FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
obediência ao rei, com a sua
consequente ordem no Estado”
(HELIODORA, 2013, p. 371).
Nos dois séculos seguintes, o
paralelo historiográfico se mantém. As
manifestações cênicas e os
experimentos dramatúrgicos esparsos
fazem com que os historiadores
diagnostiquem questionáveis
(MAGALDI, 2001, p. 27) e silêncio
(HELIODORA, 2013, p. 374) teatrais.
Mesmo que Prado (1993, p. 71), a
propósito do mesmo período histórico,
se esforce por reconstituir, a partir de
documentos dispersos4
3
Os próprios autores que lançam as hipóteses
do vazio e do silêncio teatrais oferecem
contra-
argumentos. Se Magaldi conjectura a
respeito de um hiato de documentos e não de
acontecimentos (2001, p. 27), Heliodora
observa que, sob a perspectiva da história das
vilas, “existe farta documentação sobre os
cantos e danças dos folguedos populares
[durante o século XVIII], dos quais o Brasil é
particularmente rico” (2013, p. 373). A
exclusão de determinadas manifestações
cênicas não europeias, mesmo a despeito da
existência de documentos comprobatórios,
desvela as premissas do que se denomina
aqui
de “regime historiográfico teatral colonial”.
Em boa medida, este regime é textocêntrico,
isto é, norteia-
se pela prevalência do texto
literário em detrimento da cena. Se a “nova
história do teatro brasileiro” organizada por
Faria (2012, p. 17) tem o méri
o teatro “simultaneamente em seus aspectos
literários e cênicos”, ela ainda parece reservar
aos estudos antropológicos uma investigação
a respeito das teatralidades
ameríndias. Propõe-
rasura deste regime
4
Muitos destes documentos são os relatos de
viajantes como Thevet, Staden, Von Martius,
Vanhagen, Fernão Cardim, sendo também
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
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Americana de Estudos em Cultura,
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
obediência ao rei, com a sua
consequente ordem no Estado”
(HELIODORA, 2013, p. 371).
Nos dois séculos seguintes, o
paralelo historiográfico se mantém. As
manifestações cênicas e os
experimentos dramatúrgicos esparsos
fazem com que os historiadores
diagnostiquem questionáveis
3 vazio
(MAGALDI, 2001, p. 27) e silêncio
(HELIODORA, 2013, p. 374) teatrais.
Mesmo que Prado (1993, p. 71), a
propósito do mesmo período histórico,
se esforce por reconstituir, a partir de
Os próprios autores que lançam as hipóteses
do vazio e do silêncio teatrais oferecem
argumentos. Se Magaldi conjectura a
respeito de um hiato de documentos e não de
acontecimentos (2001, p. 27), Heliodora
observa que, sob a perspectiva da história das
vilas, “existe farta documentação sobre os
cantos e danças dos folguedos populares
[durante o século XVIII], dos quais o Brasil é
particularmente rico” (2013, p. 373). A
exclusão de determinadas manifestações
cênicas não europeias, mesmo a despeito da
existência de documentos comprobatórios,
desvela as premissas do que se denomina
de “regime historiográfico teatral colonial”.
Em boa medida, este regime é textocêntrico,
se pela prevalência do texto
literário em detrimento da cena. Se a “nova
história do teatro brasileiro” organizada por
o teatro “simultaneamente em seus aspectos
literários e cênicos”, ela ainda parece reservar
aos estudos antropológicos uma investigação
Muitos destes documentos são os relatos de
viajantes como Thevet, Staden, Von Martius,
Vanhagen, Fernão Cardim, sendo também
colonial caracterizada pelo “amálgama
pobre
espanhola, a francesa e a italiana”, há
ainda aí uma perspectiva colonial
tornada explícita pelo contraste entre
culturas dramatúrgicas pobres e ricas
n
o fragmento anterior e neste que
segue:
O teatro concorreria para o
avanço da civilização e seria o
termômetro pelo qual se media o
grau de adiantamento de um
país. Cumpria ainda uma missão
cívica, aproximando as pessoas
comuns das autoridades, ao
ensejar
homenageassem as segundas
em ocasiões especiais [...] O
teatro, em seu plano mais
elevado, nunca passou de uma
forte mas inexequível aspiração
ingressar no recinto das grandes
obras universais, reduto e
apanágio das
extraliterários, propriamente
teatrais, para isso necessários
A civilização europeia seria,
portanto, o único sonho possível e o
crivo por meio do qual se poderia
fontes importantes para os rituais ameríndios
ocorridos no Brasil. Estas crônicas são
determinantes para uma aborda
metodológica expandida, que considere
acontecimentos cênicos e teatralidades de
variadas naturezas. A este respeito, ver a
reconstituição de nossa “epopeia mítica”
ameríndia realizada por Mussa (2009) a partir
dos relatos dos viajantes e também a
contr
ibuição de Friques (2017) para uma
análise das pinturas rupestres piauienses em
fricção com a história da arte.
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www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
colonial caracterizada pelo “amálgama
ricas: a
espanhola, a francesa e a italiana”, há
ainda aí uma perspectiva colonial
tornada explícita pelo contraste entre
culturas dramatúrgicas pobres e ricas
o fragmento anterior e neste que
O teatro concorreria para o
avanço da civilização e seria o
termômetro pelo qual se media o
grau de adiantamento de um
país. Cumpria ainda uma missão
cívica, aproximando as pessoas
comuns das autoridades, ao
homenageassem as segundas
em ocasiões especiais [...] O
teatro, em seu plano mais
elevado, nunca passou de uma
forte mas inexequível aspiração
ingressar no recinto das grandes
obras universais, reduto e
nações civilizadas,
extraliterários, propriamente
teatrais, para isso necessários
-87).
A civilização europeia seria,
portanto, o único sonho possível e o
crivo por meio do qual se poderia
fontes importantes para os rituais ameríndios
ocorridos no Brasil. Estas crônicas são
determinantes para uma aborda
gem
metodológica expandida, que considere
acontecimentos cênicos e teatralidades de
variadas naturezas. A este respeito, ver a
reconstituição de nossa “epopeia mítica”
ameríndia realizada por Mussa (2009) a partir
dos relatos dos viajantes e também a
ibuição de Friques (2017) para uma
análise das pinturas rupestres piauienses em
fricção com a história da arte.