sentimentos do mundo em cartografia sentimental para o fim do mundo// notas de uma bixa preta sertaneja

feelings of the world in sentimental cartography for the end of the world//notes from a black sertaneja bixa
sentimientos del mundo en una cartografía sentimental para el fin del mundo//notas de un bixa negra sertaneja

Resumo Reunidos em temperaturas diversas, os textos compõem um mosaico de notas que dizem acerca das experiências bicha-preta-nordestina. Os escritos têm temporalidades distintas, porém acusam exatamente a diferença que marca a autora e por onde ela é acessada perante as normalidades coloniais. Possibilitando um movimento de proteção e revide a partir da apropriação da força que tais diferenças permitem.
Palavras-chave cartografias; bicha; preta

Abstract Gathered in different temperatures, the texts compose a mosaic of notes that talk about the bicha-preta-nordestina experiences. The writings have distinct temporalities; however, they accuse exactly the difference that marks the author and through which she is accessed before the colonial normalities. Making possible a movement of protection and revenge from the appropriation of the strength that such differences allow.
Keywords cartographies; bicha; black

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© 2022 Tiago Manguebixa

* Sou Tiago Manguebixa, tenho 23 anos e moro na cidade de Barbalha, no interior do Ceará. Sou uma pessoa preta com melanina enfática, não tenho dinheiro no banco e dou vazão ao desejo que corre apesar de e além das normas. Arrisco fazer ciências sociais por acúmulo na formação em Ciências Sociais na URCA e no processo atual de mestrado em Sociologia na UECE. E-mail: tiagoxandee@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4868-2560

Resumen Reunidos en diferentes temperaturas, los textos componen un mosaico de notas que cuentan las experiencias bicha-preta-nordestina. Los escritos tienen temporalidades distintas, pero acusan justamente la diferencia que marca la autora y donde se accede ante las normalidades coloniales. Posibilitando un movimiento de protección y venganza a partir de la apropiación de la fuerza que dichas diferencias permiten.

Palabras clave cartografías; bicha; negro

Tiago Manguebixa *
(Universidade Estadual do Ceará, Brasil)

100º C ///

no sigilo nós acessamos e roubamos as chaves dos mundos. aprisionamos os homens em seus medos e suas mulheres em suas insatisfações. na brevidade fazemos um mar raso enquanto os marinheiros deliram com nossos cantos. abrimos um sumidouro e depositamos todos, cativos dos nossos prazeres. concedemos visitas às suas mulheres chorosas e em nós permitimos o toque maldizendo a posse. preferimos as noites e a sujeira dos prazeres. carnes expostas, sal grosso, álcool. nós somos a própria fogueira em que os homens gritam enquanto morrem. o fim último do regozijo é a desintegração total de si. cinzas ... vento…

mais um velho negro passou por mim e nos olhares afirmou minha beleza. sou eu a existência mais próxima e mais legítima da sua confidência. aquela que mais se avizinha desse degenerado protetor de gostos imundos a confundir água de mar e suor no meio dia da caatinga. sou eu a zona de atração, o ponto de intersecção, o reflexo da negação e a promessa de realização. também está em mim a possibilidade do gozo nas profundezas de um útero comprado sem o terrorismo do deleite na presença de um pau. sou eu aquilo que ele sabe: me vê bicha, me diz bicha, me louva bicha, me deseja bicha e me mata bicha. os bêbados querem água e eu posso matar a sede no momento exato em que lhes afogo. afundo barcos e danço com as ondas, debaixo da minha saia transformo em pedra e dissolvo em areia. guardo memórias de mar desde os sertões todos.

kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga kalunga e kaatinga

mata branca e bicha preta mata branca e bicha preta mata branca e bicha preta mata branca e bicha preta mata branca e bicha preta mata branca e bicha preta mata branca e bicha preta mata branca e bicha preta

sempre foi noite na minha pele e no meu olhar.

-20o C - 20o C [...]

os bêbados dormem na rua porque enfadam de ver as estrelas, a lua encarrega de guardá-los. para todo homem traído em terra resta-lhe a lua. o sol esconde os segredos numa claridade que cega os humanos. a mula tem cabeça de fogo.

-17.78ºC ( y – z)

oração para dias quentes. contra morfo e outros distúrbios coloniais. ensaio para mergulho carangueja de água doce e lama de pedra cariri, desmanchada pela mão da minha vó. mulheres do barro vazando água matando a sede das bichas e afogando aqueles que mais precisam.

rito às contradições que me habitam e as identidades múltiplas e solúveis que me deformam. toda bicharada reunida no semiárido. celebraremos amon rá com agroflorestas de cú virado pra lua. a salvação é uma sentença às bichas agricultoras!

quando a pedra da batateira romper, dela sairão três bichas pretas, que cortarão com suas espadas o solo ancestral e ressuscitarão assim todas as outras para a hora do revide. cada bicha preta fundará uma igreja, em cerimônia de fundação, arrancarão todas as costelas de adão. ele será condenado ao rastejar, e seu purgatório será aprender a viver o tempo das malditas.

quanto mais rosa o cú, mais digno de rola.

11 de Setembro de 2019.

fervida pelos últimos envolvimentos amorosos e pelas interpelações do racismo que sempre se faz. o racismo como o único deus moderno possível. onipotente, onisciente e onipresente. habita o mais íntimo de si e o mais fora também, em realização simultânea e recíproca.

pintei o cu de rosa e sentei no branco. a coisa se faz e revela, meu cu ficou no centro e o mapa-mundi surgiu. era justamente esse lugar que eu queria experimentar por um instante. ser central num mundo a partir do meu cu rosa. voltar pro meu cu a atenção, gozar com o poder de não temer a partir da segurança que o centro me oferece.

>>>> isso me constitui, mas não me é! a flagelação parte do desejo respondido com indesejo y precarização. isso definitivamente é uma questão minha! a ele, ofereço meu desprezo, o corte y a redefinição histórica. é pela esCUridão que devo caminhar. <<<<

trecho da carta (para leitura completa, consultar autoras)

Por um Sentir molambo: deslizes
criptografados entre arte, lixo e luxo ∞
Manguebixa e Divine Kariry

[...]

O punho partiu e a rede caiu em rede, na queda infinita e envolto por ela dançamos com nossos mais novos vestidos por entre o lixo intergalático. Saravá Dona Maria Molambo! Confundo os buracos e sinto todos a me comporem. A rede e a pele são indistintas. No sono a rede me foi casulo, no voo da queda a rede me é vestido. O ventotempo continua a rasgar os farrapos e a moldar meu sempre novo corpo. Metamorfose incompleta. Colido com metais diversos e num exercício de cataclismo, absorvo todos na fome de criar um novo espaçotempo. A infecção é inevitável. Já estou. A recusa é a forma mais humana de amputação. Já não sei mais onde estou, desterritório. O absurdo não pode ser compreendido, finalmente sinto a pedra da batateira rolar1 e fortaleza sucumbir enquanto a dunas da sabiaguaba2 se expande desconfigurando planos. Kao Kabiecilê! Odoyá! Saluba! Só assim todas as vidas terão acesso a mar, mata e tudo que houver. Tudo será de todos, porque tudo é todo! Oke Arô! A evacuação já não será possível e resta apenas tentar produzir vida com todos os elementos que selecionamos nesses tempos. O olho e o cérebro já não serão os órgãos centrais e o plástico cobre as nossas caras, reconfigurando-as. Se quisermos, devemos aprender a conviver com o lixo depositado. Aqui, nossa semiotização já não estará mais condicionada a pressupostos. Foram cortados dos nossos exercícios imagéticos, os blocos de perspectivismo ecologizantes. Com as nossas, no agora, elaboramos planos de através dos mecanismos da própria negação do lixo – estratégia dos sujeitos limpos – recusar usar esse lixo que é a necessidade de aceitação das nossas formas de vida. As formas de vida já não serão mais enquadradas. Uma mutação individualmente coletiva. Tudo já será águas, terras, plantas, bichos, gentes, lixos... e já decidimos não querer transformar pneus velhos em poltronas vendáveis/rentáveis que irão decorar os salões de alguém que ainda ouse não abrir mão dos valores higiênicos. Na radicalidade do fenômeno já não teremos condições de nos preocuparmos em transformar o lixo em mercadoria/valor aprisionados aos mutiladores modos costumeiros de reciclagem capitalística. Pane no sistema! Desenvolveremos ideais mal contornados de luxo, porque a abundância também fará parte de tudo isso. Desprecarizaremos as nossas vidas a partir da própria experimentação do lixo. Recordemos que aprendemos a conviver e transmutar com ele, enquanto os higiênicos achavam dominar-nos em despejos! Recorramos às memórias e elaboremos planos em que entendemos que tal elemento –lixo– já era parte dos nossos cosmos. Nós bebemos lixo e já somos ele! Essa é uma possibilidade de nesse momento continuarmos vivas! Como num exercício de transição, em que a honestidade e a urgência nos fez reconhecer que nós produzimos o lixo no momento exato em que produzimos a nós mesmas. Acessando a essa tecnologia ancestral, recordaremos que nós já havíamos, em algum grau, misturado elementos para a composição do nosso reino; a hibridez foi fundamental para que pudéssemos presenciar esse momento. Me parece assim que RESTAnos apontar que o nosso luxo está em decretarmos o lixo como componente essencial para nossa continuidade. Avistamos em algum grau, também, que eles – sujeitos limpos – não conseguirão transfigurar o pulmão para respirar nessa mistura, sobretudo quando um canudo entra e se instala no seu nariz. Deixamos também o recado, que a partir de agora, estes deverão entender o lixo fora dos scripts das aulas de ecologia. Não existe lixo separado de nós a quem devemos tratos certeiros para continuarmos delirando a vida. Nós somos o próprio lixo, aceitamos a incapacidade de descartá-lo como se ele já não fosse parte de nós. Rompeu-se fora X dentro de todas as possibilidades de localização de um aqui e uma acolá. Não há estruturas; o binário expirou! A rede além de emaranhada está rasgada!

[página seguinte - Fotografia: Nayara L. Monteiro - @naybronwngirl]

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 66-71, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54905]

Manguebixa, Tiago. Sentimentos do mundo em cartografia sentimental para o fim do mundo // notas de uma bixa preta sertaneja.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 66-71, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54905]

Manguebixa, Tiago. Sentimentos do mundo em cartografia sentimental para o fim do mundo // notas de uma bixa preta sertaneja.