GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
Minority Report
DOI: https://doi.org/
10.22409/pragmatizes.v10i19.42292
Resumo
: Tendo como objetivo refletir sobre o ideário de vigilância e de livre
tecnologias digitais nas últimas duas décadas, analisaremos a
sintetizadas no dispositivo Pré-
Crime
1956 e adaptado para o cinema por Steven Spielberg em 2002, como uma figuração literária de
impasses também capturados conceitualmente em noções como
(ZUBOFF, 2019) e “g
labirinto conceitual derivado de um cenário novo e dinâmico, podemos voltar o olhar para a ficção
científica à procura de exercícios de imaginação especulativa consistentes que tentem mapear, por
meio da construç
ão de universos ficcionais futurísticos alternativos à nossa realidade, alguns dos
dilemas que constituem a nossa experiência presente. Assim, leremos o conto
uma tradução formal de impasses e uma construção ficcional na qual utopia e
lados da mesma moeda
(LARREGUE
Palavras-chave:
Capitalismo de Vigilância; Governamentalidade algorítmica; Distopia; Ficção
Científica; Philip K. Dick.
Minority Report
y el gobierno de la distopía algorítmica
Resumen
: Con el objetivo de reflexionar sobre las ideas de vigilancia y libre albedrío frente a las
tecnologías digitales en las últimas dos décadas, analizaremos la encrucijada de ambivalencias
sintetizadas en el dispositivo Precrimen creado en
publicado en 1956 y adaptado para el cine por Steven Spielberg en 2002, como figuración literaria de
puntos muertos también capturados conceptualmente en nociones como "capitalismo de vigilancia"
(ZUBOFF, 2019) y "guber
namentalidad algorítmica" (ROUVROY
laberinto conceptual derivado de un escenario nuevo y dinámico, podemos recurrir a la ciencia ficción
en busca de ejercicios consistentes de imaginación especulativa que intenten mapear, a trav
construcción de universos futuristas de ficción alternativos a nuestra realidad, algunos de los dilemas
que constituyen nuestra experiencia actual. Por lo tanto, leeremos el cuento
1
Marcelo Cizaurre Guirau.
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia São Paulo (IFSP)
cizaurre@ifsp.edu.br -
https://orcid.org/0000
2
Ana Elisa Sobral Caetano da Silva Ferreira
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia São Paulo (IFSP)
anaelisaferreira@ifsp.edu.br -
https://orcid.org/0000
Recebido em 22/04/2020, aceito para publicação em 26/04/2020, disponibiliz
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
Minority Report
e o governo da distopia algorítmica
10.22409/pragmatizes.v10i19.42292
Marcelo Cizaurre Guirau
Ana Elisa Sobral Caetano da Silva Ferreira
: Tendo como objetivo refletir sobre o ideário de vigilância e de livre
tecnologias digitais nas últimas duas décadas, analisaremos a
s
encruzilhadas de ambivalências
Crime
criado em Minority Report,
conto de Philip K. Dick publicado em
1956 e adaptado para o cinema por Steven Spielberg em 2002, como uma figuração literária de
impasses também capturados conceitualmente em noções como
c
apitalismo de
overnamentalidade algo
rítmica” (ROUVROY;
BERNS, 201
labirinto conceitual derivado de um cenário novo e dinâmico, podemos voltar o olhar para a ficção
científica à procura de exercícios de imaginação especulativa consistentes que tentem mapear, por
ão de universos ficcionais futurísticos alternativos à nossa realidade, alguns dos
dilemas que constituem a nossa experiência presente. Assim, leremos o conto
Minority Report
uma tradução formal de impasses e uma construção ficcional na qual utopia e
(LARREGUE
; WANNYN; DARTIGUES, 2019).
Capitalismo de Vigilância; Governamentalidade algorítmica; Distopia; Ficção
y el gobierno de la distopía algorítmica
: Con el objetivo de reflexionar sobre las ideas de vigilancia y libre albedrío frente a las
tecnologías digitales en las últimas dos décadas, analizaremos la encrucijada de ambivalencias
sintetizadas en el dispositivo Precrimen creado en
Minority Report
, un cuento de Philip K. Dick
publicado en 1956 y adaptado para el cine por Steven Spielberg en 2002, como figuración literaria de
puntos muertos también capturados conceptualmente en nociones como "capitalismo de vigilancia"
namentalidad algorítmica" (ROUVROY
;
BERNS, 201
laberinto conceptual derivado de un escenario nuevo y dinámico, podemos recurrir a la ciencia ficción
en busca de ejercicios consistentes de imaginación especulativa que intenten mapear, a trav
construcción de universos futuristas de ficción alternativos a nuestra realidad, algunos de los dilemas
que constituyen nuestra experiencia actual. Por lo tanto, leeremos el cuento
Minority Report
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia São Paulo (IFSP)
, Brasil. E-
mail:
https://orcid.org/0000
-0002-3148-7910
Ana Elisa Sobral Caetano da Silva Ferreira
.
Doutoranda em Linguística (UFSCAR);
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia São Paulo (IFSP)
, Brasil. E-
mail:
https://orcid.org/0000
-0003-4633-632X
Recebido em 22/04/2020, aceito para publicação em 26/04/2020, disponibiliz
01/09/2020
232
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
e o governo da distopia algorítmica
Marcelo Cizaurre Guirau
1
Ana Elisa Sobral Caetano da Silva Ferreira
2
: Tendo como objetivo refletir sobre o ideário de vigilância e de livre
-arbítrio frente às
encruzilhadas de ambivalências
conto de Philip K. Dick publicado em
1956 e adaptado para o cinema por Steven Spielberg em 2002, como uma figuração literária de
apitalismo de
vigilância”
BERNS, 201
8). Em meio ao
labirinto conceitual derivado de um cenário novo e dinâmico, podemos voltar o olhar para a ficção
científica à procura de exercícios de imaginação especulativa consistentes que tentem mapear, por
ão de universos ficcionais futurísticos alternativos à nossa realidade, alguns dos
Minority Report
como
uma tradução formal de impasses e uma construção ficcional na qual utopia e
distopia podem ser
Capitalismo de Vigilância; Governamentalidade algorítmica; Distopia; Ficção
: Con el objetivo de reflexionar sobre las ideas de vigilancia y libre albedrío frente a las
tecnologías digitales en las últimas dos décadas, analizaremos la encrucijada de ambivalencias
, un cuento de Philip K. Dick
publicado en 1956 y adaptado para el cine por Steven Spielberg en 2002, como figuración literaria de
puntos muertos también capturados conceptualmente en nociones como "capitalismo de vigilancia"
BERNS, 201
8). En medio del
laberinto conceptual derivado de un escenario nuevo y dinámico, podemos recurrir a la ciencia ficción
en busca de ejercicios consistentes de imaginación especulativa que intenten mapear, a trav
és de la
construcción de universos futuristas de ficción alternativos a nuestra realidad, algunos de los dilemas
Minority Report
como
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do
mail:
Doutoranda em Linguística (UFSCAR);
professora do
mail:
Recebido em 22/04/2020, aceito para publicação em 26/04/2020, disponibiliz
ado online em
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
una traducción formal de puntos muertos y una
pueden ser lados de la misma moneda (LARREGUE
Palabras claves
: Capitalismo de vigilancia; Gubernamentalidad algorítmica; Distopía; Ciencia ficción;
Philip K. Dick.
Minority Report
and the rule of the algorithmic dystopia
Abstract
: With the purpose of reflecting about
digital technology of the last two decades, we intend to analyze the crossway of ambivalences
condensed in the Pre-
Crime system created in
published
in 1956 and screen played by Seven Spielberg in 2002, as a literary figuration of impasses
also conceptually captured in notions such as
“al
gorithmic governmentality” (ROUVROY
derived from a new and dynamic landscape, we
exercises in speculative imagin
ation which try to map, through the construction of futuristic fictional
universes alternative to our reality, some of the dilemmas which constitute our present experience. In
this way, we intend to read the short
a fictional construction in which utopia and dystopia can be sides of the same coin (LARREGUE
WANNYN;DARTIGUES, 2019).
Keywords:
Surveillance capitalism; Algorithmic governmentality; Dystopia; Science Fiction; Philip K.
Dick.
Minority Report
Introdução
No início dos anos 90, Pierre
Lévy lançou um livro dedicado às
tecnologias da inteligência cuja
reflexão sobre
o futuro do pensamento
na era da informática
também propõe,
no capítulo das coletividades
pensantes, o fim da metafísica. Nas
palavras do autor,
A ecologia
cognitiva substitui as oposições
radicais da metafísica por um mundo
matizado, misturado, no qual
de subjetividade
emergem de
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
una traducción formal de puntos muertos y una
construcción ficticia en la que la utopía y la distopía
pueden ser lados de la misma moneda (LARREGUE
; WANNYN;
DARTIGUES, 2019).
: Capitalismo de vigilancia; Gubernamentalidad algorítmica; Distopía; Ciencia ficción;
and the rule of the algorithmic dystopia
: With the purpose of reflecting about
ideason surveillance and free-
will in the face of the
digital technology of the last two decades, we intend to analyze the crossway of ambivalences
Crime system created in
Minority Report, a short-
story by Philip K Dick
in 1956 and screen played by Seven Spielberg in 2002, as a literary figuration of impasses
also conceptually captured in notions such as
surveillance
capitalism” (ZUBOFF, 2019) and
gorithmic governmentality” (ROUVROY
;
BERNS, 2013). Encircled by the conceptual labyrinth
derived from a new and dynamic landscape, we
turn our gaze to science fiction in search of consistent
ation which try to map, through the construction of futuristic fictional
universes alternative to our reality, some of the dilemmas which constitute our present experience. In
this way, we intend to read the short
-story Minority Report as a formal translat
ion of impasses and as
a fictional construction in which utopia and dystopia can be sides of the same coin (LARREGUE
Surveillance capitalism; Algorithmic governmentality; Dystopia; Science Fiction; Philip K.
Minority Report
e o governo da distopia algorítmica
No início dos anos 90, Pierre
Lévy lançou um livro dedicado às
tecnologias da inteligência cuja
o futuro do pensamento
também propõe,
no capítulo das coletividades
pensantes, o fim da metafísica. Nas
A ecologia
cognitiva substitui as oposições
radicais da metafísica por um mundo
matizado, misturado, no qual
efeitos
emergem de
processos locais e transitórios
2016, p. 170,
grifos do autor).
Isto é, Lévy, ao utilizar a
metáfora d
o cérebro como computador
(memória de trabalho), baseia
teorias da psicologia cognitiva sobre
memória para construir sua tese de
uma ecologia cognitiva do pensamento
fundido a dispositivos cnicos. Para o
autor,
pensar é um devir coletivo no
qual misturam-
se homens e coisas
(LÉVY, 2016
, p. 171). Tal mistura, na
era da informática, daria vazão a uma
inteligência coletiva mediada pela
233
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
construcción ficticia en la que la utopía y la distopía
DARTIGUES, 2019).
: Capitalismo de vigilancia; Gubernamentalidad algorítmica; Distopía; Ciencia ficción;
will in the face of the
digital technology of the last two decades, we intend to analyze the crossway of ambivalences
story by Philip K Dick
in 1956 and screen played by Seven Spielberg in 2002, as a literary figuration of impasses
capitalism” (ZUBOFF, 2019) and
BERNS, 2013). Encircled by the conceptual labyrinth
turn our gaze to science fiction in search of consistent
ation which try to map, through the construction of futuristic fictional
universes alternative to our reality, some of the dilemmas which constitute our present experience. In
ion of impasses and as
a fictional construction in which utopia and dystopia can be sides of the same coin (LARREGUE
;
Surveillance capitalism; Algorithmic governmentality; Dystopia; Science Fiction; Philip K.
e o governo da distopia algorítmica
processos locais e transitórios
(LÉVY,
grifos do autor).
Isto é, vy, ao utilizar a
o cérebro como computador
(memória de trabalho), baseia
-se nas
teorias da psicologia cognitiva sobre
memória para construir sua tese de
uma ecologia cognitiva do pensamento
fundido a dispositivos cnicos. Para o
pensar é um devir coletivo no
se homens e coisas
, p. 171). Tal mistura, na
era da informática, daria vazão a uma
inteligência coletiva mediada pela
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
informática e regida por uma
tecnodemocracia.
A visão utópica e entusiasta de
Lévy se choca com a
posição quase
dis
tópica de Régis Debray
30), que
afirma ser a
“ciberdemocracia”
o sonho do
tecnocrata que esqueceu sua parte
animal”
. Em meio ao labirinto
conceitual derivado de um cenário
novo e dinâmico como o que esses
pensadores buscam investigar,
podemos vo
ltar o olhar para a ficção
científica à procura de exercícios de
imaginação especulativa consistentes
que tentem mapear, por meio da
construção de universos ficcionais
futurísticos alternativos à nossa
realidade, alguns dos impasses que
vêm marcando o deba
te filosófico
acima referido.
Dessa forma
analisaremos o conto
Minority Report
escrito por Philip K Dick, como uma
formalização de impasses
construção na qual utopia e distopia
podem ser lados da mesma moeda
(LARREGUE;
DARTIGUES, 2019).
Publicado em 1956 e adaptado
para o cinema por Steven Spielberg
em 2002
com roteiro de Scott Frank
e Jon Cohen –,
Minority Report
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
informática e regida por uma
A visão utópica e entusiasta de
posição quase
tópica de Régis Debray
(2000, p.
afirma ser a
o sonho do
tecnocrata que esqueceu sua parte
. Em meio ao labirinto
conceitual derivado de um cenário
novo e dinâmico como o que esses
pensadores buscam investigar,
ltar o olhar para a ficção
científica à procura de exercícios de
imaginação especulativa consistentes
que tentem mapear, por meio da
construção de universos ficcionais
futurísticos alternativos à nossa
realidade, alguns dos impasses que
te filosófico
Dessa forma
,
Minority Report
,
escrito por Philip K Dick, como uma
formalização de impasses
e uma
construção na qual utopia e distopia
podem ser lados da mesma moeda
WANNYN;
Publicado em 1956 e adaptado
para o cinema por Steven Spielberg
com roteiro de Scott Frank
Minority Report
traz
um mundo em que o crime foi
praticamente extinto pela Divisão
Crime,
que, por meio de um dispositivo
formado pelas
visões do futuro
próximo feitas por três
filtradas por um sistema
computadorizado, faz prisões
momentos antes do crime ser
concretizado.
Assim
pessoas são condenadas por crimes
que efetivamente não cometeram,
situação que arma um di
relacionado a
questões sobre livre
arbítrio: por um lado, a ação da
Crime salva
vidas; por outro, pessoas
são detidas e condenadas por ações
apenas previstas, o que retira delas a
chance de tomar um caminho diferente
e evitar a ação violenta: elas estão,
dessa forma, presas a um destino
imutável e são condenadas com base
em uma pré-visão
d
como monolítico.
Todo o sistema é posto em
xeque
quando Anderton, o chefe
dos criadores
da Divisão
intercepta uma previsão de que ele
cometeria um assassinato. Um
intrincado jogo de interesses,
conduzido por diversos
se desdobra a partir daí. Anderton
lançado, pelo próprio sistema que ele
234
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
um mundo em que o crime foi
praticamente extinto pela Divisão
Pré-
que, por meio de um dispositivo
visões do futuro
próximo feitas por três
precogs e
filtradas por um sistema
computadorizado, faz prisões
momentos antes do crime ser
Assim
, milhares de
pessoas são condenadas por crimes
que efetivamente não cometeram,
situação que arma um di
lema
questões sobre livre
-
arbítrio: por um lado, a ação da
Pré-
vidas; por outro, pessoas
são detidas e condenadas por ações
apenas previstas, o que retira delas a
chance de tomar um caminho diferente
e evitar a ação violenta: elas estão,
dessa forma, presas a um destino
imutável e são condenadas com base
d
e um futuro tido
Todo o sistema é posto em
quando Anderton, o chefe
e um
da Divisão
Pré-Crime,
intercepta uma previsão de que ele
cometeria um assassinato. Um
intrincado jogo de interesses,
conduzido por diversos
personagens,
se desdobra a partir daí. Anderton
é
lançado, pelo próprio sistema que ele
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
luta para manter, em um conflito entre
livre-
arbítrio e a crença na
infalibilidade do mecanismo anti
crimes que vem garantindo a
s
egurança do mundo em que vive.
Ao con
siderarmos a narrativa
como distópica, concordamos com a
afirmação de Botello (201
pensar a contemporaneidade
As distopias permitem dramatizar as
tensões, esperanças e medos que
vivem as sociedades
contemporâneas. Além disso, elas
proporcionam
espaços cognitivos
que permitem visualizar as
morfologias da dominação e do
poder. Propiciam cenários de
resistências ao futuro, mas também
projetos que buscam transformar
ficção em realidade. (p.
A proposta de uma instituição
que prevê e evita crime
s antes que
eles sejam cometidos
flerta
sonho utópico de um entusiasta
tecnológico que acredita no poder
irrefutável da ciência. A trajetória do
personagem Anderton, no entanto,
coloca dúvidas ao leitor quando joga
com a possibilidade da falha.
Logo
nas primeiras linhas do
conto, instala-
se uma dialética entre
livre-
arbítrio e Estado em que a
autonomia individual é abolida em
nome do interesse público e da
garantia de funcionamento perfeito do
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
luta para manter, em um conflito entre
arbítrio e a crença na
infalibilidade do mecanismo anti
-
crimes que vem garantindo a
egurança do mundo em que vive.
siderarmos a narrativa
como distópica, concordamos com a
afirmação de Botello (201
8) para
pensar a contemporaneidade
:
As distopias permitem dramatizar as
tensões, esperanças e medos que
vivem as sociedades
contemporâneas. Além disso, elas
espaços cognitivos
que permitem visualizar as
morfologias da dominação e do
poder. Propiciam cenários de
resistências ao futuro, mas também
projetos que buscam transformar
ficção em realidade. (p.
232)
A proposta de uma instituição
s antes que
flerta
com o
sonho utópico de um entusiasta
tecnológico que acredita no poder
irrefutável da ciência. A trajetória do
personagem Anderton, no entanto,
coloca dúvidas ao leitor quando joga
com a possibilidade da falha.
nas primeiras linhas do
se uma dialética entre
arbítrio e Estado em que a
autonomia individual é abolida em
nome do interesse público e da
garantia de funcionamento perfeito do
Sistema Pré-Crime.
conto constrói uma apor
pressupondo que o sistema funcione,
a intervenção policial antes do fato,
dado como certo, permite a salvação
da vítima e a prisão do criminoso; por
outro lado, o preso pagará por um
crime que não cometeu e que poderia
não ter sido cometido
sistema, ao intervir na iminência do
crime, retira
do indivíduo a autonomia
do julgamento sobre sua ação. Como
Anderton explica a Witwer, “a
execução do crime em si é
absolutamente metafísica. Afirmamos
que o condenáveis” (DICK, 2012, p.
129). Assim,
no universo do conto,
está abolido um dos alicerces
fundamentais do direito penal em
sociedades democráticas: a presunção
de inocência. Uma das máximas do
direito, de que
todo indivíduo é
inocente até que se prov
pressupõe a materialidade do
para a condenação. Essas
salvaguardas jurídicas são abolidas
em Minority Report
, mas em nome de
uma utopia: a extinção dos crimes. O
conto cria, dessa
maneira
em que a eliminação de um direito
fundamental traz um benefício coletivo
inegáv
el e dos mais
235
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
Dessa forma, o
conto constrói uma apor
ia:
pressupondo que o sistema funcione,
a intervenção policial antes do fato,
dado como certo, permite a salvação
da vítima e a prisão do criminoso; por
outro lado, o preso pagará por um
crime que não cometeu e que poderia
não ter sido cometido
. Isto é, o
sistema, ao intervir na iminência do
do indivíduo a autonomia
do julgamento sobre sua ação. Como
Anderton explica a Witwer, “a
execução do crime em si é
absolutamente metafísica. Afirmamos
que o condenáveis” (DICK, 2012, p.
no universo do conto,
está abolido um dos alicerces
fundamentais do direito penal em
sociedades democráticas: a presunção
de inocência. Uma das máximas do
todo indivíduo é
inocente até que se prov
e o contrário,
pressupõe a materialidade do
crime
para a condenação. Essas
salvaguardas jurídicas são abolidas
, mas em nome de
uma utopia: a extinção dos crimes. O
maneira
, um dilema
em que a eliminação de um direito
fundamental traz um benefício coletivo
el e dos mais
desejados.
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
Anderton se gaba da redução de 99.8
por cento dos crimes grave
2012, p. 131) e o leitor é levado, nesse
ponto da narrativa, a compartilhar do
entusiasmo de Witw
er pelo
Pré-Crime
: “Um assassinato em cinco
anos
Witwer retomava a confiança.
Um recorde bastante impressionante...
motivo de orgulho
3
(DICK, 2012, p.
131). Aqui vemos a atuação
pêndulo de incertezas na economia do
conto: Witwer, após ter suas
convicções questionadas pelas
primeiras vidas colo
cadas por
Anderton e pela visão da triste figura
dos precogs, retoma sua confiança
como nos informa o narrador
números impressionantes da
Crime.
O sistema todo se sustenta,
ética e juridicamente, na premissa de
infalibilidade do
dispositivo
Estabelece-
se, assim, uma metafisica
da ciência, representada no conto pelo
aparato de precognição, em que a
certeza científica é inquestionável.
No começo do conto, Anderton,
já certo das intenções de Witwer de
substituí-
lo, evoca, com ironia
3
No original: “‘
One murder in five years.
Witwer’s confidence was returning.
impressive record…something to be proud of
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
Anderton se gaba da redução de 99.8
por cento dos crimes grave
s (DICK,
2012, p. 131) e o leitor é levado, nesse
ponto da narrativa, a compartilhar do
er pelo
Sistema
: “Um assassinato em cinco
Witwer retomava a confiança.
Um recorde bastante impressionante...
(DICK, 2012, p.
131). Aqui vemos a atuação
de um
pêndulo de incertezas na economia do
conto: Witwer, após ter suas
convicções questionadas pelas
cadas por
Anderton e pela visão da triste figura
dos precogs, retoma sua confiança
como nos informa o narrador
com os
números impressionantes da
Pré-
O sistema todo se sustenta,
ética e juridicamente, na premissa de
dispositivo
Pré-Crime.
se, assim, uma metafisica
da ciência, representada no conto pelo
aparato de precognição, em que a
certeza científica é inquestionável.
No começo do conto, Anderton,
já certo das intenções de Witwer de
lo, evoca, com ironia
, o pouco
One murder in five years.
Witwer’s confidence was returning.
‘Quite an
impressive record…something to be proud of
’.”
conhecimento do seu adversário sobre
o funcionamento do sistema
familiarizado com a teoria do
Crime
, é claro. Suponho que seja
ponto pacífico
4
(DICK, 2012, p. 129).
Além de contribuir para a construção,
no texto, do antagonismo de
em relação a Witw
er, essa pergunta
indireta cria o
contexto para
apresente ao leitor a t
sustenta o Sistema
Pré
Tenho as informações disponíveis ao
público
respondeu Witwer. Com o
auxílio de seus mutantes
precognitivos,
ousadia e êxito o sistema punitivo
pós-
crime, baseado em presídios e
penalidades. Como todos sabemos,
a punição nunca foi muito
dissuasiva, e servia de pouco
consolo a uma vítima morta
(DICK, 2012, p. 129)
A fala de Witwer, que denota
uma adesão entusiasmada à imagem
pública de êxito construída da teoria
do Pré-Crime
, estabelece esse
personagem como um dos extremos
do pêndulo de incertezas que move a
4
No original: “You’re acquainted with the
theory of precrime, of course. I presume we
can take that for granted.”
5
No original: “I have the information publicly
available”,
Witwer replied. “With the aid of your
precog mutants, you’ve boldly and successful
abolished the post-
crime punitive system of
jails and fines. As we all realise, punishment
was never much of a deterrent, and could
scarcely have afforded the comfort to a victim
already dead.”
236
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
conhecimento do seu adversário sobre
o funcionamento do sistema
: “Já está
familiarizado com a teoria do
Pré-
, é claro. Suponho que seja
(DICK, 2012, p. 129).
Além de contribuir para a construção,
no texto, do antagonismo de
Anderton
er, essa pergunta
contexto para
que se
apresente ao leitor a t
eoria que
Pré
-Crime:
Tenho as informações disponíveis ao
respondeu Witwer. Com o
auxílio de seus mutantes
você aboliu com
ousadia e êxito o sistema punitivo
crime, baseado em presídios e
penalidades. Como todos sabemos,
a punição nunca foi muito
dissuasiva, e servia de pouco
consolo a uma vítima morta
5
.
(DICK, 2012, p. 129)
A fala de Witwer, que denota
uma adesão entusiasmada à imagem
pública de êxito construída da teoria
, estabelece esse
personagem como um dos extremos
do pêndulo de incertezas que move a
No original: “You’re acquainted with the
theory of precrime, of course. I presume we
No original: “I have the information publicly
Witwer replied. “With the aid of your
precog mutants, you’ve boldly and successful
ly
crime punitive system of
jails and fines. As we all realise, punishment
was never much of a deterrent, and could
scarcely have afforded the comfort to a victim
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
narrativa. Nas linhas seguintes,
surgem,
do diálogo entre Witwer e
Anderton, os primei
ros obstáculos à
tese da infalibilidade que constitui o
amparo legal e ético do
S
Crime :
Você deve ter notado o
inconveniente legal básico da
metodologia do Pré-
Crime
prendendo indivíduos que não
infringiram lei alguma.
Mas com
certeza vão infringir
Witwer afirmou com convicção.
Felizmente não infringemporque
os capturamos primeiro, antes que
possam cometer um ato de violência.
Portanto, a execução do crime em si
é absolutamente metafísica.
Afirmamos que são condenáveis.
El
es, por outro lado, afirmam
eternamente que são inocentes. E,
em certo sentido, são inocentes.
(...)
Em nossa sociedade, não temos
qualquer crime grave
Anderton
, mas temos, sim, um
campo de detenção cheio de
supostos criminosos
6
. (DICK,
p. 129)
6
No original: “You’ve probably already
grasped the basic l
egalistic drawback to
precrime methodology. We’re taking in
individuals who have broken no law.” “But
surely, they will,” Witwer affirmed with
conviction. “Happily, they don’t
get to them first, before they can commit an act
of violence. So th
e commission of the crime
itself is absolute metaphysics. We can claim
they are culpable. They, on the other hand,
can eternally claim they’re innocent. And, in a
sense, they are innocent.” (…) “In our society,
we have no major crimes,” Anderton went on,
but we do have a detention camp full of
would-be criminals.”
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
narrativa. Nas linhas seguintes,
do diálogo entre Witwer e
ros obstáculos à
tese da infalibilidade que constitui o
S
istema Pré-
Você deve ter notado o
inconveniente legal básico da
Crime
. Estamos
prendendo indivíduos que não
certeza vão infringir
Witwer afirmou com convicção.
Felizmente não infringemporque
os capturamos primeiro, antes que
possam cometer um ato de violência.
Portanto, a execução do crime em si
é absolutamente metafísica.
Afirmamos que são condenáveis.
es, por outro lado, afirmam
eternamente que são inocentes. E,
em certo sentido, são inocentes.
Em nossa sociedade, não temos
qualquer crime grave
prosseguiu
, mas temos, sim, um
campo de detenção cheio de
. (DICK,
2012,
No original: “You’ve probably already
egalistic drawback to
precrime methodology. We’re taking in
individuals who have broken no law.” “But
surely, they will,” Witwer affirmed with
because we
get to them first, before they can commit an act
e commission of the crime
itself is absolute metaphysics. We can claim
they are culpable. They, on the other hand,
can eternally claim they’re innocent. And, in a
sense, they are innocent.” (…) “In our society,
we have no major crimes,” Anderton went on,
but we do have a detention camp full of
A distopia algorítmica no governo
da vida
Guardando semelhanças com
Divisão Pré-
Crime
conto de Dick, nossa realidade conta
com um sistema
ainda mais
e abrangente. A
carrega em seu próprio nome o ideário
de potência e a ambição de uma rede
que pretende alcançar todo o globo
por meio de uma linguagem intrincada
e opaca: a programação algorítmica.
Inicialmente idealizada como
um espaço de troca e coletividade
(LÉVY, 20
16 ; 2014
colonizada pela lógica capitalista,
tornou-
se um espaço
como Google,
Amazon
Apple
(GAFA) impõem suas práticas
no ciberespaço, escrevendo seus
próprios termos e promovendo uma
mutação no sistema capitalista que a
pesquisadora
Shoshana Zuboff (2015,
2019)
nomeia como
vigilância”
. Tal sistema baseia
coleta e cruzamen
to dos dados e
metadados de seus usuários para
traçar um perfil a fim de
seus serviços. Entretanto, esse
processo de personalização é, na
realidade, uma ferramenta para
produção de previsões sobre futuras
237
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
A distopia algorítmica no governo
Guardando semelhanças com
a
Crime
apresentada no
conto de Dick, nossa realidade conta
ainda mais
complexo
e abrangente. A
world wide web
carrega em seu próprio nome o ideário
de potência e a ambição de uma rede
que pretende alcançar todo o globo
por meio de uma linguagem intrincada
e opaca: a programação algorítmica.
Inicialmente idealizada como
um espaço de troca e coletividade
16 ; 2014
), a internet,
colonizada pela lógica capitalista,
se um espaço
onde empresas
Amazon
, Facebook e
(GAFA) impõem suas práticas
no ciberespaço, escrevendo seus
próprios termos e promovendo uma
mutação no sistema capitalista que a
Shoshana Zuboff (2015,
nomeia como
“capitalismo de
. Tal sistema baseia
-se na
to dos dados e
metadados de seus usuários para
traçar um perfil a fim de
personalizar
seus serviços. Entretanto, esse
processo de personalização é, na
realidade, uma ferramenta para
produção de previsões sobre futuras
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
necessidades, escolhas e tendências
de
cada usuário ou de um grupo
específico.
O capitalismo de vigilância tem início
com a descoberta do excedente
comportamental. Mais dados de
comportamento são colhidos do que
os necessários para
a
serviços. O excedente alimenta a
inteligência d
as máquinas
meio de produção
previsões do comportamento do
usuário. Isso significa que esses
produtos serão vendidos no mercado
de comportamentos futuros.
(ZUBOFF, 2019, p. 96) (tradução
nossa)
Atualmente, as transações
humanas depen
dem cada vez mais da
mediação de tecnologias digitais. De
sistemas de bancos ao acesso de
plataformas escolares, passando pelas
mídias sociais, a programação
algorítmica modificou o modo como
interagimos com o espaço
offline
. Zuboff afirma que tal
representa simbolicamente eventos,
objetos e processos, que se tornam
passíveis de serem conhecidos e
compartilhados de uma nova maneira
(ZUBOFF, 2018).
Essa nova maneira de
compartilhamento de dados produz o
que Zuboff (2019) chama de
“behavioral surplus”
7
, ou excedente
7
A autora estabelece um diálogo com o
conceito de mais-valia (surplus-
value) filiando
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
necessidades, escolhas e tendências
cada usuário ou de um grupo
O capitalismo de vigilância tem início
com a descoberta do excedente
comportamental. Mais dados de
comportamento são colhidos do que
a
melhoria de
serviços. O excedente alimenta a
as máquinas
novo
que fabrica
previsões do comportamento do
usuário. Isso significa que esses
produtos serão vendidos no mercado
de comportamentos futuros.
(ZUBOFF, 2019, p. 96) (tradução
Atualmente, as transações
dem cada vez mais da
mediação de tecnologias digitais. De
sistemas de bancos ao acesso de
plataformas escolares, passando pelas
mídias sociais, a programação
algorítmica modificou o modo como
interagimos com o espaço
online e
. Zuboff afirma que tal
mediação
representa simbolicamente eventos,
objetos e processos, que se tornam
passíveis de serem conhecidos e
compartilhados de uma nova maneira
Essa nova maneira de
compartilhamento de dados produz o
que Zuboff (2019) chama de
, ou excedente
A autora estabelece um diálogo com o
value) filiando
-
comportamental, a matéria prima de
um capitalismo baseado na vigilância.
Essa mutação do sistema capitalista
tem desdobramentos profundos na
modulação de comportamentos dos
indivíduos (SILVEIRA, 2017) e
apresenta-
se como um novo
afetação pré-
consciente da ação
humana (ROUVROY;
Zuboff (2019) afirma que sob o
capitalismo de vigilância, os meios de
produção correspondem aos meios de
modificação comportamental. Ela
denomina o poder dessas empresas
como instrume
ntarismo
como a instrumentação e
instrumentalização do comportamento
humano com o propósito de modificar,
prever, monetizar e controlar.
A autora afirma ainda que
capitalismo de vigilância não é apenas
uma faceta diferente do capitalismo e
s
im um golpe contra a democracia,
não no sentido
político
Estado (coup d’état
), mas
se a corrente materialista dialética ao utilizar
termos como surplus e
means of production
propondo uma atu
alização desses conceitos
frente as mudanças tecnológicas. Entretanto,
entendemos que o conceito
está relacionado ao produto excedente da
navegação, os rastros deixados pelo
internauta.
8
No original, “instrumentarianism” (ZUBOFF,
2019).
238
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
comportamental, a matéria prima de
um capitalismo baseado na vigilância.
Essa mutação do sistema capitalista
tem desdobramentos profundos na
modulação de comportamentos dos
indivíduos (SILVEIRA, 2017) e
se como um novo
modo de
consciente da ação
BERNS, 2018).
Zuboff (2019) afirma que sob o
capitalismo de vigilância, os meios de
produção correspondem aos meios de
modificação comportamental. Ela
denomina o poder dessas empresas
ntarismo
8
”, definindo-o
como a instrumentação e
instrumentalização do comportamento
humano com o propósito de modificar,
prever, monetizar e controlar.
A autora afirma ainda que
capitalismo de vigilância não é apenas
uma faceta diferente do capitalismo e
im um golpe contra a democracia,
político
de um golpe de
), mas
de um golpe
se a corrente materialista dialética ao utilizar
means of production
,
alização desses conceitos
frente as mudanças tecnológicas. Entretanto,
entendemos que o conceito
surplus behavioral
está relacionado ao produto excedente da
navegação, os rastros deixados pelo
No original, “instrumentarianism” (ZUBOFF,
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
involuntário e
inconsequente
gens) perpetrado por
fascinados por
tecnologia em
movimento de derrubada dos direitos
humanos em troca de
agilidade tecnológica.
A
dinâmica do poder
instrumentário descrito por Zuboff
(2019) dialoga com
o
civilizatório proposto por Debray
(2019). Instaura-se, assim,
espionagem sem testemunhas que
cria necessidades, de
sumaniza as
experiências e direciona
comportamentos de um modo
silencioso e persistente para que as
bases da civilização sejam definidas
segundo as práticas do capitalismo de
vigilância.
A vitória pode ser declarada quando,
em vez de uma, existe apenas a
c
ivilização, sua língua uma língua
franca e sua moeda uma medida
comum. Quando ela pode se retirar
para sua terra natal e ainda ser um
farol. Quando tribos alógenas
adotam seus tiques, hábitos e
normas, sem nem mesmo
perceberem que estão copiando.
Quando o
comandante não precisa
mais comandar. Uma civilização
venceu quando todas as suas
formas se tornam naturais.
(DEBRAY, 2019, p. 14)
nossa)
A crença na infalibilidade da
programação algorítmica
faz parte do
processo civilizatório
do homem
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GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
inconsequente
(coup de
indivíduos
tecnologia em
movimento de derrubada dos direitos
conforto e
dinâmica do poder
instrumentário descrito por Zuboff
o
movimento
civilizatório proposto por Debray
um jogo de
espionagem sem testemunhas que
sumaniza as
experiências e direciona
comportamentos de um modo
silencioso e persistente para que as
bases da civilização sejam definidas
segundo as práticas do capitalismo de
A vitória pode ser declarada quando,
em vez de uma, existe apenas a
ivilização, sua língua uma língua
franca e sua moeda uma medida
comum. Quando ela pode se retirar
para sua terra natal e ainda ser um
farol. Quando tribos alógenas
adotam seus tiques, hábitos e
normas, sem nem mesmo
perceberem que estão copiando.
comandante não precisa
mais comandar. Uma civilização
venceu quando todas as suas
formas se tornam naturais.
(DEBRAY, 2019, p. 14)
(tradução
A crença na infalibilidade da
faz parte do
do homem
contemporâneo, a
diferença é que
esse processo acontece em um
espaço que antes não existia:
ciberespaço.
A linha tênue entre o real e o
virtual foi apagada por práticas
naturalizadas em objetos técnicos
cada vez
mais
celulares que coleta
m a todo instante
dados de seus usuários. A
naturalização do uso desses
objetos,
tidos como inofensivos,
parte da engrenagem de um sistema
governado
por algoritmos.
inofensividade, a 'passividade' do
governo algorítmico é apenas
aparente: o governo al
uma realidade ao menos tanto quanto
registra”
(ROUVROY
p. 127). R
ealidade que é fruto de um
minucioso cruzamento de dados feito
por algoritmos cada vez mais
autônomos, vide o desenvolvimento da
inteligência artificial e do
learning (O'
NEIL, 2016)
O'Neil (2016) explica como a
programação algorítmica é definitiva
em decisões que vão do aceite na
universidade, passando pela
aprovação de créditos bancários, até à
escolha dos candidatos à presidência
Em uma sociedade onde o
239
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
diferença é que
esse processo acontece em um
espaço que antes não existia:
o
A linha tênue entre o real e o
virtual foi apagada por práticas
naturalizadas em objetos técnicos
portáteis, como
m a todo instante
dados de seus usuários. A
naturalização do uso desses
tidos como inofensivos,
faz
parte da engrenagem de um sistema
por algoritmos.
“A
inofensividade, a 'passividade' do
governo algorítmico é apenas
aparente: o governo al
gorítmico 'cria'
uma realidade ao menos tanto quanto
(ROUVROY
; BERNS, 2018,
ealidade que é fruto de um
minucioso cruzamento de dados feito
por algoritmos cada vez mais
autônomos, vide o desenvolvimento da
inteligência artificial e do
machine
NEIL, 2016)
.
O'Neil (2016) explica como a
programação algorítmica é definitiva
em decisões que vão do aceite na
universidade, passando pela
aprovação de créditos bancários, até à
escolha dos candidatos à presidência
.
Em uma sociedade onde o
data mining
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
é responsável pela construção de
perfis que direcionam as escolhas dos
sujeitos, tanto online
quanto
impõe-
se a pergunta sobre o quanto
os indivíduos estariam dispostos a
sacrificar do ideário do livre
favor
de uma lógica de
personalização. Segundo Rouvroy e
Berns (2018, p. 120),
O governo algorítmico parece, por
essa razão, assinar a conclusão de
um processo de dissipação das
condições espaciais, temporais, e
linguísticas da subjetivação e da
individuação em benefício de uma
regulação objetiva, opera
condutas possíveis.
Isto é, diante da lógica da
sociedade governada pela linguagem
algorítmica, quase tudo é reduzido a
cálculos para prever e até modificar
comportamentos em um process
dessubjetivação do indivíduo
atravessado pelo ideário da
matemática como linguagem universal
(FINN, 2017). A utilização de
algoritmos como receitas ou
sequências instrucionais para calcular
um determinado resultado não é
novidade na matemática; porém
ciências computacionais, juntamente
com a popularização da internet,
fomentaram
o debate sobre como a
programação algorítmica apresenta
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
é responsável pela construção de
perfis que direcionam as escolhas dos
quanto
offline,
se a pergunta sobre o quanto
os indivíduos estariam dispostos a
sacrificar do ideário do livre
-arbítrio em
de uma lógica de
personalização. Segundo Rouvroy e
O governo algorítmico parece, por
essa razão, assinar a conclusão de
um processo de dissipação das
condições espaciais, temporais, e
linguísticas da subjetivação e da
individuação em benefício de uma
regulação objetiva, opera
cional, das
Isto é, diante da lógica da
sociedade governada pela linguagem
algorítmica, quase tudo é reduzido a
cálculos para prever e até modificar
comportamentos em um process
o de
dessubjetivação do indivíduo
,
atravessado pelo ideário da
matemática como linguagem universal
(FINN, 2017). A utilização de
algoritmos como receitas ou
sequências instrucionais para calcular
um determinado resultado não é
novidade na matemática; porém
, as
ciências computacionais, juntamente
com a popularização da internet,
o debate sobre como a
programação algorítmica apresenta
consequências dentro e fora do
ciberespaço. Para Doneda e Almeida
(2018, p. 141),
algoritmos são basicamente um
con
junto de instruções para realizar
uma tarefa, produzindo um resultado
final
a partir de algum ponto de
partida. Atualmente, os algoritmos
embarcados em sistemas e
dispositivos eletrônicos são
incumbidos cada vez mais de
decisões, avaliações e análises que
têm impactos concretos em nossa
vida. [...] Quanto mais aumentam a
sofisticação e a utilidade dos
algoritmos, mais se mostram
"autônomos", chegando a dar a
impressão de que existe uma
"máquina pensante" por detrás de
alguns raciocínios misteriosos, uma
ima
gem que remonta aos pri
da informática.
A imagem da máquina pensante
e seus raciocínios misteriosos também
faz parte da narrativa do conto
Report
, que se apoia no ideário da
ciência como receita para a solução de
crimes. No entanto, o dispositivo de
precognição em que todo o
Pré-Crime se
baseia constitui
uma estranha combinação e
elementos sobrenaturais e físicos. As
previsões partem de seres
cognoscentes que inexplicavelmente
possuem a capacidade de ver o futuro.
O tributo pago por esse dom é a
completa inatividade física e mental.
Os
precogs são apresentados
pelo narrador:
240
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
consequências dentro e fora do
ciberespaço. Para Doneda e Almeida
algoritmos são basicamente um
junto de instruções para realizar
uma tarefa, produzindo um resultado
a partir de algum ponto de
partida. Atualmente, os algoritmos
embarcados em sistemas e
dispositivos eletrônicos são
incumbidos cada vez mais de
decisões, avaliações e análises que
têm impactos concretos em nossa
vida. [...] Quanto mais aumentam a
sofisticação e a utilidade dos
algoritmos, mais se mostram
"autônomos", chegando a dar a
impressão de que existe uma
"máquina pensante" por detrás de
alguns raciocínios misteriosos, uma
gem que remonta aos pri
mórdios
A imagem da máquina pensante
e seus raciocínios misteriosos também
faz parte da narrativa do conto
Minority
, que se apoia no ideário da
ciência como receita para a solução de
crimes. No entanto, o dispositivo de
precognição em que todo o
Sistema
baseia constitui
-se de
uma estranha combinação e
elementos sobrenaturais e físicos. As
previsões partem de seres
cognoscentes que inexplicavelmente
possuem a capacidade de ver o futuro.
O tributo pago por esse dom é a
completa inatividade física e mental.
precogs são apresentados
assim
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
Na penumbra, os três dementes
estavam sentados, balbuciando.
Cada declaração incoerente, cada
sílaba aleatória, era analisada,
comparada, reorganizada em forma
de símbolos visuais, transcrita em
cartões pe
rfurados convencionais e
ejetada para dentro de diversas
fendas codificadas. Durante todo o
dia os dementes balbuciavam,
aprisionados em suas cadeiras
especiais de encosto alto, mantidos
numa única posição rígida por tiras
de metal, feixes de fios e grampo
Suas necessidades físicas eram
atendidas automaticamente. Não
tinham nenhuma necessidade
espiritual. Vegetativos, murmuravam,
cochilavam e existiam. Suas mentes
eram embotadas, confusas, perdidas
nas sombras.
Mas não nas sombras de hoje. As
três criatur
as gaguejantes,
tartamudeantes, com cabeças
inchadas e corpos debilitados,
contemplavam o futuro. O
maquinário analítico registrava suas
profecias e, à medida que os três
dementes precogs falavam, as
máquinas ouviam com atenção
(DICK, 2012, p. 129, 130)
9
No original: “In the gloomy half
-
three idiots sat babbling. Every incoherent
utterance, every random syllable, was
analysed, compared, reassembled in the form
of visual symbols, transcribed
on conventional
punch
cards, and ejected into various coded
slots. All day long the idiots babbled,
imprisoned in their special high-
backed chairs,
held in one rigid position by metal bands, and
bundles of wiring, clamps. Their physical
needs were taken c
are of automatically. They
had no spiritual needs. Vegetable
muttered and dozed and existed. Their minds
were dull, confused, lost in shadows.
But not shadows of today. The three gibbering,
fumbling creatures with their enlarged head
and wasted
bodies, were contemplating the
future. The analytical machinery was recording
prophecies, and as the three precog idiots
talked, the machinery carefully listened”.
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GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
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9, p.
Na penumbra, os três dementes
estavam sentados, balbuciando.
Cada declaração incoerente, cada
sílaba aleatória, era analisada,
comparada, reorganizada em forma
de símbolos visuais, transcrita em
rfurados convencionais e
ejetada para dentro de diversas
fendas codificadas. Durante todo o
dia os dementes balbuciavam,
aprisionados em suas cadeiras
especiais de encosto alto, mantidos
numa única posição rígida por tiras
de metal, feixes de fios e grampo
s.
Suas necessidades físicas eram
atendidas automaticamente. Não
tinham nenhuma necessidade
espiritual. Vegetativos, murmuravam,
cochilavam e existiam. Suas mentes
eram embotadas, confusas, perdidas
Mas não nas sombras de hoje. As
as gaguejantes,
tartamudeantes, com cabeças
inchadas e corpos debilitados,
contemplavam o futuro. O
maquinário analítico registrava suas
profecias e, à medida que os três
dementes precogs falavam, as
máquinas ouviam com atenção
9
.
(DICK, 2012, p. 129, 130)
-
darkness the
three idiots sat babbling. Every incoherent
utterance, every random syllable, was
analysed, compared, reassembled in the form
on conventional
cards, and ejected into various coded
slots. All day long the idiots babbled,
backed chairs,
held in one rigid position by metal bands, and
bundles of wiring, clamps. Their physical
are of automatically. They
had no spiritual needs. Vegetable
-like, they
muttered and dozed and existed. Their minds
were dull, confused, lost in shadows.
But not shadows of today. The three gibbering,
fumbling creatures with their enlarged head
bodies, were contemplating the
future. The analytical machinery was recording
prophecies, and as the three precog idiots
talked, the machinery carefully listened”.
Em termos composicionais, a
demência dos precogs se explica por
dois motivos: por um lado, ela
transfere para a parte do “maquinário
analítico” do dispositivo a
responsabilidade pela interpretação
dos dados, uma vez que as visões
aparecem para os precogs
desordenada e eles não dispõem de
capacidade cognitiva para
a possuíssem, os computadores que
atuam na decifração das imagens do
futuro o teriam razão de existir no
conto. Assim, não haveria um
dispositivo analítico, mas apenas a
presença do sobrenatural, encarnada
na figura dos precogs
a demência desses seres especiais
reforça sua aura oculta e sobrenatural
-
eles são admirados e quase
santificados pelos seus dons, fato que
é muito mais explorado na versão
cinema
tográfica do conto.
10
A hipótese do controle das interpretações do
futuro originada da demência dos precogs é
co
nfirmada por Anderton: “O talento absorve
tudo. O lobo da percepção extrassensorial
reduz o equilíbrio da área frontal. Mas o que
isso nos importa? Temos suas profecias. Eles
transmitem o que precisamos.
nada, mas nós entendemos” (DICK, 2012,
130). No original: “The talent absorbs
everything; the esp-
lobe shrivels the balance
of the frontal area. But what do we care? We
get their prophecies. They pass on what we
need. They don’t understand any of it, but we
do”.
241
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
Em termos composicionais, a
demência dos precogs se explica por
dois motivos: por um lado, ela
transfere para a parte do “maquinário
analítico” do dispositivo a
responsabilidade pela interpretação
dos dados, uma vez que as visões
aparecem para os precogs
de maneira
desordenada e eles não dispõem de
capacidade cognitiva para
-las. Caso
a possuíssem, os computadores que
atuam na decifração das imagens do
futuro o teriam razão de existir no
conto. Assim, não haveria um
dispositivo analítico, mas apenas a
presença do sobrenatural, encarnada
na figura dos precogs
10
; por outro lado,
a demência desses seres especiais
reforça sua aura oculta e sobrenatural
eles são admirados e quase
santificados pelos seus dons, fato que
é muito mais explorado na versão
tográfica do conto.
A hipótese do controle das interpretações do
futuro originada da demência dos precogs é
nfirmada por Anderton: “O talento absorve
tudo. O lobo da percepção extrassensorial
reduz o equilíbrio da área frontal. Mas o que
isso nos importa? Temos suas profecias. Eles
transmitem o que precisamos.
Não entendem
nada, mas nós entendemos” (DICK, 2012,
p.
130). No original: “The talent absorbs
lobe shrivels the balance
of the frontal area. But what do we care? We
get their prophecies. They pass on what we
need. They don’t understand any of it, but we
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
Essa conjunção exótica de
elementos sobrenaturais e
pretensamente científicos que define,
no conto, o dispositivo de precognição
de crimes é retomada em outro trecho
da narrativa. Em cena de grande apelo
visual, Anderton, enquanto exa
de seu esconderijo em um hotel, um
dente quebrado em um espelho
também quebrado, escuta em uma
transmissão radiofônica as palavras
oficiais sobre o S
istema
que são repetidas em diferentes
aparelhos em vários quartos vizinhos:
o sistema de
três precogs tem
origem nos computadores de
meados deste século. Como são
verificados os resultados de um
computador eletrônico? Pela entrada
de dados num segundo computador
com estrutura idêntica. Mas dois
computadores o são suficientes.
Se cada computa
dor chegar a
respostas diferentes, é impossível
saber a priori qual é a correta. A
solução, baseada num criterioso
estudo estatístico, é usar um terceiro
computador para verificar os
resultados dos dois primeiros. Desse
modo, obtém-
se o chamado relatório
m
ajoritário. É possível supor, com
alta probabilidade, que a
concordância entre dois dos três
computadores indica qual dos
resultados alternativos é exato. Não
seria provável que dois
computadores chegassem a
s
oluções incorretas idênticas...
[...]
a unanimi
dade entre os três precogs
é um fenômeno desejado, mas
raramente alcançado, explica o
comissário interino, Witwer. É muito
mais comum obtermos um relatório
majoritário colaborativo, de dois
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
Essa conjunção exótica de
elementos sobrenaturais e
pretensamente científicos que define,
no conto, o dispositivo de precognição
de crimes é retomada em outro trecho
da narrativa. Em cena de grande apelo
visual, Anderton, enquanto exa
mina,
de seu esconderijo em um hotel, um
dente quebrado em um espelho
também quebrado, escuta em uma
transmissão radiofônica as palavras
istema
Pré-Crime,
que são repetidas em diferentes
aparelhos em vários quartos vizinhos:
três precogs tem
origem nos computadores de
meados deste século. Como são
verificados os resultados de um
computador eletrônico? Pela entrada
de dados num segundo computador
com estrutura idêntica. Mas dois
computadores o são suficientes.
dor chegar a
respostas diferentes, é impossível
saber a priori qual é a correta. A
solução, baseada num criterioso
estudo estatístico, é usar um terceiro
computador para verificar os
resultados dos dois primeiros. Desse
se o chamado relatório
ajoritário. É possível supor, com
alta probabilidade, que a
concordância entre dois dos três
computadores indica qual dos
resultados alternativos é exato. Não
seria provável que dois
computadores chegassem a
oluções incorretas idênticas...
dade entre os três precogs
é um fenômeno desejado, mas
raramente alcançado, explica o
comissário interino, Witwer. É muito
mais comum obtermos um relatório
majoritário colaborativo, de dois
precogs, acrescentado de um
relatório minoritário com uma leve
var
iação, geralmente relativa a
tempo e local, do terceiro mutante.
Isso é explicado pela teoria dos
futuros múltiplos. Caso existisse
apenas uma via temporal, a
informação precognitiva não teria a
menor importância, uma vez que, ao
possuirmos tal informação,
haveria possibilidade alguma de
alterar o futuro. No trabalho da
Divisão Pré-
Crime,
em primeiro lugar...
149)
Essas palavras, despejadas de
rádios que cercam Anderton em
quartos vizinhos ao seu, procuram
11
No original: “‘…the system
finds its genesis in the computers of the middle
decades of this century. How are the results of
an electronic computer checked? By feeding
data to a second computer of identical design.
But two computers are not sufficient. If each
comput
er arrived at a different answer, it is
impossible to tell a priori which is correct. The
solution, based on a careful study of statistical
method, is to utilize a third computer to check
the results of the first two. In this manner, a so
called majority r
eport is obtained. It can be
assumed with fair probability that the
agreement of two out of three computers
indicates which of the alternative results is
accurate. It would not be likely that two
computers would arrive at identically incorrect
solutions — ’
(…)
‘…unanimity of all three precogs is a hoped
but seldom achieved phenomenon, acting
Commissioner Witwer explains. It is much
more common to obtain a collaborative
majority report of two precogs, plus a
Report
of some slight variation, us
reference to time or place, from the third
mutant. This is explained by the theory of
multiple-
futures. If only one time
precognitive information would be of no
importance, since no possibility would exist, in
possessing this infor
mation, of altering the
future. In the Precrime Agency’s work we must
first of all assume —'”.
242
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
precogs, acrescentado de um
relatório minoritário com uma leve
iação, geralmente relativa a
tempo e local, do terceiro mutante.
Isso é explicado pela teoria dos
futuros múltiplos. Caso existisse
apenas uma via temporal, a
informação precognitiva não teria a
menor importância, uma vez que, ao
possuirmos tal informação,
não
haveria possibilidade alguma de
alterar o futuro. No trabalho da
Crime,
temos de supor,
em primeiro lugar...
11
(DICK, 2012, p.
Essas palavras, despejadas de
rádios que cercam Anderton em
quartos vizinhos ao seu, procuram
No original: “‘…the system
of three precogs
finds its genesis in the computers of the middle
decades of this century. How are the results of
an electronic computer checked? By feeding
data to a second computer of identical design.
But two computers are not sufficient. If each
er arrived at a different answer, it is
impossible to tell a priori which is correct. The
solution, based on a careful study of statistical
method, is to utilize a third computer to check
the results of the first two. In this manner, a so
-
eport is obtained. It can be
assumed with fair probability that the
agreement of two out of three computers
indicates which of the alternative results is
accurate. It would not be likely that two
computers would arrive at identically incorrect
‘…unanimity of all three precogs is a hoped
-for
but seldom achieved phenomenon, acting
-
Commissioner Witwer explains. It is much
more common to obtain a collaborative
majority report of two precogs, plus a
Minority
of some slight variation, us
ually with
reference to time or place, from the third
mutant. This is explained by the theory of
futures. If only one time
-path existed,
precognitive information would be of no
importance, since no possibility would exist, in
mation, of altering the
future. In the Precrime Agency’s work we must
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
trazer o selo
de garantia empírica
concedido pelo caráter pretensamente
científico de um sistema
computadorizado “basead[o] num
criterioso estudo estatístico”. Na cena,
um contraste se dá entre o conteúdo
dessas palavras e a figura de
Anderton, ambivalentemente
avalizador e obstáculo à
confiabilidade
no sistema que as palavras de Witwer
tentam reafirmar. Anderton, tendo
acesso a previsão de seu próprio
crime, procura fugir dessa previsão, o
que, inicialmente, provaria um erro do
sistema. O confronto com sua imagem
no espelho quebrado enq
uanto ouve o
discurso em defesa do sistema
Crime de
seu esconderijo captura em
rico quadro a encruzilhadas de
ambivalências que o conto cria.
Essa ambivalência entre
elementos racionais e irracionais que o
conto cria na figura no dispositivo de
previs
ão de crimes foi detectada por
Theodor Adorno em seu estudo da
coluna de astrologia do
Los Angeles
Times
(ADORNO, 2008). Em seu
estudo, Adorno procura evidenciar a
“...configuração do racional e do
irracional na astrologia” (ADORNO,
2008) e que à conclusão
de que
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GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
de garantia empírica
concedido pelo caráter pretensamente
científico de um sistema
computadorizado “basead[o] num
criterioso estudo estatístico”. Na cena,
um contraste se dá entre o conteúdo
dessas palavras e a figura de
Anderton, ambivalentemente
confiabilidade
no sistema que as palavras de Witwer
tentam reafirmar. Anderton, tendo
acesso a previsão de seu próprio
crime, procura fugir dessa previsão, o
que, inicialmente, provaria um erro do
sistema. O confronto com sua imagem
uanto ouve o
discurso em defesa do sistema
Pré-
seu esconderijo captura em
rico quadro a encruzilhadas de
ambivalências que o conto cria.
Essa ambivalência entre
elementos racionais e irracionais que o
conto cria na figura no dispositivo de
ão de crimes foi detectada por
Theodor Adorno em seu estudo da
Los Angeles
(ADORNO, 2008). Em seu
estudo, Adorno procura evidenciar a
“...configuração do racional e do
irracional na astrologia” (ADORNO,
de que
de forma muito semelhante à
indústria cultural, a astrologia tende
a eliminar a distinção entre fato e
ficção: seu conteúdo é muitas vezes
exageradamente realista, ao mesmo
tempo que sugere atitudes baseadas
em fontes inteiramente irracionais,
com
o o conselho de se evitar fechar
negócios em determinado dia.
(ADORNO, 2008, p. 59)
Alegoricamente, as
ambivalências entre sobrenatural e
empírico-
científico sintetizadas no
dispositivo Pré-
Crime
impasses do processo de
algoriti
mização da vida
apresentado em diversos exemplos.
De fato, a dependência de elementos
sobrenaturais (as visões dos precogs)
confere ao sistema todo uma
incontornável variável de incerteza que
interdita o domínio completo da frieza
analítica do algoritmo.
As ambiva
lências sobre a
margem de certeza do sistema são
mantidas até o final. Anderton, ao ver
a relatório de um dos precogs que
prevê sua ação homicida, cria um
novo futuro em que ele decide não
matar. Esse novo caminho interfere no
próximo relatório, que o inco
como dado. Ao final do conto,
Anderton decide matar para não
desacreditar o sistema. Dessa forma,
cria-
se um final ambivalente em que
243
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
de forma muito semelhante à
indústria cultural, a astrologia tende
a eliminar a distinção entre fato e
ficção: seu conteúdo é muitas vezes
exageradamente realista, ao mesmo
tempo que sugere atitudes baseadas
em fontes inteiramente irracionais,
o o conselho de se evitar fechar
negócios em determinado dia.
(ADORNO, 2008, p. 59)
Alegoricamente, as
ambivalências entre sobrenatural e
científico sintetizadas no
Crime
s figuram os
impasses do processo de
mização da vida
aqui
apresentado em diversos exemplos.
De fato, a dependência de elementos
sobrenaturais (as visões dos precogs)
confere ao sistema todo uma
incontornável variável de incerteza que
interdita o domínio completo da frieza
analítica do algoritmo.
lências sobre a
margem de certeza do sistema são
mantidas até o final. Anderton, ao ver
a relatório de um dos precogs que
prevê sua ação homicida, cria um
novo futuro em que ele decide não
matar. Esse novo caminho interfere no
próximo relatório, que o inco
rpora
como dado. Ao final do conto,
Anderton decide matar para não
desacreditar o sistema. Dessa forma,
se um final ambivalente em que
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
coexistem o livre-arbítrio
, uma vez que
Anderton se convence a matar para
provar que o sistema funciona, e a
confirmação do próprio sistema que
restringe a autonomia humana, que
Anderton, de fato, comete o
assassinato que está previsto de
acontecer. Assim sendo
, não se pode
conc
luir que o conto se encerre com a
vitória do livre-
arbítrio, uma vez que,
ainda que a decisão de matar seja
consciente e planejada como uma
medida necessária para evitar um mal
maior, ela de fato cumpre a previsão
dos precogs. A ambiguidade aqui é
instruti
va, visto que sintetiza
figurativamente os impasses de uma
equação (livre-
arbítrio x racionalização
total da experiência humana) para o
qual ainda não se achou um resultado
plenamente satisfatório.
Conclusão:
Minority Report
capitalismo de vigilância
Em um mundo governado por
algoritmos, nos quais deposita
crença de infalibilidade da ciência,
muitas vezes somos conduzidos
assim como Witwer, apenas por meio
das informações que se tornam
públicas, sem saber ao certo como o
cruzamento de dados são
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
, uma vez que
Anderton se convence a matar para
provar que o sistema funciona, e a
confirmação do próprio sistema que
restringe a autonomia humana, que
Anderton, de fato, comete o
assassinato que está previsto de
, não se pode
luir que o conto se encerre com a
arbítrio, uma vez que,
ainda que a decisão de matar seja
consciente e planejada como uma
medida necessária para evitar um mal
maior, ela de fato cumpre a previsão
dos precogs. A ambiguidade aqui é
va, visto que sintetiza
figurativamente os impasses de uma
arbítrio x racionalização
total da experiência humana) para o
qual ainda não se achou um resultado
Minority Report
e o
Em um mundo governado por
algoritmos, nos quais deposita
-se a
crença de infalibilidade da ciência,
muitas vezes somos conduzidos
,
assim como Witwer, apenas por meio
das informações que se tornam
públicas, sem saber ao certo como o
cruzamento de dados são
responsáveis pela modulação de
comportamentos e qual o seu alcance
para definir decisões futuras.
Um exemplo
aproxima
do mundo imaginado em
Minority Report
e retoma a discussão
sobre justiça
e livre
utilização do software
acrônimo de
Correctional Offender
Management Profiling for Alternative
Sanctions
12
, criado pela empresa
estadunidense
Equivant
segundo o manual do usuário
disponível no site oficial
funciona como um sistema de
gerenciamento para profis
justiça criminal
que tem por objetivo
auxiliar decisões nos casos de pré
julgamento, prisão e liberdade
condicional. O
COMPAS Core
desenvolvido para analisar dados de
homens e mulheres infratores que
podem ou não estar em cárcere.
Ainda seg
undo o manual do
usuário, os primeiros estudos para o
desenvolvimento do software
começaram em 1998 com base em
12
Tradução: Gerenciamento de Perfis de
Infratores para Penas Alternativas
13
http://www.equivant.com/wp
content/uploads/Practitioners
COMPAS-Core-
040419.pdf. A
mar.2020.
244
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
responsáveis pela modulação de
comportamentos e qual o seu alcance
para definir decisões futuras.
Um exemplo
real que se
do mundo imaginado em
e retoma a discussão
e livre
-arbítrio é a
utilização do software
COMPAS,
Correctional Offender
Management Profiling for Alternative
, criado pela empresa
Equivant
e que,
segundo o manual do usuário
disponível no site oficial
da empresa
13
,
funciona como um sistema de
gerenciamento para profis
sionais da
que tem por objetivo
auxiliar decisões nos casos de pré
-
julgamento, prisão e liberdade
COMPAS Core
foi
desenvolvido para analisar dados de
homens e mulheres infratores que
podem ou não estar em cárcere.
undo o manual do
usuário, os primeiros estudos para o
desenvolvimento do software
começaram em 1998 com base em
Tradução: Gerenciamento de Perfis de
Infratores para Penas Alternativas
.
http://www.equivant.com/wp
-
content/uploads/Practitioners
-Guide-to-
040419.pdf. A
cesso: 23
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
dois modelos de risco: risco geral de
reincidência e risco geral de
reincidência violenta. O modelo da
programação do software tem como
referênc
ia estudos que apontam que
avaliações estatísticas tendem a ser
superiores
(grifo nosso) ao julgamento
humano.
O software funciona cruzando
os dados de casos específicos
informados pelos profissionais da
justiça criminal com informações
disponíveis no
banco de dados. Assim,
o software é capaz de calcular uma
pontuação para cada indivíduo de
acordo com os modelos de risco e
definir qual seria a sentença
diante dos resultados.
A empresa defende o ideário da
big data e do
machine learning
soluções mais precisas e menos
tendenciosas para definir as
sentenças. Entretanto, um estudo
recente (DRESSEL;
FARID, 2018)
aponta que esse ideário não
corresponde à realidade e afirma que
as sentenças dadas pelo software
equivalem a previsões feitas
pessoas com pouco ou nenhum
conhecimento jurídico.
Assim como no conto de Dick,
estamos diante da naturalização de
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
dois modelos de risco: risco geral de
reincidência e risco geral de
reincidência violenta. O modelo da
programação do software tem como
ia estudos que apontam que
avaliações estatísticas tendem a ser
(grifo nosso) ao julgamento
O software funciona cruzando
os dados de casos específicos
informados pelos profissionais da
justiça criminal com informações
banco de dados. Assim,
o software é capaz de calcular uma
pontuação para cada indivíduo de
acordo com os modelos de risco e
definir qual seria a sentença
mais justa
A empresa defende o ideário da
machine learning
como
soluções mais precisas e menos
tendenciosas para definir as
sentenças. Entretanto, um estudo
FARID, 2018)
aponta que esse ideário não
corresponde à realidade e afirma que
as sentenças dadas pelo software
equivalem a previsões feitas
por
pessoas com pouco ou nenhum
Assim como no conto de Dick,
estamos diante da naturalização de
um discurso que coloca a segurança
frente da privacidade e do livre arbítrio.
Governos totalitários utilizam a
tecnologia digital
para vigiar e punir
seus cidadãos. Na China, por
exemplo, foi adotado um sistema de
pontuação,
Sesame Credit
dados e avalia o comportamento de
cada cidadão de acordo com suas
finanças e suas relações com o
governo. Segundo Zuboff (2019), o
sist
ema produz um perfil holístico que
avalia além de pagamentos de contas
e empréstimos. Critérios como
qualidade e quantidade de amigos,
históricos de compras e nível escolar
também interferem na qualificação do
cidadão dentro do
Sesame Credit
As consequências dessa
avaliação são tão profundas que
pessoas com uma baixa pontuação
são marginalizadas pelos próprios
amigos, que temem ter seus números
afetados. Assim como acontece no
COMPAS
, a lógica da desigualdade é
propagada no
Sesame Credit
sistema dificulta a mobilidade social.
Os critérios de julgamento
criminal no conto de Dick são muito
mais sujeitos a
deslizes
adotados pelos algoritmos, pois
dependem das visões dos precogs e
245
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
um discurso que coloca a segurança
à
frente da privacidade e do livre arbítrio.
Governos totalitários utilizam a
para vigiar e punir
seus cidadãos. Na China, por
exemplo, foi adotado um sistema de
Sesame Credit
, que cruza
dados e avalia o comportamento de
cada cidadão de acordo com suas
finanças e suas relações com o
governo. Segundo Zuboff (2019), o
ema produz um perfil holístico que
avalia além de pagamentos de contas
e empréstimos. Critérios como
qualidade e quantidade de amigos,
históricos de compras e nível escolar
também interferem na qualificação do
Sesame Credit
.
As consequências dessa
avaliação são tão profundas que
pessoas com uma baixa pontuação
são marginalizadas pelos próprios
amigos, que temem ter seus números
afetados. Assim como acontece no
, a lógica da desigualdade é
Sesame Credit
, que o
sistema dificulta a mobilidade social.
Os critérios de julgamento
criminal no conto de Dick são muito
deslizes
do que os
adotados pelos algoritmos, pois
dependem das visões dos precogs e
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
de um complexo sistema de
checagens e rechecage
ns baseado
em computadores. Entretanto, existe
um caráter de interpretação que
também apresenta vestígios na
programação algorítmica. Tal
interpretação está presente naquilo
que Ierardo (2018) define como a
consciência do programador frente a
um modus cogitandi
instrumental
econômico-
liberal insistente de um
capitalismo que sempre transforma,
mas que nunca altera seu princípio
constante: a otimização de ganâncias
e do poder econômico como um valor
de si mesmo” (IERARDO, 2018, p. 28)
(tradução nossa).
A col
onização da internet se
em um recorte histórico propício à falta
de debate, especialmente aqueles que
são considerados
políticos
(2000), ao descrever a gica do pós
modernismo como uma dominante
cultural, aponta que a predileção pela
estética
“degradada” não acontece
somente no campo cultural, na
predileção por “seriados de TV e da
cultura Reader’s Digest”
, ressaltando
que o pós-
modernismo é, ao mesmo
tempo, “necessariamente uma posição
política, implícita ou explícita, com
respeito à natureza
do capitalismo
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GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
9, p.
de um complexo sistema de
ns baseado
em computadores. Entretanto, existe
um caráter de interpretação que
também apresenta vestígios na
programação algorítmica. Tal
interpretação está presente naquilo
que Ierardo (2018) define como a
consciência do programador frente a
instrumental
liberal insistente de um
capitalismo que sempre transforma,
mas que nunca altera seu princípio
constante: a otimização de ganâncias
e do poder econômico como um valor
de si mesmo” (IERARDO, 2018, p. 28)
onização da internet se
em um recorte histórico propício à falta
de debate, especialmente aqueles que
políticos
. Jameson
(2000), ao descrever a gica do pós
-
modernismo como uma dominante
cultural, aponta que a predileção pela
“degradada” não acontece
somente no campo cultural, na
predileção por “seriados de TV e da
, ressaltando
modernismo é, ao mesmo
tempo, “necessariamente uma posição
política, implícita ou explícita, com
do capitalismo
multinacional” (JAMESON, 2000, p.
29)
Para Harari
arbítrio é a principal base do
liberalismo, pois, segundo o autor, é o
ideário da singularidade do indivíduo
que permite que esse sistema
funcione, tanto polític
economicamente. O homem da pós
modernidade de Jameson ou do
liberalismo de Harari naturalizaram
práticas que prezam pela segurança
individual, pela personalização e pela
facilidade, mesmo que isso signifique
sacrificar a privacidade.
A sociedade i
maginada por Dick
aceita a D
ivisão
quanto a nossa aceita as políticas de
privacidade das grandes empresas
que controlam o fluxo de dados na
internet. No início da narrativa,
informados de que o Sistema
Crime reduziu
o número de cr
violentos em
99,8%
131), enfatizando o lado positivo
sujeição a tal sistema
semelhante ao que acontece com o
discurso adotado nas políticas de
privacidade ao afirmarem que a coleta
de dados funciona para melhorar e
personalizar a experiência de cada
usuário.
246
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(Dossiê Cultura, Tecnologia e Sociedade
)
multinacional” (JAMESON, 2000, p.
Para Harari
(2015), o livre-
arbítrio é a principal base do
liberalismo, pois, segundo o autor, é o
ideário da singularidade do indivíduo
que permite que esse sistema
funcione, tanto polític
a quanto
economicamente. O homem da pós
-
modernidade de Jameson ou do
liberalismo de Harari naturalizaram
práticas que prezam pela segurança
individual, pela personalização e pela
facilidade, mesmo que isso signifique
sacrificar a privacidade.
maginada por Dick
ivisão
Pré-Crime tanto
quanto a nossa aceita as políticas de
privacidade das grandes empresas
que controlam o fluxo de dados na
internet. No início da narrativa,
somos
informados de que o Sistema
Pré-
o número de cr
imes
99,8%
(DICK, 2012, p.
131), enfatizando o lado positivo
da
sujeição a tal sistema
, muito
semelhante ao que acontece com o
discurso adotado nas políticas de
privacidade ao afirmarem que a coleta
de dados funciona para melhorar e
personalizar a experiência de cada
GUIRAU, Marcelo Cizaurre; FERREIRA, Ana Elisa S. C. da S. Minority
Report e o governo da distopia algorítmica.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 1
232-248, set. 2020.
Mas, assim como no conto, o
preço a se pagar pela segurança é
el
evado. A personalização dos
serviços tornou-
se pouco a pouco uma
manobra de modulação de
comportamentos,
amplamente utilizada no capitalismo
de vigilância que tem desdobramentos
profundos no Estado de direito.
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- Revista
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9, p.
Mas, assim como no conto, o
preço a se pagar pela segurança é
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se pouco a pouco uma
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amplamente utilizada no capitalismo
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