FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
O Teatro contra o Estado: clivagens, armadilhas e reinscrições entre as artes
cênicas e as ciências sociais
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v12i22.50347
Resumo
: Neste ensaio, refletimos sobre a clivagem epistemológica
amefricanas e ameríndias daquelas de herança eurocêntrica, cio que funda, a nosso ver, o regime
historiográfico colonial do teatro brasileiro. Para isso, mobilizamos um conjunto de referências
advindas das ciências sociais (e
cultura), buscando, a partir da apropriação do teatro por estes campos epistemológicos,reinscrever as
práticas performativas das “sociedades contra o Estado como práticas fundamentais para a
das teatralidades brasileiras e para os agenciamentos performativos contemporâneos sob o signo do
desmantelamento das políticas culturais.
Palavras-Chaves:
Estudos da performance; sociologia econômica; antropologia da arte;
Amefricanidade; tea
Teatro contra el Estado: escisiones, trampas y reinscripciones entre las artes escénicas y las
ciencias sociales
Resumen
: En este ensayo, reflexionamos sobre la división epistemológica que separa las
teatralidades amefricanas y amerindi
nuestro juicio, el régimen historiográfico colonial del teatro brasileño. Para ello, movilizamos un
conjunto de referentes de las ciencias sociales (en particular, la sociología económica y la
a
ntropología del arte y la cultura), buscando, a partir de la apropiación del teatro por estos campos
epistemológicos, reinscribir las prácticas performativas de sociedades contra el Estado como
prácticas fundamentales para la historia de las teatralidade
contemporáneas bajo el signo del desmantelamiento de las políticas culturales.
Palabras clave:
Estudios de performance; sociología económica; antropología del arte;
Amefricanidad; teatro descolonial.
Theater ag
ainst the State: cleavages, traps and reinscriptions between the performing arts and
the social sciences
Abstract
: In this essay, we reflect on the epistemological cleavage that separates Amefrican and
Amerindian theatricalities from those of Eurocentric
colonial historiographical regime of Brazilian theater. We mobilized a set of references from the social
sciences (in particular, economic sociology and the anthropology of art and culture), seeking, based
1
Manoel Silvestre Friques. Doutor em História da Arte pelo Programa de História Social da Cultura da
Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc
Engenharia de Produção da UNIRIO e do Programa de
Brasil. E-
mail: manoel.friques@gmail.com
Recebido em 28/05/2021,
aceito para publicação em 2
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
O Teatro contra o Estado: clivagens, armadilhas e reinscrições entre as artes
cênicas e as ciências sociais
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v12i22.50347
Manoel Silvestre Friques
: Neste ensaio, refletimos sobre a clivagem epistemológica
que separa as teatralidades
amefricanas e ameríndias daquelas de herança eurocêntrica, cisão que funda, a nosso ver, o regime
historiográfico colonial do teatro brasileiro. Para isso, mobilizamos um conjunto de referências
advindas das ciências sociais (e
m especial, a sociologia econômica e a antropologia da arte e da
cultura), buscando, a partir da apropriação do teatro por estes campos epistemológicos,reinscrever as
práticas performativas das sociedades contra o Estado” como práticas fundamentais para a
das teatralidades brasileiras e para os agenciamentos performativos contemporâneos sob o signo do
desmantelamento das políticas culturais.
Estudos da performance; sociologia econômica; antropologia da arte;
tro descolonial.
Teatro contra el Estado: escisiones, trampas y reinscripciones entre las artes escénicas y las
: En este ensayo, reflexionamos sobre la división epistemológica que separa las
teatralidades amefricanas y amerindi
as de las de herencia eurocéntrica, una escisión que funda, a
nuestro juicio, el régimen historiográfico colonial del teatro brasileño. Para ello, movilizamos un
conjunto de referentes de las ciencias sociales (en particular, la sociología económica y la
ntropología del arte y la cultura), buscando, a partir de la apropiación del teatro por estos campos
epistemológicos, reinscribir las prácticas performativas de “sociedades contra el Estado como
prácticas fundamentales para la historia de las teatralidade
s brasileñas y para las agencias esnicas
contemporáneas bajo el signo del desmantelamiento de las políticas culturales.
Estudios de performance; sociología económica; antropología del arte;
Amefricanidad; teatro descolonial.
ainst the State: cleavages, traps and reinscriptions between the performing arts and
: In this essay, we reflect on the epistemological cleavage that separates Amefrican and
Amerindian theatricalities from those of Eurocentric
heritage, a split that founds, in our view, the
colonial historiographical regime of Brazilian theater. We mobilized a set of references from the social
sciences (in particular, economic sociology and the anthropology of art and culture), seeking, based
Manoel Silvestre Friques. Doutor em História da Arte pelo Programa de História Social da Cultura da
Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc
-
Rio). Professor adjunto do Departamento de
Engenharia de Produção da UNIRIO e do Programa de
Pós-
Graduação em Artes da Cena (UFRJ),
mail: manoel.friques@gmail.com
- https://orcid.org/0000-0002-0106-
2006
aceito para publicação em 2
5/01/20
22, disponibilizado online em
01/03/2022.
443
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
O Teatro contra o Estado: clivagens, armadilhas e reinscrições entre as artes
Manoel Silvestre Friques
1
que separa as teatralidades
amefricanas e ameríndias daquelas de herança eurocêntrica, cio que funda, a nosso ver, o regime
historiográfico colonial do teatro brasileiro. Para isso, mobilizamos um conjunto de referências
m especial, a sociologia econômica e a antropologia da arte e da
cultura), buscando, a partir da apropriação do teatro por estes campos epistemológicos,reinscrever as
práticas performativas das sociedades contra o Estado como práticas fundamentais para a
história
das teatralidades brasileiras e para os agenciamentos performativos contemporâneos sob o signo do
Estudos da performance; sociologia econômica; antropologia da arte;
Teatro contra el Estado: escisiones, trampas y reinscripciones entre las artes escénicas y las
: En este ensayo, reflexionamos sobre la división epistemológica que separa las
as de las de herencia eurocéntrica, una escisión que funda, a
nuestro juicio, el régimen historiográfico colonial del teatro brasileño. Para ello, movilizamos un
conjunto de referentes de las ciencias sociales (en particular, la sociología económica y la
ntropología del arte y la cultura), buscando, a partir de la apropiación del teatro por estos campos
epistemológicos, reinscribir las prácticas performativas de sociedades contra el Estado” como
s brasileñas y para las agencias escénicas
Estudios de performance; sociología económica; antropología del arte;
ainst the State: cleavages, traps and reinscriptions between the performing arts and
: In this essay, we reflect on the epistemological cleavage that separates Amefrican and
heritage, a split that founds, in our view, the
colonial historiographical regime of Brazilian theater. We mobilized a set of references from the social
sciences (in particular, economic sociology and the anthropology of art and culture), seeking, based
Manoel Silvestre Friques. Doutor em História da Arte pelo Programa de História Social da Cultura da
Rio). Professor adjunto do Departamento de
Graduação em Artes da Cena (UFRJ),
2006
22, disponibilizado online em
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
on
the appropriation of the idea of theater by these epistemological fields, to re
performative practices of “societies against the State as fundamental practices for the history of
Brazilian theatricalities and for contemporary performing agen
cultural policies.
Keywords:
Performance studies; economic sociology; anthropology of art, Amefricanity; descolonial
theater.
O Teatro contra o Estado: clivagens, armadilhas e reinscrições entre as artes
cênicas
Nota preliminar
Neste ensaio, refletimos sobre a
clivagem epistemológica que separa
as teatralidades amefricanas e
ameríndias daquelas de herança
eurocêntrica, cisão que funda, a nosso
ver, o regime historiográfico colonial do
teat
ro brasileiro. Dada a complexidade
do assunto, tramamos aqui alguns fios
de modo a oferecer uma tessitura que
nos permita vislumbrar a hipótese do
que seria um “Teatro contra o Estado.
Esses fios organizam-
se em tópicos,
quais sejam: Em primeiro lugar,
pa
rtimos da constatação da
colonialidade do regime historiográfico
teatral através da leitura de seus
principais representantes.Em seguida,
refletimos sobre a possibilidade do
conceito “arte” ser encarado como u
ma categoria transcultural,
considerando, sobr
etudo, as
discussões recentes encontradas na
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
the appropriation of the idea of theater by these epistemological fields, to re
performative practices of societies against the State” as fundamental practices for the history of
Brazilian theatricalities and for contemporary performing agen
cies under the sign of the asphyxiated
Performance studies; economic sociology; anthropology of art, Amefricanity; descolonial
O Teatro contra o Estado: clivagens, armadilhas e reinscrições entre as artes
cênicas
e as ciências sociais
Neste ensaio, refletimos sobre a
clivagem epistemológica que separa
as teatralidades amefricanas e
ameríndias daquelas de herança
eurontrica, cisão que funda, a nosso
ver, o regime historiográfico colonial do
ro brasileiro. Dada a complexidade
do assunto, tramamos aqui alguns fios
de modo a oferecer uma tessitura que
nos permita vislumbrar a hipótese do
que seria um Teatro contra o Estado”.
se em tópicos,
quais sejam: Em primeiro lugar,
rtimos da constatação da
colonialidade do regime historiográfico
teatral através da leitura de seus
principais representantes.Em seguida,
refletimos sobre a possibilidade do
conceito arte ser encarado como u
ma categoria transcultural,
etudo, as
discuses recentes encontradas na
Antropologia da Arte.
Complementarmente, o terceiro tópico
reflete sobre a apropriação da noção
de “teatro” por determinados
antropólogos, o que fundaria uma
“Antropologia da Performance por
meio da qual observ
expansão do teatro para além de seus
limites eurocêntricos. Com isso,
estaremos preparadas para refletir
sobre “o espetáculo do mundo
descolonial”, onde a noção de
performatividade ganha centralidade
para uma reflexão das interdições e
das transgr
essões da colonialidade.
Por fim, chegamos ao último tópico,
onde a armadilha economicista é
desmontada, em proveito de um
pensamento que reflita sobre as
performatividades brasileiras sob a
perspectiva descolonial.
Um regime historiográfico colonial
do teatro brasileiro
444
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
the appropriation of the idea of theater by these epistemological fields, to re
-inscribe the
performative practices of societies against the State as fundamental practices for the history of
cies under the sign of the asphyxiated
Performance studies; economic sociology; anthropology of art, Amefricanity; descolonial
O Teatro contra o Estado: clivagens, armadilhas e reinscrições entre as artes
Antropologia da Arte.
Complementarmente, o terceiro tópico
reflete sobre a apropriação da noção
de teatro por determinados
antropólogos, o que fundaria uma
Antropologia da Performance” por
meio da qual observ
amos uma
expano do teatro para além de seus
limites eurontricos. Com isso,
estaremos preparadas para refletir
sobre o espetáculo do mundo
descolonial, onde a noção de
performatividade ganha centralidade
para uma reflexão das interdições e
essões da colonialidade.
Por fim, chegamos ao último tópico,
onde a armadilha economicista é
desmontada, em proveito de um
pensamento que reflita sobre as
performatividades brasileiras sob a
perspectiva descolonial.
Um regime historiográfico colonial
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
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“O teatro desestruturou
cosmovisões ancestrais, valores
ancestrais, valores sagrados. Ele
desestruturou o modo de pensar e o
modo de os índios se relacionarem
com a realidade, em nome de uma
suposta verdade maior”: com estas
palavras, o
der indígena Kaká Werá
(2017, p. 102) oferece uma leitura
cirúrgica do teatro brasileiro enquanto
instrumento de desestruturação.
Contudo, em nossa historiografia
tradicional, o “nascimento e a
“formação” do teatro estão
condicionados à ficção do
2
Achile Mbembe (2016, p. 135) des
detalhadamente este processo:
A ocupação
colonial’ em si era uma questão de apreensão
demarcação e afirmação do controle físico e
geográfico –
inscrever sobre o terreno um
novo conjunto de relações sociais e espaciais
Essa inscrição (territorialização
)
equivalente à produção de fronteiras e
hierarquias, zonas e enclaves;
a subversão
dos regimes de propriedade existentes
classificação das pessoas de acordo com
diferentes categorias;
extração de recursos
finalmente,
a produção de uma ampla reserva
de imaginários culturais.
Esses imaginários
deram sentido à instituição de direitos
diferentes,
para diferentes categorias de
pessoas,
para fins diferentes no interior de um
mesmo espaço
; em resumo, o exerc
soberania. O espaço era,
portanto
prima da soberania e da violência que
sustentava.
Soberania significa ocupação
ocupação significa relegar o colonizado em
uma terceira zona, entre o status de sujeito e
objeto”. Articulada à i
nscrição colonial do
espaço, há a “colonização do tempo
(MIGNOLO, 2017) tematizada pelo artista sul
africano William Kentridge em sua ópera de
câmera Refuse the hour.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
O teatro desestruturou
cosmovies ancestrais, valores
ancestrais, valores sagrados. Ele
desestruturou o modo de pensar e o
modo de os índios se relacionarem
com a realidade, em nome de uma
suposta verdade maior: com estas
der indígena Kaká Werá
(2017, p. 102) oferece uma leitura
cirúrgica do teatro brasileiro enquanto
instrumento de desestruturação.
2
Contudo, em nossa historiografia
tradicional, o nascimento” e a
formação do teatro estão
condicionados à ficção do
Achile Mbembe (2016, p. 135) des
creve
“A ‘ocupação
colonial em si era uma questão de apreensão
,
demarcação e afirmação do controle físico e
inscrever sobre o terreno um
novo conjunto de relações sociais e espaciais
.
)
foi, enfim,
equivalente à produção de fronteiras e
a subversão
dos regimes de propriedade existentes
; a
classificação das pessoas de acordo com
extração de recursos
; e,
a produção de uma ampla reserva
Esses imaginários
deram sentido à instituição de direitos
para diferentes categorias de
para fins diferentes no interior de um
; em resumo, o exerc
ício da
portanto
, a matéria-
prima da soberania e da violência que
Soberania significa ocupação
, e
ocupação significa relegar o colonizado em
uma terceira zona, entre o status de sujeito e
nscrição colonial do
espaço, há a colonização do tempo”
(MIGNOLO, 2017) tematizada pelo artista sul
-
africano William Kentridge em sua ópera de
descobr
imento, operando o
espelhamento entre a história do teatro
e a formação do Estado brasileiro. Por
esta via, o teatro de
“evangelização”concebido por um
espanhol e judeu convertido, Jo de
Anchieta (1534-
1597),funciona como o
marco fundador das artes cênic
brasileiras.
O teatro colonial dispõe de dois
elementos hereditários da corte: de um
lado, a ausência de uma tradição de
dramaturgia ou de encenação
portuguesa (HELIODORA, 2013, p.
369); de outro lado, o imperativo da
conversão cristã
mobilizado pelos
padres jesuítas. As apresentações
cênicas se traduziam em um veículo
ameno e agradável” (MAGALDI, 2001,
p. 16), ou seja,“uma forma didática
apta a conquistar corações e mentes”
composta por, dentre outros
elementos, “pequenos autos de ação
objetiva e pen
samento fácil, em tupi,
usando com habilidade nomes usados
por tribos inimigas, para identificar
diabos ou elementos do mal
(HELIODORA, 2013, p. 369
Fundados em conflitos dicotômicos
entre o bem e o mal, estes autos de
“transfiguração étnica (RIBEI
2010, p. 51) reafirmavam sempre a
445
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- ISSN 2237-1508
imento, operando o
espelhamento entre a história do teatro
e a formação do Estado brasileiro. Por
esta via, o teatro de
evangelizaçãoconcebido por um
espanhol e judeu convertido, José de
1597),funciona como o
marco fundador das artes cênic
as
O teatro colonial dispõe de dois
elementos hereditários da corte: de um
lado, a ausência de “uma tradição de
dramaturgia ou de encenação”
portuguesa (HELIODORA, 2013, p.
369); de outro lado, o imperativo da
mobilizado pelos
padres jesuítas. As apresentações
nicas se traduziam em um “veículo
ameno e agradável (MAGALDI, 2001,
p. 16), ou seja,uma forma didática
apta a conquistar corações e mentes”
composta por, dentre outros
elementos, pequenos autos de ão
samento fácil, em tupi,
usando com habilidade nomes usados
por tribos inimigas, para identificar
diabos ou elementos do mal”
(HELIODORA, 2013, p. 369
-370).
Fundados em conflitos dicotômicos
entre o bem e o mal, estes autos de
transfiguração étnica” (RIBEI
RO,
2010, p. 51) reafirmavam sempre “a
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
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obediência ao rei, com a sua
consequente ordem no Estado
(HELIODORA, 2013, p. 371).
Nos dois séculos seguintes, o
paralelo historiográfico se mantém. As
manifestações cênicas e os
experimentos dramatúrgicos esparsos
fazem com que os historiadores
diagnostiquem questionáveis
(MAGALDI, 2001, p. 27) e silêncio
(HELIODORA, 2013, p. 374) teatrais.
Mesmo que Prado (1993, p. 71), a
propósito do mesmo período histórico,
se esforce por reconstituir, a partir de
documentos dispersos4
, a vida teatral
3
Os próprios autores que lançam as hipóteses
do vazio e do silêncio teatrais oferecem
contra-
argumentos. Se Magaldi conjectura a
respeito de um hiato de documentos e não de
acontecimentos (2001, p. 27), Heliodora
observa que, sob a perspectiva da história das
vilas, “existe farta documentação sobre os
cantos e danças dos folguedos populares
[durante o século XVIII], dos quais o Brasil é
particularmente rico” (2013, p. 373). A
exclusão de determinadas manifestações
cênicas não europeias, mesmo a despeito da
existência de documentos comprobatórios,
desvela as premissas do que se denomina
aqui
de “regime historiográfico teatral colonial.
Em boa medida, este regime é textocêntrico,
isto é, norteia-
se pela prevalência do texto
literário em detrimento da cena. Se a nova
história do teatro brasileiro” organizada por
Faria (2012, p. 17) tem o méri
to de considerar
o teatro “simultaneamente em seus aspectos
literários e cênicos”, ela ainda parece reservar
aos estudos antropológicos uma investigação
a respeito das teatralidades
amefricanas e
ameríndias. Propõe-
se aqui justamente a
rasura deste regime
dicotômico.
4
Muitos destes documentos são os relatos de
viajantes como Thevet, Staden, Von Martius,
Vanhagen, Fernão Cardim, sendo também
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
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2.
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(Fluxo contínuo)
obediência ao rei, com a sua
consequente ordem no Estado”
(HELIODORA, 2013, p. 371).
Nos dois culos seguintes, o
paralelo historiográfico se mantém. As
manifestações cênicas e os
experimentos dramatúrgicos esparsos
fazem com que os historiadores
diagnostiquem questionáveis
3 vazio
(MAGALDI, 2001, p. 27) e silêncio
(HELIODORA, 2013, p. 374) teatrais.
Mesmo que Prado (1993, p. 71), a
propósito do mesmo período histórico,
se esforce por reconstituir, a partir de
, a vida teatral
Os próprios autores que lançam as hipóteses
do vazio e do silêncio teatrais oferecem
argumentos. Se Magaldi conjectura a
respeito de um hiato de documentos e não de
acontecimentos (2001, p. 27), Heliodora
observa que, sob a perspectiva da história das
vilas, existe farta documentação sobre os
cantos e danças dos folguedos populares
[durante o século XVIII], dos quais o Brasil é
particularmente rico (2013, p. 373). A
exclusão de determinadas manifestações
cênicas não europeias, mesmo a despeito da
existência de documentos comprobatórios,
desvela as premissas do que se denomina
de regime historiográfico teatral colonial”.
Em boa medida, este regime é textocêntrico,
se pela prevalência do texto
literário em detrimento da cena. Se a “nova
história do teatro brasileiro organizada por
to de considerar
o teatro simultaneamente em seus aspectos
literários e nicos, ela ainda parece reservar
aos estudos antropológicos uma investigação
amefricanas e
se aqui justamente a
dicotômico.
Muitos destes documentos o os relatos de
viajantes como Thevet, Staden, Von Martius,
Vanhagen, Fernão Cardim, sendo também
colonial caracterizada pelo amálgama
pobre
de três dramaturgias
espanhola, a francesa e a italiana, há
ainda uma perspectiva colonial
tornada explícita pelo contraste entre
culturas dramatúrgicas pobres e ricas
n
o fragmento anterior e neste que
segue:
O teatro concorreria para o
avanço da civilização e seria o
termômetro pelo qual se media o
grau de adiantamento de um
país. Cumpria ainda uma miso
cívica, aproximando as pessoas
comuns das autoridades, ao
ensejar
que as primeiras
homenageassem as segundas
em ocasiões especiais [...] O
teatro, em seu plano mais
elevado, nunca passou de uma
forte mas inexequível aspiração
nacional. Sonhávamos em
ingressar no recinto das grandes
obras universais, reduto e
apanágio das
sem dispor dos recursos
extraliterários, propriamente
teatrais, para isso necessários
(PRADO, 1993, p. 83
A civilização europeia seria,
portanto, o único sonho possível e o
crivo por meio do qual se poderia
fontes importantes para os rituais ameríndios
ocorridos no Brasil. Estas crônicas são
determinantes para uma aborda
metodológica expandida, que considere
acontecimentos cênicos e teatralidades de
variadas naturezas. A este respeito, ver a
reconstituição de nossa “epopeia mítica
ameríndia realizada por Mussa (2009) a partir
dos relatos dos viajantes e também a
contr
ibuição de Friques (2017) para uma
análise das pinturas rupestres piauienses em
fricção com a história da arte.
446
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- ISSN 2237-1508
colonial caracterizada pelo “amálgama
de três dramaturgias
ricas: a
espanhola, a francesa e a italiana”,
ainda aí uma perspectiva colonial
tornada explícita pelo contraste entre
culturas dramatúrgicas pobres e ricas
o fragmento anterior e neste que
O teatro concorreria para o
avanço da civilização e seria o
termômetro pelo qual se media o
grau de adiantamento de um
país. Cumpria ainda uma missão
vica, aproximando as pessoas
comuns das autoridades, ao
que as primeiras
homenageassem as segundas
em ocasiões especiais [...] O
teatro, em seu plano mais
elevado, nunca passou de uma
forte mas inexequível aspiração
nacional. Sonhávamos em
ingressar no recinto das grandes
obras universais, reduto e
nações civilizadas,
sem dispor dos recursos
extraliterários, propriamente
teatrais, para isso necessários
(PRADO, 1993, p. 83
-87).
A civilização europeia seria,
portanto, o único sonho possível e o
crivo por meio do qual se poderia
fontes importantes para os rituais ameríndios
ocorridos no Brasil. Estas crônicas são
determinantes para uma aborda
gem
metodológica expandida, que considere
acontecimentos cênicos e teatralidades de
variadas naturezas. A este respeito, ver a
reconstituição de nossa epopeia mítica”
ameríndia realizada por Mussa (2009) a partir
dos relatos dos viajantes e também a
ibuição de Friques (2017) para uma
análise das pinturas rupestres piauienses em
fricção com a história da arte.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
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Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
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julgar o nascimento de
nacional”. Elevado, forte, mas
inexequível: o olhar do historiador
narra mais um sonho imposvel sem
julgar necessário provincializar
(CHAKRABARTHY, 2000) um
imaginário europeu que se deseja
universal. no século XIX, desperta
se a consciênc
ia teatral na terra de
Pindorama.Tomada de empréstimo de
Antonio Candido5
, a metáfora da
consciência nacional ressurge nos
escritos de Heliodora e Magaldi, sem
perder a força ao longo do culo
XX.Com o decorrer do tempo, a função
catequética é transfigura
da em ímpeto
civilizatório,
sendo o teatro
“considerado como uma das
expressões da cultura nacional
finalidade é
, essencialmente, a
elevação e a edificação espiritual do
povo”, conforme se constata no
decreto-
lei de 1937 que institui o
Serviço Naci
onal de Teatro no país
(apud
CAMARGO, 2017, p. 44
Catequisar, civilizar, elevar, edificar:do
século XVI em diante, o teatro seria
um instrumento ascético para a
5
Este empréstimo é discutido em Friques
(2018). Azevedo (2016, p. 159) também
demonstra que a “perspectiva da formação
nunca se estabeleceu com
o modelo de
interpretação da experiência do teatro no
Brasil”.
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armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
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(Fluxo contínuo)
um “teatro
nacional. Elevado, forte, mas
inexequível: o olhar do historiador
narra mais um sonho impossível sem
julgar necessário provincializar
(CHAKRABARTHY, 2000) um
imaginário europeu que se deseja
universal. no culo XIX, desperta
-
ia teatral na terra de
Pindorama.Tomada de empréstimo de
, a metáfora da
consciência nacional ressurge nos
escritos de Heliodora e Magaldi, sem
perder a força ao longo do século
XX.Com o decorrer do tempo, a função
da em ímpeto
sendo o teatro
considerado como uma das
expressões da cultura nacional
, e sua
, essencialmente, a
elevação e a edificação espiritual do
povo, conforme se constata no
lei de 1937 que institui o
onal de Teatro no país
CAMARGO, 2017, p. 44
-45).
Catequisar, civilizar, elevar, edificar:do
culo XVI em diante, o teatro seria
um instrumento ascético para a
Este empréstimo é discutido em Friques
(2018). Azevedo (2016, p. 159) também
demonstra que a perspectiva da formação
o modelo de
interpretação da experiência do teatro no
consolidação da identidade nacional,
estando a serviço de um Estado
(monárquico, imperial
conforme propõe Abirached (2005, p.
52):
O teatro, em particular, se está
intimamente fundado nas noções
de ordem e hierarquia, pode ser
um dos cimentos de um Estado
que se trata de unificar em torno
de uma linguagem predominante
e de uma
queremos ordenar sob o poder de
um rei colocado no topo e no
centro.6
O ponto de vista do colonizador
pressuposto nesta historiografia do
teatro brasileiro faz com que seus
marcos históricos mais reconhecidos
estejam totalmente vinculados à
formação do Estado. Este marcos o
concebidos a partir dos modelos
teatrais desenvolvidos nas Metrópoles
Espanha, França, Itália
quais a produção da colônia se
revelaria, via de regra,como cópia
risível, infiel e desbotada. O fato de
este
regime historiográfico trair uma
perspectiva eurocêntrica não invalida,
contudo, seus esforços. Uma vez
6
Tradução do autor para o trecho:
en particulier, s’il est fondé intimement sur les
notions d’ordre et de hiérarchie, peut être lun
de ciments d’un Etat qu’il sagit dunifier a
d’une langue prédominante et dune société
qu’on veut ordonner sous le pouvoir dun roi
placé à son sommet et en son centre.
447
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- ISSN 2237-1508
consolidação da identidade nacional,
estando a serviço de um Estado
(monárquico, imperial
ou republicano),
conforme propõe Abirached (2005, p.
O teatro, em particular, se está
intimamente fundado nas noções
de ordem e hierarquia, pode ser
um dos cimentos de um Estado
que se trata de unificar em torno
de uma linguagem predominante
e de uma
sociedade que
queremos ordenar sob o poder de
um rei colocado no topo e no
O ponto de vista do colonizador
pressuposto nesta historiografia do
teatro brasileiro faz com que seus
marcos históricos mais reconhecidos
estejam totalmente vinculados à
formação do Estado. Este marcos são
concebidos a partir dos modelos
teatrais desenvolvidos nas Metrópoles
Espanha, França, Itália
–, diante dos
quais a produção da colônia se
revelaria, via de regra,como cópia
risível, infiel e desbotada. O fato de
regime historiográfico trair uma
perspectiva eurontrica não invalida,
contudo, seus esforços. Uma vez
Tradução do autor para o trecho: “
Le théâtre,
en particulier, sil est fondé intimement sur les
notions dordre et de hiérarchie, peut être l’un
de ciments dun Etat quil s’agit d’unifier a
utour
dune langue prédominante et d’une société
quon veut ordonner sous le pouvoir d’un roi
placé à son sommet et en son centre.
»
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
reconhecido este ponto de vista, é
possível relativizá-
lo, delimitá
entrecruzá-
lo com outros regimes de
visibilidades e inteligibilidades
fun
dados em outras cosmologias.
Desse modo, lançamos aqui uma
estratégia menos fundada nas ideias
de ruptura e de mudança definitivas do
que na reconfiguração de um campo.
Neste sentido, o regime historiográfico
teatral colonial será reencenado sob
uma perspe
ctiva que o coloque, como
propõe Hall (2013, p. 132), sob rasura.
No regime historiográfico
tradicional, o teatro é abordado por
meio de funções exógenas
civilizatórias e/ou catequéticas. A
narrativa historiográfica desta prática
cultural parte da premissa
teatro é uma ferramenta de
transformação sociopolítica a serviço
da colonização cristã, com o propósito
único de integrar “bárbaros e
“primitivos” no seio da civilização, em
torno da imagem unificada do Estado.
Mesmo que nos últimos culos as
p
ráticas teatrais tenham se
desvinculado da cristã, elas, ainda
assim, são interpretadas sob a
perspectiva de uma crença
civilizatória. Constata-
se, portanto, um
entrelaçamento entre as funções
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
reconhecido este ponto de vista, é
lo, delimitá
-lo, enfim,
lo com outros regimes de
visibilidades e inteligibilidades
dados em outras cosmologias.
Desse modo, lançamos aqui uma
estratégia menos fundada nas ideias
de ruptura e de mudança definitivas do
que na reconfiguração de um campo.
Neste sentido, o regime historiográfico
teatral colonial será reencenado sob
ctiva que o coloque, como
propõe Hall (2013, p. 132), sob rasura.
No regime historiográfico
tradicional, o teatro é abordado por
meio de funções exógenas
civilizatórias e/ou catequéticas. A
narrativa historiográfica desta prática
cultural parte da premissa
de que o
teatro é uma ferramenta de
transformação sociopolítica a serviço
da colonização cristã, com o propósito
único de integrar bárbaros” e
primitivos no seio da civilização, em
torno da imagem unificada do Estado.
Mesmo que nos últimos séculos as
ráticas teatrais tenham se
desvinculado da fé cristã, elas, ainda
assim, são interpretadas sob a
perspectiva de uma crença
se, portanto, um
entrelaçamento entre as funções
religiosa e política, mediante o qual o
teatro se constitui
como um dispositivo
crucial de engenharia social.
É possível justapor as práticas
teatrais
concebidas a partir de suas
funções político-
didático
torno da figura única do Estado
demais teatralidades rituais
amefricanas7
e ameríndias qu
também estão assentadas
meios e modos
entrelaçamento entre as dimensões
mágico-
religiosas e aquelas
sociopolíticas de integração social.É
posta em movimento uma outra
engenharia social, descrita por Ailton
Krenak (2015, p. 162) como
capacidade de viver junto sem se
matar, reconhecendo a territorialidade
um do outro como elemento fundador
também da sua identidade, da sua
cultura e do seu sentido de
humanidade”.Neste contexto,
prevalece
a íntima relação entre as
performances rituais
da vida socioeconômica
7
Adotaremos aqui a categoria de
amefricanidade concebida por Lelia Gonzalez
(2019, p. 351), para quem tal noção nos
permit
e, de um lado, esquivar do imperialismo
estadunidense e, de outro lado, reafirmar a
particularidade de nossa experiência na
América como um todo, sem nunca perder a
consciência de nossa dívida e dos profundos
laços que temos com a África.
448
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
religiosa e política, mediante o qual o
como um dispositivo
crucial de engenharia social.
É posvel justapor as práticas
concebidas a partir de suas
didático
-religiosas em
torno da figura única do Estado
às
demais teatralidades rituais
e ameríndias qu
e
também estão assentadas
– por outros
meios e modos
em um
entrelaçamento entre as dimensões
religiosas e aquelas
sociopolíticas de integração social.É
posta em movimento uma outra
engenharia social, descrita por Ailton
Krenak (2015, p. 162) como
“a
capacidade de viver junto sem se
matar, reconhecendo a territorialidade
um do outro como elemento fundador
também da sua identidade, da sua
cultura e do seu sentido de
humanidade.Neste contexto,
a íntima relação entre as
performances rituais
e cada momento
da vida socioeconômica
nascimento,
Adotaremos aqui a categoria de
amefricanidade concebida por Lelia Gonzalez
(2019, p. 351), para quem tal noção nos
e, de um lado, esquivar do imperialismo
estadunidense e, de outro lado, “reafirmar a
particularidade de nossa experiência na
América como um todo, sem nunca perder a
consciência de nossa dívida e dos profundos
laços que temos com a África”.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
morte, vida adulta, guerra etc.
uma determinada sociedade. Talvez
seja por este motivo que Darcy Ribeiro
(2012, p. 141-
2), a quem Krenak se
refere ao conceituar a engenharia
social indígena, tenha obs
“vontade de beleza” que permeia estas
sociedades do seguinte modo:
Aos poucos fui percebendo que
as sociedades singelas guardam,
entre outras características que
perdemos, a de não ter
despersonalizado nem
mercantilizado sua produção, o
que lhes
permite exercer a
criatividade como um ato natural
da vida diária. Cada índio é um
fazedor que encontra enorme
prazer em fazer bem tudo o que
faz. É também um usador, com
plena consciência das qualidades
singulares dos objetos que usa.
[...] Não havendo pa
fronteiras entre uma categoria de
coisas tidas como artísticas e
outras, vistas como vulgares, eles
ficam livres para criar o belo. Lá
uma pessoa, ao pintar seu corpo,
ao modelar um vaso, ou ao
trançar um cesto, põe no seu
trabalho o máximo de
perfeição e um sentido de beleza
comparável com o de nossos
artistas quando criam.
Nas sociedades indígenas, a
produção artística não se distingue de
outros tipos de produção, sejam elas
8 Note-se nest
e trecho que a “plena
consciência” indígena nada tem a ver com a
“tomada de consciência” do espírito nacional,
sendo mais aproximada da noção de agência
conceituada por Gell explicada a seguir.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
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2.
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(Fluxo contínuo)
morte, vida adulta, guerra etc.
–de
uma determinada sociedade. Talvez
seja por este motivo que Darcy Ribeiro
2), a quem Krenak se
refere ao conceituar a engenharia
social indígena, tenha obs
ervado a
vontade de beleza que permeia estas
sociedades do seguinte modo:
8
Aos poucos fui percebendo que
as sociedades singelas guardam,
entre outras características que
perdemos, a de não ter
despersonalizado nem
mercantilizado sua produção, o
permite exercer a
criatividade como um ato natural
da vida diária. Cada índio é um
fazedor que encontra enorme
prazer em fazer bem tudo o que
faz. É também um usador, com
plena consciência das qualidades
singulares dos objetos que usa.
[...] Não havendo pa
ra os índios
fronteiras entre uma categoria de
coisas tidas como artísticas e
outras, vistas como vulgares, eles
ficam livres para criar o belo.
uma pessoa, ao pintar seu corpo,
ao modelar um vaso, ou ao
trançar um cesto, põe no seu
trabalho o máximo de
vontade de
perfeição e um sentido de beleza
comparável com o de nossos
artistas quando criam.
Nas sociedades indígenas, a
produção artística não se distingue de
outros tipos de produção, sejam elas
e trecho que a plena
consciência indígena nada tem a ver com a
tomada de consciência do espírito nacional,
sendo mais aproximada da noção de agência
conceituada por Gell explicada a seguir.
sociais ou econômicas. A dança, a
pintura e a músic
a se manifestam no
seio da vida social, política e
econômica. A título de esclarecimento,
é válido aqui recorrer a um exemplo
paradigmático: a antropofagia ritual.
Seria possível mencionar outros atos
de transferência vitais” (TAYLOR,
2013, p. 27) de conh
memória coletiva e identidade social
o Kuarup
dos povos xinguanos, o
Reahu
dos Yanomami,
moça nova
dos Ticuna, o
dos Wauja, dentre dezenas deles
mas a antropofagia ritual resta
emblemática sobretudo pelo
contraponto que el
a impõe ao regime
historiográfico delineado acima e seu
diagnóstico de vazio teatral nos
séculos posteriores ao
“descobrimento”.
Quando da invasão portuguesa,
o território brasileiro era povoado
abundantemente por sociedades
indígenas. Diferentemente da i
unificação pressuposta na noção de
Estado, esses povos se distribuíam e
se organizavam pelo território
americano em sociedades distintas.
Por esta razão, Pierre Clastres os
batizou de sociedades contra o
Estado. Contrariando a interpretação
449
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- ISSN 2237-1508
sociais ou econômicas. A dança, a
a se manifestam no
seio da vida social, política e
econômica. A título de esclarecimento,
é válido aqui recorrer a um exemplo
paradigmático: a antropofagia ritual.
Seria posvel mencionar outros “atos
de transferência vitais” (TAYLOR,
2013, p. 27) de conh
ecimento,
memória coletiva e identidade social
dos povos xinguanos, o
dos Yanomami,
A festa da
dos Ticuna, o
Apaapatai
dos Wauja, dentre dezenas deles
mas a antropofagia ritual resta
emblemática sobretudo pelo
a impõe ao regime
historiográfico delineado acima e seu
diagnóstico de vazio teatral nos
culos posteriores ao
Quando da invasão portuguesa,
o território brasileiro era povoado
abundantemente por sociedades
indígenas. Diferentemente da i
deia de
unificação pressuposta na noção de
Estado, esses povos se distribuíam e
se organizavam pelo território
americano em sociedades distintas.
Por esta razão, Pierre Clastres os
batizou de sociedades contra o
Estado. Contrariando a interpretação
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
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eurocên
trica segundo a qual estas
sociedades seriam incompletas por
não estarem agrupadas em torno de
um único governante, Clastres afirma
que, nestes casos, o Estado é
impossível”, devido a uma rie de
fatores, dentre os quais se destacam a
atomização dos povo
s tribais e,
sobretudo, ao fato de a figura do chefe
estar submetida aos imperativos e
anseios de seu grupo social:
a tribo não possui um rei, mas um
chefe que não é chefe de Estado.
O que significa isso?
Simplesmente que o chefe não
dispõe de nenhuma auto
de nenhum poder de coerção, de
nenhum meio de dar uma ordem.
O chefe não é um comandante,
as pessoas da tribo não têm
nenhum dever de obediência. O
espaço da chefia não é o lugar do
poder, e a figura (mal
denominada) do chefe
selvagem não prefigu
aquela de um futuro déspota.
Certamente não é da chefia
primitiva que se pode deduzir o
aparelho estatal em geral
(CLASTRES, 2012, p. 218).
Não é possível, portanto,
afirmar que o Tupi, apesar de ser uma
importante classificação macro
e
linguística, se refira a um Estado
indígena unificado em torno da figura
de um soberano. De fato, conforme
esclarece Ribeiro, “os índios do tronco
tupi não puderam jamais
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
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2.
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(Fluxo contínuo)
trica segundo a qual estas
sociedades seriam incompletas por
não estarem agrupadas em torno de
um único governante, Clastres afirma
que, nestes casos, o “Estado é
imposvel, devido a uma série de
fatores, dentre os quais se destacam a
s tribais e,
sobretudo, ao fato de a figura do chefe
estar submetida aos imperativos e
anseios de seu grupo social:
a tribo não possui um rei, mas um
chefe que não é chefe de Estado.
O que significa isso?
Simplesmente que o chefe não
dispõe de nenhuma auto
ridade,
de nenhum poder de coerção, de
nenhum meio de dar uma ordem.
O chefe não é um comandante,
as pessoas da tribo não têm
nenhum dever de obediência. O
espaço da chefia não é o lugar do
poder, e a figura (mal
denominada) do “chefe”
selvagem não prefigu
ra em nada
aquela de um futuro déspota.
Certamente não é da chefia
primitiva que se pode deduzir o
aparelho estatal em geral
(CLASTRES, 2012, p. 218).
Não é posvel, portanto,
afirmar que o Tupi, apesar de ser uma
importante classificação macro
-étnica
linguística, se refira a um Estado
indígena unificado em torno da figura
de um soberano. De fato, conforme
esclarece Ribeiro, os índios do tronco
tupi não puderam jamais
unificar-se
numa organização política que lhes
permitisse atuar conjugadamente.
Tend
o atingido determinado tamanho,
uma dada sociedade se dividia em
“novas entidades autônomas que,
afastando-
se umas das outras, iam se
tornando reciprocamente mais
diferenciadas e hostis” (RIBEIRO,
2006, p. 29).9
Neste contexto, desponta
a antropofagia ritua
poderoso dispositivo de regulação e de
organização social tupinambá ao qual
a guerra estava também submetida,
“ocupando uma posição que, em
outros sistemas nativos, caberia à
circulação de bens de prestígio e
utilidades” (FAUSTO, 2010, p. 79
Conforme nos esclarece
Florestan Fernandes, o elemento
disparador de todo o processo é a
necessidade de vingança. Uma tribo
tupinambá deve necessariamente
obedecer aos anseios de vingança de
seus ancestrais, sob o risco de, caso
contrário, por em marcha
9
O modo de constituição dos terreiros
contemporâneos parece s
princípio, como salienta a antropóloga Yvonne
Maggie, a partir da teoria de Victor Turner:
“Embora,
eu sempre tivesse sabido
leituras dos clássicos sobre cultos afro
brasileiros,
que a criação de um novo terreiro
foi sempre feita por briga
,
era ousado estudar exatamente esse
momento que era meio tabu na literatura.
(CAVALCANTI et alli.
, 2013, p. 364).
450
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numa organização política que lhes
permitisse atuar conjugadamente”.
o atingido determinado tamanho,
uma dada sociedade se dividia em
novas entidades autônomas que,
se umas das outras, iam se
tornando reciprocamente mais
diferenciadas e hostis” (RIBEIRO,
Neste contexto, desponta
a antropofagia ritua
l enquanto
poderoso dispositivo de regulação e de
organização social tupinambá ao qual
a guerra estava também submetida,
ocupando uma posição que, em
outros sistemas nativos, caberia à
circulação de bens de prestígio e
utilidades (FAUSTO, 2010, p. 79
-80).
Conforme nos esclarece
Florestan Fernandes, o elemento
disparador de todo o processo é a
necessidade de vingança. Uma tribo
tupinambá deve necessariamente
obedecer aos anseios de vingança de
seus ancestrais, sob o risco de, caso
contrário, por em marcha
a
O modo de constituição dos terreiros
contemporâneos parece s
eguir o mesmo
princípio, como salienta a antropóloga Yvonne
Maggie, a partir da teoria de Victor Turner:
eu sempre tivesse sabido
, pelas
leituras dos clássicos sobre cultos afro
-
que a criação de um novo terreiro
,
por fissão interna,
era ousado estudar exatamente esse
momento que era meio tabu na literatura.
, 2013, p. 364).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
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desestruturação social de toda uma
comunidade. Em resposta ao chamado
do “espírito beneficiário do sacrifício
(FERNANDES, 2006, p. 358), a tribo
então se prepara para a expedição
guerreira, com o objetivo de capturar o
responsável pela morte de seu
antepassado. Ressalte-
se aí que a
guerra não era realizada em razão de
fatos puramente econômicos:
As tribos tupi se dividiam em
aliadas e inimigas. Faziam
guerras constantes, anuais. Os
vencedores não tomavam o
território dos vencidos, não
cobravam tributos,
escravos, o saqueavam
riqueza, não buscavam obter
nenhuma vantagem econômica.
Capturavam inimigos apenas
para matar e comer […] Matar,
comer, ser morto e vingado. []
Se no plano imediato um
homicídio tinha um valor
negativo, o canibalismo o
t
ransfigurava, simbolicamente,
em algo positivo. No jogo canibal,
cada grupo depende totalmente
de seus inimigos, para atingir,
depois da morte, a vida eterna de
prazer e alegria. O mal, assim, é
indispensável para a obtenção do
bem; o mal, portanto, é o pr
bem (MUSSA, 2009, p. 18
Neste processo de
transfiguração das dicotomias, uma
tribotupinambá não se apropriava do
território, nem da riqueza, nem de toda
a comunidade dos inimigos, não raro,
unidos à ela por laços de parentesco.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
desestruturação social de toda uma
comunidade. Em resposta ao chamado
do espírito beneficiário do sacrifício”
(FERNANDES, 2006, p. 358), a tribo
então se prepara para a expedição
guerreira, com o objetivo de capturar o
responsável pela morte de seu
se que a
guerra não era realizada em razão de
fatos puramente econômicos:
As tribos tupi se dividiam em
aliadas e inimigas. Faziam
guerras constantes, anuais. Os
vencedores não tomavam o
território dos vencidos, não
cobravam tributos,
não faziam
escravos, não saqueavam
riqueza, não buscavam obter
nenhuma vantagem econômica.
Capturavam inimigos apenas
para matar e comer […] Matar,
comer, ser morto e vingado. […]
Se no plano imediato um
homicídio tinha um valor
negativo, o canibalismo o
ransfigurava, simbolicamente,
em algo positivo. No jogo canibal,
cada grupo depende totalmente
de seus inimigos, para atingir,
depois da morte, a vida eterna de
prazer e alegria. O mal, assim, é
indispenvel para a obtenção do
bem; o mal, portanto, é o pr
óprio
bem (MUSSA, 2009, p. 18
-73).
Neste processo de
transfiguração das dicotomias, uma
tribotupinambá não se apropriava do
território, nem da riqueza, nem de toda
a comunidade dos inimigos, não raro,
unidos à ela por laços de parentesco.
Por meio da iden
tificação entre o
capturado e seu grupo, a tribo
guerreira o apenas acalmava a ira
de seus ancestrais como também
permitia que seu povo capturasse, por
meio da antropofagia ritual, as
qualidades subjetivas do cativo,
restando “bens imateriais: nomes,
can
tos, memória” (FAUSTO, 2010, p.
80). Assim,
As cerimônias se destinavam a
assegurar a cooperação de um
agente sobrenatural, o espírito
beneficiário do sacrifício, o qual
comumente atua como um
espírito tutelar. De modo que a
“luta” se operava, graças ao
estado de participação e ao
consequente poder miraculoso
das ações,
atras dos agentes
humanos
. É preciso que se tenha
em mente que aqueles ritos não
eram exclusivamente negativos;
se de um lado eles procuravam
enganar e afastar a alma imortal
da vítima
, de outro, eles tinham
por objetivo o domínio da
substância dela que podia ser
captada através do sacrifício e da
antropofagia. Daí a necessidade
de um intercâmbio tão profundo
com o sagrado e o
estabelecimento de relações
cíclicas com os espíritos
tutela
res, a ponto de um sacrifício
humano engendrar ou se
encadear em outro, e assim por
diante (FERNANDES, 2006, p.
358).
Foge ao escopo deste texto um
detalhamento minucioso de todas as
fases da antropofagia ritual. O que nos
451
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tificação entre o
capturado e seu grupo, a tribo
guerreira não apenas acalmava a ira
de seus ancestrais como também
permitia que seu povo capturasse, por
meio da antropofagia ritual, as
qualidades subjetivas do cativo,
restando bens imateriais: nomes,
tos, memória (FAUSTO, 2010, p.
As cerimônias se destinavam a
assegurar a cooperação de um
agente sobrenatural, o “espírito”
beneficiário do sacrifício, o qual
comumente atua como um
espírito tutelar. De modo que a
luta se operava, graças ao
estado de participação e ao
consequente poder miraculoso
através dos agentes
. É preciso que se tenha
em mente que aqueles ritos não
eram exclusivamente negativos;
se de um lado eles procuravam
enganar e afastar a “alma imortal”
, de outro, eles tinham
por objetivo o domínio da
substância dela que podia ser
captada através do sacrifício e da
antropofagia. Daí a necessidade
de um intermbio tão profundo
com o sagrado e o
estabelecimento de relações
clicas com os espíritos
res, a ponto de um sacrifício
humano engendrar ou se
encadear em outro, e assim por
diante (FERNANDES, 2006, p.
Foge ao escopo deste texto um
detalhamento minucioso de todas as
fases da antropofagia ritual. O que nos
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
interessa pontualmente nesta
dis
cussão é, dentre as etapas que
compõem este acontecimento nico
ritual, aquela referente aos ritos de
vingança simbólica da tima
(FERNANDES, 2006, p. 322). Depois
de prepararem ritualmente o capturado
conforme os padrões estético
da tribo, seu
s integrantes reafirmavam
uma vez mais a distinção do cativo por
meio do que poderíamos chamar de
reencenação da captura
.A partir de
relatos de Thevet e Cardim, Fernandes
(2006, p. 328) descreve esta etapa do
ritual na qual, após as cerimônias de
purificaç
ão do cativo, os membros da
tribo se organizavam em duas filas
paralelas a partir da entrada das
cabanas, formando um corredor no
interior do qual o capturado deveria
correr até que fosse apanhado uma
vez mais pelos enfileirados, seguindo
se daí os ritos d
e vingança simbólica
que precedem, por sua vez, a
execução. Esta etapa simbólica é
bastante sugestiva, na medida em que
evidencia uma espécie de teatralidade
ritual de um processo ocorrido
anteriormente: a captura propriamente
dita. É digno de nota que um
acontecimento total como a
antropofagia ritual seja composto por
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
interessa pontualmente nesta
cussão é, dentre as etapas que
compõem este acontecimento cênico
-
ritual, aquela referente aos “ritos de
vingança simbólica da vítima”
(FERNANDES, 2006, p. 322). Depois
de prepararem ritualmente o capturado
conforme os padrões estético
-sociais
s integrantes reafirmavam
uma vez mais a distinção do cativo por
meio do que poderíamos chamar de
.A partir de
relatos de Thevet e Cardim, Fernandes
(2006, p. 328) descreve esta etapa do
ritual na qual, após as cerimônias de
ão do cativo, os membros da
tribo se organizavam em duas filas
paralelas a partir da entrada das
cabanas, formando um corredor no
interior do qual o capturado deveria
correr até que fosse apanhado uma
vez mais pelos enfileirados, seguindo
-
e vingança simbólica
que precedem, por sua vez, a
execução. Esta etapa simbólica é
bastante sugestiva, na medida em que
evidencia uma espécie de teatralidade
ritual de um processo ocorrido
anteriormente: a captura propriamente
dita. É digno de nota que um
acontecimento total como a
antropofagia ritual seja composto por
etapas distintas que se auto
partir de uma alternância entre o
prático e o simbólico, o natural e o
sobrenatural. A exemplo do rito de
vingança simbólica, as reencenações
presentes
no ritual, evocam, por sua
vez, a condição mágica das pinturas
rupestres, consideradas por
estudiosos como a primeira etapa da
captura, uma armadilha visual. Ela nos
serve, com isso, como um contraponto
histórico ao teatro catequético cujas
funções político-
religiosas visavam
suprimir outras teatralidades rituais
absolutamente integradas às
sociedades ameríndias.
A complexa multidimen
sionalidade da antropofagia ritual nos
permite considerá-
la como um fato
social total”, a partir da conceituação
concebida
por Marcel Mauss.
propósito do ritual do
encontrado em algumas tribos da
Melanésia e do Noroeste norte
americano, Mauss observa uma forma
de troca que não pode ser reduzida a
uma perspectiva meramente mercantil.
O potlatch
é um fato social tot
medida em que as tribos trocam todo
10
Para um estudo detalhado deste ensaio
comparando-
o com algumas propostas
teóricas da Estética Relacional, remete
FRIQUES (2013).
452
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
etapas distintas que se auto
-referem, a
partir de uma alternância entre o
prático e o simbólico, o natural e o
sobrenatural. A exemplo do rito de
vingança simbólica, as reencenações
no ritual, evocam, por sua
vez, a condição mágica das pinturas
rupestres, consideradas por
estudiosos como a primeira etapa da
captura, uma armadilha visual. Ela nos
serve, com isso, como um contraponto
histórico ao teatro catequético cujas
religiosas visavam
suprimir outras teatralidades rituais
absolutamente integradas às
sociedades ameríndias.
A complexa multidimen
-
sionalidade da antropofagia ritual nos
la como um “fato
social total, a partir da conceituação
por Marcel Mauss.
10 À
propósito do ritual do
potlatch
encontrado em algumas tribos da
Melanésia e do Noroeste norte
-
americano, Mauss observa uma forma
de troca que não pode ser reduzida a
uma perspectiva meramente mercantil.
é um fato social tot
al na
medida em que as tribos trocam todo
Para um estudo detalhado deste ensaio
o com algumas propostas
teóricas da Estética Relacional, remete
-se a
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
tipo de coisas e de seres humanos. O
ritual põe em ação todos os domínios
da vida tribal, seja religioso, moral,
econômico, jurídico etc. Esta
multidimensionalidade corresponde
também à mistura entre coisas e seres
humanos, visto que as coisas
possuem um mana
, o espírito das
coisas. A antropofagia ritual parece se
adequar ao conceito de Mauss, sendo
reforçada ainda mais quando se
considera o perspectivismo e o
multinaturalismo da América indígena
descritos por Castr
o (2015). Estas
duas últimas noções propõem uma
relativização absoluta do binômio
fundamental da Antropologia
distinção entre natureza e cultura
indicarem que, no âmbito das
cosmologias ameríndias, todos os
seres humanos e não
-
são cons
iderados em sua origem
como seres humanos.11
Nas palavras
11
O pensamento de Philippe Descola (2016, p.
14) a respeito das sociedades da Ama
reforçam esta ótica: “[...] Essa expreso
[“seres da natureza”] não faz o menor sentido
para os achuar. Os seres que são concebidos
e tratados como pessoas, que têm
pensamentos, sentimentos, desejos e
instituições em tudo parecido com os
humanos, nã
o são mais seres naturais. Os
achuar desconhecem essas distinções, que
me pareciam tão evidentes, entre os humanos
e os não humanos, entre o que pertence à
natureza e o que pertence à cultura. Walter
Mignolo (2017, p. 7), ao argumentar sobre a
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
tipo de coisas e de seres humanos. O
ritual põe em ação todos os domínios
da vida tribal, seja religioso, moral,
econômico, jurídico etc. Esta
multidimensionalidade corresponde
também à mistura entre coisas e seres
humanos, visto que as coisas
, o espírito das
coisas. A antropofagia ritual parece se
adequar ao conceito de Mauss, sendo
reforçada ainda mais quando se
considera o perspectivismo e o
multinaturalismo da América indígena
o (2015). Estas
duas últimas noções propõem uma
relativização absoluta do binômio
fundamental da Antropologia
a
distinção entre natureza e cultura
ao
indicarem que, no âmbito das
cosmologias ameríndias, todos os
-
humanos
iderados em sua origem
Nas palavras
O pensamento de Philippe Descola (2016, p.
14) a respeito das sociedades da Ama
zônia
reforçam esta ótica: [...] Essa expressão
[seres da natureza] não faz o menor sentido
para os achuar. Os seres que são concebidos
e tratados como pessoas, que têm
pensamentos, sentimentos, desejos e
instituições em tudo parecido com os
o são mais seres naturais. Os
achuar desconhecem essas distinções, que
me pareciam tão evidentes, entre os humanos
e os não humanos, entre o que pertence à
natureza e o que pertence à cultura”. Walter
Mignolo (2017, p. 7), ao argumentar sobre a
de Ailton Krenak, (2019, p. 40) o rio
Doce, que s, os Krenak, chamamos
de Watu, nosso avô, é uma pessoa,
não um recurso, como dizem os
economistas”. Tal questionamento
também se impõe aos estudos
teatro, em especial, ao regime
historiográfico colonial aqui delineado,
uma vez que problematiza um
enquadramento baseado na clivagem
entre sociedades primitivas e
civilizadas.
Levando em consideração o
“fato social total” concebido por Mauss,
é surpree
ndente o fato de, no âmbito
da sociologia do teatro, esta prática
ser compreendida do mesmo modo
por Wallon (2008), visto esta
manifestação engendrar estudos
voltados à gradação da dimensão
social à psíquica:
Se “um fato social total,
segundo a definiç
Mauss propôs em seu
sobre a dádiva
teatro. [...] A coletividade constitui
o poder que a funda, o cadinho
em que é forjada, o receptáculo
de seus efeitos. Como forma,
tudo nesta arte se presta à
análise das relações entr
indivíduos e as relações entre os
grupos: a construção do discurso,
a estrutura dialógica, a disposição
falta de se
ntido do conceito europeu de
natureza entre os aimarás e os quíchuas
endossa o coro: “a cultura era natureza e a
natureza era (e é) cultura”.
453
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
de Ailton Krenak, (2019, p. 40) “o rio
Doce, que nós, os Krenak, chamamos
de Watu, nosso a, é uma pessoa,
não um recurso, como dizem os
economistas. Tal questionamento
também se impõe aos estudos
do
teatro, em especial, ao regime
historiográfico colonial aqui delineado,
uma vez que problematiza um
enquadramento baseado na clivagem
entre sociedades primitivas e
Levando em consideração o
fato social total concebido por Mauss,
ndente o fato de, no âmbito
da sociologia do teatro, esta prática
ser compreendida do mesmo modo
por Wallon (2008), visto esta
manifestação engendrar estudos
voltados à gradação da dimensão
Se há um fato social total”,
segundo a definiç
ão que Marcel
Mauss propôs em seu
Ensaio
sobre a dádiva
, [...] este é o
teatro. [...] A coletividade constitui
o poder que a funda, o cadinho
em que é forjada, o receptáculo
de seus efeitos. Como forma,
tudo nesta arte se presta à
análise das relações entr
e os
indiduos e as relações entre os
grupos: a construção do discurso,
a estrutura dialógica, a disposição
ntido do conceito europeu de
natureza entre os aimarás e os quíchuas
endossa o coro: a cultura era natureza e a
natureza era (e é) cultura”.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
dos lugares, a troca de olhares, a
inclinação para o jogo, a
gramática gestual, a polissemia
de representações.
12
Conforme a ótica de Wallon, o
tea
tro pode ser considerado, a
exemplo dos rituais indígenas, como
um fato social total por entrelaçar
distintas dimensões da sociedade
ocidental. Nesta linha, o teatro se
aproxima de outros fatos sociais totais,
como o potlatch
e a antropofagia ritual,
justa
mente naquilo que estas práticas
cênico-
rituais são capazes de
mobilizar nos diversos e
complementares âmbitos da
sociabilidade. Mas se o teatro pode ser
considerado como um fato social total,
por que não haveria movimento
inverso? A este respeito, indague
poderia a arte em geral (e o teatro,
especificamente) ser considerada
como uma categoria transcultural?
12
Tradução do autor para a seguinte
passagem: “
S’il existe « un fait social total »,
selon la définition que Marce
l Mauss en
proposa dans son Essai sur le don […] cest
bien le théâtre. […] La collectivité constitue la
puissance qui le fonde, le creuset où il se
forge, le réceptacle de ses effets. En tant que
forme, tout en cet art prête à l’analyse des
rapports entre
les individus et des relations
entre les groupes : la construction du discours,
la structure dialogique, l’agencement des lieux,
le commerce des regards, l’inclination au jeu,
la grammaire gestuelle, la polysémie des
représentations”.
13 Maria Laura Cavalc
anti (2014, p. 9)
esclarece que “os estudos antropológicos do
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
dos lugares, a troca de olhares, a
inclinação para o jogo, a
gramática gestual, a polissemia
12
Conforme a ótica de Wallon, o
tro pode ser considerado, a
exemplo dos rituais indígenas, como
um fato social total por entrelaçar
distintas dimensões da sociedade
ocidental. Nesta linha, o teatro se
aproxima de outros fatos sociais totais,
e a antropofagia ritual,
mente naquilo que estas práticas
rituais o capazes de
mobilizar nos diversos e
complementares âmbitos da
sociabilidade. Mas se o teatro pode ser
considerado como um fato social total,
por que não haveria movimento
inverso? A este respeito, indague
mos:
poderia a arte em geral (e o teatro,
especificamente) ser considerada
como uma categoria transcultural?
13
Tradução do autor para a seguinte
Sil existe « un fait social total »,
l Mauss en
proposa dans son Essai sur le don […] c’est
bien le théâtre. […] La collectivité constitue la
puissance qui le fonde, le creuset où il se
forge, le réceptacle de ses effets. En tant que
forme, tout en cet art prête à lanalyse des
les individus et des relations
entre les groupes : la construction du discours,
la structure dialogique, lagencement des lieux,
le commerce des regards, linclination au jeu,
la grammaire gestuelle, la polysémie des
anti (2014, p. 9)
esclarece que os estudos antropológicos do
Arte, uma categoria transcultural?
Ao longo de todo o século XX,
observa-
se uma rtil aproximação
entre os campos da arte e da
antropologia. Már
io Pedrosa (
480-481)
registra que o
desenvolvimento da arte moderna
durante o século XX está condicionado
ao contato das sociedades
imperialistas do Ocidente com os
chamados “povos primitivos”. Contudo,
é somente às vésperas do culo XXI
que se o
bserva formas de
aproximação que não se reduzem ao
primitivismo moderno, e que instituem
aquilo que Hal Foster (1996)
denominou, em meados dos anos
1980, de “virada etnográfica. Nesta
década, duas megaexposições
ocorridas em dois reconhecidos
templos ocid
entais da arte suscitaram
um conjunto de questionamentos a
respeito do etnocentrismo artístico.
ritual se confundem com a própria constituição
da disciplina”, refletindo, a partir daí, sobre as
semelhanças e diferenças entre o teatro e os
rituais festivos da cultura popular (Escolas de
Sam
ba e Bumba Meu Boi). Contudo, o teatro a
que se refere a autora é aquele erudito,
baseado em um texto e com arco dramático
bem definido, definição que julgamos
limitadora para a diversidade das práticas
teatrais brasileiras. A despeito disso, a
contribui
ção da antropóloga é fundamental
para uma reflexão a respeito das mútuas
conexões entre ritual, performance e teatro.
454
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Arte, uma categoria transcultural?
Ao longo de todo o século XX,
se uma fértil aproximação
entre os campos da arte e da
io Pedrosa (
2015, p.
registra que o
desenvolvimento da arte moderna
durante o culo XX está condicionado
ao contato das sociedades
imperialistas do Ocidente com os
chamados povos primitivos”. Contudo,
é somente às vésperas do século XXI
bserva formas de
aproximação que não se reduzem ao
primitivismo moderno, e que instituem
aquilo que Hal Foster (1996)
denominou, em meados dos anos
1980, de virada etnográfica”. Nesta
década, duas megaexposições
ocorridas em dois reconhecidos
entais da arte suscitaram
um conjunto de questionamentos a
respeito do etnocentrismo artístico.
ritual se confundem com a própria constituição
da disciplina, refletindo, a partir daí, sobre as
semelhanças e diferenças entre o teatro e os
rituais festivos da cultura popular (Escolas de
ba e Bumba Meu Boi). Contudo, o teatro a
que se refere a autora é aquele “erudito”,
baseado em um texto e com arco dramático
bem definido, definição que julgamos
limitadora para a diversidade das práticas
teatrais brasileiras. A despeito disso, a
ção da antropóloga é fundamental
para uma reflexão a respeito das mútuas
conexões entre ritual, performance e teatro.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
Inaugurada em setembro de 1984 no
Museum of Modern Art (MoMA), Nova
York,
“Primitivism” in 20th Century art:
affinity of the Tribal and the Modern
propôs, pelo
viés formal, uma
aproximação entre as obras de arte
modernas e os artefatos etnográficos
das demais sociedades, tática
bastante questionada naquele
contexto histórico justamente pela
premissa subjacente de uma
concepção universalista e humanista
da cria
ção artística elaborada
conforme um olhar moderno e
ocidental (LAFUENTE, 2013, p. 10).
Cinco anos mais tarde, em
1989, o Centre Georges Pompidou
inaugura
Magiciens de la Terre
substituindo o conceito de forma de
Primitivism
pelos de magia e
espiritualidad
e como uma experiência
abstrata transhistórica” (BUCHLOH,
2013, p. 228).A mostra,
autoproclamada como a primeira
exposição mundial de arte
contemporânea” (STEEDS, 2013, p.
24), era composta porobras de cerca
de cem artistas, sendo a metade
originária de
outras regiões que não os
países do eixo euroamericano. É
possível considerar estas duas
exposições emblemáticas justamente
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
Inaugurada em setembro de 1984 no
Museum of Modern Art (MoMA), Nova
Primitivism in 20th Century art:
affinity of the Tribal and the Modern
viés formal, uma
aproximação entre as obras de arte
modernas e os artefatos etnográficos
das demais sociedades, tática
bastante questionada naquele
contexto histórico justamente pela
premissa aí subjacente de uma
concepção universalista e humanista
ção artística elaborada
conforme um olhar moderno e
ocidental (LAFUENTE, 2013, p. 10).
Cinco anos mais tarde, em
1989, o Centre Georges Pompidou
Magiciens de la Terre
,
substituindo o conceito de forma de
pelos de magia e
e como uma “experiência
abstrata transhistórica (BUCHLOH,
2013, p. 228).A mostra,
autoproclamada como a “primeira
exposição mundial de arte
contemporânea (STEEDS, 2013, p.
24), era composta porobras de cerca
de cem artistas, sendo a metade
outras regiões que não os
países do eixo euroamericano. É
posvel considerar estas duas
exposições emblemáticas justamente
pelos debates e polêmicas suscitados
a partir delas. Ao retomar a discussão
a respeito dos primitivismos
modernistas (caso do MoMA)
justapor práticas contemporâneas de
povos ocidentais e não
(caso do Pompidou), estas mostras
catalisam um movimento de reflexão
tão fecundo quanto necesrio.
O duplo movimento
reavaliar as aproximações já
realizadas entre arte e a
longo de todo o século XX na mesma
medida em que propõe novos olhares
e posturas epistemológicos a esta
empreitada
parte das desconfianças
em relação ao uso indiscriminado de
conceitos(forma e magia),
pressupostos (centralidade do objeto;
artista como nio criador;as
distinções entre um objeto cotidiano e
uma obra de arte, entre espiritualidade
e instrumentalidade etc.) e
enquadramentos teóricos e
historiográficos ocidentais em diálogo
com a produção cultural de sociedades
não-ocidentais.
Estética, forma, arte,
performance, teatro: seriam estas
noções transculturais? Esta indagação
requer uma resposta dicotômica
pautada pelo princípio de excluo?
Caso afirmativo, como lidar com as
455
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- ISSN 2237-1508
pelos debates e polêmicas suscitados
a partir delas. Ao retomar a discussão
a respeito dos primitivismos
modernistas (caso do MoMA)
e
justapor práticas contemporâneas de
povos ocidentais e não
-ocidentais
(caso do Pompidou), estas mostras
catalisam um movimento de reflexão
tão fecundo quanto necessário.
O duplo movimento
– que busca
reavaliar as aproximações
realizadas entre arte e a
ntropologia ao
longo de todo o culo XX na mesma
medida em que propõe novos olhares
e posturas epistemológicos a esta
parte das desconfianças
em relação ao uso indiscriminado de
conceitos(forma e magia),
pressupostos (centralidade do objeto;
artista como gênio criador;as
distinções entre um objeto cotidiano e
uma obra de arte, entre espiritualidade
e instrumentalidade etc.) e
enquadramentos teóricos e
historiográficos ocidentais em diálogo
com a produção cultural de sociedades
Estética, forma, arte,
performance, teatro: seriam estas
noções transculturais? Esta indagação
requer uma resposta dicotômica
pautada pelo prinpio de exclusão?
Caso afirmativo, como lidar com as
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
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202
especificidades culturais de cada
sociedade? Caso negativo,
são interditadas em proveito do quê?
Do ponto de vista da
Antropologia da Arte, encontramos
formuladas, de modo mais explícito,
tais problemáticas. Este é o caso, por
exemplo, do debate ocorrido na
Universidade de Manchester, na
Inglaterra, em
1993, em função da
viabilidade de se considerar a estética
enquanto uma categoria universal.
Mais do que endossar os defensores
ou os detratores desta noção, salienta
se aqui a constatação da existência de
uma arena discursiva como principal
efeito deste
debate. Neste campo,
autores como Alfred Gell (que esteve
presente no debate de Manchester) e
Carlo Severi contribuem decisivamente
para se repensar as aproximações
entre as cosmologias ocidentais e não
ocidentais.
Partindo da premissa de que
uma antropol
ogia da arte não se
resume à compreensão do esquema
de avaliação estética de uma dada
cultura, Gell (2009, p. 245) ressalta a
importância do “contexto social da
14
O debate está registrado no livro organizado
por Tim Ingold (1996).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
especificidades culturais de cada
sociedade? Caso negativo,
tais noções
o interditadas em proveito do quê?
Do ponto de vista da
Antropologia da Arte, encontramos
formuladas, de modo mais explícito,
tais problemáticas. Este é o caso, por
exemplo, do debate ocorrido na
Universidade de Manchester, na
1993, em função da
viabilidade de se considerar a estética
enquanto uma categoria universal.
14
Mais do que endossar os defensores
ou os detratores desta noção, salienta
-
se aqui a constatação da existência de
uma arena discursiva como principal
debate. Neste campo,
autores como Alfred Gell (que esteve
presente no debate de Manchester) e
Carlo Severi contribuem decisivamente
para se repensar as aproximações
entre as cosmologias ocidentais e não
-
Partindo da premissa de que
ogia da arte não se
resume à compreeno do esquema
de avaliação estética de uma dada
cultura, Gell (2009, p. 245) ressalta a
importância do contexto social da
O debate está registrado no livro organizado
produção, da circulação e recepção da
arte” para o exercício antropológico. A
tarefa do antropó
logo não deve ser
compreendida como uma tentativa de
identificação e de descrição dos
princípios estéticos que fazem com
que um objeto seja considerado uma
obra de arte em uma determinada
cultura, mas como um esforço por
compreender as relações sociais
ins
critas neste mesmo objeto. A bem
dizer, uma antropologia da arte deveria
colocar em perspectiva suas próprias
premissas, neste caso, duas distinções
ocidentais recorrentes: obra de arte
versus
objeto cotidiano; objeto
sujeito.Tendo isto em mente, Ge
(2009, p. 255)propõe que os objetos
sejam considerados como agentes
sociais, reconhecendo aí sua dívida
intelectual em relação a Mauss: Dado
que as prestações ou dons’ o
tratados na teoria da troca de Mauss
como (extensões de) pessoas, então
clarame
nte faz sentido ver, do mesmo
modo, os objetos de arte como
‘pessoas’”.Se um objeto é um agente
social, ele tanto possui um
quanto é atravessado por uma rede de
intencionalidades e de agenciamentos
que institui, por assim dizer, o seu
“drama social”.
Um caso emblemático
456
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- ISSN 2237-1508
produção, da circulação e recepção da
arte para o exercio antropológico. A
logo não deve ser
compreendida como uma tentativa de
identificação e de descrição dos
prinpios estéticos que fazem com
que um objeto seja considerado uma
obra de arte em uma determinada
cultura, mas como um esforço por
compreender as relações sociais
critas neste mesmo objeto. A bem
dizer, uma antropologia da arte deveria
colocar em perspectiva suas próprias
premissas, neste caso, duas distinções
ocidentais recorrentes: obra de arte
objeto cotidiano; objeto
versus
sujeito.Tendo isto em mente, Ge
ll
(2009, p. 255)propõe que os objetos
sejam considerados como agentes
sociais, reconhecendo sua dívida
intelectual em relação a Mauss: “Dado
que as prestações ou ‘dons’ são
tratados na teoria da troca de Mauss
como (extensões de) pessoas, então
nte faz sentido ver, do mesmo
modo, os objetos de arte como
pessoas’.Se um objeto é um agente
social, ele tanto possui um
mana
quanto é atravessado por uma rede de
intencionalidades e de agenciamentos
que institui, por assim dizer, o seu
Um caso emblemático
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
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discutido por Gell é o da armadilha de
caça Zande que a curadora Susan
Vogel expôs enrolada na exposição
Arte/Artefato
ocorrida em 1988 no
Center for African Art (Nova Iorque).
Em sua contribuição ao
catálogo desta exposição, o
estadun
idense Arthur Danto prossegue
em sua empreitada filosófica de definir
uma “ontologia da obra de arte
(DANTO, 2005, p. 20), dando
continuidade aos esforços plasmados
no livro “A transfiguração do lugar
comum”, publicado inicialmente em
1981. Desde os anos
1960, quando
tomou conhecimento da
conforme relata repetidas vezes em
seus escritos (DANTO, 2005; 2006;
2012)
Danto se dedicou ao problema
filosófico referente à distinção entre
um mero objeto e uma obra de arte.
Revogadas as distinções percept
decretada a insuficiência da teoria
institucional
segundo a qual um
objeto de arte adquiriria tal atributo por
se localizar no mundo da arte
resposta ao dilema anunciado
sobretudo pelas obras de Andy Warhol
deveria ser formulada da seguinte
maneira:
Minha hipótese é que o fenômeno
das contrapartes indistinguíveis
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
discutido por Gell é o da armadilha de
caça Zande que a curadora Susan
Vogel expôs enrolada na exposição
ocorrida em 1988 no
Center for African Art (Nova Iorque).
Em sua contribuição ao
catálogo desta exposição, o
idense Arthur Danto prossegue
em sua empreitada filosófica de definir
uma ontologia da obra de arte”
(DANTO, 2005, p. 20), dando
continuidade aos esforços plasmados
no livro A transfiguração do lugar
-
comum, publicado inicialmente em
1960, quando
tomou conhecimento da
Pop Art
conforme relata repetidas vezes em
seus escritos (DANTO, 2005; 2006;
Danto se dedicou ao problema
filosófico referente à distinção entre
um mero objeto e uma obra de arte.
Revogadas as distinções percept
ivas e
decretada a insuficiência da teoria
segundo a qual um
objeto de arte adquiriria tal atributo por
se localizar no mundo da arte
a
resposta ao dilema anunciado
sobretudo pelas obras de Andy Warhol
deveria ser formulada da seguinte
Minha hipótese é que o fenômeno
das contrapartes indistinguíveis
que pertencem a ordens
ontológicas distintas somente
ocorre quando pelo menos uma
das coisas equivalentes tem
propriedades representacionais,
quando pelo menos uma das
contrapartes
alguma coisa, possui um
conteúdo, um assunto ou uma
significação (DANTO, 2005, p.
209).
Neste trecho, é posvel notar o
destaque dado por Danto à
representação e ao significado de uma
obra de arte, em contraposição ao uso
de um artefato. De f
uma equação na qual uma obra de
arte seria resultante da soma entre um
objeto e seu significado incorporado.
No caso de Warhol, suas obra e
própria figuragiram em torno de uma
“alma americana” da sociedade de
consumo,que busca em vão satisf
seus desejos e encontrar a felicidade
por meio da publicidade. As obras de
Warhol significariam, com isso, a
promessa de uniformidade universal
prometida pela produção industrial de
mercadorias como a Coca
(DANTO, 2012, p. 85).
Como bem demonstra
apreciação crítica da obra de Warhol,
a investigação filosófica proposta por
Danto, quando contextualizada em
solo estadunidense, apresenta um
457
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
que pertencem a ordens
ontológicas distintas somente
ocorre quando pelo menos uma
das coisas equivalentes tem
propriedades representacionais,
quando pelo menos uma das
contrapartes
diz respeito a
alguma coisa, possui um
conteúdo, um assunto ou uma
significação (DANTO, 2005, p.
Neste trecho, é possível notar o
destaque dado por Danto à
representação e ao significado de uma
obra de arte, em contraposição ao uso
de um artefato. De f
ato, ele propõe
uma equação na qual uma obra de
arte seria resultante da soma entre um
objeto e seu significado incorporado.
No caso de Warhol, suas obra e
própria figuragiram em torno de uma
alma americana da sociedade de
consumo,que busca em o satisf
azer
seus desejos e encontrar a felicidade
por meio da publicidade. As obras de
Warhol significariam, com isso, a
promessa de uniformidade universal
prometida pela produção industrial de
mercadorias como a Coca
-Cola
(DANTO, 2012, p. 85).
Como bem demonstra
a
apreciação crítica da obra de Warhol,
a investigação filosófica proposta por
Danto, quando contextualizada em
solo estadunidense, apresenta um
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
conjunto pertinente de argumentos
para se pensar os caminhos e
descaminhos da produção artística ali
desenvolv
ida. De fato, pode
que o problema filosófico do autor
distinção entre um artefato e uma obra
de arte
possui uma tradição
modernista de peso, caso se
considere, por exemplo, o debate em
torno da avant-garde
e do
proposto por Clement Gr
eenberg em
1939, ou então o ensaio
Objecthood
, elaborado por seu
discípulo, Michael Fried, em 1967
Com isso, no contexto espefico do
mundo da arte estadunidense, a
preocupação de Danto encontra pares
e dissidentes, inserindo-
se em uma
tradição
literária que busca refletir
sobre a especificidade da criação
artística modernista. O problema surge
quando o enquadramento filofico
ocidental do autor se dirige à produção
material e imaterial de sociedades não
ocidentais, em âmbito intercultural e
ant
ropológico, como é o caso da rede
de caça Zande.
Em “A rede de Vogel:
armadilhas como obras de arte e obras
15
Para uma reflexão sobre o conceito de
teatralidade nos escritos de
Michael Fried e
Rosalind Krauss, consulte-
se Friques (2018).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
conjunto pertinente de argumentos
para se pensar os caminhos e
descaminhos da produção artística ali
ida. De fato, pode
-se dizer
que o problema filofico do autor
a
distinção entre um artefato e uma obra
possui uma tradição
modernista de peso, caso se
considere, por exemplo, o debate em
e do
kitsch
eenberg em
1939, ou então o ensaio
Art and
, elaborado por seu
discípulo, Michael Fried, em 1967
15.
Com isso, no contexto específico do
mundo da arte estadunidense, a
preocupação de Danto encontra pares
se em uma
literária que busca refletir
sobre a especificidade da criação
artística modernista. O problema surge
quando o enquadramento filosófico
ocidental do autor se dirige à produção
material e imaterial de sociedades não
ocidentais, em âmbito intercultural e
ropológico, como é o caso da rede
Em A rede de Vogel:
armadilhas como obras de arte e obras
Para uma reflexão sobre o conceito de
Michael Fried e
se Friques (2018).
de arte como armadilhas”, Gell
discorre justamente sobre a
insuficiência da interpretação filofica
de Danto quando o assunto foge às
cosmologias o
cidentais. De fato, a
divisão entre instrumentalidade e
espiritualidade proposta por Danto em
sua ficção etnográfica explicita o
desconhecimento do filósofo em
relação aos estudos antropológicos
africanos, por meio dos quais se
constata a mútua implicação
termos do binômio. Em outras
palavras, uma rede de caça não
apresenta apenas um componente
instrumental, sendo também
ritualmente significante. Gell
demonstra, a partir de estudos
etnográficos, que muito da eficia de
um “mero artefato provém
di
retamente de sua dimeno
metafísica, espiritual. Em suma, Gell
supera a clássica oposição entre
artefato e arte, introduzindo agência e
eficácia onde a definição clássica
permite contemplação (LAGROU,
2010, p. 17).
À inseparabilidade entre as
dimensõ
es instrumental e espiritual,
articula-
se também a proposta de Gell
em constatar as agências inscritas nas
obras de arte. Além de se situar em
458
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
de arte como armadilhas”, Gell
discorre justamente sobre a
insuficiência da interpretação filosófica
de Danto quando o assunto foge às
cidentais. De fato, a
divio entre instrumentalidade e
espiritualidade proposta por Danto em
sua ficção etnográfica explicita o
desconhecimento do filósofo em
relação aos estudos antropológicos
africanos, por meio dos quais se
constata a mútua implicação
entre os
termos do binômio. Em outras
palavras, uma rede de caça não
apresenta apenas um componente
instrumental, sendo também
ritualmente significante. Gell
demonstra, a partir de estudos
etnográficos, que muito da eficácia de
um mero artefato” provém
retamente de sua dimensão
metafísica, espiritual. Em suma, “Gell
supera a clássica oposição entre
artefato e arte, introduzindo agência e
eficia onde a definição clássica
permite contemplação” (LAGROU,
À inseparabilidade entre as
es instrumental e espiritual,
se também a proposta de Gell
em constatar as agências inscritas nas
obras de arte. Além de se situar em
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
uma zona fronteiriça entre a
instrumentalidade e a espiritualidade, a
armadilha Zande deve ser considerada
como u
m duplo modelo, tanto do
caçador quanto da caça. Do ponto de
vista do caçador, a armadilha substitui
o predador, conservando suas
intencionalidades, suas habilidades e
seus conhecimentos. O modo de
operação da armadilha é correlato,
com isso, ao comportame
próprio caçador no ato da caça. Mas
não apenas isso: a armadilha também
conserva em si o movimento da presa,
caso contrário esta não poderia ser
capturada. Sendo assim, pode
dizer que a armadilha Zande é um
objeto fecundo
que projeta, em sua
con
stituição estrutural, o nexo
dramático que liga os dois
protagonistas e que os alinha no
tempo e no espaço” (GELL, 2001, p.
184).
É bastante significativa a
utilização por Gell da expressão nexo
dramático” na cena da captura,
havendo uma ressonância d
“momento fecundo teorizado por
Lessingno trata do
Laooconte ou sobre
as fronteiras da pintura e da poesia:
com esclarecimentos ocasionais sobre
diferentes pontos da história da arte
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
uma zona fronteiriça entre a
instrumentalidade e a espiritualidade, a
armadilha Zande deve ser considerada
m duplo modelo, tanto do
caçador quanto da caça. Do ponto de
vista do caçador, a armadilha substitui
o predador, conservando suas
intencionalidades, suas habilidades e
seus conhecimentos. O modo de
operação da armadilha é correlato,
com isso, ao comportame
nto do
próprio caçador no ato da caça. Mas
não apenas isso: a armadilha também
conserva em si o movimento da presa,
caso contrário esta não poderia ser
capturada. Sendo assim, pode
-se
dizer que a armadilha Zande é um
que projeta, em sua
stituição estrutural, o “nexo
dramático que liga os dois
protagonistas e que os alinha no
tempo e no espaço (GELL, 2001, p.
É bastante significativa a
utilização por Gell da expressão “nexo
dramático na cena da captura,
havendo aí uma ressonância d
o
momento fecundo teorizado por
Laooconte ou sobre
as fronteiras da pintura e da poesia:
com esclarecimentos ocasionais sobre
diferentes pontos da história da arte
antiga,
aproximação que parece
bastante pertinente à teoria teatral.
Pa
ra o dramaturgo e teórico alemão, o
momento fecundo não significa o ápice
patético da dor ou a plenitude da
expressão, sendo caracterizado por
um comedimento desta, pois
É certo que aquele momento
único e único ponto de vista
desse único momento não podem
ser escolhidos de modo fecundo
demais. Mas só é fecundo o que
deixa um jogo livre para a
imaginação [...] Se esse momento
único recebe graças à arte uma
duração imutável, então ele não
deve expressar o que não se
possa pensar senão enquanto
transitório.
L
essing, então, exemplifica com
a Medeia pintada por Timomaco, pintor
grego de 300 a.C., que
não tomou a Medeia no momento
em que ela efetivamente
assassina os filhos; mas antes,
alguns momentos antes, quando
o amor maternal ainda luta com o
ciúme. Nós pre
luta. Trememos antecipadamente
pelo simples fato de logo ver a
horrível Medeia, e a nossa
imaginação vai muito além de
tudo o que o pintor poderia
mostrar nesse terrível momento
(LESSING, 2011, p. 101
Esta aproximação entre Lessing
e Gell o pretende anular as
diferenças inegáveis de seus
contextos históricos bem como de
459
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
aproximação que parece
bastante pertinente à teoria teatral.
ra o dramaturgo e teórico alemão, o
momento fecundo não significa o ápice
patético da dor ou a plenitude da
expressão, sendo caracterizado por
um comedimento desta, pois
É certo que aquele momento
único e único ponto de vista
desse único momento não podem
ser escolhidos de modo fecundo
demais. Mas é fecundo o que
deixa um jogo livre para a
imaginação [...] Se esse momento
único recebe graças à arte uma
duração imutável, então ele não
deve expressar o que não se
possa pensar senão enquanto
essing, então, exemplifica com
a Medeia pintada por Timomaco, pintor
grego de 300 a.C., que
não tomou a Medeia no momento
em que ela efetivamente
assassina os filhos; mas antes,
alguns momentos antes, quando
o amor maternal ainda luta com o
ciúme. Nós pre
vemos o fim dessa
luta. Trememos antecipadamente
pelo simples fato de logo ver a
horrível Medeia, e a nossa
imaginação vai muito além de
tudo o que o pintor poderia
mostrar nesse terrível momento
(LESSING, 2011, p. 101
-102).
Esta aproximação entre Lessing
e Gell não pretende anular as
diferenças inegáveis de seus
contextos históricos bem como de
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
seus campos de atuação. Enquanto
Lessing elabora o seu texto em
meados do século XVIII tendo em vista
uma discussão literária ocidental
específica que pretendia es
os limites representativos da pintura e
da poesia a partir de seus suportes
expressivos, Gell é um pensador do
século XX que se esforça por
estabelecer parâmetros para a
antropologia da arte.Salvaguardando
tais distinções, talvez possamos
afirmar
que, ao mediar uma agência
social, a armadilha de Gell instaure um
momento pregnante
que motiva o jogo
livre da imaginação pautado pelo
dramático
que articula as
intencionalidades da presa e do
predador no ato da captura.
Consequentemente, o animal
capturado assemelhar-se-
á a grandes
heróis trágicos, conforme sugere Gell
na seguinte passagem:
Considere o hipopótamo
condenado, tranquilo com a
sensação de falsa segurança
decorrente apenas de seu
tamanho e majestade. Quantos
heróis trágicos sofreram das
mesmas ilusões de presunção e
atraíram o mesmo destino? Se o
chimpanzé que cai na armadilha
de Boyer for Fausto, talvez este
hipopótamo seja Otelo. O fato de
que todos os animais que caem
vítimas das armadilhas sempre
provoquem suas quedas por meio
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
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(Fluxo contínuo)
seus campos de atuação. Enquanto
Lessing elabora o seu texto em
meados do culo XVIII tendo em vista
uma discussão literária ocidental
espefica que pretendia es
tabelecer
os limites representativos da pintura e
da poesia a partir de seus suportes
expressivos, Gell é um pensador do
culo XX que se esforça por
estabelecer parâmetros para a
antropologia da arte.Salvaguardando
tais distinções, talvez possamos
que, ao mediar uma agência
social, a armadilha de Gell instaure um
que motiva o jogo
livre da imaginação pautado pelo
nexo
que articula as
intencionalidades da presa e do
predador no ato da captura.
Consequentemente, o animal
á a grandes
heróis trágicos, conforme sugere Gell
Considere o hipopótamo
condenado, tranquilo com a
sensação de falsa segurança
decorrente apenas de seu
tamanho e majestade. Quantos
heróis trágicos sofreram das
mesmas ilues de presunção e
atraíram o mesmo destino? Se o
chimpanzé que cai na armadilha
de Boyer for Fausto, talvez este
hipopótamo seja Otelo. O fato de
que todos os animais que caem
timas das armadilhas sempre
provoquem suas quedas por meio
da próp
ria autoconfiança
complacente demonstra que a
caça
com armadilhas é uma
forma muito mais poética e
trágica do que a simples
perseguição (GELL, 2001, p.
184).
Nestes fluxos entre Otelos e
chipanzés, não apenas as armadilhas
de povos o ocidentais
apresentariam agência social. As
obras de arte ocidentai
para Gell, também ser consideradas
armadilhas. O autor se refere aqui à
produção artística contemporânea,
trazendo à discussão as obras
Physical Impossibility of Death in the
Mind of Someone Living
Moon
(1991), criadas respect
porDamien Hirst e Rebecca Horn que,
de fato, encenam armadilhas.No
aquário de formol de Hirst, encontra
se, não peixes vivos, mas um tubarão
isto é, um predador
instalação de Horn, duas espingardas,
penduradas e apontadas uma contr
outra, atiram fluidos vermelhos com
certa frequência. Como se pode
perceber, estes dois trabalhos lidam
diretamente com o
drama da captura
implicando reflexões de variadas
naturezas. A estas obras, seria
possível justapor uma rie
460
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- ISSN 2237-1508
ria autoconfiança
complacente demonstra que a
com armadilhas é uma
forma muito mais poética e
trágica do que a simples
perseguição (GELL, 2001, p.
Nestes fluxos entre Otelos e
chipanzés, não apenas as armadilhas
de povos não ocidentais
apresentariam agência social. As
obras de arte ocidentai
s poderiam,
para Gell, também ser consideradas
armadilhas. O autor se refere aqui à
produção artística contemporânea,
trazendo à discussão as obras
The
Physical Impossibility of Death in the
Mind of Someone Living
(1991) e High
(1991), criadas respect
ivamente
porDamien Hirst e Rebecca Horn que,
de fato, encenam armadilhas.No
aquário de formol de Hirst, encontra
-
se, não peixes vivos, mas um tubarão
isto é, um predador
–capturado.Na
instalação de Horn, duas espingardas,
penduradas e apontadas uma contr
a a
outra, atiram fluidos vermelhos com
certa frequência. Como se pode
perceber, estes dois trabalhos lidam
drama da captura
,
implicando reflexões de variadas
naturezas. A estas obras, seria
posvel justapor uma série
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
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202
inesgotável de outr
as, como o filme
Peixe
(2016), de Jonathas Andrade,
onde pescadores do nordeste
brasileiro abraçam suas presas até a
morte; ou a performance em vídeo
Sem Título (Gaiolas)
(1977), onde
Sonia Andrade, sentada no chão,
“veste” partes de seu corpo com
gaiola
s de passarinho; o
Geometria
(1977) de Cildo Meirelles,
no qual objetos cortantes têm suas
funções neutralizadas por objetos
semelhantes através de operações de
adição ou oposição; ou ainda diversas
ações de artistas brasileiros como
Laura Lima,
Carmela Gross, Rodrigo
Braga, Ivens Machado, dentre outros.
Se as obras mencionadas lidam
literalmente com o
drama da captura
não seriam apenas elas que poderiam
ser justapostas às armadilhas não
ocidentais. De fato, estas obras,
muitas delas criadas com
excluídos a priori do campo artístico
tradicional, também encenam de
outros modos a captura. Gell sugere,
levando em consideração o pluralismo
da produção artística contemporânea
bem como as teorias institucional e
interpretativa concebidas pelo p
Danto, que o espaço expositivo
funciona, ele mesmo, como um local
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
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(Fluxo contínuo)
as, como o filme
O
(2016), de Jonathas Andrade,
onde pescadores do nordeste
brasileiro abraçam suas presas até a
morte; ou a performance em vídeo
(1977), onde
Sonia Andrade, sentada no chão,
veste partes de seu corpo com
s de passarinho; o
Estojo de
(1977) de Cildo Meirelles,
no qual objetos cortantes têm suas
funções neutralizadas por objetos
semelhantes através de operações de
adição ou oposição; ou ainda diversas
ações de artistas brasileiros como
Carmela Gross, Rodrigo
Braga, Ivens Machado, dentre outros.
Se as obras mencionadas lidam
drama da captura
,
não seriam apenas elas que poderiam
ser justapostas às armadilhas não
ocidentais. De fato, estas obras,
muitas delas criadas com
objetos
excluídos a priori do campo artístico
tradicional, também encenam de
outros modos a captura. Gell sugere,
levando em consideração o pluralismo
da produção artística contemporânea
bem como as teorias institucional e
interpretativa concebidas pelo p
róprio
Danto, que o espaço expositivo
funciona, ele mesmo, como um local
de captura, propondo, por meio das
obras de arte, armadilhas ao
pensamento. Sendo assim, tanto a
rede de caça Zande quanto uma
performance artística apresentariam
suas respectivas red
intencionalidades e relacionamentos,
cabendo ao antropólogo investigar as
conexões entre elas.
Em âmbito brasileiro, as redes
de intencionalidades inscritas nos
objetos artísticos ameríndios têm sido
alvo de férteis investigações
antropológicas, como
os estudos de Els Lagrou (2003; 2010;
2011; 2013; 2015). Tomando por base
o pensamento de Clastres, Lévi
Strauss e Gell, Lagrou aborda a
produção artística das sociedades
ameríndias, ressaltando nelas seu
caráter indicial, produtivo, agentiv
Para isso, recorre a artefatos de
diversas etnias, com destaque para os
Kaxinawá, Bororo, Kayapó
Araweté, Wayana, Wauja, Pirahã etc.
De Clastres, Lagrou toma de
empréstimo a
revolução copernicana
que propõe uma invero de
perspectiva em rela
ção às sociedades
ameríndias, o mais vistas pela
retórica da falta (sem Estado, mas
contra o Estado). Se Lévi
461
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- ISSN 2237-1508
de captura, propondo, por meio das
obras de arte, armadilhas ao
pensamento. Sendo assim, tanto a
rede de caça Zande quanto uma
performance artística apresentariam
suas respectivas red
es de
intencionalidades e relacionamentos,
cabendo ao antropólogo investigar as
Em âmbito brasileiro, as redes
de intencionalidades inscritas nos
objetos artísticos ameríndios têm sido
alvo de férteis investigações
antropológicas, como
bem comprovam
os estudos de Els Lagrou (2003; 2010;
2011; 2013; 2015). Tomando por base
o pensamento de Clastres, vi
-
Strauss e Gell, Lagrou aborda a
produção artística das sociedades
ameríndias, ressaltando nelas seu
caráter indicial, produtivo, agentiv
o.
Para isso, recorre a artefatos de
diversas etnias, com destaque para os
Kaxinawá, Bororo, Kayapó
-Gorotire,
Araweté, Wayana, Wauja, Pirahã etc.
De Clastres, Lagrou toma de
revolução copernicana
,
que propõe uma inversão de
ção às sociedades
ameríndias, não mais vistas pela
retórica da falta (sem Estado, mas
contra o Estado). Se Lévi
-Strauss
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
participa desta mesma revolução
em certo sentido, até a anuncia por
meio de estudos como
Pensamento
Selvagem e as
Mitológicas
também uma desconfiança em relação
à arte moderna ocidental,
ensimesmada em sua
incomunicabilidade. Lagrou parte
desta ctica, identificando na produção
ameríndia uma indissociação entre
arte e artefato que impede ao artista
ameríndio de se encerrar s
mesmo de modo a abortar a
comunicabilidade. A partir da mútua
implicação entre arte e
instrumentalidade, a capacidade
agentiva da obra é o que Lagrou
retoma de Gell, notando aí que nem
mesmo a arte contemporânea é
pautada pela beleza, impondo
armad
ilhas conceituais resultantes de
um emaranhado complexo de
intencionalidades.
Para Lagrou (2003, p. 102),
“pensar sobre a arte entre os
ameríndios equivale a pensar a noção
de pessoa e de corpo”. Tendo como
foco principal a sociedade Kanixawá,
com a qual c
onviveu em pesquisas de
campo, a antropóloga reflete sobre a
produção artística ameríndia levando
em consideração a mútua interação
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
participa desta mesma revolução
e,
em certo sentido, até a anuncia por
Pensamento
Mitológicas
–, nutre
também uma desconfiança em relação
à arte moderna ocidental,
ensimesmada em sua
incomunicabilidade. Lagrou parte
desta crítica, identificando na produção
ameríndia uma indissociação entre
arte e artefato que impede ao artista
ameríndio de se encerrar s
obre si
mesmo de modo a abortar a
comunicabilidade. A partir da mútua
implicação entre arte e
instrumentalidade, a capacidade
agentiva da obra é o que Lagrou
retoma de Gell, notando que nem
mesmo a arte contemporânea é
pautada pela beleza, impondo
ilhas conceituais resultantes de
um emaranhado complexo de
Para Lagrou (2003, p. 102),
pensar sobre a arte entre os
ameríndios equivale a pensar a noção
de pessoa e de corpo. Tendo como
foco principal a sociedade Kanixawá,
onviveu em pesquisas de
campo, a antropóloga reflete sobre a
produção artística ameríndia levando
em consideração a mútua interação
entre os artefatos, as relações sociais,
as pessoas e o esquema conceitual
destes povos. A partir daí, ela constata
a inadeq
uação de certas premissas
ocidentais, em especial a do gênio
criativo e a da representação. Quanto
ao primeiro aspecto, Lagrou (2010, p.
8) salienta que
dificilmente se responsabilizará a
‘criatividade’ do artista pela
produção de novas formas de
expressão.
O artista é antes
aquele que capta e transmite ao
modo de um rádio transistor do
que um criador
suas capacidades de diálogo
percepção e interação com seres
não-
humanos, cuja presença se
faz sentir na maior parte das
obras de aspecto
que a capacidade de criação
nihilo
, criação do nada. Esta ideia
de ser mais receptor, tradutor e
transmissor do que criador vale
para a música, a performance e a
fabricação de imagens visuais e
palpáveis.
No fragmento acima, é posvel
e
ntrever uma relação íntima entre arte
e xamanismo na cosmologia
Kaxinawá. Neste contexto, o artista
ameríndio, tal qual o xamã,atua menos
como uma fonte expressiva a emitir,
por meio da produção cultural, as
particularidades do seu mundo interior
os sign
ificados privados de sua
existência
do que como um
mediador entre mundos humanos e
462
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
entre os artefatos, as relações sociais,
as pessoas e o esquema conceitual
destes povos. A partir daí, ela constata
uação de certas premissas
ocidentais, em especial a do gênio
criativo e a da representação. Quanto
ao primeiro aspecto, Lagrou (2010, p.
dificilmente se responsabilizará a
criatividade do artista pela
produção de novas formas de
O artista é antes
aquele que capta e transmite ao
modo de um rádio transistor do
que um criador
. Prezam-se mais
suas capacidades de diálogo
,
percepção e interação com seres
humanos, cuja presença se
faz sentir na maior parte das
obras de aspecto
figurativo, do
que a capacidade de criação
ex
, criação do nada. Esta ideia
de ser mais receptor, tradutor e
transmissor do que criador vale
para a música, a performance e a
fabricação de imagens visuais e
No fragmento acima, é possível
ntrever uma relação íntima entre arte
e xamanismo na cosmologia
Kaxinawá. Neste contexto, o artista
ameríndio, tal qual o xamã,atua menos
como uma fonte expressiva a emitir,
por meio da produção cultural, as
particularidades do seu mundo interior
ificados privados de sua
do que como um
mediador entre mundos humanos e
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
não-
humanos, visíveis e invisíveis.Não
à toa, Lagrou, ao partir de uma
passagem de Castro (2015, p.
49),ressalta o caráter
performativo
xamã ameríndio, conforme se pode
constatar também nesta que segue:
O xamanismo ameríndio pode ser
definido como a habilidade
manifesta por certos indiduos
de cruzar deliberadamente as
barreiras corporais entre as
espécies e adotar a perspectiva
de subjetividades “estrangeiras,
de modo
a administrar as
relações entre estas e os
humanos. Vendo os seres não
humanos com estes se veem
(como humanos), os xamãs o
capazes de assumir o papel de
interlocutores ativos no diálogo
transespecífico; sobretudo, eles
são capazes de voltar para contar
a história, algo que os leigos
dificilmente podem fazer.
Esta perigosa habilidade
diplomática é compartilhada entre
xamãs e artistas indígenas, uma vez
que estes últimos, tais como os
primeiros, realizam a mediação entre
universos humanos e o
Neste contexto, não se pode dizer que
os grafismos indígenas representam
retratos, paisagens ou naturezas
mortas da realidade, mas, pelo
contrário, possuem atributos agentivos
que a transformam. Assim como os
xamãs performatizam
sem encarnaras
subjetividad
es estrangeiras, os
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
humanos, visíveis e invisíveis.Não
à toa, Lagrou, ao partir de uma
passagem de Castro (2015, p.
performativo
do
xamã ameríndio, conforme se pode
constatar também nesta que segue:
O xamanismo ameríndio pode ser
definido como a habilidade
manifesta por certos indivíduos
de cruzar deliberadamente as
barreiras corporais entre as
espécies e adotar a perspectiva
de subjetividades estrangeiras”,
a administrar as
relações entre estas e os
humanos. Vendo os seres não
-
humanos com estes se veem
(como humanos), os xamãs são
capazes de assumir o papel de
interlocutores ativos no diálogo
transespefico; sobretudo, eles
o capazes de voltar para contar
a história, algo que os leigos
dificilmente podem fazer.
Esta perigosa habilidade
diplomática é compartilhada entre
xamãs e artistas indígenas, uma vez
que estes últimos, tais como os
primeiros, realizam a mediação entre
universos humanos e não
-humanos.
Neste contexto, não se pode dizer que
os grafismos indígenas representam
retratos, paisagens ou naturezas
-
mortas da realidade, mas, pelo
contrário, possuem atributos agentivos
que a transformam. Assim como os
sem encarnaras
es estrangeiras, os
grafismos indígenas possuem também
um atributo
performativo
corpo permeável aos fluxos de
alteridade. Os grafismos o como
“portais” por meio dos quais o estatuto
dos corpos seria transformado, ou
seja, “os grafismos agem
representam, produzem um corpo em
relação construtiva com os fluxos que
o atravessam” (LAGROU, 2011, p.
762). Devido à esta capacidade de
mediação entre os mundo visível e
invisível, os grafismos o
considerados por Lagrou como
“quimeras abst
ratas, a partir do
conceito de “representação quimérica
formulado por Carlo Severi (LAGROU
& SEVERI, 2013). De modo análogo,
os artefatos ameríndios apresentam
atributos agentivos baseados não na
representação dos seres, mas na
emulação de suas capacidad
o tipiti
que,para os Wayana, espreme a
mandioca tal qual uma cobra faz com
sua presa (LAGROU, 2010).
Por meio das quimeras
concebidas por Severi e Lagrou, é
possível deslizar-
se ao problema
concernente ao exercício
historiográfico da arte.Segundo
autores, as imagens quiméricas
resultam de uma interação instável
463
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
grafismos indígenas possuem também
performativo
ao tornarem o
corpo permeável aos fluxos de
alteridade. Os grafismos são como
portais” por meio dos quais o estatuto
dos corpos seria transformado, ou
seja, os grafismos agem
mais do que
representam, produzem um corpo em
relação construtiva com os fluxos que
o atravessam (LAGROU, 2011, p.
762). Devido à esta capacidade de
mediação entre os mundo visível e
invisível, os grafismos são
considerados por Lagrou como
ratas”, a partir do
conceito de representação quimérica”
formulado por Carlo Severi (LAGROU
& SEVERI, 2013). De modo análogo,
os artefatos ameríndios apresentam
atributos agentivos baseados não na
representação dos seres, mas na
emulação de suas capacidad
es, como
que,para os Wayana, espreme a
mandioca tal qual uma cobra faz com
sua presa (LAGROU, 2010).
Por meio das quimeras
concebidas por Severi e Lagrou, é
se ao problema
concernente ao exercício
historiográfico da arte.Segundo
os
autores, as imagens quiméricas
resultam de uma interação instável
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
entre atributos materiais
nos suportes físicos
e mentais
projetados por aqueles que as
percebem. No contexto
fenomenológico ameríndio, as
quimeras abstratas se caracter
“por uma tensão constitutiva entre o
que é e o que não é dado a ver
levando a economia indicial a tal ponto
que o olhar é ativamente engajado
naquilo que é dado a ver
obrigado a completar motivos que
foram apenas esboçados” (LAGROU &
SEVER
I, 2013, p. 14). Considerando a
tensão constitutiva de uma quimera
abstrata, observa-
se certa ressonância
com os estudos mais recentes de
Hans Belting (2011, p. 3), em especial,
An anthropology of images: Picture,
medium, body
, no qual o autor propõe
uma “inter-
relação (e até mesmo uma
interação) próxima e fundamental
entre imagem, corpo e
enquanto componentes de toda
tentativa de fabricação de imagens.
A partir da triangulação entre corpo,
imagem e medium
, Belting esforça
por desfazer o dualism
o entre vies
internas e externas, pondo
16
Tradução do autor para o trecho:
“interrelation (and even interaction) of image,
body, and medium as components in every
attempt at picture-making”.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
registrados
e mentais
projetados por aqueles que as
percebem. No contexto
fenomenológico ameríndio, as
quimeras abstratas se caracter
izam
por uma tensão constitutiva entre o
que é e o que não é dado a ver
,
levando a economia indicial a tal ponto
que o olhar é ativamente engajado
naquilo que é dado a ver
, sendo
obrigado a completar motivos que
foram apenas esboçados” (LAGROU &
I, 2013, p. 14). Considerando a
teno constitutiva de uma quimera
se certa ressonância
com os estudos mais recentes de
Hans Belting (2011, p. 3), em especial,
An anthropology of images: Picture,
, no qual o autor propõe
relação (e até mesmo uma
interação) próxima e fundamental
entre imagem, corpo e
medium
enquanto componentes de toda
tentativa de fabricação de imagens”.
16
A partir da triangulação entre corpo,
, Belting esforça
-se
o entre visões
internas e externas, pondo
-se a
Tradução do autor para o trecho:
interrelation (and even interaction) of image,
body, and medium as components in every
investigar as mútuas implicações entre
as imagens físicas e mentais.
A empreitada antropológica de
Belting resulta, por sua vez, do que o
autor denominou, à semelhança de
Danto, de
o fim da História da Arte
Porém, se Danto estava preocupado
em redefinir a ontologia da arte,
Belting, por sua vez, localiza
historicamente a noção ocidental de
arte, expondo alguns de seus
impasses conceituais, como atribuir a
objetos e imagens o estatuto de arte
mesmo que eles nã
concebidos originalmente como tais. O
fim a que se refere o autor baseia
na assunção da provincialização da
Europa (CHAKRABARTHY, 2000), ou
seja, na constatação da insuficiência
de um enquadramento espefico
segundo o qual uma história da
ocidental teleológica teria validade
universal, a partir de uma divisão
assimétrica do mundo entre centro e
periferia pressuposta na indissociação
entre a ideia de modernidade e sua
contraparte sombria, a colonização
(MIGNOLO, 2017).17
17
Ao nos referirmos à constatação de Mignol
(2017, p. 1), para quem “a pauta oculta (e o
lado mais escuro) da modernidade era a
colonialidade”, ecoamos sua formulação de
que o eurocentrismo é uma questão
464
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- ISSN 2237-1508
investigar as mútuas implicações entre
as imagens físicas e mentais.
A empreitada antropológica de
Belting resulta, por sua vez, do que o
autor denominou, à semelhança de
o fim da História da Arte
.
Porém, se Danto estava preocupado
em redefinir a ontologia da arte,
Belting, por sua vez, localiza
historicamente a noção ocidental de
arte, expondo alguns de seus
impasses conceituais, como atribuir a
objetos e imagens o estatuto de arte
mesmo que eles nã
o tenham sido
concebidos originalmente como tais. O
fim a que se refere o autor baseia
-se
na assunção da provincialização da
Europa (CHAKRABARTHY, 2000), ou
seja, na constatação da insuficiência
de um enquadramento específico
segundo o qual uma história da
arte
ocidental teleológica teria validade
universal, a partir de uma divisão
assimétrica do mundo entre centro e
periferia pressuposta na indissociação
entre a ideia de modernidade e sua
contraparte sombria, a colonização
Ao nos referirmos à constatação de Mignol
o
(2017, p. 1), para quem a pauta oculta (e o
lado mais escuro) da modernidade era a
colonialidade, ecoamos sua formulação de
que o eurocentrismo é uma questão
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
Paralelamente à
insuficiência de
um enquadramento ocidental, tem
valorização de novos mundos da arte
anteriormente suprimidos pelo ideal
modernista euroamericano, conforme
sugere Belting no estudo
realizado em 2011-
12 em parceria com
Andrea Buddensieg e Pe
Weibel.18
Assim, “a arte global não
apenas acelera a saída da arte
contemporânea das diretrizes de uma
história da arte linear, como também
floresce em partes do mundo onde a
história da arte nunca fora praticada ou
apenas seguia modelos coloniais”
(BELTING et alli.
, 2013, p. 184).Este
epistemológica e que a matriz colonial de
poder opera por meio de nós históricos
estruturais d
ifusos que instituem hierarquias,
sendo algumas destas transversais a esta
discussão: racial, sexual, estética, religiosa e
epistêmica. Este texto deve, com isso, ser
considerado como uma opção descolonial, isto
é, “um inexorável esforço analítico para
en
tender, com o intuito de superar, a lógica da
colonialidade por trás da retórica da
modernidade”.
18O duplo movimento de Belting
de um lado, à antropologia das imagens, e, de
outro lado, à emergência de novos mundos da
arte – provém, portanto,
de sua constatação
do fim do modernismo enquanto um
enquadramento e uma imagem específicos:
eurocêntricos, assimétricos e umbilicalmente
conectados ao colonialismo. Contudo, ao se
considerar a bienalização global compreendida
enquanto o processo de indust
rialização das
artes visuais (FRIQUES, 2016), seria posvel
indagar, com Barriendos (2015, p. 12), em que
medida a retórica da globalidade apenas
substitui aquela da modernidade, deixando
intactas “as fundações meta-
geográficas do
colonialismo”.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
insuficiência de
um enquadramento ocidental, tem
-se a
valorização de novos mundos da arte
anteriormente suprimidos pelo ideal
modernista euroamericano, conforme
sugere Belting no estudo
-exposição
12 em parceria com
Andrea Buddensieg e Pe
ter
Assim, a arte global não
apenas acelera a saída da arte
contemporânea das diretrizes de uma
história da arte linear, como também
floresce em partes do mundo onde a
história da arte nunca fora praticada ou
apenas seguia modelos coloniais”
, 2013, p. 184).Este
epistemológica e que a matriz colonial de
poder opera por meio de nós históricos
-
ifusos que instituem hierarquias,
sendo algumas destas transversais a esta
discussão: racial, sexual, estética, religiosa e
epistêmica. Este texto deve, com isso, ser
considerado como uma opção descolonial, isto
é, um inexorável esforço analítico para
tender, com o intuito de superar, a lógica da
colonialidade por trás da retórica da
em relação,
de um lado, à antropologia das imagens, e, de
outro lado, à emergência de novos mundos da
de sua constatação
do fim do modernismo enquanto um
enquadramento e uma imagem específicos:
eurocêntricos, assimétricos e umbilicalmente
conectados ao colonialismo. Contudo, ao se
considerar a bienalização global compreendida
rialização das
artes visuais (FRIQUES, 2016), seria possível
indagar, com Barriendos (2015, p. 12), em que
medida a retórica da globalidade apenas
substitui aquela da modernidade, deixando
geográficas do
diagnóstico é pertinente também para
o regime historiográfico do teatro
brasileiro. É possível, com isso,
observar o florescimento de
acontecimentos cênicos apesar de (ou
mesmo contra) um enquadramento
colonial pautado na f
descobrimento. Não à toa, os trechos
acima de Lagrou e Castro confirmam
os esforços, no âmbito da antropologia
brasileira,de reconhecer a produção
artística não ocidental e a dimeno
performativa
de situações
ritualísticas.Tais esforços evocam
ou
tra cena: a expano do teatro,
como metáfora antropológica, para
além do recorte delimitado pelo regime
historiográfico colonial.
O teatro como
antropológica
Para se compreender o uso
metafórico do teatro, consideremos o
processo de institucionali
Estudos da Performance ocorrido em
duas universidades estadunidenses
Northwestern University, em 1955, e
New York University, em 1979
capitaneadas, respectivamente, por
Wallace Bacon e Richard Schechner.
Por ora, focalizemos o segundo caso:
qu
ando o departamento de Estudos da
465
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- ISSN 2237-1508
diagnóstico é pertinente também para
o regime historiográfico do teatro
brasileiro. É possível, com isso,
observar o florescimento de
acontecimentos nicos apesar de (ou
mesmo contra) um enquadramento
colonial pautado na f
icção do
descobrimento. Não à toa, os trechos
acima de Lagrou e Castro confirmam
os esforços, no âmbito da antropologia
brasileira,de reconhecer a produção
artística não ocidental e a dimensão
de situações
ritualísticas.Tais esforços evocam
tra cena: a expansão do teatro,
como metáfora antropológica, para
além do recorte delimitado pelo regime
historiográfico colonial.
O teatro como
analogia
Para se compreender o uso
metafórico do teatro, consideremos o
processo de institucionali
zação dos
Estudos da Performance ocorrido em
duas universidades estadunidenses
Northwestern University, em 1955, e
New York University, em 1979
capitaneadas, respectivamente, por
Wallace Bacon e Richard Schechner.
Por ora, focalizemos o segundo caso:
ando o departamento de Estudos da
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
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202
Performance foi fundado, rebatizando
o programa de pós-
graduação em
Drama da NYU, Schechner já
demonstrara havia algum tempo um
forte interessante pela teoria da
performance, como comprovam o
nome de seu grupo de teatro
experimental
The Performance
Group
e também seus seminários
semestrais interdisciplinares sobre o
tema (SCHECHNER, 2012).Estes dois
deslocamentos paralelos
artes visuais e à antropologia
determinantes aos Estudos da
Performance.
De um lado,
o grupo de teatro
experimental de Schechner, em
consonância com o fértil momento
vanguardista das criações dos anos
1960 e 1970, buscava rever e
questionar, por meio de suas práticas
e apresentações, os cânones teatrais
ocidentais. Tome-
se o caso do
espetáculo Dionysus in 69.
19
público adentra a garagem, os
performers se encontram no recinto,
o orientando a se sentar onde quiser:
no chão ou nas plataformas de
madeira, de diversas alturas,
espalhadas pelo local. A
19 A análi
se aqui empreendida se baseia no
filme realizado em 1968 por Brian de Palma.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
Performance foi fundado, rebatizando
graduação em
Drama da NYU, Schechner
demonstrara havia algum tempo um
forte interessante pela teoria da
performance, como comprovam o
nome de seu grupo de teatro
The Performance
e também seus seminários
semestrais interdisciplinares sobre o
tema (SCHECHNER, 2012).Estes dois
deslocamentos paralelos
rumo à
artes visuais e à antropologia
–são
determinantes aos Estudos da
o grupo de teatro
experimental de Schechner, em
consonância com o fértil momento
vanguardista das criações dos anos
1960 e 1970, buscava rever e
questionar, por meio de suas práticas
e apresentações, os nones teatrais
se o caso do
19
Quando o
público adentra a garagem, os
performers já se encontram no recinto,
o orientando a se sentar onde quiser:
no chão ou nas plataformas de
madeira, de diversas alturas,
espalhadas pelo local. A
se aqui empreendida se baseia no
filme realizado em 1968 por Brian de Palma.
permeabilidade entre os espaços
atuação e da plateia é investigada em
muitos momentos do espetáculo,
sobretudo naqueles onde os
performers convidam todos a se
juntarem nas danças rituais das
bacantes. A porosidade se manifesta
em outros procedimentos, como
quando os performers anuncia
nomes, se distanciando de seus
personagens. Em um momento
marcante, o diálogo entre Dionísio
(William Finley) e Penteu (William
Shepherd) revela bem o
desnudamento ficcional: quando
Penteu está diante de Dionísio e
anuncia a si mesmo (Eu sou Penteu
filho de Équion e Agave), quem
responde é Finley: “Que nada. Você é
William Shepherd e pertence ao
Performance Group
”. Os figurinos, por
sua vez, antes de remeterem à Tebas
que se trata de uma livre
adaptação de
As Bacantes
compostos devestes
valorizam o acontecimento cênico por
meio da presença dos corpos despidos
dos performers. Todos estes
procedimentos convergem para uma
criação que, antes de ser uma
montagem servil do texto de
Eurípedes, revela-
se como um
466
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- ISSN 2237-1508
permeabilidade entre os espaços
de
atuação e da plateia é investigada em
muitos momentos do espetáculo,
sobretudo naqueles onde os
performers convidam todos a se
juntarem nas danças rituais das
bacantes. A porosidade se manifesta
em outros procedimentos, como
quando os performers anuncia
m seus
nomes, se distanciando de seus
personagens. Em um momento
marcante, o diálogo entre Dionísio
(William Finley) e Penteu (William
Shepherd) revela bem o
desnudamento ficcional: quando
Penteu está diante de Dionísio e
anuncia a si mesmo (“Eu sou Penteu
,
filho de Équion e Agave”), quem
responde é Finley: Que nada. Você é
William Shepherd e pertence ao
. Os figurinos, por
sua vez, antes de remeterem à Tebas
já que se trata de uma livre
As Bacantes
são
compostos devestes
neutras, que
valorizam o acontecimento cênico por
meio da presença dos corpos despidos
dos performers. Todos estes
procedimentos convergem para uma
criação que, antes de ser uma
montagem servil do texto de
se como um
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
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202
experimento teatral que
com os happenings, a
performance
art
,dentre outras táticas artísticas dos
anos 1960 e 1970
problematiza as
convenções teatrais tradicionais.
É esta abordagem experimental
da performance que nos ajuda a
estabelecer uma distinção precisa
entre os estudos da performance de
Schechner e aqueles capitaneados por
Wallace Bacon (1914-
2001), o pai dos
estudos da Performance”. Inicialmente
batizado de “Departamento de
Interpretação” e criado no seio dos
estudos de literatura inglesa, a
residência
pioneira dos Estudos da
Performance guardava íntima relação
com os textos de William
Shakespeare21
, autor pelo qual Bacon
20
Taylor (2013, p. 37) esclarece que a ênfase
conferida por estas práticas vanguardistas aos
conceitos de originalidade e de ruptura,
“reencenam as omissões de laços entre
prática
s ocidentais e não ocidentais”. Apesar
de concordarmos com a autora,
compreendendo, com Krauss (1986) que a
cópia é um dispositivo fundamental ao
discurso historiográfico da arte, pretendemos
ressaltar tão somente o questionamento
contemporâneo das normas
teatrais
tradicionais, conferindo instabilidade e
hibridismo a esta prática.
21
Nesta passagem, Bacon explicita tanto seu
interesse por Shakespeare quanto sua
perspectiva para performance baseada na
interpretação de um texto: “
Se alguém preza
pelo ensino d
a leitura de Shakespeare aos
alunos, é porque acha que Shakespeare tem
muito a dizer a todos (eles e a ele), e também
porque aprender como realizar uma
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
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202
2.
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(Fluxo contínuo)
em sintonia
performance
,dentre outras táticas artísticas dos
problematiza as
convenções teatrais tradicionais.
20
É esta abordagem experimental
da performance que nos ajuda a
estabelecer uma distinção precisa
entre os estudos da performance de
Schechner e aqueles capitaneados por
2001), o “pai dos
estudos da Performance. Inicialmente
batizado de Departamento de
Interpretação e criado no seio dos
estudos de literatura inglesa, a
pioneira dos Estudos da
Performance guardava íntima relação
com os textos de William
, autor pelo qual Bacon
Taylor (2013, p. 37) esclarece que a ênfase
conferida por estas práticas vanguardistas aos
conceitos de originalidade e de ruptura,
reencenam as omissões de laços entre
s ocidentais e não ocidentais”. Apesar
compreendendo, com Krauss (1986) que a
cópia é um dispositivo fundamental ao
discurso historiográfico da arte, pretendemos
ressaltar tão somente o questionamento
teatrais
tradicionais, conferindo instabilidade e
Nesta passagem, Bacon explicita tanto seu
interesse por Shakespeare quanto sua
perspectiva para performance baseada na
Se alguém preza
a leitura de Shakespeare aos
alunos, é porque acha que Shakespeare tem
muito a dizer a todos (eles e a ele), e também
porque aprender como realizar uma
nutria uma inegável admiração (algo
que também o conecta a Kenneth
Burke (1978), outro pioneiro dos
Estudos da Performance). Estes trê
termos
Interpretação, Literatura,
Shakespeare
muito informam a
respeito da abordagem de Bacon para
a performance: pode
exageros que seu interesse repousa
nos desafios da elocução,
compreendida enquanto uma relação
harmônica e orgânica en
intérprete e o texto, conforme se
constata na descrição abaixo:
O performer aproxima
pronto (espera
responder a ele. A resposta,
quando completa, envolve todo o
ser do performer. O que
acontece, no decorrer do ensaio
para uma apr
esentação, é o que
chamei
e ainda chamo
processo de
matching
acontece no processo de
matching
é uma fuo gradual de
dois corpos em um terceiro corpo
que se torna a performance. [...]
Texto e intérprete se encontram,
e cada vez saem um
diferentes, mas o lugar de onde
exploração completa do texto de Shakespeare
parece-
lhe a melhor maneira de aprender a
como ouvir Shakespeare
”.
para o trecho: “If one values teaching the
reading of Shakespeare to students, it is
because he thinks Shakespeare has so much
to say to them and to him, and because
learning how to enter into a full exploration of
the text of Shakesp
eare seems to him the best
way of learning how to listen to Shakespeare
(BACON, 1960, p. 152).
467
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
nutria uma inegável admiração (algo
que também o conecta a Kenneth
Burke (1978), outro pioneiro dos
Estudos da Performance). Estes trê
s
Interpretação, Literatura,
muito informam a
respeito da abordagem de Bacon para
a performance: pode
-se dizer sem
exageros que seu interesse repousa
nos desafios da elocução,
compreendida enquanto uma relação
harmônica e orgânica en
tre o
intérprete e o texto, conforme se
constata na descrição abaixo:
O performer aproxima
-se do texto
pronto (espera
-se) para
responder a ele. A resposta,
quando completa, envolve todo o
ser do performer. O que
acontece, no decorrer do ensaio
esentação, é o que
e ainda chamo
de
matching
. [...] O que
acontece no processo de
é uma fusão gradual de
dois corpos em um terceiro corpo
que se torna a performance. [...]
Texto e intérprete se encontram,
e cada vez saem um
pouco
diferentes, mas o lugar” de onde
exploração completa do texto de Shakespeare
lhe a melhor maneira de aprender a
.
Tradução nossa
para o trecho: If one values teaching the
reading of Shakespeare to students, it is
because he thinks Shakespeare has so much
to say to them and to him, and because
learning how to enter into a full exploration of
eare seems to him the best
way of learning how to listen to Shakespeare”
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
saem é criado pela interação
(BACON, 1996, p. 356
A descrição acima explicita sem
grandes rodeios o critério básico de
Bacon para a definição de sua
“estética da performance”. Enfatizando
o ensino da literatura,
a pedagogia de
Bacon tem sua raiz na elocução
oitocentista e propõe uma dupla
significância para a interpretação: a
compreensão de um texto e seu
processo enunciativo; a leitura
silenciosa e a apresentação oral.
Enquanto professor de oratória, Bacon
enfat
iza o primeiro pólo da
interpretação, retirando daí os critérios
para o ajuizamento de uma boa
performance. Em suas palavras, o
corpo, em uma boa performance,
confere proeminência ao ato corporal e
ao corpo do poema” (BACON, 1980, p.
2).
22
Tradução nossa para o trecho:
performer comes to the text ready (one hopes)
to be responsive to it. The response, when it is
full, involves the whole bein
g of the performer.
What goes on, during the course of rehearsal
for a performance, is what I have called
still call –
a process of matching. [...] What
goes on in the matching process is a gradual
merging of two bodies into a third body which
become
s performance. [...] Text and performer
meet, and each time they come out somewhat
differently, but the “place” where they come out
is created by the interaction”. Em seguida: the
body, in a good performance, gives
prominence to the body act and to the bo
the poem”.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
saem é criado pela interação
(BACON, 1996, p. 356
-7).22
A descrição acima explicita sem
grandes rodeios o critério básico de
Bacon para a definição de sua
estética da performance. Enfatizando
a pedagogia de
Bacon tem sua raiz na elocução
oitocentista e propõe uma dupla
signifincia para a interpretação: a
compreensão de um texto e seu
processo enunciativo; a leitura
silenciosa e a apresentação oral.
Enquanto professor de oratória, Bacon
iza o primeiro lo da
interpretação, retirando daí os critérios
para o ajuizamento de uma boa
performance. Em suas palavras, “o
corpo, em uma boa performance,
confere proeminência ao ato corporal e
ao corpo do poema (BACON, 1980, p.
Tradução nossa para o trecho:
The
performer comes to the text ready (one hopes)
to be responsive to it. The response, when it is
g of the performer.
What goes on, during the course of rehearsal
for a performance, is what I have called
– and
a process of matching. [...] What
goes on in the matching process is a gradual
merging of two bodies into a third body which
s performance. [...] Text and performer
meet, and each time they come out somewhat
differently, but the place where they come out
is created by the interaction. Em seguida: “the
body, in a good performance, gives
prominence to the body act and to the bo
dy of
Se a performance
favor da interpretação
como “o estudo da literatura por meio
da performance oral”
23
p. 149) –, pode-
se dizer que a
performance de Schechner seria
contra a interpretação, no sentido
proposto por Susan Sontag (1966). N
caso de Schechner, a desconfiança
em relação à interpretação é
constatada tanto pela sua trajetória no
Performance Group
diálogo, a partir de agora tematizado,
com antropólogos anglo
saxônicos.Sendo assim,no campo
circunscrito pela tensão
e antropologia, tal qual delineia Gell,
Bacon se localizaria, como o título de
um de seus ensaios bem explicita, no
polo de uma estética da
performance”, enquanto Schechner
mergulharia nos mares de uma
“antropologia da performance.
23
Tradução nossa para o trecho:
literature through the medium of oral
performance”.
24
Enquanto Wallace Bacon endossa os
fundamentos estéticos tradicionais, Erika
Fischer-
Lichte (2011), ao notar o giro
performativo das artes a
partir dos anos 1960,
aposta em uma redefinição da estética
levando em consideração tanto as
experimentações artísticas quanto a
contribuição das ciências sociais. Por este
motivo, a “estética do performativo de
Fischer-
Lichte estaria mais próxima da
468
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Se a performance
de Bacon é a
favor da interpretação
–compreendida
como o estudo da literatura por meio
23
(BACON, 1960,
se dizer que a
performance de Schechner seria
contra a interpretação, no sentido
proposto por Susan Sontag (1966). N
o
caso de Schechner, a desconfiança
em relação à interpretação é
constatada tanto pela sua trajetória no
Performance Group
quanto por seu
diálogo, a partir de agora tematizado,
com antropólogos anglo
-
saxônicos.Sendo assim,no campo
circunscrito pela tensão
entre estética
e antropologia, tal qual delineia Gell,
Bacon se localizaria, como o título de
um de seus ensaios bem explicita, no
polo de uma “estética da
performance, enquanto Schechner
mergulharia nos mares de uma
antropologia da performance”.
24
Tradução nossa para o trecho:
“the study of
literature through the medium of oral
Enquanto Wallace Bacon endossa os
fundamentos estéticos tradicionais, Erika
Lichte (2011), ao notar o giro
partir dos anos 1960,
aposta em uma redefinição da estética
levando em consideração tanto as
experimentações artísticas quanto a
contribuição das ciências sociais. Por este
motivo, a estética do performativo” de
Lichte estaria mais próxima da
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
Ao lad
o da experimentação
teatral sintonizada com as
investigações artísticas vanguardistas
do século XX, os seminários
ministrados por Schechner que
indicam uma abordagem
transdisciplinar cada vez mais saliente.
Nestes encontros ocorridos a partir de
1971 na
NYU, o fundador do
Departamento de Estudos da
Performance convidava diversos
especialistas
em especial,
antropólogos como Erving Goffman,
Victor Turner e Roberto DaMatta
“ant
ropologia da performance” de Schechner
do que a “estética da performance de Bacon.
25 Roberto DaMatta recorda-
se de uma
conferência de Victor Turner –
quem conheceu
ainda como estudante de Harvard na década
de 1960, mantendo com ele uma relação de
amizade –
ao lado de Richard Schechner em
1978, e da vinda de Turner ao Brasil em 1979,
quando ficou em sua c
asa. Repisando os
vínculos epistemológicos de Turner, DaMatta
esclarece que a centralidade do conflito em
suas obras se deve, sobretudo, a Max
Gluckman, antropólogo sul-
africano
responsável pela fundação da Escola de
Antropologia de Manchester e orientador
Turner. Gluckman dirigiu o Instituto Rhodes
Livingstone, onde Turner também trabalhou
por alguns anos. Gluckman e Turner integram
a escola antropológica britânica
parte, reconhecida por uma abordagem
estrutural-funcionalista –
composta tamb
por nomes como Radcliffe-
Brown, Evans
Pritchard, Meyer Fortes e Edmund Leach. Tais
autores desenvolveram estudos sobre rituais
africanos, considerado por Cavalcanti (2014)
como fundamentais para os estudos da
performance atuais. A propósito da
contribuição de Turner,
afirma DaMatta
mundo estava falando em estrutura e aparece
um cara que diz que a estrutura tem um outro
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
o da experimentação
teatral sintonizada com as
investigações artísticas vanguardistas
do culo XX, há os seminários
ministrados por Schechner que
indicam uma abordagem
transdisciplinar cada vez mais saliente.
Nestes encontros ocorridos a partir de
NYU, o fundador do
Departamento de Estudos da
Performance convidava diversos
em especial,
antropólogos como Erving Goffman,
Victor Turner e Roberto DaMatta
25
ropologia da performance de Schechner
do que a estética da performance” de Bacon.
se de uma
quem conheceu
ainda como estudante de Harvard na década
de 1960, mantendo com ele uma relação de
ao lado de Richard Schechner em
1978, e da vinda de Turner ao Brasil em 1979,
asa. Repisando os
vínculos epistemológicos de Turner, DaMatta
esclarece que a centralidade do conflito em
suas obras se deve, sobretudo, a Max
africano
responsável pela fundação da Escola de
Antropologia de Manchester e orientador
de
Turner. Gluckman dirigiu o Instituto Rhodes
-
Livingstone, onde Turner também trabalhou
por alguns anos. Gluckman e Turner integram
em grande
parte, reconhecida por uma abordagem
composta tamb
ém
Brown, Evans
-
Pritchard, Meyer Fortes e Edmund Leach. Tais
autores desenvolveram estudos sobre rituais
africanos, considerado por Cavalcanti (2014)
como fundamentais para os estudos da
performance atuais. A propósito da
afirma DaMatta
: “Todo
mundo estava falando em estrutura e aparece
um cara que diz que a estrutura tem um outro
para que juntos operassem uma
reconsideração da esfera teatral.Os
seminários ref
orçavam uma tendência
de aproximação entre as artes nicas
e as ciências sociais, constatada,
sobretudo, nos estudos de Goffman,
Turner e de Clifford Geertz, nos quais
se observa o uso da figura do teatro
enquanto chave antropológica das
relações sociais.
Ao compartilharem o interesse
da metáfora teatral enquanto chave
analítica de sociedades e culturas, os
três autores podem ser agrupados sob
a égide simbólica. Contudo, o aparente
interesse comum pelos processos
simbólicos esconde importantes
diferenças e
ntre as respectivas
abordagens. Tome-
se, primeiramente,
o caso de Erving Goffman, cuja
trajetória heterodoxa influenciada por
fontes literárias (incluindo
Kenneth Burke, a quem retornaremos
mais tarde) resiste a um dócil
enquadramento nas tradições
s
ociológicas existentes (MARTINS,
2011).Conforme negrita o prefácio de
lado! [...]
Toda a estrutura tem um processo
tem os interstícios”
(CAVALCANTI
p. 356). Constatações do intermbio
Turner e DaMatta se encontram na coletânea
póstuma de Turner –
The Anthropology of
Experience
organizada por Schechner, onde
se observa também o diálogo entre o autor e
Yvonne Maggie.
469
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
para que juntos operassem uma
reconsideração da esfera teatral.Os
orçavam uma tendência
de aproximação entre as artes cênicas
e as ciências sociais, constatada,
sobretudo, nos estudos de Goffman,
Turner e de Clifford Geertz, nos quais
se observa o uso da figura do teatro
enquanto chave antropológica das
Ao compartilharem o interesse
da metáfora teatral enquanto chave
analítica de sociedades e culturas, os
três autores podem ser agrupados sob
a égide simbólica. Contudo, o aparente
interesse comum pelos processos
simbólicos esconde importantes
ntre as respectivas
se, primeiramente,
o caso de Erving Goffman, cuja
trajetória heterodoxa influenciada por
fontes literárias (incluindo
-se
Kenneth Burke, a quem retornaremos
mais tarde) resiste a um dócil
enquadramento nas tradições
ociológicas existentes (MARTINS,
2011).Conforme negrita o prefácio de
Toda a estrutura tem um processo
,
(CAVALCANTI
et al., 2013,
p. 356). Constatações do intercâmbio
entre
Turner e DaMatta se encontram na coletânea
The Anthropology of
organizada por Schechner, onde
se observa também o diálogo entre o autor e
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
A Representação do Eu na vida
cotidiana
(1959), o livro do sociólogo
canadense é formulado enquanto um
manual de análise sociológica de
interações sociais específicas que
ocorrem em esta
belecimentos
domésticos, comerciais ou industriais.
O emprego da metáfora teatral é aí
fundamental:
A perspectiva empregada neste
relato é a da representação
teatral. Os princípios de que parti
são de caráter dramatúrgico.
Considerarei a maneira pela qual
o indivíduo apresenta, em
situações comuns de trabalho, a
si mesmo e a suas atividades às
outras pessoas, os meios pelos
quais dirige e regula a impressão
que formam a seu respeito e as
coisas que pode ou não fazer,
enquanto realiza seu
desempenho diante d
(GOFFMAN, 1985, p. 9).
Note-
se no fragmento acima
duas menções à performance que a
edição brasileira optou por traduzir
como “representação e
“desempenho”. Esta escolha é
reveladora por indicar a natureza de
performance considerada por
Goffman: a
representação dramática.
Daí, constatamos que o sociólogo
canadense aborda as interações
intersubjetivas ocorridas em contextos
específicos enquanto performances
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
A Representação do Eu na vida
(1959), o livro do sociólogo
canadense é formulado enquanto um
manual de análise sociológica de
interações sociais específicas que
belecimentos
domésticos, comerciais ou industriais.
O emprego da metáfora teatral é
A perspectiva empregada neste
relato é a da representação
teatral. Os prinpios de que parti
o de caráter dramatúrgico.
Considerarei a maneira pela qual
o indiduo apresenta, em
situações comuns de trabalho, a
si mesmo e a suas atividades às
outras pessoas, os meios pelos
quais dirige e regula a impressão
que formam a seu respeito e as
coisas que pode ou não fazer,
enquanto realiza seu
desempenho diante d
elas
(GOFFMAN, 1985, p. 9).
se no fragmento acima
duas menções à performance que a
edição brasileira optou por traduzir
como representação” e
desempenho. Esta escolha é
reveladora por indicar a natureza de
performance considerada por
representação dramática.
Daí, constatamos que o sociólogo
canadense aborda as interações
intersubjetivas ocorridas em contextos
espeficos enquanto performances
nas quais os indivíduos se expressam
de dois modos complementares: pela
transmissão verbal, po
são transmitidos os aspectos
controláveis; e pela emiso gestual, a
qual o emissor não detém inteiramente
o controle. Nesta cena intersubjetiva
ocorrida face-a-
face
diálogo, motor do drama absoluto
teorizado por Szondi (2001)
interação põe em funcionamento um
“jogo de informação, um ciclo
potencialmente infinito de
encobrimento, descobrimento,
revelações falsas e redescobertas”
(GOFFMAN, 1985, p. 17). Pautada por
uma dinâmica de expectativas
atendidas e frustradas
aos papeis sociais desempenhados
por cada agente, a performance seria
então “toda atividade de um
determinado participante, em dada
ocasião, que sirva para influenciar, de
algum modo, qualquer um dos outros
participantes” (GOFFMAN, 1985, p.
23).
Foca
lizando o processo
interacional, o pensamento de
Goffman descreve a vida cotidiana por
intermédio da metáfora teatral.
Contudo, por mais que o modelo
dramatúrgico seja reconhecidamente
470
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
nas quais os indivíduos se expressam
de dois modos complementares: pela
transmissão verbal, po
r meio da qual
o transmitidos os aspectos
controláveis; e pela emissão gestual, a
qual o emissor não detém inteiramente
o controle. Nesta cena intersubjetiva
face
tal qual um
diálogo, motor do drama absoluto
teorizado por Szondi (2001)
a
interação põe em funcionamento um
jogo de informação, um ciclo
potencialmente infinito de
encobrimento, descobrimento,
revelações falsas e redescobertas”
(GOFFMAN, 1985, p. 17). Pautada por
uma dinâmica de expectativas
atendidas e frustradas
em relação
aos papeis sociais desempenhados
por cada agente, a performance seria
então toda atividade de um
determinado participante, em dada
ocasião, que sirva para influenciar, de
algum modo, qualquer um dos outros
participantes” (GOFFMAN, 1985, p.
lizando o processo
interacional, o pensamento de
Goffman descreve a vida cotidiana por
intermédio da metáfora teatral.
Contudo, por mais que o modelo
dramatúrgico seja reconhecidamente
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
uma de suas contribuições mais
importantes às ciências sociais, para
Ge
ertz, seus estudos baseiam
menos na analogia teatral do que na
analogia dos jogos. Pois, visto que,
para Goffman, “o teatro é uma forma
meio estranha de jogo interativo
jogo de pingue-
pongue usando
máscaras
seu trabalho não é basica
e essencialme
nte dramatúrgico
(GEERTZ, 1997, p. 41). Jogo, texto ou
teatro, o fato é que, com o
desmoronamento das supostas
barreiras que compartimentavam os
campos disciplinares, o exercio do
cientista social e do antropólogo
aproximou-
se, nas últimas décadas, do
o
fício literário. Se há em Goffman tanto
uma menção a fontes literárias quanto
uma sensibilidade ensaística
(MARTINS, 2011), é Geertz quem
decreta, em
Mistura de gêneros:
configuração do pensamento social
queda do muro disciplinar nas ciências
sociais a
partir do uso recorrente de
analogias ao jogo, ao texto e ao teatro
por parte de sociólogos e
antropólogos.De sua parte, ele propõe,
desde a publicação de
A Interpretação
das Culturas
, um tratamento semiótico
da cultura, desviando-
se da amplitude
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
uma de suas contribuições mais
importantes às ciências sociais, para
ertz, seus estudos baseiam
-se
menos na analogia teatral do que na
analogia dos jogos. Pois, visto que,
para Goffman, o teatro é uma forma
meio estranha de jogo interativo
um
pongue usando
seu trabalho não é basica
nte dramatúrgico”
(GEERTZ, 1997, p. 41). Jogo, texto ou
teatro, o fato é que, com o
desmoronamento das supostas
barreiras que compartimentavam os
campos disciplinares, o exercício do
cientista social e do antropólogo
se, nas últimas cadas, do
fício literário. Se há em Goffman tanto
uma menção a fontes literárias quanto
uma sensibilidade ensaística
(MARTINS, 2011), é Geertz quem
Mistura de gêneros:
configuração do pensamento social
, a
queda do muro disciplinar nas ciências
partir do uso recorrente de
analogias ao jogo, ao texto e ao teatro
por parte de sociólogos e
antropólogos.De sua parte, ele propõe,
A Interpretação
, um tratamento semiótico
se da amplitude
conceitua
l tradicionalmente associada
a este termo.
Dando sua contribuição à
corrente de antropologia cultural
estadunidense inaugurada por Franz
Boas26
(e investigada por seus
discípulos reunidos em torno do grupo
Cultura e Personalidade, em especial
Ruth Benedict
e Margareth Mead
26
Uma das contribuições mais marcantes de
Boas (2015, p. 16) é
seu livro
onde, recusando a existência de uma
“mentalidade primitiva”, se esforça por
comprovar a universalidade da expressão
artística e do prazer estético decorrentes,
sobretudo, do apuro formal: O juízo da
perfeição da forma técnica é e
um juízo estético”. A abordagem formalista de
Boas não exclui o componente de significação,
sendo ambos elementos compartilhados por
todas as sociedades. É quase ao final de seu
livro que Boas registra a existência de
“performances dramáticas
compostas por danças e cantos.
27
No contexto de uma discussão sobre a
“cultura como performance, a menção aos
esforços de Mead e Benedict tem um motivo,
observar a consideração da cultura como
obra de arte”, senão vejamos como Marga
Mead, em seu prefácio de
relata o esforço conceitual de Ruth Benedict:
“Mais tarde, ela percebeu que cada cultura
primitiva representava algo comparável a uma
grande obra de arte ou de literatura, e que
seria assim que a comparaçã
de arte individuais modernas e a cultura
primitiva deveria ser feita, em vez de comparar
os desenhos riscados na borda de um pote
com o teto da Capela Sistina ou canções de
colheita de frutos com Shakespeare. Quando
apenas artes isoladas e
ram comparadas, as
culturas primitivas tinham pouco a oferecer;
mas se considerássemos essas culturas
inteiras –
a religião, a mitologia, os modos
cotidianos de homens e mulheres
consistência interna e a complexidade eram
tão esteticamente satisf
atórias para o
471
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- ISSN 2237-1508
l tradicionalmente associada
Dando sua contribuição à
corrente de antropologia cultural
estadunidense inaugurada por Franz
(e investigada por seus
discípulos reunidos em torno do grupo
Cultura e Personalidade, em especial
e Margareth Mead
27),
Uma das contribuições mais marcantes de
seu livro
Arte Primitiva,
onde, recusando a existência de uma
mentalidade primitiva, se esforça por
comprovar a universalidade da expressão
artística e do prazer estético decorrentes,
sobretudo, do apuro formal: “O juízo da
perfeição da forma técnica é e
ssencialmente
um juízo estético. A abordagem formalista de
Boas não exclui o componente de significação,
sendo ambos elementos compartilhados por
todas as sociedades. É quase ao final de seu
livro que Boas registra a existência de
performances dramáticas
” entre os Kwakiutl,
compostas por danças e cantos.
No contexto de uma discussão sobre a
cultura como performance”, a menção aos
esforços de Mead e Benedict tem um motivo,
observar a consideração da “cultura como
obra de arte, senão vejamos como Marga
reth
Mead, em seu prefácio de
Patterns of Culture,
relata o esforço conceitual de Ruth Benedict:
Mais tarde, ela percebeu que cada cultura
primitiva representava algo comparável a uma
grande obra de arte ou de literatura, e que
seria assim que a comparaçã
o entre as obras
de arte individuais modernas e a cultura
primitiva deveria ser feita, em vez de comparar
os desenhos riscados na borda de um pote
com o teto da Capela Sistina ou canções de
colheita de frutos com Shakespeare. Quando
ram comparadas, as
culturas primitivas tinham pouco a oferecer;
mas se considerássemos essas culturas
a religião, a mitologia, os modos
cotidianos de homens e mulheres
– então a
consistência interna e a complexidade eram
atórias para o
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
Geertz (2008, p. 3) propõe focalizar
“um conceito de cultura mais limitado,
mais especializado e, imagino,
teoricamente mais poderoso, para
substituir o famoso ‘o todo mais
complexo’ de E. B. Tylor”. Para isso,
ele compreende a cultura
uma teia de significados, aproximando
o exercício antropológico da crítica
literária:
Fazer a etnografia é como tentar
ler (no sentido de ‘construir uma
leitura de’) um manuscrito
estranho, desbotado, cheio de
elipses, incoerências, emendas
suspe
itas e comentários
tendenciosos, escrito não com os
sinais convencionais do som,
mas com exemplos transitórios
de comportamento modelado [...]
Os textos antropológicos o eles
mesmos interpretações e, na
verdade, de segunda e terceira
mão. [Por definição,
“nativo” faz a interpretação em
primeira mão:
é a sua cultura
Trata-
se, portanto, de ficções;
ficções no sentido de que o
“algo construído, algo
modelado”–
o sentido original de
fictio
não que sejam falsas
fatuais ou apenas experimentos
de pensamento[...] Uma boa
interpretação de qualq
um poema, uma pessoa, uma
estória, um ritual, uma instituição,
uma sociedade
cerne do que nos propomos
interpretar (GEERTZ, 2008, p. 7
13).
aspirante a explorador quanto qualquer obra
de arte ” (MEAD, 1959, p. viii).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
Geertz (2008, p. 3) propõe focalizar
um conceito de cultura mais limitado,
mais especializado e, imagino,
teoricamente mais poderoso, para
substituir o famoso o todo mais
complexo de E. B. Tylor. Para isso,
ele compreende a cultura
enquanto
uma teia de significados, aproximando
o exercio antropológico da crítica
Fazer a etnografia é como tentar
ler (no sentido de construir uma
leitura de) um manuscrito
estranho, desbotado, cheio de
elipses, incoerências, emendas
itas e comentários
tendenciosos, escrito não com os
sinais convencionais do som,
mas com exemplos transitórios
de comportamento modelado [...]
Os textos antropológicos são eles
mesmos interpretações e, na
verdade, de segunda e terceira
somente um
nativo faz a interpretação em
é a sua cultura
.]
se, portanto, de ficções;
fiões no sentido de que são
algo construído”, “algo
o sentido original de
não que sejam falsas
, não-
fatuais ou apenas experimentos
de pensamento[...] Uma boa
interpretação de qualq
uer coisa
um poema, uma pessoa, uma
estória, um ritual, uma instituição,
leva-nos ao
cerne do que nos propomos
interpretar (GEERTZ, 2008, p. 7
-
aspirante a explorador quanto qualquer obra
No trecho acima, constatamos
alguns elementos característicos da
antropologia hermenêutic
em especial, o auto
ficcional do ofício etnográfico. Ao
afirmar que o texto etnográfico é, ao
lado das demais expressões artísticas,
uma ficção, o antropólogo
estadunidense sublinha mais seu
caráter construtivo do que sua verdade
ontológica. Em outras palavras, o
discurso etnográfico
análogo à performance teatral, ao
ensaio literário, à expreso pictórica
ou ao discurso cinematográfico
revela-
se mais como um exercio
(muitas vezes fracassado, devido às
idas e vindas d
e traduções, reduções,
remissões etc.) do pensamento diante
de uma realidade social
específica.Derivam daí outras duas
características elementares da
antropologia interpretativa de Geertz:
enquanto ão simbólica, o
comportamento humano não será lido
a par
tir de um sistema fechado
codificado abstratamente pelo
antropólogo. Trilhando
antropologicamente a via filofica
pavimentada pelo segundo
Wittgenstein (1968), Geertz não
divorcia o trabalho interpretativo do
472
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
No trecho acima, constatamos
alguns elementos característicos da
antropologia hermenêutic
a de Geertz,
em especial, o auto
-desnudamento
ficcional do ofício etnográfico. Ao
afirmar que o texto etnográfico é, ao
lado das demais expressões artísticas,
uma ficção, o antropólogo
estadunidense sublinha mais seu
caráter construtivo do que sua verdade
ontológica. Em outras palavras, o
discurso etnográfico
de modo
análogo à performance teatral, ao
ensaio literário, à expressão pictórica
ou ao discurso cinematográfico
se mais como um exercício
(muitas vezes fracassado, devido às
e traduções, reduções,
remissões etc.) do pensamento diante
de uma realidade social
espefica.Derivam daí outras duas
características elementares da
antropologia interpretativa de Geertz:
enquanto ação simbólica, o
comportamento humano não será lido
tir de um sistema fechado
codificado abstratamente pelo
antropólogo. Trilhando
antropologicamente a via filosófica
pavimentada pelo segundo
Wittgenstein (1968), Geertz não
divorcia o trabalho interpretativo do
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
contexto de sua enunciação, visto que
o signif
icado é seu uso. Daí advém,
para o autor,a importância dos
performers que protagonizam uma
ação social
ocorrida em um contexto
determinado.Em suma, “a explicação
interpretativa [...] concentra
significado que instituições, ações,
imagens, elocuções, e
costumes
ou seja, todos os objetos
que normalmente interessam aos
cientistas sociais
têm para seus
‘proprietários’” (GEERTZ, 1997, p. 37).
Se no ensaio introdutório de
interpretação das culturas
, já se nota o
esforço de Geertz em provinciali
por meio de sua aproximação com as
manifestações artísticas, a pretensa
universalidade do discurso
antropológico, em
Mistura de gêneros:
configuração do pensamento social
empenho do antropólogo se acentua
de modo contundente. Aqui, Geertz
reflete
tal qual Victor Turner (2008)
a respeito da centralidade da analogia
teatral para a interpretação
antropológica dos fatos e das relações
sociais, em detrimento das metáforas
provenientes das ciências naturais. De
modo mais sistemático, ele elabora
uma es
pécie de genealogia do uso, no
âmbito das ciências sociais, das
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
contexto de sua enunciação, visto que
icado é seu uso. Daí advém,
para o autor,a importância dos
performers que protagonizam uma
ocorrida em um contexto
determinado.Em suma, a explicação
interpretativa [...] concentra
-se no
significado que instituições, ações,
imagens, elocuções, e
ventos,
ou seja, todos os objetos
que normalmente interessam aos
têm para seus
proprietários (GEERTZ, 1997, p. 37).
Se no ensaio introdutório de
A
, se nota o
esforço de Geertz em provinciali
zar,
por meio de sua aproximação com as
manifestações artísticas, a pretensa
universalidade do discurso
Mistura de gêneros:
configuração do pensamento social
,o
empenho do antropólogo se acentua
de modo contundente. Aqui, Geertz
tal qual Victor Turner (2008)
a respeito da centralidade da analogia
teatral para a interpretação
antropológica dos fatos e das relações
sociais, em detrimento das metáforas
provenientes das ciências naturais. De
modo mais sistemático, ele elabora
pécie de genealogia do uso, no
âmbito das ciências sociais, das
analogias do jogo, do texto e do teatro,
constatando, por fim, um
embaçamento das fronteiras entre este
campo e aquele das humanidades.
Mencionando os esforços de Goffman,
Turner e Burke, Geer
da relação analógica entre o teatro e a
vida social do seguinte modo:
A analogia entre vida social e
drama existe de uma forma
casual muito tempo
mundo é um palco e nós somos
nada mais que pobres atores que
se pavoneiam, etc. e
menos desde os anos 1930,
termos relacionados com o teatro
principalmente a palavra papel
aparecem como elementos
essenciais do discurso
sociológico. O que é
relativamente novo
sem precedentes
coisas. Em primeiro lug
analogia começa a ser usada
com força total, de forma extensa
e sistemática, e não de forma
esporádica e fragmentada
umas poucas alues aqui, uns
tantos tropos acolá. Em segundo,
a analogia não é mais utilizada na
forma depreciativa que
anteriorme
nte caracterizava seu
uso mais geral
espetáculo, com máscaras e
palhaçadas
forma mais estrutural e
genuinamente dramatúrgica. Na
expressão do antropólogo Victor
Turner, fazendo, e não fingindo
(GEERTZ, 1997, p. 44).
O interesse r
cientistas sociais em relação à
analogia teatral resulta de uma
473
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- ISSN 2237-1508
analogias do jogo, do texto e do teatro,
constatando, por fim, um
embaçamento das fronteiras entre este
campo e aquele das humanidades.
Mencionando os esforços de Goffman,
Turner e Burke, Geer
tz refaz a história
da relação analógica entre o teatro e a
vida social do seguinte modo:
A analogia entre vida social e
drama existe de uma forma
casual há muito tempo
“o
mundo é um palco e nós somos
nada mais que pobres atores que
se pavoneiam”, etc. e
tal. Pelo
menos desde os anos 1930,
termos relacionados com o teatro
principalmente a palavra “papel
aparecem como elementos
essenciais do discurso
sociológico. O que é
relativamente novo
novo, não
sem precedentes
são duas
coisas. Em primeiro lug
ar, a
analogia começa a ser usada
com força total, de forma extensa
e sistemática, e não de forma
esporádica e fragmentada
umas poucas alusões aqui, uns
tantos tropos acolá. Em segundo,
a analogia não é mais utilizada na
forma depreciativa que
nte caracterizava seu
uso mais geral
um mero
espetáculo, com máscaras e
e sim com uma
forma mais estrutural e
genuinamente dramatúrgica. Na
expressão do antropólogo Victor
Turner, fazendo, e não fingindo
(GEERTZ, 1997, p. 44).
O interesse r
enovado pelos
cientistas sociais em relação à
analogia teatral resulta de uma
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
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202
abolição de algumas dicotomias que
insistiam em separar o teatro e a vida
social em universos antagônicos
caracterizados respectivamente pela
mentira e pela verdade. Há aí, então
uma reconsideração da representação,
sendo esta noção compreendida
menos como uma mera cópia
ou menos fiel, mais ou menos
inteligível
do mundo do que um
artifício necessário à vida social.
Sendo assim, a força total do uso
recorrente da analogia
teatral pelos
cientistas sociais informa que a ordem
simbólica perpassa
indiscriminadamente as manifestações
culturais e sociais. Todavia,se o
mundo é como o teatro, ele o será de
distintas maneiras para cada um
destes autores anglófonos. Pensando
nisto,
Geertz observa duas tendências
distintas em relação ao uso da
metáfora teatral.
De um lado, haveria os teóricos
da ação simbólica capitaneados pelo
crítico literário Kenneth Burke, cuja
“teoria da ação simbólica compara
teatro e retórica
o drama como uma
forma de persuasão, a plataforma do
discursante como um palco
(GEERTZ, 1997, p. 45). Em 1945,
Burke lança o livro
A gramática do
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armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
abolição de algumas dicotomias que
insistiam em separar o teatro e a vida
social em universos antagônicos
caracterizados respectivamente pela
mentira e pela verdade. aí, então
,
uma reconsideração da representação,
sendo esta noção compreendida
menos como uma mera cópia
mais
ou menos fiel, mais ou menos
do mundo do que um
artifício necessário à vida social.
Sendo assim, a força total do uso
teatral pelos
cientistas sociais informa que a ordem
simbólica perpassa
indiscriminadamente as manifestações
culturais e sociais. Todavia,se o
mundo é como o teatro, ele o será de
distintas maneiras para cada um
destes autores anglófonos. Pensando
Geertz observa duas tendências
distintas em relação ao uso da
De um lado, haveria os teóricos
da ação simbólica capitaneados pelo
crítico literário Kenneth Burke, cuja
teoria da ação simbólica compara
o drama como uma
forma de persuao, a plataforma do
discursante como um palco”
(GEERTZ, 1997, p. 45). Em 1945,
A gramática do
motivos
, no qual concebe um
dispositivo de análise conhecido como
Pentead
, isto é, um sistema formado
por cinco termos inter
cujas possibilidades lógicas de
combinação e de permutação entre
eles estabeleceriam um campo de
potencialidades para a investigação
tanto das relações humanas quanto
dos meandros da linguagem. As
interações humanas, tanto quanto a
comunicaçã
o verbal, se localizariam
em um universo simbólico que Burke
analisaria sob a perspectiva do
dramatismo
, que se traduz, por sua
vez, na aplicação dos cinco termos do
Pentead
ato, cena, agente, agência
e propósito
assim descritos por
Burke:
Você deve te
r uma palavra que
nomeia o ato (nomeia o que
aconteceu, em pensamento ou
ação), e outra que nomeia a cena
(o pano de fundo do ato, a
situação em que ocorreu); além
disso, você deve indicar que
pessoa ou tipo de pessoa
(agente) executou o ato, que
meios ou
instrumentos ele usou
(agência), e o propósito [...] Seja
como for, qualquer declaração
completa sobre os motivos
oferecerá algumas dicas sobre
respostas a estas cinco questões:
o que foi feito (agir), quando ou
onde foi feito (cena), quem fez
(agente), co
mo ele fez (agência)
474
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- ISSN 2237-1508
, no qual concebe um
dispositivo de análise conhecido como
, isto é, um sistema formado
por cinco termos inter
-relacionados,
cujas possibilidades lógicas de
combinação e de permutação entre
eles estabeleceriam um campo de
potencialidades para a investigação
tanto das relações humanas quanto
dos meandros da linguagem. As
interações humanas, tanto quanto a
o verbal, se localizariam
em um universo simbólico que Burke
analisaria sob a perspectiva do
, que se traduz, por sua
vez, na aplicação dos cinco termos do
ato, cena, agente, agência
assim descritos por
r uma palavra que
nomeia o ato (nomeia o que
aconteceu, em pensamento ou
ação), e outra que nomeia a cena
(o pano de fundo do ato, a
situação em que ocorreu); além
disso, vo deve indicar que
pessoa ou tipo de pessoa
(agente) executou o ato, que
instrumentos ele usou
(agência), e o propósito [...] Seja
como for, qualquer declaração
completa sobre os motivos
oferecerá algumas dicas sobre
respostas a estas cinco questões:
o que foi feito (agir), quando ou
onde foi feito (cena), quem fez
mo ele fez (agência)
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armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
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202
e por que (propósito)
1945, p. xv).28
Originado na teoria dramática, o
dramatismo de Burke aborda
linguagem e pensamento como modos
de ação simbólica. Uma das premissas
para tal consideração é a de um
mundo cindido entre o ine
xprimível e o
exprimível, entre a dimeno privada
do corpo e aquela do mundo social,
entre natureza e cultura. Entrelaçando
simbolismo, gramática e retórica,
Burke formula uma espécie de filosofia
da linguagem que busca, por meio do
Pentead, identificar o
princípio gerativo
de situações específicas. Neste
sentido, pode-
se aventar a hipótese de
haver, em sua teoria, uma espécie de
Gestalt
do fenômeno linguístico, visto
que o crítico busca, através de um
exercício lógico de permutações e
combinações dos term
dramatismo,
identificar o prinpio
gerativo que,
por mais que seja
28
Tradução nossa para a seguinte passagem:
“[…]
You must have some word that names the
act (names what took place, in thought or
deed), and another that names the sc
background of the act, the situation in which it
occurred); also, you must indicate what person
or kind of person (agent) performed the act,
what means or instruments he used (agency),
and the purpose […] Be that as it may, any
complete statement
about motives will offer
some hind of answers to these five questions:
what was done (act), when or where it was
done (scene), who did it (agent), how he did it
(agency), and why (purpose)”.
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armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
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2.
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(Fluxo contínuo)
e por que (propósito)
(BURKE,
Originado na teoria dramática, o
dramatismo de Burke aborda
linguagem e pensamento como modos
de ação simbólica. Uma das premissas
para tal consideração é a de um
xprimível e o
exprimível, entre a dimensão privada
do corpo e aquela do mundo social,
entre natureza e cultura. Entrelaçando
simbolismo, gramática e retórica,
Burke formula uma espécie de filosofia
da linguagem que busca, por meio do
princípio gerativo
de situações espeficas. Neste
se aventar a hipótese de
haver, em sua teoria, uma espécie de
do fenômeno linguístico, visto
que o crítico busca, através de um
exercio lógico de permutações e
combinações dos term
os do
identificar o princípio
por mais que seja
Tradução nossa para a seguinte passagem:
You must have some word that names the
act (names what took place, in thought or
deed), and another that names the sc
ene (the
background of the act, the situation in which it
occurred); also, you must indicate what person
or kind of person (agent) performed the act,
what means or instruments he used (agency),
and the purpose […] Be that as it may, any
about motives will offer
some hind of answers to these five questions:
what was done (act), when or where it was
done (scene), who did it (agent), how he did it
reconhecível posteriormente à criação
de uma obra,
reside ali como seu
mecanismo estruturante
de Gonzaga (
2015
abordagem dramatística trata a
linguagem,
como em geral ela é
utilizada nos processos sociais de
cooperação e competição
aspecto da ação simbólica
Enquanto Burke (e, de certo
modo, Goffman), seria o principal
representante de uma tendência
teórica que utiliza a metáfora teatral
para investigaras ações simbólicas, de
outro lado, haveria os teóricos do
ritual29
, sendo o expoente desta
tendência a figura de Victor Turner e
seu drama social. No âmbito da
antropologia simbólica, as abordagens
de Turner e de Geertz para a metáfora
teat
ral provêm de contextos
discursivos distintos vinculados, por
sua vez, às respectivas formações dos
autores, conforme esclarece Ortner
(2011, p. 422):
29
A compreensão da abordagem ritualística de
Turner ilumina-se pe
la analogia que o mesmo
propõe entre as “poderosas transições
encontradas nas sociedades tribais
lado,
e as sociedades industriais
lado: no primeiro caso,
ele se refere aos ritos
de iniciação prolongados”
;
aos “gêne
ros ‘liminóides’ tais como a literatura
o cinema e o jornalismo sério
2008, p. 12).
475
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reconhecível posteriormente à criação
reside ali como seu
mecanismo estruturante
. Nas palavras
2015
, p. 36), “a
abordagem dramatística trata a
como em geral ela é
utilizada nos processos sociais de
cooperação e competição
, como um
aspecto da ação simbólica
.”
Enquanto Burke (e, de certo
modo, Goffman), seria o principal
representante de uma tendência
teórica que utiliza a metáfora teatral
para investigaras ações simbólicas, de
outro lado, haveria os teóricos do
, sendo o expoente desta
tendência a figura de Victor Turner e
seu drama social. No âmbito da
antropologia simbólica, as abordagens
de Turner e de Geertz para a metáfora
ral provêm de contextos
discursivos distintos vinculados, por
sua vez, às respectivas formações dos
autores, conforme esclarece Ortner
A compreensão da abordagem ritualística de
la analogia que o mesmo
propõe entre as poderosas transições”
encontradas nas sociedades tribais
, de um
e as sociedades industriais
, de outro
ele se refere aos “ritos
;
no segundo caso,
ros liminóides tais como a literatura
,
o cinema e o jornalismo sério”
(TURNER,
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202
Enquanto Geertz era influenciado
principalmente por Max Weber
(através de Talcott Parsons),
Turner era so
bretudo influenciado
por Emile Durkheim. Além disso,
Geertz claramente representa
uma transformação da
antropologia americana anterior,
debruçada principalmente sobre
as formas de operar da cultura,
enquanto Turner representa uma
transformação da antropo
britânica anterior, principalmente
debruçada sobre as formas de
operar da “sociedade.
No campo antropológico
anglófono, notamos que Geertz e
Turner, apesar do interesse
compartilhado pela analogia teatral, a
mobilizam de diferentes modos. Se o
primeiro, conforme se observou
anteriormente, insere-
se em uma
tradição antropológica estadunidense
centrada na discussão em torno do
conceito de cultura, o segundo,
formado originalmente na escola
funcional-
estruturalista britânica, lança
mão da metáfora
teatral como um
recurso epistemológico que devolve a
dimensão processual à sincronia
estrutural. Sendo assim, a teoria do
drama social endossa o caráter
processual das relações sociais,
propondo um desvio em relação às
abordagens funcional-
estruturalistas
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
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202
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(Fluxo contínuo)
Enquanto Geertz era influenciado
principalmente por Max Weber
(através de Talcott Parsons),
bretudo influenciado
por Emile Durkheim. Além disso,
Geertz claramente representa
uma transformação da
antropologia americana anterior,
debruçada principalmente sobre
as formas de operar da “cultura”,
enquanto Turner representa uma
transformação da antropo
logia
britânica anterior, principalmente
debruçada sobre as formas de
operar da sociedade”.
No campo antropológico
anglófono, notamos que Geertz e
Turner, apesar do interesse
compartilhado pela analogia teatral, a
mobilizam de diferentes modos. Se o
primeiro, conforme se observou
se em uma
tradição antropológica estadunidense
centrada na discussão em torno do
conceito de cultura, o segundo,
formado originalmente na escola
estruturalista britânica, lança
teatral como um
recurso epistemológico que devolve a
dimensão processual à sincronia
estrutural. Sendo assim, a teoria do
drama social endossa o caráter
processual das relações sociais,
propondo um desvio em relação às
estruturalistas
difundidas pela antropologia
britânica30.
A noção de drama social
concebida por Victor Turner em
meados da década de 1950 tem como
ponto de partida o conflito social, em
especial, aqueles testemunhados por
cerca de três anos pelo antropólogo
britânico em al
gumas aldeias
africanas, sobretudo em Ndembu (na
Zâmbia). A dimensão teatral da vida
social se manifestava pela presença
de uma inegável propensão ao
conflito” (TURNER, 2008, p. 28), por
meio da qual irrompiam crises públicas
que, por sua vez, davam a ver
conjunto de aspectos sociais
fundamentais. Os dramas sociais
observados por Turner lhe permitiram
destrinchar as relações sociais formais
e estruturais (parentesco, status,
classes sociais etc.); as
especificidades individuais; e,
sobretudo, a importân
dos símbolos verbais e gestuais
(TURNER, 2015, p. 10).
Enquanto unidades de
processo anarmônico ou desarmônico
(TURNER, 2008, p. 33), os dramas
30 Tenha-
se em mente que o enquadramento
da antropologia social inglesa foi fundamental
a alguns escritos de Florestan Fernandes
(2006) e Antonio Candido (2006)
476
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- ISSN 2237-1508
difundidas pela antropologia
A noção de drama social
concebida por Victor Turner em
meados da década de 1950 tem como
ponto de partida o conflito social, em
especial, aqueles testemunhados por
cerca de três anos pelo antropólogo
gumas aldeias
africanas, sobretudo em Ndembu (na
Zâmbia). A dimeno teatral da vida
social se manifestava pela presença
de uma inegável “propensão ao
conflito (TURNER, 2008, p. 28), por
meio da qual irrompiam crises públicas
que, por sua vez, davam a ver
um
conjunto de aspectos sociais
fundamentais. Os dramas sociais
observados por Turner lhe permitiram
destrinchar as relações sociais formais
e estruturais (parentesco, status,
classes sociais etc.); as
especificidades individuais; e,
sobretudo, a importân
cia comunicativa
dos mbolos verbais e gestuais
(TURNER, 2015, p. 10).
Enquanto “unidades de
processo anarmônico ou desarmônico”
(TURNER, 2008, p. 33), os dramas
se em mente que o enquadramento
da antropologia social inglesa foi fundamental
a alguns escritos de Florestan Fernandes
(2006) e Antonio Candido (2006)
.
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PragMATIZES - Revista Latino-
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202
sociais são compostos por quatro
etapas observáveis. Tudo começa com
a ruptura, durante a qu
al o abaladas
as relações formais regidas por
normas sociais. Instaura-
se uma crise
que dificilmente será ignorada e que
deverá ser amenizada por meio de
uma ação corretiva e/ou restauradora.
Esta ação pode ser de variadas
naturezas (legal, militar, reli
cultural etc.), se manifestando por
meio de processos judiciais ou até
mesmo de performances culturais e/ou
rituais. Caso a ação seja bem
sucedida, ocorre a reintegração social;
do contrário, reconhece
impossibilidade de uma recuperação
harmôni
ca, advindo daí a clivagem
social. Formada por estas quatro
fases, a unidade processual é
denominada de drama social por
Turner (2015, p. 10-
12), devido às
óbvias semelhanças que estes
conflitos apresentam com a forma
dramática tradicional:
Ninguém poderia
deixar de notar
a analogia, de fato a homologia,
entre as sequências de eventos
supostamente “espontâneos” que
evidenciavam plenamente as
tensões existentes naquelas
aldeias e a “forma processual
característica do drama ocidental,
de Aristóteles em diant
saga e dos épicos ocidentais,
embora em escala limitada ou em
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armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
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2.
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(Fluxo contínuo)
sociais o compostos por quatro
etapas observáveis. Tudo começa com
al são abaladas
as relações formais regidas por
se uma crise
que dificilmente será ignorada e que
deverá ser amenizada por meio de
uma ação corretiva e/ou restauradora.
Esta ação pode ser de variadas
naturezas (legal, militar, reli
giosa,
cultural etc.), se manifestando por
meio de processos judiciais ou até
mesmo de performances culturais e/ou
rituais. Caso a ação seja bem
-
sucedida, ocorre a reintegração social;
do contrário, reconhece
-se a
impossibilidade de uma recuperação
ca, advindo daí a clivagem
social. Formada por estas quatro
fases, a unidade processual é
denominada de drama social por
12), devido às
óbvias semelhanças que estes
conflitos apresentam com a forma
deixar de notar
a analogia, de fato a homologia,
entre as sequências de eventos
supostamente espontâneos” que
evidenciavam plenamente as
tenes existentes naquelas
aldeias e a forma processual”
característica do drama ocidental,
de Aristóteles em diant
e, ou da
saga e dos épicos ocidentais,
embora em escala limitada ou em
miniatura. Acima de tudo,
ninguém poderia deixar de
reconhecê-
lo quando o tempo
dramático” toma o lugar da vida
social rotineira [...] O drama social
é o modo agonístico primordial e
perene [...].
A centralidade da forma
dramática aristotélica para a teoria
antropológica de Turner faz com que o
autor observe sua manifestação em
todas as dimensões da organização
social, das famílias ao Estado.As
performances culturais (dentre as
quais,
se destacam o teatro, os rituais
tribais e até mesmo os programas
televisivos) não estariam excluídas
daí, correspondendo a fases
determinadas de dramas sociais mais
amplos, atuando como mecanismos de
reparação, seja para reivindicar
direitos, refletir sob
re os processos,
retratar conflitos etc. Sendo assim,
uma performance teatral funcionaria
como um
drama em segunda
instância
, na medida em que sua
cadeia dramática estaria inserida em
outra homóloga. “As raízes do teatro,
atesta Turner (2015, p. 13),prov
drama social, e o drama social se
encaixa bem com a abstração de
Aristóteles sobre a forma dramática
das obras dos dramaturgos gregos.
477
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
miniatura. Acima de tudo,
ninguém poderia deixar de
lo quando o “tempo
dramático toma o lugar da vida
social rotineira [...] O drama social
é o modo agonístico primordial e
A centralidade da forma
dramática aristotélica para a teoria
antropológica de Turner faz com que o
autor observe sua manifestação em
todas as dimenes da organização
social, das famílias ao Estado.As
performances culturais (dentre as
se destacam o teatro, os rituais
tribais e até mesmo os programas
televisivos) não estariam excluídas
daí, correspondendo a fases
determinadas de dramas sociais mais
amplos, atuando como mecanismos de
reparação, seja para reivindicar
re os processos,
retratar conflitos etc. Sendo assim,
uma performance teatral funcionaria
drama em segunda
, na medida em que sua
cadeia dramática estaria inserida em
outra homóloga. As raízes do teatro”,
atesta Turner (2015, p. 13),“prov
êm do
drama social, e o drama social se
encaixa bem com a abstração de
Aristóteles sobre a forma dramática
das obras dos dramaturgos gregos”.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
Enquanto ão reparadora, as
performances culturais teriam como
propósito maior atribuir significados
aos conflito
s sociais: “Todo tipo de
performance cultural, incluindo os
rituais, as cerimônias, o carnaval, o
teatro e a poesia, é em si uma análise
e uma explicação da vida [...] Uma
performance, portanto, é o apropriado
finale
de uma experiência” (TURNER,
2015, p. 15-
16). Uma performance
seria um esforço de significação dos
conflitos e das crises que constituem a
experiência social. A performance
completaria esta experiência através
do esforço reflexivo, simbólico e
hermenêutico, sem o qual ela se
manteria inacabada.
Mesmo aqueles
experimentos teatrais que se desviam
do modelo aristotélico, acabariam por
o reforçar, na medida em que
constituem a etapa de reparação em
uma estrutura dramática mais ampla,o
drama social.Turner, com isso, aposta
em uma relação dialética en
reflexividade, sendo o drama estético
um modo de (auto)entendimento do
drama social. Nesse sentido, ele
parece tangenciar a antropologia
interpretativa de Geertz,
compreendendo a performance como
um “metacomentário social, isto é,
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
Enquanto ão reparadora, as
performances culturais teriam como
propósito maior atribuir significados
s sociais: Todo tipo de
performance cultural, incluindo os
rituais, as cerimônias, o carnaval, o
teatro e a poesia, é em si uma análise
e uma explicação da vida [...] Uma
performance, portanto, é o apropriado
de uma experiência (TURNER,
16). Uma performance
seria um esforço de significação dos
conflitos e das crises que constituem a
experiência social. A performance
completaria esta experiência através
do esforço reflexivo, simbólico e
hermenêutico, sem o qual ela se
Mesmo aqueles
experimentos teatrais que se desviam
do modelo aristotélico, acabariam por
o reforçar, na medida em que
constituem a etapa de reparação em
uma estrutura dramática mais ampla,o
drama social.Turner, com isso, aposta
em uma relação dialética en
tre fluxo e
reflexividade, sendo o drama estético
um modo de (auto)entendimento do
drama social. Nesse sentido, ele
parece tangenciar a antropologia
interpretativa de Geertz,
compreendendo a performance como
um metacomentário social”, isto é,
“uma reencen
ação interpretativa de
sua experiência” (TURNER, 2015, p.
147-
8). A performance seria então
menos um reflexo do que uma reflexão
sobre a realidade. O teatro, por sua
vez, seria
uma hipertrofia, um exagero do
processo jurídico e ritual; não se
trata de uma
simples reprodução
de todo o processo natural do
drama social. Assim, há no teatro
algo do caráter investigativo,
julgador e apunitivo da lei em
ação”, e algo do caráter sagrado,
mítico, numinoso ou mesmo
“sobrenatural” da ação religiosa
podendo cu
lminar em sacrifício
(TURNER, 2015, p. 13
O amplo campo de aplicação do
drama social de Turner é também a
principal ressalva de uma teoria que
possui o risco de ser transformar,
segundo Geertz (1997, p. 46) em uma
fórmula para todas as estações”.
preciso atestar os limites do
enquadramento aristotélico de Turner
para toda sorte de acontecimentos
sociais ocidentais e não
sem deixar, paralelamente, de se
reconhecer a exteno de seus
esforços teóricos. Pois, Turner chega
ao ponto de, ao
lado de Schechner
31
“Tanto Schechner quanto eu vislumbramos o
teatro como um meio importante para a
transmissão intercultural das modalidades de
experiência levadas a cabo dolorosamente.
[...] As etnografias, as literaturas, os rituais e
478
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
ação interpretativa de
sua experiência (TURNER, 2015, p.
8). A performance seria então
menos um reflexo do que uma reflexão
sobre a realidade. O teatro, por sua
uma hipertrofia, um exagero do
processo jurídico e ritual; não se
simples reprodução
de todo o processo “natural” do
drama social. Assim, no teatro
algo do caráter investigativo,
julgador e até punitivo da “lei em
ação, e algo do caráter sagrado,
mítico, numinoso ou mesmo
sobrenatural da ação religiosa
lminar em sacrifício
(TURNER, 2015, p. 13
-14).
O amplo campo de aplicação do
drama social de Turner é também a
principal ressalva de uma teoria que
possui o risco de ser transformar,
segundo Geertz (1997, p. 46) em “uma
fórmula para todas as estações”.
É
preciso atestar os limites do
enquadramento aristotélico de Turner
para toda sorte de acontecimentos
sociais ocidentais e não
-ocidentais,
sem deixar, paralelamente, de se
reconhecer a extensão de seus
esforços teóricos. Pois, Turner chega
lado de Schechner
31,
Tanto Schechner quanto eu vislumbramos o
teatro como um meio importante para a
transmissão intercultural das modalidades de
experiência levadas a cabo dolorosamente.
[...] As etnografias, as literaturas, os rituais e
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
encenar a etnografia, transformando
“dados etnográficos adequados em
roteiros de teatro” (2015, p. 128
9).Esta colaboração sugere a
revelação do antropólogo como um
performer
que busca reencenar
situações alheias à sua cultura e
aprend
e, simultaneamente, a olhá
do ponto de vista de outra: um pouco à
maneira do ator de de que fala o
grande Zeami, que, para julgar o
próprio jogo, deve aprender a ver a si
próprio como se fosse espectador
(LEVI-
STRAUSS, 2012, p. 29).Ao
invés de obse
rvar à distância o
espetáculo do mundo, o antropólogo,
este observador profissional, ao lançar
mão da analogia teatral, revela
mesmo como um
performer
não é a única implicação deste
movimento de reinscrição.
O espetáculo do mundo descolon
O percurso antropológico de
investigação pela chave teatral conduz
a um redimensionamento do próprio
teatro. Com sua natureza
transdisciplinar, os estudos da
as tradições teatrais do mundo hoj
encontram-
se, através da performance,
abertos para nós como a base de uma nova
síntese transcultural comunicativa (TURNER,
2015, p. 23).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
encenar a etnografia, transformando
dados etnográficos adequados em
roteiros de teatro (2015, p. 128
-
9).Esta colaboração sugere a
revelação do antropólogo como um
que busca reencenar
situações alheias à sua cultura e
e, simultaneamente, “a olhá
-la
do ponto de vista de outra: um pouco à
maneira do ator de nô de que fala o
grande Zeami, que, para julgar o
próprio jogo, deve aprender a ver a si
próprio como se fosse espectador”
STRAUSS, 2012, p. 29).Ao
rvar à distância o
espetáculo do mundo, o antropólogo,
este observador profissional, ao lançar
mão da analogia teatral, revela
-se ele
performer
. Mas esta
não é a única implicação deste
O espetáculo do mundo descolon
ial
O percurso antropológico de
investigação pela chave teatral conduz
a um redimensionamento do próprio
teatro. Com sua natureza
transdisciplinar, os estudos da
as tradições teatrais do mundo hoj
e
se, atras da performance,
abertos para nós como a base de uma nova
síntese transcultural comunicativa” (TURNER,
performance funcionam como a
epítome deste movimento de
reinscrição que responde ao duplo
ques
tionamento da tradição
hegemônica teatral eurocêntrica
encontrado nas performances
artísticas contemporâneas e nos rituais
amefricanos e ameríndios registrados
pela etnologia. A cesura colonial que
dispunha em polos opostos e
assimétricos a prática teatral
de um lado, e as performances rituais
amefricanas e ameríndias, de outro
lado, é redesenhada em um
movimento do pensamento que os
considera como partes integrantes e
não desprezíveis do espetáculo do
mundo.Neste âmbito, tudo (e nada) é
ação, de
sempenho, performance,
performatividade. Segundo Schechner
(2003, p. 27),
Toda gama de experiências,
compreendidas pelo
desenvolvimento individual da
pessoa humana, pode ser
estudado como performance. Isto
inclui eventos de larga escala,
tais como lutas s
revoluções e atos políticos. Toda
ação, não importa quão pequena
ou açambarcadora, consiste em
comportamentos duplamente
exercidos.
Este trecho revela duas
questões correlatas essenciais à teoria
479
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
performance funcionam como a
epítome deste movimento de
reinscrição que responde ao duplo
tionamento da tradição
hegemônica teatral eurocêntrica
encontrado nas performances
artísticas contemporâneas e nos rituais
amefricanos e ameríndios registrados
pela etnologia. A cesura colonial que
dispunha em polos opostos e
assimétricos a prática teatral
ocidental,
de um lado, e as performances rituais
amefricanas e ameríndias, de outro
lado, é redesenhada em um
movimento do pensamento que os
considera como partes integrantes e
não desprezíveis do espetáculo do
mundo.Neste âmbito, tudo (e nada) é
sempenho, performance,
performatividade. Segundo Schechner
Toda gama de experiências,
compreendidas pelo
desenvolvimento individual da
pessoa humana, pode ser
estudado como performance. Isto
inclui eventos de larga escala,
tais como lutas s
ociais,
revoluções e atos políticos. Toda
ação, não importa quão pequena
ou açambarcadora, consiste em
comportamentos duplamente
Este trecho revela duas
questões correlatas essenciais à teoria
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
da performance de Schechner
primeiro lugar, su
a proposição teórica,
tal qual a de Gell, estimula um
tratamento performativo das coisas,
desvendando suas agências. À
abolição da separação entre sujeitos e
objetos, corresponde também a
consideração de qualquer ação
humana como
um comportamento
restaurado
, isto é, enquanto um
conjunto de atitudes e gestos que,
longe de ser realizado pela primeira
vez por um indivíduo, se integra
sempre em uma malha processual de
repetições, ensaios, normas,
treinamentos, codificações,
simbolizações e socializações. O
carát
er duplamente exercido
caracteriza a performatividade, visto
que esta “baseia-
se na crença de que
a manutenção do
status quo
reprodução de hierarquias sociais
32
Patrice Pavis (1999), ao refletir sobre a
Antropologia Teatral associada a Eugenio
Barba e Jerzy Grotowski, parte
justamente da
perspectiva convergente de Schechner, para
quem tem ocorrido um movimento duplo de
antropologização do teatro e de teatralização
da antropologia. Contudo, ao estabelecerem
uma clivagem entre etnocenologia e teatro
antropológico – sendo a prim
eira o campo de
investigação de “práticas espetaculares do
mundo inteiro” (p. 152) enquanto que o
segundo “não se refere às formas
espetaculares não europeias” (p. 374)
e os adeptos da antropologia teatral ainda
operam no corte epistemológico que
ensaio problematiza.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
da performance de Schechner
32. Em
a proposição teórica,
tal qual a de Gell, estimula um
tratamento performativo das coisas,
desvendando suas agências. À
abolição da separação entre sujeitos e
objetos, corresponde também a
consideração de qualquer ão
um comportamento
, isto é, enquanto um
conjunto de atitudes e gestos que,
longe de ser realizado pela primeira
vez por um indivíduo, se integra
sempre em uma malha processual de
repetições, ensaios, normas,
treinamentos, codificações,
simbolizações e socializações. O
er duplamente exercido
caracteriza a performatividade, visto
se na crença de que
status quo
, isto é, a
reprodução de hierarquias sociais
Patrice Pavis (1999), ao refletir sobre a
Antropologia Teatral associada a Eugenio
justamente da
perspectiva convergente de Schechner, para
quem tem ocorrido um movimento duplo de
antropologização do teatro e de teatralização
da antropologia. Contudo, ao estabelecerem
uma clivagem entre etnocenologia e teatro
eira o campo de
investigação de práticas espetaculares do
mundo inteiro (p. 152) enquanto que o
segundo não se refere às formas
espetaculares não europeias (p. 374)
–, Pavis
e os adeptos da antropologia teatral ainda
operam no corte epistemológico que
este
relativas à raça, gênero, sexualidade,
é obtida pela repetição de normas
performativas
(YUDICE, 2013, p. 74).
Por meio da performatividade, opera
se, portanto, a desmistificação
ontológica de conceitos e
pressupostos tidos como verdades
universais e absolutas, como propõe
Judith Butler a propósito do gênero
sexual:
Esses atos, gestos e atu
entendidos em termos gerais, o
performativos, no sentido de que
a essência ou identidade que por
outro lado pretendem expressar
são fabricações manufaturadas e
sustentadas por signos corpóreos
e outros meios discursivos. O fato
de o corpo gênero s
pelo performativo sugere que ele
não tem status ontológico
separado dos vários atos que
constituem sua realidade. Isso
também sugere que, se a
realidade é fabricada como uma
essência interna, essa própria
interioridade é efeito e função de
um di
scurso decididamente social
e público, da regulação pública
da fantasia pela política de
superfície do corpo, do controle
da fronteira do gênero que
diferencia interno de externo e,
assim, institui a integridade do
sujeito (BUTLER, 2017, p. 235).
Sendo
performatividade de gênero não é algo
exclusivo às travestis e transexuais.O
que estes sujeitos são capazes de
revelar, por meio de recursos
480
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
relativas à raça, gênero, sexualidade,
é obtida pela repetição de normas
(YUDICE, 2013, p. 74).
Por meio da performatividade, opera
-
se, portanto, a desmistificação
ontológica de conceitos e
pressupostos tidos como verdades
universais e absolutas, como propõe
Judith Butler a propósito do gênero
Esses atos, gestos e atu
ações,
entendidos em termos gerais, são
performativos, no sentido de que
a essência ou identidade que por
outro lado pretendem expressar
o fabricações manufaturadas e
sustentadas por signos corpóreos
e outros meios discursivos. O fato
de o corpo gênero s
er marcado
pelo performativo sugere que ele
não tem status ontológico
separado dos vários atos que
constituem sua realidade. Isso
também sugere que, se a
realidade é fabricada como uma
essência interna, essa própria
interioridade é efeito e função de
scurso decididamente social
e público, da regulação pública
da fantasia pela política de
superfície do corpo, do controle
da fronteira do gênero que
diferencia interno de externo e,
assim, institui a “integridade” do
sujeito (BUTLER, 2017, p. 235).
Sendo
assim, a
performatividade de gênero não é algo
exclusivo às travestis e transexuais.O
que estes sujeitos são capazes de
revelar, por meio de recursos
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
paródicos e alegóricos, é a comédia
humana da impossibilidade de
incorporação plena das normas
heterossexu
ais.Daí, é possível atestar
a importância dos estudos da
performance e da performatividade
para os processos de
desidentificação
dos estereótipos sociais, uma vez que
gênero, raça, etnia, identidade e
comunidade são dispositivos
historicamente formulados q
performaticamente sobre os corpos
por meio de enunciados discursivos e
não discursivos,os situando através de
segmentações e exclusões
constitutivas.É precisamente para esta
condição performativa das normas
sociais e econômicas que Butler
(2019)
se dirige mais recentemente, ao
refletir sobre a distribuição desigual da
precariedade induzida pela aceleração
da desigualdade global. Neste
empreendimento, a origem linguística
da performatividade de gênero cede
passagem à sua dimensão corporal, a
parti
r da constatação do poder
performativo de noções como a de
“povo”, por meio das quais se distribui
desigualmente a cidadania. Frente aos
apagamentos decorrentes da
distribuição diferencial da condição
precária, emergem performatividades
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
paródicos e alegóricos, é a comédia
humana da impossibilidade de
incorporação plena das normas
ais.Daí, é possível atestar
a importância dos estudos da
performance e da performatividade
desidentificação
dos estereótipos sociais, uma vez que
gênero, raça, etnia, identidade e
comunidade o dispositivos
historicamente formulados q
ue incidem
performaticamente sobre os corpos
por meio de enunciados discursivos e
não discursivos,os situando através de
segmentações e exclusões
constitutivas.É precisamente para esta
condição performativa das normas
sociais e econômicas que Butler
se dirige mais recentemente, ao
refletir sobre a distribuição desigual da
precariedade induzida pela aceleração
da desigualdade global. Neste
empreendimento, a origem linguística
da performatividade de gênero cede
passagem à sua dimensão corporal, a
r da constatação do poder
performativo de noções como a de
povo, por meio das quais se distribui
desigualmente a cidadania. Frente aos
apagamentos decorrentes da
distribuição diferencial da condição
preria, emergem performatividades
corporificadas e pl
urais pautadas por
práticas sociais de resistência que
reivindicam, em assembleias e
movimentos sociais, o direito a ter
direitos.
A performatividade plural e
corpórea de que fala Butler afirma uma
postura epistemológica que considera
a “cultura como perfo
(FISCHER-
LICHTE, 2005, p. 73): tanto
as performances das proibições
quanto as performances das
transgressões e das transculturações
(TAYLOR, 2013, p. 81).Estes dois
polos, ao invés de se organizarem
dicotomicamente, são como faces de
um mesmo ser,
transgressões não raro se revelam
como paródias33
performativas das
interdições. Consequentemente, o
regime historiográfico colonial
delineado acima não comunica apenas
a história da implementação
inexequível do teatro europeu no
âmbito de um
colonialista” (SANTIAGO, 2019, p. 28).
Ele reencena as interdições coloniais
às performatividades alheias ao
33
Muitos autores irão enfatizar a importância
da paródia como dispositivo revelador das
performatividades, como Taylor (2013), Butler
(2017) e Santiago (2019).
481
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
urais pautadas por
práticas sociais de resistência que
reivindicam, em assembleias e
movimentos sociais, o direito a ter
A performatividade plural e
corpórea de que fala Butler afirma uma
postura epistemológica que considera
a cultura como perfo
rmance”
LICHTE, 2005, p. 73): tanto
as performances das proibições
quanto as performances das
transgressões e das transculturações
(TAYLOR, 2013, p. 81).Estes dois
polos, ao invés de se organizarem
dicotomicamente, o como faces de
um mesmo ser,
visto que as
transgressões não raro se revelam
performativas das
interdições. Consequentemente, o
regime historiográfico colonial
delineado acima não comunica apenas
a história da implementação
inexequível do teatro europeu no
âmbito de um
renascimento
colonialista (SANTIAGO, 2019, p. 28).
Ele reencena as interdições coloniais
às performatividades alheias ao
Muitos autores irão enfatizar a importância
da paródia como dispositivo revelador das
performatividades, como Taylor (2013), Butler
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
eurocentrismo. Como pontua Taylor
(2013, p. 68),
O momento inaugural do
colonialismo nas Américas
introduz dois movimentos
discursivos
que contribuem para
desvalorizar a performance
nativa, mesmo enquanto os
colonizadores estavam
profundamente empenhados em
seu próprio projeto performativo
de criar uma “nova” Espanha a
partir de uma imagem
(idealizada) da antiga: (1) a
rejeição das tra
performance indígena como
episteme; e (2) a rejeição do
“conteúdo” (crença religiosa)
como sendo objetos mais ou
idolatria.
Com isso, é possível acessar a
história do teatro brasileiro no âmbito
de um contexto performático maior: a
performatizaç
ão da modernidade
colonial. Consequentemente, não
causa espanto que o regime
historiográfico colonial do teatro
brasileiro registre a presença de
formas teatrais, como o drama e a
comédia oitocentistas, nas quais se
encontra a representação
subalternizada
de indígenas e negros,
que, selvagens ou cativos, revoltados
ou obedientes, são sempre
condenados ao desaparecimento (pela
via da morte ou do adestramento)
(AZEVEDO, 2012; MENDES, 1982).
Nem que, no final deste mesmo
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
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202
2.
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(Fluxo contínuo)
eurocentrismo. Como pontua Taylor
O momento inaugural do
colonialismo nas Américas
introduz dois movimentos
que contribuem para
desvalorizar a performance
nativa, mesmo enquanto os
colonizadores estavam
profundamente empenhados em
seu próprio projeto performativo
de criar uma nova Espanha a
partir de uma imagem
(idealizada) da antiga”: (1) a
rejeição das tra
dições de
performance indígena como
episteme; e (2) a rejeição do
conteúdo (crença religiosa)
como sendo objetos mais ou
Com isso, é posvel acessar a
história do teatro brasileiro no âmbito
de um contexto performático maior: a
ão da modernidade
colonial. Consequentemente, não
causa espanto que o regime
historiográfico colonial do teatro
brasileiro registre a presença de
formas teatrais, como o drama e a
comédia oitocentistas, nas quais se
encontra a representação
de indígenas e negros,
que, selvagens ou cativos, revoltados
ou obedientes, o sempre
condenados ao desaparecimento (pela
via da morte ou do adestramento)
(AZEVEDO, 2012; MENDES, 1982).
Nem que, já no final deste mesmo
século XIX, proliferem comentários e
teorias científicas para quem o Brasil
seria um “espetáculo brasileiro da
miscigenação” (SCHWARCZ, 1993, p.
15). Alternativamente, os estudos da
performance mais recentes, mesmo
que sob acusação de imperialismo
buscam registrar os processos de
permanênc
ia, de transformação e de
resistência de teatralidades
excêntricas a uma historiografia
colonial, como os congados, os
reinados, o candomblé, a umbanda, a
capoeira, o nego fugido, o carnaval, os
rituais indígenas, dentre diversos
outros.
34
Registrada nas páginas da
Review, a discussão a re
speito do
imperialismo dos Estudos da Performance
surge em 2006 com a provocação de Jon
McKenzie (2006) ao relatar certa dominância
institucional do campo nas instituições
estadunidenses e também por meio da língua
inglesa. De nossa parte, como o fluxo do
ensaio indica, mobilizamos os
enquadramentos coloniais
também da constatação de Chakrabarthy
(2000) quanto à sua indispensabilidade e
inadequação. A importância dos Estudos da
Performance no Brasil se faz notar, sobretudo,
por meio de N
úcleos de Investigação que
estabelecem diál
ogos com o departamento da
NYU, em especial:
Núcleo de Antropologia
Performance e Drama (
NAPEDRA
liderado por John Dawsey
das performances afro-
ameríndias
da UNIRIO,
liderado por Zeca Ligiéro
Programa de Pós-Gradua
ção Interdisciplinar
em Estudos das Performances Culturais da
UFG; e o Núcleo Experimental de
Performance (PPGAC-
UFRJ), liderado por
Eleonora Fabião e Adriana Schneider.
482
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
culo XIX, proliferem comentários e
teorias científicas para quem o Brasil
seria um espetáculo brasileiro da
miscigenação (SCHWARCZ, 1993, p.
15). Alternativamente, os estudos da
performance mais recentes, mesmo
que sob acusação de imperialismo
34,
buscam registrar os processos de
ia, de transformação e de
resistência de teatralidades
exntricas a uma historiografia
colonial, como os congados, os
reinados, o candomb, a umbanda, a
capoeira, o nego fugido, o carnaval, os
rituais indígenas, dentre diversos
Registrada nas páginas da
Theatre Drama
speito do
imperialismo dos Estudos da Performance
surge em 2006 com a provocação de Jon
McKenzie (2006) ao relatar certa dominância
institucional do campo nas instituições
estadunidenses e também por meio da língua
inglesa. De nossa parte, como o fluxo do
ensaio indica, mobilizamos os
enquadramentos coloniais
em rasura, a partir
também da constatação de Chakrabarthy
(2000) quanto à sua indispensabilidade e
inadequação. A importância dos Estudos da
Performance no Brasil se faz notar, sobretudo,
úcleos de Investigação que
ogos com o departamento da
Núcleo de Antropologia
,
NAPEDRA
), da USP,
liderado por John Dawsey
; Núcleo de estudos
ameríndias
(NEPAA),
liderado por Zeca Ligiéro
;
ção Interdisciplinar
em Estudos das Performances Culturais da
UFG; e o Núcleo Experimental de
UFRJ), liderado por
Eleonora Fabião e Adriana Schneider.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
O deslocamento de
modelo colonial teatral às teatralidades
amefricanas e ameríndias não é
realizado em sacrifício do próprio fazer
teatral. O Teatro Negro Brasileiro é um
caso em pauta. Se Roger Bastide
(1983), ainda na década de 1970,
identificando duas formas teat
distintas (o “folclórico e o
“experimental”), observava a
emergência do teatro negro brasileiro
como emblema de uma crise mundial
do teatro e sua tentativa mesma de
superação, os estudos de Leda Maria
Martins realizados duas décadas
depois demonst
ram exemplarmente o
estabelecimento de férteis vasos
comunicantes entre teatralidades
amefricanas. Como bem negrita a
autora, “a cultura negra desenha
no Brasil e nos Estados Unidos, por
meio de uma persistente teatralidade,
dramatizando em variadas fo
atividades, a experiência do negro nas
Américas” (MARTINS, 1995, p. 51).
Uma vez constatada as perenidade e
maleabilidade das teatralidades
negras, resta investigar as formas que
elas adquirem em performances e
rituais, de modo a empreender, em
segu
ida, a análise comparativa de
textos emblemáticos do Teatro Negro
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
O deslocamento de
foco do
modelo colonial teatral às teatralidades
amefricanas e ameríndias não é
realizado em sacrifício do próprio fazer
teatral. O Teatro Negro Brasileiro é um
caso em pauta. Se Roger Bastide
(1983), ainda na cada de 1970,
identificando duas formas teat
rais
distintas (o folclórico” e o
experimental), já observava a
emergência do teatro negro brasileiro
como emblema de uma crise mundial
do teatro e sua tentativa mesma de
superação, os estudos de Leda Maria
Martins realizados duas décadas
ram exemplarmente o
estabelecimento de férteis vasos
comunicantes entre teatralidades
amefricanas. Como bem negrita a
autora, a cultura negra desenha
-se,
no Brasil e nos Estados Unidos, por
meio de uma persistente teatralidade,
dramatizando em variadas fo
rmas e
atividades, a experiência do negro nas
Américas (MARTINS, 1995, p. 51).
Uma vez constatada as perenidade e
maleabilidade das teatralidades
negras, resta investigar as formas que
elas adquirem em performances e
rituais, de modo a empreender, em
ida, a análise comparativa de
textos emblemáticos do Teatro Negro
na América. Daí advém a eleição do
orixá Exu
senhor das encruzilhadas,
das multiplicidades e das
indeterminações
, como uma
categoria norteadora da análise, sendo
este um “operador semânt
alteridade africana na sua interseção
cultural nos Novos Mundos”
(MARTINS, 1995, p. 56). Por
intermédio de Exu, Martins identifica
procedimentos que estruturam o fazer
teatral negro, como a estratégia da
dupla fala, o jogo das aparências, o
cruzame
nto dialógico e discursivo das
culturas, o mascaramento gnico, o
entrelugar
da ilusão semiótica nas
suas vias de representação
(MARTINS, 1995, p. 201).
Cartografar os fluxos e refluxos
entre os diversos tipos de teatralidades
amefricanas e ameríndias é
postura artístico
compartilhada por muitos artistas e
pesquisadores contemporâneos. Além
disso, se, no âmbito historiográfico
colonial, “só como escravo ou ex
escravo é que o negro oferecia
interesse dramático. Simplesmente
como homem, n
ão” (MENDES, 1982,
p. 197) e, ainda, se mesmo o Teatro
Experimental do Negro (TEN), fundado
por Abdias Nascimento em 1944,
483
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
na América. Daí advém a eleição do
senhor das encruzilhadas,
das multiplicidades e das
, como uma
categoria norteadora da análise, sendo
este um operador semânt
ico da
alteridade africana na sua interseção
cultural nos Novos Mundos”
(MARTINS, 1995, p. 56). Por
intermédio de Exu, Martins identifica
procedimentos que estruturam o fazer
teatral negro, como “a estratégia da
dupla fala, o jogo das aparências, o
nto dialógico e discursivo das
culturas, o mascaramento sígnico, o
da iluo semiótica nas
suas vias de representação”
(MARTINS, 1995, p. 201).
Cartografar os fluxos e refluxos
entre os diversos tipos de teatralidades
amefricanas e ameríndias é
uma
postura artístico
-epistemológica
compartilhada por muitos artistas e
pesquisadores contemporâneos. Além
disso, se, no âmbito historiográfico
colonial, como escravo ou ex
-
escravo é que o negro oferecia
interesse dramático. Simplesmente
ão (MENDES, 1982,
p. 197) e, ainda, se mesmo o Teatro
Experimental do Negro (TEN), fundado
por Abdias Nascimento em 1944,
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
apesar de seu incontestável papel no
processo de descolonização teatral,
não soube realizar a “inclusão do
negro no público espectado
(MENDES, 1982, p. 200), atualmente,
observa-
se movimento surpreendente.
Pautado pela retroalimentação das
“distintas manifestações artísticos
performáticas” (ALEXANDRE, 2017, p.
34) e pelo respaldo incontestável de
público por meio do
black m
o qual os negros estão priorizando as
montagens de seus próprios irmãos
(SALLES & LUDEMIR, 2018, p. 9), o
Teatro Negro35
contemporâneo
35
Algumas publicações recentes oferecem um
retrato bem potente do Teatro Negro
conte
mporâneo. Enquanto Alexandre (2017)
realiza uma cartografia de grupos e
espetáculos teatrais em Belo Horizonte,
Salvador e Cuba, Lima & Ludemir (2019)
organizam uma coletânea contando com 16
textos dramatúrgicos de autores como Rodrigo
França, Leda Maria M
artins, José Fernando
Azevedo, Grace Passô, Aldri Anunciação, Jô
Bilac, dentre outros. Na paisagem do Rio de
Janeiro, o Teatro Negro tem conquistado um
protagonismo indubitável, como comprovam
as recentes premiações do Shell (2019 e
2020). A importância re
sulta de espetáculos
que questionam a situação social do negro no
Brasil (
Contos Negreiros no Brasil
Masculinidades Negras
, ambos de Rodrigo
França, e Preto
, de Marcio Abreu),
performatizam a história da arte brasileira,
recuperando seus ícones (
Solano, Vento Forte
Africano, de Geovana Pires, e
Traga
cabeça de Lima Barreto
, de Hilton Cobra),
apostam no entrecruzamento de teatralidades
e na recuperação das ancestralidades (
D’Água Preta, de Jé Oliveira,
Medeia Negra
de Marcia Limma e Ombela
, de Arlindo
Lopes), performatizam as diásporas periféricas
contemporâneas (
Hoje eu não saio daqui
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
apesar de seu incontestável papel no
processo de descolonização teatral,
não soube realizar a inclusão do
negro no público espectado
r brasileiro”
(MENDES, 1982, p. 200), atualmente,
se movimento surpreendente.
Pautado pela retroalimentação das
distintas manifestações artísticos
-
performáticas” (ALEXANDRE, 2017, p.
34) e pelo respaldo incontestável de
black m
oney “com
o qual os negros estão priorizando as
montagens de seus próprios irmãos
(SALLES & LUDEMIR, 2018, p. 9), o
contemporâneo
Algumas publicações recentes oferecem um
retrato bem potente do Teatro Negro
mporâneo. Enquanto Alexandre (2017)
realiza uma cartografia de grupos e
espetáculos teatrais em Belo Horizonte,
Salvador e Cuba, Lima & Ludemir (2019)
organizam uma coletânea contando com 16
textos dramatúrgicos de autores como Rodrigo
artins, José Fernando
Azevedo, Grace Pas, Aldri Anunciação, Jô
Bilac, dentre outros. Na paisagem do Rio de
Janeiro, o Teatro Negro tem conquistado um
protagonismo indubitável, como comprovam
as recentes premiações do Shell (2019 e
sulta de espetáculos
que questionam a situação social do negro no
Contos Negreiros no Brasil
e Oboró
, ambos de Rodrigo
, de Marcio Abreu),
performatizam a história da arte brasileira,
Solano, Vento Forte
Traga
-me a
, de Hilton Cobra),
apostam no entrecruzamento de teatralidades
e na recuperação das ancestralidades (
Gota
Medeia Negra
,
, de Arlindo
Lopes), performatizam as diásporas periféricas
Hoje eu não saio daqui
, da
engaja-
seno compromisso de encenar
outras histórias, conforme atesta
Eugênio Lima (SALLES & LUDEMIR,
2018, p. 1
2), curador da coletânea
Dramaturgia Negra:
O material foi organizado na
contramão da história oficial,
rompendo com a escassa
representação da dramaturgia
negra no meio acadêmico,
constituindo-
se como um portal
para uma outra história possível,
que se uti
impossibilidades para criar as
múltiplas narrativas de um povo
negro brasileiro.
Nesta “outra história posvel, o
teatro colonial cede lugar às múltiplas
teatralidades
ora mais afrocêntricas
ou pan-
africanas, ora mais
afropolitanas ou diaspór
Cia Marginal, e
Cidade Correria,
Banobando),são afropolitanas (
Ägô Pra Falar, Ägô Pra Dançar, Ägô Pra
Existir
, de Cristina Moura) de
vertentes que não se auto
36 Cunhado por Mbembe
(
afropolitanismo vincula-
se a uma geografia da
circulação,
a partir da qual a história do
continente africano é considerada como uma
história de culturas em colisão
turbilhão das guerras
, das inva
migrações,
dos casamentos mistos
religiões diversas que são apropriadas
técnicas que são trocadas e de mercadorias
que são vendidas.
A história cultural do
continente praticamente não pode ser
compreendida fora do paradigma da
itinerância
, da mobilidade e do
deslocamento.”. Embora criticado por sua
potencial interpretação neoliberal, o
afropolitanismo pode ser considerado, de um
lado, no contexto da “estética diaspórica
caribenha de que fala Stuart Hall e, de outro
484
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
seno compromisso de encenar
outras histórias, conforme atesta
Eugênio Lima (SALLES & LUDEMIR,
2), curador da coletânea
O material foi organizado na
contramão da história oficial,
rompendo com a escassa
representação da dramaturgia
negra no meio acadêmico,
se como um portal
para uma outra história possível,
que se uti
liza das
impossibilidades para criar as
múltiplas narrativas de um povo
negro brasileiro.
Nesta outra história possível”, o
teatro colonial cede lugar às múltiplas
ora mais afrocêntricas
africanas, ora mais
afropolitanas ou diaspór
icas36que se
Cidade Correria,
da Cia
Banobando),o afropolitanas (
Mascarado -
Ägô Pra Falar, Ägô Pra Dançar, Ägô Pra
, de Cristina Moura) de
ntre outras
vertentes que não se auto
-excluem.
(
2015, p. 69), o termo
se a uma geografia da
a partir da qual a história do
continente africano é considerada como “uma
história de culturas em colisão
, tomadas pelo
, das inva
sões, das
dos casamentos mistos
, de
religiões diversas que são apropriadas
, de
técnicas que são trocadas e de mercadorias
A história cultural do
continente praticamente não pode ser
compreendida fora do paradigma da
, da mobilidade e do
deslocamento.. Embora criticado por sua
potencial interpretação neoliberal, o
afropolitanismo pode ser considerado, de um
lado, no contexto da estética diaspórica”
caribenha de que fala Stuart Hall e, de outro
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
entrecruzam, se sobrepõem, se
combinam, se ajustam etc. A
coletânea dramatúrgica capitaneada
por Lima comprova que estas
teatralidades não devem ser
compreendidas unicamente sob o
signo de um ponto de infleo no seio
do regime historiográfi
co eurontrico,
a partir da qual ocorre o processo
incontornável de emancipação da
encenação em relação ao primado do
texto (SARRAZAC, 2013). Se, como
sugere Barthes (2002, p. 123), a
teatralidade é um “dado da criação,
vê-
se nesta coletânea, assim como
nos palcos, o exercício de escrita
dramatúrgica que, durante boa parte
de nossa modernidade, foi interditada
a grande parte dos amefricanos(como
nos lembra Lilia Schwarcz (2012, p.
76), a assimilação cultural não
lado, no âmb
ito do “cosmopolitismo do pobre
de Silviano Santiago e do “localismo
cosmopolita” de Walter Mignolo. Referimo
portanto, a um “afropolitismo do pobre, para o
qual as fronteiras rígidas dos Estados
Nacionais deixam de ser limites em um
contexto de cre
scentes desigualdade social e
articulação ativista globais. Em tensão com a
noção de afropolitismo, encontram
conceitos de pan-
africanismo (capitaneado por
Du Bois) e afrocentrismo (criado por Molefi
Kete Asante) que, segundo o filósofo
camaronês, es
tariam assentados em uma
geografia mistificadora do território centrada
no aspecto racial. A tensão entre estes
conceitos indica a fertilidade do pensamento
negro na contemporaneidade.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
entrecruzam, se sobrepõem, se
combinam, se ajustam etc. A
coletânea dramatúrgica capitaneada
por Lima comprova que estas
teatralidades não devem ser
compreendidas unicamente sob o
signo de um ponto de inflexão no seio
co eurocêntrico,
a partir da qual ocorre o processo
incontornável de emancipação da
encenação em relação ao primado do
texto (SARRAZAC, 2013). Se, como
sugere Barthes (2002, p. 123), a
teatralidade é um dado da criação”,
se nesta coletânea, assim como
nos palcos, o exercio de escrita
dramatúrgica que, durante boa parte
de nossa modernidade, foi interditada
a grande parte dos amefricanos(como
nos lembra Lilia Schwarcz (2012, p.
76), a assimilação cultural não
ito do cosmopolitismo do pobre”
de Silviano Santiago e do localismo
cosmopolita de Walter Mignolo. Referimo
-nos,
portanto, a um afropolitismo do pobre”, para o
qual as fronteiras rígidas dos Estados
Nacionais deixam de ser limites em um
scentes desigualdade social e
articulação ativista globais. Em tensão com a
noção de afropolitismo, encontram
-se os
africanismo (capitaneado por
Du Bois) e afrocentrismo (criado por Molefi
Kete Asante) que, segundo o filósofo
tariam assentados em uma
geografia mistificadora do território centrada
no aspecto racial. A tensão entre estes
conceitos indica a fertilidade do pensamento
corresponde, muito pelo contrário, à
inclusão social).
A suspensão desta interdição
contempla fundamentalmente as
teatralidades rituais amefricanas e
ameríndias, que, não raro, funcionam
como operadores estruturantes de
textos e espetáculos, mas que, uma
vez mais, não se resumem a eles, pois
a teat
ralidade “é o teatro sem o texto
(BARTHES, 2002, p. 123). No nosso
caso, a teatralidade poderia ser
definida como o “teatro sem o teatro,
caso consideremos a segunda
aparição do termo ligada
especificamente à herança
eurocêntrica.Aprofundemos ainda mai
o percurso sinuoso e ambíguo de
Barthes em sua definição da
teatralidade, sublinhando a capacidade
de circulação da teatralidade para fora
de si. Surpreendentemente, este
movimento de exteriorização do teatro
parece também corresponder ao
movimento do pe
rformer, sendo o
teatro um
lugar de uma ultra
e
ncarnação, em que o corpo é duplo.
Ora, não seriam as teatralidades
amefricanas e ameríndias os locais do
exercício de teatralidades fora de si
mesmas, povoadas por corpos
duplos?Está uma questão que o
485
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
corresponde, muito pelo contrário, à
A suspeno desta interdição
contempla fundamentalmente as
teatralidades rituais amefricanas e
ameríndias, que, não raro, funcionam
como operadores estruturantes de
textos e espetáculos, mas que, uma
vez mais, não se resumem a eles, pois
ralidade é o teatro sem o texto”
(BARTHES, 2002, p. 123). No nosso
caso, a teatralidade poderia ser
definida como o teatro sem o ‘teatro’”,
caso consideremos a segunda
aparição do termo ligada
especificamente à herança
eurontrica.Aprofundemos ainda mai
s
o percurso sinuoso e ambíguo de
Barthes em sua definição da
teatralidade, sublinhando a capacidade
de circulação da teatralidade para fora
de si. Surpreendentemente, este
movimento de exteriorização do teatro
parece também corresponder ao
rformer, sendo o
lugar de uma ultra
-
ncarnação, em que o corpo é duplo”.
Ora, não seriam as teatralidades
amefricanas e ameríndias os locais do
exercio de teatralidades fora de si
mesmas, povoadas por corpos
duplos?Está aí uma questão que o
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
estudo detalhado de cada
acontecimento cênico amefricano e
ameríndio poderá responder, estudo
este que não se traduz na inclusão
destas manifestações em regimes
historiográficos ocidentais, mas,
antes,na constatação dos meios e
modos pelos quais estes
aco
ntecimentos transformam e
modificam as premissas e
conceituações de nossas arraigadas
perspectivas coloniais. Mas isto não é
tudo. Há ainda uma última armadilha.
“Teatro contra o estado” = “Teatro a
favor do mercado”?
Até aqui, trançamos alguns fios
que b
uscaram mapear as mútuas
imbricações entre as artes nicas e
as ciências sociais sob a perspectiva
das exclusões constitutivas dos
regimes historiográficos coloniais.
Partimos de uma
eurocêntrica que instaura um regime
de visibilidade e de int
eligibilidade do
que vem a ser considerado como
teatro brasileiro. Consequentemente,
as performatividades e teatralidades
amefricanas e ameríndias estariam
localizadas em outros domínios do
conhecimento que não no seio
historiográfico do teatro.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
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(Fluxo contínuo)
estudo detalhado de cada
acontecimento nico amefricano e
ameríndio poderá responder, estudo
este que não se traduz na inclusão
destas manifestações em regimes
historiográficos ocidentais, mas,
antes,na constatação dos meios e
modos pelos quais estes
ntecimentos transformam e
modificam as premissas e
conceituações de nossas arraigadas
perspectivas coloniais. Mas isto não é
tudo. Há ainda uma última armadilha.
“Teatro contra o estado = “Teatro a
Até aqui, trançamos alguns fios
uscaram mapear as mútuas
imbricações entre as artes cênicas e
as ciências sociais sob a perspectiva
das exclues constitutivas dos
regimes historiográficos coloniais.
perspectiva
eurontrica que instaura um regime
eligibilidade do
que vem a ser considerado como
teatro brasileiro. Consequentemente,
as performatividades e teatralidades
amefricanas e ameríndias estariam
localizadas em outros domínios do
conhecimento que não no seio
historiográfico do teatro.
Ocorte
epi
stemológico que separa as
manifestações propriamente teatrais
das demais teatralidades amefricanas
e ameríndias constituiria o campo do
teatro. De um lado, a história do teatro.
De outro lado, os estudos
antropológicos e sociológicos.
Ocorre que as
perform
atividades amefricanas e
ameríndias, as práticas performativas
e teatrais experimentais
contemporâneas e também os usos
metafóricos do teatro pelas ciências
sociais, dentre outros fatores, suscitam
movimentos de reinscrição do próprio
campo teatral, compli
paralelismo historiográfico entre teatro
e Estado. Nesse sentido, o teatro
contra o Estado se traduziria nas
dispersas e plurais performatividades
amefricanas e ameríndias situadas à
margem da narrativa colonial. Há,
contudo, uma grande arm
pensar em um “teatro contra o
Estado”, se traduzirmos esta
expressão como um teatro a favor do
Mercado”. Esforcemo
desmontá-la.
A oposição entre Mercado e
Estado é um dispositivo teórico próprio
às ciências econômicas. Não é
exagero afirmar que esta dicotomia
486
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
stemológico que separa as
manifestações propriamente teatrais
das demais teatralidades amefricanas
e ameríndias constituiria o campo do
teatro. De um lado, a história do teatro.
De outro lado, os estudos
antropológicos e sociológicos.
Ocorre que as
atividades amefricanas e
ameríndias, as práticas performativas
e teatrais experimentais
contemporâneas e também os usos
metafóricos do teatro pelas ciências
sociais, dentre outros fatores, suscitam
movimentos de reinscrição do próprio
campo teatral, compli
cando o suposto
paralelismo historiográfico entre teatro
e Estado. Nesse sentido, o teatro
contra o Estado se traduziria nas
dispersas e plurais performatividades
amefricanas e ameríndias situadas à
margem da narrativa colonial. Há,
contudo, uma grande arm
adilha em se
pensar em um teatro contra o
Estado, se traduzirmos esta
expressão como um “teatro a favor do
Mercado. Esforcemo
-nos, por fim, por
A oposição entre Mercado e
Estado é um dispositivo teórico próprio
às ciências econômicas. Não é
exagero afirmar que esta dicotomia
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
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202
organiza grande parte do debate na
áreaem dois grandes eixos, quais
sejam: as políticas econômicas
as keynesianas e
beveridgianas
consideram auspiciosa a intervenção
do Estado na economia para
assegurar o ple
no emprego e o bem
estar, por um lado; e aquelas políticas
econômicas que apostam na mão
mítica e invisível de um mercado
autorregulado, cumprindo o Estado a
função suplementar de um guarda
noturno”, por outro lado. Por mais
produtivo que este dispositivo
dicotômico seja em distribuir as
posições no campo das ciências
econômicas, ele se revela insuficiente
para a reflexão aqui proposta, senão
retomemos, por dois caminhos
complementares, esta oposição com o
intuito de revelar tal inadequação.
O primeiro cam
inho possui
como ponto de partida a noção de
mercado. Em geral, quando lançamos
mão deste conceito, nos referimos à
definição da teoria econômica
neoclássica, sendo o mercado um
local de interação onde vendedores e
compradores
ambos munidos de
uma racion
alidade econômica que
busca maximizar a satisfão e o lucro
e minimizar os custos
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
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2.
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(Fluxo contínuo)
organiza grande parte do debate na
áreaem dois grandes eixos, quais
sejam: as políticas econômicas
– como
beveridgianas
que
consideram auspiciosa a intervenção
do Estado na economia para
no emprego e o bem
-
estar, por um lado; e aquelas políticas
econômicas que apostam na mão
mítica e invivel de um mercado
autorregulado, cumprindo o Estado a
função suplementar de um “guarda
-
noturno, por outro lado. Por mais
produtivo que este dispositivo
dicotômico seja em distribuir as
posições no campo das ciências
econômicas, ele se revela insuficiente
para a reflexão aqui proposta, senão
retomemos, por dois caminhos
complementares, esta oposição com o
intuito de revelar tal inadequação.
inho possui
como ponto de partida a noção de
mercado. Em geral, quando lançamos
mão deste conceito, nos referimos à
definição da teoria econômica
neoclássica, sendo o mercado um
local de interação onde vendedores e
ambos munidos de
alidade econômica que
busca maximizar a satisfação e o lucro
e minimizar os custos
ocupam
posições simétricas e atomizadas que
garantem a transparência das
transações (PINDYCK;
2013). Esta definição é hegemônica,
mas não absoluta, como
demonst
ramos esforços de sociólogos
e economistas por questionar os
fundamentos supostamente universais
da teoria neoclássica. Em primeiro
lugar, as preferências que guiam as
decisões não são tão coerentes e
estáveis como nos fazem crer os
manuais de microeconomi
dependem de uma rie de fatores
sociais e culturais que a Economia
Comportamental busca, por meio de
experimentos randomizados, desvelar
(DUFLO; BANERJEE, 2020). O
mercado não é em um local virtuoso
pautado pela igualdade entre os
agentes atomizado
s movidos por seus
respectivos espíritos de lculo, mas
um campo
, cuja estrutura de relações
de poder entre as empresas
37 Garcia-
Parpet (2013, p. 95), cuja análise da
implementação de um mer
morangos em concorrência perfeita ajudou
Callon (2008) a conceber a performatividade
das ciências econômicas, ao repisar a
contribuição de Bourdieu para a sociologia
econômica, ressalta a importância que a
etnologia na Argélia teve para o p
bourdieusiano.
Em trabalho de campo na
então colônia francesa, Bourdieu observa que
a colonização é também marcada por um
processo de racionalização das condutas
487
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
posições simétricas e atomizadas que
garantem a transparência das
transações (PINDYCK;
RUBINFELD,
2013). Esta definição é hegemônica,
mas não absoluta, como
ramos esforços de sociólogos
e economistas por questionar os
fundamentos supostamente universais
da teoria neoclássica. Em primeiro
lugar, as preferências que guiam as
decies não são tão coerentes e
estáveis como nos fazem crer os
manuais de microeconomi
a, mas
dependem de uma série de fatores
sociais e culturais que a Economia
Comportamental busca, por meio de
experimentos randomizados, desvelar
(DUFLO; BANERJEE, 2020). O
mercado não é em um local virtuoso
pautado pela igualdade entre os
s movidos por seus
respectivos espíritos de cálculo, mas
, cuja estrutura de relações
de poder entre as empresas
37
Parpet (2013, p. 95), cuja análise da
implementação de um mer
cado francês de
morangos em concorrência perfeita ajudou
Callon (2008) a conceber a performatividade
das ciências econômicas, ao repisar a
contribuição de Bourdieu para a sociologia
econômica, ressalta a importância que a
etnologia na Argélia teve para o p
ensamento
Em trabalho de campo na
então colônia francesa, Bourdieu observa que
a colonização é também marcada por um
processo de racionalização das condutas
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
determina as condições nas quais
os agentes são levados a decidir
(ou a negociar) os preços de
compra (de materiais, do
trabalho, etc.
) e os preços
venda [...]
E é esta estrutura
social específica que determina
as tendências imanentes dos
mecanismos do campo e
simultaneamente,
as margens de
liberdade para as estratégias dos
agentes.
Os preços não
determinam tudo,
é o todo que
determina os preço
(BOURDIEU, 2006, p. 268
Correlativamente, temos que
questionar a compreensão redutora
que a teoria econômica neoclássica
confere à noção de troca, bastando
aqui nos lembrarmos da seguinte
consideração de Mauss (2003, p. 307)
sobre a aparente unive
rsalidade do
homo economicus
: “Foram nossas
sociedades ocidentais que, muito
recentemente, fizeram do homem um
‘animal econômico’. [...]O homem foi
por muito tempo outra coisa e não
muito que é uma máquina
máquina de calcular que a complica.
Encontramos tal consideração
econômicas. Esta observação não está muito
longe da perspectiva de Callon (2008),
se
gundo a qual as colônias foram laboratórios
de performatização das ciências ocidentais,
com destaque para a Economia, sendo
inclusive locaisde implementação do
subdesenvolvimento, como propõe Walter
Rodney para o caso africano. Como se verá a
seguir, este
fato não é trivial, pois estilhaça a
dicotomia entre Estado e Mercado.
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
determina as condições nas quais
os agentes o levados a decidir
(ou a negociar) os preços de
compra (de materiais, do
) e os preços
de
E é esta estrutura
social espefica que determina
as tendências imanentes dos
mecanismos do campo e
,
as margens de
liberdade para as estratégias dos
Os preços não
é o todo que
determina os preço
s
(BOURDIEU, 2006, p. 268
-269).
Correlativamente, temos que
questionar a compreensão redutora
que a teoria econômica neoclássica
confere à noção de troca, bastando
aqui nos lembrarmos da seguinte
consideração de Mauss (2003, p. 307)
rsalidade do
: Foram nossas
sociedades ocidentais que, muito
recentemente, fizeram do homem um
animal econômico. [...]O homem foi
por muito tempo outra coisa e não
faz
muito que é uma máquina
, com uma
máquina de calcular que a complica”.
Encontramos tal consideração
econômicas. Esta observação não está muito
longe da perspectiva de Callon (2008),
gundo a qual as colônias foram laboratórios
de performatização das ciências ocidentais,
com destaque para a Economia, sendo
inclusive locaisde implementação do
subdesenvolvimento, como propõe Walter
Rodney para o caso africano. Como se verá a
fato não é trivial, pois estilhaça a
dicotomia entre Estado e Mercado.
justamente naquele ensaio onde
Mauss demonstra que as trocas do
potlatch
não são guiadas pela lógica
utilitarista. Há, portanto, trocas que
não são pas
síveis de redução ao
espírito de cálculo da economia
neoclássica e que instituem uma
pluralidade de mercados constituídos
por outras estruturas e lógicas.
Resultam daí duas
considerações referentes à
performatividade das ciências
econômicas e à dualidade q
constitui. No que se refere ao primeiro
aspecto, se o mercado não é um dado
da natureza, mas um advento cio
histórico, sua implementação
pressupõe a performatividade das
ciências econômicas. Em outras
palavras, a implementação de um
mercado em conc
orrência perfeita
prevê a contribuição do
enquadramento teórico das ciências
econômicas, que, por sua vez, menos
o descrevem do que o moldam, visto
que
uma ciência não é somente uma
descrição do que existe, mas [...]
também uma maquinaria poderosa
que pe
rmite fazer existir o que
descreve
(CALLON, 2008, p. 313
4).Ao conferir ênfase à
performatividade da economia, Callon
488
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
justamente naquele ensaio onde
Mauss demonstra que as trocas do
não o guiadas pela lógica
utilitarista. Há, portanto, trocas que
veis de redução ao
espírito de cálculo da economia
neoclássica e que instituem uma
pluralidade de mercados constituídos
por outras estruturas e lógicas.
Resultam daí duas
considerações referentes à
performatividade das ciências
econômicas e à dualidade q
ue as
constitui. No que se refere ao primeiro
aspecto, se o mercado não é um dado
da natureza, mas um advento sócio
-
histórico, sua implementação
pressupõe a performatividade das
ciências econômicas. Em outras
palavras, a implementação de um
orrência perfeita
prevê a contribuição do
enquadramento teórico das ciências
econômicas, que, por sua vez, menos
o descrevem do que o moldam, visto
uma ciência não é somente uma
descrição do que existe, mas [...]
também uma maquinaria poderosa
rmite fazer existir o que
(CALLON, 2008, p. 313
-
4).Ao conferir ênfase à
performatividade da economia, Callon
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
(2006, p. 50)chama atenção para as
possibilidades de experimentação
econômica que, entrelaçando
agenciamentos calculativos e não
calculat
ivos, não se resumem às
performances
de indicadores
agregados macroeconômicos como o
PIB. Outras performatividades
econômicas são possíveis.
A pluralidade performativa das
ciências econômicas requer o
abandono de um pensamento
dicotômico que insiste em div
mundo em fatos econômicos e não
econômicos. Denunciando as
“dualidades perigosas que
segmentam o mundo em dois
(sentimento e racionalidade; economia
e arte; público e privado; masculino e
feminino; mercado e estado etc.),
Zelizer (2009, p. 240) se
identificar laços diferenciados que
entrelaçam mundos aparentemente
hostis:
Estudos atuais sobre espaços
sociais concretos, que vão dos
mercados de leilões aos
trabalhos domésticos, não
revelam nem esferas separadas
nem mundos segregados hostis
O gap analítico entre intimidade e
impessoalidade pode ser
superado reconhecendo
existência de laços diferenciados
que atravessam situações sociais
particulares. Em todos os tipos de
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
(2006, p. 50)chama atenção para as
possibilidades de experimentação
econômica que, entrelaçando
agenciamentos calculativos e não
-
ivos, não se resumem às
de indicadores
agregados macroeconômicos como o
PIB. Outras performatividades
A pluralidade performativa das
ciências econômicas requer o
abandono de um pensamento
dicotômico que insiste em div
idir o
mundo em fatos econômicos e não
econômicos. Denunciando as
dualidades perigosas” que
segmentam o mundo em dois
(sentimento e racionalidade; economia
e arte; público e privado; masculino e
feminino; mercado e estado etc.),
Zelizer (2009, p. 240) se
esforça por
identificar laços diferenciados que
entrelaçam mundos aparentemente
Estudos atuais sobre espaços
sociais concretos, que vão dos
mercados de leilões aos
trabalhos domésticos, não
revelam nem esferas separadas
nem mundos segregados hostis
.
O gap analítico entre intimidade e
impessoalidade pode ser
superado reconhecendo
-se a
existência de laços diferenciados
que atravessam situações sociais
particulares. Em todos os tipos de
situações, das
predominantemente íntimas às
predominantemente impe
as pessoas diferenciam
fortemente vários tipos de
relações interpessoais,
caracterizando
-
nomes, símbolos, práticas e
meios de troca. [...] Tanto em
empresas quanto em espaços
domésticos, assim como em
quaisquer outros, as pessoas
c
onstantemente administram
múltiplos conjuntos de relações
sociais.
Em conjunto, as
recomendações de Zelizer, Bourdieu e
Callonnos incitam a questionar a
“inviabilidade econômica das artes
cênicasquando analisadas sob uma
perspectiva da economia
neoclássica.38
Ao operarmos este
desvio, estamos aptos a perceber as
performatividades econômicas
específicas a este campo
eexperimentadas por meio de laços
diferenciados capazes de engendrar
trocas e transações plurais. Ademais,
o cuidado em não adotar as
“dualidade
s perigosas” traduz
também em cautela em não reproduzir
a dicotomia entre Estado e Mercado.
Pois, como sabemos, a formação do
Estado brasileiro constitui
38 Refiro-
me aqui à contribuição de William
Baumol para o estudo da Economia das Artes
Cênicas, revisitada em Friques (2016b).
489
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
situações, das
predominantemente íntimas às
predominantemente impe
ssoais,
as pessoas diferenciam
fortemente vários tipos de
relações interpessoais,
-
as com distintos
nomes, mbolos, práticas e
meios de troca. [...] Tanto em
empresas quanto em espaços
domésticos, assim como em
quaisquer outros, as pessoas
onstantemente administram
múltiplos conjuntos de relações
Em conjunto, as
recomendações de Zelizer, Bourdieu e
Callonnos incitam a questionar a
inviabilidade econômica” das artes
nicasquando analisadas sob uma
perspectiva da economia
Ao operarmos este
desvio, estamos aptos a perceber as
performatividades econômicas
espeficas a este campo
eexperimentadas por meio de laços
diferenciados capazes de engendrar
trocas e transações plurais. Ademais,
o cuidado em não adotar as
s perigosas” traduz
-se
também em cautela em não reproduzir
a dicotomia entre Estado e Mercado.
Pois, como sabemos, a “formação” do
Estado brasileiro constitui
-se como a
me aqui à contribuição de William
Baumol para o estudo da Economia das Artes
Cênicas, revisitada em Friques (2016b).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
“formação” da economia
agroexportadora brasileira voltada ao
comércio internacional e c
em poucos empresários detentores de
vastas terras e de uma mão
expropriada de terra, subjetividade,
meios de subsistência etc. (PRADO
JR., 1961).39
Com isso, a
performatização do Mercado é
engendrada, estimulada, promovida e
regulada pelo
Estado. Um teatro
contra o estado não seria, portanto,
um teatro a favor do Mercado, mas
aquele “contra o monstro bifalo
Estado-
Mercado que oprime as
minorias do planeta” (DANOWSKI;
CASTRO, 2014, p. 141).
Mas ser contra
o Estado deve
ser compreendido com
o ser
políticas públicas para a cultura? A
resposta é negativa. E aqui,
adentramos nosso último caminho,
retornando em espiral ao começo.
Uma insuficiência e uma
precariedade sobressaem na história
do teatro brasileiro compreendida
como a narrati
va da relação entre esta
39
“Não há uma oposição entre mercado e
Estado. O Estado
participa na constituição dos
mercados,
de modo que não há economias
que estariam do lado do Estado e outras
lado do mercado.
Na configuração atual
há mercado sem Estado nem Estado sem
mercado.” (CALLON, 2008, p. 316).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
formação da economia
agroexportadora brasileira voltada ao
comércio internacional e c
oncentrada
em poucos emprerios detentores de
vastas terras e de uma mão
-de-obra
expropriada de terra, subjetividade,
meios de subsistência etc. (PRADO
Com isso, a
performatização do Mercado é
engendrada, estimulada, promovida e
Estado. Um teatro
contra o estado não seria, portanto,
um teatro a favor do Mercado, mas
aquele contra o monstro bicéfalo
Mercado que oprime as
minorias do planeta (DANOWSKI;
o Estado deve
o ser
contra as
políticas públicas para a cultura? A
resposta é negativa. E aqui,
adentramos nosso último caminho,
retornando em espiral ao começo.
Uma insuficiência e uma
precariedade sobressaem na história
do teatro brasileiro compreendida
va da relação entre esta
Não há uma oposição entre mercado e
participa na constituição dos
de modo que não há economias
que estariam do lado do Estado e outras
, do
Na configuração atual
, não
há mercado sem Estado nem Estado sem
mercado. (CALLON, 2008, p. 316).
manifestação artístico
função instrumental para a formação
do Estado-
nação. O teatro, apesar de
ser apenas um elemento em um
dispositivo performativo maior de
afirmação estatal, não mantém, ao
longo dos séculos, um
próxima, filial, visível, assegurada e
fértil com o Estado. O que o Estado
oferece é sempre insuficiente para o
teatro. Inversamente, o teatro é quase
invisível ao estado.
algumas comprovações.
Se, desde o seu nascimento, o
teatro acompa
nha o desenvolvimento
brasileiro, tendo sido contemplado,
desde o Império, com subdios
esporádicos
(TROTTA, 2013), é
somente na década de 1930 que esta
prática seria objeto de uma política
cultural institucionalizada. Conforme
observa Calabre (2017, p. 1
Revolução de 1930, o Estado
brasileiro implementa uma
“racionalidade administrativa por meio
da qual houve a construção
institucional no campo da cultura,
devido, em especial, à criação do
40 A invisibilidade do teat
ro para o Estado pode
ser exemplificada pela escassez crônica de
dados sistematizados sobre esta prática
cultural nos órgãos oficiais. O lugar do teatro
no sistema oficial dos indicadores culturais é
discutido em Friques (2018b).
490
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
manifestação artístico
-cultural e sua
função instrumental para a “formação”
nação. O teatro, apesar de
ser apenas um elemento em um
dispositivo performativo maior de
afirmação estatal, não mantém, ao
longo dos culos, um
a relação
próxima, filial, vivel, assegurada e
fértil com o Estado. O que o Estado
oferece é sempre insuficiente para o
teatro. Inversamente, o teatro é quase
invisível ao estado.
40 Vejamos
algumas comprovações.
Se, desde o seu nascimento, o
nha o desenvolvimento
brasileiro, tendo sido contemplado,
desde o Império, com subsídios
(TROTTA, 2013), é
somente na década de 1930 que esta
prática seria objeto de uma política
cultural institucionalizada. Conforme
observa Calabre (2017, p. 1
6), com a
Revolução de 1930, o Estado
brasileiro implementa uma
racionalidade administrativa” por meio
da qual houve a “construção
institucional no campo da cultura”,
devido, em especial, à criação do
ro para o Estado pode
ser exemplificada pela escassez crônica de
dados sistematizados sobre esta prática
cultural nos órgãos oficiais. O lugar do teatro
no sistema oficial dos indicadores culturais é
discutido em Friques (2018b).
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
Ministério da Educação e Saúde, sob a
incumbência de G
ustavo Capanema.
Em 1937, é criado o Serviço Nacional
de Teatro, coincidindo com o início do
Estado Novo, enquanto um órgão
administrativo de cunho permanente
(CAMARGO, 2013).
Ao analisar a trajetória desta
instituição (1937-
1964), Camargo
(2013; 2017) con
clui que, por mais que
sua criação respondesse a um
conjunto de anseios e demandas dos
profissionais teatrais, este órgão, ao
longo de toda a sua existência,
caracterizou-
se pela “inoperância no
cumprimento de suas funções” (2017,
p. 3) e pela distribuição
pulverizada de
subsídios em uma política denominada
“clientelismo pluralista” (2017, p. 147)
ou “modelo residual” de subvenções
(2017, p. 154). Com o passar das
décadas, a sensação de
insuficiência
institucional
se mantém, como
comprova a afirmação do soc
Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), Frederico Silva (2018,
p. 7), ao afirmar que “os recursos
financeiros na área cultural são e
permanecerão insuficientes por tempo
indeterminado”. Em conjunto, os
diagnósticos de Camargo e Silva
ref
orçam a perspectiva de Rubim
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
Ministério da Educação e Saúde, sob a
ustavo Capanema.
Em 1937, é criado o Serviço Nacional
de Teatro, coincidindo com o início do
Estado Novo, enquanto um órgão
administrativo de cunho permanente
Ao analisar a trajetória desta
1964), Camargo
clui que, por mais que
sua criação respondesse a um
conjunto de anseios e demandas dos
profissionais teatrais, este órgão, ao
longo de toda a sua existência,
se pela inoperância no
cumprimento de suas funções” (2017,
pulverizada de
subsídios em uma política denominada
clientelismo pluralista (2017, p. 147)
ou modelo residual de subvenções
(2017, p. 154). Com o passar das
insuficiência
se mantém, como
comprova a afirmação do soc
iólogo do
Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), Frederico Silva (2018,
p. 7), ao afirmar que os recursos
financeiros na área cultural são e
permanecerão insuficientes por tempo
indeterminado. Em conjunto, os
diagnósticos de Camargo e Silva
orçam a perspectiva de Rubim
(2007), para quem a história das
políticas culturais brasileiras, entre
avanços e retrocessos, caracteriza
pelo trinômio ausência, autoritarismo e
instabilidade. Nos últimos anos, esta
tradição revela sua força total na
deva
stação cultural contemporânea
resultante de “um processo contínuo e
planejado de desmonte das políticas,
dos programas e das ações culturais
construídas a partir do início dos anos
2000” (CALABRE, 2020, p. 9) e
agudizado pela pandemia em 2020.
Depois de um
breve período de
conquistas em relação às políticas
culturais na primeira década do culo
XXI, atualmente, temos uma política
cultural farsesca e furtiva
protagonizada por atores e roteiristas
televisivos, que, em gestões efêmeras
e polêmicas, tratam de
instituições e asfixiar a produção
cultural.
Mas estas políticas culturais
persecutórias em nome de um estado
mínimo” e de um “mercado saudável
não seriam a conclusão de um teatro
contra o Estado”, mas tão somente a
comprovação da teimosi
teatralidades ameríndias e
amefricanas apesar do Estado, ou da
presença ausente deste. Afinal, tem
491
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(2007), para quem a história das
políticas culturais brasileiras, entre
avanços e retrocessos, caracteriza
-se
pelo trinômio ausência, autoritarismo e
instabilidade. Nos últimos anos, esta
tradição revela sua força total na
stação cultural contemporânea
resultante de um processo contínuo e
planejado de desmonte das políticas,
dos programas e das ações culturais
construídas a partir do início dos anos
2000 (CALABRE, 2020, p. 9) e
agudizado pela pandemia em 2020.
breve período de
conquistas em relação às políticas
culturais na primeira década do século
XXI, atualmente, temos uma política
cultural farsesca e furtiva
protagonizada por atores e roteiristas
televisivos, que, em gestões efêmeras
e polêmicas, tratam de
empalidecer as
instituições e asfixiar a produção
Mas estas políticas culturais
persecutórias em nome de um “estado
mínimo e de um mercado saudável”
não seriam a conclusão de um “teatro
contra o Estado, mas tão somente a
comprovação da teimosi
a das
teatralidades ameríndias e
amefricanas apesar do Estado, ou da
presença ausente deste. Afinal, “tem
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. 22, p. 443-498, mar.
202
quinhentos anos que os índios estão
resistindo, eu estou preocupado é com
os brancos, como que vão fazer para
escapar dessa” (KRENAK, 2019, p.
31).
Referências bibliográficas
ABIRACHED, R.
Le théâtre et le
prince
. Arles: Actes Sud, 2005.
ALEXANDRE, Macros Antônio.
Teatro Negro em perspectiva
dramaturgia e cena negra no Brasil e
em Cuba. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
AZEVEDO, Elizabeth. O Drama. In:
FARIA, João Roberto.
História do
Teatro Brasileiro
. Volume I. São Paulo:
Edições Sesc SP, Perspectiva, 2012.
AZEVEDO, José Fernando.
Transições canceladas: teatro e
experiência no Brasil (notas para um
programa de trabalho).
Sala Preta
16, n. 2, p. 157-167, 2016.
BACON, Wallace. An aesthetics of
performance.
Literature in
Performance
, vol. 1, n.1, p. 1
https://doi.org/
10.1080/104629380093
65814
BACON, Wallace.
The art of
interpretation
. Nova Iorque: Holt,
Rinehart and Winston, Inc., 1966.
BACO
N, Wallace. The Dangerous
Shores-
One Last Time.
Performance Quarterly
, n. 16, p. 356
358, 1996.
BACON, Wallace. The dangerous
shores: From elocution to
interpretation.
Quarterly Journal of
Speech
, vol. 46, n. 2, p. 148
1960.
https://doi.org/1
0.1080/003356360093
82405
FRIQUES, Manoel Silvestre. O Teatro contra o Estado: clivagens,
armadilhas e reinscrições entre as artes cênicas e as ciências sociais
.
Americana de Estudos em Cultura,
202
2.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Fluxo contínuo)
quinhentos anos que os índios estão
resistindo, eu estou preocupado é com
os brancos, como que vão fazer para
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