Plantações, retomadas e colheitas de sonhos

Plantations, retakes and harvests of dreams
Plantaciones, retomas y cosechas de sueños

Resumo Nessa empreitada escrita performativa faço um caminho de volta para minha criança, retorno a erê guardada em minha caixinha de sonhos para tratar feridas e reencontrar novas encruzilhadas para lidar com o necrocapital urbano. Esse texto nasce da vontade de tramar futuros entendendo que para isso é preciso encontrar na beirada dos barrancos e nos campos, legado de minhas ancestrais, as ferramentas necessárias para travar batalhas estelares, o direito ao sonho e ao devaneio, a penumbra, o reencanto, a feitiçaria presente na junção das palavras e no eco dos silêncios.

Palavras-chave encanto; silêncio; performance; transmutação; transpolítica

Abstract In this performative writing endeavor, I make a way back to my child, to return to the herb kept in my little dream box to treat wounds and find new crossroads to deal with the urban necrocapital. This text is born from the will to plot futures, understanding that for this it is necessary to find in the edge of the ravines and in the fields, the legacy of my ancestors, the necessary tools to fight stellar battles, the right to dream and reverie, the penumbra, the enchantment, the sorcery present in the junction of words and in the echo of silences.
Keywords enchantment; silence; performance; transmutation; transpolitics

Este documento é distribuído nos termos da licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC)

© 2022 JeisiEkê de Lundu

* Artista visual, transertaneja, nascida na beirada entre minas e bahia, escreve, costura, esculpe e quer construir uma casa dentro d ́água. Reside em Salvador e cursa artes na UFBA. E-mail: jeisieke@gmail.com; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0997-6734

JeisiEkê de Lundu *
(Universidade Federal da Bahia, Brasil)

Resumen En esta aventura de escritura performativa hago un camino de regreso a mi niño, para volver a la hierba guardada en mi pequeña caja de sueños para tratar las heridas y encontrar nuevas encrucijadas para lidiar con el necrocapital urbano. Este texto nace de la voluntad de urdir futuros, entendiendo que para ello es necesario encontrar en el borde de los barrancos y en los campos, el legado de mis antepasados, las herramientas necesarias para librar batallas estelares, el derecho al sueño y al ensueño, la penumbra, el reencantamiento, la brujería presente en el cruce de las palabras y en el eco de los silencios.
Palabras clave encanto; silencio; performance; transmutación; transpolítica

Pegue uma bacia de ágata, ou de cerâmica, coloque água com um pouco de seiva de alfazema ou sumo de alecrim, lave o rosto, acalme os olhos. Sente em um lugar tranquilo, se quiser beba um chá de artemísia ou de alguma flor e só então comece a ler:

abra:

>>>>>>meu umbigo foi interrado na divisa de minas com bahia, nasci na beira da BR 116, com o pé na estrada, com o olho no horizonte aspirando a vontade grande de ver o mundo atrás de minhas costas e um carreiro enorme para ser percorrido a minha frente. derna de criança eu sonhava que teria asas, que conseguiria voar o mundo todo antes de aterrissar num cantinho cheio de esterco de cabra e umas muda de manaiba para plantar, fazendo brotar uns pé de mandioca, pra esperar crescer, limpar, colher e cumer junto com aquelas que me deram as mãos para percorrer esse mundo todo.

meu imbigo aponta o mundo, eu sou dona dele da mesma maneira que ele é parte de mim, minhas células têm mais da terra e dos rios voadores que sangue de meus avôs. espero tranquila meus cabelos brancos, pastoreando cabras tomando chá de artemísia e mirando o crepúsculo dos dias.

embornal cheio de sonhos[[[[[[[[[[[[[[[ brincar de voar dói ]]]]]]]]]]]]

outro dia escrevi sobre como foi difícil rasgar a pele de minhas costas e deixar as asas que usei por esses longos anos na tentativa de não tocar no chorume que escorre pelas ruas da necrópole, agora o que dói são meus pés, sinto o meu calcanhar abrir, tem um osso novo que eu não conhecia na parte interna do canto traseiro do pé esquerdo, parece com uma espinha de robalo de carne branca pescado por um jangadeiro na praia de serra grande, parece com aquele espinho de laranja bahia que perfurou a orelha do meu pai naquele inverno rigoroso, lembra? Quando eu voltava da colheita de sonhos com um embornal bem cheio, quando o casaco cheio de poeira foi jogado de canto para acudir o velho que estava preso no pé de laranjas gritando por socorro, bem feito! Quem mandou passar depressa achando que árvores não se ofendem quando são desprezadas, mesmo cansada corri para tirar das oreia do veio o espinho de laranja, agora se lembra? se não lembra, pouco importa, o que quero dizer é que tem um espinho nascendo no meu pé, eu penso que pode até ser uma árvore que tá querendo nascer, só que ao contrário. de copa pra baixo e raiz pra dentro da minha perna, uma menina com pé de árvore, enraizada.

{{{{{{{{{{{ raiz de gente é pedaço de galáxia}}}}

depois que minha visage atravessou o oceano é que ela pode encontrar com as visage de alguns dos meus antepassados do lado de lá, eu não sei o que aconteceu antes, até o dia que Seu Mario me rezou com o ramo de folha, - eu te rezo, eu te curo amanhã cê caga duro. No dia que minha visage atravessou o oceano eu pude libertar meu corpo da vontade de pertencer a um lugar só, eu era criança a primeira vez que desprendi minha visage de minha pele, consegui pular da cama e me prender no teto, de costas para as telha de barro, feito uma aranha com medo, fiquei lá olhando minha imagem desacordada naquela cama grande, mais um monte de minino enfiado num quarto só, era só eu que conseguia pular pra fora da minha pele de noite, eu num podia fazer de dia porque tinha medo dos menino roubar minha pele, esconder e eu nunca mais conseguir voltar para dentro dela, com o passar dos dias eu aprendi a sair da casa pelo buraco que tinha nas telhas, eu num sabia que eu era leve e que num ia quebrar o telhado do jeito que os gatos faziam, meu pai ralhava com eles, jogava água quente, eu pensava que se eu pisasse forte demais ia quebrar as telhas da casa do veio e ele ia jogar água na minha visage, eu sabia que ele num podia ver o que eu era, que ele só conseguia ver minha pele, culpa da igreja que tirou dele o olho de verdade que a gente tem dentro do olho de carne, mesmo sabendo que ele não me via, eu mesma assim tinha medo, achava que se ele jogasse água podia me molhar, ia pegar um resfriado, já pensou visage com resfriado? atravessando devagarinho no meio da sala e do nada um espirro. Aos poucos eu aprendi a andar nos telhados maiores e a pular nas árvores, sair da cidade, brincar na mata me espreitando para não ser vista por outros seres nem pega por outras visage que eu não conhecia, eu tinha medo mas ia assim mesmo, aprendi logo a pular muito alto e a correr pra ver o mar, ficava sentada na beira do paredão do prado olhando o atlântico e pensando o dia que eu ia conseguir pular pro lado de lá desse brejo grande salobra.

minha pele ainda era de criança, eu nem podia muita coisa, quando eu voltava pra dentro dela deixava apenas uns resto dessas memórias, ela por mais que tentasse não conseguia lembrar de tudo, eu não sentia o gosto da água, sabia que tinha sal, mas só quem pode sentir o gosto e a quentura do mar é a pele de imagem, logo eu dei um jeito de levar ela pra encontrar o mar, nem sei como mas aconteceu de pressa, era coisa rara no meu sertão quem tinha visto o mar, quem sabia o gosto do sal e podia certificar que a areia era mesmo branca igual a foto que tinha no calendário pregado atrás da porta da cozinha de vózinha. levei minha pele pra encontrar o mar perto dos doze anos, com mais uma ruma de gente numa caravana dessas de igreja com um monte de véia, laranja, farofa, violão e gente que leva até sabonete pra banhar direito e volta de lá sabendo que precisa mesmo é de um banho de rio depois de entrar no brejo grande de água salobra.

Depois que a menina viu o mar nunca mais quis outra coisa senão morar perto dele, soube desde cedo que um dia estaria tão pertinho que escutaria sua cantoria e que seu cheiro salobra invadiria suas fuça todo dia. tem muito do sertão nessa vontade doida de morar perto do mar, não é nem pra queimar a bunda no solão quente de meio dia não, é só pra ver aquele tanto d´agua e saber que não morre mais de sede mesmo tendo a certeza do tanto de sal que tem dentro desse brejo.

Eu precisava provar do sal daqui antes de ver do lado de lá, antes de pular pro outro lado do brejo para encontrar um pedaço daqueles que irrigaram meus sonhos, eu queria encontrar dentro dessa banda de terra aqui os motivo do meu desassossego, mas só depois que eu pulasse eu teria a certeza que vai durar esse bixo futucando meu rabo, eu tenho um negoço que perturba de noite. que dá essa vontade de sair por aí pulando de morro em colina, de colina e pradaria, de pradaria em planalto até chegar nas serra, para daí ver o mar.

[[[[[[ morar perto do mar faz a gente respirar um sonho mais molhado, acho que pode ser a maresia]]]]

naquele inverno as beiradas do carreiro tava toda enfeitada de cipó de são joão, eu perdia um tempo chupando o mel que tinha nas florzinha laranja que dava nos cachos daquela trepadeira. correndo nas braquiária pra colher sonhos, o céu rosa, as juriti piando, os jacu debaixo das moita e eu menina braba do sertão seco perdia horas sentada do lado dos buraco de tatu, na espreita de um sair pra eu piá e levar pra vó muquiar na brasa pra nós cumer, nunca consegui pegar, eu achava que tatu saía pelo mesmo buraco que entrou, mas acho que não, as loca deles deve ser bem espalhada embaixo dos pé da gente, com um monte de saída pra tudo quanto é lado, entra cá e sai lá, eu tinha que colher sonhos e levar pra casa no fim da tarde, encontrar vó torrando café na bola que ela prendia no teto de um jirau, um burralho no chão, eu chegava já perto do fim da tarde, o sol já tava frio, o vento gelado batendo no meu casaco me fazia correr mais rápido, eu ficava ali sentada perto de vó esquentando um pouco o corpo antes de entrar pra dentro da maloca, botava a cesta cheia de sonhos no chão, tinha que espantar as mutuca de vez em quando pra elas não cumer as perna da gente tudo, e os Lambu também, Lambu gosta de comer sonho, tem muito lambu perto das roça de sonho lá de casa, gosta mais ainda quando já tá tirado do pé, perto da gente, sonho já arrancado do pé cheira mais forte, as lambu tudo perto da gente, querendo cumer a colheita, depois eu corria pra dentro de casa, esquentava água e botava as flor de artemísia para fazer chá, artemísia é bom pras vista, deixa a gente mais esperta, meu pai tem que beber artemísia todo dia pra recuperar as vista que ele perdeu. eu mesma tô tentando, mas é uma coisa bem difícil. Vozinha sempre diz que quem perde o olho de dentro nunca mais enxerga de verdade, só enxerga a pele, perde a capacidade de mirar para cima dos espelhos, meu pai tá tentando deixar cair a remela do olho, lava o olho todo dia, não sei se não vai voltar.

Mundão vai passar amanhã bem cedo pra pegar os embornal cheio de sonho que eu arrumei tudo lá na sala, ele passa todo dia de feira de manhã bem cedo, pega os embornal e vai vender, volta de tarde, deixa uma parte dos búzios que ganhou e os embornal vazio lá na entrada da roça, eu desço pra pegar, na volta já catou uns sonhos que desceu rolando pirambeira abaixo, perdido da plantação. Mundão é filho de Seu Mário rezador, que levanta espinhela caída e tira quebrante de criança nascida de sete mês, ele já me rezou, quando eu num sabia que eu podia sair da minha pele e virar visage, foi ele, Seu Mário, quem disse que eu voltaria pra cá quando eu rodasse o mundo todinho e encontrasse com as minhas pariceira, Seu Mário é um velho, sabe de um monte de coisa e finge que não sabe de nada, tem gente que até acha que ele é mentiroso, mas é por que ele conta um monte de história de gente que já abandonou a pele, tem gente que não tem mais o olho de dentro, igual meu pai, aí não pode vê as história, nem conhece o mundo direito, só enxerga com o olho de carne, Seu Mário que disse que tem muita gente no mundo igual eu e ele, que num era pra eu assustar mais não, que era só ir mesmo. Mundão é mais calado, ele é do povo do mato, quase nunca fala, quando concorda sorri, quando discorda fica mais quieto ainda e vai embora, na merminha da hora, parece mais um soin de tão pequeno e ligeiro, nem sei porquié que deram um nome tão grande pra um bixin tão mirrado, deve ser pq ele é invurta mais rápido que o olho da gente consegue acompanhar. de vez em quando eu to labutando lá no fundo da casa com minha vó e quando dou fé Mundão tá sentado num tamborete que tem na varanda pitando um cigarro de palha e olhando pro nada. aí diz o que veio fazer, ou não diz nada, fuma e vai embora. ou vai no pé de banana, tira uma palha e começa a desfiar, tirando tira por tira, depois conta uma por uma e separa montinhos delas no chão, eu acho bonito esse jeito de mundão. ele parece que sempre esteve nos lado de cá do sertão e sempre vai estar, é como se eu voltasse aqui depois de uns mil anos e ele vai tá do mesmo jeito, fazendo as mesma coisa, levando os embornal de sonho pra vender na feira, deixando o ganhado na cerca, aparecendo e sumindo, pitando cigarro e bebendo chá de hibisco. mundão parece que é tão parte do mundo quanto a água, penso que agora sei porque chamam ele de Mundão, porque ele é tão parte de tudo que até parece o próprio mundo.

Gosto desse lugar, aqui vivem ariranhas, arraias, peixes grandes de caudas moles que nadam nos riachos cor de rosa que cortam nosso sertão. brejos pequenos que abrigam seres cobertos de uma camada de pele fina e espinhosa, parecem mais com cactos submersos em líquido amniótico, a terra seca, o rio, os bichos, eu, mundão, minha avó, meu pai com seus olhos fechados e meu ancinho de colher sonhos. Penso às vezes em voltar a morar perto do mar, perto do brejo grande mirando o continente, não tem uma grande coisa pra contar aqui nesse escrito, não tem um grande conflito, o que eu queria era contar das miudezas de minha gente, da cor roxa e laranja das auroras de verão e do quanto eu posso voar pra fora de todas as galáxias e mesmo assim ainda encontrarei belezas no desfiar das folhas de bananeira e na coleção de moedas antigas que mundão guarda com ele.

[[[[[[[ E se fosse instituído que por um período do ano passaríamos guardadas? E se não fosse por conta do medo? E se não fosse por conta da nossa falta de zelo com a natureza? E se todas as pessoas humanas estocar comida e o resguardo fosse necessário para a sobrevivência. Se deixássemos a natureza respirar, se desligássemos as hidrelétricas, os televisores, os modens, os celulares, por um mês que fosse. Se deixássemos os pássaros dormirem sem lâmpadas ou máquinas apertando a mente. Se dormíssemos depois de contar histórias em volta da fogueira comendo um caldo quente. Se voltássemos nossos olhos para contemplar as estrelas por um dia que fosse. Juntas, todas as pessoas da terra, cultivando o silêncio, trocando alimentos e olhares sinceros. Sem que a mágoa e a dor fossem armas para alargar nossos conflitos. Se abrissem as casas fechadas, os portões das adegas e os estoques e distribuíssemos a comida que há muito tempo está guardada? Mas isso não é possível em um capitalismo, não é mesmo? A guerra e a peste sempre estiveram presentes para muitos corpos parecidos com o meu, nunca houve paz do lado sudaka do hemisfério. Por mais que a distopia colonizante acredite que um dia houve paz e que a guerra acabou, isso nunca aconteceu, nem para os mouros, africanos, bárbaros, indígenas, xiitas, árabes ou quaisquer que sejam os nomes inventados por brancos europeus para designar aqueles que moram fora de suas fronteiras e que são sinônimo de horror, selvageria ou terrorismo. Crio minha voz a partir do sul do mundo ou do norte, ou do nordeste, depende de onde se está a bússola, o norte nem sempre é o mesmo. O norte, assim como o branco, mora dentro de cada pessoa que teve contato com a necrópole e foi contagiada por seus tentáculos. A tinta não sai facilmente, é preciso um exercício constante para reaver a memória e recriar a narrativa, destreinando a mente, o corpo e o espírito. Crio ficção a partir de um corpo outro, que a cada dia tenta não cair na armadilha da culpa, do belo, do discurso narcísico ou da fantasia necrocolonial... não existe um futuro. Não existe o pote de ouro no fim do arco íris. Vivemos a espiral como já ensinou nossos ancestrais, tudo aqui se repete até que possamos tirar as vendas dos olhos e perceber que a profundidade está na superfície. Que é com pouco que se bebe o muito e com muito que se come o pouco. É preciso matar o amanhã para se construir o ontem e fugir do hoje. De início pode parecer destoante o que digo Aki. Mas aprendi com o movimento a lançar a pedra amanhã para matar o pássaro que voou ontem. Aprendi com uma certa moça a adoçar o mel com o limão para acalmar a língua do traidor. Não! Eu não acredito que iremos sair ilesos da guerra. Eu não estou ilesa da guerra que enfrentei ao rasgar a placenta e descer aqui para jorrar e desaguar sobre esta terra. O sangue não ensina a quem não entende o valor do sacrifício, pior ainda, torna os imbecis mais arrogantes acreditado ser eles a causa e a solução para tudo. a natureza é muito maior que o humano e não ela não está pedindo socorro, nem tentando nos matar, quando ela quiser fará sem que nem um bilhete seja enviado. Isso aqui não é para acalmar, isso aqui não é para desabafar, continuo a preencher cadernos e jorrar jorrar jorrar jorrar. Quem sabe um rio se forme aqui dentro deste apartamento quente e me leve de volta para o sertão.]]]]]

>>>>>>>>>>>>eu sei que pode parecer difícil, mas é só no início que é assim, depois a complexidade aumenta, porém você já será parte disso tudo, daí parece mais fácil, não que será automático; de vez em quando vai doer tanto que você poderá gritar e pedir um pouco mais de água, só então poderás abrir um pouco suas raízes, percebendo a terra ficando mais fofa, tentáculos um pouco maiores ganham o alto, você já não é mais uma semente, agora tem raízes e um pequeno caule quase despontando para fora do solo. você já pode ver a terra abrindo e o ar da atmosfera envolvendo seu frágil caule. te tornarás uma árvore, depende muito de todas as intempéries, agora um mundo de dificuldades se coloca à sua frente, mas é preciso que sugue da terra o máximo de nutriente que você conseguir para preencher todas as vértebras desse seu frágil corpo vegetal. <<<

eu quero dizer que me autorizei a ser artista, nasci no terreno seco e infértil do fundamentalismo religioso cristão, rasguei brechas na cisgeneridade patriarcal tóxica deixando de lado a forma como meu corpo era visto para transformá-lo na experiência de criar e promover vida, eu me autorizo a ser artista quando me disseram que eu seria apenas mais uma na estatística; eu me autorizo a ser artista contrariando a trajetória do racismo perverso que apaga corpos pardos e mata corpos retintos, deixando um rastro de sangue nos impedindo de dançar outros ritmos.>> Eu autorizo meu corpo a dançar as poesias difíceis. <<

Oxum me ensinou a lavar meus olhos e transformá-lo em uma arma para prever as ações da necropolítica, ela me ensinou que meu corpo é o primeiro que deve ser lavado, que as minhas mãos devem estar limpas e curadas para que eu possa curar outras que erguem comigo as trincheiras da labuta. <<<

silêncio é estado.

[[[[[[[[[ plantar silêncios para colher sonhos]]]]]]]]

Voltei a plantar, sou filha de lavradores de terra, a semente, o solo, o orvalho, a espera pela chuva são minhas velhas conhecidas. Aprendi desde cedo que é da terra que tiramos todo o sustento e a energia para continuar vivas. Hoje eu voltei a cuidar da pouca terra que tem a minha volta, toquei, vi as plantas morrerem dentro deste apartamento, as folhas secando e caindo, caules murchando a secura tomando conta não só das clorofila mas também de minha pele. hoje coloquei de novo a mão na terra para salvar a zamioculca que pedia arrego, gritava por socorro, para que eu cuide de seu ecossistema, tornando um ambiente mais agradável; a zamia está comigo faz alguns anos, já colocou folhas grossas de um verde esplêndido para acompanhar meus dias. Agora está murcha, com apenas um caule, tirei toda a terra do vaso que ela morava, transferi para a bacia contendo outra terra nova, humificada, nutrida e cheia de novos insumos. as raízes da zamia estavam frágeis, sem capacidade para suportar seus caules que eram caudalosos e cheios de água, Zamia vem de áfrica, da tanzânia, do lado leste do grande continente; além de raízes, ela possui um bulbo forte, capaz de aguentar longas jornadas de seca, como a que passamos juntas, um inverno que passou e hoje é o primeiro dia de nossa primavera. como dizia a poeta: aprendi com as primaveras, a deixar me cortar, para voltar sempre inteira. com a primavera vem as flores a vontade de criar de regar e de plantar tornar os dias mais solares, mais aerados, úmidos, cheios de proveito, assim como a terra nutrida que uso agora para preencher esse vaso, acomodando a zamia, suas raízes em formato de cobras; coloco junto pequenos pedaços de papel com palavras-comando, invocações para melhorar os dias. Zamia agora tem um novo lar, uma nova terra, voltada para a luz difusa da janela que ela mais gosta, espero que agora ela crie novamente forças para lançar para fora novos caules, brotar novas folhas, e transmitir novas belezas para que eu me contamine também e continue criando novas palavras.

(;;;)

coloco a planta de volta no vaso e com ela enterro palavras de força, poder e firmamento, EU continuo acreditando que posso criar, mas hoje me veio a lembrança do ato de plantar, de como esse é um ensinamento ancestral importante, nasci na roça e sei quantos caroços de milho se coloca numa leira para que nasça caules fortes e espigas cheias de novos grãos. sei que a terra não depende de nós para continuar sendo um ecossistema. eu aprendi é que nós dependemos da chuva para regar nossos cabelos, continuar nossa pequena existência depende muito mais do querer do vento em derrubar as nuvens do que de nossa inteligência limitada e autocentrada. Aprendi que o chão onde piso tem mais valor que o minério e lama que roubamos das montanhas para alimentar nossa ganância. (eu) continuo querendo ouvir o barulho das cigarras, o ronco dos morros abalando ladeira abaixo, vaga lumes iluminando o céu com seus led's zero carbono tóxico. A zamia me ensinou que só é preciso um pouco de água e um substrato nutrido para que nosso corpo regenere e voltemos a enxergar as primaveras brotando no horizonte. a zamia me falou enquanto eu criava.

(...)

Deixar os dias,

tornar a ver,

acordar e serenar.

acordar e serenar

respirar,

transpirar

repor

repor

re começar

acordo e o cheiro de meu corpo é verde, todas as minhas células recebem clorofila, nutridas pela presença do sangue misto do oripepê, manjericão e da capeba. meu sangue agora é verde, deixei para trás o que dizia se chamar humanidade. já não cabe mais em meu corpo tal desígnio, agora penso planta, agora chão, pedaço de torrão, agora planto aqui nesse pedaço de chão, passou a chamar-me vegetália. algo entre o monstro e o musgo. que tem a pele quase que couraça, que tem cabelos de ramos, como pequenas folhas e flores quando em setembro.

agora que sou uma vegetália, abdico do desejo da violência, do prazer pelo grande abandono, a neurose suicida coletiva, deixo para traz a necrose e a ganância. me torno vegetália, para chegar mais junto do que eu já fui um dia, um tentativa átomo, resgate de uma memória de pedaços, para lembrar do meu cheiro de canela-noz moscada, de minhas manhãs de orvalho. me torno isso que agora sou para deixar a água correr sobre meu corpo sem pressa de espantá-la como um pedaço de tecido. torno-me esse troço cheio de caldo para abrigar em meus braços toda a sorte de bichos. deixando de carregar o peso dos dias levando para dentro de meu peito formigueiros inteiros, gias, minhocas, e corujas. deixando que as primaveras habitem meu corpo por inteiro, e os invernos derrubem meus cabelos com sua força descomunal. Serei agora vegetália para que meu próprio sangue seja unguento para curar as feridas de minha pele, para que as mágoas se afoguem nesse caldo verde e sejam dissipadas. O sol é o principal motivo dos meus dias e a lua o presente de minhas noites. que minhas lágrimas se tornem água de alecrim, perfume vertendo os dias sombrios em compasso de coco e umbigada.

[[[[...]]]]

criei nebulosas em meu peito, deixei que elas tomassem conta de mim por uns dias, fiz delas cama e sofá, espreguicei e derramei meu corpo em auroras boreais, tornei-me inteira orvalhos.

estrelas invadem de forma brutal meus órgãos vitais, sugam para dentros de seus buracos todo o meu sangue e vertem minhas células em combustível para jornadas pela massa escura. planetas brincam com meus cabelos fazendo cachos enquanto cometas desvendam narinas acima a caminho das locas de meus olhos, eu universo, inteira fragmentada.

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vá até a janela e respire

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: fecha

JeisiEkê de Lundu, materializar silêncios, 2021. escultura de massa de mandioca, fungos e vidro; criada na residência F(r)icções.

(Foto: foto da autora)

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 82-94, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54911]

LUNDU, JeisiEkê de. Plantações, retomadas e colheitas de sonhos.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 82-94, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54911]

LUNDU, JeisiEkê de. Plantações, retomadas e colheitas de sonhos.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 82-94, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54911]

LUNDU, JeisiEkê de. Plantações, retomadas e colheitas de sonhos.

JeisiEkê de Lundu, materializar silêncios, 2021. escultura de massa de mandioca, fungos e vidro; criada na residência F(r)icções.

(Foto: foto da autora)

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 82-94, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54911]

LUNDU, JeisiEkê de. Plantações, retomadas e colheitas de sonhos.

o silêncio é uma árvore que derrama seus frutos pelas raízes, 2022. aquarela sobre papel de celulose, 29 x 21 cm.

LUNDU, JeisiEkê de. Plantações, retomadas e colheitas de sonhos.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 82-94, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54911]

LUNDU, JeisiEkê de. Plantações, retomadas e colheitas de sonhos.