ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
358-385, março 2021.
instalaria em cada esquina um
prostíbulo e em cada quarteirão uma
casa de tavolagem; escolheria, como
seus auxiliares, indivíduos
analfabetos, inescrupulosos e
subservientes; dilapidaria o
patrimônio das autarquias, das
empresas de economia mista e das
con
públicos; lindas meretrizes seriam
rifadas pela Loteria Federal, a cinco
mil cruzeiros o bilhete da dezena;
sabendo que na China os mandarins
se reciclavam no “divã do ópio”,
criaria para todos os brasileiros o
forma os nossos patrícios ficariam
cretinizados, com a inteligência
embotada; limitaria ao mínimo a
nossa produção agrícola, e de tal
maneira que teríamos de importar
cebolas do Egito, alhos do Chile,
batatas da Holanda e rabanetes do
Paraguai;
incrementaria a indústria
das matérias graxas do Estado,
destinada à fabricação de sabonetes
extraídas da gordura dos cadáveres;
obrigaria os ginasianos a
aprenderem
livrescos inçados de erros do
escrevinhador R. Magalhães Junior;
o
rganizaria o roubo e o crime, e
neste sentido tomaria por modelo a
célebre
Company
época de 1930; haveria de contratar
eficientes assassinos da Máfia e da
Camorra napolitana, assassinos tão
terríveis gangsters
Unidos; entregaria à Bélgica, ou à
Noruega, ou à Alemanha, as nossas
jazidas de calcário e de areias
monazíticas, as lavras de petróleo do
Recôncavo baiano, os itabiritos da
serra do Espinhaço, o manganês do
Riach
o de Santana, a bauxita de
Paramirim, o cobre da mina
Camacuâ, do Rio Grande do Sul, as
riquezas do subsolo da região
amazônica, os enormes depósitos de
óxidos metaloides, as centenas de
milhões de toneladas de ferro, de
sulfatos de chumbo, de sal
volframita, de tantalita, de cassiterita
e de dezenas de outras coisas
terminadas em “ita”! (
p. 323-324).
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
. PragMATIZES - Revista
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
instalaria em cada esquina um
prostíbulo e em cada quarteirão uma
casa de tavolagem; escolheria, como
seus auxiliares, indivíduos
analfabetos, inescrupulosos e
subservientes; dilapidaria o
patrimônio das autarquias, das
empresas de economia mista e das
públicos; lindas meretrizes seriam
rifadas pela Loteria Federal, a cinco
mil cruzeiros o bilhete da dezena;
sabendo que na China os mandarins
se reciclavam no “divã do ópio”,
criaria para todos os brasileiros o
orque desta
forma os nossos patrícios ficariam
cretinizados, com a inteligência
embotada; limitaria ao mínimo a
nossa produção agrícola, e de tal
maneira que teríamos de importar
cebolas do Egito, alhos do Chile,
batatas da Holanda e rabanetes do
incrementaria a indústria
das matérias graxas do Estado,
destinada à fabricação de sabonetes
extraídas da gordura dos cadáveres;
obrigaria os ginasianos a
nos
livrescos inçados de erros do
escrevinhador R. Magalhães Junior;
rganizaria o roubo e o crime, e
neste sentido tomaria por modelo a
época de 1930; haveria de contratar
eficientes assassinos da Máfia e da
Camorra napolitana, assassinos tão
mo os mais
dos Estados
Unidos; entregaria à Bélgica, ou à
Noruega, ou à Alemanha, as nossas
jazidas de calcário e de areias
monazíticas, as lavras de petróleo do
Recôncavo baiano, os itabiritos da
serra do Espinhaço, o manganês do
o de Santana, a bauxita de
Paramirim, o cobre da mina
Camacuâ, do Rio Grande do Sul, as
riquezas do subsolo da região
amazônica, os enormes depósitos de
óxidos metaloides, as centenas de
milhões de toneladas de ferro, de
sulfatos de chumbo, de sal
-gema, de
volframita, de tantalita, de cassiterita
e de dezenas de outras coisas
2003,
esconder a farsa dessa tragédia,
Piranha concluía:
“-
Eu sou o próprio retrato humano
do Brasil! -
-
Se esta nação tivesse que virar
gente, viraria Piranha da Fonseca
325).
O que a saga de Piranha da
Fonseca Albuquerque nos revela,
seguindo a linha aberta por Leonardo
Filho, é a metamorfose do significado
do ma
landro que, sem abandonar a
dialética da ordem e da desordem, se
torna símbolo de um fenômeno
negativo. No entanto, não representa
isso a superação da esperteza, da
malandragem como “poder dos
fracos”, para uma forma negativa de
expressão cultural: a corrupção. “O
malandro pra valer”, diz o samba,
permaneceu marginalizado, agora, não
mais por Vidigal ou o Inspetor Chaves,
mas pelos moralistas conservadores
de ocasião. De certa forma, Piranha da
Fonseca Albuquerque encarna, nele
mesmo, um misto de político com
miliciano; literariamente, é a
13
A malicia, na leitura de Zonzon (2014),
constitui um dos fundamentos do jogo da
capoeira, inclusive, na constituição da
capoeira como “arte da malandragem”.
377
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
)
esconder a farsa dessa tragédia,
Eu sou o próprio retrato humano
andidato.
Se esta nação tivesse que virar
gente, viraria Piranha da Fonseca
JORGE, 2003, p.
O que a saga de Piranha da
Fonseca Albuquerque nos revela,
seguindo a linha aberta por Leonardo
Filho, é a metamorfose do significado
landro que, sem abandonar a
dialética da ordem e da desordem, se
torna símbolo de um fenômeno
negativo. No entanto, não representa
isso a superação da esperteza, da
13
, enfim, da
malandragem como “poder dos
fracos”, para uma forma negativa de
expressão cultural: a corrupção. “O
malandro pra valer”, diz o samba,
permaneceu marginalizado, agora, não
mais por Vidigal ou o Inspetor Chaves,
mas pelos moralistas conservadores
de ocasião. De certa forma, Piranha da
Fonseca Albuquerque encarna, nele
mesmo, um misto de político com
miliciano; literariamente, é a
A malicia, na leitura de Zonzon (2014),
constitui um dos fundamentos do jogo da
capoeira, inclusive, na constituição da
capoeira como “arte da malandragem”.