Prototeses para travecametodologias de criação em arte contemporânea

Prototheses for travecametodologias in contemporary art
Prótsis para la creación de travecametodologias en el arte contemporáneo

Resumo Esta escrita é parte de um estudo sobre metodologias travestis de criação em arte, as travecametodologias. Arrisco na escrita de prototeses para as travecametodologias, entendendo-as como feitiço, como armas de combate à linguagem, entendendo-as na traição ao gênero, na recusa à transparência, no acesso a camadas de delírio e em seu constante processo de resfolego com os demais saberes transgêneres, pretos e indígenas.

Palavras-chave travecametodologias; travestis; arte contemporânea; metodologias de criação

Abstract This writing is part of a study on transvestite methodologies of creation in art, the traveca-methodologies. I venture into writing prototheses for traveca-methodologies, understanding them as a spell, as weapons to combat language, understanding them in the betrayal of the genre, in the refusal of transparency, in the access to layers of delirium and in their constant process of breathing with the other transgender, black and indigenous knowledge.
Keywords traveca-methodologies; transvestites; contemporary art; creation methodologies

Este documento é distribuído nos termos da licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC)

© 2022 Isadora Ravena

* Isadora Ravena é artista do corpo, travesti, professora e pesquisadora. Mestra em Artes e Graduada em Teatro pela Universidade Federal do Ceará. Atua como professora na rede municipal de ensino de Fortaleza e na graduação em Teatro do Centro Universitário Leonardo da Vinci- UNIASSELVI. E-mail: doratransgenica@outlook.com; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7777-3736

Isadora Ravena *
(Universidade Federal do Ceará, Brasil)

Resumen Este escrito forma parte de un estudio sobre las metodologías travesti de creación en el arte, las metodologías-traveca. Me aventuro a escribir prótesis de traveca-metodologías, entendiéndolas como hechizo, como armas para combatir el lenguaje, entendiéndolas en la traición del género, en la negación de la transparencia, en el acceso a capas de delirio y en su constante proceso de respirando con el otro saber transgénero, negro e indígena.
Palabras clave metodologías-traveca; travestis; arte contemporáneo; metodologías de creación

Se nos esvaziarmos do otimismo cínico e caminharmos em direção a um pessimismo criativo, não-paralisante, possivelmente conseguiremos deslizar juntos nos campos armadilhados da arte em direção às aparições, às performances, às imagens, aos corpos, aos gestos, aos sons, às palavras que “se articulam, elas mesmas, como regimes de enfrentamento e redistribuição da violência racial-colonial, tomando de assalto o seu poder capturador em uma espécie de autofagia dos princípios de violência.” (ASSUMPÇÃO; GREINER, 2020, p. 3)

Como podemos, a partir da arte, abrir brechas pelas quais seja possível visualizar a destituição do mundo que nos foi dado a conhecer? Como conjurar, a partir da/com a arte, forças para destituir o mundo, sua ordem e sua norma?

Atravessada por questões como essas, alvoreci, em minha pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará, um estudo sobre metodologias travestis de criação em arte, nomeando-as de travecametodologias. Um estudo que parte da urgência que sinto enquanto pensadora, artista e professora travesti, de arrancarmos a travestilidade de uma certa prisão temática, reflexo da impossibilidade cognitiva da cisgeneridade de acessar que o nosso trabalho não se encerra em um “falar sobre ser travesti”. Proponho então que pensemos a travestilidade como plataforma de invenção de métodos e contra-sub-métodos do próprio fazer artístico. Uma investida que inevitavelmente nos coloca diante de um desmanchar das fronteiras entre metodologia e objeto de estudo, pilares da pesquisa que aqui se confundem. Se ainda necessário for, voltar um pouco e dar alguma nota sobre a questão-fantasma que tem nos perseguido há tanto tempo:

“o que é ser travesti?”

Voltarei só para dizer que me deparei com tal pergunta desde o instante em que me deparei com a possibilidade de fabricar o meu corpo como um corpo travesti. Me vi apresentada ao espaço do possível: “o que é ser travesti?”, mas eu não sabia o que era o espaço e nem a possibilidade e não sentia a necessidade de pensar nisso, sentia que eram palavras fabricadas para atestar (assim como fizeram ao meu corpo) coisas que existem e não existem diante da premente urgência de uma necessidade: eu precisava suprimir a ideia, a ideia e seu mito e, no seu lugar, instaurar a manifestação tonante dessa necessidade explosiva: fabricar em meu corpo um corpo travesti.

Eu não sabia o que é ser travesti, mas sabia que o espaço, a dimensão, o devir, o futuro, o destino, o ser, o não-ser, o eu, o não-eu, nada eram para mim; mas havia alguma coisa que era algo e que sentia por ela querer SAIR: a necessidade de fabricar em meu corpo um corpo travesti - a dor, a desgraça e o prazer de fabricar em mim um corpo travesti.

Ainda que eles me pressionem, que pressionem meu corpo, que queiram que saia de mim uma resposta, um verbete, uma definição, que saia de mim a clareza, que eu lhes dê leite, alimento, que eu lhes mostre um mapa, a resposta, que eu me deite novamente nas mesas de dissecação, que a minha sinusite ataque defronte manuais biologizantes e estudos antropológicos escritos por eles e me leve à desgraça. Não sei o que é ser travesti, mas continuo a sentir a premente urgência de fabricar em meu corpo um corpo travesti.

Ao passo que me recuso a oferecer uma definição concisa e clara para a travestilidade, sou capaz de falar em um “nós, travestis”: há um tempo, refiro-me à travestilidade como uma força coletiva, como um corpo coletivo. Que “nós” é esse que invoco? Como pensar as travestilidades para além de um cardápio identitário, de uma massa etiquetada? Para pensar esse “nós”, dialogo com Jota Mombaça, um diálogo mediado por seu texto “Na quebra. juntas”, presente no seu livro Ñ Vão Nos Matar Agora, publicado pela Editora Cobogó em 2021.

Jota inicia contando de um encontro com uma recém-conhecida sua. Jota saiu de casa com um vestido preto de florzinhas vermelhas e essa criatura, recém-conhecida dela, depois de elogiar a roupa de Jota disse: “É preciso ter um sentido muito forte de si mesma para simplesmente sair dessa maneira no mundo, não é?” Jota conta que intuitivamente respondeu: “Talvez seja precisamente o contrário: é preciso ter de si um sentido muito quebrado para simplesmente sair dessa maneira no mundo.” Na escrita desse texto, que de alguma forma é uma retomada da resposta proferida, Jota escreve:

...e se, em vez da inteireza, da autoconsciência, da capacidade de autodeterminação e autoestima, houvesse um sentido de quebra que desloca efetivamente as posições inconformes à matriz cisgênera? E se essa sujeição inconsistente, esse modo de ser quebrado demais para traduzir-se em uma coerência identitária e representativa, qualquer que seja, insinuasse também uma forma de presença efetivamente desobediente de gênero? E se, às margens do grande nós universal (humano, branco, cisgênero e heteronormativo) a partir do qual se formula e engendra um certo projeto de sujeito e identidade, outros modos de criar coletividade e de estar juntas se precipitassem na quebra e através dela? E as perguntas não param aí, se multiplicam: como habitar uma tal vulnerabilidade e como engendrar, nesse espaço tenso das vidas quebradas pela violência normalizadora, uma conexão afetiva de outro tipo, uma conexão que não esteja baseada na integridade do sujeito, mas em sua incontornável quebra? (MOMBAÇA, 2021, p. 13)

Jota brinca de definir – e quando falo de brincar de definir falo sempre sobre um exercício de assumir o risco de apontar a reflexão no sentido daquilo sobre o qual não possui definição e só sobrevive por não se conter em uma definição; solubilizar os contornos – a quebra usando-se metaforicamente de um momento em que uma vidraça se arrebenta. O instante do estilhaçamento. O que Jota chama de quebra “não são os estilhaços, mas o movimento abrupto, errático e desordenado do estilhaçamento.” (MOMBAÇA, 2021, p. 14)

Se me refiro a um “nós, travestis”, me refiro a um arranjo que (ao menos no que eu almejo) não esteja subordinado a uma etiqueta identitária e tão pouco sirva às demandas do sujeito. Falo de um nós que, como no momento do estilhaçamento, encontra-se na desordem, na desorganização. É sob essa perspectiva que tenho produzido reflexões sobre o meu trabalho em arte e sobre o trabalho de muitas travestis artistas no Brasil (ou apesar dele), a invocação de travecametodologias de criação em arte contemporânea não é o esforço imbecil de tentar transformar uma miríade de pensamentos e articulações travestis em um “tipo específico, uno, unitário” de arte. Se falo de uma arte travesti é para lembrar a arte de sua própria função: ser perigosa.

Travecametodologia é feitiço

É mandinga. É bruxaria. É magia. É benção e maldição. É sortilégio. É conspiração. É confabulação- com fabulação. É sedução. É caruara. É Cabuíje. É pembação. É manipanço. É macumba. É trabalho. É oferenda. É despacho na encruzilhada, na encruzitrava. É amarração. Sedução. Fascínio. Toda travecametodologia é ferida e é cura, é xamã, é pajé, é mãe. Toda travecametodologia é encantamento, ou melhor, encantravamento.

Travecametodologias estão em ininterrupto combate à linguagem

Com quais palavras temos nos aliado? Se as palavras nos dão o mundo, que mundo é esse que nos foi dado a conhecer? Quais palavras precisamos esquecer para que outras novas nasçam? Como cortar o léxico gramatical? Esburacar, ruir, corroer, bifurcar, desmoronar a língua. (RAVENA; DILACERDA, p. 1, 2020)

A primeira e talvez mais cruel operação dessa língua colonial que nos foi enfiada “goela à fora” (e de quase todas as outras) foi designar a palavra-unidade como representativa de mundos-multiplicidades. Dizer que tudo aquilo que tem o mesmo nome é igual. Foi a linguagem e sua tirania que nos ordenou sob as metafísicas transcendentes, sob a identidade, sob os clichês, sob as imagens despóticas e, fundamentalmente, sob todo e qualquer binarismo. É a linguagem e essa linguagem que nos aprisiona ao real, que encobre e codifica as forças e a Terra. 

Essa linguagem pode empobrecer a imaginação. Essa linguagem e o mundo que nos foi dado a conhecer a partir desta linguagem empenham-se em sequestrar a imaginação e sua força criativa. Mas me parece que tem travesti que já sabia de uma força que ia além das coisas dizíveis e indizíveis, além das coisas visíveis e invisíveis. Travesti que já sabia que, a partir da linguagem, era possível fabricar mundos: que sofria na vida o que um simples enunciado “é um menino” poderia lhe desgraçar. 

Se a linguagem é a matéria do mundo, as travecametodologias precisam ser a antimatéria da Terra. E não se faça de pêssega, aquende o babado, mona! O pajubá e todas as outras línguas que inventamos não servem para outra coisa senão fazer desmoronar a linguagem.

Quantas milhares de possibilidades de mundo conseguimos acessar quando escutamos as profecias de Ventura Profana? Como Linn da Quebrada consegue a partir de seu "Trava-Línguas" propor-nos uma desordem das palavras e da linguagem e como essa desordem produz novas formas de imaginar? Antes de perguntar como imaginar novos mundos possíveis, deveríamos talvez nos perguntar se ainda somos capazes de imaginar com potência.

As travecametodologias estão a trair o gênero e a transicionar junto às demais formas de vida

Acredito na transição como uma perambulação ininterrupta, que deve ser compreendida também de modo cíclico. Ou seja, não há o fim da transição como um único lugar (identitário e corpóreo) a ser alcançado, mas sim, o que acontece é sempre a inauguração de novas possibilidades desses lugares, toda vez que nosso corpo experimenta essas novas situações emocionais e cognitivas que criamos para nós mesmas em coletividade. Acredito também que durante a transição, podemos criar intimidade com outros tipos e formas de vida, até com as formas que não são consideradas enquanto formas de vida. Temos assumido romances com o reino vegetal, mineral e com muitos outros reinos. Durante esses processos cíclicos, o que nos importa é a transmutação travesti: como tecer um corpo capaz de continuar perambulando?

Mais uma das tantas limitações cognitivas da cisgeneridade: acessar a transição de gênero como sendo a saída de um ser homem para chegar em um ser mulher, ou vice-versa. A estes devo alertar que não estamos transicionando de gênero. Estamos traindo o gênero.

As travecametodologias se resfolegam nos demais saberes trans, pretes e indígenas

Toda travecametodologia tende a permanecer refém desse mundo se não estiver em constante resfolego com os demais saberes transgêneres, com os saberes pretos, com os saberes indígenas e com os saberes de todos aqueles povos que carregam em seus corpos o trauma colonial.

Abigail Campos fala de uma dimensão bélica e terapêutica dos saberes pretes e trans em seu “me curo y me armo estudando” (CAMPOS, 2020), um texto que produz uma retomada a sua própria infância: uma criança pobre, filha de pai carteiro e racializado como mestiço e de uma mãe preta-indígena dona de casa. O movimento de retomada passa por uma fabricação de memória da leitura e da busca por saberes como ferramenta para atravessar os momentos difíceis e dolorosos de sua vida.  Elastico aqui essa dimensão bélica e terapêutica a todos os saberes ancestralmente arquitetados também por povos indígenas.

É no contato com as poéticas feministas negras, por exemplo, que as travecametodologias devem ancorar-se contra um mundo ordenado, como nos propõe Denise Ferreira da Silva, desvelando na potência fabular do corpo travesti uma arma de desordenação. Aprendemos com Denise, aprendemos com Octavia Butler, aprendemos com Ailton Krenak, com Merremii Karão Jaguaribaras, só para citar alguns exemplos.

Queremos viver até o fim o que nos cabe! Nós somos os monstros que o colonialismo criou e estamos aqui para espalhar o seu colapso e acabar com os seus sonhos brancos! E eu grito: NÃO VAMOS SUCUMBIR AO COLONIALISMO! NÃO VAMOS SUCUMBIR ÀS ARMADILHAS DA IMAGINAÇÃO COLONIAL, SE É QUE OS BRANCOS CONSEGUEM IMAGINAR. NÓS SOMOS UMA MULTIDÃO DE CORPOS TRANS/TRAVESTIS, NEGROS E INDÍGENAS E VAMOS REFAZER O MUNDO. PORQUE NÓS SOMOS O MUNDO. E SEREMOS O PESADELO DE QUEM NÃO NOS DEIXA SONHAR. VIVEREMOS, ATÉ O FIM, O QUE NOS CABE. (Da Silva, p. 1, 2022)

É preciso (convido você também a compor este pensamento) nos perguntar se as travecametodologias, inclusive, não devem se semear também através de adjetivos. É possível que pensemos em “travecametodologias negras”, “travecametodologias indígenas”, “travecametodologias gordas” etc.?

As travecametodologias estão na recusa à transparência

O gato é preto! E ele mia: por favor, parem de jogar seus holofotes de luz sobre nós, joguem sombras para que brilhemos com nossa própria luz. (RAVENA, 2020, p. 33)

Da luz de Zeus, o fogo roubado, à Luz de Deus, a verdade e a vida. Da luz do conhecimento, a razão, à Luz dos Smartphones, quando a vida virou pixel e todo tempo se conta em 15 segundos, o tempo dos storys do Instagram. Três linhas capazes de resumir a luz como elemento fundante e sustentador do mundo ocidental(izado). As travecametodologias estão na recusa à transparência porque sabem que o excesso de visibilidade satura e por conseguinte captura, coopta, cataloga. A transparência é metáfora para toda uma construção de poder que tem como espectro elementar a extrema luminosidade, um poder que é instaurado cotidianamente por uma ordem moderna-colonial.

Denise Ferreira da Silva (2019) intenta contra essa luz quando propõe suas blacklights, quando olha para a luz-negra como ferramenta de leitura do mundo que nos permite acessar aquilo que não está dado. O que a luz negra revela é a luz dos próprios objetos.

Por isso, não devemos ativar a luz negra como um mecanismo de visibilidade, mas de nomeação estratégica para leituras opacas. A matéria opaca é aquela que não se permite penetrar pelo espectro da visibilidade. A luz negra é uma recusa à transparência e um chamado à “instauração performativa de um outro mundo”. (MOMBAÇA, 2021, p. 108)

As travecametodologias existem nas sombras. Na penumbra que coabita com a luz dos postes de energia elétrica e o escuro das ruas. Travesti sabe que se cair no apagamento morre, se cair na extrema visibilidade é mortificada. Travesti sabe o poder do mistério enquanto mistério, sabe respeitar a dimensão do segredo enquanto segredo. Travesti sabe que o visível e o invisível são ficções tão bem elaboradas como o possível e o impossível. Como roubar a luz que está no domínio da razão? Como recriar a luz das trevas como luz das travas?

Para brincar com a última prototese desse texto quero dizer aqui que as travecametodologias são transLÚCIDAS. Permitem a passagem de luz, mas não permitem a formação de uma imagem clara, nítida.

As travecametodologias acessam camadas de delírio

A quem serve a arte? Em primeiro lugar, a arte deve servir ao artista. [...] Isso deve valer para todo artista e para o artista louco, em especial”. (SOUZA, 2021, p. 119)

“Você é louca!”, essa talvez seja a frase que mais ouvi nos últimos anos, perdendo só para “Como você é alta”. Sinto que em todas as vezes que me atestaram essa frase, ao verem uma microperformance cotidiana ou alguma obra que eu tenha apresentado, as pessoas atestaram em um lugar de desordem, a partir de uma certa zona de indiscernibilidade: a zona onde tudo se torna penumbra, nuvem, onde “o que é” e “o que não é” são questões que agitam o corpo. 

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Obras como Travomantra, da travesti, atriz, roteirista, cineasta, preparadora de elenco e dramaturga cearense Noá Bonoba, são importantíssimas para que possamos discutir sobre o que seriam essas camadas de delírio que as travecametodologias acessam. 

19. Logos. Logo essa estrutura, tal-como-conhecemos, deixará de existir. É um desejo que tem como ponto de partida a crença em uma radical mutação planetária. Abandonando de vez o altar do crescimento. Criando vidas que realizam um corte no crescimento. Ou para citar aqui Isabelle Stengers, reinventando modos de produção e cooperação que escapem às existências do crescimento e da competição. (BONOBA, 2020, p. 1)

Me parece que Noá é uma das artistas que experienciam a loucura como cura. Ela desliza sobre o solo da comunicabilidade e provoca estados de desorientação a partir da repetição e dos diferentes usos da palavra e da sequência coreográfica. Roubando a dimensão mítica e ritualística dos mantras, Noá consegue colocar-nos em um outro plano de referencial: onde a inteligibilidade que costumávamos usar na recepção das obras de arte parecem não fazer mais sentido. Desfilia-se do sentido e de sua ordem semântica. Frustra o espectador que vai ao seu encontro com um desejo de completude. Quando explora as palavras, brinca (como criança mesmo) de invertê-las, de virar o mundo de trás pra frente, de cabeça pra baixo. Prolonga aquilo que nem é fonema, nem é letra, mas é sopro. E o sopro de vida, tão cultuado pelo mundo grego, aquele pedaço de alma que sai pela boca, parece mais com uma maldição, parece mais um pedaço de novo mundo.

Na obra audiovisual ela brinca com quadros solares formados na parede de sua casa, brinca de fazer movimentos repetitivos de pendulação com a cabeça, como se nos convidasse a sair do eixo gravitacional, a encontrar novos eixos, onde a cisgeneridade e sua lucidez não acessam, não alcançam. A cisgeneridade tem sérias limitações cognitivas e insiste em manter-se dentro desses contornos. 

As travecametodologias praticam o desentendimento como engrenagem de criação.

Eu amo Antonin Artaud. Eu amo Stela do Patrocínio. Eu amo Noá Bonoba. 

Dizer que as travecametodologias acessam camadas de delírio e encontram nelas potência para a criação não quer dizer que a cisgeneridade branca e heterossexual não delire. Delira e delira muito. Travesti sabe que é a cisgeneridade que embarca no delírio de ser protagonista do drama cósmico e a partir disso produz servidão. Travesti sabe que é a cisgeneridade e seus delírios impotentes que tenta instaurar a todo momento em corpo travesti a disforia. A CISforia. 

O mundo ordenado adoece e adoece não só aqueles corpos que estão excluídos da norma. Embora por aqui seja mais fácil adoecer, seja mais fácil cair nas paixões tristes, no mal-estar, na angústia provocada pelo mundo colonial. Por aqui as taxas de suicídio ainda são maiores. As beiras ainda são maioria da população cercada pelos manicômios e por suas atualizações cruéis. 

Que as travecametodologias acessem cada vez mais camadas de delírio onde a loucura é cura! A loucura como contato com aquilo que é ancestral. A loucura como desorientação que nos faz dançar com os lençóis do tempo.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 95-103, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54912]

RAVENA, Isadora. Prototeses para travecametodologias de criação em arte contemporânea.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 95-103, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54912]

RAVENA, Isadora. Prototeses para travecametodologias de criação em arte contemporânea.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 95-103, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54912]

RAVENA, Isadora. Prototeses para travecametodologias de criação em arte contemporânea.

Link para https://www.youtube.com/watch?v=BEqHGOrBemU&t=29s

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 95-103, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.54912]

Referências

BONOBA, Noá. Travomantra: Entre o solo da comunicabilidade e a experiência da desorientação. Wrong Wrong Magazine, Portugal, n. 19, 2020.

LEAL, Abigail. me curo y me armo, estudando: a dimensão terapêutica y bélica do saber prete y trans. In PELBART, Peter Pál; FERNANDES, Ricardo Muniz (Org.). Pandemia Crítica. São Paulo: n-1 edições, 2020.

COSTA, Pablo; GREINER, Christine. Dobrar a morte, despossuir a violência: corpo, performance, necropolítica. Conceição/Conception, Campinas, v. 9, 2020. DOI: 10.20396/conce.v9i00.8661341. Acesso em 27 dez. 2021.

DA SILVA. Denise Ferreira. A dívida impagável. Tradução: Amílcar Packer e Pedro Daher. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019.

DILACERDA, Lucas; RAVENA, Isadora. Como cortar o mundo com delicadeza? Wrong Wrong Magazine, Portugal, n. 19, 2020.

FUGITIVENESS. Direção: viníciux da silva. Produção: Augusto Perillo, Hugo Katsuo e viníciux da silva. Brasil: Produção Independente, 2022. Disponível em https://youtu.be/KhCQj7SsYuI.

MOMBAÇA, Jota. Ñ Vão Nos Matar Agora. Coleção Encruzilhada. São Paulo: Editora Cobogó, Versão Kindle, 2021.

RAVENA, Isadora. Sinfonia para o fim do mundo. Fortaleza: LEFA - Laboratório de Estética e Filosofia da Arte; LAC - Laboratório de Arte Contemporânea / Universidade Federal do Ceará, 2020.

SOUZA, Neusa. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. São Paulo: Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2021.

RAVENA, Isadora. Prototeses para travecametodologias de criação em arte contemporânea.