coletivo em sua dissonância que é a enunciação, e assim como podemos devorar por outros territórios-corpos que não seja apenas a boca, como se dá na linearidade, que essa devoração também seja a quebra a qualquer possibilidade de domesticação de possibilidades impossíveis de existência.

Referências

BASH BACK! Ultraviolência queer. São Paulo: n-1, 2021.

BONA, Dénèten T. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.

CANDIDO, Patricia; GAULÊS, Maurício. Como recuperar o fôlego gritando. São Paulo: Acadêmia Periférica de Letras e RG Produções, 2021.

CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o estado. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.

COLETIVO 28 de Maio. O que é uma ação estético-política? (um contramanifesto). Revista Vazantes, v. 1, n. 1, 2017.

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. São Paulo: Cobogó, 2021.

PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

VALÊNCIA, Sayak T. Capitalismo gore. Barcelona: Melusina Editorial, 2010.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 58-65, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54900]

ALMEIDA, Thigresa. Estratégias estético-políticas para fugir da captura.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 58-65, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54900]

ALMEIDA, Thigresa. Estratégias estético-políticas para fugir da captura.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 58-65, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54900]

ALMEIDA, Thigresa. Estratégias estético-políticas para fugir da captura.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 58-65, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54900]