ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
A “arte da malandragem” entre a farsa e a tragédia
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v11i2
Resumo: A obra
literária não é uma fala sobre a realidade, mas um modo de falar a sociedade. Com
base nessa premissa etnográfica, o texto explora a relação simbólica da literatura com alguns
momentos da história cultural e política brasileira desde o Império. O objetivo
de significado da malandragem ao longo do tempo destacando suas aproximações e diferenças com
outras categorias do imaginário cultural e político brasileiro como o favor, o jeitinho, a corrupção, que
embora vistos com desconfiança e de
aspectos significativos da realidade contemporânea. Assim a “arte da malandragem”, entendida como
um conjunto de representações e práticas simbólicas, constitui uma narrativa de longa duração na
q
ual se revela o drama de uma sociedade cuja história oscila entre a farsa e a tragédia.
Palavras-chave:
Favor; malandragem; jeitinho; corrupção; farsa; tragédia.
El "arte de las artimañas" entre la farsa y la tragedia
duración
Resumen
sociedad. Basado en esta premisa etnográfica, el texto explora la relación simbólica de la literatura
con algunos momentos de la historia cultural y
analizar el cambio de significado de malandragem a lo largo del tiempo destacando sus
aproximaciones y diferencias con otras categorías del imaginario cultural y político brasileño, como el
favor, el cami
no, la corrupción, que aunque se ve con recelo y descrédito hoy en día, todavía revela
de una manera densa y crítica aspectos significativos de la realidad contemporánea. Así, el "arte de
malandragem", entendido como un conjunto de representaciones y práct
una narrativa duradera en la que se revela el drama de una sociedad cuya historia oscila
farsa y la tragedia.
Palabras clave
: Favor; engaño; sentido; corrupción; farsa; tragedia.
1
Gilmar Rocha.
Doutor Antropologia Cultural (PPGSA/IFCS/UFRJ). Professor do Departamento de
Artes e Estudos Culturais (RAE) e do Programa de Pós Graduação Cultura e Territorialidades
(PPCULT) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. E
https://orcid.org/0000-0002-
1398
Texto recebido em 27/1
0/2020, aceit
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
A “arte da malandragem” entre a farsa e a tragédia
-
uma narrativa dramática
de longa duração
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v11i2
0.46951
literária não é uma fala sobre a realidade, mas um modo de falar a sociedade. Com
base nessa premissa etnográfica, o texto explora a relação simbólica da literatura com alguns
momentos da história cultural e política brasileira desde o Império. O objetivo
é analisar a mudança
de significado da malandragem ao longo do tempo destacando suas aproximações e diferenças com
outras categorias do imaginário cultural e político brasileiro como o favor, o jeitinho, a corrupção, que
embora vistos com desconfiança e de
scrédito hoje, ainda assim revelam de forma densa e critica
aspectos significativos da realidade contemporânea. Assim a “arte da malandragem”, entendida como
um conjunto de representações e práticas simbólicas, constitui uma narrativa de longa duração na
ual se revela o drama de uma sociedade cuja história oscila entre a farsa e a tragédia.
Favor; malandragem; jeitinho; corrupção; farsa; tragédia.
El "arte de las artimañas" entre la farsa y la tragedia
-
una narrativa dramática de larga
: La obra literaria no es un discurso sobre la realidad, sino una forma de hablar a la
sociedad. Basado en esta premisa etnográfica, el texto explora la relación simbólica de la literatura
con algunos momentos de la historia cultural y
política brasileña desde el Imperio. El objetivo es
analizar el cambio de significado de malandragem a lo largo del tiempo destacando sus
aproximaciones y diferencias con otras categorías del imaginario cultural y político brasileño, como el
no, la corrupción, que aunque se ve con recelo y descrédito hoy en día, todavía revela
de una manera densa y crítica aspectos significativos de la realidad contemporánea. Así, el "arte de
malandragem", entendido como un conjunto de representaciones y práct
icas simbólicas, constituye
una narrativa duradera en la que se revela el drama de una sociedad cuya historia oscila
: Favor; engaño; sentido; corrupción; farsa; tragedia.
Doutor Antropologia Cultural (PPGSA/IFCS/UFRJ). Professor do Departamento de
Artes e Estudos Culturais (RAE) e do Programa de Pós Graduação Cultura e Territorialidades
(PPCULT) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. E
-mail:
gr@id.uff.br
1398
-3742
0/2020, aceit
o para publicação em 24/11
/2020 e disponibilizado online
em 01/03/2021.
358
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
uma narrativa dramática
Gilmar Rocha
1
literária não é uma fala sobre a realidade, mas um modo de falar a sociedade. Com
base nessa premissa etnográfica, o texto explora a relação simbólica da literatura com alguns
é analisar a mudança
de significado da malandragem ao longo do tempo destacando suas aproximações e diferenças com
outras categorias do imaginário cultural e político brasileiro como o favor, o jeitinho, a corrupção, que
scrédito hoje, ainda assim revelam de forma densa e critica
aspectos significativos da realidade contemporânea. Assim a “arte da malandragem”, entendida como
um conjunto de representações e práticas simbólicas, constitui uma narrativa de longa duração na
ual se revela o drama de uma sociedade cuja história oscila entre a farsa e a tragédia.
una narrativa dramática de larga
: La obra literaria no es un discurso sobre la realidad, sino una forma de hablar a la
sociedad. Basado en esta premisa etnográfica, el texto explora la relación simbólica de la literatura
política brasileña desde el Imperio. El objetivo es
analizar el cambio de significado de malandragem a lo largo del tiempo destacando sus
aproximaciones y diferencias con otras categorías del imaginario cultural y político brasileño, como el
no, la corrupción, que aunque se ve con recelo y descrédito hoy en día, todavía revela
de una manera densa y crítica aspectos significativos de la realidad contemporánea. Así, el "arte de
icas simbólicas, constituye
una narrativa duradera en la que se revela el drama de una sociedad cuya historia oscila
entre la
Doutor Antropologia Cultural (PPGSA/IFCS/UFRJ). Professor do Departamento de
Artes e Estudos Culturais (RAE) e do Programa de Pós Graduação Cultura e Territorialidades
gr@id.uff.br
-
/2020 e disponibilizado online
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
The “art of trickery” between
burlesque and tragedy
Abstract:
This literary work is not a speech about reality, but a way of speaking to society. Based on
this ethnographic premise, the text explores the symbolic relationship between literature and
moments of Brazilian cultural and political history since the Empire. The objective is to analyze the
change in the meaning of trickery over time, highlighting its similarities and differences with other
categories of Brazilian cultural and political
which although viewed with suspicion and discredit today, still reveal in a dense and critical way
significant aspects of contemporary reality. Thus, the art of trickery”, understood as a set of sy
representations and practices, constitutes a long
whose history oscillates between mock and tragedy is revealed.
Keywords:
Favor; trickery; Brazilian way; corruption; humbug; tragedy.
A “arte da malandragem” entre a farsa e a tragédia
Introdução
Este ensaio nasce
inquietação germinada com os
acontecimentos dos últimos anos no
país. O ponto de partida é
a impressão
de que vivemos hoje, à exemplo de
outros momentos na história, uma
infeliz repetição que traz de volta o
apotegma de Marx n’
Brumário de
Luís Bonaparte
ele diz: “Hegel observa em uma de
suas obras que todos os fatos e
personagens de grande importância na
história do mundo ocorrem, por assim
dizer, duas vezes. E esqueceu
acrescentar: a primeira vez como
tragédia, a segunda como
(MARX,
1978, p. 329). Mas, nossa
história parece ser mais trágica, talvez
porque encompasse a farsa;
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
burlesque and tragedy
- a long-
lasting dramatic narrative
This literary work is not a speech about reality, but a way of speaking to society. Based on
this ethnographic premise, the text explores the symbolic relationship between literature and
moments of Brazilian cultural and political history since the Empire. The objective is to analyze the
change in the meaning of trickery over time, highlighting its similarities and differences with other
categories of Brazilian cultural and political
imagery such as favor, the Brazilian way, the corruption,
which although viewed with suspicion and discredit today, still reveal in a dense and critical way
significant aspects of contemporary reality. Thus, the art of trickery”, understood as a set of sy
representations and practices, constitutes a long
-
lasting narrative in which the drama of a society
whose history oscillates between mock and tragedy is revealed.
Favor; trickery; Brazilian way; corruption; humbug; tragedy.
A “arte da malandragem” entre a farsa e a tragédia
-
uma narrativa dramática
de longa duração
Este ensaio nasce
de uma
inquietação germinada com os
acontecimentos dos últimos anos no
a impressão
de que vivemos hoje, à exemplo de
outros momentos na história, uma
infeliz repetição que traz de volta o
apotegma de Marx n’
O Dezoito
Luís Bonaparte
quando
ele diz: “Hegel observa em uma de
suas obras que todos os fatos e
personagens de grande importância na
história do mundo ocorrem, por assim
dizer, duas vezes. E esqueceu
-se de
acrescentar: a primeira vez como
tragédia, a segunda como
farsa"
1978, p. 329). Mas, nossa
história parece ser mais trágica, talvez
porque encompasse a farsa;
invertendo, por assim dizer, o
veredicto de Marx.
O interesse pelo tema da
malandragem no momento em que os
escândalos de corrupção, então
espetacu
larizados nos meios de
comunicação tomam conta do país,
denuncia mais do que uma farsa
senão um trágico parentesco de
origem que reverbera estruturalmente
como gênero de drama social que
atravessa nossa história desde ao
menos o “tempo do rei”
acentua no curso da história
republicana.
2
Referência a frase inicial de Manuel Antônio
de Almeida em
Memórias de um sargento de
milícias
, romance que na leitura de Antônio
Cândido (1988) introduz o malandro na
novelística nacional brasileira.
359
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
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Fluxo Contínuo
)
lasting dramatic narrative
This literary work is not a speech about reality, but a way of speaking to society. Based on
this ethnographic premise, the text explores the symbolic relationship between literature and
some
moments of Brazilian cultural and political history since the Empire. The objective is to analyze the
change in the meaning of trickery over time, highlighting its similarities and differences with other
imagery such as favor, the Brazilian way, the corruption,
which although viewed with suspicion and discredit today, still reveal in a dense and critical way
significant aspects of contemporary reality. Thus, the art of trickery”, understood as a set of sy
mbolic
lasting narrative in which the drama of a society
uma narrativa dramática
invertendo, por assim dizer, o
O interesse pelo tema da
malandragem no momento em que os
escândalos de corrupção, então
larizados nos meios de
comunicação tomam conta do país,
denuncia mais do que uma farsa
senão um trágico parentesco de
origem que reverbera estruturalmente
como gênero de drama social que
atravessa nossa história desde ao
menos o “tempo do rei”
2
, e que se
acentua no curso da história
Referência a frase inicial de Manuel Antônio
Memórias de um sargento de
, romance que na leitura de Antônio
Cândido (1988) introduz o malandro na
novelística nacional brasileira.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
Qual o significado da
malandragem no Brasil hoje? A
pergunta tem razão de ser, pois o
significado da malandragem no Brasil
de ontem, parece nos conduzir a uma
visão contrária ao drama vivido
atualmente com relação
escândalos de corrupção e de
violência; muito embora escandalosa
mesmo é a desigualdade social
fenômeno estrutural -
no “país da
malandragem”. Frente às inúmeras
denúncias de corrupção que, para
além dos escândalos trazidos à tona
com a “Lava Jato”
3
,
grassam nos mais
variados setores da vida pública no
país em nível municipal, estadual e
federal, nas mais variadas áreas como
saúde, educação, segurança,
envolvendo empreiteiras, prestadores
de serviços, políticos, milicianos,
servidores públicos, empres
juízes etc., a malandragem ganha
contornos românticos e nostálgicos
como símbolo de uma época distante
3
Um dos mais famosos esquemas de
corrupção já denunc
iado no país, cuja
espetacularização política e moralista
encapsula o verdadeiro problema da
sociedade brasileira: a nossa colonial
desigualdade social.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
Qual o significado da
malandragem no Brasil hoje? A
pergunta tem razão de ser, pois o
significado da malandragem no Brasil
de ontem, parece nos conduzir a uma
visão contrária ao drama vivido
atualmente com relação
aos
escândalos de corrupção e de
violência; muito embora escandalosa
mesmo é a desigualdade social
-
no “país da
malandragem”. Frente às inúmeras
denúncias de corrupção que, para
além dos escândalos trazidos à tona
grassam nos mais
variados setores da vida pública no
país em nível municipal, estadual e
federal, nas mais variadas áreas como
saúde, educação, segurança,
envolvendo empreiteiras, prestadores
de serviços, políticos, milicianos,
servidores públicos, empres
ários,
juízes etc., a malandragem ganha
contornos românticos e nostálgicos
como símbolo de uma época distante
Um dos mais famosos esquemas de
iado no país, cuja
espetacularização política e moralista
encapsula o verdadeiro problema da
sociedade brasileira: a nossa colonial
e, até certo ponto, de um “mundo sem
culpa”
4
.
A verdade é que a
malandragem constitui um sistema
amplo, complexo e desafiador, se se
leva em con
ta a multivocalidade das
categorias que a compõem, tais como:
favor, jeitinho, corrupção, gambiarra
(NASCIMENTO, 2017). Embora
subscrevam práticas sociais diferentes
desenvolvidas ao longo do tempo,
muitas vezes essas categorias são
tomadas como sinônimas,
exemplo, Roberto DaMatta define o
malandro um “profissional do jeitinho”
(1986, p. 102). Podemos então nos
perguntar: qual o grau de parentesco
entre essas categorias? A corrupção
de hoje é filha da malandragem de
ontem? um
continnum
en
tre esses fenômenos? São eles a
dupla face de Jano? Malandros,
bandidos, políticos e milicianos, quiçá,
empresários, são a expressão facial de
um hipodigma?
5
4
De certa forma, a tese do “mundo sem
culpa”, enunciada por Antônio Candido
começa a ser idealizada já
1950, segundo Michel Misse (1999).
5
Conceito utilizado por Cavalcanti Proença
(1978), para caracterizar
Macunaíma o herói
sem nenhum caráter
cujo significado remete a
ideia do personagem ser portador de todos os
caracteres conhecidos de
espécie, no caso, o malandro.
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
e, até certo ponto, de um “mundo sem
A verdade é que a
malandragem constitui um sistema
amplo, complexo e desafiador, se se
ta a multivocalidade das
categorias que a compõem, tais como:
favor, jeitinho, corrupção, gambiarra
(NASCIMENTO, 2017). Embora
subscrevam práticas sociais diferentes
desenvolvidas ao longo do tempo,
muitas vezes essas categorias são
tomadas como sinônimas,
por
exemplo, Roberto DaMatta define o
malandro um “profissional do jeitinho”
(1986, p. 102). Podemos então nos
perguntar: qual o grau de parentesco
entre essas categorias? A corrupção
de hoje é filha da malandragem de
continnum
sociológico
tre esses fenômenos? São eles a
dupla face de Jano? Malandros,
bandidos, políticos e milicianos, quiçá,
empresários, são a expressão facial de
Sem pretender
De certa forma, a tese do “mundo sem
culpa”, enunciada por Antônio Candido
começa a ser idealizada já
nos idos dos anos
1950, segundo Michel Misse (1999).
Conceito utilizado por Cavalcanti Proença
Macunaíma o herói
cujo significado remete a
ideia do personagem ser portador de todos os
determinada
espécie, no caso, o malandro.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
estabelecer a hereditariedade entre
uma e outra, interessa pensar o
significado da m
alandragem ao longo
do tempo tomando a literatura como
caminho da análise simbólica.
A verdade é que o
carnaval, do futebol, do samba e da
malandragem” é também o país das
mazelas sociais, dos assassinatos de
jovens negros pobres da periferia, da
intolerância religiosa, do agronegócio e
do agrotóxico, dos desmatamentos e
das grilagens de terras indígenas,
enfim, um país que parece fiel à sua
história desde a colônia. À pergunta:
Que país é este?; uma reposta, entre
outras: este é o país entre os d
pior índice de desigualdade social do
mundo. “O país que não é sério e onde
tudo acaba em festa”, terra do “homem
cordial”
comumente confundido com
“doçura” ou “bondade natural”
mesmo tempo se revela desigual,
violento, excludente e conservad
Farsa ou tragédia, eis a questão?
Um drama social de longa duração
Sem perder de vista a
diversidade de tipos, práticas e
representações que a “cultura da
malandragem” incorporou na
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
estabelecer a hereditariedade entre
uma e outra, interessa pensar o
alandragem ao longo
do tempo tomando a literatura como
caminho da análise simbólica.
A verdade é que o
"país do
carnaval, do futebol, do samba e da
malandragem” é também o país das
mazelas sociais, dos assassinatos de
jovens negros pobres da periferia, da
intolerância religiosa, do agronegócio e
do agrotóxico, dos desmatamentos e
das grilagens de terras indígenas,
enfim, um país que parece fiel à sua
história desde a colônia. À pergunta:
Que país é este?; uma reposta, entre
outras: este é o país entre os d
ez com
pior índice de desigualdade social do
mundo. “O país que não é sério e onde
tudo acaba em festa”, terra do “homem
comumente confundido com
“doçura” ou “bondade natural”
- ao
mesmo tempo se revela desigual,
violento, excludente e conservad
or.
Farsa ou tragédia, eis a questão?
Um drama social de longa duração
Sem perder de vista a
diversidade de tipos, práticas e
representações que a “cultura da
malandragem” incorporou na
sociedade brasileira
ponto de partida a leitura de Lívia
Barbosa (1992) sobre o “jeitinho
brasileiro” a fim de expor meu
argumento exploratório e, por isso
mesmo, (in)conclusivo. Do ponto de
vista da antropóloga, o “jeitinho” pode
ser assim representado
estruturalmente:
(+) (+) / (-
)
____________________________
Favor Jeito
O esquema ilustra a dificuldade
em se definir o “jeitinho” no universo
social brasileiro, pois “o que é e o que
não é jeito
varia bastante”, adverte
Barbosa
(1992, p. 33)
elemento que pudéssemos assinalar
cuja presença configuraria uma
situação que fosse definida por todos
como jeito
”. Assim sendo, o jeitinho se
localiza em meio às categorias afins
“favor” e “corrupção” estabelecendo
um continuum
entre elas à medida que
se aproxima ora positivamente de
uma, ora negativamente de outra,
convivendo muitas vezes
6
Pode-
se destacar desde a figura jurídica do
vadio às figuras simbólicas do sambista, do
valente, do cafajeste, do pilantra, do
contraventor, do bicheiro, do “despachante”,
do "171” ao “bicho solto” e tantos outr
361
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
sociedade brasileira
6
, tomo como
ponto de partida a leitura de Lívia
Barbosa (1992) sobre o “jeitinho
brasileiro” a fim de expor meu
argumento exploratório e, por isso
mesmo, (in)conclusivo. Do ponto de
vista da antropóloga, o “jeitinho” pode
ser assim representado
)
(-)
____________________________
Corrupção
O esquema ilustra a dificuldade
em se definir o “jeitinho” no universo
social brasileiro, pois “o que é e o que
varia bastante”, adverte
-nos
(1992, p. 33)
: “Não existe um
elemento que pudéssemos assinalar
cuja presença configuraria uma
situação que fosse definida por todos
”. Assim sendo, o jeitinho se
localiza em meio às categorias afins
“favor” e “corrupção” estabelecendo
entre elas à medida que
se aproxima ora positivamente de
uma, ora negativamente de outra,
convivendo muitas vezes
se destacar desde a figura jurídica do
vadio às figuras simbólicas do sambista, do
valente, do cafajeste, do pilantra, do
contraventor, do bicheiro, do “despachante”,
do "171” ao “bicho solto” e tantos outr
os.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
transversalmente. À primeira vista,
trata-
se de um movimento
interativo/conflitivo que varia no
espaço e no tempo, muito embora o
“favor” a
presente maior sintonia com
os sistemas de características
tradicionais e a “corrupção” se
aproxime dos sistemas sociais
contemporâneos individualizados. A
depender da situação, isso não
impede de se ver a combinação
desses expedientes em um mesmo
personag
em ou mesmo ambiente
social simultaneamente.
Num exercício de “imaginação
poética” (em devaneio com Bachelard,
1988) vejo nas obras de Manuel
Antônio de Almeida (1988), Millôr
Fernandes (1981), Chico Buarque de
Holanda (1980) e Fernando Jorge
(2003), a ex
emplo dos ritos de
passagem, uma narrativa dramática
sobre a mudança de
malandro e da malandragem ao longo
do tempo, protagonizada pelos
personagens Leonardo Pataca, Max
Overseas e Piranha da Fonseca
Albuquerque (e seus contrários:
Vidigal, Inspe
tor Chaves e os
“militares”), cujo “parentesco
simbólico” os vinculam à tradição
malandra na cultura popular brasileira
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
transversalmente. À primeira vista,
se de um movimento
interativo/conflitivo que varia no
espaço e no tempo, muito embora o
presente maior sintonia com
os sistemas de características
tradicionais e a “corrupção” se
aproxime dos sistemas sociais
contemporâneos individualizados. A
depender da situação, isso não
impede de se ver a combinação
desses expedientes em um mesmo
em ou mesmo ambiente
Num exercício de “imaginação
poética” (em devaneio com Bachelard,
1988) vejo nas obras de Manuel
Antônio de Almeida (1988), Millôr
Fernandes (1981), Chico Buarque de
Holanda (1980) e Fernando Jorge
emplo dos ritos de
passagem, uma narrativa dramática
sobre a mudança de
status do
malandro e da malandragem ao longo
do tempo, protagonizada pelos
personagens Leonardo Pataca, Max
Overseas e Piranha da Fonseca
Albuquerque (e seus contrários:
tor Chaves e os
“militares”), cujo “parentesco
simbólico” os vinculam à tradição
malandra na cultura popular brasileira
na forma de literatura, teatro, sica,
cinema etc. O conjunto dessas obras
forma uma narrativa de longa duração
na qual se revelam algu
sociais mais arraigados no imaginário
cultural brasileiro aqui, definido, como
“arte da malandragem”
Não é demais lembrar que a
literatura constitui uma espécie de
narrativa etnográfica em que as obras
literárias podem ser vistas como
“nar
rativas míticas”, sugere DaMatta
(1993). Assim, combinando a
dramatização ritual e a narrativa mítica
que o conjunto das obras encenam,
proponho uma análise em três tempos
na qual se destaca: 1) a instituição do
favor em meio as
Memórias de um
sargento de
milícias;
memórias do
Vidigal
Fernandes, também seja ambientada
no “tempo do rei” constitui uma
metáfora do Estado militarizado dos
anos 1960, e divide com a
malandro,
ambientada na Lapa dos
anos 1940, o processo de
7
A definição visa circunscrever o campo da
observação e não a substância dos fatos
(Mauss, 1981). O drama social, nos termos de
Turner (2008), é entendido como metáfora ou
modelo por meio do qual se pode apreender
processualmente parte do comportamento
social humano como ação simbólica. Sobre a
relação imaginação e cultura ver Rocha
(2016).
362
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- ISSN 2237-1508
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)
na forma de literatura, teatro, sica,
cinema etc. O conjunto dessas obras
forma uma narrativa de longa duração
na qual se revelam algu
ns dos dramas
sociais mais arraigados no imaginário
cultural brasileiro aqui, definido, como
“arte da malandragem”
7
.
Não é demais lembrar que a
literatura constitui uma espécie de
narrativa etnográfica em que as obras
literárias podem ser vistas como
rativas míticas”, sugere DaMatta
(1993). Assim, combinando a
dramatização ritual e a narrativa mítica
que o conjunto das obras encenam,
proponho uma análise em três tempos
na qual se destaca: 1) a instituição do
Memórias de um
milícias;
2) embora as
Vidigal
, de Millôr
Fernandes, também seja ambientada
no “tempo do rei” constitui uma
metáfora do Estado militarizado dos
anos 1960, e divide com a
Ópera do
ambientada na Lapa dos
anos 1940, o processo de
A definição visa circunscrever o campo da
observação e não a substância dos fatos
(Mauss, 1981). O drama social, nos termos de
Turner (2008), é entendido como metáfora ou
modelo por meio do qual se pode apreender
processualmente parte do comportamento
social humano como ação simbólica. Sobre a
relação imaginação e cultura ver Rocha
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
“profis
sionalização” do malandro em
tempos de modernização e populismo
e de universalização do “jeitinho”; 3) a
saga de “Piranha da Fonseca
Albuquerque”, protagonista de
grande líder
, personagem corrupto
inclinado à todo tipo de vilania que
“para o bem de todos
e a felicidade
geral da nação” se sacrifica, ao
candidatar-
se à presidência da
república visando salvar a pátria
amada
8
.
Ao final, todo esse percurso nos
leva a pensar, inconclusivamente: qual
a eficácia simbólica da “arte da
malandragem”para se pensar
hoje?
A favor da malandragem
“Era no tempo do rei”. É assim
que Manuel Antônio de Almeida inicia
Memórias de um sargento de milícias
romance que na caracterização de
Antônio Cândido (1988) imita a
estrutura da sociedade brasileira do
século XIX
e revela a dialética da
ordem e da desordem que a coloca em
movimento. Leonardo filho, nascido de
8
Sabe-
se que momentos de crise nas
sociedades são férteis para a emergência de
líderes carismáticos, salvadores da pátria,
anunciando um novo mundo (LINDHOLM,
1993).
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
sionalização” do malandro em
tempos de modernização e populismo
e de universalização do “jeitinho”; 3) a
saga de “Piranha da Fonseca
Albuquerque”, protagonista de
O
, personagem corrupto
inclinado à todo tipo de vilania que
e a felicidade
geral da nação” se sacrifica, ao
se à presidência da
república visando salvar a pátria
Ao final, todo esse percurso nos
leva a pensar, inconclusivamente: qual
a eficácia simbólica da “arte da
malandragem”para se pensar
o Brasil
“Era no tempo do rei”. É assim
que Manuel Antônio de Almeida inicia
Memórias de um sargento de milícias
,
romance que na caracterização de
Antônio Cândido (1988) imita a
estrutura da sociedade brasileira do
e revela a dialética da
ordem e da desordem que a coloca em
movimento. Leonardo filho, nascido de
se que momentos de crise nas
sociedades são férteis para a emergência de
líderes carismáticos, salvadores da pátria,
anunciando um novo mundo (LINDHOLM,
uma “pisadela e um beliscão” tão logo
aprendeu a “andar e falar tornou
um flagelo”: “Era, além de traquinas,
guloso; quando não traquinava, comia.
A Maria
[a mãe] não lhe perdoava;
trazia-
lhe bem maltratada uma região
do corpo; porém ele não se emendava,
que era também teimoso, e as
travessuras recomeçavam mal
acabava a dor das palmadas”
(ALMEIDA, 1988, p. 11). Após ser
abandonado pelo pai, Leonardo será
cr
iado pelo padrinho e dele receberá
toda atenção e perdão pelos malfeitos
na escola ou na sacristia. Em verdade,
o padrinho haveria de protegê
mesmo depois de morto, deixando
algo em testamento.
Como bem observa Antônio
Cândido (1988)
, suprimin
romance as classes dominantes e o
escravo, Manuel Antônio de Almeida
coloca em destaque os setores baixo e
médio da sociedade revelando a
estrutura e a dialética que movimenta
tanto as personagens do romance
quanto a própria sociedade. O
romance imit
a a história. Assim, é em
meio ao jogo bruxuleante entre a
ordem e a desordem que o malandro
navega à exemplo da própria
sociedade que ele representa. Embora
363
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
uma “pisadela e um beliscão” tão logo
aprendeu a “andar e falar tornou
-se
um flagelo”: “Era, além de traquinas,
guloso; quando não traquinava, comia.
[a mãe] não lhe perdoava;
lhe bem maltratada uma região
do corpo; porém ele não se emendava,
que era também teimoso, e as
travessuras recomeçavam mal
acabava a dor das palmadas”
(ALMEIDA, 1988, p. 11). Após ser
abandonado pelo pai, Leonardo será
iado pelo padrinho e dele receberá
toda atenção e perdão pelos malfeitos
na escola ou na sacristia. Em verdade,
o padrinho haveria de protegê
-lo até
mesmo depois de morto, deixando
-lhe
Como bem observa Antônio
, suprimin
do do
romance as classes dominantes e o
escravo, Manuel Antônio de Almeida
coloca em destaque os setores baixo e
médio da sociedade revelando a
estrutura e a dialética que movimenta
tanto as personagens do romance
quanto a própria sociedade. O
a a história. Assim, é em
meio ao jogo bruxuleante entre a
ordem e a desordem que o malandro
navega à exemplo da própria
sociedade que ele representa. Embora
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
longa, a citação a seguir ilustra o que o
sociólogo desvela nas aventuras e
desventuras de Leonard
o Pataca no
Rio de Janeiro do “tempo do rei”:
É burla e é sério, porque a sociedade
que formiga nas Memórias é
sugestiva, não tanto por causa das
descrições de festejos ou indicações
de usos e lugares; mas porque
manifesta num plano mais fundo e
eficiente
o referido jogo dialético da
ordem e da desordem, funcionando
como correlativo ao que se
manifestava na sociedade daquele
tempo. Ordem dificilmente imposta e
mantida, cercada de todos os lados
por uma desordem vivaz, que
antepunha vinte mancebias a cada
ca
samento e mil uniões fortuitas a
cada mancebia. Sociedade na qual
uns poucos livres trabalhavam e os
outros flauteavam ao deus
colhendo as sobras do parasitismo,
dos expedientes, das munificências,
da sorte ou do roubo miúdo.
Suprimindo o escravo, Ma
Antônio suprimiu quase totalmente o
trabalho, suprimindo as classes
dirigentes, suprimiu os controles do
mando. Ficou o ar de jogo dessa
organização bruxuleante fissurada
pela anomia, que se traduz na dança
dos personagens entre lícito e ilícito,
sem
que possamos afinal dizer o que
é um e o que é o outro, porque todos
acabam circulando de um para outro
com uma naturalidade que lembra o
modo de formação das famílias, dos
prestígios, das fortunas, das
reputações, no Brasil urbano da
primeira metade do
Romance profundamente social,
pois, não por ser documentário, mas
por ser construído segundo o ritmo
geral da sociedade, vista através de
um dos seus setores. E sobretudo
porque dissolve o que de
sociologicamente essencial nos
meandros da cons
trução literária”
(CÂNDIDO,
1988, p. 209).
Não é preciso muito esforço
para se perceber que toda essa
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
longa, a citação a seguir ilustra o que o
sociólogo desvela nas aventuras e
o Pataca no
Rio de Janeiro do “tempo do rei”:
É burla e é sério, porque a sociedade
que formiga nas Memórias é
sugestiva, não tanto por causa das
descrições de festejos ou indicações
de usos e lugares; mas porque
manifesta num plano mais fundo e
o referido jogo dialético da
ordem e da desordem, funcionando
como correlativo ao que se
manifestava na sociedade daquele
tempo. Ordem dificilmente imposta e
mantida, cercada de todos os lados
por uma desordem vivaz, que
antepunha vinte mancebias a cada
samento e mil uniões fortuitas a
cada mancebia. Sociedade na qual
uns poucos livres trabalhavam e os
outros flauteavam ao deus
-dará,
colhendo as sobras do parasitismo,
dos expedientes, das munificências,
da sorte ou do roubo miúdo.
Suprimindo o escravo, Ma
nuel
Antônio suprimiu quase totalmente o
trabalho, suprimindo as classes
dirigentes, suprimiu os controles do
mando. Ficou o ar de jogo dessa
organização bruxuleante fissurada
pela anomia, que se traduz na dança
dos personagens entre lícito e ilícito,
que possamos afinal dizer o que
é um e o que é o outro, porque todos
acabam circulando de um para outro
com uma naturalidade que lembra o
modo de formação das famílias, dos
prestígios, das fortunas, das
reputações, no Brasil urbano da
primeira metade do
culo XIX.
Romance profundamente social,
pois, não por ser documentário, mas
por ser construído segundo o ritmo
geral da sociedade, vista através de
um dos seus setores. E sobretudo
porque dissolve o que de
sociologicamente essencial nos
trução literária”
1988, p. 209).
Não é preciso muito esforço
para se perceber que toda essa
“cultura da malandragem” que se
desenvolve desde então, apresenta
grande afinidade com a instituição do
“favor” como nos sugere Roberto
Schwarz em suas “Ideias fora do
lugar”. A categoria
favor
mundo de representações e práticas
que no dizer de
Schwarz
“atravessou e afetou no conjunto a
existência nacional” desde a nossa
formação colonial. O
no mecanismo sico de estruturação
das relações sociais, sobretudo, entre
o senhor e os homens livres, que o
escravo pe
rmaneceu à margem por
quase toda a colonização fora dessa
“economia simbólica”.
nossa mediação quase universal
destaca o crítico literário, pois “sendo
mais simpático do que o nexo
escravista, a outra relação que a
colônia nos legara, é comp
que os escritores tenham baseado
nele a sua interpretação do Brasil,
involuntariamente disfarçando a
violência, que sempre reinou na esfera
da produção”, dirá o autor
(SCHWARZ, 1981, p. 16). E, a se
julgar o desfecho das
sargento d
e milícias
dialética da malandragem que
estrutura e movimenta o romance e a
364
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
“cultura da malandragem” que se
desenvolve desde então, apresenta
grande afinidade com a instituição do
“favor” como nos sugere Roberto
Schwarz em suas “Ideias fora do
favor
remete a um
mundo de representações e práticas
Schwarz
(1981, p. 16)
“atravessou e afetou no conjunto a
existência nacional” desde a nossa
formação colonial. O
favor se constitui
no mecanismo sico de estruturação
das relações sociais, sobretudo, entre
o senhor e os homens livres, que o
rmaneceu à margem por
quase toda a colonização fora dessa
“economia simbólica”.
O favor é a
nossa mediação quase universal
”,
destaca o crítico literário, pois “sendo
mais simpático do que o nexo
escravista, a outra relação que a
colônia nos legara, é comp
reensível
que os escritores tenham baseado
nele a sua interpretação do Brasil,
involuntariamente disfarçando a
violência, que sempre reinou na esfera
da produção”, dirá o autor
(SCHWARZ, 1981, p. 16). E, a se
julgar o desfecho das
Memórias de um
e milícias
, de fato, na
dialética da malandragem que
estrutura e movimenta o romance e a
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
sociedade da época, o favor e o
jeitinho são vividos dramaticamente
pelas personagens Leonardo e seu
algoz, Major Vidigal. Cada um à sua
maneira irá contrariar o contr
outras palavras, ao final do romance a
personagem Leonardo filho
perseguido duramente pelo Major
Vidigal -
, acaba se transformando em
sargento da milícia e se casa com
Luisinha
sua paixão desde a
infância. Na verdade, sua promoção é
o resultad
o de um sistema de trocas
de favores, que envolve Leonardo e
sua madrinha Dona Maria que para
livrar o afilhado da prisão recorre a
Maria Regalada, objeto de desejo de
Vidigal que, no último momento, cede
à promessa de uma vida em conjunto,
ao que tudo indica
9
.
André Bueno
(2008)
dialética da malandragem à luz da
análise de Roberto Schwarz em
“Pressupostos, salvo engano, de
Dialética da malandragem para
destacar, salvo engano, o efeito da
“redução estrutural” produzida pela
9
Vale lembrar, a relação entre a polícia e a
malandragem sempre foi tensa e ambígua,
como se pode ver desde “Pelo telefone”,
gravada por Donga em 1910, a violenta
relação do famoso marginal Lucio Flavio Lírio
com o Esquadrão da morte nos idos de 1970,
e
os milicianos hoje (CANO; DUARTE, 2012).
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
sociedade da época, o favor e o
jeitinho são vividos dramaticamente
pelas personagens Leonardo e seu
algoz, Major Vidigal. Cada um à sua
maneira irá contrariar o contr
ário. Em
outras palavras, ao final do romance a
personagem Leonardo filho
-
perseguido duramente pelo Major
, acaba se transformando em
sargento da milícia e se casa com
sua paixão desde a
infância. Na verdade, sua promoção é
o de um sistema de trocas
de favores, que envolve Leonardo e
sua madrinha Dona Maria que para
livrar o afilhado da prisão recorre a
Maria Regalada, objeto de desejo de
Vidigal que, no último momento, cede
à promessa de uma vida em conjunto,
(2008)
retoma a
dialética da malandragem à luz da
análise de Roberto Schwarz em
“Pressupostos, salvo engano, de
Dialética da malandragem para
destacar, salvo engano, o efeito da
“redução estrutural” produzida pela
Vale lembrar, a relação entre a polícia e a
malandragem sempre foi tensa e ambígua,
como se pode ver desde “Pelo telefone”,
gravada por Donga em 1910, a violenta
relação do famoso marginal Lucio Flavio Lírio
com o Esquadrão da morte nos idos de 1970,
os milicianos hoje (CANO; DUARTE, 2012).
análise de Antônio
Candido sobre o
texto de Manuel Antônio de Almeida.
Ao enfatizar a supressão do senhor e
do escravo e tomar como referência os
setores intermediários da sociedade,
Antônio Candido suprimiu a
possibilidade do conflito, a “luta de
classes”, promovendo uma
in
terpretação em sintonia com outros
intérpretes do Brasil desde os anos
1930. Ratificando então a análise de
Schwarz, Bueno se pergunta: “por que
interpretar o Brasília partir desse
específico setor da totalidade, dos que
não trabalham regularmente, nem
man
dam e nem acumulam, localizando
uma longa tradição, a própria
dialética da malandragem?” (
2008, p. 60). O efeito então da
supressão do mundo do trabalho e do
mando, e a fixação nos homens livres,
porém, presos à cultura do favor, fez
com que a an
álise de Antônio Cândido
transformasse o que era próprio de um
setor de classe em traço do ser
nacional
10
.
10
Essa proposição se estende há outras
interpretações,
por exemplo, Schwarcz (1995).
Os historiadores
João Reis e Eduardo Silva
(1989), lembram que a escravidão não era de
todo incompatível com o liberalismo, posto
todo um amplo e complexo sistema relacional
de negociações, trocas e favores se infiltraria
nas instituições sociais, econômicas etc.,
ocupando os espaços deixados em aberto
pelo capital e a desigualdade social.
365
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
Candido sobre o
texto de Manuel Antônio de Almeida.
Ao enfatizar a supressão do senhor e
do escravo e tomar como referência os
setores intermediários da sociedade,
Antônio Candido suprimiu a
possibilidade do conflito, a “luta de
classes”, promovendo uma
terpretação em sintonia com outros
intérpretes do Brasil desde os anos
1930. Ratificando então a análise de
Schwarz, Bueno se pergunta: “por que
interpretar o Brasília partir desse
específico setor da totalidade, dos que
não trabalham regularmente, nem
dam e nem acumulam, localizando
uma longa tradição, a própria
dialética da malandragem?” (
BUENO,
2008, p. 60). O efeito então da
supressão do mundo do trabalho e do
mando, e a fixação nos homens livres,
porém, presos à cultura do favor, fez
álise de Antônio Cândido
transformasse o que era próprio de um
setor de classe em traço do ser
Essa proposição se estende há outras
por exemplo, Schwarcz (1995).
João Reis e Eduardo Silva
(1989), lembram que a escravidão não era de
todo incompatível com o liberalismo, posto
que
todo um amplo e complexo sistema relacional
de negociações, trocas e favores se infiltraria
nas instituições sociais, econômicas etc.,
ocupando os espaços deixados em aberto
pelo capital e a desigualdade social.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
Aos poucos a
persona
malandro Leonardo filho
entendido como símbolo de setores
populares-
irá dividir com outros
malandros e não-
malandros
menos não oficialmente trajando terno
de linho branco e sapato de duas
cores-
, um modo mais universal e
impessoal de malandragem que
atravessa as práticas diárias de todo
(sub)cidadão, até hoje. Não por acaso,
na abertura da segunda parte do
romance,
Manuel vaticinava: “Já veem
os leitores que a raça dos Leonardos
não de extinguir com facilidade”
(CÂNDIDO, 1988, p. 93).
Um século após a publicação da
obra de Manuel Antônio de Almeida,
Millôr Fernandes trazia à público a sua
versão das Memórias...
,
ponto de vista do Major Vidigal. Versão
que apr
esenta maior sintonia com o
tempo presente de sua encenação do
que com o “tempo do rei”. Um tempo
que, de certa forma, guarda muitas
afinidades com a Lapa dos anos 1940,
da Ópera do malandro.
A (des)ordem é a regra
O cenário da
malandro
é a Lapa dos anos 1940; o
país vivia sob o Estado Novo. Obra
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
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persona
do
malandro Leonardo filho
-aqui
entendido como símbolo de setores
irá dividir com outros
malandros
- ao
menos não oficialmente trajando terno
de linho branco e sapato de duas
, um modo mais universal e
impessoal de malandragem que
atravessa as práticas diárias de todo
(sub)cidadão, até hoje. Não por acaso,
na abertura da segunda parte do
Manuel vaticinava: “Já veem
os leitores que a raça dos Leonardos
não de extinguir com facilidade”
Um século após a publicação da
obra de Manuel Antônio de Almeida,
Millôr Fernandes trazia à público a sua
,
agora, do
ponto de vista do Major Vidigal. Versão
esenta maior sintonia com o
tempo presente de sua encenação do
que com o “tempo do rei”. Um tempo
que, de certa forma, guarda muitas
afinidades com a Lapa dos anos 1940,
O cenário da
Ópera do
é a Lapa dos anos 1940; o
país vivia sob o Estado Novo. Obra
inspirada na
Ópera dos mendigos
Ópera dos três vinténs
Bertold Brecht & Kurt Weill,
respectivamente; a peça dramatiza o
processo
de modernização da
malandragem. No filme homônimo, de
Ruy Guerra (1986), a cena do “Desafio
do malandro” é exemplar, pois ilustra o
drama da disputa por certa imagem do
malandro. O ambiente é o salão de
bilhar, cronótopo da contenda entre
malandros escolad
os cuja disputa
ultrapassa a partida de sinuca para
revelar-
se um “jogo absorvente”. O
dueto é um duelo:
-
Você tá pensando que é da alta
sociedade
Ou vai montar exposição de souvenir
de gringo
Ou foi fazer a fé no bingo em chá de
caridade
Eu não sei não,
eu não sei não
Só sei que você vem com five
very well, my
friend
A curriola leva um choque, nego não
entende
E deita e rola e sai comentando
Que grande malandro é vo
-
Você tá fazendo piada ou vai querer
que eu chore
A sua estampa eu já conheço
museu do império
Ou mausoléu de cemitério, ou feira de
folclore
Eu não sei não, eu não sei não
Só sei que você vem com reco
berimbau, farofa
A curriola tem um treco, nego faz
galhofa
E deita e rola e sai comentando
Que grande malandro é vo
- Voc
ê que era um sujeito tipo jovial
Agora até mudou de nome
-
Você infelizmente continua igual
Fala bonito e passa fome
-
Vai ver que ainda vai virar
366
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
Ópera dos mendigos
e
Ópera dos três vinténs
, de John Gay e
Bertold Brecht & Kurt Weill,
respectivamente; a peça dramatiza o
de modernização da
malandragem. No filme homônimo, de
Ruy Guerra (1986), a cena do “Desafio
do malandro” é exemplar, pois ilustra o
drama da disputa por certa imagem do
malandro. O ambiente é o salão de
bilhar, cronótopo da contenda entre
os cuja disputa
ultrapassa a partida de sinuca para
se um “jogo absorvente”. O
Você tá pensando que é da alta
Ou vai montar exposição de souvenir
Ou foi fazer a fé no bingo em chá de
eu não sei não
Só sei que você vem com five
o'clock,
friend
A curriola leva um choque, nego não
E deita e rola e sai comentando
Que grande malandro é vo
Você tá fazendo piada ou vai querer
A sua estampa eu já conheço
do
museu do império
Ou mausoléu de cemitério, ou feira de
Eu não sei não, eu não sei não
Só sei que você vem com reco
-reco,
A curriola tem um treco, nego faz
E deita e rola e sai comentando
Que grande malandro é vo
ê que era um sujeito tipo jovial
Agora até mudou de nome
Você infelizmente continua igual
Fala bonito e passa fome
Vai ver que ainda vai virar
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
trabalhador
Que horror
-
Trabalho a minha nega e morro de
calor
-
Falta malandro se casar e ser avô
- Você nã
o sabe nem o que é o amor
Malandro infeliz
-
Amor igual ao seu, malandro tem
quarenta e não diz
-
Respeite uma mulher que é boa e
me sustenta
- Ela já foi aposentada
-
Ela me alisa e me alimenta
- A bolsa dela tá furada
- E a sua mãe tá na rua
- Se você nu
nca teve mãe, eu não
posso falar da sua
-
Eu não vou sujar a navalha nem sair
no tapa
-
É mais sutil sumir da Lapa
- Eu não jogo a toalha
-
Onde é que acaba essa batalha?
- Em fundo de caçapa
-
Eu não sei não, eu não sei não
-
Só sei que você perde a compo
quando eu pego o taco
A curriola não segura, nego coça o
saco
E deita e rola e sai comentando
que grande malandro é você
(Ruy Guerra,
Ópera do malandro
1986).
Não fazia muito tempo, Noel
Rosa e Wilson Batista também
protagonizaram uma disputa em
da imagem do malandro e que parece
prolongar-
se no jogo de bilhar entre
Max Overseas e Sátiro Bilhar
nome parece antecipar o resultado
da partida. Trajando seus indefectíveis
ternos de linho branco S-
120, Max é a
versão moderna, progressista
malandro que se recusa “usar a
navalha e a sair no tapa”; Sátiro
lembra o lado tradicional, o malandro
de antigamente, a encarnação
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longa duração
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1, n. 20, p.
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Fluxo Contínuo
Trabalho a minha nega e morro de
Falta malandro se casar e ser avô
o sabe nem o que é o amor
Amor igual ao seu, malandro tem
Respeite uma mulher que é boa e
Ela me alisa e me alimenta
nca teve mãe, eu não
Eu não vou sujar a navalha nem sair
É mais sutil sumir da Lapa
Onde é que acaba essa batalha?
Eu não sei não, eu não sei não
Só sei que você perde a compo
stura
A curriola não segura, nego coça o
E deita e rola e sai comentando
que grande malandro é você
Ópera do malandro
,
Não fazia muito tempo, Noel
Rosa e Wilson Batista também
protagonizaram uma disputa em
torno
da imagem do malandro e que parece
se no jogo de bilhar entre
Max Overseas e Sátiro Bilhar
-cujo
nome parece antecipar o resultado
da partida. Trajando seus indefectíveis
120, Max é a
versão moderna, progressista
do
malandro que se recusa “usar a
navalha e a sair no tapa”; Sátiro
lembra o lado tradicional, o malandro
de antigamente, a encarnação
folclórica de um personagem do
“tempo do império”. Tendo vencido a
partida, tiro recusa a forma de
pagamento proposta
isqueiro no valor de cem mil reis
alegando não servir para percussão.
Desmentindo a imagem consagrada
no imaginário popular na qual o
malandro usa a caixa de fósforo em
substituição ao pandeiro, Max combina
técnica corporal com criatividade e
realiza uma pequena performance com
o isqueiro de contrabando. À despeito
das diferenças, em comum ambos se
perguntam, afinal, que grande
malandro é você?
A verdade é que mais do que a
modernização é o fantasma da
tradição que parece assombrar o
malandro
dos tempos de Getúlio
Vargas e da Segunda Guerra. O
american way of life
americanismo se abrasileira via a
modernização conservadora e
excludente. O cientista político Luís
Werneck Vianna, em “O americanismo
da pirataria à modernização
a
utoritária (e o que se pode seguir)”,
texto de apresentação à
malandro
, lembra que no Brasil,
Ao contrário do padrão clássico de
americanismo, a hegemonia
burguesa não ‘nascerá das fábricas’.
Seu ponto de partida virá das
367
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)
folclórica de um personagem do
“tempo do império”. Tendo vencido a
partida, tiro recusa a forma de
pagamento proposta
por Max -um
isqueiro no valor de cem mil reis
-,
alegando não servir para percussão.
Desmentindo a imagem consagrada
no imaginário popular na qual o
malandro usa a caixa de fósforo em
substituição ao pandeiro, Max combina
técnica corporal com criatividade e
realiza uma pequena performance com
o isqueiro de contrabando. À despeito
das diferenças, em comum ambos se
perguntam, afinal, que grande
A verdade é que mais do que a
modernização é o fantasma da
tradição que parece assombrar o
dos tempos de Getúlio
Vargas e da Segunda Guerra. O
invade o Rio; o
americanismo se abrasileira via a
modernização conservadora e
excludente. O cientista político Luís
Werneck Vianna, em “O americanismo
da pirataria à modernização
utoritária (e o que se pode seguir)”,
texto de apresentação à
Ópera do
, lembra que no Brasil,
Ao contrário do padrão clássico de
americanismo, a hegemonia
burguesa não ‘nascerá das fábricas’.
Seu ponto de partida virá das
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
chamadas regiões supraes
do Estado, da política, do Direito,
que irão traçar ‘de fora’ pelas mãos
dos nossos ‘junkers caboclos as
linhas mestras do processo de
modernização. E tempo de rolar
até que parte das novas frações
burguesas se sinta em condições
suprema audácia-
de reivindicar para
si o controle do arsenal político do
Estado (VIANNA
apud
1980, p. 8).
E continua o autor, no Brasil “o
novo se mantinha [e se mantém] preso
ao passado. Nosso capitalismo
continuava [e continua] preso com um
na Lapa,
em escusos galpões de
fundo de praia, enlevado pelas
mamatas, e nostálgico da capatazia de
fazenda” (VIANNA
apud
1980, p. 12). Impressiona a atualidade
do texto de Vianna cuja ressonância
nos lembra uma vez mais o apotegma
de Marx com a diferença
fatos e os personagens de grande
importância em nossa história
ocorrem, por assim dizer, a primeira
vez como farsa, a segunda como
tragédia.
Em especial, a
malandro
dramatiza esse processo de
modernização dando destaque à visão
de Terezinha -
filha do cafetão Duran e
de Vitória-
, futura esposa do malandro
Max Overseas. A moça tem tino
empreendedor e incorpora a
racionalidade empresarial no negócio
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
chamadas regiões supraes
truturais,
do Estado, da política, do Direito,
que irão traçar ‘de fora’ pelas mãos
dos nossos ‘junkers caboclos as
linhas mestras do processo de
modernização. E tempo de rolar
até que parte das novas frações
burguesas se sinta em condições
de reivindicar para
si o controle do arsenal político do
apud
HOLANDA,
E continua o autor, no Brasil “o
novo se mantinha [e se mantém] preso
ao passado. Nosso capitalismo
continuava [e continua] preso com um
em escusos galpões de
fundo de praia, enlevado pelas
mamatas, e nostálgico da capatazia de
apud
HOLANDA,
1980, p. 12). Impressiona a atualidade
do texto de Vianna cuja ressonância
nos lembra uma vez mais o apotegma
de que os
fatos e os personagens de grande
importância em nossa história
ocorrem, por assim dizer, a primeira
vez como farsa, a segunda como
Em especial, a
Ópera do
dramatiza esse processo de
modernização dando destaque à visão
filha do cafetão Duran e
, futura esposa do malandro
Max Overseas. A moça tem tino
empreendedor e incorpora a
racionalidade empresarial no negócio
de contrabando. Sua locução é
eloquente:
Mas é claro, querido, é claro.
Ninguém pedindo
de atividade. o que precisa é dar
um nome legal à tua organização.
Põe um “esse-
a” ou um “ele
atrás do nome e pronto, constituiu a
firma. Firma de importações, por
exemplo. É tão digno quanto
contrabando e não oferece perigo.
Voc
ê passa a ser pessoa jurídica,
igualzinho ao papai. Pessoa jurídica
não vai presa. Pessoa jurídica não
apanha da polícia... Acho até que é
imortal, pessoa jurídica (
1980, p. 109).
A malandragem deixa de ser
coisa de “malandrinhos” para se tornar
ação racional, coisa de profissional. E,
uma vez mais, é Teresinha quem
vislumbra o futuro:
Sangue novo! A nova civilização! É
claro que os malandrinhos, os
bandidinhos e os que acham que
sempre um jeitinho, esses vão
apodrecer debaixo da ponte. Mas
ne
sse povo fora não
vagabundo e marginal, não. E vai ter
um lugar ao sol pra quem quiser lutar
e souber vencer na vida. É daí que
vem o progresso, Max, do trabalho
dessa gente e da nossa imaginação.
Daqui a uns anos, você vai ver só.
Em cada sinal d
farol de carro, em cada nova sirene
de fábrica vai ter um dedo da nossa
firma. Você devia se orgulhar, Max
(HOLANDA,
1980, p. 170).
A percepção progressista de
Terezinha deve-
se, talvez, ao fato de
ser ela alguém que olha de fora e nã
estando envolta nas brumas da
malandragem tradicional introduz
sangue e espírito novo à tradição.
368
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
de contrabando. Sua locução é
Mas é claro, querido, é claro.
Ninguém pedindo
pra você mudar
de atividade. o que precisa é dar
um nome legal à tua organização.
a” ou um “ele
-tê-dê-a”
atrás do nome e pronto, constituiu a
firma. Firma de importações, por
exemplo. É tão digno quanto
contrabando e não oferece perigo.
ê passa a ser pessoa jurídica,
igualzinho ao papai. Pessoa jurídica
não vai presa. Pessoa jurídica não
apanha da polícia... Acho até que é
imortal, pessoa jurídica (
HOLANDA,
A malandragem deixa de ser
coisa de “malandrinhos” para se tornar
ação racional, coisa de profissional. E,
uma vez mais, é Teresinha quem
Sangue novo! A nova civilização! É
claro que os malandrinhos, os
bandidinhos e os que acham que
sempre um jeitinho, esses vão
apodrecer debaixo da ponte. Mas
sse povo fora não
vagabundo e marginal, não. E vai ter
um lugar ao sol pra quem quiser lutar
e souber vencer na vida. É daí que
vem o progresso, Max, do trabalho
dessa gente e da nossa imaginação.
Daqui a uns anos, você vai ver só.
Em cada sinal d
e trânsito, em cada
farol de carro, em cada nova sirene
de fábrica vai ter um dedo da nossa
firma. Você devia se orgulhar, Max
1980, p. 170).
A percepção progressista de
se, talvez, ao fato de
ser ela alguém que olha de fora e nã
o
estando envolta nas brumas da
malandragem tradicional introduz
sangue e espírito novo à tradição.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
Terezinha, sem exagero, é uma
mediadora, penso em Velho e
Kuschinir (2001). O resultado será a
criação da Mastertex Ltda,
empreendimento voltado para o ramo
do “comércio exterior”.
Como também adverte André
Bueno a
Ópera do malandro
características empresariais modernas
a se julgar “a metamorfose profunda
na figura do malandro, que passava de
simpático, boêmio, esperto mas boa
gente, a arrivista s
em escrúpulos, se
aproveitando justamente da oscilação
entre ordem e desordem trazida pela
ditadura militar e da modernização
autoritária do capitalismo” (
2008, p. 66). E pode-
se dizer, acentua
se também a metamorfose da polícia a
se julgar a figura
do Inspetor Chaves
(o “Vidigal” de Max Overseas), como
ilustra a passagem a seguir:
É, eu sei que o momento é
impróprio. Mas é que justamente
hoje o meu outro sócio telefonou e
me deu um aperto. Se tu não me
paga, eu não posso pagar a ele.
Também não poss
o chegar pra ele e
dizer que duro porque o meu sócio
contrabandista joga tudo no cassino
e não paga o combinado. Não fica
bem prum chefe de polícia, entende?
Esse meu outro sócio é um homem
muito sério. Cobra juros de vinte por
cento ao mês (
HOLANDA,
65).
Com o tempo, a aproximação
do malandro com a polícia trouxe de
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
Terezinha, sem exagero, é uma
mediadora, penso em Velho e
Kuschinir (2001). O resultado será a
criação da Mastertex Ltda,
empreendimento voltado para o ramo
Como também adverte André
Ópera do malandro
apresenta
características empresariais modernas
a se julgar “a metamorfose profunda
na figura do malandro, que passava de
simpático, boêmio, esperto mas boa
em escrúpulos, se
aproveitando justamente da oscilação
entre ordem e desordem trazida pela
ditadura militar e da modernização
autoritária do capitalismo” (
BUENO,
se dizer, acentua
-
se também a metamorfose da polícia a
do Inspetor Chaves
(o “Vidigal” de Max Overseas), como
ilustra a passagem a seguir:
É, eu sei que o momento é
impróprio. Mas é que justamente
hoje o meu outro sócio telefonou e
me deu um aperto. Se tu não me
paga, eu não posso pagar a ele.
o chegar pra ele e
dizer que duro porque o meu sócio
contrabandista joga tudo no cassino
e não paga o combinado. Não fica
bem prum chefe de polícia, entende?
Esse meu outro sócio é um homem
muito sério. Cobra juros de vinte por
HOLANDA,
1980, p.
Com o tempo, a aproximação
do malandro com a polícia trouxe de
volta a figura do miliciano, porém,
travestido de nova significação como
será visto à frente; personagem que
irá, em alguns casos, também se
aproximar e até fundir
do político.
Michel Misse observa o “inicio
da violência urbana” no Brasil a partir
dos anos 1950, denunciando a
passagem de uma ordem de crimes
ainda marcados pelos roubos miúdos,
pelos acertos de contas, pelos crimes
de honra, a um cenário hoje marcado
pelo narcotráfico, pelas ações de
milicianos, pela política de “abate” do
Estado, processo por ele definido
como “acumulação social da
violência”, diz ele:
Se fizermos, e eu mesmo fiz essa
pesquisa dos crimes comuns
daquela época, nós vamos encontrar
a p
redominância de crimes contra a
propriedade, mas que não envolviam
o uso da força física ou a sua
ameaça. Encontramos também
crimes contra a pessoa, mas,
principalmente, lesões provocadas
em brigas, em conflitos, algumas
com ferimentos graves produzidos
po
r armas de fogo, mas armas de
fogo de baixo calibre, ou armas
brancas, principalmente facas e
navalhas. E havia, como disse,
muitos crimes passionais, muitos
crimes ligados à honra, já que se
tratava de uma sociedade tradicional
que começava a se modern
Encontramos na literatura do período
uma expressiva narrativa dessas
questões, atualizada na literatura
contemporânea pela irrupção da
violência nos personagens. Entre as
angústias passionais dos
369
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
volta a figura do miliciano, porém,
travestido de nova significação como
será visto à frente; personagem que
irá, em alguns casos, também se
aproximar e até fundir
-se com a figura
Michel Misse observa o “inicio
da violência urbana” no Brasil a partir
dos anos 1950, denunciando a
passagem de uma ordem de crimes
ainda marcados pelos roubos miúdos,
pelos acertos de contas, pelos crimes
de honra, a um cenário hoje marcado
pelo narcotráfico, pelas ações de
milicianos, pela política de “abate” do
Estado, processo por ele definido
como “acumulação social da
Se fizermos, e eu mesmo fiz essa
pesquisa dos crimes comuns
daquela época, nós vamos encontrar
redominância de crimes contra a
propriedade, mas que não envolviam
o uso da força física ou a sua
ameaça. Encontramos também
crimes contra a pessoa, mas,
principalmente, lesões provocadas
em brigas, em conflitos, algumas
com ferimentos graves produzidos
r armas de fogo, mas armas de
fogo de baixo calibre, ou armas
brancas, principalmente facas e
navalhas. E havia, como disse,
muitos crimes passionais, muitos
crimes ligados à honra, já que se
tratava de uma sociedade tradicional
que começava a se modern
izar.
Encontramos na literatura do período
uma expressiva narrativa dessas
questões, atualizada na literatura
contemporânea pela irrupção da
violência nos personagens. Entre as
angústias passionais dos
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
personagens de Nelson Rodrigues,
que podiam matar e se
ciúme e outras obsessões, e os
personagens quase etnográficos de
Paulo Lins, uma vertiginosa
ruptura, um abismo (
MISSE,
375-376).
O sociólogo aponta ainda para o
processo simultâneo de
reconhecimento do “jeitinho” como
prática ligad
a à corrupção, pois “assim
como essa violência ganhava
legitimidade em razoáveis setores das
polícias e da sociedade, também a
corrupção deixava de ser representada
como um desvio para ganhar a
reputação de uma troca legítima, sob a
égide do “jeitinho” bra
Neutralizada a culpa, a troca passou a
se desenvolver abertamente em
diferentes contextos, sempre com a
mesma justificação que levava
empresários e profissionais liberais a
sonegarem impostos: “não dar dinheiro
a políticos e governos corruptos”
(2
008, p. 382). Não por acaso, Chico
Buarque de Holanda
irá capturar essa
metamorfose da malandragem ao
destacar em “Homenagem ao
malandro” que;
Agora já não é normal
O que dá de malandro
Regular, profissional
Malandro com aparato
De malandro oficial
Malandro candidato
A malandro federal
Malandro com retrato
Na coluna social
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
personagens de Nelson Rodrigues,
que podiam matar e se
matar por
ciúme e outras obsessões, e os
personagens quase etnográficos de
Paulo Lins, uma vertiginosa
MISSE,
2008, p.
O sociólogo aponta ainda para o
processo simultâneo de
reconhecimento do “jeitinho” como
a à corrupção, pois “assim
como essa violência ganhava
legitimidade em razoáveis setores das
polícias e da sociedade, também a
corrupção deixava de ser representada
como um desvio para ganhar a
reputação de uma troca legítima, sob a
égide do “jeitinho” bra
sileiro.
Neutralizada a culpa, a troca passou a
se desenvolver abertamente em
diferentes contextos, sempre com a
mesma justificação que levava
empresários e profissionais liberais a
sonegarem impostos: “não dar dinheiro
a políticos e governos corruptos”
008, p. 382). Não por acaso, Chico
irá capturar essa
metamorfose da malandragem ao
destacar em “Homenagem ao
O que dá de malandro
Malandro com contrato
Com gravata e capital
Que nunca se dá mal
(HOLANDA, 1980, p. 103).
Em paralelo à profissionalização
do malandro e à universalização do
jeitinho, o processo
de modernização
econômica da sociedade brasileira
iniciada nos idos de 1940 e retomados
nos anos 1970, exigiram uma estrutura
de poder autoritária voltada para o
controle das relações de produção e
do trabalho internamente e favorável à
penetração do capi
Nesse sentido não é de se estranhar
que a releitura de Millôr Fernandes das
Memórias...
acentue o ponto de vista
da ordem. Ordem personificada por
Vidigal, ordem capturada por Manuel
Antônio de Almeida há mais de um
século atrás, com res
hoje
11
.
Não será diferente com Millôr
Fernandes, pois prenunciando o tempo
atual e antecipando
O grande der
multifacetado autor nos brinda com
sua paródia Vidigal
sargento de milícias
11
A máxima positivista “Ordem e progres
parece ainda hoje mais viva do que nunca a
dançar aos quatros ventos sob a égide e a
narrativa dos moralistas, liberais e
progressistas (numa curiosa combinação de
religiosos, conservadores, setores liberais da
classe média e mídia).
370
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
Malandro com contrato
Com gravata e capital
Que nunca se dá mal
(HOLANDA, 1980, p. 103).
Em paralelo à profissionalização
do malandro e à universalização do
de modernização
econômica da sociedade brasileira
iniciada nos idos de 1940 e retomados
nos anos 1970, exigiram uma estrutura
de poder autoritária voltada para o
controle das relações de produção e
do trabalho internamente e favorável à
penetração do capi
tal internacional.
Nesse sentido não é de se estranhar
que a releitura de Millôr Fernandes das
acentue o ponto de vista
da ordem. Ordem personificada por
Vidigal, ordem capturada por Manuel
Antônio de Almeida há mais de um
século atrás, com res
sonância ainda
Não será diferente com Millôr
Fernandes, pois prenunciando o tempo
O grande der
, o
multifacetado autor nos brinda com
memórias de um
sargento de milícias
, encenada em
A máxima positivista “Ordem e progres
so”
parece ainda hoje mais viva do que nunca a
dançar aos quatros ventos sob a égide e a
narrativa dos moralistas, liberais e
progressistas (numa curiosa combinação de
religiosos, conservadores, setores liberais da
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
1966, portanto, dois an
os após o golpe
militar de 1964. Logo na abertura, o
“Padrinho”, então o preceptor do
malandro Leonardo, canta “A lei e a
Ordem”; canção que parece feita para
os dias de hoje:
Vivemos nos tempos do Rei
Tempo de Ordem e de Lei
Que Ordem, indagam, e que Lei?
(dá de ombros)
Ora, que Ordem?
Ora, que Lei?
Não sei.
Ah,
A Ordem é dos portugueses
-Os brasileiros também-
E a Lei é uma dureza
Pra quem não diz Amém. (Bis)
Com a força dominando
Um chefe policial
Dando, prendendo, tomando,
Uma figura bestial –
bestial.
Todos que moram aqui
Neste Rio Imperial
Tremem de horror quando enfrentam
O Coronel (Bis) Vidigal (Bis).
(FERNANDES, 1981, p. 7
Promovido a coronel, Vidigal é a
incorporação do terror. E para ratificar
o zeigesit
(“espírito do tempo”)
conservador vivido naquele e nesses
novos tempos, entra em cena o
Exército da Salvação para cantar o
“Auto-de-fé”:
Nós somos todos
Homens de fé
A oração
É o nosso café
O pão do espirito
Nosso filé
Não consentimos
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
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(
Fluxo Contínuo
os após o golpe
militar de 1964. Logo na abertura, o
“Padrinho”, então o preceptor do
malandro Leonardo, canta “A lei e a
Ordem”; canção que parece feita para
Vivemos nos tempos do Rei
Tempo de Ordem e de Lei
Que Ordem, indagam, e que Lei?
A Ordem é dos portugueses
Pra quem não diz Amém. (Bis)
Dando, prendendo, tomando,
bestial.
Tremem de horror quando enfrentam
O Coronel (Bis) Vidigal (Bis).
(FERNANDES, 1981, p. 7
-8).
Promovido a coronel, Vidigal é a
incorporação do terror. E para ratificar
(“espírito do tempo”)
conservador vivido naquele e nesses
novos tempos, entra em cena o
Exército da Salvação para cantar o
Álcool nem cama
Boca beijada
É mulher na lama
Tomem cuidado
Homens de fé
Cuja oração
É pão com café
E a comunhão
Um contrafilé
Comemos pouco
Nós não fumamos
Não temos filhos...
Nós nos poupamos
Nós nunca vimos
Homens de fé
Coisa na coisa
Como é que é
(...)
Tome cuidado,
Mocinha aflita
Cê goza a vida
Mas depois grita
Segura a saia
Com a tua fé
Não deixa entrar
Nenhum buscapé
(...)
Nenhum jacaré
Nenhum chimpanzé
E nenhum... José
(...)
Saia da frente
Vil pecador
Tua espada ofende
Nosso Senhor
(...)
Nós somos todos
Homens de fé
Nós só pecamos
Com a Santa Sé
(FERNANDES,
1981
Embora nascido no passado,
Vidigal
parece mesmo um agente do
“tempo dos generais”. Ainda hoje sua
voz pode ser ouvida. Para o Vidigal
371
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
Álcool nem cama
É mulher na lama
Comemos pouco
Nós não fumamos
Não temos filhos...
Nós nos poupamos
Nós nunca vimos
Nenhum buscapé
Nenhum chimpanzé
E nenhum... José
Tua espada ofende
Nós somos todos
Nós só pecamos
Com a Santa Sé
1981
, p. 49-50).
Embora nascido no passado,
parece mesmo um agente do
“tempo dos generais”. Ainda hoje sua
voz pode ser ouvida. Para o Vidigal
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
nada é proibido,
“É proibido não
proibir” o que
por ele for considerado
permitido como mostra a peça:
Fica proibido o amor e o amar
Fica proibido toda exibição (fecha o
decote da moça)
Fica proibido olhar para o alto (rapaz
que baixa a cabeça)
Fica proibido olhar pro chão (gesto
indicando local. Soldado
“É proibido falar”)
O cão ladra
Tem que ser punido (Entra cão com
dono
deve ser um garoto vestido de
cão-
que lhe coloca uma focinheira)
Rosto pintado não permito não
(limpa boca de moça com lenço,
mostra o lenço com nojo)
E conversinha de
rapaz com moça
(empurra uma velha horrenda pra
junto de dois jovens que namoram)
Só com severa fiscalização
Fica proibido
Tudo que não for permitido (gesto.
Soldado prega placa: “É proibido
calar”)
E, por fim,
Fica proibido qualquer proibição
Não proibida
por mim (sai com seus
soldados)
(FERNANDES, 1981, p. 8
Não demoraria, evidentemente,
para que a resposta viesse com “Festa
imodesta”, uma homenagem ao
compositor popular que pronuncia,
malandramente, com arte e sabedoria
“tudo aquilo que o otário s
canta Caetano Veloso. O jogo entre a
ordem e a desordem não se restringe
ao malandro, também o Poder é parte
do jogo. Ambivalente, também a
ordem se (des)faz em (des)ordem. É o
que nos sugere André
aprofundar o questionamento de
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
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1, n. 20, p.
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(
Fluxo Contínuo
“É proibido não
por ele for considerado
permitido como mostra a peça:
Fica proibido o amor e o amar
Fica proibido toda exibição (fecha o
Fica proibido olhar para o alto (rapaz
Fica proibido olhar pro chão (gesto
indicando local. Soldado
prega placa:
Tem que ser punido (Entra cão com
deve ser um garoto vestido de
que lhe coloca uma focinheira)
Rosto pintado não permito não
(limpa boca de moça com lenço,
mostra o lenço com nojo)
rapaz com moça
(empurra uma velha horrenda pra
junto de dois jovens que namoram)
Só com severa fiscalização
Tudo que não for permitido (gesto.
Soldado prega placa: “É proibido
Fica proibido qualquer proibição
por mim (sai com seus
(FERNANDES, 1981, p. 8
-9).
Não demoraria, evidentemente,
para que a resposta viesse com “Festa
imodesta”, uma homenagem ao
compositor popular que pronuncia,
malandramente, com arte e sabedoria
“tudo aquilo que o otário s
ilencia”,
canta Caetano Veloso. O jogo entre a
ordem e a desordem não se restringe
ao malandro, também o Poder é parte
do jogo. Ambivalente, também a
ordem se (des)faz em (des)ordem. É o
que nos sugere André
Bueno ao
aprofundar o questionamento de
Schwarz
sobre o contexto da produção
do ensaio de Antônio Candido que
leva a pensar se “não seria a própria
ditadura militar um modo de oscilação
entre ordem e desordem”?:
A ditadura militar rompeu as normas
legais do país, desrespeitou o
processo democrático, ins
seguida um regime cujo vértice
bárbaro foi a tortura. Abrindo
caminho, graças aos grupos
paramilitares do regime de exceção,
ao que viria em seguida no Brasil,
vale dizer, os Esquadrões da morte,
parte fora da lei das polícias, e as
diversas fac
ções do crime
organizado, misturadas que
estavam, e continuam estando, com
graus diversos de corrupção nas
esferas da polícia, do judiciário, da
política e, não menos importante,
dos empresários que lucram com o
tráfico de drogas e de armas, mas
também de
mercadorias roubadas.
Sem esquecer que, no mesmo
período, o assalto aos cofres
públicos, a apropriação privada de
verbas públicas, tornou
que uma constante, num sistema
político que, embora formalmente
democrático, se acomoda a essas
infrações da
norma, equilibrando de
modo perverso um sistema de
interesses, de favores e de
associações ilícitas, quase que a u
aberto
(CÂNDIDO,
Fazendo um jogo de palavras,
com a ditadura militar se instaura a
(des)ordem (des)legitimada. O
resultado de todo esse processo é a
metamorfose do malandro. A mudança
de significado do malandro e da
malandragem acaba por produzir uma
visão até certo ponto
372
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
sobre o contexto da produção
do ensaio de Antônio Candido que
leva a pensar se “não seria a própria
ditadura militar um modo de oscilação
entre ordem e desordem”?:
A ditadura militar rompeu as normas
legais do país, desrespeitou o
processo democrático, ins
talando em
seguida um regime cujo vértice
bárbaro foi a tortura. Abrindo
caminho, graças aos grupos
paramilitares do regime de exceção,
ao que viria em seguida no Brasil,
vale dizer, os Esquadrões da morte,
parte fora da lei das polícias, e as
ções do crime
organizado, misturadas que
estavam, e continuam estando, com
graus diversos de corrupção nas
esferas da polícia, do judiciário, da
política e, não menos importante,
dos empresários que lucram com o
tráfico de drogas e de armas, mas
mercadorias roubadas.
Sem esquecer que, no mesmo
período, o assalto aos cofres
públicos, a apropriação privada de
verbas públicas, tornou
-se quase
que uma constante, num sistema
político que, embora formalmente
democrático, se acomoda a essas
norma, equilibrando de
modo perverso um sistema de
interesses, de favores e de
associações ilícitas, quase que a u
(CÂNDIDO,
2008, p. 62).
Fazendo um jogo de palavras,
com a ditadura militar se instaura a
(des)ordem (des)legitimada. O
resultado de todo esse processo é a
metamorfose do malandro. A mudança
de significado do malandro e da
malandragem acaba por produzir uma
visão até certo ponto
nostálgica do
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
malandro, de antigamente, como
observa Bueno
(2008, p. 68)
Metamorfose a meu ver fundamental,
que tirou de cena a figura do
malandro como aquele que apenas
quer escapar da disciplina do
trabalho, um boêmio boa praça que
não aceita a
exploração e se vira nas
beiradas do sistema. Daí não segue
que o humor e a malícia tenham
desaparecido do cotidiano e da
cultura em nosso país. Mas, trazido à
tona o ângulo negativo da
malandragem, o humor e a malícia
agora precisam ser pensados de
modo c
rítico, cabendo sempre olhar
com atenção, para distinguir as
formas perversas da sociedade
brasileira incorporadas à malícia e ao
humor, portanto como riso que
reconcilia, riso a favor do existente,
riso que concorda com os
dominadores e expõe ao ridículo
dominados, para lembrar aqui, de
modo livre
, uma posição de Theodor
Adorno.
Acentuando essa linha de
interpretação, João Cézar Rocha
(2006) realiza análise crítica da
“cultura da malandragem” tal qual
canonizada desde a interpretação de
Antônio Cândid
o, colocando em
destaque um conjunto de
representações contemporâneas sobre
a violência e a desigualdade social que
cada vez mais ganham visibilidade na
sociedade brasileira. Assistimos na
atualidade a superação parcial da
dialética da malandragem pela
dia
lética da marginalidade, ou nos
termos do autor: “Reitero, então, a
minha hipótese: a “dialética da
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
malandro, de antigamente, como
(2008, p. 68)
:
Metamorfose a meu ver fundamental,
que tirou de cena a figura do
malandro como aquele que apenas
quer escapar da disciplina do
trabalho, um boêmio boa praça que
exploração e se vira nas
beiradas do sistema. Daí não segue
que o humor e a malícia tenham
desaparecido do cotidiano e da
cultura em nosso país. Mas, trazido à
tona o ângulo negativo da
malandragem, o humor e a malícia
agora precisam ser pensados de
rítico, cabendo sempre olhar
com atenção, para distinguir as
formas perversas da sociedade
brasileira incorporadas à malícia e ao
humor, portanto como riso que
reconcilia, riso a favor do existente,
riso que concorda com os
dominadores e expõe ao ridículo
os
dominados, para lembrar aqui, de
, uma posição de Theodor
Acentuando essa linha de
interpretação, João Cézar Rocha
(2006) realiza análise crítica da
“cultura da malandragem” tal qual
canonizada desde a interpretação de
o, colocando em
destaque um conjunto de
representações contemporâneas sobre
a violência e a desigualdade social que
cada vez mais ganham visibilidade na
sociedade brasileira. Assistimos na
atualidade a superação parcial da
dialética da malandragem pela
lética da marginalidade, ou nos
termos do autor: “Reitero, então, a
minha hipótese: a “dialética da
malandragem” está sendo
parcialmente substituída ou, para dizer
o mínimo, diretamente desafiada pela
“dialética da marginalidade”, a qual
está principalment
e fundada, no
princípio da superação das
desigualdades sociais, através do
confronto direto em vez da conciliação,
através da exposição da violência em
vez de sua ocultação” (
p. 36). O jeitinho não desapareceu,
mas tem sido desafiado a todo
mo
mento. A exacerbação da violência,
a denúncia da exploração econômica,
a crítica à negligência da diferença,
muitas vezes expressas na produção
cultural de filmes e na literatura como
A cidade de Deus
Despejo
, ratificam o sentido da
dialética
da marginalidade. Nas
palavras do autor, a melhor definição
“prática do que tenho chamado de
“dialética da marginalidade” (...) é
assumir controle da própria imagem,
expressar-
se com a própria voz”
(2006, p. 50); o que a coloca em
sintonia com a perspectiv
estudos pós e decoloniais. E o
malandro então se descobre um
marginal brasileiro, como atestou
Keti em 1964, com
Nega Dina
373
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
malandragem” está sendo
parcialmente substituída ou, para dizer
o mínimo, diretamente desafiada pela
“dialética da marginalidade”, a qual
e fundada, no
princípio da superação das
desigualdades sociais, através do
confronto direto em vez da conciliação,
através da exposição da violência em
vez de sua ocultação” (
ROCHA, 2006,
p. 36). O jeitinho não desapareceu,
mas tem sido desafiado a todo
mento. A exacerbação da violência,
a denúncia da exploração econômica,
a crítica à negligência da diferença,
muitas vezes expressas na produção
cultural de filmes e na literatura como
A cidade de Deus
ou Quarto de
, ratificam o sentido da
da marginalidade. Nas
palavras do autor, a melhor definição
“prática do que tenho chamado de
“dialética da marginalidade” (...) é
assumir controle da própria imagem,
se com a própria voz”
(2006, p. 50); o que a coloca em
sintonia com a perspectiv
a dos
estudos pós e decoloniais. E o
malandro então se descobre um
marginal brasileiro, como atestou
Nega Dina
:
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
(...)
Eu dou duro no baralho pra poder
viver
A minha vida não é mole não
Entro em cana a toda hora
Sem apelação
Eu já
ando assustado e sem
paradeiro
Sou um marginal
Brasileiro
(KETI; MONSUETO,
1982).
Embora a idealização da
malandragem na música, na literatura,
no teatro, nas artes em geral,
contribuísse para a formação de um
tipo ideal caracterizado pela
negociação, m
ediação, diálogo, ou
seja, formas conciliatórias de
resolução de normas em conflito, a
violência nunca esteve ausente da
vida cotidiana do malandro e de
setores subalternos da sociedade
como se pode ver desde as lutas
corporais aos assassinatos por causa
d
e jogos, disputas territoriais, lenocínio
etc., (ROCHA, 2004). Portanto, a
contraposição violência
versus
deve-
se possivelmente à mudança de
percepção em torno da malandragem.
A verdade é que o “jeitinho”, suposto
modo harmonioso e conciliatório d
resolução de conflitos sociais, também
constitui uma forma de violência
simbólica.
Como nos lembra João
Rocha: “Celebrar a malandragem,
portanto, é esquecer que todo Vadinho
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
Eu dou duro no baralho pra poder
A minha vida não é mole não
Entro em cana a toda hora
ando assustado e sem
1982).
Embora a idealização da
malandragem na música, na literatura,
no teatro, nas artes em geral,
contribuísse para a formação de um
tipo ideal caracterizado pela
ediação, diálogo, ou
seja, formas conciliatórias de
resolução de normas em conflito, a
violência nunca esteve ausente da
vida cotidiana do malandro e de
setores subalternos da sociedade
como se pode ver desde as lutas
corporais aos assassinatos por causa
e jogos, disputas territoriais, lenocínio
etc., (ROCHA, 2004). Portanto, a
versus
jeitinho
se possivelmente à mudança de
percepção em torno da malandragem.
A verdade é que o “jeitinho”, suposto
modo harmonioso e conciliatório d
e
resolução de conflitos sociais, também
constitui uma forma de violência
Como nos lembra João
Rocha: “Celebrar a malandragem,
portanto, é esquecer que todo Vadinho
necessita de uma Dona Flor para
explorar, roubar-
lhe o dinheiro, agredi
la quand
o seu desejo não é
prontamente atendido e, como
ninguém é de ferro, dar
amor” (ROCHA,
2006, p. 43).
malandro sobrevive à custa do
“otário”. Mas, o otário, antes de ser um
tipo, se parece com um ponto de vista,
afinal, “o malandro pra valer
espalha / aposentou a navalha...”
(HOLANDA, 1980, p. 103), ou seja, o
malandro pra valer tornou
para o “malandro profissional”. A
verdade é que aos poucos, o malandro
vai sendo dramaticamente
encompassado por outras
significantes
, ora protagonizado pelo
marginal narcotraficante que domina a
comunidade, ora pelo miliciano
violento e o político corrupto,muitas
vezes, habitando um mesmo corpo.
Moral da história
Nesse momento, como que
fechando o ciclo aberto com as
Memórias..., o
personagem Piranha da
Fonseca Albuquerque d’
líder, texto de
Fernando
publicado em 1970, cobre um longo
período histórico que se inicia em 1910
e vai até o golpe militar de 1964. A
374
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
necessita de uma Dona Flor para
lhe o dinheiro, agredi
-
o seu desejo não é
prontamente atendido e, como
ninguém é de ferro, dar
-lhe também
2006, p. 43).
O
malandro sobrevive à custa do
“otário”. Mas, o otário, antes de ser um
tipo, se parece com um ponto de vista,
afinal, “o malandro pra valer
–não
espalha / aposentou a navalha...”
(HOLANDA, 1980, p. 103), ou seja, o
malandro pra valer tornou
-se escada
para o “malandro profissional”. A
verdade é que aos poucos, o malandro
vai sendo dramaticamente
encompassado por outras
personas ou
, ora protagonizado pelo
marginal narcotraficante que domina a
comunidade, ora pelo miliciano
violento e o político corrupto,muitas
vezes, habitando um mesmo corpo.
Nesse momento, como que
fechando o ciclo aberto com as
personagem Piranha da
Fonseca Albuquerque d’
O grande
Fernando
Jorge
publicado em 1970, cobre um longo
período histórico que se inicia em 1910
e vai até o golpe militar de 1964. A
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
estória de Piranha é, na verdade, a
saga da corrupção no Bras
Ana Carolina Mesquita na orelha do
livro
12
.
Filho de um “coronel” violento e
corrupto, Piranha, ao contrário de
Leonardo Pataca, não é fruto de uma
“pisadela e um beliscão”, mas sim de
um estupro. O nome que lembra a
voracidade do peixe, lhe
foi dado em
razão da fome insaciável; o que o
torna “sósia” de Leonardo filho. Desde
criança apresenta acentuada
inclinação para o roubo; vício que o
acompanha por toda vida. Em
verdade, o pai lhe transmitira como
“filosofia de vida” uma mensagem bem
ao es
tilo do “parasitismo social”,
quando dizia: “-
As saúva são ladrona
explicava Antônio a Piranha
num condená elas. A vida tudinha é
um roubo! O fio rouba leiti da mãie, o
têmpu nus rouba uscabêlu, u Guvêrnu
rouba u povo cum impostu, u noivo
rou
ba as fia do pai, a mórti nus rouba a
respiração. Tudo é côpiangage!”
(JORGE,
2003, p. 98). O estudo nunca
foi o seu forte, mas chegou a ser
12
Não faz muito t
empo, o escritor e jornalista
Fernando Jorge me surpreendeu com uma
carinhosa e provocativa dedicatória ao me
presentear com seu “O grande líder”
escatológico a se julgar a sua atualidade
ele minha modesta gratidão.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
estória de Piranha é, na verdade, a
saga da corrupção no Bras
il, observa
Ana Carolina Mesquita na orelha do
Filho de um “coronel” violento e
corrupto, Piranha, ao contrário de
Leonardo Pataca, não é fruto de uma
“pisadela e um beliscão”, mas sim de
um estupro. O nome que lembra a
foi dado em
razão da fome insaciável; o que o
torna “sósia” de Leonardo filho. Desde
criança apresenta acentuada
inclinação para o roubo; vício que o
acompanha por toda vida. Em
verdade, o pai lhe transmitira como
“filosofia de vida” uma mensagem bem
tilo do “parasitismo social”,
As saúva são ladrona
explicava Antônio a Piranha
- mai eu
num condená elas. A vida tudinha é
um roubo! O fio rouba leiti da mãie, o
têmpu nus rouba uscabêlu, u Guvêrnu
rouba u povo cum impostu, u noivo
ba as fia do pai, a mórti nus rouba a
respiração. Tudo é côpiangage!”
2003, p. 98). O estudo nunca
foi o seu forte, mas chegou a ser
empo, o escritor e jornalista
Fernando Jorge me surpreendeu com uma
carinhosa e provocativa dedicatória ao me
presentear com seu “O grande líder”
- livro
escatológico a se julgar a sua atualidade
-, a
coroinha e a se formar em medicina;
passava por meio de muita “cola”,
assédio e golpes. Como médico
lançava mão de
simpáticos (relativo a práticas de
magia simpática) para curar alguns de
seus pacientes. Torna
participa da Revolução de 1932,
porém, mesmo com toda covardia que
lhe é atávica, acaba virando herói, o
que favorece sua candidatura p
a deputado federal. Embora
discursasse em nome da liberdade e
da democracia “no íntimo gostaria que
um golpe abolisse o Senado e a
Câmara Federal. Então, ó sonho
maravilhoso!, ele assumiria o governo,
convertendo-
se em ditador absoluto,
cuja prime
ira medida seria a imposição
de um regime fascista, o aniquilamento
da igualdade perante a lei, a
supressão dos direitos e das
liberdades constitucionais” (
2003, p. 204), nos informa o escritor
sobre seu personagem que parece ter
vida própria. Não d
emoraria para que
Piranha se lançasse ao Governo do
Paraná pelo
Partido Social
Tropicalista
, sendo eleito
esmagadoramente. Em seus discursos
proclamava:
Meu povo, meu querido povo, eu sou
igualzinho a vocês, porque desde
375
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
coroinha e a se formar em medicina;
passava por meio de muita “cola”,
assédio e golpes. Como médico
lançava mão de
métodos bem
simpáticos (relativo a práticas de
magia simpática) para curar alguns de
seus pacientes. Torna
-se vereador e
participa da Revolução de 1932,
porém, mesmo com toda covardia que
lhe é atávica, acaba virando herói, o
que favorece sua candidatura p
osterior
a deputado federal. Embora
discursasse em nome da liberdade e
da democracia “no íntimo gostaria que
um golpe abolisse o Senado e a
Câmara Federal. Então, ó sonho
maravilhoso!, ele assumiria o governo,
se em ditador absoluto,
ira medida seria a imposição
de um regime fascista, o aniquilamento
da igualdade perante a lei, a
supressão dos direitos e das
liberdades constitucionais” (
JORGE,
2003, p. 204), nos informa o escritor
sobre seu personagem que parece ter
emoraria para que
Piranha se lançasse ao Governo do
Partido Social
, sendo eleito
esmagadoramente. Em seus discursos
Meu povo, meu querido povo, eu sou
igualzinho a vocês, porque desde
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
cedo peguei no batente! aos
quatorze anos calcei o meu primeiro
par de sapatos! Sou filho de uma
humilde datilógrafa, que logo ficou
viúva e trabalhou em excesso para
que eu pudesse estudar! É por isto
que a mim não interessa a atividade
político-
partidária e embora eu seja
liberal-d
emocrata, sou um irredutível
adversário dos privilégios da
burguesia! Todavia, sempre
defenderei as sagradas tradições da
família paranaense e lutarei de peito
descoberto contra os sistemas
exóticos e anticristãos, pois o
Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cr
isto é o meu único código de
moral!” (JORGE,
2003, p. 219).
Déjà-
vu. Um discurso que
lembra muitos políticos profissionais
de hoje em dia: mentiras, populismo,
conservadorismo etc.; nada que cause
surpresa. Em sua gestão, na definição
dos adversários pol
íticos, a sede do
Governo de Estado, o Palácio do
Iguaçu, era conhecido como “Caverna
do Ali Babá”.
Em uma noite de insônia, o
Secretário de Governo toma de um
livro de Rui Barbosa a seguinte
passagem na esperança de que o
deus Morfeu dele se apiedasse, e
para o Governador:
A natureza o fez escorregadio como
a enguia, para as fugidas.
como o camaleão, cambiante e
multicor, para as adaptações mais
variadas. Fê-
lo com duas
disposições do morcego para a
dentada e o assopro, o afago e a
sangria. Fê-l
o rasteiro e virulento
como a víbora, para as covardias e
os crimes. Dotou-
lhe o olhar do rato,
as lágrimas do crocodilo, o riso da
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
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(
Fluxo Contínuo
cedo peguei no batente! aos
quatorze anos calcei o meu primeiro
par de sapatos! Sou filho de uma
humilde datilógrafa, que logo ficou
viúva e trabalhou em excesso para
que eu pudesse estudar! É por isto
que a mim não interessa a atividade
partidária e embora eu seja
emocrata, sou um irredutível
adversário dos privilégios da
burguesia! Todavia, sempre
defenderei as sagradas tradições da
família paranaense e lutarei de peito
descoberto contra os sistemas
exóticos e anticristãos, pois o
Evangelho de Nosso Senhor Jesus
isto é o meu único código de
2003, p. 219).
vu. Um discurso que
lembra muitos políticos profissionais
de hoje em dia: mentiras, populismo,
conservadorismo etc.; nada que cause
surpresa. Em sua gestão, na definição
íticos, a sede do
Governo de Estado, o Palácio do
Iguaçu, era conhecido como “Caverna
Em uma noite de insônia, o
Secretário de Governo toma de um
livro de Rui Barbosa a seguinte
passagem na esperança de que o
deus Morfeu dele se apiedasse, e
leu
A natureza o fez escorregadio como
a enguia, para as fugidas.
-lo
como o camaleão, cambiante e
multicor, para as adaptações mais
lo com duas
disposições do morcego para a
dentada e o assopro, o afago e a
o rasteiro e virulento
como a víbora, para as covardias e
lhe o olhar do rato,
as lágrimas do crocodilo, o riso da
hiena, a gravidade do mocho, a
imoralidade do bugio, a pele da anta,
o bucho da ema” (
241).
Para completa
Piranha, faltou a inteligência do asno;
que seria atestada com o comentário a
seguir: “-
Puxa! O Rui Barbosa
descreve um monstro! Será que existe
alguém assim?” (
JORGE,
241).
Ao fim e ao cabo, Piranha se
lança a presidência do Bras
logo a notícia, espalhou
maior regozijo entre os falsários,
proxenetas, maconheiros,
estupradores, arrombadores,
peculatários, macumbeiros e
contrabandistas” (
JORGE,
284). Para finalizar, embora longa,
vale a pena conhecer o
Brasil novo e melhor, pois:
O seu programa de governo era bem
simples: permitiria a entrada ilegal de
estrangeiros no país; deixaria que
vastas extensões do nosso território
fossem leiloadas no Exterior,
confinaria os adversários na ilha
Fernando de Noronha; colocaria o
Ministério da
Fazenda a serviço de
favoritismos inconfessáveis;
ordenaria que nas escolas os alunos
decorassem os versos da “Geração
de 45”, a fim de que a juventude se
imbecilizasse; fundaria a Caixa da
Poupança, no intuito de se apoderar
dos níqueis do
habeas-corpus
, todo mundo poderia
sofrer violência ou coação; chefiaria
uma quadrilha de contrabandistas,
os quais lhe trariam toneladas de
ouro dos garimpos do Alto Tapajós;
376
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Fluxo Contínuo
)
hiena, a gravidade do mocho, a
imoralidade do bugio, a pele da anta,
o bucho da ema” (
JORGE, 2003, p.
Para completa
r o perfil de
Piranha, faltou a inteligência do asno;
que seria atestada com o comentário a
Puxa! O Rui Barbosa
descreve um monstro! Será que existe
JORGE,
2003, p.
Ao fim e ao cabo, Piranha se
lança a presidência do Bras
il “e, tão
logo a notícia, espalhou
-se, causou
maior regozijo entre os falsários,
proxenetas, maconheiros,
estupradores, arrombadores,
peculatários, macumbeiros e
JORGE,
2003, p.
284). Para finalizar, embora longa,
vale a pena conhecer o
seu desejo de
Brasil novo e melhor, pois:
O seu programa de governo era bem
simples: permitiria a entrada ilegal de
estrangeiros no país; deixaria que
vastas extensões do nosso território
fossem leiloadas no Exterior,
confinaria os adversários na ilha
Fernando de Noronha; colocaria o
Fazenda a serviço de
favoritismos inconfessáveis;
ordenaria que nas escolas os alunos
decorassem os versos da “Geração
de 45”, a fim de que a juventude se
imbecilizasse; fundaria a Caixa da
Poupança, no intuito de se apoderar
dos níqueis do
-povinho; aboliria o
, todo mundo poderia
sofrer violência ou coação; chefiaria
uma quadrilha de contrabandistas,
os quais lhe trariam toneladas de
ouro dos garimpos do Alto Tapajós;
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
instalaria em cada esquina um
prostíbulo e em cada quarteirão uma
casa de tavolagem; escolheria, como
seus auxiliares, indivíduos
analfabetos, inescrupulosos e
subservientes; dilapidaria o
patrimônio das autarquias, das
empresas de economia mista e das
con
cessionárias de serviços
públicos; lindas meretrizes seriam
rifadas pela Loteria Federal, a cinco
mil cruzeiros o bilhete da dezena;
sabendo que na China os mandarins
se reciclavam no “divã do ópio”,
criaria para todos os brasileiros o
“divã da maconha”, p
forma os nossos patrícios ficariam
cretinizados, com a inteligência
embotada; limitaria ao mínimo a
nossa produção agrícola, e de tal
maneira que teríamos de importar
cebolas do Egito, alhos do Chile,
batatas da Holanda e rabanetes do
Paraguai;
incrementaria a indústria
das matérias graxas do Estado,
destinada à fabricação de sabonetes
extraídas da gordura dos cadáveres;
obrigaria os ginasianos a
aprenderem
História do Brasil
livrescos inçados de erros do
escrevinhador R. Magalhães Junior;
o
rganizaria o roubo e o crime, e
neste sentido tomaria por modelo a
célebre
Murder Incorporated
Company
, que dominou Chicago na
época de 1930; haveria de contratar
eficientes assassinos da Máfia e da
Camorra napolitana, assassinos tão
frios e implacáveis co
terríveis gangsters
Unidos; entregaria à Bélgica, ou à
Noruega, ou à Alemanha, as nossas
jazidas de calcário e de areias
monazíticas, as lavras de petróleo do
Recôncavo baiano, os itabiritos da
serra do Espinhaço, o manganês do
Riach
o de Santana, a bauxita de
Paramirim, o cobre da mina
Camacuâ, do Rio Grande do Sul, as
riquezas do subsolo da região
amazônica, os enormes depósitos de
óxidos metaloides, as centenas de
milhões de toneladas de ferro, de
sulfatos de chumbo, de sal
volframita, de tantalita, de cassiterita
e de dezenas de outras coisas
terminadas em “ita”! (
JORGE,
p. 323-324).
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
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Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
instalaria em cada esquina um
prostíbulo e em cada quarteirão uma
casa de tavolagem; escolheria, como
seus auxiliares, indivíduos
analfabetos, inescrupulosos e
subservientes; dilapidaria o
patrimônio das autarquias, das
empresas de economia mista e das
cessionárias de serviços
públicos; lindas meretrizes seriam
rifadas pela Loteria Federal, a cinco
mil cruzeiros o bilhete da dezena;
sabendo que na China os mandarins
se reciclavam no “divã do ópio”,
criaria para todos os brasileiros o
“divã da maconha”, p
orque desta
forma os nossos patrícios ficariam
cretinizados, com a inteligência
embotada; limitaria ao mínimo a
nossa produção agrícola, e de tal
maneira que teríamos de importar
cebolas do Egito, alhos do Chile,
batatas da Holanda e rabanetes do
incrementaria a indústria
das matérias graxas do Estado,
destinada à fabricação de sabonetes
extraídas da gordura dos cadáveres;
obrigaria os ginasianos a
História do Brasil
nos
livrescos inçados de erros do
escrevinhador R. Magalhães Junior;
rganizaria o roubo e o crime, e
neste sentido tomaria por modelo a
Murder Incorporated
, que dominou Chicago na
época de 1930; haveria de contratar
eficientes assassinos da Máfia e da
Camorra napolitana, assassinos tão
frios e implacáveis co
mo os mais
dos Estados
Unidos; entregaria à Bélgica, ou à
Noruega, ou à Alemanha, as nossas
jazidas de calcário e de areias
monazíticas, as lavras de petróleo do
Recôncavo baiano, os itabiritos da
serra do Espinhaço, o manganês do
o de Santana, a bauxita de
Paramirim, o cobre da mina
Camacuâ, do Rio Grande do Sul, as
riquezas do subsolo da região
amazônica, os enormes depósitos de
óxidos metaloides, as centenas de
milhões de toneladas de ferro, de
sulfatos de chumbo, de sal
-gema, de
volframita, de tantalita, de cassiterita
e de dezenas de outras coisas
JORGE,
2003,
Com fina ironia, ou para
esconder a farsa dessa tragédia,
Piranha concluía:
“-
Eu sou o próprio retrato humano
do Brasil! -
bradou o c
-
Se esta nação tivesse que virar
gente, viraria Piranha da Fonseca
Albuquerque! (
325).
O que a saga de Piranha da
Fonseca Albuquerque nos revela,
seguindo a linha aberta por Leonardo
Filho, é a metamorfose do significado
do ma
landro que, sem abandonar a
dialética da ordem e da desordem, se
torna símbolo de um fenômeno
negativo. No entanto, não representa
isso a superação da esperteza, da
astúcia, da malícia
malandragem como “poder dos
fracos”, para uma forma negativa de
expressão cultural: a corrupção. “O
malandro pra valer”, diz o samba,
permaneceu marginalizado, agora, não
mais por Vidigal ou o Inspetor Chaves,
mas pelos moralistas conservadores
de ocasião. De certa forma, Piranha da
Fonseca Albuquerque encarna, nele
mesmo, um misto de político com
miliciano; literariamente, é a
13
A malicia, na leitura de Zonzon (2014),
constitui um dos fundamentos do jogo da
capoeira, inclusive, na constituição da
capoeira como “arte da malandragem”.
377
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
Com fina ironia, ou para
esconder a farsa dessa tragédia,
Eu sou o próprio retrato humano
bradou o c
andidato.
Se esta nação tivesse que virar
gente, viraria Piranha da Fonseca
Albuquerque! (
JORGE, 2003, p.
O que a saga de Piranha da
Fonseca Albuquerque nos revela,
seguindo a linha aberta por Leonardo
Filho, é a metamorfose do significado
landro que, sem abandonar a
dialética da ordem e da desordem, se
torna símbolo de um fenômeno
negativo. No entanto, não representa
isso a superação da esperteza, da
astúcia, da malícia
13
, enfim, da
malandragem como “poder dos
fracos”, para uma forma negativa de
expressão cultural: a corrupção. “O
malandro pra valer”, diz o samba,
permaneceu marginalizado, agora, não
mais por Vidigal ou o Inspetor Chaves,
mas pelos moralistas conservadores
de ocasião. De certa forma, Piranha da
Fonseca Albuquerque encarna, nele
mesmo, um misto de político com
miliciano; literariamente, é a
A malicia, na leitura de Zonzon (2014),
constitui um dos fundamentos do jogo da
capoeira, inclusive, na constituição da
capoeira como “arte da malandragem”.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
combinação tipo ideal da corrupção e
da violência, da ignorância e da
covardia.
A corrupção é, hoje, sem dúvida
alguma
o fantasma que ronda o Brasil.
É o mal a ser combatido, o ente a ser
expiado publicamente, o vilão a ser
eliminado, o Estado a ser
desestatizado; assim pensam certos
juízes supremacistas, promotores
lavajatistas, políticos olavistas,
jornalistas globais,
economistas
neoliberais, pastores evangélicos,
oportunistas de plantão, enfim, os
“macarthistas” à la “tramp”. O que
mostra quão difícil e complexa é a
tarefa de se tentar entender o nosso
“Leviatã”.
Em geral, os estudos sobre a
corrupção no Brasil são un
associá-
la ao problema da formação
do Estado. A interpretação clássica de
Sérgio Buarque de Holanda em
do Brasil
, livro de 1936, de inspiração
weberiana, caracteriza como
patrimonial o Estado posto que para
seus funcionários “a própria ges
política apresenta-
se como assunto de
seu interesse particular” (
1984, p. 106)
14
. Consoante a esta
14
A interpretação de Sergio Buarque de
Holanda, como de outros intérpretes do Brasil,
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
combinação tipo ideal da corrupção e
da violência, da ignorância e da
A corrupção é, hoje, sem dúvida
o fantasma que ronda o Brasil.
É o mal a ser combatido, o ente a ser
expiado publicamente, o vilão a ser
eliminado, o Estado a ser
desestatizado; assim pensam certos
juízes supremacistas, promotores
lavajatistas, políticos olavistas,
economistas
neoliberais, pastores evangélicos,
oportunistas de plantão, enfim, os
“macarthistas” à la “tramp”. O que
mostra quão difícil e complexa é a
tarefa de se tentar entender o nosso
Em geral, os estudos sobre a
corrupção no Brasil são un
ânimes em
la ao problema da formação
do Estado. A interpretação clássica de
Sérgio Buarque de Holanda em
Raízes
, livro de 1936, de inspiração
weberiana, caracteriza como
patrimonial o Estado posto que para
seus funcionários “a própria ges
tão
se como assunto de
seu interesse particular” (
HOLANDA,
. Consoante a esta
A interpretação de Sergio Buarque de
Holanda, como de outros intérpretes do Brasil,
perspectiva, outros veem na ausência
de uma cultura cívica a causa da
corrupção pois, nesse caso, imperam
os interesses familiares, de grupos
rel
igiosos, empresarias etc. quem
veja no descompasso entre a
modernização e a estrutura burocrática
tradicional o solo fértil para a
corrupção, favorecendo muitas vezes
a crença ou a ação egoísta com fins
utilitaristas resultante de uma escolha
racional.
A verdade é que o número de
abordagens sobre a corrupção não
acompanha suas performances.
Seguindo a análise de Fernando
Filgueiras (2009), inspirada na
será objeto
de crítica virulenta da parte de
Jessé Souza (2009; 2019); assunto que, em
razão dos limites do texto, lamentavelmente
não poderá ser aprofundado nesse momento.
No entanto, destaco:
A narrativa da “sociologia
do jeitinho”, da teoria do “homem cordial”,
en
tre outros, tem servido à legitimação do
Estado patrimonial e da corrupção no Brasil
não é falsa, mas não é absoluta. A vasta e
longa legião de intérpretes que veem no favor,
na malandragem, no jeitinho, na cordialidade,
na corrupção, algo estruturante na
social precisa ser vista com profundidade e
seriedade, pois não se reduzem a um discurso
de legitimação ou retórica a favor da
manipulação midiática arquitetada
conspiratoriamente pelos intelectuais liberais
conservadores com o conluio dos sistem
judiciário e legislativo e das elites do atraso. A
realidade é sempre mais densa e complexa do
que a teoria nos diz; não por acaso, Max
Weber irá propor que se pense, com
objetividade –
por todo “aquele que ame a
verdade”-
, as configurações histórico
da realidade social à luz dos “tipos ideais”,
colocando em destaque os elementos
estruturantes da realidade sem, contudo,
confundir-
se empiricamente com a mesma.
378
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
perspectiva, outros veem na ausência
de uma cultura cívica a causa da
corrupção pois, nesse caso, imperam
os interesses familiares, de grupos
igiosos, empresarias etc. quem
veja no descompasso entre a
modernização e a estrutura burocrática
tradicional o solo fértil para a
corrupção, favorecendo muitas vezes
a crença ou a ação egoísta com fins
utilitaristas resultante de uma escolha
A verdade é que o número de
abordagens sobre a corrupção não
acompanha suas performances.
Seguindo a análise de Fernando
Filgueiras (2009), inspirada na
de crítica virulenta da parte de
Jessé Souza (2009; 2019); assunto que, em
razão dos limites do texto, lamentavelmente
não poderá ser aprofundado nesse momento.
A narrativa da “sociologia
do jeitinho”, da teoria do “homem cordial”,
tre outros, tem servido à legitimação do
Estado patrimonial e da corrupção no Brasil
não é falsa, mas não é absoluta. A vasta e
longa legião de intérpretes que veem no favor,
na malandragem, no jeitinho, na cordialidade,
na corrupção, algo estruturante na
realidade
social precisa ser vista com profundidade e
seriedade, pois não se reduzem a um discurso
de legitimação ou retórica a favor da
manipulação midiática arquitetada
conspiratoriamente pelos intelectuais liberais
conservadores com o conluio dos sistem
as
judiciário e legislativo e das elites do atraso. A
realidade é sempre mais densa e complexa do
que a teoria nos diz; não por acaso, Max
Weber irá propor que se pense, com
por todo “aquele que ame a
, as configurações histórico
-culturais
da realidade social à luz dos “tipos ideais”,
colocando em destaque os elementos
estruturantes da realidade sem, contudo,
se empiricamente com a mesma.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
sociologia de Bourdieu, nossa
tolerância para com a corrupção
decore da antinomia entre juízo de
valor
e juízo de necessidade. A
corrupção se revela um jogo linguístico
à medida que, a depender do juízo
moral, as ações ou práticas
consideradas corruptas são toleradas
ou não; são condenadas ou não pela
opinião pública. À exemplo do “tribunal
da opinião” púb
lica, de que fala
Bourdieu (1988), no qual se avalia a
honra de um homem, a corrupção é,
antes de tudo, um juízo de valor, uma
questão de moral. O que é corrupção
para uns, pode não ser para outros.
Julgada na esfera pública, porém,
tolerada no âmbito da v
ida privada.
Mas não é na esfera da vida
privada que o julgamento sobre a
corrupção se relativiza, pois como nos
mostra Otávio Bezerra (2017) os
limites entre a ação de empreiteiras e
dos políticos é bastante tênue. Nessa
perspectiva, talvez não estejam
ainda, quem sabe, tão longe do
“mundo sem culpa” do qual falava
Antônio Candido décadas atrás.
Junto com a espetacularização
da corrupção, sob a qual se produz um
certo desvio de atenção sobre
realidade da desigualdade social à
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
sociologia de Bourdieu, nossa
tolerância para com a corrupção
decore da antinomia entre juízo de
e juízo de necessidade. A
corrupção se revela um jogo linguístico
à medida que, a depender do juízo
moral, as ações ou práticas
consideradas corruptas são toleradas
ou não; são condenadas ou não pela
opinião pública. À exemplo do “tribunal
lica, de que fala
Bourdieu (1988), no qual se avalia a
honra de um homem, a corrupção é,
antes de tudo, um juízo de valor, uma
questão de moral. O que é corrupção
para uns, pode não ser para outros.
Julgada na esfera pública, porém,
ida privada.
Mas não é na esfera da vida
privada que o julgamento sobre a
corrupção se relativiza, pois como nos
mostra Otávio Bezerra (2017) os
limites entre a ação de empreiteiras e
dos políticos é bastante tênue. Nessa
perspectiva, talvez não estejam
os
ainda, quem sabe, tão longe do
“mundo sem culpa” do qual falava
Antônio Candido décadas atrás.
Junto com a espetacularização
da corrupção, sob a qual se produz um
certo desvio de atenção sobre
realidade da desigualdade social à
medida que se culpabiliz
sua ressonância é reveladora de uma
“tragédia disfar(s)çada”
sentido etimológico da palavra
corrupção (do grego
significado remete à “destruição, ruína
e dano aos valores e à ordem”, nos
lembra Gomes (2010, p.
destruição da ordem social
democrática e do estado mínimo de
direitos, a sonegação de impostos das
grandes empresas, a farra dos bilhões
para o fundo eleitoral, o
“empoderamento” das milícias, a orgia
das fake news
, tudo isso e muito mais,
mostra qu
e a corrupção
iceberg-
é antes a nossa farsa, por
assim dizer, de uma história trágica.
Desnecessário lembrar que a
corrupção perpetrada pelos nossos
“junkers”, penso nesse momento em
Werneck Vianna, alimenta a
desigualdade social. Mas, é preci
um “bode expiatório” para se aplacar
ou satisfazer a violência inerente à
sociedade, sobretudo, quando a
mesma apresenta características
coloniais, quiçá escravocratas, como a
brasileira
15
.
15
Do ponto de vista funcional a retórica da
corrupção não escolhe partidos, classes ou
religião, a se julgar o exemplo de Angola, pois,
muitas vezes, o combate à corrupção se
379
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
medida que se culpabiliz
a o Estado, a
sua ressonância é reveladora de uma
“tragédia disfar(s)çada”
-a se julgar o
sentido etimológico da palavra
corrupção (do grego
diaphthora) cujo
significado remete à “destruição, ruína
e dano aos valores e à ordem”, nos
lembra Gomes (2010, p.
33). A
destruição da ordem social
democrática e do estado mínimo de
direitos, a sonegação de impostos das
grandes empresas, a farra dos bilhões
para o fundo eleitoral, o
“empoderamento” das milícias, a orgia
, tudo isso e muito mais,
e a corrupção
-a ponta do
é antes a nossa farsa, por
assim dizer, de uma história trágica.
Desnecessário lembrar que a
corrupção perpetrada pelos nossos
“junkers”, penso nesse momento em
Werneck Vianna, alimenta a
desigualdade social. Mas, é preci
so
um “bode expiatório” para se aplacar
ou satisfazer a violência inerente à
sociedade, sobretudo, quando a
mesma apresenta características
coloniais, quiçá escravocratas, como a
Do ponto de vista funcional a retórica da
corrupção não escolhe partidos, classes ou
religião, a se julgar o exemplo de Angola, pois,
muitas vezes, o combate à corrupção se
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
Não por acaso, canta Chico
Buarque de Holanda
(1980, p. 21
“O malandro / Na dureza / Senta à
mesa / Do café / Bebe um gole / De
cachaça / Acha graça / E no pé”,
será, rocambolescamente,
considerado o culpado, pois “O
garçom / Um malandro / Sai
gritando / Pega ladrão / E o malandro /
Autuado / É julgado e con
Pela situação”.
E o que também
denuncia Jessé de Souza (2009; 2019)
quando diz que o malandro, o jeitinho
e a corrupção funcionalmente
legitimam essa chamada “pátria
amada Brasil” ao tirar de cena o
problema da desigualdade estrutural
que persiste
no país desde o “tempo
do rei”.
A “arte da malandragem”
Não dúvida que as
categorias favor, jeitinho,
malandragem, corrupção, cordialidade,
concorrem funcionalmente para a
legitimação da retórica moralista,
liberal e conservadora; no entanto,
elas t
ambém apontam para um
aproxima de uma obsessão moral. Segundo
Macamo (2014), em Angola a corrupção,
independentemente de ser provada sua
existência, representava uma ameaça à
criação de um p
aís novo, de um “homem
novo” -
fantasia que ronda o Brasil atualmente.
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
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(
Fluxo Contínuo
Não por acaso, canta Chico
(1980, p. 21
-23):
“O malandro / Na dureza / Senta à
mesa / Do café / Bebe um gole / De
cachaça / Acha graça / E no pé”,
será, rocambolescamente,
considerado o culpado, pois “O
garçom / Um malandro / Sai
gritando / Pega ladrão / E o malandro /
Autuado / É julgado e con
denado /
E o que também
denuncia Jessé de Souza (2009; 2019)
quando diz que o malandro, o jeitinho
e a corrupção funcionalmente
legitimam essa chamada “pátria
amada Brasil” ao tirar de cena o
problema da desigualdade estrutural
no país desde o “tempo
A “arte da malandragem”
Não dúvida que as
categorias favor, jeitinho,
malandragem, corrupção, cordialidade,
concorrem funcionalmente para a
legitimação da retórica moralista,
liberal e conservadora; no entanto,
ambém apontam para um
aproxima de uma obsessão moral. Segundo
Macamo (2014), em Angola a corrupção,
independentemente de ser provada sua
existência, representava uma ameaça à
aís novo, de um “homem
fantasia que ronda o Brasil atualmente.
conjunto de representações e práticas
sociais daqueles que estão, muitas
vezes, na outra ponta do sistema:
aquela parcela gigantesca do mundo
social brasileiro que a “elite do atraso”
teima em tornar invisível e execrável: a
“ralé bra
sileira”. A verdade é que o
mundo da malandragem o é um
mundo cor de rosa onde tem lugar
somente a negociação, as trocas, os
favores, os golpes, os jeitinhos, enfim,
as táticas harmoniosas de resolução
de conflitos sociais. Antes, trata
mundo da vi
da cotidiana, o mundo da
“realidade suprema” diria Schutz,
marcado pela tensão e violência física
e simbólica, na guerra de todos contra
todos, ordinariamente. A malandragem
talvez expresse simbolicamente a
nossa forma de “lutas de classe”, sem
excluir a v
iolência física ou simbólica,
mas também sem abandonar a astúcia
e a malícia que também hoje andam
pervertidas. Até pouco tempo atrás, e
possivelmente ainda hoje, a
malandragem era parte de um estilo
de vida e visão de mundo, portanto,
uma forma de sociabi
tensões, os conflitos, a violência, são
intestinas ao sistema social (ROCHA,
2004). A música, a literatura, a
indumentária, o cinema, o corpo, a
380
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
conjunto de representações e práticas
sociais daqueles que estão, muitas
vezes, na outra ponta do sistema:
aquela parcela gigantesca do mundo
social brasileiro que a “elite do atraso”
teima em tornar invisível e execrável: a
sileira”. A verdade é que o
mundo da malandragem o é um
mundo cor de rosa onde tem lugar
somente a negociação, as trocas, os
favores, os golpes, os jeitinhos, enfim,
as táticas harmoniosas de resolução
de conflitos sociais. Antes, trata
-se do
da cotidiana, o mundo da
“realidade suprema” diria Schutz,
marcado pela tensão e violência física
e simbólica, na guerra de todos contra
todos, ordinariamente. A malandragem
talvez expresse simbolicamente a
nossa forma de “lutas de classe”, sem
iolência física ou simbólica,
mas também sem abandonar a astúcia
e a malícia que também hoje andam
pervertidas. Até pouco tempo atrás, e
possivelmente ainda hoje, a
malandragem era parte de um estilo
de vida e visão de mundo, portanto,
uma forma de sociabi
lidade na qual as
tensões, os conflitos, a violência, são
intestinas ao sistema social (ROCHA,
2004). A música, a literatura, a
indumentária, o cinema, o corpo, a
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
preguiça e tantas outras formas
simbólicas por meio das quais se
critica, se denuncia, se rel
revela e se disfar(ç)sa a tragédia
nossa de todo dia no “país do
carnaval, do futebol e da
malandragem”, tudo isso nos mostra
quão densa, profunda e complexa é a
vida social no Brasil, mais do que o
pensamento sociológico consegue às
vezes tipi
ficar. De certa forma, a
malandragem expressa a sabedoria
popular de enfrentar, com certo
improviso, o sentido trágico da vida
com “arte”, no sentido nietzscheano.
É sabido que o significado das
palavras, conceitos ou categorias não
se mantem os mesmos de
pois mudam com o tempo.
P
arafraseando com Gilberto
Vasconcellos
(1977, p. 101
vate português: muda-
se o tempo,
muda-
se o vadio. Pisar macio não é
mais fundamental à malandragem”.
Não significa isso, no entanto, o fim ou
a morte da malan
dragem. Em
constante estado de prontidão o
malandro e a malandragem se
metamorfosearam ao longo do tempo
e adquiriram outros nomes, outras
caras, outras vozes. Assim, mesmo
com toda ambiguidade e ambivalência
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
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Fluxo Contínuo
preguiça e tantas outras formas
simbólicas por meio das quais se
critica, se denuncia, se rel
ativiza, se
revela e se disfar(ç)sa a tragédia
nossa de todo dia no “país do
carnaval, do futebol e da
malandragem”, tudo isso nos mostra
quão densa, profunda e complexa é a
vida social no Brasil, mais do que o
pensamento sociológico consegue às
ficar. De certa forma, a
malandragem expressa a sabedoria
popular de enfrentar, com certo
improviso, o sentido trágico da vida
com “arte”, no sentido nietzscheano.
É sabido que o significado das
palavras, conceitos ou categorias não
se mantem os mesmos de
sempre,
pois mudam com o tempo.
arafraseando com Gilberto
(1977, p. 101
-102) “o
se o tempo,
se o vadio. Pisar macio não é
mais fundamental à malandragem”.
Não significa isso, no entanto, o fim ou
dragem. Em
constante estado de prontidão o
malandro e a malandragem se
metamorfosearam ao longo do tempo
e adquiriram outros nomes, outras
caras, outras vozes. Assim, mesmo
com toda ambiguidade e ambivalência
de que é portadora, a “arte da
malandragem”, aq
uela utilizada pelos
setores das classes populares, não
representa, por certo, somente um
modo de “domesticar as contradições”,
mas expressa uma forma simbólica de
resistir, criticar, “empoderar” no sentido
de desestabilizar e relativizar certas
estruturas
de poder, um modo de
tornar o medo, a desigualdade, o
preconceito, sem perder de vista a
realidade suprema, em “letras de
samba” enquanto “arma dos fracos”
Ao longo da formação das artes
e das culturas populares no Brasil
(literatura, teatro, poesia,
muitos tipos de malandros surgiram
ora aqui, ora acolá como o malandro
valente, o malandro regenerado, o
bom malandro e o falso malandro, o
malandro federal, o malandro
sambista, entre outros. A poética
musical de Bezerra da Silva ilustra
esse
processo ao dar voz, por meio
16
Bakhtin (1987), confere às classes populares
um grande poder de carnavalização, o que
não está restrito ao universo da Idade Média e
do Renascimento. Ao meu ver “etnografia
experimental
” de Telles e Hirata (2007) em
torno das “histórias minúsculas” de “homens
infames” -
aqueles que vivem nas margens e à
margem, entre o formal e o informal, o legal e
o ilegal, o lícito e o ilícito-
, ilustra de maneira
exemplar e aproximativamente as tessit
da “arte do contornamento” com a “arte da
malandragem”.
381
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- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
de que é portadora, a “arte da
uela utilizada pelos
setores das classes populares, não
representa, por certo, somente um
modo de “domesticar as contradições”,
mas expressa uma forma simbólica de
resistir, criticar, “empoderar” no sentido
de desestabilizar e relativizar certas
de poder, um modo de
tornar o medo, a desigualdade, o
preconceito, sem perder de vista a
realidade suprema, em “letras de
samba” enquanto “arma dos fracos”
16
.
Ao longo da formação das artes
e das culturas populares no Brasil
(literatura, teatro, poesia,
música etc.)
muitos tipos de malandros surgiram
ora aqui, ora acolá como o malandro
valente, o malandro regenerado, o
bom malandro e o falso malandro, o
malandro federal, o malandro
sambista, entre outros. A poética
musical de Bezerra da Silva ilustra
processo ao dar voz, por meio
Bakhtin (1987), confere às classes populares
um grande poder de carnavalização, o que
não está restrito ao universo da Idade Média e
do Renascimento. Ao meu ver “etnografia
” de Telles e Hirata (2007) em
torno das “histórias minúsculas” de “homens
aqueles que vivem nas margens e à
margem, entre o formal e o informal, o legal e
, ilustra de maneira
exemplar e aproximativamente as tessit
uras
da “arte do contornamento” com a “arte da
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
das parcerias e dos tipos que canta, às
parcelas menos favorecidas da
sociedade como os habitantes das
comunidades pobres, dos morros e
dos subúrbios. Como nos lembra
Leticia Vian (1998, p. 123-
124)
Os sambas que Bezerra da
canta não fazem apologia do
bandido, do malandro, do colarinho
branco corrupto ou do trabalhador.
Falam, com humor ácido, de um
mundo bárbaro, de certa forma
pouco familiar ao grande público.
Exploram uma linguagem própria
marcada pela ambiguidade, p
duplo sentido e ironia e pela
relatividade ou ausência de
julgamento moral; um discurso que
afirma a identidade de um etos
favelado, excluído dos mecanismos
de justiça social. Seu repertório é
uma crônica da vida cotidiana das
favelas e subúrbios cario
bem-
humorada e densa de crítica
social, onde o malandro é
personagem ambíguo, difuso, que
aparece de diferentes maneiras,
inclusive
como personificação do
artista.
Em “Revisitando a
malandragem”, José Carlos Rodrigues
(2018)
retoma o modelo analítico de
Roberto DaMatta centrado nas figuras
do malandro, do Caxias, do otário e do
renunciador, substituindo este último
pelo bandido com fins a atualizar
nosso imaginário; e observa:
mais possível hoje em dia, para
entender o
nosso cenário social,
continuar fazendo confusão entre
malandro e bandido. Também não se
os pode ver como associados somente
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
-
longa duração
. PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
das parcerias e dos tipos que canta, às
parcelas menos favorecidas da
sociedade como os habitantes das
comunidades pobres, dos morros e
dos subúrbios. Como nos lembra
124)
:
Os sambas que Bezerra da
Silva
canta não fazem apologia do
bandido, do malandro, do colarinho
-
branco corrupto ou do trabalhador.
Falam, com humor ácido, de um
mundo bárbaro, de certa forma
pouco familiar ao grande público.
Exploram uma linguagem própria
marcada pela ambiguidade, p
elo
duplo sentido e ironia e pela
relatividade ou ausência de
julgamento moral; um discurso que
afirma a identidade de um etos
favelado, excluído dos mecanismos
de justiça social. Seu repertório é
uma crônica da vida cotidiana das
favelas e subúrbios cario
cas, crônica
humorada e densa de crítica
social, onde o malandro é
personagem ambíguo, difuso, que
aparece de diferentes maneiras,
como personificação do
Em “Revisitando a
malandragem”, José Carlos Rodrigues
retoma o modelo analítico de
Roberto DaMatta centrado nas figuras
do malandro, do Caxias, do otário e do
renunciador, substituindo este último
pelo bandido com fins a atualizar
nosso imaginário; e observa:
“não é
mais possível hoje em dia, para
nosso cenário social,
continuar fazendo confusão entre
malandro e bandido. Também não se
os pode ver como associados somente
às classes inferiores e ao gênero
masculino”, afinal, “Na prática social e
no imaginário, o significado da palavra
“malandro” vem s
e transformando,
indicando uma concepção nova”
(RODRIGUES,
2018, p. 8
malandragem, para o antropólogo,
“que está surgindo e se difundindo
significa especialmente um tipo de
intuição, uma espécie de sociologia
nativa, sobre os modos de aplicação
das r
egras no Brasil” (2018, p. 9). Para
ilustrar essa nova significação, ele
recorre à descrição de vários episódios
capturados no cotidiano nos deixando
ver que uma certa malandragem
continua viva e até se universalizou. O
malandro já não é mais substantivo,
mas adjetivo referente a um tipo de
comportamento social ou de ação
simbólica.
Em suma, da
sargento à milícia hoje, investida com
novas patentes, uma distância
enorme entre uma e outra.
malandragem no sentido amplo do
termo, é um gênero de
comum aos setores populares que
lançam mão dessa prática todas as
vezes que o poder visa silenciar sua
voz, disciplinar seus gestos, apagar
suas histórias. Sem apologia, a
382
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Fluxo Contínuo
)
às classes inferiores e ao gênero
masculino”, afinal, “Na prática social e
no imaginário, o significado da palavra
e transformando,
indicando uma concepção nova”
2018, p. 8
-9). A
malandragem, para o antropólogo,
“que está surgindo e se difundindo
significa especialmente um tipo de
intuição, uma espécie de sociologia
nativa, sobre os modos de aplicação
egras no Brasil” (2018, p. 9). Para
ilustrar essa nova significação, ele
recorre à descrição de vários episódios
capturados no cotidiano nos deixando
ver que uma certa malandragem
continua viva e até se universalizou. O
malandro já não é mais substantivo,
mas adjetivo referente a um tipo de
comportamento social ou de ação
Em suma, da
milícia do
sargento à milícia hoje, investida com
novas patentes, uma distância
enorme entre uma e outra.
A
malandragem no sentido amplo do
termo, é um gênero de
razão astuciosa
comum aos setores populares que
lançam mão dessa prática todas as
vezes que o poder visa silenciar sua
voz, disciplinar seus gestos, apagar
suas histórias. Sem apologia, a
ROCHA, Gilmar. A "arte da malandragem" entre a farsa e a tragédia
uma narrativa dramática de
longa duração
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
358-385, março 2021.
malandragem é antes de tudo, uma
prática discursiva que pode ser
ut
ilizada positiva ou negativamente. E
pode ser tão crítica e fecunda quanto
as leituras políticas ou sociológicas da
realidade social, nos ensinam desde
os interacionistas simbólicos aos
etnometodólogos; pois não é demais
lembrar o quanto o malandro e a
mal
andragem têm sido perseguidos ao
longo da história desde o tempo do rei
passando pelo tempo de Getúlio
(MATOS
, 1982), chegando ao tempo
da ditadura militar (VASCONCELLOS,
1977); tudo por conta de sua potência
simbólica subversiva. No entanto, isso
não elim
ina o fato de que vivemos a
consciência infeliz em torno de um
projeto político que (dis)far(s)ça a
trágica perversidade de uma
governança miliciana em curso hoje no
país.
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na idade média e no renascimento:
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-
longa duração
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Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 20, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(
Fluxo Contínuo
malandragem é antes de tudo, uma
prática discursiva que pode ser
ilizada positiva ou negativamente. E
pode ser tão crítica e fecunda quanto
as leituras políticas ou sociológicas da
realidade social, nos ensinam desde
os interacionistas simbólicos aos
etnometodólogos; pois não é demais
lembrar o quanto o malandro e a
andragem têm sido perseguidos ao
longo da história desde o tempo do rei
passando pelo tempo de Getúlio
, 1982), chegando ao tempo
da ditadura militar (VASCONCELLOS,
1977); tudo por conta de sua potência
simbólica subversiva. No entanto, isso
ina o fato de que vivemos a
consciência infeliz em torno de um
projeto político que (dis)far(s)ça a
trágica perversidade de uma
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