OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
O transbordamento da atividade musical para as ruas e a precarização do trabalho:
uma análise sobre os instrumentistas nômades cariocas
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v11i21.49503
Resumo:
Este artigo enseja investigar as condições de trabalho dos músicos instrumentistas que
passam a se apresentar nas ruas da cidade do Rio de Janeiro ao longo da última década
2020). Para isso, a partir da retórica sobre a concepção do artista como trabalhador, são analisadas
as condições instáveis de trabalho que levam os músicos a tocarem na rua, bem como as
particularidades desta instabilidade quando estes passam a dese
cidade. A partir da tríade de conceitos trabalho, espaço e valor, identificamos que a prática musical
nômade analisada é estruturada pela lógica da pluriatividade e da instabilidade da força de trabalho,
ambas desdobramentos
do processo de urbanização neoliberal, que assola a capital carioca nas
últimas três décadas.
Palavras-
chave: músicos, trabalho cultural, precarização, neoliberalização
El desbordamiento de la actividad musical en las calles y la precariedad del trabajo
análisis de instrumentistas nómadas de Río de Janeiro
Resumen
Este artículo tiene como objetivo investigar las condiciones laborales de los músicos instrumentistas
que vienen a actuar en las calles de la ciudad de Río de Janeiro durante la última
2020). Para ello, a partir de la retórica sobre la concepción del artista como trabajador, se analizan las
inestables condiciones laborales que llevan a los músicos a tocar en la calle, así como las
particularidades de esta inestabilidad cuand
ciudad. A partir de la tríada de conceptos de trabajo, espacio y valor, identificamos que la práctica
musical nómada analizada está estructurada por la lógica de la pluriactividad e inestabilidad de la
fu
erza laboral, ambos desarrollos del proceso de urbanización neoliberal, que ha plagado a la capital
carioca
durante las últimas tres décadas.
Palabras clave
: músicos, trabajo cultural, precariedad, neoliberalización
The displacement of musical activity
analysis of nomadic instrumentalists from Rio de Janeiro
Abstract:
This article aims to investigate the working conditions of instrumentalist musicians who
come to perform in the streets of the city of Rio de Janeiro over the last decade (2011
1
Kyoma Silva Oliveira. Doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. E
0001-6313-2260
Recebido em 31/03/2021,
aceito para publicação em
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
O transbordamento da atividade musical para as ruas e a precarização do trabalho:
uma análise sobre os instrumentistas nômades cariocas
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v11i21.49503
Kyoma Silva Oliveira
Este artigo enseja investigar as condições de trabalho dos músicos instrumentistas que
passam a se apresentar nas ruas da cidade do Rio de Janeiro ao longo da última década
2020). Para isso, a partir da retórica sobre a concepção do artista como trabalhador, são analisadas
as condições instáveis de trabalho que levam os músicos a tocarem na rua, bem como as
particularidades desta instabilidade quando estes passam a dese
nvolver a atividade musical na
cidade. A partir da tríade de conceitos trabalho, espaço e valor, identificamos que a prática musical
nômade analisada é estruturada pela lógica da pluriatividade e da instabilidade da força de trabalho,
do processo de urbanização neoliberal, que assola a capital carioca nas
chave: músicos, trabalho cultural, precarização, neoliberalização
El desbordamiento de la actividad musical en las calles y la precariedad del trabajo
análisis de instrumentistas nómadas de Río de Janeiro
Este artículo tiene como objetivo investigar las condiciones laborales de los músicos instrumentistas
que vienen a actuar en las calles de la ciudad de Río de Janeiro durante la última
2020). Para ello, a partir de la retórica sobre la concepción del artista como trabajador, se analizan las
inestables condiciones laborales que llevan a los músicos a tocar en la calle, así como las
particularidades de esta inestabilidad cuand
o empiezan a desarrollar la actividad
ciudad. A partir de la tríada de conceptos de trabajo, espacio y valor, identificamos que la práctica
musical nómada analizada está estructurada por la lógica de la pluriactividad e inestabilidad de la
erza laboral, ambos desarrollos del proceso de urbanización neoliberal, que ha plagado a la capital
durante las últimas tres décadas.
: músicos, trabajo cultural, precariedad, neoliberalización
.
The displacement of musical activity
on the streets and the precariousness of work: an
analysis of nomadic instrumentalists from Rio de Janeiro
This article aims to investigate the working conditions of instrumentalist musicians who
come to perform in the streets of the city of Rio de Janeiro over the last decade (2011
Kyoma Silva Oliveira. Doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. E
-mail: kyomaoliveira@gmail.com -
https://orcid.org/0000
aceito para publicação em
03/06/2021 e
disponibilizado online em
01/09/2021.
48
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
O transbordamento da atividade musical para as ruas e a precarização do trabalho:
uma análise sobre os instrumentistas nômades cariocas
Kyoma Silva Oliveira
1
Este artigo enseja investigar as condições de trabalho dos músicos instrumentistas que
passam a se apresentar nas ruas da cidade do Rio de Janeiro ao longo da última década
(2011-
2020). Para isso, a partir da retórica sobre a concepção do artista como trabalhador, são analisadas
as condições instáveis de trabalho que levam os músicos a tocarem na rua, bem como as
nvolver a atividade musical na
cidade. A partir da tríade de conceitos trabalho, espaço e valor, identificamos que a prática musical
nômade analisada é estruturada pela lógica da pluriatividade e da instabilidade da força de trabalho,
do processo de urbanização neoliberal, que assola a capital carioca nas
El desbordamiento de la actividad musical en las calles y la precariedad del trabajo
: un
Este artículo tiene como objetivo investigar las condiciones laborales de los músicos instrumentistas
que vienen a actuar en las calles de la ciudad de Río de Janeiro durante la última
década (2011-
2020). Para ello, a partir de la retórica sobre la concepción del artista como trabajador, se analizan las
inestables condiciones laborales que llevan a los músicos a tocar en la calle, así como las
o empiezan a desarrollar la actividad
musical en la
ciudad. A partir de la tríada de conceptos de trabajo, espacio y valor, identificamos que la práctica
musical nómada analizada está estructurada por la lógica de la pluriactividad e inestabilidad de la
erza laboral, ambos desarrollos del proceso de urbanización neoliberal, que ha plagado a la capital
on the streets and the precariousness of work: an
This article aims to investigate the working conditions of instrumentalist musicians who
come to perform in the streets of the city of Rio de Janeiro over the last decade (2011
-2020). For this,
Kyoma Silva Oliveira. Doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) pela Universidade
https://orcid.org/0000
-
disponibilizado online em
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
from the rhetoric about the artist's conception as a worker, t
musicians to play on the street are analyzed, as well as the particularities of this instability when they
start to develop musical activity in the city.
ident
ified that the nomadic musical practice analyzed is structured by the logic of pluriactivity and
instability of the workforce, both developments of the neoliberal urbanization process, which has
plagued the capital of Rio de Janeiro
Keywords
: musicians, cultural work, precariousness, neoliberalization
O transbordamento da atividade musical para as ruas e a precarização do
trabalho: uma análise sobre os instrumentistas nômades cariocas
Introdução
Grita
-
“Queria te ver numa fábrica!
O quê? versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem”.
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
Eu sou numa fábrica.
E se chaminés
talvez
sem chaminés
seja preciso
ainda mais coragem [...]
A partir de pesqui
sa realizada
entre os anos de 2017 e 2021 sobre os
músicos instrumentistas que passam a se
apresentar nas ruas da cidade do Rio de
Janeiro desde 2012
2
, identificamos que as
reivindicações por direitos e
reconhecimento ganham contornos
particulares em função de uma forma de
2
Como resultado desta pesquisa foi gerada a
tese intitulada “Sons, contratempos e
síncopes: instrumentistas na rua e a formação
de circuitos musicais não
consagrados na
cidade do Rio de Janeiro”, defendida em 2021,
no Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
from the rhetoric about the artist's conception as a worker, t
he unstable working conditions that lead
musicians to play on the street are analyzed, as well as the particularities of this instability when they
start to develop musical activity in the city.
From the triad of concepts of work, space and value, we
ified that the nomadic musical practice analyzed is structured by the logic of pluriactivity and
instability of the workforce, both developments of the neoliberal urbanization process, which has
plagued the capital of Rio de Janeiro
over the past three decades.
: musicians, cultural work, precariousness, neoliberalization
.
O transbordamento da atividade musical para as ruas e a precarização do
trabalho: uma análise sobre os instrumentistas nômades cariocas
-
se ao poeta:
“Queria te ver numa fábrica!
O quê? versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem”.
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou numa fábrica.
E se chaminés
me faltam
sem chaminés
ainda mais coragem [...]
(Maiakóvski)
sa realizada
entre os anos de 2017 e 2021 sobre os
músicos instrumentistas que passam a se
apresentar nas ruas da cidade do Rio de
, identificamos que as
reivindicações por direitos e
reconhecimento ganham contornos
particulares em função de uma forma de
Como resultado desta pesquisa foi gerada a
tese intitulada “Sons, contratempos e
síncopes: instrumentistas na rua e a formação
consagrados na
cidade do Rio de Janeiro”, defendida em 2021,
no Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).
socialização própria do capitalismo, onde
o trabalho assalariado subsumido ao
capital, é a forma social mediadora das
demais relações.
Isto posto, o objetivo deste artigo é
investigar a atuação das bandas cariocas
Astro Venga e Rocha, nas ruas da cidade
do Rio de Janeiro e compreender de
maneira mais detida as condições de
trabalho encontradas por esses sujeitos e
seus pares no que ch
amamos de espaços
consagrados (espaços dedicados
realização de apresentações musicais) e
não consagrados (entendido aqui como o
espaço público utilizados pelos
instrumentistas para se apresentarem ao
longo da última década).
De maneira sintética, este estu
define o trabalho precário como a relação
salarial instável e insegura, onde todo
ônus proveniente das incertezas é
despejado sobre trabalhadores e
trabalhadoras, a partir do momento de
reestruturação do padrão de acumulação
49
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- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
he unstable working conditions that lead
musicians to play on the street are analyzed, as well as the particularities of this instability when they
From the triad of concepts of work, space and value, we
ified that the nomadic musical practice analyzed is structured by the logic of pluriactivity and
instability of the workforce, both developments of the neoliberal urbanization process, which has
O transbordamento da atividade musical para as ruas e a precarização do
trabalho: uma análise sobre os instrumentistas nômades cariocas
socialização própria do capitalismo, onde
o trabalho assalariado subsumido ao
capital, é a forma social mediadora das
Isto posto, o objetivo deste artigo é
investigar a atuação das bandas cariocas
Astro Venga e Rocha, nas ruas da cidade
do Rio de Janeiro e compreender de
maneira mais detida as condições de
trabalho encontradas por esses sujeitos e
amamos de espaços
consagrados (espaços dedicados
realização de apresentações musicais) e
não consagrados (entendido aqui como o
espaço público utilizados pelos
instrumentistas para se apresentarem ao
longo da última década).
De maneira sintética, este estu
do
define o trabalho precário como a relação
salarial instável e insegura, onde todo
ônus proveniente das incertezas é
despejado sobre trabalhadores e
trabalhadoras, a partir do momento de
reestruturação do padrão de acumulação
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
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do capital e das políticas n
eoliberalizantes
conjugadas como resposta a sua crise
estrutural. Isto posto, expositivamente
optamos por apresentar primeiramente as
falas dos instrumentistas que possuem
algum tipo de experiência com as
apresentações nas ruas da cidade do Rio
de Janeiro,
para posteriormente, a partir
de suas contribuições, analisar as pistas
deixadas por eles sobre suas condições
laborais.
Para este fim, o presente artigo
encontra-
se dividido em três partes, além
da introdução e da conclusão. A primeira
diz respeito ao q
ue estamos chamando de
transbordamento da atividade musical
para as ruas da capital carioca. Nesse
sentido, destacamos que a ida destes
instrumentistas para as ruas da capital
carioca se configura como tentativa limite
de dar sequência ao trabalho artístic
alcança situações insustentáveis no
interior dos circuitos consagrados.
Na segunda parte investigamos
algumas das características identificadas
nas condições do trabalho exercido nas
ruas à luz dos circuitos consagrados. O
espaço público como última
atuação torna-
se uma possibilidade em
função das relações precárias de trabalho
com as quais esses agentes lidam mesmo
no circuito musical consagrado (pequenas
e médias casas de shows, festivais etc.).
De todo modo, identificamos não haver
um
rompimento entre os instrumentistas
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
eoliberalizantes
conjugadas como resposta a sua crise
estrutural. Isto posto, expositivamente
optamos por apresentar primeiramente as
falas dos instrumentistas que possuem
algum tipo de experiência com as
apresentações nas ruas da cidade do Rio
para posteriormente, a partir
de suas contribuições, analisar as pistas
deixadas por eles sobre suas condições
Para este fim, o presente artigo
se dividido em três partes, além
da introdução e da conclusão. A primeira
ue estamos chamando de
transbordamento da atividade musical
para as ruas da capital carioca. Nesse
sentido, destacamos que a ida destes
instrumentistas para as ruas da capital
carioca se configura como tentativa limite
de dar sequência ao trabalho artístic
o que
alcança situações insustentáveis no
interior dos circuitos consagrados.
Na segunda parte investigamos
algumas das características identificadas
nas condições do trabalho exercido nas
ruas à luz dos circuitos consagrados. O
espaço público como última
fronteira de
se uma possibilidade em
função das relações precárias de trabalho
com as quais esses agentes lidam mesmo
no circuito musical consagrado (pequenas
e médias casas de shows, festivais etc.).
De todo modo, identificamos não haver
rompimento entre os instrumentistas
que se apresentam nas ruas e aqueles
que se apresentam em casas de shows
de pequeno e médio porte, bem como em
festivais especializados. A compreensão
relacional destes dois circuitos estrutura
as reflexões sobre as div
laborais desempenhadas por esses
instrumentistas.
Por fim, na terceira seção
identificamos pistas que nos permitem
afirmar a atualização da situação precária
da atividade, que por um breve momento
foi rentável, mas que com a crise
econômic
a que assola os países da
periferia do capitalismo, atualiza a
situação de instabilidade e pluriatividade
vivenciadas de outra maneira por estes
músicos.
Sendo assim, neste artigo, a partir
da retórica sobre o “músico trabalhador”
percebida na fala de u
instrumentistas entrevistados, passamos a
analisar as condições instáveis de
trabalho que levam os músicos a tocarem
na rua, bem como as particularidades
desta instabilidade quando estes passam
a desenvolver a atividade musical nos
espaços públicos d
a cidade.
O transbordamento da atividade
musical para as ruas da cidade do Rio
de Janeiro
Ao longo do processo de
ocupação das ruas por parte das
50
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- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
que se apresentam nas ruas e aqueles
que se apresentam em casas de shows
de pequeno e médio porte, bem como em
festivais especializados. A compreensão
relacional destes dois circuitos estrutura
as reflexões sobre as div
ersas atividades
laborais desempenhadas por esses
Por fim, na terceira seção
identificamos pistas que nos permitem
afirmar a atualização da situação precária
da atividade, que por um breve momento
foi rentável, mas que com a crise
a que assola os países da
periferia do capitalismo, atualiza a
situação de instabilidade e pluriatividade
vivenciadas de outra maneira por estes
Sendo assim, neste artigo, a partir
da retórica sobre o “músico trabalhador”
percebida na fala de u
m dos
instrumentistas entrevistados, passamos a
analisar as condições instáveis de
trabalho que levam os músicos a tocarem
na rua, bem como as particularidades
desta instabilidade quando estes passam
a desenvolver a atividade musical nos
a cidade.
O transbordamento da atividade
musical para as ruas da cidade do Rio
Ao longo do processo de
ocupação das ruas por parte das
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
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.
bandas nômades eletrificadas iniciado
em 2012, é possível identificar um
novo entendimento do papel deste
esp
aço no desempenho da atividade.
Em uma série de entrevistas
realizadas por Christian Dias (2016, p.
74)
bacharel em música pela UniRio
e guitarrista da banda Astro Venga
entre outubro de 2014 e outubro de
2016, a ideia de subsistência a partir
destas
apresentações nas ruas da
cidade do Rio de Janeiro foi algo
recorrente.
Glauber Airola: [...] fiquei
trabalhando um tempo com
estúdio, como técnico de som,
em cima das bandas, passando
som, fazendo agendamento e saí
do trampo. Fabiola que é
camarada que t
oca comigo [n'Os
Camelos"] também tava
trabalhando no mesmo lugar e a
gente resolveu ir pra rua mesmo.
Ver no que que ia dar.
Christian Dias: Abandonaram o
lugar?
G. A. -
Sim, abandonamos,
[risos]. Vamos pra rua!” [...] E
hoje em dia eu acho que a
música é grata; é lógico que você
tem que ter uma porrada de
formas de fazer isso dar certo,
mas é um lugar que eu vou e pô,
eu consigo pagar meu aluguel,
consigo fazer compras, consigo
viajar, consigo guardar uma
graninha, sabe? E consigo estar
mostrando
o trabalho ao mesmo
tempo! E é encarar como um
trabalho mesmo.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
bandas nômades eletrificadas iniciado
em 2012, é possível identificar um
novo entendimento do papel deste
aço no desempenho da atividade.
Em uma série de entrevistas
realizadas por Christian Dias (2016, p.
bacharel em música pela UniRio
e guitarrista da banda Astro Venga
–,
entre outubro de 2014 e outubro de
2016, a ideia de subsistência a partir
apresentações nas ruas da
cidade do Rio de Janeiro foi algo
Glauber Airola: [...] fiquei
trabalhando um tempo com
estúdio, como técnico de som,
em cima das bandas, passando
som, fazendo agendamento e saí
do trampo. Fabiola que é
oca comigo [n'Os
Camelos"] também tava
trabalhando no mesmo lugar e a
gente resolveu ir pra rua mesmo.
Ver no que que ia dar.
Christian Dias: Abandonaram o
Sim, abandonamos,
[risos]. Vamos pra rua!” [...] E
hoje em dia eu acho que a
música é grata; é lógico que você
tem que ter uma porrada de
formas de fazer isso dar certo,
mas é um lugar que eu vou e pô,
eu consigo pagar meu aluguel,
consigo fazer compras, consigo
viajar, consigo guardar uma
graninha, sabe? E consigo estar
o trabalho ao mesmo
tempo! E é encarar como um
A sobrevivência através da
música está colocada na afirmação de
quem encara a mesma como um
trabalho, onde a remuneração é
suficiente para pagar custos básicos
de vida e ainda economizar uma p
da quantia para outras finalidades. O
processo relatado por Fábio Hirsh,
saxofonista do trio Os Camelos e da
banda Tree, no momento da entrevista
concedida a Dias (2016, p. 83
também envolve o abandono do
emprego anterior, especificamente
neste ca
so, a atividade desempenhada
não tinha relação direta com a música:
E em algum momento eu decidi
que eu não queria mais ficar
trabalhando, chegar 8:00 e sair
20:00, 12 horas de trabalho, e
depois ir pra faculdade. Além
disso os trajetos que eu fazia
eram
sempre longos, que eu
morava em São Gonçalo, fazia
faculdade e trabalhava aqui [no
centro do Rio de Janeiro].
Chegou um momento que eu
meio que [...] cansou, e eu
parei de trabalhar, larguei meu
emprego e comecei a enxergar a
rua como um emprego também,
como um trabalho. Se eu me
dedicasse a fazer um trabalho
sério, eu achava que aquilo ali
podia render frutos.
Neste trecho de Hirsh, destacam
se as condições de superexploração do
emprego anterior, ilustrada pela carga
51
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
A sobrevivência através da
música está colocada na afirmação de
quem encara a mesma como um
trabalho, onde a remuneração é
suficiente para pagar custos básicos
de vida e ainda economizar uma p
arte
da quantia para outras finalidades. O
processo relatado por Fábio Hirsh,
saxofonista do trio Os Camelos e da
banda Tree, no momento da entrevista
concedida a Dias (2016, p. 83
-4),
também envolve o abandono do
emprego anterior, especificamente
so, a atividade desempenhada
não tinha relação direta com a música:
E em algum momento eu decidi
que eu não queria mais ficar
trabalhando, chegar 8:00 e sair
20:00, 12 horas de trabalho, e
depois ir pra faculdade. Além
disso os trajetos que eu fazia
sempre longos, que eu
morava em São Gonçalo, fazia
faculdade e trabalhava aqui [no
centro do Rio de Janeiro].
Chegou um momento que eu
meio que [...] cansou, e eu
parei de trabalhar, larguei meu
emprego e comecei a enxergar a
rua como um emprego também,
como um trabalho. Se eu me
dedicasse a fazer um trabalho
sério, eu achava que aquilo ali
podia render frutos.
Neste trecho de Hirsh, destacam
-
se as condições de superexploração do
emprego anterior, ilustrada pela carga
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
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Niterói/RJ, Ano 1
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horária excessiva que impacta, in
no que deveria ser seu período de tempo
livre, utilizado naquele momento em
longos deslocamentos para conseguir
estudar e trabalhar.
Observa-
se em ambos os casos
que o ingresso dos instrumentistas na rua,
em momento algum, fez com que
atividades
paralelas fossem extintas do
cotidiano. Nesse sentido, a rua se
apresenta, inicialmente, como uma
possibilidade de trabalhar com música de
maneira relativamente autônoma. Nela, os
instrumentistas enxergaram a
possibilidade de tocar sem dependerem
da interm
ediação de proprietários de
casas de show. Esta superação permitiu
que, na rua, as bandas tocassem com
maior frequência e maior autonomia com
relação a escolha de repertório, uma vez
que não dependiam de negociação com
os bares e casas de show da cidade.
Na tentativa de compreender
historicamente esse movimento de ida
para as ruas realizado por instrumentistas,
lançamos mão aqui dos conceitos
relacionais de espaços consagrados e não
consagrados (OLIVEIRA, 2021).
Ressaltamos que as casas de médio e
pequeno
porte, bem como os bares,
quando relacionados às casas de grande
porte e festivais promovidos pela indústria
cultural, são espaços que compõem o
circuito não consagrado. Ao mesmo
tempo que, se comparados às ruas,
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
horária excessiva que impacta, in
clusive,
no que deveria ser seu período de tempo
livre, utilizado naquele momento em
longos deslocamentos para conseguir
se em ambos os casos
que o ingresso dos instrumentistas na rua,
em momento algum, fez com que
paralelas fossem extintas do
cotidiano. Nesse sentido, a rua se
apresenta, inicialmente, como uma
possibilidade de trabalhar com música de
maneira relativamente autônoma. Nela, os
instrumentistas enxergaram a
possibilidade de tocar sem dependerem
ediação de proprietários de
casas de show. Esta superação permitiu
que, na rua, as bandas tocassem com
maior frequência e maior autonomia com
relação a escolha de repertório, uma vez
que não dependiam de negociação com
os bares e casas de show da cidade.
Na tentativa de compreender
historicamente esse movimento de ida
para as ruas realizado por instrumentistas,
lançamos mão aqui dos conceitos
relacionais de espaços consagrados e não
consagrados (OLIVEIRA, 2021).
Ressaltamos que as casas de médio e
porte, bem como os bares,
quando relacionados às casas de grande
porte e festivais promovidos pela indústria
cultural, são espaços que compõem o
circuito não consagrado. Ao mesmo
tempo que, se comparados às ruas,
espaço onde os músicos analisados se
apres
entam, estes pequenos
estabelecimentos passam a ser
compreendidos como espaços de
consagração. Isto posto, percebe
as bandas que vão para as ruas do centro
da cidade do Rio de Janeiro buscam
reconhecimento para um possível retorno
aos circuitos cons
agrados em melhores
condições. Por fim, deixamos clar
existência de bandas que surgem
inicialmente com a finalidade de tocar nas
ruas, mas, a depender das condições,
também ingressam nestas casas de
pequeno e médio porte.
Luciana Requião (2008),
invest
igando as relações de trabalhos de
músicos que se apresentam em casas de
show no bairro da Lapa, região central da
cidade do Rio de Janeiro, analisou o
processo de exploração dos músicos por
parte dos empresários donos dessas
casas. A autora identifica o p
extração de mais-
valor da força de
trabalho dos músicos condensado no
preço cobrado pelos ingressos em casas
como o Rio Scenarium
3
3 Na fan page
da casa de show encontrada no
Facebook
está disponível a seguinte definição
a respeito do espaço: “
Ícone do p
revitalização cultural da Rua do Lavradio, o
Rio Scenarium, no Centro Histórico do Rio
Antigo, funciona como casa de shows com
música ao vi
vo, bar e restaurante. A casa
reúne um grande acervo de móveis e objetos
antigos, colecionados ao longo
mais de dez mil peças.Com uma programação
musical autenticamente brasileira, com samba,
52
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
espaço onde os músicos analisados se
entam, estes pequenos
estabelecimentos passam a ser
compreendidos como espaços de
consagração. Isto posto, percebe
-se que
as bandas que vão para as ruas do centro
da cidade do Rio de Janeiro buscam
reconhecimento para um possível retorno
agrados em melhores
condições. Por fim, deixamos clar
a a
existência de bandas que surgem
inicialmente com a finalidade de tocar nas
ruas, mas, a depender das condições,
também ingressam nestas casas de
pequeno e médio porte.
Luciana Requião (2008),
igando as relações de trabalhos de
músicos que se apresentam em casas de
show no bairro da Lapa, região central da
cidade do Rio de Janeiro, analisou o
processo de exploração dos músicos por
parte dos empresários donos dessas
casas. A autora identifica o p
rocesso de
valor da força de
trabalho dos músicos condensado no
preço cobrado pelos ingressos em casas
3
. O proprietário do
da casa de show encontrada no
está disponível a seguinte definição
Ícone do p
rocesso de
revitalização cultural da Rua do Lavradio, o
Rio Scenarium, no Centro Histórico do Rio
Antigo, funciona como casa de shows com
vo, bar e restaurante. A casa
reúne um grande acervo de móveis e objetos
antigos, colecionados ao longo
dos anos, com
mais de dez mil peças.Com uma programação
musical autenticamente brasileira, com samba,
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
espaço posiciona-
se como intermediário
entre o público e os músicos, de forma
que o trabalho do
s últimos passa a ser
tratado como produtivo frente ao capital
uma vez que sua remuneração é fixa e o
excedente é apropriado pelo capitalista.
Destacamos os avanços da autora na
compreensão do que se refere às
relações de trabalho estabelecidas entre
as ca
sas de shows e os músicos
contratados.
Através da aplicação de
questionários junto aos músicos que se
apresentavam em casas de shows na
Lapa, naquela ocasião, Requião
identificou o trabalho informal como
relação comum entre contratantes e
contratados. Em
tempos de desregulação
das leis trabalhistas
4
, a justificativa de que
“os tempos mudaram” são recorrentes
ainda hoje, não por parte das casas de
shows, mas também pelos patrões e
contratantes de maneira geral. Em
entrevista sobre este fato realizada pel
choro, MPB e forró, o Rio Scenarium
apresenta, no palco principal, dois shows ao
vivo em dias de semana e três shows às
sextas e sábados. Outra opção é o
Anexo que oferece ambiente reservado com
DJ's. Ali também há grupos de chorinho, roda
de samba e até mesmo rock, em uma
programação variada.
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/scenariumrio/ab
out/?ref=page_internal.
Acesso em
2020.
4
Para mais informações sobre a Lei
13.467, de 13 de julho de 2017 ver
https://www.normaslegais.com.br/legislacao/Le
i-13467-2017.htm. Acesso em:
27 fev
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
se como intermediário
entre o público e os músicos, de forma
s últimos passa a ser
tratado como produtivo frente ao capital
uma vez que sua remuneração é fixa e o
excedente é apropriado pelo capitalista.
Destacamos os avanços da autora na
compreensão do que se refere às
relações de trabalho estabelecidas entre
sas de shows e os músicos
Através da aplicação de
questionários junto aos músicos que se
apresentavam em casas de shows na
Lapa, naquela ocasião, Requião
identificou o trabalho informal como
relação comum entre contratantes e
tempos de desregulação
, a justificativa de que
“os tempos mudaram” são recorrentes
ainda hoje, não por parte das casas de
shows, mas também pelos patrões e
contratantes de maneira geral. Em
entrevista sobre este fato realizada pel
a
choro, MPB e forró, o Rio Scenarium
apresenta, no palco principal, dois shows ao
vivo em dias de semana e três shows às
sextas e sábados. Outra opção é o
Salão
Anexo que oferece ambiente reservado com
DJ's. Ali também há grupos de chorinho, roda
de samba e até mesmo rock, em uma
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/scenariumrio/ab
Acesso em
: 27 fev.
Para mais informações sobre a Lei
13.467, de 13 de julho de 2017 ver
https://www.normaslegais.com.br/legislacao/Le
27 fev
. 2020.
autora com Henrique Cazes, um ex
da casa de show Rio Scenarium, ele é
taxativo com relação à posição dos
músicos, ao afirmar que: “Ou ele aceita
um cachet mais baixo ou vai perder o
trabalho” (REQUIÃO, 2008, p. 204). A
autora destaca ainda o argu
existência de uma parceria” entre
contratantes e músicos como justificativa
para a informalidade. Tal argumento,
aliás, torna-
se cada vez mais comum,
uma vez que ultrapassa a fronteira do
trabalho improdutivo e, sob o imperativo
da flexibilização
do trabalho, atinge
atividades diversas
5
.
A necessidade de flexibilidade do
trabalho no dia a dia dos músicos também
é identificada no questionário aplicado por
Requião. Jornadas duplas ou triplas são
comuns devido às apresentações
sazonais nas casas de
aqui um ponto de contato entre as
atividades dos músicos analisadas pela
autora e o relato dos músicos que
encontraram na rua a possibilidade de
exibição de trabalho e sustento a partir
5
Como exemplo, na seção “Políticas e
Regras” existente no site da Uber, a empresa
intitula o
motorista precarizado de Motorista
Parceiro. A alcunha serve sobretudo para
encobrir a informalidade do trabalho exercido
pelos motoristas, uma vez que esses não
teriam vínculo empregatício com a empresa
que gere o aplicativo por não serem
empregados dela, m
as sim parceiros. Ver mais
em:
https://www.uber.com/pt
BR/drive/resources/regras/
2020.
53
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
autora com Henrique Cazes, um ex
-diretor
da casa de show Rio Scenarium, ele é
taxativo com relação à posição dos
músicos, ao afirmar que: “Ou ele aceita
um cachet mais baixo ou vai perder o
trabalho” (REQUIÃO, 2008, p. 204). A
autora destaca ainda o argu
mento da
existência de uma parceria” entre
contratantes e músicos como justificativa
para a informalidade. Tal argumento,
se cada vez mais comum,
uma vez que ultrapassa a fronteira do
trabalho improdutivo e, sob o imperativo
do trabalho, atinge
A necessidade de flexibilidade do
trabalho no dia a dia dos músicos também
é identificada no questionário aplicado por
Requião. Jornadas duplas ou triplas são
comuns devido às apresentações
sazonais nas casas de
shows. Percebe-se
aqui um ponto de contato entre as
atividades dos músicos analisadas pela
autora e o relato dos músicos que
encontraram na rua a possibilidade de
exibição de trabalho e sustento a partir
Como exemplo, na seção “Políticas e
Regras” existente no site da Uber, a empresa
motorista precarizado de Motorista
Parceiro. A alcunha serve sobretudo para
encobrir a informalidade do trabalho exercido
pelos motoristas, uma vez que esses não
teriam vínculo empregatício com a empresa
que gere o aplicativo por não serem
as sim parceiros. Ver mais
https://www.uber.com/pt
-
BR/drive/resources/regras/
. Acesso em: 20 fev.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
dele. Os instrumentistas entrevistados por
Requião a
pontaram a docência musical
como atividade complementar às
apresentações ao vivo. Tal alternativa
também aparece para alguns músicos que
se apresentam nas ruas do Rio de
Janeiro, mesmo que com menor
frequência. Conforme colocado, a lógica
de desempenhar
ltiplas atividades é
recorrente na trajetória de músicos e
instrumentistas que não acessaram por
algum motivo o circuito consagrado pela
indústria cultural. Desta maneira, a
pluriatividade é compreendida como um
desdobramento da informalidade que
assola o
cotidiano de trabalho destes
instrumentistas, seja apresentando
casas de shows ou na rua.
Ainda que o trabalho empírico de
Luciana Requião dê conta de músicos que
se apresentam especificamente em uma
casa “com uma programação musical
autenticamente
brasileira, com samba,
choro, MPB e forró [...]”
6
, percebemos
alguma aproximação com o relato de
Thiago Scarlata, contrabaixista da banda
de rock “O Velho Se Foi”, entrevistado por
Christian Dias (2016, p. 68): “Geralmente
as casas do cenário
underground
mais pra banda que começando e tal, é
6 Sobre Rio Scenarium
Pavilhão da Cultura no
Facebook:
https://www.facebook.com/pg/scenariumrio/ab
out/?ref=page_internal.
Acesso em
2020.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
dele. Os instrumentistas entrevistados por
pontaram a docência musical
como atividade complementar às
apresentações ao vivo. Tal alternativa
também aparece para alguns músicos que
se apresentam nas ruas do Rio de
Janeiro, mesmo que com menor
frequência. Conforme colocado, a lógica
ltiplas atividades é
recorrente na trajetória de músicos e
instrumentistas que não acessaram por
algum motivo o circuito consagrado pela
indústria cultural. Desta maneira, a
pluriatividade é compreendida como um
desdobramento da informalidade que
cotidiano de trabalho destes
instrumentistas, seja apresentando
-se em
Ainda que o trabalho empírico de
Luciana Requião dê conta de músicos que
se apresentam especificamente em uma
casa “com uma programação musical
brasileira, com samba,
, percebemos
alguma aproximação com o relato de
Thiago Scarlata, contrabaixista da banda
de rock “O Velho Se Foi”, entrevistado por
Christian Dias (2016, p. 68): “Geralmente
underground
, ainda
mais pra banda que começando e tal, é
Pavilhão da Cultura no
https://www.facebook.com/pg/scenariumrio/ab
Acesso em
: 20 fev.
uma coisa assim, muito desleal; você tem
que levar tudo, bateria, amplificação e o
cara não te nem uma água”. As
condições relatadas pelo músico, neste
nicho específico, evidenciam
primeiramente a superexpl
relações de trabalho entre os músicos do
circuito e os proprietários das casas de
shows, uma vez que além da ausência de
estabilidade das relações de trabalho
estabelecidas, não existe nem um cachê
fixo como o que é pago pela casa
analisada por
Requião. Episódios em que
os músicos precisam vender ingressos
para o evento que irão se apresentar, bem
como produtos conexos à sua atividade
principal (camisetas, bonés, cds, botons,
pins, pôsteres) custeados por eles
próprios, a fim de que tenham acesso
algum tipo de renda, não são incomuns. A
superexploração identificada coloca em
evidência a radicalização de uma das
características do trabalho informal já
identificada por Requião na casa
localizada na Lapa. No contexto analisado
pela autora, foi iden
tificada uma parcela
de trabalho realizado e não pago aos
artistas-
trabalhadores. Esta parcela se
integraliza especificamente no cenário
underground
, uma vez que o capital
variável em sua integralidade passa a não
ser arcado pelos proprietários.
Isto posto, compreende
fenômeno da ida para a rua e a
subsequente formação de um circuito não
54
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
uma coisa assim, muito desleal; você tem
que levar tudo, bateria, amplificação e o
cara não te nem uma água”. As
condições relatadas pelo músico, neste
nicho específico, evidenciam
primeiramente a superexpl
oração das
relações de trabalho entre os músicos do
circuito e os proprietários das casas de
shows, uma vez que além da ausência de
estabilidade das relações de trabalho
estabelecidas, não existe nem um cachê
fixo como o que é pago pela casa
Requião. Episódios em que
os músicos precisam vender ingressos
para o evento que irão se apresentar, bem
como produtos conexos à sua atividade
principal (camisetas, bonés, cds, botons,
pins, pôsteres) custeados por eles
próprios, a fim de que tenham acesso
a
algum tipo de renda, não são incomuns. A
superexploração identificada coloca em
evidência a radicalização de uma das
características do trabalho informal já
identificada por Requião na casa
localizada na Lapa. No contexto analisado
tificada uma parcela
de trabalho realizado e não pago aos
trabalhadores. Esta parcela se
integraliza especificamente no cenário
, uma vez que o capital
variável em sua integralidade passa a não
ser arcado pelos proprietários.
Isto posto, compreende
-se que o
fenômeno da ida para a rua e a
subsequente formação de um circuito não
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
consagrado encontra-
se diretamente
ligado ao questionamento, mesmo
indireto, das precárias relações de
trabalho estabelecidas entre os
instrumentistas e
as casas especializadas.
Através da reivindicação por autonomia da
prática musical, identifica
transbordamento desta última para o
espaço público. Tal fenômeno, no entanto,
ao mesmo tempo que traz consigo novos
elementos para a prática
estéticos, po
exemplo
, atualiza também antigas
relações identificadas no circuito
tradicional. Mediante isso, neste momento
centramos a análise nas condições
precárias de trabalho que levaram estes
músicos para a rua à procura de maior
autonomia e liberdade para
a prática, bem
como em busca de encontrar um meio de
subsistir a partir da música.
O c
otidiano, a rua e a pluriatividade
Em entrevistas realizadas ao longo
da pesquisa, as múltiplas atividades
desempenhadas pelos músicos emergem
como uma pista para o en
tendimento do
que estamos chamando de trabalho
precário. Neste artigo analisamos tal fato
como uma das dimensões das relações
incertas de trabalho das quais estes
instrumentistas fazem parte. Identificamos
que a pluriatividade percebida nos relatos
dos mús
icos pode ser compreendida em
duas dimensões
uma relacionada à
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
se diretamente
ligado ao questionamento, mesmo
indireto, das precárias relações de
trabalho estabelecidas entre os
as casas especializadas.
Através da reivindicação por autonomia da
prática musical, identifica
-se o
transbordamento desta última para o
espaço público. Tal fenômeno, no entanto,
ao mesmo tempo que traz consigo novos
estéticos, po
r
, atualiza também antigas
relações identificadas no circuito
tradicional. Mediante isso, neste momento
centramos a análise nas condições
precárias de trabalho que levaram estes
músicos para a rua à procura de maior
a prática, bem
como em busca de encontrar um meio de
otidiano, a rua e a pluriatividade
Em entrevistas realizadas ao longo
da pesquisa, as múltiplas atividades
desempenhadas pelos músicos emergem
tendimento do
que estamos chamando de trabalho
precário. Neste artigo analisamos tal fato
como uma das dimensões das relações
incertas de trabalho das quais estes
instrumentistas fazem parte. Identificamos
que a pluriatividade percebida nos relatos
icos pode ser compreendida em
uma relacionada à
atividade musical e outra descolada desta
, sendo a primeira a mais comum.
Tal fenômeno é investigado
majoritariamente através de entrevistas e
observações de campo com dois trios
instrumen
tais que se apresentam ou se
apresentaram em algum momento nas
ruas da região central da cidade do Rio de
Janeiro: as bandas Rocha e Astro Venga.
A primeira iniciou suas apresentações em
2019, mesmo ano em que teve também
suas atividades encerradas. A band
composta por Luis Henrique Queiroz, o
saxofonista, Mindu, o contrabaixista e
Emanuel de Souza, o baterista. Na época
da pesquisa, os três tinham entre 30 e 40
anos, eram moradores de Duque de
Caxias, cidade localizada na baixada
fluminense e possuíam
anteriores com apresentações nas ruas.
A Astro Venga, que surgiu em
2013 e segue existindo até o
encerramento desta investigação, é
composta por
Antônio Paoli, o
contrabaixista, Christian Dias, o guitarrista
e Jonas Cáffaro, o baterista. Os
integrantes tinham idades próximas aos
membros da banda anterior e eram
moradores da cidade do Rio de Janeiro.
Destacamos ainda que as falas de outros
instrumentistas utilizadas na seção
anterior seguem sendo analisadas aqui a
partir do trabalho de conclu
realizado por Christian Dias (2016).
55
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
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Trabalho cultural e precarização
")
atividade musical e outra descolada desta
, sendo a primeira a mais comum.
Tal fenômeno é investigado
majoritariamente através de entrevistas e
observações de campo com dois trios
tais que se apresentam ou se
apresentaram em algum momento nas
ruas da região central da cidade do Rio de
Janeiro: as bandas Rocha e Astro Venga.
A primeira iniciou suas apresentações em
2019, mesmo ano em que teve também
suas atividades encerradas. A band
a era
composta por Luis Henrique Queiroz, o
saxofonista, Mindu, o contrabaixista e
Emanuel de Souza, o baterista. Na época
da pesquisa, os três tinham entre 30 e 40
anos, eram moradores de Duque de
Caxias, cidade localizada na baixada
fluminense e possuíam
experiências
anteriores com apresentações nas ruas.
A Astro Venga, que surgiu em
2013 e segue existindo até o
encerramento desta investigação, é
Antônio Paoli, o
contrabaixista, Christian Dias, o guitarrista
e Jonas Cáffaro, o baterista. Os
integrantes tinham idades próximas aos
membros da banda anterior e eram
moradores da cidade do Rio de Janeiro.
Destacamos ainda que as falas de outros
instrumentistas utilizadas na seção
anterior seguem sendo analisadas aqui a
partir do trabalho de conclu
são de curso
realizado por Christian Dias (2016).
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
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1
.
Luis Queiroz, o saxofonista da
banda Rocha, assim como Antônio Paoli,
contrabaixista da Astro Venga
trabalhavam como técnicos de som de
diferentes estúdios de gravação
respectivamente em Duque de Caxias e
no Rio de Janeiro. Queiroz trabalhava
também com operação de áudio em
espetáculos ao vivo, enquanto Paoli
produzia trilhas sonoras para produtos
audiovisuais
7
.
Destaca-
se também a necessidade
destes músicos realizarem trabalhos de
produção e divulgação d
e suas próprias
bandas. Glauber Airola, percussionista do
trio Os Camelos, afirma que para além de
tocar, os músicos da banda dividem as
atividades de produção executiva (DIAS,
2016, p. 78):
Cada um da gente está aberto,
por exemplo, pra fechar um show.
A gente acaba sendo meio que
produtor de nós mesmos… E
essas coisas assim. Mas acaba
que a gente faz, cara, ter uma
banda ocupa um tempo sabe, a
gente acaba fazendo muita coisa
mesmo; é ensaio, aí reúne não
sei aonde pra tentar fechar
alguma coisa, a gente
que aprender a correr atrás de
edital de não sei quê, coisas que
a gente nunca fez, sabe? Mas é
isso.
7
Em entrevistas concedidas ao autor por Luis
Queiroz e Antônio Paoli respectivamente nos
dias 22 e 27 de fevereiro de 2019.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
Luis Queiroz, o saxofonista da
banda Rocha, assim como Antônio Paoli,
contrabaixista da Astro Venga
trabalhavam como técnicos de som de
diferentes estúdios de gravação
respectivamente em Duque de Caxias e
no Rio de Janeiro. Queiroz trabalhava
também com operação de áudio em
espetáculos ao vivo, enquanto Paoli
produzia trilhas sonoras para produtos
se também a necessidade
destes músicos realizarem trabalhos de
e suas próprias
bandas. Glauber Airola, percussionista do
trio Os Camelos, afirma que para além de
tocar, os músicos da banda dividem as
atividades de produção executiva (DIAS,
Cada um da gente está aberto,
por exemplo, pra fechar um show.
A gente acaba sendo meio que
produtor de nós mesmos… E
essas coisas assim. Mas acaba
que a gente faz, cara, ter uma
banda ocupa um tempo sabe, a
gente acaba fazendo muita coisa
mesmo; é ensaio, aí reúne não
sei aonde pra tentar fechar
alguma coisa, a gente
que tem
que aprender a correr atrás de
edital de não sei quê, coisas que
a gente nunca fez, sabe? Mas é
Em entrevistas concedidas ao autor por Luis
Queiroz e Antônio Paoli respectivamente nos
dias 22 e 27 de fevereiro de 2019.
Neste trecho, a pluriatividade é
potencializada a partir do momento
que o instrumentista e sua banda
passam a tocar nas ruas. A marcação
da ag
enda de shows e ensaios, além
da busca por editais de patrocínio,
gera uma demanda grande de
atividades, que extrapola a realização
dos shows propriamente ditos. Tal fato
reitera aquilo que o contrabaixista da
Astro Venga classificou como o dia a
dia do
sico trabalhador
entanto, conclui-
se também que ao
trabalho braçal destacado por Paoli
como uma dimensão fundamental do
cotidiano destes instrumentistas que
estão nas ruas, são adicionadas
atividades de produção e comunicação
que incrementam a lógica
pluriatividade.
a segunda dimensão da
pluriatividade, conforme citada, diz
respeito aos trabalhos não
relacionados à prática musical. Estes
podem tanto complementar a renda,
uma vez que o trabalho com a música
não seja suficiente, como podem
tratar-s
e do rendimento central,
fazendo da música atividade
secundária. Sendo assim, as
8 Cf. (OLIVEIRA, 2021).
56
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
Neste trecho, a pluriatividade é
potencializada a partir do momento
que o instrumentista e sua banda
passam a tocar nas ruas. A marcação
enda de shows e ensaios, além
da busca por editais de patrocínio,
gera uma demanda grande de
atividades, que extrapola a realização
dos shows propriamente ditos. Tal fato
reitera aquilo que o contrabaixista da
Astro Venga classificou como o dia a
sico trabalhador
8
. No
se também que ao
trabalho braçal destacado por Paoli
como uma dimensão fundamental do
cotidiano destes instrumentistas que
estão nas ruas, são adicionadas
atividades de produção e comunicação
que incrementam a lógica
da
a segunda dimensão da
pluriatividade, conforme citada, diz
respeito aos trabalhos não
relacionados à prática musical. Estes
podem tanto complementar a renda,
uma vez que o trabalho com a música
não seja suficiente, como podem
e do rendimento central,
fazendo da música atividade
secundária. Sendo assim, as
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
apresentações na rua podem ser
identificadas como uma das
possibilidades que os instrumentistas
têm para tentar viver a partir do
trabalho artístico.
No Brasil, de maneira
es
quemática, os instrumentistas
podem assalariar-
se de duas
maneiras: no serviço público em suas
diferentes esferas e funções ou na
iniciativa privada. Todavia, entendendo
que a primeira opção está aberta mais
diretamente aos instrumentistas com
formação clá
ssica, nos ateremos à
segunda possibilidade. Neste contexto,
os instrumentistas podem também
estabelecer relações estáveis como no
caso de orquestras privadas, mas a
depender de suas formações, estes se
deparam mais comumente com o
trabalho autônomo formal
e informal.
Nestas condições a docência
emerge como possibilidade através de
contratos de longa duração,
intermitentes ou mesmo em sua
ausência. A formalidade e
informalidade estão presentes também
em trabalhos de gravação em estúdios
e de apresentações
ao vivo. Vale
lembrar que tais possibilidades dão
forma à instabilidade da vida
profissional dos instrumentistas, por
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
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(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
apresentações na rua podem ser
identificadas como uma das
possibilidades que os instrumentistas
têm para tentar viver a partir do
No Brasil, de maneira
quemática, os instrumentistas
se de duas
maneiras: no serviço público em suas
diferentes esferas e funções ou na
iniciativa privada. Todavia, entendendo
que a primeira opção está aberta mais
diretamente aos instrumentistas com
ssica, nos ateremos à
segunda possibilidade. Neste contexto,
os instrumentistas podem também
estabelecer relações estáveis como no
caso de orquestras privadas, mas a
depender de suas formações, estes se
deparam mais comumente com o
e informal.
Nestas condições a docência
emerge como possibilidade através de
contratos de longa duração,
intermitentes ou mesmo em sua
ausência. A formalidade e
informalidade estão presentes também
em trabalhos de gravação em estúdios
ao vivo. Vale
lembrar que tais possibilidades dão
forma à instabilidade da vida
profissional dos instrumentistas, por
isso, levamos em consideração que,
para além desses diferentes tipos de
vínculo passíveis de serem
estabelecidos, existe também a
possibil
idade de nenhum destes
sustentar o instrumentista.
Uma vez que a pluriatividade
pode se expandir para atividades
paralelas à música, a ruptura total com
o campo esta prática é sempre uma
possibilidade no horizonte destes
agentes. Nesse sentido destacamos
que os instrumentistas aqui analisados
entenderam a rua como possibilidade
limite para dar continuidade à atividade
artística. As relações precárias de
trabalho constitutivas da organização
do campo musical encontradas pelos
músicos entrevistados obtêm com
resposta o deslocamento das
apresentações musicais para
determinados espaços blicos da
capital carioca. Esta aposta traz
consigo algumas particularidades que
investigaremos na sequência.
A precarização do trabalho musical e
as crises sobrepostas
Três autores nos ajudam a
definir o que entendemos por
condições precárias de trabalho.
Ricardo Antunes, Robert Castel e Guy
57
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- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
isso, levamos em consideração que,
para além desses diferentes tipos de
vínculo passíveis de serem
estabelecidos, existe também a
idade de nenhum destes
sustentar o instrumentista.
Uma vez que a pluriatividade
pode se expandir para atividades
paralelas à música, a ruptura total com
o campo esta prática é sempre uma
possibilidade no horizonte destes
agentes. Nesse sentido destacamos
que os instrumentistas aqui analisados
entenderam a rua como possibilidade
limite para dar continuidade à atividade
artística. As relações precárias de
trabalho constitutivas da organização
do campo musical encontradas pelos
músicos entrevistados obtêm com
o
resposta o deslocamento das
apresentações musicais para
determinados espaços blicos da
capital carioca. Esta aposta traz
consigo algumas particularidades que
investigaremos na sequência.
A precarização do trabalho musical e
as crises sobrepostas
Três autores nos ajudam a
definir o que entendemos por
condições precárias de trabalho.
Ricardo Antunes, Robert Castel e Guy
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
Standing, em diferentes momentos e a
partir de distintas abordagens,
tentaram compreender o fenômeno da
precarização bem como suas
sobredeterminações. Tais relações
são dinâmicas e relacionais, de forma
que as condições precárias de
trabalho, em diferentes momentos da
modernidade, se deslocam entre
zonas de estabilidade empregatícia, de
um lado, e de desintegração social por
outro. Aq
uilo que na França, Castel
(2008) identificou ser a crise da
sociedade salarial e, no Brasil,
Antunes (2011) entendeu como a
vigência da sociedade do desemprego
estrutural, em função das
determinações conjunturais
conformadoras das realidades
europeia e latino-
americana, está
ligada à ampliação da zona de
instabilidade social proveniente do
padrão flexível de acumulação do
capital. Tais abordagens confluem
tanto a respeito do processo de
desestabilização e promoção de
incertezas na vida dos trabalhadores,
c
omo com o imperativo destrutivo do
capital frente ao trabalho.
Para Guy Standing (2017),
aquilo que ele intitula de “nova classe
perigosa” ou de “precariado” também é
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
Standing, em diferentes momentos e a
partir de distintas abordagens,
tentaram compreender o fenômeno da
precarização bem como suas
sobredeterminações. Tais relações
são dinâmicas e relacionais, de forma
que as condições precárias de
trabalho, em diferentes momentos da
modernidade, se deslocam entre
zonas de estabilidade empregatícia, de
um lado, e de desintegração social por
uilo que na França, Castel
(2008) identificou ser a crise da
sociedade salarial e, no Brasil,
Antunes (2011) entendeu como a
vigência da sociedade do desemprego
estrutural, em função das
determinações conjunturais
conformadoras das realidades
americana, está
ligada à ampliação da zona de
instabilidade social proveniente do
padrão flexível de acumulação do
capital. Tais abordagens confluem
tanto a respeito do processo de
desestabilização e promoção de
incertezas na vida dos trabalhadores,
omo com o imperativo destrutivo do
Para Guy Standing (2017),
aquilo que ele intitula de “nova classe
perigosa” ou de “precariado” também é
caracterizado pelo autor por suas
relações de trabalho estabelecidas de
maneira flexível
, sazonal e incerta
Não nos interessa aqui afirmar o
artista-
trabalhador como membro ou
não do precariado, mas perceber a
riqueza daquilo que Standing define
como “sete formas de garantia e
segurança de trabalho nos termos da
cidadania industrial” (STAND
2017, p. 28), de modo que a partir de
alguma mediação, possamos
compreender as condições de trabalho
vivenciadas pelos músicos em
diferentes circuitos. Senão vejamos:
Garantia de mercado de trabalho
oportunidades adequadas de
renda salário; no níve
é realçado por um compromisso
governamental de “pleno
emprego”.
Garantia de vínculo empregatício
Proteção contra a dispensa
arbitrária, regulamentação sobre
contratação e demissão,
imposição de custos aos
empregadores por não aderirem
às regras e assim por diante.
Segurança no emprego
Capacidade e oportunidade para
manter um nicho no emprego,
alé
m de barreiras para a diluição
9
Em contraposição ao autor britânico,
entende-
se o precariado como um estrato da
classe trabalhadora que entra e sai do
mercado de trabalho de modo frequente e em
um curto espaço de tempo, portanto, pelo
menos em termos marxianos, não se trata de
uma nova c
lasse social. Para mais
informações ver BRAGA, 2012 e 2017.
58
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
caracterizado pelo autor por suas
relações de trabalho estabelecidas de
, sazonal e incerta
9
.
Não nos interessa aqui afirmar o
trabalhador como membro ou
não do precariado, mas perceber a
riqueza daquilo que Standing define
como “sete formas de garantia e
segurança de trabalho nos termos da
cidadania industrial” (STAND
ING,
2017, p. 28), de modo que a partir de
alguma mediação, possamos
compreender as condições de trabalho
vivenciadas pelos músicos em
diferentes circuitos. Senão vejamos:
Garantia de mercado de trabalho
oportunidades adequadas de
renda salário; no níve
l macro, isto
é realçado por um compromisso
governamental de “pleno
Garantia de vínculo empregatício
Proteção contra a dispensa
arbitrária, regulamentação sobre
contratação e demissão,
imposição de custos aos
empregadores por não aderirem
às regras e assim por diante.
Segurança no emprego
Capacidade e oportunidade para
manter um nicho no emprego,
m de barreiras para a diluição
Em contraposição ao autor britânico,
se o precariado como um estrato da
classe trabalhadora que entra e sai do
mercado de trabalho de modo frequente e em
um curto espaço de tempo, portanto, pelo
menos em termos marxianos, não se trata de
lasse social. Para mais
informações ver BRAGA, 2012 e 2017.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
de habilidade, e oportunidades de
mobilidade ascendente” em
termos de status e renda.
Segurança do trabalho
Proteção contra acidentes e
doenças no trabalho através, por
exemplo, de normas de
segurança e saúde, limites de
t
empo de trabalho, horas
insociáveis, trabalho noturno para
as mulheres, bem como
compensação de contratempos.
Garantia de reprodução de
habilidade
Oportunidade de
adquirir habilidades, através de
estágios, treinamento de trabalho,
e assim por diante, bem
oportunidade de fazer uso dos
conhecimentos.
Segurança de renda
de renda adequada e estável,
protegida, por exemplo, por meio
de mecanismos de salário
mínimo, indexação dos salários,
previdência social abrangente,
tributação progressiva pa
reduzir a desigualdade e para
complementar as baixas rendas.
Garantia de representação
Possuir uma voz coletiva no
mercado de trabalho por meio,
por exemplo, de sindicatos
independentes, com o direito de
greve. (
grifo do autor)
Buscadas no período p
Guerra Mundial, sobretudo na Europa e
nos Estados Unidos, interpretamos tais
garantias em termos polanyianos, isto é,
como uma dimensão da dinâmica de
“duplo movimento” que regeu a sociedade
moderna e teve seu ápice no início do
século XX (POLAN
YI, 2000, p. 161).
Neste caso, em resposta à devastação do
tecido social promovida pelo livre
mercado, o Estado buscou
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
de habilidade, e oportunidades de
mobilidade ascendente” em
termos de status e renda.
Segurança do trabalho
Proteção contra acidentes e
doenças no trabalho através, por
exemplo, de normas de
segurança e saúde, limites de
empo de trabalho, horas
insociáveis, trabalho noturno para
as mulheres, bem como
compensação de contratempos.
Garantia de reprodução de
Oportunidade de
adquirir habilidades, através de
estágios, treinamento de trabalho,
e assim por diante, bem
como
oportunidade de fazer uso dos
Segurança de renda
– Garantia
de renda adequada e estável,
protegida, por exemplo, por meio
de mecanismos de salário
mínimo, indexação dos salários,
previdência social abrangente,
tributação progressiva pa
ra
reduzir a desigualdade e para
complementar as baixas rendas.
Garantia de representação
Possuir uma voz coletiva no
mercado de trabalho por meio,
por exemplo, de sindicatos
independentes, com o direito de
grifo do autor)
Buscadas no período p
ós-Segunda
Guerra Mundial, sobretudo na Europa e
nos Estados Unidos, interpretamos tais
garantias em termos polanyianos, isto é,
como uma dimensão da dinâmica de
“duplo movimento” que regeu a sociedade
moderna e teve seu ápice no início do
YI, 2000, p. 161).
Neste caso, em resposta à devastação do
tecido social promovida pelo livre
mercado, o Estado buscou
desmercantilizar o trabalho como medida
de proteção social, conclusão aliás à qual
Castel se aproxima tempos depois em sua
análise sobre
o declínio da sociedade
salarial na França, iniciada na década de
1970. Tratando-
se de uma agenda política
determinada historicamente, Standing
destaca que nem todos os trabalhadores
pertencentes ao precariado
necessariamente dão valor a todas estas
garant
ias, mas que objetivamente
possuem, em alguma medida, problemas
em acessar cada uma delas. Entende
portanto, que a informalidade que assola
as relações de trabalho dos músicos
mesmo antes do início das apresentações
realizadas nas ruas, traz consigo a
dificuldade de acesso, ou mesmo a
impossibilidade de alcance de todas as
garantias elencadas.
São raras as exceções de músicos
e instrumentistas que possuem, por
exemplo, garantia de nculo
empregatício, segurança no emprego e
garantia de reprodução de ha
Como colocado, tais características são
identificadas no caso de músicos de
determinadas orquestras
muitas vezes servidores públicos. Em se
tratando de instrumentistas autônomos,
como no caso desta pesquisa,
determinadas reiv
indicações parecem, por
vezes, nem mesmo fazer sentido para os
músicos entrevistados. A carência de
“identidade baseada no trabalho”, por
59
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
desmercantilizar o trabalho como medida
de proteção social, conclusão aliás à qual
Castel se aproxima tempos depois em sua
o declínio da sociedade
salarial na França, iniciada na década de
se de uma agenda política
determinada historicamente, Standing
destaca que nem todos os trabalhadores
pertencentes ao precariado
necessariamente dão valor a todas estas
ias, mas que objetivamente
possuem, em alguma medida, problemas
em acessar cada uma delas. Entende
-se,
portanto, que a informalidade que assola
as relações de trabalho dos músicos
mesmo antes do início das apresentações
realizadas nas ruas, traz consigo a
dificuldade de acesso, ou mesmo a
impossibilidade de alcance de todas as
São raras as exceções de músicos
e instrumentistas que possuem, por
exemplo, garantia de nculo
empregatício, segurança no emprego e
garantia de reprodução de ha
bilidade.
Como colocado, tais características são
identificadas no caso de músicos de
determinadas orquestras
assalariados –,
muitas vezes servidores públicos. Em se
tratando de instrumentistas autônomos,
como no caso desta pesquisa,
indicações parecem, por
vezes, nem mesmo fazer sentido para os
músicos entrevistados. A carência de
“identidade baseada no trabalho”, por
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
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1
.
exemplo, é outra característica atribuída
por Standing (2017, p. 31) ao precariado,
diretamente ligada à garantia de
r
epresentação. Esta é identificada por
Requião (2008, p. 211), já no circuito
formal das casas de shows:
Apesar de todos os músicos que
responderam ao questionário
estarem filiados à Ordem dos
Músicos do Brasil e a algum
Sindicato, não se sentem como
perte
ncentes a nenhum grupo ou
classe específica. Sua identidade
profissional fica diluída frente à
instabilidade da profissão e às
inúmeras atividades profissionais
que exercem.
Com o novo fenômeno das
apresentações nos espaços públicos, os
músicos filiados à Ordem dos Músicos do
Brasil (OMB) são poucos e o
pertencimento a sindicatos, ao menos
dentre os instrumentistas entrevistados,
não foi identificado. Reitera
-
que
o fato de alguns instrumentistas irem
para as ruas está diretamente ligado à
descrença da possibilidade de “mobilidade
ascendente no campo”, através do circuito
tradicional. Ao mesmo tempo, a rua surge
no horizonte desses instrumentistas como
um novo espa
ço de trabalho, sobretudo
para aqueles que não tinham nada a
perder no campo da música. A
instabilidade presente nas relações de
trabalho e seu desdobramento para as
demais dimensões da vida são
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
exemplo, é outra característica atribuída
por Standing (2017, p. 31) ao precariado,
diretamente ligada à garantia de
epresentação. Esta é identificada por
Requião (2008, p. 211), já no circuito
Apesar de todos os músicos que
responderam ao questionário
estarem filiados à Ordem dos
Músicos do Brasil e a algum
Sindicato, não se sentem como
ncentes a nenhum grupo ou
classe específica. Sua identidade
profissional fica diluída frente à
instabilidade da profissão e às
inúmeras atividades profissionais
Com o novo fenômeno das
apresentações nos espaços públicos, os
músicos filiados à Ordem dos Músicos do
Brasil (OMB) são poucos e o
pertencimento a sindicatos, ao menos
dentre os instrumentistas entrevistados,
-
se, portanto,
o fato de alguns instrumentistas irem
para as ruas está diretamente ligado à
descrença da possibilidade de “mobilidade
ascendente no campo”, através do circuito
tradicional. Ao mesmo tempo, a rua surge
no horizonte desses instrumentistas como
ço de trabalho, sobretudo
para aqueles que não tinham nada a
perder no campo da música. A
instabilidade presente nas relações de
trabalho e seu desdobramento para as
demais dimensões da vida são
escancaradas quando os instrumentistas
se lançam na cidade. A
aleatório” identificada por Castel (2008, p.
529) se materializa de maneira bem
específica na nova forma que a atividade
musical toma nas ruas do Rio de Janeiro,
e devido a isso os músicos passam de
uma vez por todas a viver o presente,
garantindo a sobrevivência um dia de
cada vez. Quanto ao futuro deste sujeitos,
este se configura, na maioria das vezes,
como um projeto incontrolável baseado no
virtual reconhecimento e incorporação ao
circuito consagrado da música. Neste
meio tempo, a i
ncerteza da rua traz
consigo, pelo menos idealmente, a
iminência de relações de trabalho
intermitentes em casas de shows e
festivais menores.
Vejamos uma das maneiras pelas
quais a cultura do aleatório se realiza nas
ruas, através da própria mudança na
percepção dos instrumentistas que
vivenciam o processo de formação dos
circuitos não consagrados, da cidade do
Rio de Janeiro. Em 2016, também em
entrevista concedida ao guitarrista da
Astro Venga, Paoli afirmou que a rua era a
sua principal fonte de rend
cerca de dois anos depois, em fevereiro
de 2019, o instrumentista reavaliou as
condições da atividade:
Atualmente a rua não tá maneira
pra isso [para a prática musical].
60
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
escancaradas quando os instrumentistas
se lançam na cidade. A
ssim, a “cultura do
aleatório” identificada por Castel (2008, p.
529) se materializa de maneira bem
específica na nova forma que a atividade
musical toma nas ruas do Rio de Janeiro,
e devido a isso os músicos passam de
uma vez por todas a viver o presente,
garantindo a sobrevivência um dia de
cada vez. Quanto ao futuro deste sujeitos,
este se configura, na maioria das vezes,
como um projeto incontrolável baseado no
virtual reconhecimento e incorporação ao
circuito consagrado da música. Neste
ncerteza da rua traz
consigo, pelo menos idealmente, a
iminência de relações de trabalho
intermitentes em casas de shows e
Vejamos uma das maneiras pelas
quais a cultura do aleatório se realiza nas
ruas, através da própria mudança na
percepção dos instrumentistas que
vivenciam o processo de formação dos
circuitos não consagrados, da cidade do
Rio de Janeiro. Em 2016, também em
entrevista concedida ao guitarrista da
Astro Venga, Paoli afirmou que a rua era a
sua principal fonte de rend
a. No entanto,
cerca de dois anos depois, em fevereiro
de 2019, o instrumentista reavaliou as
condições da atividade:
Atualmente a rua não tá maneira
pra isso [para a prática musical].
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
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.
A gente quando começou na rua,
pensamos que viveríamos disso,
mas fic
ou claro que depende do
país estar bem, das pessoas
terem dinheiro no bolso para
poderem perder com cultura. [...]
No começo o país tava maneiro.
Era isso, 150 conto no bolso de
cada um de tarde, isso o mínimo,
três vezes na semana.
Esta relação entre a
s doações e a
crise também foi relatada por Luiz
Queiroz, saxofonista das bandas Rocha e
Kosmo Coletivo Urbano. De acordo com o
músico, cada membro da Kosmo chegara
a embolsar algo em torno de 100 reais por
dia, algo que não acontecia com a então
recém-cri
ada Rocha, uma vez que as
pessoas andavam sem dinheiro em
função da crise, fato esse que refletia nas
ruas
11
. Levando em consideração que o
“começo” relatado por Paoli trata
2013, ano em que a Astro Venga
começou a tocar nas ruas, e os tempos
áureos r
elatados por Queiroz diz respeito
ao ano de 2014, torna-
se fundamental
uma breve análise conjuntural do
processo de rebatimento das atuais crises
política e econômica nas ruas da cidade
do Rio de Janeiro. Para isso retomemos o
contexto político anterior à
10
Entrevista de Antônio Paoli da banda Astro
Venga concedida ao autor em 27 de fevereiro
de 2019.
11
Informações acessadas através de uma
conversa realizada no dia primeiro de fevereiro
de 2019 a
pós apresentação da banda Rocha
na Avenida Rio Branco, no
centro da cidade do
Rio de Janeiro.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
A gente quando começou na rua,
pensamos que viveríamos disso,
ou claro que depende do
país estar bem, das pessoas
terem dinheiro no bolso para
poderem perder com cultura. [...]
No começo o país tava maneiro.
Era isso, 150 conto no bolso de
cada um de tarde, isso o mínimo,
três vezes na semana.
10
s doações e a
crise também foi relatada por Luiz
Queiroz, saxofonista das bandas Rocha e
Kosmo Coletivo Urbano. De acordo com o
músico, cada membro da Kosmo chegara
a embolsar algo em torno de 100 reais por
dia, algo que não acontecia com a então
ada Rocha, uma vez que as
pessoas andavam sem dinheiro em
função da crise, fato esse que refletia nas
. Levando em consideração que o
“começo” relatado por Paoli trata
-se de
2013, ano em que a Astro Venga
começou a tocar nas ruas, e os tempos
elatados por Queiroz diz respeito
se fundamental
uma breve análise conjuntural do
processo de rebatimento das atuais crises
política e econômica nas ruas da cidade
do Rio de Janeiro. Para isso retomemos o
contexto político anterior à
crise
Entrevista de Antônio Paoli da banda Astro
Venga concedida ao autor em 27 de fevereiro
Informações acessadas através de uma
conversa realizada no dia primeiro de fevereiro
pós apresentação da banda Rocha
centro da cidade do
econômica que atingiu o Brasil
diretamente na virada de 2014 para 2015,
na tentativa de compreender o início
daquilo que chamamos de primeira virada
“aleatória” no cotidiano dos artistas que
vinham tocando nas ruas da cidade
carioca até então.
O he
terogêneo movimento que
toma as ruas de diferentes cidades
brasileiras no primeiro semestre de 2013,
ainda hoje está longe de ser interpretado
de maneira consensual, quer seja entre os
movimentos sociais participantes à época,
quer seja entre os cientistas
se debruçam sobre o fenômeno quase
uma década. Destaca
primeiro momento, a articulação de
diferentes agendas de diversos
movimentos sociais em capitais como
Porto Alegre, Recife, São Paulo, Belo
Horizonte, Rio de Janeiro, que
comum as reivindicações por direitos
sociais, que muito vêm sendo tratados
pelo Estado sob a ótica de serviços
mercantilizados.
Hoje, porém, entendemos estas
manifestações como início do processo
que desembocaria na retirada de apoio ao
gove
rno federal por parte de diferentes
frações do capital, tendo em vista o
cenário de recessão avistado no horizonte
em função da transferência da crise
econômica global para a periferia do
sistema (ANTUNES, 2018). A partir disto,
buscamos compreender esse p
61
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
econômica que atingiu o Brasil
diretamente na virada de 2014 para 2015,
na tentativa de compreender o início
daquilo que chamamos de primeira virada
“aleatória” no cotidiano dos artistas que
vinham tocando nas ruas da cidade
terogêneo movimento que
toma as ruas de diferentes cidades
brasileiras no primeiro semestre de 2013,
ainda hoje está longe de ser interpretado
de maneira consensual, quer seja entre os
movimentos sociais participantes à época,
quer seja entre os cientistas
sociais que
se debruçam sobre o fenômeno quase
uma década. Destaca
-se aqui, em um
primeiro momento, a articulação de
diferentes agendas de diversos
movimentos sociais em capitais como
Porto Alegre, Recife, São Paulo, Belo
Horizonte, Rio de Janeiro, que
tinham em
comum as reivindicações por direitos
sociais, que muito vêm sendo tratados
pelo Estado sob a ótica de serviços
Hoje, porém, entendemos estas
manifestações como início do processo
que desembocaria na retirada de apoio ao
rno federal por parte de diferentes
frações do capital, tendo em vista o
cenário de recessão avistado no horizonte
em função da transferência da crise
econômica global para a periferia do
sistema (ANTUNES, 2018). A partir disto,
buscamos compreender esse p
eríodo de
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
202
1
.
crises política e econômica combinadas a
partir de seus desdobramentos para a
cidade do Rio de Janeiro e para fruição
desta por parte dos artistas-
trabalhadores.
Em diálogo com Braga (2017),
entendemos a articulação entre a
precarização do traba
lho e a
mercantilização do espaço urbano como
pistas da atualização da reprodução do
capitalismo contemporâneo. Uma vez que
o processo de valorização do valor não é
mais sustentável por meio da expansão
geográfica pelo globo (LUXEMBURGO,
1970; HARVEY, 2005
), a expansão
através da mercadorização de outras
dimensões da vida coaduna
extração de mais-
valor no momento de
reavivamento da crise estrutural do
capital. Tal fenômeno trata de uma das
dimensões estruturantes do processo de
neoliberalização, um
a vez que, nestes
termos, o processo de precarização do
trabalho identificado algum tempo no
cotidiano dos músicos é incrementado
quando parte destes sujeitos vão para as
ruas se apresentar e passam a lidar com a
cidade por meio de novas mediações
(OLIVEIRA, 2021).
Uma vez que a economia brasileira
ainda não havia sido impactada
diretamente pela a crise internacional de
2008, quando os instrumentistas se
arriscam em trabalhar na rua, estes
contam com a disponibilidade dos
cidadãos em contribuir economic
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
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Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
crises política e econômica combinadas a
partir de seus desdobramentos para a
cidade do Rio de Janeiro e para fruição
trabalhadores.
Em diálogo com Braga (2017),
entendemos a articulação entre a
lho e a
mercantilização do espaço urbano como
pistas da atualização da reprodução do
capitalismo contemporâneo. Uma vez que
o processo de valorização do valor não é
mais sustentável por meio da expansão
geográfica pelo globo (LUXEMBURGO,
), a expansão
através da mercadorização de outras
dimensões da vida coaduna
-se com a
valor no momento de
reavivamento da crise estrutural do
capital. Tal fenômeno trata de uma das
dimensões estruturantes do processo de
a vez que, nestes
termos, o processo de precarização do
trabalho identificado algum tempo no
cotidiano dos músicos é incrementado
quando parte destes sujeitos vão para as
ruas se apresentar e passam a lidar com a
cidade por meio de novas mediações
Uma vez que a economia brasileira
ainda não havia sido impactada
diretamente pela a crise internacional de
2008, quando os instrumentistas se
arriscam em trabalhar na rua, estes
contam com a disponibilidade dos
cidadãos em contribuir economic
amente
com a sua atividade artística. Os trabalhos
dos artistas nas ruas no Rio de Janeiro
naquele momento se mostraram viáveis
mesmo a partir da lógica de contribuição
voluntária. Percebe-
se em contraposição,
que quando a crise econômica avança, a
reprodu
ção a partir desta mesma lógica
torna-
se mais limitada, o que deixa a rua
“não tão maneira” para a prática musical,
nos termos de Paoli que confluem com a
percepção de Queiroz. Nesse sentido, o
período de retração econômica afeta
diretamente a renda dos tr
trabalhadoras, o que obviamente impacta
na prática artística, conforme foi
identificado pelos próprios músicos a partir
da prática.
Por mais que a lógica mercantil e
as políticas de caráter neoliberal queiram
atribuir caráter empreendedor aos
trabalhadores informais, ganhar a vida por
meio do autoempresariamento ressoa no
campo artístico de maneira bastante
específica. Os artistas
submetem a prática artística à lógica
produtiva e quando passam a sobreviver
na rua, encontram-
se se
de proteção social.
A fim de analisar as
particularidades do trabalho dos
instrumentistas nômades
cariocas,resgatemos o último relato do
contrabaixista da Astro Venga aqui
exposto e
nos atentemos para a questão
levantada sobre a “perda de
62
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Trabalho cultural e precarização
")
com a sua atividade artística. Os trabalhos
dos artistas nas ruas no Rio de Janeiro
naquele momento se mostraram viáveis
mesmo a partir da lógica de contribuição
se em contraposição,
que quando a crise econômica avança, a
ção a partir desta mesma lógica
se mais limitada, o que deixa a rua
“não tão maneira” para a prática musical,
nos termos de Paoli que confluem com a
percepção de Queiroz. Nesse sentido, o
período de retração econômica afeta
diretamente a renda dos tr
abalhadores e
trabalhadoras, o que obviamente impacta
na prática artística, conforme foi
identificado pelos próprios músicos a partir
Por mais que a lógica mercantil e
as políticas de caráter neoliberal queiram
atribuir caráter empreendedor aos
trabalhadores informais, ganhar a vida por
meio do autoempresariamento ressoa no
campo artístico de maneira bastante
específica. Os artistas
-trabalhadores
submetem a prática artística à lógica
produtiva e quando passam a sobreviver
se se
m qualquer tipo
A fim de analisar as
particularidades do trabalho dos
instrumentistas nômades
cariocas,resgatemos o último relato do
contrabaixista da Astro Venga aqui
nos atentemos para a questão
levantada sobre a “perda de
dinheiro” com
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
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1
.
cultura. Coli (2008, p. 96) em sua análise
sobre as condições precárias de trabalho
das cantoras e cantores líricos no Brasil e
na Itália, constata uma particularidade do
trabalho musical que gera dificuldade para
a sociologia das profissões
social da atividade musical é interpelada
na contemporaneidade a partir do critério
da produtividade em detrimento do critério
da criatividade, este último estruturante da
prática historicamente. A autora afirma a
partir desta reflexão que “por
diversamente de outros ambientes de
trabalho, as artes criam suas próprias
estruturas de sustento em complexo social
restrito e detentor dos critérios de
avaliação do valor artístico”.
A partir de Bourdieu (2001)
compreendemos que estes critérios se
imbricam e trazem ainda mais dificuldade
para a compreensão da prática artística e
a produção de valor. Por ora, no entanto,
o argumento de Coli nos ajuda
compreender a armadilha que aguarda os
instrumentistas que se apresentam nas
ruas a partir do discurs
o em defesa da
concepção do artista-
trabalhador. Caso
esta reivindicação seja norteada pela
subsunção do trabalho criativo ao trabalho
norteado pela produtividade, a sensação
de “perda de dinheiro” com cultura será
uma constante enquanto vivermos em
uma so
ciedade voltada para produtividade
e valorização do capital.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
cultura. Coli (2008, p. 96) em sua análise
sobre as condições precárias de trabalho
das cantoras e cantores líricos no Brasil e
na Itália, constata uma particularidade do
trabalho musical que gera dificuldade para
a sociologia das profissões
: a função
social da atividade musical é interpelada
na contemporaneidade a partir do critério
da produtividade em detrimento do critério
da criatividade, este último estruturante da
prática historicamente. A autora afirma a
partir desta reflexão que “por
isso,
diversamente de outros ambientes de
trabalho, as artes criam suas próprias
estruturas de sustento em complexo social
restrito e detentor dos critérios de
A partir de Bourdieu (2001)
compreendemos que estes critérios se
imbricam e trazem ainda mais dificuldade
para a compreensão da prática artística e
a produção de valor. Por ora, no entanto,
o argumento de Coli nos ajuda
compreender a armadilha que aguarda os
instrumentistas que se apresentam nas
o em defesa da
trabalhador. Caso
esta reivindicação seja norteada pela
subsunção do trabalho criativo ao trabalho
norteado pela produtividade, a sensação
de “perda de dinheiro” com cultura será
uma constante enquanto vivermos em
ciedade voltada para produtividade
Longe de ter suas bases
ancoradas na produtividade, “a ocupação
musical pertence ao universo de valores
artesanais que perderam a sua validade
na sociedade atual” (COLI, 2008, p. 96).
Tal proces
so de artesania remete, por
exemplo, ao processo de formação
musical, onde a incorporação de certas
habilidades permeia toda a vida do
músico, tem grande dimensão empírica,
gastos fixos perenes, além de levar algum
tempo até que o desempenho da atividade
t
raga algum retorno financeiro ao
instrumentista. Neste sentido,
desdobramentos como a instabilidade e a
pluriatividade aparecem também como
característica deste choque de distintas
formas de produção, uma vez que para
Coli (2008, p. 97), a atividade musica
revela ainda artesanal em plena
sociedade capitalista pós
Ainda que na modernidade tenha
se tornado possível a produção de
mercadorias descoladas da produção
direta dos músicos, a realização da prática
ainda hoje é dependente destes sujeitos.
Deste modo, a subsunção do trabalho
musical ao capital se de maneira
formal, isto é, a partir da separação entre
os meios de produção e os músicos
(SCHNEIDER, 2006). Tal separação, no
entanto, mostra-
se complexa. Isto significa
dizer que tal mecanismo aparece
coadunado com o monopólio de
distribuição, como responsável mate
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www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
Longe de ter suas bases
ancoradas na produtividade, “a ocupação
musical pertence ao universo de valores
artesanais que perderam a sua validade
na sociedade atual” (COLI, 2008, p. 96).
so de artesania remete, por
exemplo, ao processo de formação
musical, onde a incorporação de certas
habilidades permeia toda a vida do
músico, tem grande dimensão empírica,
gastos fixos perenes, além de levar algum
tempo até que o desempenho da atividade
raga algum retorno financeiro ao
instrumentista. Neste sentido,
desdobramentos como a instabilidade e a
pluriatividade aparecem também como
característica deste choque de distintas
formas de produção, uma vez que para
Coli (2008, p. 97), a atividade musica
l “se
revela ainda artesanal em plena
sociedade capitalista pós
-industrial”.
Ainda que na modernidade tenha
se tornado possível a produção de
mercadorias descoladas da produção
direta dos músicos, a realização da prática
ainda hoje é dependente destes sujeitos.
Deste modo, a subsunção do trabalho
musical ao capital se de maneira
formal, isto é, a partir da separação entre
os meios de produção e os músicos
(SCHNEIDER, 2006). Tal separação, no
se complexa. Isto significa
dizer que tal mecanismo aparece
coadunado com o monopólio de
distribuição, como responsável mate
rial
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
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.
pelo surgimento dos circuitos consagrados
que, ao mesmo tempo que fazem dos
músicos que acessam tais circuitos parte
do circuito produtivo, produzem, a
exclusão dos demais. Por outro lado, esta
mesma exclusão conjugada com o
processo de relativa sim
plificação da
produção musical permite com que os
instrumentistas componham, gravem e
passem a constituir nas ruas, um circuito
não consagrado ou passível de outro tipo
de consagração. Conclui-
se, com isto, que
sempre que incorporado ao ciclo de
valorizaçã
o do capital e sua
temporalidade, ainda que de modo formal,
o trabalho musical será sobredeterminado
pela forma mercadoria e a lógica de
superexploração será majoritária.
Em contrapartida, pensado em
outras possibilidade de consagração do
circuito musical,
ao desempenharem sua
atividade, os músicos disponibilizam seu
trabalho aos transeuntes. Produzido
diretamente pelos músicos, os produtos
ficam à disposição para troca, mas
também para simples usufruto. Uma vez
que as apresentações nestes circuitos não
são
precificadas, as trocas podem ser
realizadas à luz de outros parâmetros,
como por exemplo, o das relações de
solidariedade entre músicos e
transeuntes. Tal lógica pode configurar a
luta política a ser travada pelos
instrumentistas contra a lógica produtiv
mesmo ajudar a reconfigurar a
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
pelo surgimento dos circuitos consagrados
que, ao mesmo tempo que fazem dos
músicos que acessam tais circuitos parte
do circuito produtivo, produzem, a
exclusão dos demais. Por outro lado, esta
mesma exclusão conjugada com o
plificação da
produção musical permite com que os
instrumentistas componham, gravem e
passem a constituir nas ruas, um circuito
não consagrado ou passível de outro tipo
se, com isto, que
sempre que incorporado ao ciclo de
o do capital e sua
temporalidade, ainda que de modo formal,
o trabalho musical será sobredeterminado
pela forma mercadoria e a lógica de
superexploração será majoritária.
Em contrapartida, pensado em
outras possibilidade de consagração do
ao desempenharem sua
atividade, os músicos disponibilizam seu
trabalho aos transeuntes. Produzido
diretamente pelos músicos, os produtos
ficam à disposição para troca, mas
também para simples usufruto. Uma vez
que as apresentações nestes circuitos não
precificadas, as trocas podem ser
realizadas à luz de outros parâmetros,
como por exemplo, o das relações de
solidariedade entre músicos e
transeuntes. Tal lógica pode configurar a
luta política a ser travada pelos
instrumentistas contra a lógica produtiv
a e
mesmo ajudar a reconfigurar a
composição do que viemos chamando de
produção cultural do urbano.
Tal luta, direta ou indiretamente
passará pela relação dos instrumentistas
com o Estado (OLIVEIRA, 2021). Por ora
destacamos apenas o fato de que, mesmo
qu
e em alguns relatos os músicos
reivindiquem o reconhecimento do Estado
frente às atividades desenvolvidas no
circuito informal, suas demandas estão
direcionadas menos para as garantias
sociais diversas, e mais para o fomento
direto da atividade estrita.
a discussão sobre o trabalho cultural
realizado por estes sujeitos atravessa não
somente o debate sobre o direito ao
trabalho, mas, em um horizonte mais
amplo, ela compõe o debate sobre uma
nova concepção de cidade sob a
perspectiva da produçã
o cultural urbana.
Entende-
se aqui que a primeira
luta, embora fundamental, tem um limite
quando o projeto objetivado é a
emancipação humana, uma vez que, por
si só, a reivindicação por trabalho não
questiona necessariamente a centralidade
deste na sociedade contemporânea. C
isso, o avanço da incorporação da
atividade musical à lógica produtiva
contribui não necessariamente com
garantias empregatícias e direitos sociais,
mas o contrário, contribui com a
radicalização da exploração, característica
central na era da acumulaçã
países periféricos.
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- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
composição do que viemos chamando de
produção cultural do urbano.
Tal luta, direta ou indiretamente
passará pela relação dos instrumentistas
com o Estado (OLIVEIRA, 2021). Por ora
destacamos apenas o fato de que, mesmo
e em alguns relatos os músicos
reivindiquem o reconhecimento do Estado
frente às atividades desenvolvidas no
circuito informal, suas demandas estão
direcionadas menos para as garantias
sociais diversas, e mais para o fomento
direto da atividade estrita.
Desta maneira,
a discussão sobre o trabalho cultural
realizado por estes sujeitos atravessa não
somente o debate sobre o direito ao
trabalho, mas, em um horizonte mais
amplo, ela compõe o debate sobre uma
nova concepção de cidade sob a
o cultural urbana.
se aqui que a primeira
luta, embora fundamental, tem um limite
quando o projeto objetivado é a
emancipação humana, uma vez que, por
si só, a reivindicação por trabalho não
questiona necessariamente a centralidade
deste na sociedade contemporânea. C
om
isso, o avanço da incorporação da
atividade musical à lógica produtiva
contribui não necessariamente com
garantias empregatícias e direitos sociais,
mas o contrário, contribui com a
radicalização da exploração, característica
central na era da acumulaçã
o flexível em
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
set.
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.
Deste modo, compreende
necessidade da luta por garantias sociais
através do emprego como uma etapa e
uma dimensão da luta emancipatória. Do
ponto de vista dos instrumentistas
nômades, tal luta pode vir a conjugar
com a luta pelo direito à cidade na
tentativa de romper com a lógica
capitalista de produção do espaço. No
âmago de uma sociedade mediada pelo
valor, a superação do estranhamento do
trabalho permitida pelo trabalho musical é
um dos caminhos em busca da pr
revolucionária, isto é, de uma razão não
mais determinada pelo produção de valor.
Considerações finais
Frente à análise das relações de
trabalho que estruturam as práticas dos
músicos realizadas até o momento, pode
se perceber que esses instrumenti
ingressam na rua regidos pela lógica da
aleatoriedade (CASTEL, 2008). A
instabilidade dos vínculos empregatícios,
bem como a inexistência de cachês, são
naturalizadas pelos proprietários das
casas de shows e justificadas pela
insustentabilidade do
trabalho artístico
frente aos efeitos da crise econômica no
país. Nestes termos, percebe
própria maneira de organização dos
agentes no interior do campo artístico,
devido a forma como este é estruturado
na modernidade, gera a instabilidade para
gr
ande parte dos instrumentistas.
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 1
1, n. 21, p. 48-66,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "
Trabalho cultural e precarização
Deste modo, compreende
-se a
necessidade da luta por garantias sociais
através do emprego como uma etapa e
uma dimensão da luta emancipatória. Do
ponto de vista dos instrumentistas
nômades, tal luta pode vir a conjugar
-se
com a luta pelo direito à cidade na
tentativa de romper com a lógica
capitalista de produção do espaço. No
âmago de uma sociedade mediada pelo
valor, a superação do estranhamento do
trabalho permitida pelo trabalho musical é
um dos caminhos em busca da pr
ática
revolucionária, isto é, de uma razão não
mais determinada pelo produção de valor.
Frente à análise das relações de
trabalho que estruturam as práticas dos
músicos realizadas até o momento, pode
-
se perceber que esses instrumenti
stas
ingressam na rua regidos pela lógica da
aleatoriedade (CASTEL, 2008). A
instabilidade dos vínculos empregatícios,
bem como a inexistência de cachês, são
naturalizadas pelos proprietários das
casas de shows e justificadas pela
trabalho artístico
frente aos efeitos da crise econômica no
país. Nestes termos, percebe
-se que a
própria maneira de organização dos
agentes no interior do campo artístico,
devido a forma como este é estruturado
na modernidade, gera a instabilidade para
ande parte dos instrumentistas.
Deste modo, vimos de maneira
breve, o modo com que o rearranjo do
padrão de acumulação capitalista
conjugado com as políticas de caráter
neoliberal impactam sobre o trabalho
assalariado de modo geral. O desemprego
e o trabal
ho precário proveniente desta
resposta do capital à sua crise estrutural
impactam de maneira particular na
atividade musical, fazendo com que uma
fração deste grupo enxergue a ida às ruas
como um modo de dar continuidade às
atividades. Tal tática, em nome
tentativa de sobrevivência por meio da
atividade musical, traz consigo a
instabilidade como característica estrutural
da prática.
Assim sendo, na tentativa de
avançar na discussão acerca do papel
desses instrumentistas nas novas
configurações do cam
necessário a conjugação da análise do
trabalho sem garantias realizado por
esses sujeitos conforme visto até aqui,
com o processo de produção do espaço.
Tal articulação é proposta por
entendermos que o processo de rearranjo
produtivo util
izado como resposta à crise
estrutural do capitalismo possui como uma
de suas dimensões as políticas
neoliberalizantes e tal processo impacta
não somente nas relações de trabalho
conforme analisado, mas também na
lógica de produção espacial da cidade. É
na
intersecção entre trabalho e espaço
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www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Trabalho cultural e precarização
")
Deste modo, vimos de maneira
breve, o modo com que o rearranjo do
padrão de acumulação capitalista
conjugado com as políticas de caráter
neoliberal impactam sobre o trabalho
assalariado de modo geral. O desemprego
ho precário proveniente desta
resposta do capital à sua crise estrutural
impactam de maneira particular na
atividade musical, fazendo com que uma
fração deste grupo enxergue a ida às ruas
como um modo de dar continuidade às
atividades. Tal tática, em nome
de uma
tentativa de sobrevivência por meio da
atividade musical, traz consigo a
instabilidade como característica estrutural
Assim sendo, na tentativa de
avançar na discussão acerca do papel
desses instrumentistas nas novas
configurações do cam
po social, faz-se
necessário a conjugação da análise do
trabalho sem garantias realizado por
esses sujeitos conforme visto até aqui,
com o processo de produção do espaço.
Tal articulação é proposta por
entendermos que o processo de rearranjo
izado como resposta à crise
estrutural do capitalismo possui como uma
de suas dimensões as políticas
neoliberalizantes e tal processo impacta
não somente nas relações de trabalho
conforme analisado, mas também na
lógica de produção espacial da cidade. É
intersecção entre trabalho e espaço
OLIVEIRA, Kyoma S. O transbordamento da atividade musical para as
ruas e a precarização do trabalho: uma análise sobre os
instrumentalistas nômades cariocas.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 1
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.
que entendemos estar o caminho para
análise mais aprofundada não do
fenômeno dos instrumentistas nômades
urbanos na cidade do Rio de Janeiro, mas
das mais diversas produções culturais que
possuem o fenômeno urbano co
seus eixos estruturantes.
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Trabalho cultural e precarização
que entendemos estar o caminho para
análise mais aprofundada não do
fenômeno dos instrumentistas nômades
urbanos na cidade do Rio de Janeiro, mas
das mais diversas produções culturais que
possuem o fenômeno urbano co
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