HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
Rumo a uma
epistemologia das
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v12i22.
Resumo:
Buscamos neste texto apresentar, por um lado, resultados parciais de um mapeamento
realizado junto a coletivos de jovens de bairros periféricos de Salvador, Bahia, que atuam com arte e
comunicação. Por outro, procuram
tecendo nas quebradas, estes nossos outros centros. Destacamos de saída uma opção: as vozes e
timbres se misturam e se confundem neste texto; se alternam à maneira de um sarau e dão conta de
um eu q
ue é nós, de um nós que é somos e estamos. E seguimos.
Palavras-chave: Periferias
¿Hacia una
“epistemología de las quebradas
Resumen:
Buscamos en este texto
realizado con colectivos de jóvenes de barrios periféricos de Salvador, Bahía, que trabajan con el arte
y la comunicación. Por otro lado, intentamos esbozar algunas consideraciones sobre lo que se es
tejiendo en las barriadas, estos otros centros nuestros. Destacamos una opción: las voces y los
timbres se mezclan y se confunden en este texto; se alternan a la manera de un
dan cuenta de un yo que es nosotros, de un nosotros que es somos. Y seguimos.
Palabras clave:
Periferias, ofensivas culturales, emancipación.
1
Bruna Pegna Hercog.
Doutoranda em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da
Bahia/UFBA, Brasil. E-mail:
bhercog@gmail.com
2
Carlos Bonfim
. Doutor em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo/USP.
Profe
ssor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, da Universidade Federal
da Bahia/UFBA, Brasil. E-mail:
latitudea@gmail.com
3
Natureza Acácio França.
Mestra em Dança pela Universidade Federal da Bahia/UFBA, Brasil. E
mail:
naturezartesporte@gmail.com
4
Verena Vieira.
Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade
Federal da Bahia/UFBA, Brasil.
https://orcid.org/0000
vieiraverena@yahoo.com.br
Recebido em 07/08/2021,
aceito para publicação em
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
epistemologia das
quebradas? ativismos
culturais para além da
resistência
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v12i22.
51098
Bruna Pegna Hercog
Natureza
Buscamos neste texto apresentar, por um lado, resultados parciais de um mapeamento
realizado junto a coletivos de jovens de bairros periféricos de Salvador, Bahia, que atuam com arte e
comunicação. Por outro, procuram
os esboçar algumas considerações a respeito do que vem se
tecendo nas quebradas, estes nossos outros centros. Destacamos de saída uma opção: as vozes e
timbres se misturam e se confundem neste texto; se alternam à maneira de um sarau e dão conta de
ue é nós, de um nós que é somos e estamos. E seguimos.
, ofensivas culturais, emancipação.
epistemología de las quebradas”
? activismos culturales más allá de la resistencia
Buscamos en este texto
presentar, por un lado, resultados parciales de un mapeo
realizado con colectivos de jóvenes de barrios periféricos de Salvador, Bahía, que trabajan con el arte
y la comunicación. Por otro lado, intentamos esbozar algunas consideraciones sobre lo que se es
tejiendo en las barriadas, estos otros centros nuestros. Destacamos una opción: las voces y los
timbres se mezclan y se confunden en este texto; se alternan a la manera de un
dan cuenta de un yo que es nosotros, de un nosotros que es somos. Y seguimos.
Periferias, ofensivas culturales, emancipación.
Doutoranda em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da
bhercog@gmail.com
- https://orcid.org/0000-0002-
0215
. Doutor em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo/USP.
ssor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, da Universidade Federal
latitudea@gmail.com
- https://orcid.org/0000-
0002
Mestra em Dança pela Universidade Federal da Bahia/UFBA, Brasil. E
naturezartesporte@gmail.com
- https://orcid.org/0000-0002-3053-0200
Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade
https://orcid.org/0000
-0002-3986-6114 E-mail:
aceito para publicação em
25/01/20
22 e disponibilizado online em
01/03/2022.
245
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
culturais para além da
Bruna Pegna Hercog
1
Carlos Bonfim
2
Natureza
Acácio França
3
Verena Vieira
4
Buscamos neste texto apresentar, por um lado, resultados parciais de um mapeamento
realizado junto a coletivos de jovens de bairros periféricos de Salvador, Bahia, que atuam com arte e
os esboçar algumas considerações a respeito do que vem se
tecendo nas quebradas, estes nossos outros centros. Destacamos de saída uma opção: as vozes e
timbres se misturam e se confundem neste texto; se alternam à maneira de um sarau e dão conta de
? activismos culturales más allá de la resistencia
presentar, por un lado, resultados parciales de un mapeo
realizado con colectivos de jóvenes de barrios periféricos de Salvador, Bahía, que trabajan con el arte
y la comunicación. Por otro lado, intentamos esbozar algunas consideraciones sobre lo que se es
tejiendo en las barriadas, estos otros centros nuestros. Destacamos una opción: las voces y los
sarau (una tertulia) y
dan cuenta de un yo que es nosotros, de un nosotros que es somos. Y seguimos.
Doutoranda em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da
0215
-4025
. Doutor em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo/USP.
ssor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, da Universidade Federal
0002
-0073-3875
Mestra em Dança pela Universidade Federal da Bahia/UFBA, Brasil. E
-
Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade
22 e disponibilizado online em
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
Toward an epistemology of the quebradas
Abstract: This text aims to
present, on
youth collectives from
peripheral
communication. On the other
hand, we try to
in the “quebradas”, these
other centers of
and mingle in this text; they
alternate in the
fan "I" that is actually an “us”.
Keywords:
Peripheries, cultural offensives, emancipation.
Rumo a uma
epistemologia das
“Nossos passos vêm de longe
Ambrósio, Bateeiro, Quariterá,
Curukango, Catucá, Osenga,
Dambraganga e um longo etcétera
Nomes pouco conhecidos, histórias
silenciadas. Histórias... esquecidas?
De modo algum. Espalhados por todo
o país, estes e tantos outros
mocambos/quilombos não costumam
figurar nem nos manuais didáticos que
nos alfabetizaram, nem nas histórias
oficiai
s” que nos contaram e que nos
contamos. Nessas versões truncadas,
apenas breves (e muitas vezes
superficiais e estereotipadas)
referências a Palmares e a uma ou
outra liderança.
A história dos povos africanos
que foram trazidos como escravos ao
5
Jurema Werneck (2010, p. 76).
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
Toward an epistemology of the “quebradas
”?
cultural activisms beyond resistance
present, on
the one hand, partial results
of a mapping
peripheral
neighborhoods in Salvador, Bahia, that
hand, we try to
outline some considerations about
other centers of
ours. We highlight an option: the
voices and timbres mix
alternate in the
manner of a sarau [a poetry
slam] and give
Peripheries, cultural offensives, emancipation.
epistemologia das
quebradas? ativismos
culturais para além da
resistência
Nossos passos vêm de longe”
5
Ambrósio, Bateeiro, Quariterá,
Curukango, Catucá, Osenga,
Dambraganga e um longo etcétera
...
Nomes pouco conhecidos, histórias
silenciadas. Histórias... esquecidas?
De modo algum. Espalhados por todo
o país, estes e tantos outros
mocambos/quilombos não costumam
figurar nem nos manuais didáticos que
nos alfabetizaram, nem nas “histórias
s que nos contaram e que nos
contamos. Nessas versões truncadas,
apenas breves (e muitas vezes
superficiais e estereotipadas)
referências a Palmares e a uma ou
A história dos povos africanos
que foram trazidos como escravos ao
Brasil ao
longo de quase quatrocentos
anos é predominantemente contada a
partir de omissões e da produção de
estigmas diversos, quando não de
estereótipos a respeito daqueles
povos. Não apenas as narrativas, mas
também as imagens produzidas ao
longo do século XIX, p
corroboram a produção de registros
que tinham pouco de documental e
muito de constituição de uma política
de anonimato e de invisibilidade
(SCHWARCZ;
GOMES, 2018
seja, tal como apontam estes autores,
“na imensa maioria das vezes
sabemos (ou não nos é dado
conhecer) a identidade dos modelos;
trata-
se somente, na visão desses
artistas, de escravos em suas funções
(SCHWARCZ;
GOMES, 2018
mais: eram “escravos ou africanos,
246
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
cultural activisms beyond resistance
of a mapping
carried out with
work with art and
what is being woven
voices and timbres mix
slam] and give
an accoun to
culturais para além da
longo de quase quatrocentos
anos é predominantemente contada a
partir de omissões e da produção de
estigmas diversos, quando não de
estereótipos a respeito daqueles
povos. Não apenas as narrativas, mas
também as imagens produzidas ao
longo do século XIX, p
articularmente,
corroboram a produção de registros
que tinham pouco de documental e
muito de constituição de uma “política
de anonimato e de invisibilidade”
GOMES, 2018
, s/p). Ou
seja, tal como apontam estes autores,
na imensa maioria das vezes
não
sabemos (ou não nos é dado
conhecer) a identidade dos “modelos”;
se somente, na visão desses
artistas, de escravos em suas funções”
GOMES, 2018
s/p). E
mais: eram escravos” ou “africanos”,
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
não ashanti, mina, fon, hauçá,
benguela, rebo
lo ou bakongo, por
exemplo. Em artigo publicado no site
da Fundação Cultural Palmares,
Daiane Souza apresenta dados de um
censo realizado em 1872 no Brasil. Tal
censo, diz ela,
aponta o total da população de
estrangeiros no Brasil: 382.132.
Separa os bran
cos por origem.
São 125.876 portugueses, 40.056
alemães e 8.222 italianos, entre
outras nacionalidades. Os negros
eram considerados todos do
mesmo grupo: africanos.
Segundo o documento eram
176.057 africanos vivendo no
país, porém, divididos apenas
entre e
scravos (138.358) e
alforriados (37.699) (SOUZA,
2013, s/p.).
Neste mesmo sentido, imagens
produzidas por artistas como Johann
Moritz Rugendas e Jean
Debret (que são fundamentalmente as
reproduzidas nos livros didáticos), por
exemplo, o conta
de um olhar que,
por um lado, traz corpos
representados em estilo clássico, os
tr
aços suavizados e europeizados (
nos quais) [...]
a situação dos
escravizados é amenizada: o trabalho
é mostrado como atividade quase
lúdica em pranchas como
da Raiz de Mandioca
e
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
não ashanti, mina, fon, hauçá,
lo ou bakongo, por
exemplo. Em artigo publicado no site
da Fundação Cultural Palmares,
Daiane Souza apresenta dados de um
censo realizado em 1872 no Brasil. Tal
aponta o total da população de
estrangeiros no Brasil: 382.132.
cos por origem.
São 125.876 portugueses, 40.056
alemães e 8.222 italianos, entre
outras nacionalidades. Os negros
eram considerados todos do
mesmo grupo: africanos.
Segundo o documento eram
176.057 africanos vivendo no
país, porém, divididos apenas
scravos (138.358) e
alforriados (37.699)” (SOUZA,
Neste mesmo sentido, imagens
produzidas por artistas como Johann
Moritz Rugendas e Jean
-Baptiste
Debret (que são fundamentalmente as
reproduzidas nos livros didáticos), por
de um olhar que,
por um lado, traz corpos
representados em estilo clássico, os
aços suavizados e europeizados (
e
a situação dos
escravizados é amenizada: o trabalho
é mostrado como atividade quase
lúdica em pranchas como
Preparação
e
Colheita de
Café”
(ENCICLOPÉDIA ITAÚ
CULTURAL, online
, s.d.). Por outro
lado, adverte-
se também uma
representação dos escravizados
apenas e tão somente a partir das
diferentes formas de violência
intrínsecas ao sistema escravocrata,
além, é claro, de eventuais referências
a algumas poucas das muitas e tantas
insurgências, q
ue eram muito mais
recorrentes do que se costuma contar
nos manuais didáticos. São, do
mesmo modo, escassas, episódicas,
as referências a artistas, intelectuais,
lideranças de origem africana.
Falamos, portanto, de uma
história feita de
apagamentos, de
omissões, de produção de ausências.
E falamos também do início de um
processo que o colombiano Adolfo
Albán Achinte, referindo
dinâmicas similares em seu país,
chamou de “visibilidade negativa
(ALBÁN ACHINTE, 2006
é, pa
ra além da produção de
silenciamentos, houve, do mesmo
modo, um processo no qual aspectos
socioculturais, econômicos e políticos
dos povos escravizados foram
sistematicamente deturpados e
convertidos em estereótipos e em
estigmas. Trata-
se, neste sentido,
247
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
(ENCICLOPÉDIA ITAÚ
, s.d.). Por outro
se também uma
representação dos escravizados
apenas e tão somente a partir das
diferentes formas de violência
intrínsecas ao sistema escravocrata,
além, é claro, de eventuais referências
a algumas poucas das muitas e tantas
ue eram muito mais
recorrentes do que se costuma contar
nos manuais didáticos. São, do
mesmo modo, escassas, episódicas,
as referências a artistas, intelectuais,
lideranças de origem africana.
Falamos, portanto, de uma
apagamentos, de
omissões, de produção de ausências.
E falamos também do início de um
processo que o colombiano Adolfo
Albán Achinte, referindo
-se a
dinâmicas similares em seu país,
chamou de visibilidade negativa”
, p. 60). Isto
ra além da produção de
silenciamentos, houve, do mesmo
modo, um processo no qual aspectos
socioculturais, econômicos e políticos
dos povos escravizados foram
sistematicamente deturpados e
convertidos em estereótipos e em
se, neste sentido,
de
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
uma história que parece dar boas
pistas de como foi se constituindo no
país o “racismo estrutural tal como
discutido por Silvio Almeida
(ALMEIDA, 2019).
Assim, quando hoje lemos os
informes publicados no Atlas e no
Mapa da Violência e no Anuário
Brasil
eiro de Segurança Pública
quando acessamos as notícias
cotidianas que circulam sobre as
periferias e sobre as pessoas que ali
habitam, quando consultamos nossas
ilustradas agendas culturais, é
possível advertir muitas continuidades
com aquele nefasto sis
tema. Mas é
possível, por outro lado
um dos propósitos centrais deste
escrito
advertir também
continuidades outras; continuidades
que contrastam com políticas de
silenciamento, com processos de
produção de estigmas, que se
insurgem contra a
desmemória, contra
as tentativas de apagamento. Daí
nossa opção por reiterar, com Jurema
Werneck, que “nossos passos vêm de
6
Links para as versões mais recentes do Atlas
da Violência:
https://ipea.gov.br/atlasviolencia/
Mapa da Violência:
https://forumseguranca.org.br/atlas
violencia/
e Anuário Brasileiro de Segurança
Pública:
https://forumseguranca.org.br/anuario
brasileiro-seguranca-publica/
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
uma história que parece dar boas
pistas de como foi se constituindo no
país o racismo estrutural” tal como
discutido por Silvio Almeida
Assim, quando hoje lemos os
informes publicados no Atlas e no
Mapa da Violência e no Anuário
eiro de Segurança Pública
6
,
quando acessamos as notícias
cotidianas que circulam sobre as
periferias e sobre as pessoas que ali
habitam, quando consultamos nossas
ilustradas agendas culturais, é
possível advertir muitas continuidades
tema. Mas é
e aqui está
um dos propósitos centrais deste
advertir também
continuidades outras; continuidades
que contrastam com políticas de
silenciamento, com processos de
produção de estigmas, que se
desmemória, contra
as tentativas de apagamento. Daí
nossa opção por reiterar, com Jurema
Werneck, que nossos passos vêm de
Links para as versões mais recentes do Atlas
https://ipea.gov.br/atlasviolencia/
;
https://forumseguranca.org.br/atlas
-da-
e Anuário Brasileiro de Segurança
https://forumseguranca.org.br/anuario
-
longe.” Mesmo. Afinal, nós também
canto-
bailamos o necessário lembrete
(que é também mantra) de Emicida:
“sempre foi quebra de corr
Porque falamos aqui de uma memória
longa de resistências, de uma vasta
aprendizagem sobre modos de
organização para as nossas lutas
todas de hoje
. Porque, como nos
recorda o historiador João José Reis,
“onde houve escravidão, houve
resistência.
E de vários tipos (REIS,
1996, p.
47). E é desses vários tipos
de resistência que trataremos neste
escrito. Sobretudo porque interessa
sublinhar o que há de potências
tecendo-
se hoje nas ações
desenvolvidas pelos coletivos que
integram uma inspiradora r
deixou clara sua
combater crônicos e perversos
apagamentos como os que
mencionamos na abertura deste
escrito.
Neste sentido, mais do que
resistências
que, seguem sendo,
evidentemente, fundamentais e
urgentes, embora tragam a
elemento de caráter mais reativo
7
Emicid
a. “Yazuke (Bendito, Louvado seja).
Disponível em:
www.youtube.com/watch?v=kvAWTrLUp0k
248
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
longe. Mesmo. Afinal, nós também
bailamos o necessário lembrete
(que é também mantra) de Emicida:
sempre foi quebra de corr
ente”
7
.
Porque falamos aqui de uma memória
longa de resistências, de uma vasta
aprendizagem sobre modos de
organização para as nossas lutas
. Porque, como nos
recorda o historiador João José Reis,
onde houve escravidão, houve
E de vários tipos” (REIS,
47). E é desses “vários tipos”
de resistência que trataremos neste
escrito. Sobretudo porque interessa
sublinhar o que há de potências
se hoje nas ações
desenvolvidas pelos coletivos que
integram uma inspiradora r
ede que
disposição para
combater crônicos e perversos
apagamentos como os que
mencionamos na abertura deste
Neste sentido, mais do que
que, seguem sendo,
evidentemente, fundamentais e
urgentes, embora tragam a
inda algum
elemento de caráter mais reativo
a. Yazuke (Bendito, Louvado seja)”.
www.youtube.com/watch?v=kvAWTrLUp0k
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
optamos por falar sobretudo do que
poderia ser caracterizado como uma
série vigorosa de
ofensivas culturais
emancipadoras
. Buscamos enfatizar
uma abordagem mais propositiva, que
contribua de alguma maneira para
disseminação do que vem sendo
gerado por coletivos nascidos nas
periferias das nossas cidades
nossos outros centros. E o fazemos
atentas tanto ao que hoje se gesta nas
quebradas
8
quanto ao legado
inspirador que nutre diversos destes
coletivos co
m os quais trabalhamos.
Assim, acolhemos, por exemplo,
contribuições como as de Abdias
Nascimento, que com a noção de
quilombismo nos traz fecundas
possibilidades para reconhecer no
trabalho que vem sendo realizado
pelos coletivos que abordamos aqui,
mais
que inspiradores subsídios para
seguir. Uma
“consciência de luta
político-
social”, uma “ideia
quilombismo, tal como pensado por
Nascimento, seria uma “energia que
inspira modelos de organização
8
O termo “quebrada” é muito utilizado por
moradores/as das regiões consideradas
periféricas de Salvador para i
dentificar os seus
territórios com orgulho e pertencimento.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
optamos por falar sobretudo do que
poderia ser caracterizado como uma
ofensivas culturais
. Buscamos enfatizar
uma abordagem mais propositiva, que
contribua de alguma maneira para
a
disseminação do que vem sendo
gerado por coletivos nascidos nas
periferias das nossas cidades
- estes
nossos outros centros. E o fazemos
atentas tanto ao que hoje se gesta nas
quanto ao legado
inspirador que nutre diversos destes
m os quais trabalhamos.
Assim, acolhemos, por exemplo,
contribuições como as de Abdias
Nascimento, que com a noção de
quilombismo nos traz fecundas
possibilidades para reconhecer no
trabalho que vem sendo realizado
pelos coletivos que abordamos aqui,
que inspiradores subsídios para
consciência de luta
social, uma ideia
-força”, o
quilombismo, tal como pensado por
Nascimento, seria uma energia que
inspira modelos de organização
O termo quebrada é muito utilizado por
moradores/as das regiões consideradas
dentificar os seus
territórios com orgulho e pertencimento.
dinâmica desde o século XV
(NASCIMENTO, 2009
Pois bem, se uma das táticas
mais recorrentes nas lutas de
resistência dos povos escravizados
consistia na fuga e na constituição de
territórios relativamente autônomos a
partir de onde resistir (falamos aqui
concretamente da conformação de
mocambos/q
uilombos), caberia
apontar também algumas formas
outras de insurgência. E neste sentido,
vale retomar João José Reis, que diz
que, entre as diversas maneiras de
negociar e de batalhar por espaços de
autonomia, havia -
além de fugas e de
suicídios - expedie
ntes diversos: o
escravo [...]
fazia corpo mole no
trabalho, quebrava ferramentas,
incendiava plantações, agredia
senhores e feitores, rebelava
individual e coletivamente (REIS,
1996, p.
47). Formas de insurgência
praticadas no micro, nas rotinas
corr
iqueiras da roça, do garimpo, dos
engenhos, da cozinha, enfim, nas
frestas do cotidiano.
No que se refere
especificamente às táticas às quais
recorriam mulheres escravizadas que
atuavam nas Casas Grandes,
Curiel
destaca as chamadas
249
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
dinâmica desde o século XV”
(NASCIMENTO, 2009
, p. 203).
Pois bem, se uma das táticas
mais recorrentes nas lutas de
resistência dos povos escravizados
consistia na fuga e na constituição de
territórios relativamente autônomos a
partir de onde resistir (falamos aqui
concretamente da conformação de
uilombos), caberia
apontar também algumas formas
outras de insurgência. E neste sentido,
vale retomar João José Reis, que diz
que, entre as diversas maneiras de
negociar e de batalhar por espaços de
além de fugas e de
ntes diversos: “o
fazia corpo mole no
trabalho, quebrava ferramentas,
incendiava plantações, agredia
senhores e feitores, rebelava
-se
individual e coletivamente” (REIS,
47). Formas de insurgência
praticadas no micro, nas rotinas
iqueiras da roça, do garimpo, dos
engenhos, da cozinha, enfim, nas
No que se refere
especificamente às táticas às quais
recorriam mulheres escravizadas que
atuavam nas Casas Grandes,
Ochy
destaca as chamadas
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
“operações tart
aruga”, que incluíam
“desperdício de produtos domésticos
[e] abortos auto induzidos para evitar
que seus filhos e filhas fossem
escravizados”
(CURIEL, 2007
A táticas como estas, Celsa Albert
denominou “cimarronaje doméstico
(apud CURIEL, 2007
, p.
categoria que conta de formas
cotidianas de insurgência mais sutis,
mas não menos relevantes no que se
refere às diferentes formas de fazer
frente às opressões próprias dos
poderes instituídos.
E é também dessa esfera
cotidiana do micro q
ue fala Lélia
Gonzáles ao abordar o papel da mãe
preta. Ora, se a sin
há, a chamada
legítima esposa [...]
serve pra parir
os filhos do senhor”, a maternidade
propriamente dita será então exercida
pela negra. Por isso, segue Lélia, a
mãe preta é a mãe (G
9
Empregado desde o século XVI para se
referir a tudo que fosse silvestre ou selvagem,
o termo cimarrón
passou a ser utilizado em
diversos países latino-
americanos para se
referir – pejorativamente -
a escravizados
fugitivos. Maroon, jíbaro são outros dos termos
empregados com sentido similar.
portanto, diz respeito a práticas relacionadas
aos cimarrones
. De modo similar, o que no
Brasil chamamos quilombos tem seus
equivalentes nos países vizinhos e entre os
termos empregados para se referir a eles
estão: palenques, cumbes etc.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
aruga, que incluíam
desperdício de produtos domésticos
[e] abortos auto induzidos para evitar
que seus filhos e filhas fossem
(CURIEL, 2007
, p. 16).
A táticas como estas, Celsa Albert
denominou cimarronaje doméstico”
9
, p.
16), uma
categoria que dá conta de formas
cotidianas de insurgência mais sutis,
mas não menos relevantes no que se
refere às diferentes formas de fazer
frente às opressões próprias dos
E é também dessa esfera
ue fala Lélia
Gonzáles ao abordar o papel da mãe
há, a “chamada
só serve pra parir
os filhos do senhor, a maternidade
propriamente dita será então exercida
pela negra. Por isso, segue Lélia, a
mãe preta é a mãe (G
ONZÁLES,
Empregado desde o século XVI para se
referir a tudo que fosse silvestre ou selvagem,
passou a ser utilizado em
americanos para se
a escravizados
fugitivos. Maroon, jíbaro são outros dos termos
empregados com sentido similar.
Cimarronaje,
portanto, diz respeito a práticas relacionadas
. De modo similar, o que no
Brasil chamamos quilombos tem seus
equivalentes nos países vizinhos e entre os
termos empregados para se referir a eles
1984, p.
235). E seela quem vai dar
a rasteira na raça dominante: Ela
passa pra gente esse mundo de coisas
que a gente vai chamar de
linguagem
10
(GONZÁLES, 1984
236).E com a linguagem, sabemos,
m a “internalização de valores [
uma
série de outras coisas mais que
vão fazer parte do imaginário da
gente” (GONZÁLES, 1984
Ou seja, falamos aqui de
algumas das tantas formas de
organização da insurgência, falamos
do que pode a astúcia dos ninguéns,
falamos dos “gestos hábeis do
na ordem estabelecida pelo forte, [da]
arte de dar golpes no campo do outro,
astúcia de caçadores, mobilidades das
manobras, operações polimórficas,
achados alegres, poéticos e bélicos,
falamos, enfim, de
sagazes movimentos den
campo de visão do inimigo [
espaço por ele controlado
(CERTEAU, 1998, p.
100
Em suma, ao mobilizarmos aqui
uma noção como a de quilombismo,
10
Vale sublinhar que Lélia Gonzáles está se
referindo, entre outras c
oisas, ao pretuguês,
que, em nosso entendimento, vem a ser, do
mesmo modo,
uma forma outra de
insurgência.
250
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
235). E será ela quem “vai dar
a rasteira na raça dominante”: “Ela
passa pra gente esse mundo de coisas
que a gente vai chamar de
(GONZÁLES, 1984
, p.
236).E com a linguagem, sabemos,
m a internalização de valores [
...] e
série de outras coisas mais que
vão fazer parte do imaginário da
gente (GONZÁLES, 1984
, p. 236).
Ou seja, falamos aqui de
algumas das tantas formas de
organização da insurgência, falamos
do que pode a astúcia dos “ninguéns”,
falamos dos gestos hábeis do
‘fraco
na ordem estabelecida pelo ‘forte’, [da]
arte de dar golpes no campo do outro,
astúcia de caçadores, mobilidades das
manobras, operações polimórficas,
achados alegres, poéticos e bélicos”,
falamos, enfim, de
táticas: sutis,
sagazes movimentos “den
tro do
campo de visão do inimigo [
...] e no
espaço por ele controlado”
100
-104).
Em suma, ao mobilizarmos aqui
uma noção como a de quilombismo,
Vale sublinhar que Lélia Gonzáles está se
oisas, ao “pretuguês”,
que, em nosso entendimento, vem a ser, do
uma forma outra de
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
temos presente que se trata de um
modo de entender
formas associativas que tanto
podiam esta
r localizadas no seio
de florestas de difícil acesso que
facilitavam sua defesa e sua
organização econômico
própria, como também
assumiram modelos de
organizações permitidas ou
toleradas, frequentemente com
ostensivas finalidades religiosas
(católic
as), recreativas,
beneficentes, esportivas, culturais
ou de auxílio mútuo. Não
importam as aparências e os
objetivos declarados:
fundamentalmente, todas elas
preencheram uma importante
função social para a comunidade
negra, desempenhando um papel
relevante
na sustentação da
comunidade africana. Genuínos
focos de resistência física e
cultural. Objetivamente, essa
rede de associações,
irmandades, confrarias, clubes,
grêmios, terreiros, centros,
tendas, afochés [sic
], escolas de
samba, gafieiras foram e são os
quilombos legalizados pela
sociedade dominante; do outro
lado da lei se erguem os
quilombos revelados que
conhecemos
(NASCIMENTO,
2009, p. 203).
Assim, tomamos como eixo de
nossas reflexões o que vem se
tecendo junto a estes “genuínos focos
de resistência física e cultural que são
os quilombos urbanos
contemporâneos: os saraus, os
coletivos que canto-
bailam
que constroem possíveis sins a
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
temos presente que se trata de um
formas associativas que tanto
r localizadas no seio
de florestas de difícil acesso que
facilitavam sua defesa e sua
organização econômico
-social
própria, como também
assumiram modelos de
organizações permitidas ou
toleradas, frequentemente com
ostensivas finalidades religiosas
as), recreativas,
beneficentes, esportivas, culturais
ou de auxílio mútuo. Não
importam as aparências e os
objetivos declarados:
fundamentalmente, todas elas
preencheram uma importante
função social para a comunidade
negra, desempenhando um papel
na sustentação da
comunidade africana. Genuínos
focos de resistência física e
cultural. Objetivamente, essa
rede de associações,
irmandades, confrarias, clubes,
grêmios, terreiros, centros,
], escolas de
samba, gafieiras foram e são os
quilombos legalizados pela
sociedade dominante; do outro
lado da lei se erguem os
quilombos revelados que
(NASCIMENTO,
Assim, tomamos como eixo de
nossas reflexões o que vem se
tecendo junto a estes genuínos focos
de resistência física e cultural” que são
os quilombos urbanos
contemporâneos: os saraus, os
bailam
-batalham,
que constroem possíveis sins a
nte
crônicos nãos e que no processo dão
conta de inspiradores modelos de
organização dinâmica, para retomar
os termos de Abdias Nascimento
destacamos particularmente modos de
organização que, pela via das artes
em especial, corroboram a rima
certeira do poeta baiano Giovane
Sobrevivente
11
: “a poesia precisa
chegar antes da bala”.
Antes de seguir, no entanto,
importa contar também quem somos
as vozes e as sensibilidades que
juntas tecem este texto
vez, ecoa as diversas outras vozes e
sensibilidades com quem
caminhamos. O convite é para que
enxerguemos este texto como uma
teia, que vai sendo tecida à medida
que escolhemos nossas
entramos e caminhamos por ela, com
nossos corpos, trajetórias, vivências,
memórias. Nesta teia, nunca estamos
sós. As vozes e sensibilidades com
quem caminhamos estão presentes
nos nós que se formam com os
caminhos trilhados, representados
pelas fitas coloridas. Também nunca
estamos estáticos. A teia é movente. E
não tem fim. É um exercício
11
https://www.instagram.com/giovane_sobreviv
ente/
251
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
crônicos nãos e que no processo dão
conta de inspiradores “modelos de
organização dinâmica”, para retomar
os termos de Abdias Nascimento
. E
destacamos particularmente modos de
organização que, pela via das artes
em especial, corroboram a rima
certeira do poeta baiano Giovane
: a poesia precisa
chegar antes da bala”.
Antes de seguir, no entanto,
importa contar também quem somos
as vozes e as sensibilidades que
juntas tecem este texto
–que, por sua
vez, ecoa as diversas outras vozes e
sensibilidades com quem
caminhamos. O convite é para que
enxerguemos este texto como uma
teia, que vai sendo tecida à medida
que escolhemos nossas
fitas coloridas,
entramos e caminhamos por ela, com
nossos corpos, trajetórias, vivências,
memórias. Nesta teia, nunca estamos
sós. As vozes e sensibilidades com
quem caminhamos estão presentes
nos nós que se formam com os
caminhos trilhados, representados
pelas fitas coloridas. Também nunca
estamos estáticos. A teia é movente. E
não tem fim. É um exercício
https://www.instagram.com/giovane_sobreviv
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
metodológico para, como sugere Luiz
Rufino,
praticar Exu e suas encruzilhadas
que miram a transformação
radical, impulsionando
horizontes pluri
epistêmicos e
para a prática de ações
comprometidas com o combate
às injustiça
s cognitivas/sociais
(LOPES; FACINA
; SILVA,
RUFINO, 2019, p. 115).
Te convidamos, portanto, a
entrar nesta teia conosco. Escolha a
cor da tua fita e se lance numa leitura
engajada e
voltada para enxergar as
potências das quebradas.
Nós, pontos, tramas (e agendas)
Meu nome é ‘autora 3, trago na
mão uma fita de chita, colorida como a
minha saia. Sou sambadeira, natural
de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia.
Cresci à beira d
a Baía de Todos os
Santos, no Subúrbio Ferroviário de
Salvador, solta, brincando na rua,
subindo na mangueira do quintal,
tomando banho e catando marisco na
maré.
Na juventude não tive grandes
questionamentos, não fui educada
para entender sobre mim ou re
sobre o contexto sociocultural ao qual
pertencia. Aos 19 anos eu dei à luz
meu filho e guardei num cantinho
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
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(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
metodológico para, como sugere Luiz
praticar Exu e suas encruzilhadas
que miram a transformação
radical, impulsionando
-nos para
epistêmicos e
para a prática de ações
comprometidas com o combate
s cognitivas/sociais
; SILVA,
apud
RUFINO, 2019, p. 115).
Te convidamos, portanto, a
entrar nesta teia conosco. Escolha a
cor da tua fita e se lance numa leitura
voltada para enxergar as
Nós, pontos, tramas (e agendas)
Meu nome é autora 3, trago na
mão uma fita de chita, colorida como a
minha saia. Sou sambadeira, natural
de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia.
a Baía de Todos os
Santos, no Subúrbio Ferroviário de
Salvador, solta, brincando na rua,
subindo na mangueira do quintal,
tomando banho e catando marisco na
Na juventude não tive grandes
questionamentos, não fui educada
para entender sobre mim ou re
fletir
sobre o contexto sociocultural ao qual
pertencia. Aos 19 anos eu dei à luz
meu filho e guardei num cantinho
escuro um tanto de sonhos, dentre
deles, o ensino superior, que eu
consegui iniciar
sete anos
eu sou também Bacharela
Interdisciplinar em Artes, Mestra em
Dança e estudante de Pedagogia
UFBA. Estrategicamente
trânsito entre a academia e a periferia.
Sou mulher suburbana, artista e
educadora gestora e produtora
cultural
. Aprendi a pescar soluções na
maré das adversidades e que em
todas as rodas da vida tem o que se
aprender e o que se ensinar.
Desde 2004, em Tubarão, a
educação e a arte colorem de alegria e
esperança os meus dias. Das
heranças do Recôncavo e do
envolvime
nto orgânico com a
educação, nasce em 2013 o grupo A
Corda Samba de Roda (que encerrou
as atividades em 2020).
samba que segue firme e forte por
aqui, nós fortalecemos tradições que
estavam quase desaparecendo, como
as caretas e o Boi Estrela
O samba de roda é a expressão mais
presente nas datas festivas do
calendário tradicional da comunidade.
Através dele aprendemos e ensinamos
sobre história, arte, patrimônio,
memória, trabalho
coletivo, celebração
252
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
escuro um tanto de sonhos, dentre
deles, o ensino superior, que eu
sete anos
depois. Hoje
eu sou também Bacharela
Interdisciplinar em Artes, Mestra em
Dança e estudante de Pedagogia
pela
UFBA. Estrategicamente
, vivo em
trânsito entre a academia e a periferia.
Sou mulher suburbana, artista e
educadora gestora e produtora
. Aprendi a pescar soluções na
maré das adversidades e que em
todas as rodas da vida tem o que se
aprender e o que se ensinar.
Desde 2004, em Tubarão, a
educação e a arte colorem de alegria e
esperança os meus dias. Das
heranças do Recôncavo e do
nto orgânico com a
educação, nasce em 2013 o grupo A
Corda Samba de Roda (que encerrou
as atividades em 2020).
Através do
samba que segue firme e forte por
aqui, nós fortalecemos tradições que
estavam quase desaparecendo, como
as caretas e o Boi Estrela
de Tubarão.
O samba de roda é a expressão mais
presente nas datas festivas do
calendário tradicional da comunidade.
Através dele aprendemos e ensinamos
sobre história, arte, patrimônio,
coletivo, celebração
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
e outros insumos para coloc
prática as nossas
ofensivas culturais
emancipadoras.
Em 2015 fundamos o Quilombo
A Corda que, em 2019 foi nomeado
QUIAL Centro Cultural Quilombo
Aldeia Tubarão. Atualmente o QUIAL
sedia projetos como a Plataforma
Multimídia Favela Revela, onde dez
jo
vens de periferias de Salvador e Rio
de Janeiro pesquisam, criam,
produzem e promovem conteúdo de
valorização das ações e potenciais das
periferias em todo o Brasil.
Conhecer a minha história é
uma responsabilidade que tenho para
com a minha família e com
comunidade. “A consciência adquirida
a partir da compreensão do
vivido
, compromete a escrita como
lugar de autoafirmação de
particularidades e especificidades do
sujeito”, disse a querida Conceição
Evaristo (EVARISTO, 2007). Eu cresci
em
Tubarão e ao mesmo tempo longe
de Tubarão, longe de histórias e
tradições que eu desconhecia ou
ignorava e que iam e vão chegando
com o samba em meu corpo,
surpreendendo, sincopando e
transgredindo a cada roda nas
tentativas de existir através do poder
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
e outros insumos para coloc
ar em
ofensivas culturais
Em 2015 fundamos o Quilombo
A Corda que, em 2019 foi nomeado
QUIAL Centro Cultural Quilombo
Aldeia Tubarão. Atualmente o QUIAL
sedia projetos como a Plataforma
Multimídia Favela Revela, onde dez
vens de periferias de Salvador e Rio
de Janeiro pesquisam, criam,
produzem e promovem conteúdo de
valorização das ações e potenciais das
periferias em todo o Brasil.
Conhecer a minha história é
uma responsabilidade que tenho para
com a minha família e com
minha
comunidade. A consciência adquirida
a partir da compreensão do
contexto
, compromete a escrita como
lugar de autoafirmação de
particularidades e especificidades do
sujeito, já disse a querida Conceição
Evaristo (EVARISTO, 2007). Eu cresci
Tubarão e ao mesmo tempo longe
de Tubarão, longe de histórias e
tradições que eu desconhecia ou
ignorava e que iam e vão chegando
com o samba em meu corpo,
surpreendendo, sincopando e
transgredindo a cada roda nas
tentativas de existir através do poder
ge
rado pelo conhecimento sobre mim
mesma, sobre a própria história,
resistir ao fazer, poder dançar e
escrever em primeira pessoa.
Me chamo ‘autora 4 e trago nas
mãos a fita branca. Há alguns anos,
passei a integrar a equipe de uma
Organização Não Governam
atua com comunidades em situação de
vulnerabilidade social com foco na
realização de projetos de
infraestrutura. Identifico muitos pontos
positivos no trabalho realizado por
meio da parceria entre a organização e
os(as) moradores(as) das regiões
periféricas onde as atividades eram
realizadas. Mas, a partir de
determinado momento, a ausência de
investimento em projetos artísticos
começou a me inquietar. Sentia que
poderíamos dialogar
partir de outras potencialidades locais,
mas
o o fazíamos, pois o foco
sempre estava nas problemáticas
concretas geradas pela pobreza. Saí
da organização, mas a inquietação
permaneceu e, atualmente, além de
fazer parte de um coletivo de
juventude anticapitalista, estou no
espaço universitário enquant
estudante do Bacharelado
253
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
rado pelo conhecimento sobre mim
mesma, sobre a própria história,
resistir ao fazer, poder dançar e
escrever em primeira pessoa.
Me chamo autora 4’ e trago nas
mãos a fita branca. alguns anos,
passei a integrar a equipe de uma
Organização Não Governam
ental que
atua com comunidades em situação de
vulnerabilidade social com foco na
realização de projetos de
infraestrutura. Identifico muitos pontos
positivos no trabalho realizado por
meio da parceria entre a organização e
os(as) moradores(as) das regiões
periféricas onde as atividades eram
realizadas. Mas, a partir de
determinado momento, a ausência de
investimento em projetos artísticos
começou a me inquietar. Sentia que
poderíamos dialogar
e trabalhar a
partir de outras potencialidades locais,
o o fazíamos, pois o foco
sempre estava nas problemáticas
concretas geradas pela pobreza. Saí
da organização, mas a inquietação
permaneceu e, atualmente, além de
fazer parte de um coletivo de
juventude anticapitalista, estou no
espaço universitário enquant
o
estudante do Bacharelado
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
Interdisciplinar em Humanidades, em
transição para o curso de Pedagogia.
E foi justamente dentro desse
contexto o acadêmico
entrar em contato com o Rede ao
Redor, que nos convida a conhecer as
culturas e as narrativa
s dos sujeitos a
partir de outras lentes e perspectivas.
Ou melhor, a partir de suas próprias
lentes, vozes e perspectivas. Mais do
que isso, entendo que um chamado
para a mediação é feito para que
possamos transitar entre as
diversidades e cruzar saberes
que, desse modo, possamos produzir
impactos potentes em nosso entorno e
agir valorizando as alteridades, mas
também as singularidades que nos
permeiam.
Os primeiros espaços que tive a
oportunidade de frequentar através do
Rede ao Redor foram as aulas
curso “A Periferia É O Centro:
Ofensivas Culturais Emancipadoras
Nessa ocasião, pude viver na
universidade a experiência de ouvir
de dialogar com
representantes de
12
O Curso foi oferecido pelo ‘autor
componente curricular do Bacharelado
Interdisciplinar de Humanidades da UFBA
primeiro semestre de 2020. Foi elaborado e
ministrado em conjunto com uma série de
artistas, ativistas culturais e educadores de
Salvador.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
Interdisciplinar em Humanidades, em
transição para o curso de Pedagogia.
E foi justamente dentro desse
que pude
entrar em contato com o Rede ao
Redor, que nos convida a conhecer as
s dos sujeitos a
partir de outras lentes e perspectivas.
Ou melhor, a partir de suas próprias
lentes, vozes e perspectivas. Mais do
que isso, entendo que um chamado
para a mediação é feito para que
possamos transitar entre as
diversidades e cruzar saberes
para
que, desse modo, possamos produzir
impactos potentes em nosso entorno e
agir valorizando as alteridades, mas
também as singularidades que nos
Os primeiros espaços que tive a
oportunidade de frequentar através do
Rede ao Redor foram as aulas
do
curso A Periferia É O Centro:
Ofensivas Culturais Emancipadoras”
12
.
Nessa ocasião, pude viver na
universidade a experiência de ouvir
– e
representantes de
O Curso foi oferecido pelo autor
2’ como
componente curricular do Bacharelado
Interdisciplinar de Humanidades da UFBA
no
primeiro semestre de 2020. Foi elaborado e
ministrado em conjunto com uma série de
artistas, ativistas culturais e educadores de
coletivos localizados não apenas em
Salvador, mas também em outras
cidades do B
rasil e da Colômbia. Os
temas eram variados: política, arte,
educação, economia, comunicação
etc. e serviram de estímulo para que
eu buscasse me informar a partir de
outras fontes. Não exclusivamente a
partir das principais agências de
notícias da minha ci
país, nem necessariamente através da
bibliografia usualmente adotada dentro
das universidades e que, em sua
maioria, não possui um compromisso
com a apresentação de histórias
múltiplas. Afinal, as informações
podem ser acessadas diretamente
a
través das páginas dos coletivos,
projetos, movimentos sociais e
associações que ocupam
determinadas territorialidades.
Contudo, vale lembrar que essa é
apenas uma via possível e que nas
ruas, nos becos e nas vielas de
nossas cidades muitas respostas
sendo produzidas.
Tendo isso em vista, as
universidades precisam ser espaços
de fomento à diversidade cultural. E
para isto é fundamental incluir no
debate aqueles conhecimentos que
historicamente vêm sendo aniquilados.
254
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
coletivos localizados não apenas em
Salvador, mas também em outras
rasil e da Colômbia. Os
temas eram variados: política, arte,
educação, economia, comunicação
etc. e serviram de estímulo para que
eu buscasse me informar a partir de
outras fontes. Não exclusivamente a
partir das principais agências de
notícias da minha ci
dade e do meu
país, nem necessariamente através da
bibliografia usualmente adotada dentro
das universidades e que, em sua
maioria, não possui um compromisso
com a apresentação de histórias
múltiplas. Afinal, as informações
podem ser acessadas diretamente
través das páginas dos coletivos,
projetos, movimentos sociais e
associações que ocupam
determinadas territorialidades.
Contudo, vale lembrar que essa é
apenas uma via possível e que nas
ruas, nos becos e nas vielas de
nossas cidades há muitas respostas
Tendo isso em vista, as
universidades precisam ser espaços
de fomento à diversidade cultural. E
para isto é fundamental incluir no
debate aqueles conhecimentos que
historicamente vêm sendo aniquilados.
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
Entretanto, vale ressaltar que não
defendo aqui a subs
tituição dos
conhecimentos e, consequentemente,
dos(as) autores(as) que predominam
hoje
tanto no ambiente acadêmico
quanto nos meios de comunicação
por aqueles que citei anteriormente, e
sim que exista
de forma equitativa
espaço para essas outras n
em nossas formações. A expectativa é
de que possamos ter histórias sendo
contadas por outras vozes e por
diferentes perspectivas, o que vale
para a vida em ambientes como
universidades e escolas, mas também
para nossa vida em sociedade.
Cabe tamb
ém questionar se as
universidades conseguem dialogar
com os diversos segmentos sociais
que as rodeiam, que não é incomum
escutar relatos de pessoas que
possuem uma visão negativa sobre
essas instituições ou que
simplesmente não percebem uma
relação dire
ta entre as suas vidas e
aquilo que é produzido por esses
espaços acadêmicos. Isso se deve,
em parte, aos trabalhos e às
pesquisas realizadas em campo que
iniciam com a promessa de oferecer
retorno ou continuidade aos
participantes e que, no final, sequer
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
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Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
Entretanto, vale ressaltar que não
tituição dos
conhecimentos e, consequentemente,
dos(as) autores(as) que predominam
tanto no ambiente acadêmico
quanto nos meios de comunicação
por aqueles que citei anteriormente, e
de forma equitativa
espaço para essas outras n
arrativas
em nossas formações. A expectativa é
de que possamos ter histórias sendo
contadas por outras vozes e por
diferentes perspectivas, o que vale
para a vida em ambientes como
universidades e escolas, mas também
para nossa vida em sociedade.
ém questionar se as
universidades conseguem dialogar
com os diversos segmentos sociais
que as rodeiam, já que não é incomum
escutar relatos de pessoas que
possuem uma visão negativa sobre
essas instituições ou que
simplesmente não percebem uma
ta entre as suas vidas e
aquilo que é produzido por esses
espaços acadêmicos. Isso se deve,
em parte, aos trabalhos e às
pesquisas realizadas em campo que
iniciam com a promessa de oferecer
retorno ou continuidade aos
participantes e que, no final, sequer
entregam o produto final às pessoas
que disponibilizaram seu tempo e seus
dados para a realização daquela
atividade, estudo etc.
Nota-
se, portanto, que os dados
sobre as periferias interessam às
universidades. Então por que será
que, muitas vezes, o resul
sendo o isolamento social dessas
instituições?
Trago essa provocação
para que não caiamos na armadilha de
nos fecharmos dentro dos muros das
universidades sem que estejamos
efetivamente em diálogo com a
comunidade. É inegável que o
conhecimento
científico produzido nos
ambientes acadêmicos pode beneficiar
sujeitos e territórios e que, atualmente,
percebe-
se um novo perfil de
estudantes universitários(as)
presença de mais negros(as) e
favelados(as), por exemplo
conhecimento científi
apenas nas universidades e nem é o
único modo de saber que é relevante.
Além disso, não basta que as
universidades estejam sendo
compostas por um blico mais plural
se as epistemes valorizadas
continuam sendo as mesmas.
Por isso, a proposta do
Redor me contempla: este é um
255
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
entregam o produto final às pessoas
que disponibilizaram seu tempo e seus
dados para a realização daquela
atividade, estudo etc.
se, portanto, que os dados
sobre as periferias interessam às
universidades. Então por que será
que, muitas vezes, o resul
tado acaba
sendo o isolamento social dessas
Trago essa provocação
para que não caiamos na armadilha de
nos fecharmos dentro dos muros das
universidades sem que estejamos
efetivamente em diálogo com a
comunidade. É inegável que o
científico produzido nos
ambientes acadêmicos pode beneficiar
sujeitos e territórios e que, atualmente,
se um novo perfil de
estudantes universitários(as)
a
presença de mais negros(as) e
favelados(as), por exemplo
mas o
conhecimento científi
co não está
apenas nas universidades e nem é o
único modo de saber que é relevante.
Além disso, não basta que as
universidades estejam sendo
compostas por um público mais plural
se as epistemes valorizadas
continuam sendo as mesmas.
Por isso, a proposta do
Rede ao
Redor me contempla: este é um
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
espaço para fortalecer as trocas entre
universidade e comunidade, entre
grupos e, finalmente, entre pessoas
que se mobilizam pelas causas
coletivas e que acreditam que podem
se fortalecer em conjunto.
Aqui, autor 2,
entrando suave
na trama com a fita vermelha (ou
encarnada, se quisermos multiplicar
um pouco mais os sentidos) para
seguir a teia tecida por tantos
sentipensares
. Cria do Capão
Redondo, periferia de São Paulo, trago
comigo as memórias das histórias
teci
das “da ponte pra cá, na
contundente e hoje clássica
formulação dos Racionais. E nestas
memórias estão amigos que ficaram
pelo caminho, tragados pela máquina
que cava as covas onde caem corpos
muito descartados. (Negro) drama
que é também cotidiano em
outras latitudes deste país, deste
continente que parece que padece
desmemórias. Mas
estão também na
memória as
muitas e tantas histórias
de que estamos feitas/os, a longa
história de insurgências, de
aprendizagens coletivas sobre como
lidar e o que fazer com a raiva digna
de quem se reconhece sujeito de
direitos. Assim, com a certeza de que
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
espaço para fortalecer as trocas entre
universidade e comunidade, entre
grupos e, finalmente, entre pessoas
que se mobilizam pelas causas
coletivas e que acreditam que podem
entrando suave
na trama com a fita vermelha (ou
encarnada, se quisermos multiplicar
um pouco mais os sentidos) para
seguir a teia tecida por tantos
. Cria do Capão
Redondo, periferia de São Paulo, trago
comigo as memórias das histórias
das da ponte pra cá”, na
contundente e hoje clássica
formulação dos Racionais. E nestas
memórias estão amigos que ficaram
pelo caminho, tragados pela máquina
que cava as covas onde caem corpos
há muito descartados. (Negro) drama
que é também cotidiano em
diversas
outras latitudes deste país, deste
continente que parece que padece
estão também na
muitas e tantas histórias
de que estamos feitas/os, a longa
história de insurgências, de
aprendizagens coletivas sobre como
lidar e o que fazer com a raiva digna
de quem se reconhece sujeito de
direitos. Assim, com a certeza de que
mesmo muitas outras
sendo vividas-
contadas, seguimos a
trama contando um pouco do tanto
que vem se tecendo nestes nossos
outros centros
gestos que terminam
sendo outro exemplo contundente
daquilo que Raul Zibecchi (2018)
chamou de “desbordes desde abajo.
E vamo arriba.
Peço licença para entrar nessa
teia. Sou a ‘autora 1’. Tenho em mãos
a fita azul, que me conecta à força das
águas. Sou nascida e criada em
Salvador. Bisneta, neta e filha de
mulheres que
cada qual ao seu
modo
subverteram os lugares pré
estab
elecidos para as mulheres de
suas épocas. Delas, herdei o espírito
inquieto, a capacidade de sonhar e a
coragem para me indignar com as
injustiças sociais e agir para enfrentá
las.
Tive a grata oportunidade de me
descobrir jovem, mulher,
pesquisadora, jor
nalista no diálogo
com crianças, jovens, adultos, anciãs,
anciãos de Fazenda Coutos,
Plataforma, Nordeste de Amaralina,
Sussuarana, Cajazeiras, Uruguai e
tantos outros centros de uma Salvador
tão múltipla. Com elas e eles aprendi
desde cedo que buscar por
256
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
há mesmo muitas outras
histórias
contadas, seguimos a
trama contando um pouco do tanto
que vem se tecendo nestes nossos
gestos que terminam
sendo outro exemplo contundente
daquilo que Raul Zibecchi (2018)
chamou de desbordes desde abajo”.
Peço licença para entrar nessa
teia. Sou a autora 1. Tenho em mãos
a fita azul, que me conecta à força das
águas. Sou nascida e criada em
Salvador. Bisneta, neta e filha de
cada qual ao seu
subverteram os lugares pré
-
elecidos para as mulheres de
suas épocas. Delas, herdei o espírito
inquieto, a capacidade de sonhar e a
coragem para me indignar com as
injustiças sociais e agir para enfrentá
-
Tive a grata oportunidade de me
descobrir jovem, mulher,
nalista no diálogo
com crianças, jovens, adultos, anciãs,
anciãos de Fazenda Coutos,
Plataforma, Nordeste de Amaralina,
Sussuarana, Cajazeiras, Uruguai e
tantos outros centros de uma Salvador
tão múltipla. Com elas e eles aprendi
desde cedo que buscar por
justiça
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
social em um país como o Brasil
constituído por estruturas racistas e
patriarcais
obrigatoriamente, se comprometer
com lutas antirracistas e feministas.
E, assim, sigo atuando em
várias frentes, mas numa mesma
tessitura. Especificame
nte na área
acadêmica
arena de disputa que
considero muito
estratégica e
necessária -
desde 2017 estou
dedicada ao processo de
doutoramento
13
. Com o
acompanhamento e parceria afetiva e
comprometida do‘
autor 2’ e de forma
enredada com muita gente me
ao desafio de pesquisar com (e não
sobre) jovens que atuam em grupos
culturais em regiões consideradas
periféricas de Salvador e de Santiago
de Cali, na Colômbia. O que move o
estudo é fazer uma reflexão
aprofundada sobre a contundência e a
consistê
ncia das construções de
13
Até o momento, a tese está intitulada como
“Epistemologias das Quebradas: um estudo
com jovens ativistas em Salvador (BA), Brasil
e Santiago de Cali (Valle del Cauca),
Colômbia”. É realizada no Programa de Pós
Graduação em Cultura e Sociedade na
Universidade Federal da Bahia
(Poscultura/UFBA), sob orientação dos
professores Carlos Bonfim e Gisele
Nussbaumer.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
social em um país como o Brasil
constituído por estruturas racistas e
pressupõe,
obrigatoriamente, se comprometer
com lutas antirracistas e feministas.
E, assim, sigo atuando em
várias frentes, mas numa mesma
nte na área
arena de disputa que
estratégica e
desde 2017 estou
dedicada ao processo de
. Com o
acompanhamento e parceria afetiva e
autor 2 e de forma
enredada com muita gente me
lancei
ao desafio de pesquisar com (e não
sobre) jovens que atuam em grupos
culturais em regiões consideradas
periféricas de Salvador e de Santiago
de Cali, na Colômbia. O que move o
estudo é fazer uma reflexão
aprofundada sobre a contundência e a
ncia das construções de
Até o momento, a tese está intitulada como
Epistemologias das Quebradas: um estudo
com jovens ativistas em Salvador (BA), Brasil
e Santiago de Cali (Valle del Cauca),
Colômbia. É realizada no Programa de Pós
Graduação em Cultura e Sociedade na
(Poscultura/UFBA), sob orientação dos
professores Carlos Bonfim e Gisele
conhecimento produzidas pelos
coletivos culturais nessas quebradas.
E foi trilhando esse caminho
que nos cruzamos: eu, o autor 2, a
‘autora 4’ea ‘autora 3’. E nesse escrito,
apostamos nos nós do nosso
encontro, para refletirmos
vem se tecendo nos quilombos
urbanos contemporâneos e quais são
os “modelos de organização dinâmica
que se apresentam.
Rede ao Redor: uma cartografia em
movimento
Para nos acercarmos mais a
esses quilombos urbanos que
entendemos como produto
potentes ofensivas culturais
emancipadoras,
nos lançamos ao
desafio de ampliar e fortalecer uma
rede com os coletivos e tecer
intervenções de forma cada vez mais
articulada. Assim, demos início em
2016, ao projeto
Rede ao Redor:
cartografia de in
iciativas em arte e
comunicação nas periferias de
Salvador
14
.
14
O Rede
ao Redor foi criado com o propósito
de realizar um mapeamento de iniciativas em
arte e comunicação idealizadas e lideradas por
jovens das periferias de Salvador. Coordenado
pelo ‘autor 2’ e pela ‘autora 1, do Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Pr
Santos (IHAC/UFBA), o Rede conta com uma
257
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
conhecimento produzidas pelos
coletivos culturais nessas “quebradas”.
E foi trilhando esse caminho
que nos cruzamos: eu, o ‘autor 2’, a
autora 4ea autora 3’. E nesse escrito,
apostamos nos nós do nosso
encontro, para refletirmos
sobre o que
vem se tecendo nos quilombos
urbanos contemporâneos e quais são
os modelos de organização dinâmica”
Rede ao Redor: uma cartografia em
Para nos acercarmos mais a
esses quilombos urbanos que
entendemos como produto
res de
potentes ofensivas culturais
nos lançamos ao
desafio de ampliar e fortalecer uma
rede com os coletivos e tecer
intervenções de forma cada vez mais
articulada. Assim, demos início em
Rede ao Redor:
iciativas em arte e
comunicação nas periferias de
ao Redor foi criado com o propósito
de realizar um mapeamento de iniciativas em
arte e comunicação idealizadas e lideradas por
jovens das periferias de Salvador. Coordenado
pelo autor 2 e pela autora 1’, do Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Pr
of. Milton
Santos (IHAC/UFBA), o Rede conta com uma
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
Sabe-
se que as periferias de
nossas cidades vivem dinâmicas que
vão muito além do que habitualmente
se difunde nos meios hegemônicos de
comunicação. Sabe-
se, do mesmo
modo, que os bairros periféricos
com eles seus habitantes
tratados de modo reco
rrente a partir de
clichês que perpetuam uma visão
estigmatizadora da periferia. Se é
verdade que nossos espaços urbanos
e neles de modo particular, as
periferias -
ostentam indicadores
sociais que demandam especial
atenção, também é verdade que na
contr
amão do que cotidianamente se
difunde sobre essas regiões, existem
diversas iniciativas que vêm se
constituindo como espaços
privilegiados de formação de artistas,
de cidadãos, de público e de produção
de conhecimento.
O Rede ao Redor nasce e
segue com es
se objetivo. Difundir,
conectar, ampliar, fortalecer esta rede
que se tece entre muitas
sensibilidades.
Sabemos que o que
conseguimos mapear até o momento
certamente está muito aquém do que
equipe de pesquisadores composta por
integrantes de coletivos culturais de Salvador,
estudantes de graduação e de pós
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
se que as periferias de
nossas cidades vivem dinâmicas que
vão muito além do que habitualmente
se difunde nos meios hegemônicos de
se, do mesmo
modo, que os bairros periféricos
e
com eles seus habitantes
são
rrente a partir de
clichês que perpetuam uma visão
estigmatizadora da periferia. Se é
verdade que nossos espaços urbanos
e neles de modo particular, as
ostentam indicadores
sociais que demandam especial
atenção, também é verdade que na
amão do que cotidianamente se
difunde sobre essas regiões, existem
diversas iniciativas que vêm se
constituindo como espaços
privilegiados de formação de artistas,
de cidadãos, de público e de produção
O Rede ao Redor nasce e
se objetivo. Difundir,
conectar, ampliar, fortalecer esta rede
que se tece entre muitas
Sabemos que o que
conseguimos mapear até o momento
certamente está muito aquém do que
equipe de pesquisadores composta por
integrantes de coletivos culturais de Salvador,
estudantes de graduação e de pós
-graduação.
de fato existe de iniciativas espalhadas
por esses nossos outro
nos permite reiterar o quão potentes
são estes territórios e o quão diversas
são as
ofensivas culturais
emancipadoras
construídas neles.
A partir do mapeamento inicial
realizado em 2016
atualizado agora em 2021
identificadas 106 iniciativas, entre
coletivos autônomos, pontos de
cultura, associações, projetos e ONGs.
Do total, 51 (47%) se definiram como
coletivo autônomo. A maioria (83%)
realiza ações voltadas para o público
em geral, com enfoque nas
populações d
os bairros onde moram
e/ou atuam seus integrantes.
Com relação às linguagens
utilizadas, aparecem com maior
frequência a poesia e a comunicação
(audiovisual, cinema e fotografia). E
15
Em parceria com a ONG CIPÓ
Comunicação Interativa e de forma articulada
c
om a pesquisa de doutorado da autora 1,
voltamos a disponibilizar um formulário
eletrônico para mapear as iniciativas em arte e
comunicação nas periferias de Salvador e,
assim, atualizar e ampliar o banco de dados
que já temos. O processo segue em
andame
nto. Até o dia 30 de julho de 2021, 52
coletivos haviam feito o cadastro. A grande
parte não constava no primeiro levantamento,
o que aponta para um aumento significativo de
iniciativas mapeadas, bem como de uma maior
abrangência territorial das ações. O c
pode ser feito por meio do link:
https://forms.gle/19iVujQCzrsbbm9G6
258
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
de fato existe de iniciativas espalhadas
por esses nossos outro
s centros, mas
já nos permite reiterar o quão potentes
são estes territórios e o quão diversas
ofensivas culturais
construídas neles.
A partir do mapeamento inicial
e que está sendo
atualizado agora em 2021
15
- foram
identificadas 106 iniciativas, entre
coletivos autônomos, pontos de
cultura, associações, projetos e ONGs.
Do total, 51 (47%) se definiram como
coletivo autônomo. A maioria (83%)
realiza ações voltadas para o público
em geral, com enfoque nas
os bairros onde moram
e/ou atuam seus integrantes.
Com relação às linguagens
utilizadas, aparecem com maior
frequência a poesia e a comunicação
(audiovisual, cinema e fotografia). E
Em parceria com a ONG CIPÓ
-
Comunicação Interativa e de forma articulada
om a pesquisa de doutorado da ‘autora 1’,
voltamos a disponibilizar um formulário
eletrônico para mapear as iniciativas em arte e
comunicação nas periferias de Salvador e,
assim, atualizar e ampliar o banco de dados
que já temos. O processo segue em
nto. Até o dia 30 de julho de 2021, 52
coletivos haviam feito o cadastro. A grande
parte não constava no primeiro levantamento,
o que aponta para um aumento significativo de
iniciativas mapeadas, bem como de uma maior
abrangência territorial das ações. O c
adastro
pode ser feito por meio do link:
https://forms.gle/19iVujQCzrsbbm9G6
.
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
também: capoeira, teatro de rua,
dança, hip-
hop, samba de roda,
maracatu,
circo, literatura e música. A
maioria utiliza várias linguagens
artísticas em sua atuação.
Encontramos também iniciativas que
atuam com ativismo político e outras
que trabalham com a temática do
empoderamento estético e utilizam a
moda como linguagem para
o fortalecimento identitário de jovens
negros e negras.
No que se refere à abrangência
da atuação, 79 coletivos mapeados
têm algum bairro ou região onde
concentram suas ações que são as
localidades onde moram seus
integrantes. Os demais coletiv
têm atuação descentralizada,
realizando atividades em praças,
ônibus, redes digitais e espaços
culturais em toda a cidade.
O bairro que concentrou maior
número de iniciativas foi Sussuarana,
em seguida, a região do Subúrbio
Ferroviário e em tercei
ro lugar o bairro
de São Caetano. O mapeamento
também registrou iniciativas em:
Cajazeiras, São Cristóvão, Itapuã,
Cosme de Farias, Pituaçu, Itapuã,
Liberdade, Nova Brasília, Tubarão,
Jardim Cruzeiro, Escada, Fazenda
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
também: capoeira, teatro de rua,
hop, samba de roda,
circo, literatura e música. A
maioria utiliza várias linguagens
artísticas em sua atuação.
Encontramos também iniciativas que
atuam com ativismo político e outras
que trabalham com a temática do
empoderamento estético e utilizam a
moda como linguagem para
trabalhar
o fortalecimento identitário de jovens
No que se refere à abrangência
da atuação, 79 coletivos mapeados
têm algum bairro ou região onde
concentram suas ações que são as
localidades onde moram seus
integrantes. Os demais coletiv
os (27)
têm atuação descentralizada,
realizando atividades em praças,
ônibus, redes digitais e espaços
culturais em toda a cidade.
O bairro que concentrou maior
número de iniciativas foi Sussuarana,
em seguida, a região do Subúrbio
ro lugar o bairro
de São Caetano. O mapeamento
também registrou iniciativas em:
Cajazeiras, São Cristóvão, Itapuã,
Cosme de Farias, Pituaçu, Itapuã,
Liberdade, Nova Brasília, Tubarão,
Jardim Cruzeiro, Escada, Fazenda
Grande do Retiro, Nordeste de
Amaralina
, Rio Vermelho,
Mussurunga. Periperi, Mata Escura,
Baixa do Fiscal, Calabar, Engenho
Velho de Brotas, Barroquinha,
Arenoso, Alto da Sereia, entre outros.
Sobre o perfil dos grupos, a
maioria é formada por jovens e adultos
autodeclarados negros e negras. E
muitos casos, os adultos começaram
sua atuação ainda adolescente e/ou
jovem. Observamos que, em geral,
havia um equilíbrio de gênero entre
as/os participantes.
As motivações dos/as jovens
para criar uma iniciativa cultural ou se
juntar a ela partem, em geral, de
sentimentos semelhantes:
descontentamento, desesperança,
indignação. Para Castells (2017, p.
29), muitos destes processos de ação
coletiva são enraizados
propelidos pelo entusiasmo e
motivados pela esperança. Como
apontam algumas falas das/dos
nossas/os interlocutores/as:
Criamos o JACA para estar com
poesia (...) para a juventude
comunicar seus erros, seus
problemas, suas dores. Para a
gent
e crescer junto e construir
formas estratégicas para vencer
(
Marcos Paulo Silva
Ativista de Cajazeiras, Salvador
259
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
Grande do Retiro, Nordeste de
, Rio Vermelho,
Mussurunga. Periperi, Mata Escura,
Baixa do Fiscal, Calabar, Engenho
Velho de Brotas, Barroquinha,
Arenoso, Alto da Sereia, entre outros.
Sobre o perfil dos grupos, a
maioria é formada por jovens e adultos
autodeclarados negros e negras. E
m
muitos casos, os adultos começaram
sua atuação ainda adolescente e/ou
jovem. Observamos que, em geral,
havia um equilíbrio de gênero entre
As motivações dos/as jovens
para criar uma iniciativa cultural ou se
juntar a ela partem, em geral, de
sentimentos semelhantes:
descontentamento, desesperança,
indignação. Para Castells (2017, p.
29), muitos destes processos de ação
coletiva são enraizados
na indignação,
propelidos pelo entusiasmo e
motivados pela esperança. Como
apontam algumas falas das/dos
nossas/os interlocutores/as:
Criamos o JACA para estar com
poesia (...) para a juventude
comunicar seus erros, seus
problemas, suas dores. Para a
e crescer junto e construir
formas estratégicas para vencer
.
Marcos Paulo Silva
Juventude
Ativista de Cajazeiras, Salvador
)
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
O Levante nasce porque
queríamos apresentar uma
alternativa, apresentar que era
possível a gente continuar em
uma outra realidad
pudéssemos apresentar ao povo
brasileiro que a gente poderia
tomar as rédeas da nossa vida
em nossas próprias mãos
Hirsberg
Levante Popular da
Juventude
16
)
Muitos/as jovens com quem
dialogamos localizam esta indignação
na necessidade de criar e/ou se
associar a movimentos, coletivos,
grupos de arte e comunicação para
enfrentar as marcas de
estigmatização, decorrentes do
racismo. Dizem também que quando
o/a jo
vem negro/a começa a tomar
consciência do racismo que marca e
encarcera seu corpo, essa indignação
vira vontade de “gritar”. E nos grupos
que criam e/ou se associam,
encontram um espaço de acolhimento
para que esse grito seja coletivo.
Comecei a fazer teat
Oloruns da Arte, de Danúbia
Santos. O primeiro espetáculo
que ela criou chamava: Onde
está o seu racismo?, no qual ela
trazia várias questões e eu
comecei a me inteirar disso e
sentir essa necessidade de ter
essa leitura mais próxima de
mim, de
coisas que falassem da
minha realidade. E aí fomos
16
https://www.instagram.com/levantedajuventu
de/
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
O Levante nasce porque
queríamos apresentar uma
alternativa, apresentar que era
possível a gente continuar em
uma outra realidad
e que
pudéssemos apresentar ao povo
brasileiro que a gente poderia
tomar as rédeas da nossa vida
em nossas próprias mãos
. (Júlia
Levante Popular da
Muitos/as jovens com quem
dialogamos localizam esta indignação
na necessidade de criar e/ou se
associar a movimentos, coletivos,
grupos de arte e comunicação para
enfrentar as marcas de
estigmatização, decorrentes do
racismo. Dizem também que quando
vem negro/a começa a tomar
consciência do racismo que marca e
encarcera seu corpo, essa indignação
vira vontade de gritar. E nos grupos
que criam e/ou se associam,
encontram um espaço de acolhimento
para que esse grito seja coletivo.
Comecei a fazer teat
ro com o
Oloruns da Arte, de Danúbia
Santos. O primeiro espetáculo
que ela criou chamava: ‘Onde
está o seu racismo?’, no qual ela
trazia várias questões e eu
comecei a me inteirar disso e
sentir essa necessidade de ter
essa leitura mais próxima de
coisas que falassem da
minha realidade. E fomos
https://www.instagram.com/levantedajuventu
fazendo, continuamos a fazer
mobilizações, criamos um projeto
chamado: ‘Perifa é arte: um olhar
diferente’, pensando na forma
como as pessoas olhavam para a
periferia [...] então um dos
objetivos era [.
como a gente estava formando
outros jovens para enfrentar o
racismo, o machismo.
Sussuarana -
Sarau da Onça
Aconteceu um evento chamado
Encrespa Geral, promovido aqui
em Salvador ou pela Elseve ou
Loreal. Eles tinham convidado
u
ma de nós para recitar. Uma foi
marcando a outra. Nós fomos e
tinha uma artista da Globo que
fazia comerciais de cabelos
cacheados. No fim, a gente odiou
o evento porque os seguranças
eram muito agressivos conosco
[...]
. A performance foi muito
legal, mas
estresses com os seguranças
várias coisas nós observávamos:
por exemplo essas coisas dos
cosméticos com seus produtos
para cabelos cacheados, quase
lisos. Participar desse evento foi
muito importante porque nós
percebíamos essas coisa
e quando terminou a
apresentação,
não parar mais
seria um grupo para se formar
politicamente, enquanto um grupo
de jovens negras para
instrumentalizar as mulher
também na questão da música
[...]
então eu chamei
para aprender a tocar os
instrumentos e foi nessa ideia
que se iniciou o Coletivo
ZeferinaS. Vamos nos juntar!
Vamos nos apropriar dessas
questões políticas e ideológicas e
também nos instrumentos
17
https://www.instagram.com/saraudaonca/
260
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
fazendo, continuamos a fazer
mobilizações, criamos um projeto
chamado: Perifa é arte: um olhar
diferente, já pensando na forma
como as pessoas olhavam para a
periferia [...] então um dos
objetivos era [.
..] de saber em
como a gente estava formando
outros jovens para enfrentar o
racismo, o machismo.
(Sandro
Sarau da Onça
17
).
Aconteceu um evento chamado
Encrespa Geral, promovido aqui
em Salvador ou pela Elseve ou
Loreal. Eles tinham convidado
ma de nós para recitar. Uma foi
marcando a outra. Nós fomos e
tinha uma artista da Globo que
fazia comerciais de cabelos
cacheados. No fim, a gente odiou
o evento porque os seguranças
eram muito agressivos conosco
. A performance foi muito
legal, mas
rolaram alguns
estresses com os seguranças
[...]
várias coisas nós observávamos:
por exemplo essas coisas dos
cosméticos com seus produtos
para cabelos cacheados, quase
lisos. Participar desse evento foi
muito importante porque nós
percebíamos essas coisa
s todas,
e quando terminou a
apresentação,
a gente decidiu
não parar mais
[...]. A princípio
seria um grupo para se formar
politicamente, enquanto um grupo
de jovens negras para
instrumentalizar as mulher
es
também na questão da música
então eu chamei
as meninas
para aprender a tocar os
instrumentos e foi nessa ideia
que se iniciou o Coletivo
ZeferinaS. Vamos nos juntar!
Vamos nos apropriar dessas
questões políticas e ideológicas e
também nos instrumentos
https://www.instagram.com/saraudaonca/
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
musicais! (
Mariana dos Santos de
Souza – Coleti
vo ZeferinaS
Outro fator referente à
motivação por criar os grupos é a
busca pela sustentabilidade. Para
muitos/as jovens, a arte e a
comunicação são caminhos possíveis
para a construção de uma carreira e
para a inserção no mercado de
trabalho de uma f
orma mais digna,
sem precisar se submeter a atividades
de natureza precária. Isto também
reforça a motivação anterior que
citamos: a de utilizar as ferramentas
de comunicação e arte para enfrentar
o racismo -
uma vez que é o racismo
que estrutura as relaçõ
socioeconômicas e estabelece os
“pontos de chegada” para as pessoas
brancas e as não-
brancas: para os
negros, a produção cultural pode ser
tomada como esteio para as maneiras
de ‘buscar a liberdade, em um
contexto social que decidiu
desumanizá-los, torná-
los
(SOUZA, 2011, p. 42). o aceitar o
lugar “pré-
estabelecido”, pode ser uma
forma de enfrentar o racismo
estrutural:
18
https://www.instagram.com/coletivozeferinas/
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
Mariana dos Santos de
vo ZeferinaS
18
).
Outro fator referente à
motivação por criar os grupos é a
busca pela sustentabilidade. Para
muitos/as jovens, a arte e a
comunicação são caminhos possíveis
para a construção de uma carreira e
para a inserção no mercado de
orma mais digna,
sem precisar se submeter a atividades
de natureza precária. Isto também
reforça a motivação anterior que
citamos: a de utilizar as ferramentas
de comunicação e arte para enfrentar
uma vez que é o racismo
que estrutura as relaçõ
es
socioeconômicas e estabelece os
pontos de chegada para as pessoas
brancas: “para os
negros, a produção cultural pode ser
tomada como esteio para as maneiras
de buscar a liberdade’, em um
contexto social que decidiu
los
coisas”
(SOUZA, 2011, p. 42). Não aceitar o
estabelecido, pode ser uma
forma de enfrentar o racismo
https://www.instagram.com/coletivozeferinas/
[...]
em 2015, quando fui olhar
minha carteira de trabalho
livro chamado carteira de trabalho
-
tinha: telemarketing
vendedora. Eu sabia que eu era
uma potência, em termos de
criatividade, de inteligência. Eu
me enxergava como uma pessoa
potente e quando eu me dei
conta que aos 24 anos o que
tinha na minha carteira era
telemarketing e vendedora, e que
essa era a ofe
rta para a gente na
época, tipo, se você vai hoje
procurar emprego para uma
pessoa que o é formada, uma
pessoa negra, só é ofertado isso.
É muito louco isso. Isso ocorre
até se você é formado. Salvador
é a cidade do desemprego, né?
Essa oferta de emprego
as pessoas se formam só é para
pessoas brancas. Isso é uma
coisa muito clara, ou escurecida,
sei lá. Enfim, eu já estava
cansada de depositar minha
inteligência em outras empresas
e Mai (
outra integrante do
coletivo)
também já estava nessa,
a ge
nte queria empreender
(Lívia Suarez
A organização dos grupos, de
forma geral, se por meio de
processos de autogestão, com
tomadas de decisões coletivas, num
modelo mais horizontalizado de
distribuição de poder entre os/as
integrant
es dos grupos. A internet é
uma ferramenta muito utilizada para
garantir o debate e facilitar a
261
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
em 2015, quando fui olhar
minha carteira de trabalho
- um
livro chamado carteira de trabalho
só tinha: telemarketing
,
vendedora. Eu sabia que eu era
uma potência, em termos de
criatividade, de inteligência. Eu
me enxergava como uma pessoa
potente e aí quando eu me dei
conta que aos 24 anos o que
tinha na minha carteira era
telemarketing e vendedora, e que
rta para a gente na
época, tipo, se você vai hoje
procurar emprego para uma
pessoa que não é formada, uma
pessoa negra, é ofertado isso.
É muito louco isso. Isso ocorre
até se você é formado. Salvador
é a cidade do desemprego, né?
Essa oferta de emprego
quando
as pessoas se formam é para
pessoas brancas. Isso é uma
coisa muito clara, ou escurecida,
sei lá. Enfim, eu estava
cansada de depositar minha
inteligência em outras empresas
outra integrante do
também já estava nessa,
nte já queria empreender
.
Casa La Frida)
A organização dos grupos, de
forma geral, se dá por meio de
processos de autogestão, com
tomadas de decisões coletivas, num
modelo mais horizontalizado de
distribuição de poder entre os/as
es dos grupos. A internet é
uma ferramenta muito utilizada para
garantir o debate e facilitar a
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
realização de ações coletivas. Por
meio dela, são divulgadas as
atividades e conteúdos produzidos
pelos grupos e também articulados
eventos como manifestações d
audiências públicas, campanhas de
financiamento coletivo, entre outras.
Todas as iniciativas
desenvolvem processos formativos,
alguns mais sistemáticos (escolas
comunitárias, formações continuadas
etc.) e outros mais pontuais (oficinas,
rodas de conversa,
seminários etc
Investir na formação de
multiplicadores/as é prioridade de
todas as iniciativas mapeadas.
Esse foco na formação de
novos quadros pode ser um dos
motivos pelos quais hoje seja possível
advertir mais amplamente o aumento
do número de coletivos juvenis
autônomos. uma evidente
intensificação do processo de
ramificação das ações, uma trama que
se
tece via coletivos como, por
exemplo, o Sarau da Onça, Juventude
Ativista de Cajazeiras (JACA)
Resistência Poética
20
, que foram
inspirados no Sarau Bem Black,
19
https://www.instagram.co
m/jacanoinsta/
20
https://www.instagram.com/resistenciapoetic
a/
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
realização de ações coletivas. Por
meio dela, são divulgadas as
atividades e conteúdos produzidos
pelos grupos e também articulados
eventos como manifestações d
e rua,
audiências públicas, campanhas de
financiamento coletivo, entre outras.
Todas as iniciativas
desenvolvem processos formativos,
alguns mais sistemáticos (escolas
comunitárias, formações continuadas
etc.) e outros mais pontuais (oficinas,
seminários etc
.).
Investir na formação de
multiplicadores/as é prioridade de
todas as iniciativas mapeadas.
Esse foco na formação de
novos quadros pode ser um dos
motivos pelos quais hoje seja possível
advertir mais amplamente o aumento
do número de coletivos juvenis
autônomos. Há uma evidente
intensificação do processo de
ramificação das ações, uma trama que
tece via coletivos como, por
exemplo, o Sarau da Onça, Juventude
Ativista de Cajazeiras (JACA)
19
e o
, que foram
inspirados no Sarau Bem Black,
m/jacanoinsta/
https://www.instagram.com/resistenciapoetic
idealizado pelo poeta Nelson Maca
que por sua vez se inspirou na
Cooperifa
22
, de São Paulo.
ZeferinaS é uma cria do sarau do
Jaca. E nesta dinâmica, vão se
esboçando pedagogias, abordagens,
leituras que
dão conta de saberes, de
táticas, de sensibilidades conectadas
com uma memória ancestral. E os
espaços, os territórios físicos
simbólicos em que atua esta juventude
aquilombada são também lugares
privilegiados de mobilização, de
acolhimento, de pertencimento.
E, neste sentido, o próprio sarau
é fecundo espaço pedagógico, como
aponta o poema “Sarau é formação,
de Marteluz de Jesus
23
Artística, Política e Identitária.
Nos Saraus em que tenho ido, tenho
Artística, Política e Identitária.
A Glória de ser Preto,
O Orgulho de ser Favela.
mim os ventos da revoluçã
Do meu povo que transborda em uma
juventude poetizada,
Nas senhoras e senhores que nos
ensinam a caminhar.
21
https://www.instagram.com/nelson_maca/
22
https://cooperifa.com.br/?page_id=9
23
Poema publicado no livro: O diferencial da
favela: dos contos às poesias de quebrada.
Sarau da Onça (org.
). Vitória da Conquista:
Editora Galinha Pulando, 2019.
262
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
idealizado pelo poeta Nelson Maca
21
,
que por sua vez se inspirou na
, de São Paulo.
O Coletivo
ZeferinaS já é uma cria” do sarau do
Jaca. E nesta dinâmica, vão se
esboçando pedagogias, abordagens,
dão conta de saberes, de
táticas, de sensibilidades conectadas
com uma memória ancestral. E os
espaços, os territórios físicos
e
simbólicos em que atua esta juventude
aquilombada são tamm lugares
privilegiados de mobilização, de
acolhimento, de pertencimento.
E, neste sentido, o próprio sarau
é fecundo espaço pedagógico, como
aponta o poema Sarau é formação”,
23
:
Sarau é formação
Artística, Política e Identitária.
Nos Saraus em que tenho ido, tenho
sentido em mim
Reafirmação...
Artística, Política e Identitária.
A Glória de ser Preto,
O Orgulho de ser Favela.
Periferia sopra em
mim os ventos da revoluçã
o.
Do meu povo que transborda em uma
juventude poetizada,
Nas senhoras e senhores que nos
ensinam a caminhar.
https://www.instagram.com/nelson_maca/
https://cooperifa.com.br/?page_id=9
Poema publicado no livro: O diferencial da
favela: dos contos às poesias de quebrada.
). Vitória da Conquista:
Editora Galinha Pulando, 2019.
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
expressão de quem quer viver diferente
E na arte transcende sua mente.
Saraus como os
que conheci, me enchem de Esperança.
Somos tudo aq
uilo que a grande mídia
Somos Liberdade, Criatividade, Força,
Negritude em
verso e prosa,
Somos o que os Opressores não querem,
Somos a voz consciente da nossa gente,
Somos Luta Consistente que não
pretende se calar.
Vamos lacrar e
todo lugar que chegar.
Encontramos também entre as
ini
ciativas, quatro que funcionam como
espaços culturais na comunidade: o
JACA oferece no seu galpão
uma série de atividades para as
crianças, adolescentes e jovens do
bairro; o Acervo da Laje
24
é u
que abriga centenas de obras
artísticas e históricas sobre o Subúrbio
Ferroviário de Salvador e também
oferece em sua casa-
escola atividades
educativas e culturais gratuitas; a
Casa La Frida
25
é um espaço feminista
que pensa soluções para a inclusã
mulheres negras e periféricas na
mobilidade urbana a partir da bicicleta
e a Biblioteca Comunitária Zeferina
24
https://www.acervodalaje.com.br/
25
https://www.lafridabike.com/
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
O Sarau é
expressão de quem quer viver diferente
E na arte transcende sua mente.
Saraus como os
que conheci, me enchem de Esperança.
uilo que a grande mídia
não mostra.
Somos Liberdade, Criatividade, Força,
Inteligência
Negritude em
verso e prosa,
Somos o que os Opressores não querem,
Somos a voz consciente da nossa gente,
Somos Luta Consistente que não
pretende se calar.
Vamos lacrar e
m
todo lugar que chegar.
Encontramos também entre as
ciativas, quatro que funcionam como
espaços culturais na comunidade: o
JACA oferece no seu galpão
-sede
uma série de atividades para as
crianças, adolescentes e jovens do
é u
m espaço
que abriga centenas de obras
artísticas e históricas sobre o Subúrbio
Ferroviário de Salvador e também
escola atividades
educativas e culturais gratuitas; a
é um espaço feminista
que pensa soluções para a inclusã
o de
mulheres negras e periféricas na
mobilidade urbana a partir da bicicleta
e a Biblioteca Comunitária Zeferina
https://www.acervodalaje.com.br/
Beiru
26
é um espaço que foi ocupado e
ressignificado por jovens do bairro do
Arenoso e hoje abriga uma biblioteca e
uma rádio comunitária.
Mas
queremos nos deter ainda
numa outra iniciativa com a qual temos
estreitado diálogos e feito partilhas e
parcerias diversas. E para ouvir
de perto e com mais detalhes um tanto
do muito que se tece em Tubarão (e
além), trazemos novamente a voz da
‘aut
ora 3’, que com sua fita de chita
retoma o fio desta prosa e nos conta
algo do que se gesta nas comunidades
que nasceram e abrigam mais este
quilombo:
Eu vivo em Tubarão e é daqui
que escrevo, onde teço os fios desta
corda de
sambas entrelaçada
hi
stória do lugar através dos corpos
que dançam movimentos de
resistência para a manutenção das
tradições locais.
“Tubarão é pré
colonial”, disse o Professor José
Eduardo Ferreira Santos em uma
realizada durante o mês de junho de
2020, na série
Subúrbio
última atividade promovida pelo grupo
A Corda Samba de Roda. Cofundador
do Acervo da Laje, José Eduardo é
26
https://www.instagram.com/bibliotecazeferina
_beiru/
263
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
é um espaço que foi ocupado e
ressignificado por jovens do bairro do
Arenoso e hoje abriga uma biblioteca e
uma rádio comunitária.
queremos nos deter ainda
numa outra iniciativa com a qual temos
estreitado diálogos e feito partilhas e
parcerias diversas. E para ouvir
-sentir
de perto e com mais detalhes um tanto
do muito que se tece em Tubarão (e
além), trazemos novamente a voz da
ora 3, que com sua fita de chita
retoma o fio desta prosa e nos conta
algo do que se gesta nas comunidades
que nasceram e abrigam mais este
Eu vivo em Tubarão e é daqui
que escrevo, onde teço os fios desta
sambas entrelaçada
com a
stória do lugar através dos corpos
que dançam movimentos de
resistência para a manutenção das
Tubarão é pré
-
colonial, disse o Professor José
Eduardo Ferreira Santos em uma
live
realizada durante o mês de junho de
Subúrbio
Ancestral, a
última atividade promovida pelo grupo
A Corda Samba de Roda. Cofundador
do Acervo da Laje, José Eduardo é
https://www.instagram.com/bibliotecazeferina
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
inspiração para a juventude
suburbana. A afirmação convicta do
professor me chamou a atenção para
a urgência de acessar a história das
n
ossas comunidades de periferia, das
resistências
silenciadas e
distorcidas.
As expressões culturais, as
atividades de lazer e todas mais que
acontecem no território estão em cruzo
constante com as dinâmicas sociais
deste lugar. Não há como separa
vida e a celebração. Os corpos
compõem o organismo da comunidade
e suas práticas são os movimentos
que fazem acontecer a dinâmica local.
Todos são movimentos das relações
humanas que tecem o organismo de
Tubarão e cada movimento é
referência para o des
envolvimento de
uma compreensão mais substancial
sobre o território e sobre os sujeitos
que nele vivem.
Ao transitar entre a academia e
a periferia busco garantir espaços para
as nossas narrativas expressas em
fala, canto, dança e tradições
enraizadas na m
emória do território e
de nossas ancestrais. Afinal, aqui não
somos começo e nem fim, somos a
continuidade. Por isso a gente conta a
própria história e
vai preenchendo
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
inspiração para a juventude
suburbana. A afirmação convicta do
professor me chamou a atenção para
a urgência de acessar a história das
ossas comunidades de periferia, das
silenciadas e
lutas
As expressões culturais, as
atividades de lazer e todas mais que
acontecem no território estão em cruzo
constante com as dinâmicas sociais
deste lugar. Não há como separa
r a
vida e a celebração. Os corpos
compõem o organismo da comunidade
e suas práticas são os movimentos
que fazem acontecer a dinâmica local.
Todos são movimentos das relações
humanas que tecem o organismo de
Tubarão e cada movimento é
envolvimento de
uma compreensão mais substancial
sobre o território e sobre os sujeitos
Ao transitar entre a academia e
a periferia busco garantir espaços para
as nossas narrativas expressas em
fala, canto, dança e tradições
emória do território e
de nossas ancestrais. Afinal, aqui não
somos começo e nem fim, somos a
continuidade. Por isso a gente conta a
vai preenchendo
os
vãos vazios das nossas memórias
individuais e coletivas.E assim, nestes
movimentos, tece-
se essa teia que
enlaça histórias que nos devemos e
histórias que nos constituem e que
protagonizamos.
Rumo a uma
epistemologia das
quebradas? a
tivismos culturais para
além da resistência
Mas o que apontam os nós
dessa teia, dessa rede repleta
potência?
Que criativos
as fitas que tecem essa
Acreditamos
que esses quilombos
urbanos se configuram
espaços de resistência, que também o
são, evidentemente
-
ofensivas culturais que, em sintonia
com uma memória longa de dignas
insurgências, vêm buscando, criando,
dando forma a vias possíveis por onde
seguir. E no percurso, além de cura,
de reconstituição de laços
comunitários, de
acolhimento, de
partilhas, adverte-
se um processo a
partir do qual categorias e abordagens
são postas em xeque.
Essas ofensivas constroem
intelectualidades tecidas na luta e
sustentadas por ela, como nos diz
Nilma Lino Gomes (2017).
264
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
vãos vazios das nossas memórias
individuais e coletivas.E assim, nestes
se essa teia que
enlaça histórias que nos devemos e
histórias que nos constituem e que
epistemologia das
tivismos culturais para
Mas o que apontam os s
dessa teia, dessa rede repleta
de
Que criativos
cruzos tramam
as fitas que tecem essa
teia?
que esses quilombos
urbanos se configuram
- mais que
espaços de resistência, que também o
-
sobretudo como
ofensivas culturais que, em sintonia
com uma memória longa de dignas
insurgências, vêm buscando, criando,
dando forma a vias possíveis por onde
seguir. E no percurso, além de cura,
de reconstituição de laços
acolhimento, de
se um processo a
partir do qual categorias e abordagens
são postas em xeque.
Essas ofensivas constroem
intelectualidades tecidas na luta e
sustentadas por ela, como nos diz
Nilma Lino Gomes (2017).
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
Intelectualidades qu
e se constroem a
partir do desenvolvimento de uma
capacidade de leitura de si próprio/a
como agente de transformação, para
que possam atuar como
catalizadores/as deste processo junto
aos seus pares, construindo, ativando
e se retroalimentando de
“subjetivi
dades desestabilizadoras
(GOMES, 2017, p. 129). Ora, não seria
similar ao que o poeta Carlos Meneses
chama de “virar o jogo”?
E antes que o jogo acabe, ainda
vou salvar meus irmãos! Tirar os
manos da função, levar no sarau.
Se precisar, vou ensinar
improv
isação! Livrá
cadeados mentais e virar o jogo
Quando as juventudes à frente
de coletivos de comunicação, teatro,
música, poesia, audiovisual etc.
assumem-
se como produtoras de
intelectualidades que vão na
contramão daquelas às quais tiveram
acesso nas instâncias de sociabilidade
que forjam suas identidades, há uma
intencionalidade de disputa. E são os
marcadores de raça, gênero e classe
que
numa perspectiva interseccional
27
Trecho do poema Na Mira, de
Meneses, publicado no livro: Poéticas
Periféricas: novas vozes da poesia
soteropolitana. Vitória da Conquista: Editora
Galinha Pulando, 2018.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
e se constroem a
partir do desenvolvimento de uma
capacidade de leitura de si próprio/a
como agente de transformação, para
que possam atuar como
catalizadores/as deste processo junto
aos seus pares, construindo, ativando
e se retroalimentando de
dades desestabilizadoras”
(GOMES, 2017, p. 129). Ora, não seria
similar ao que o poeta Carlos Meneses
E antes que o jogo acabe, ainda
vou salvar meus irmãos! Tirar os
manos da função, levar no sarau.
Se precisar, vou ensinar
isação! Liv
-los dos
cadeados mentais e virar o jogo
27
Quando as juventudes à frente
de coletivos de comunicação, teatro,
música, poesia, audiovisual etc.
se como produtoras de
intelectualidades que vão na
contramão daquelas às quais tiveram
acesso nas instâncias de sociabilidade
que forjam suas identidades, há uma
intencionalidade de disputa. E são os
marcadores de raça, gênero e classe
numa perspectiva interseccional
Trecho do poema Na Mira, de
Carlos
Meneses, publicado no livro: Poéticas
Periféricas: novas vozes da poesia
soteropolitana. Vitória da Conquista: Editora
-
conduzem e sustentam essa
inte
ncionalidade que tece um conjunto
potente de práticas culturais
contestatórias assentadas nos chãos
do cotidiano. Mas, com que lentes
estamos olhando para elas? As
categorias com as quais temos
trabalhado ao abordar dinâmicas como
as que mencionamos aqui,
dar conta do que estas práticas
culturais movimentam, deslocam?
Ante a profusão de iniciativas, e
sobretudo o que elas vêm gerando nos
entornos em que se realizam, não
poderíamos talvez animar
considerar que está esboçando
nesses terr
itórios algo que poderíamos
chamar de uma
epistemologia das
quebradas?
As
quebradas
violentados física e simbolicamente,
mas que apesar dos cacos e corpos
tombados produzem cultura, vida,
práticas de insubordinação. Não por
acaso, inici
amos este escrito com
breve referência a
mocambos/quilombos do período
colonial e, através deles, aos saberes
que ali se gestaram e à sua longa
história de insurgências. Afinal, como
apontam Schwarcz e Gomes, os
escravizados foram timas, sim, [mas]
265
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
conduzem e sustentam essa
ncionalidade que tece um conjunto
potente de práticas culturais
contestatórias assentadas nos chãos
do cotidiano. Mas, com que lentes
estamos olhando para elas? As
categorias com as quais temos
trabalhado ao abordar dinâmicas como
as que mencionamos aqui,
conseguem
dar conta do que estas práticas
culturais movimentam, deslocam?
Ante a profusão de iniciativas, e
sobretudo o que elas vêm gerando nos
entornos em que se realizam, não
poderíamos talvez animar
-nos a
considerar que es esboçando
-se
itórios algo que poderíamos
epistemologia das
quebradas
são territórios
violentados física e simbolicamente,
mas que apesar dos cacos e corpos
tombados produzem cultura, vida,
práticas de insubordinação. Não por
amos este escrito com
breve referência a
mocambos/quilombos do período
colonial e, através deles, aos saberes
que ali se gestaram e à sua longa
história de insurgências. Afinal, como
apontam Schwarcz e Gomes, “os
escravizados foram vítimas, sim, [mas]
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
tamb
ém trataram de fazer muito mais
que “sobreviver”. Trouxeram,
traduziram e modificaram culturas
africanas, em territórios tropicais
(SCHWARCZ;
GOMES, 2018
seja, “sempre foi quebra de corrente,
reiteramos o verso de Emicida, citado
mais acima.
Olhar para a potência da
produção dos coletivos abordados aqui
é um convite, portanto, para
mudarmos as lentes, para olharmos os
problemas estruturais das sociedades
juntamente com essas juventudes que
se organizam comunitariamente
nestes outros centros a
iniciativas culturais. São jovens que
pegaram para si o termo periferia e o
assumiram, assim como tomaram para
si a tarefa de contar a própria história
(D’ANDREA, 2013).
O que vislumbramos como uma
possível e
pistemologia das quebradas
portanto, assenta-
se no
reconhecimento de que o primeiro
passo para construir outras
intelectualidades
que precisam
romper com as histórias únicas
apropriar de si, da memória dos seus,
das histórias e raízes arrancadas
violentamente. Uma vez reconectad
com essa memória que é viva, estes
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
ém trataram de fazer muito mais
que sobreviver. Trouxeram,
traduziram e modificaram culturas
africanas, já em territórios tropicais
.”
GOMES, 2018
, s/p) Ou
seja, sempre foi quebra de corrente”,
reiteramos o verso de Emicida, citado
Olhar para a potência da
produção dos coletivos abordados aqui
é um convite, portanto, para
mudarmos as lentes, para olharmos os
problemas estruturais das sociedades
juntamente com essas juventudes que
se organizam comunitariamente
nestes outros centros a
partir de
iniciativas culturais. São jovens que
pegaram para si o termo periferia e o
assumiram, assim como tomaram para
si a tarefa de contar a própria história
O que vislumbramos como uma
pistemologia das quebradas
,
se no
reconhecimento de que o primeiro
passo para construir outras
que precisam
romper com as histórias únicas
é se
apropriar de si, da memória dos seus,
das histórias e raízes arrancadas
violentamente. Uma vez reconectad
os
com essa memória que é viva, estes
grupos, utilizando a arte e a
comunicação como vetores
que publicam, batalham, sambam,
grafitam outras versões da história e
mobilizam seus pares para que se
somem a este processo
na linha de fr
ente da produção de
intelectualidades comprometidas como
enfrentamento a este apagamento
sistemático.
Constroem, assim, outros
centros que irradiam narrativas que
tensionam os lugares estabelecidos e
a forma “aceita” de saber válido, de
voz autorizada, de
conhecimento, em suma. A memória, a
linguagem e o corpo são os fios
condutores desta teia de
insubordinações. A memória é o n
q
ue costura tudo. O uso político da
palavra é ferramenta de luta e o corpo
é território fértil de (re)existências.
Tal como aponta Erica Peçanha
do Nascimento ao referir
visibilidade obtida pela produção
literária das quebradas (e que
podemos estender a parte expressiva
das produções realizadas por coletivos
como os aqui abordados), temos hoje
a possibilidade de
[...]
rever os parâmetros críticos
que determinam o que é boa ou
266
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
grupos, utilizando a arte e a
comunicação como vetores
- à medida
que publicam, batalham, sambam,
grafitam outras versões da história e
mobilizam seus pares para que se
somem a este processo
- colocam-se
ente da produção de
intelectualidades comprometidas como
enfrentamento a este apagamento
Constroem, assim, outros
centros que irradiam narrativas que
tensionam os lugares estabelecidos e
a forma aceita de saber válido, de
voz autorizada, de
produção de
conhecimento, em suma. A memória, a
linguagem e o corpo são os fios
condutores desta teia de
insubordinações. A memória é o n
ó
ue costura tudo. O uso político da
palavra é ferramenta de luta e o corpo
é território fértil de (re)existências.
Tal como aponta Erica Peçanha
do Nascimento ao referir
-se à
visibilidade obtida pela produção
literária das quebradas (e que
podemos estender a parte expressiva
das produções realizadas por coletivos
como os aqui abordados), temos hoje
rever os parâmetros críticos
que determinam o que é boa ou
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
literatura, pois os escritores
da periferia oferecem
contribuições estéticas que não
se encaixam nos cânones
estabelecidos. Por enquanto,
parece haver um reconhecimento
mais político do q
dessa produção, embora isto, por
si só, estimule reflexões
fundamentais, como o papel
social das obras literárias, a
universalização da escrita e da
leitura, a necessidade da
ampliação do número de leitores
e o lugar dos grupos
marginalizados n
a literatura
brasileira. (NASCIMENTO
p. 22)
Trata-
se, como se adverte, de
uma dinâmica que tem trazido mais
que fecundos subsídios para um
exame mais acurado dos parâmetros
críticos”, das perspectivas
metodológicas e teóricas
a
quais se aproximar d
estes fenômenos.
Poderá objetar-
se que talvez seja
prematuro falar de uma
epistemologia
das quebradas
, pelo menos se o que
se tem em mente é um esboço mais
ou menos sistematizado de uma teoria
do conhecimento. Mas uma
compre
ensão aproximada do que vem
se tecendo pelas quebradas demanda
c
onsiderar as reconfigurações hoje em
curso no mundo
e, para os
propósitos deste escrito, nesse mundo
de los abajos
de que tratamos aqui.
Daí que para pensar em processos
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
má literatura, pois os escritores
da periferia oferecem
contribuições estéticas que não
se encaixam nos cânones
estabelecidos. Por enquanto,
parece haver um reconhecimento
mais político do q
ue estético
dessa produção, embora isto, por
si só, estimule reflexões
fundamentais, como o papel
social das obras literárias, a
universalização da escrita e da
leitura, a necessidade da
ampliação do número de leitores
e o lugar dos grupos
a literatura
brasileira. (NASCIMENTO
, 2012,
se, como se adverte, de
uma dinâmica que tem trazido mais
que fecundos subsídios para um
exame mais acurado dos “pametros
críticos, das perspectivas
a
partir das
estes fenômenos.
se que talvez seja
epistemologia
, pelo menos se o que
se tem em mente é um esboço mais
ou menos sistematizado de uma teoria
do conhecimento. Mas uma
ensão aproximada do que vem
se tecendo pelas quebradas demanda
onsiderar as reconfigurações hoje em
e, para os
propósitos deste escrito, nesse mundo
de que tratamos aqui.
Daí que para pensar em processos
como os que dis
trabalho, valha a pena ter em mente o
que propõe um autor como Raul
Zibechi que, amparado na noção de
“heterogeneidade histórico
peruano Anibal Quijano, propõe que
mais que falar de movimentos
sociais”,
caiba falar de socied
movimento”:
[...]
existem na América Latina
muitos
movimentos sociais, mas
junto a eles, superpostos,
entrelaçados e combinados de
formas complexas, temos
sociedades outras que se
mobilizam o apenas para
reclamar ou para fazer valer seus
direitos ante o Estado, mas que
constroem realidades distintas às
hegemônicas (ancoradas em
relações sociais heterogêneas
frente à homogeneidade
sistêmica) que incluem todos os
aspectos da vida, desde a
sobrevivência até a educação e a
saúde
(ZIBECHI, 2003
E ocorre que essa construção
de “realidades distintas às
hegemônicas” se frequentemente a
partir de lógicas e de modalidades
heterogêneas, complexas, se dá a
partir de “redes pequenas e flexíveis,
com o mínimo necessário, que
trabalham em silêncio, muitas vezes
de modo invisível” (APPADURAI,
2007, p. 163). Mi
l fitas, dizemos na
quebrada. Uma teia de fitas multicore
267
periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
resistências, disputas e potências
")
como os que dis
cutimos neste
trabalho, valha a pena ter em mente o
que propõe um autor como Raul
Zibechi que, amparado na noção de
heterogeneidade histórico
-cultural” do
peruano Anibal Quijano, propõe que
mais que falar de “movimentos
caiba falar de “socied
ades em
existem na América Latina
movimentos sociais, mas
junto a eles, superpostos,
entrelaçados e combinados de
formas complexas, temos
sociedades outras que se
mobilizam não apenas para
reclamar ou para fazer valer seus
direitos ante o Estado, mas que
constroem realidades distintas às
hegemônicas (ancoradas em
relações sociais heterogêneas
frente à homogeneidade
sistêmica) que incluem todos os
aspectos da vida, desde a
sobrevivência até a educação e a
(ZIBECHI, 2003
, s/p).
E ocorre que essa construção
de realidades distintas às
hegemônicas se dá frequentemente a
partir de lógicas e de modalidades
heterogêneas, complexas, se a
partir de redes pequenas e flexíveis,
com o mínimo necessário, que
trabalham em silêncio, muitas vezes
de modo invisível (APPADURAI,
l fitas, dizemos na
quebrada. Uma teia de fitas multicore
s
HERCOG, Bruna Pegna et alli.
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
22, p 245-269., mar. 2022.
q
ue se enlaçam em trama discreta,
mas potente, viva, alegre, disruptiva,
intensa.
Estamos, portanto, ante um
convite, quem sabe um chamado a
reconhecer que coletivos como os que
abordamos aqu
i estão indo muito além
das resistências.
Falamos de
iniciativas que mais do que resistir,
vêm mantendo vivas perguntas, vêm
colocando em xeque cânones
diversos, vêm produzindo respostas
criativas e coletivas às demandas de
seu entorno. Falamos, em suma
iniciativas que estão promovendo
substanciais r
econfigurações nos
modos como entendemos a produção
de conhecimentos hoje. E as vozes
das quebradas advertem:
Chegou a nossa
hora
Agora é a nossa
hora.
28
Referências bibliográficas
ALBÁN ACHINTE,
Conocimiento y lugar: más allá de la
razón hay un mundo de colores
Texiendo Textos
. Cinco hilos para
pensar los Estudios Culturales, La
Colonialidad y la Interculturalidad.
Popayán: Editorial Universidad d
Cauca, 2006.
28
Ve
rsos do poema “Progresso”, de Isadora
Nascimento, incluído em Jesus
(
Rumo a uma epistemologia das
quebradas? Ativismos culturais para além da resistência.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 12, n. www.
periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Coletivos culturais –
resistências, disputas e potências
ue se enlaçam em trama discreta,
mas potente, viva, alegre, disruptiva,
Estamos, portanto, ante um
convite, quem sabe um chamado a
reconhecer que coletivos como os que
i estão indo muito além
Falamos de
iniciativas que mais do que resistir,
vêm mantendo vivas perguntas, vêm
colocando em xeque cânones
diversos, vêm produzindo respostas
criativas e coletivas às demandas de
seu entorno. Falamos, em suma
, de
iniciativas que estão promovendo
econfigurações nos
modos como entendemos a produção
de conhecimentos hoje. E as vozes
Chegou a nossa
Agora é a nossa
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