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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 482-505, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Ape tipo ijoja ñande ñe'ē. Aqui colocamos juntas nossas palavras.
Genito Gomes
1
John Nara Gomes
2
Luciana de Oliveira
3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v13i25.57930
Resumo: O artigo reúne três vozes, duas do Povo Indígena Kaio e outra de uma professora
universitária brasileira. As três vozes estão unidas por causa da guerra pela terra em Mato Grosso do
Sul e têm se erguido juntas em projetos de extensão e pesquisa compartilhados, além da parceria em
encontros de saberes na universidade desde 2012. Tanto os projetos de co-criação, sobretudo no
campo de produção de imagens, quanto esse texto apontam para dois elementos importantes para a
comunicação entre os mundos indígena e não-indígena: por um lado, a falta de protocolos para que
esse encontro de mundos e de saberes aconteça traz à presença a urgência de sua criação; por
outro lado, o desejo de que o encontro de saberes seja uma prática concreta de reparação da
violência colonial epistêmica. Ambos elementos reiteram a possibilidade de que os nossos mundos
convivam como as nossas palavras neste artigo.
Palavras-chave: Encontro de Saberes; Saberes Tradicionais Kaiowá; Território Tradicional;
Comunicação Intermundos; Imagens.
Ape tipo ijoja ñande ñe'ē. Acá ponemos juntas nuestras palabras.
Kuatiá ñe’e mbyky: Mbohapy ñe' oñembyaty ko kuatiápe, peteĩ ava kaiowa, peteĩ kuña kaiowa ha
peteĩ kuña karai mbo’ehárava. Ha'e kuera oñembyaty pe ñorairõ oikóva yvýre Mato Grosso do Sulpe
1
Genito Gomes. Liderança política da retomada Tekoha Guaiviry Yvy Pyte Y Jere e membro do
conselho Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani-Kaiowá). Atualmente é estudante do Teko
Arandu/Formação Intercultural de Professores Indígenas na FAIND/UFGD. E-mail:
anetetekaiowa@gmail.com - https://orcid.org/0009-0007-5386-6886
2
Jhonn Nara Gomes. É liderança política no movimento de jovens dos povos Guarani-Kaiowa na
Retomada Aty Jovem (RAJ), na Aty Guasu e na Kuñague Aty Guasu. É estudante do Curso Ára Verá
- Curso Normal em Nível Médio de Formação de Professores Guarani e Kaiowá. E-mail:
dionarag3@gmail.com - https://orcid.org/0009-0007-2066-7813
3
Luciana de Oliveira. Professora do PPGCOM/UFMG, Doutora em Ciências Sociais: Sociologia e
Política pela UFMG. Pós-Doutora em Antropologia Social UnB/Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia de Inclusão de Saberes no Ensino Superior e na Pesquisa. E-mail:
luciana.lucyoli@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-7063-7811
Recebido em 31/03/2023, aceito para publicação em 27/06/2023 e disponibilizado online em
01/09/2023.
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 482-505, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
ha ojapo oñondive projeto de extensão ha projeto de pesquisa, ha oparticipa heko arandúva kuéra
Universidádepegua ndive iñomongetápe, 2012 guive ko'ánga peve. Ko’ã iprojéto kuéra, ojapoma hina
ta'anga, ha ko ijehai pyre kuéra ohechauka mokõi mba’e iñimportánteva oñomongeta hagKaiowa
kuéra ha mbaíry kuéra iñarandu rehe. Peteĩha, ndaipóri gui protokólo pe ñomongeta oñemboguata
haguã tekotev pya’e oñemopu'ã umi protokólo. Mokõiha, oñeikotev teko arandu eta oñemboguata
ñomongeta rupive, anive violénsia epistémica jevy rupive. Upéicha, umi mokõi mba’e omombarete
tekotevha tekove kuéra oiko oñondive teko jojápe ñande ñe' oikoháicha ko kuatiáre.
Ko Kuatia Ñe’ẽ Mbarete Rehegua: Arandu kuéra ñomongeta rehegua; Kaiowa arandu rehegua;
Tekoha; Mbaíry reko ha Kaiowa reko rehegua; Ta'anga.
Ape tipo ijoja ñande ñe'ē. Here we put together our words.
Abstract: The article presents three voices, two from the Kaiowá Indigenous People, and another one
from a Brazilian professor. Gathered by the war for land in Mato Grosso do Sul/Brazil, they have been
running university extension programs, research projects in collaboration as well as being partners in
meetings of knowledges at the university since 2012. Both the co-creation projects and this text point
out to two important dimensions of the interworld communication between the indigenous and non-
indigenous worlds: on the one hand, the lack of protocols for this meeting of knowledges highlights the
urgency of its creation; on the other hand, the desire that the meeting of knowledges be a concrete
practice of repairing the epistemic colonial violence. These dimensions reinforce the possibility that
our worlds live together as our words live in this paper.
Keywords: Meeting of Knowledges; Kaiowa Traditional Knowledges; Traditional Territory; Interworlds
Communication; Images.
Ape tipo ijoja ñande ñe'ē. Aqui colocamos juntas nossas palavras.
Introdução
Escrevemos esse texto de
muitos jeitos e com muitos anos de
convivência, mas ele surge de forma
específica a partir da experiência na
disciplina Direito à Existência, ofertada
pela Formação Transversal em
Saberes Tradicionais da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) no
ano de 2021.
Escolhemos, como forma de
apresentar o artigo, juntar nossas
palavras sem, no entanto, misturá-las.
Tal como o pensador quilombola
Antônio Bispo dos Santos (2015, p.
19), acreditamos que "o tom do
diálogo revela a distância entre os
interlocutores e que a história é
formada pela interlocução entre os
fatores e as ações desenvolvidas pela
humanidade, sem ignorar os termos
presente, passado e futuro". Do
mesmo modo, como os rappers
Guarani-Kaiowá Bro MC's costumam
dizer, ao falar de suas letras em
Guarani e Português, “a gente não
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
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mistura. A gente coloca junto” (Peixoto
apud OLIVEIRA, 2016, p. 211).
Genito Gomes e Jhonn Nara
Gomes vivem na retomada de Guaiviry
Yvy Pyte Y Jere na qual incidem o
município de Aral Moreira, o estado de
Mato Grosso do Sul e o Brasil.
Fizemos a retomada e agora cuidamos
da auto-gestão do nosso território,
após termos feito a auto-demarcação
de um pequeno pedaço do que
reivindicamos. Sustentar uma
retomada não é nada cil. Perdemos
muitos guerreiros e guerreiras de
nossa família extensa e gostaríamos
de começar registrando seus nomes:
Odúlia Mendes, Nísio Gomes, Jaidi
Flores, Valdomiro Flores, Francisco
Benites, Ludinaldo Ortiz, Xaveli Ortiz,
Vander Flores, Bareilly Ortiz, Josefa
Vilhalva, Elvira Ortiz, Ricardo Gomes.
Nossa fala aqui é verdadeira e viva.
Falamos em aula no encontro de
saberes da Universidade Federal de
Minas Gerais, no ano de 2021. A
professora Luciana de Oliveira, nossa
parceira, passou a nossa palavra para
o papel, com a nossa autorização. E
colocou as palavras dela ao lado das
nossas. Luciana de Oliveira participa
como gestora e parceira nos encontros
de saberes da Universidade Federal
de Minas Gerais. Acreditamos que
podemos viver bem assim, do mesmo
jeito que vivem nossas palavras nesse
papel.
Eu, Genito Gomes, sou
liderança no tekoha e no movimento
Aty Guasu Guarani-Kaiowa, faço parte
de seu conselho. Sou também
cineasta e estudante de graduação na
Faculdade Intercultural Indígena
(FAIND) da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD).
Eu, Jhonn Nara Gomes, sou
liderança no movimento Retomada Aty
Jovem - RAJ e da juventude no tekoha
Guaiviry. Sou cineasta, escritora,
desenhista, narradora e estudante no
curso de formação intercultural em
nível médio Ara Vera em Mato Grosso
do Sul. Recentemente, fui aprovada
para cursar a Licenciatura Intercultural
Indígena Teko Arandu na UFGD.
Eu, Luciana de Oliveira, cheguei
ao território de Guaivyry Yvy Pyte Y
Jere em 2012. Morei em 2018 com
minha família, realizando um pós-
doutorado vinculado ao Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia de
Inclusão no Ensino Superior e na
Pesquisa (INCTI-UNB), quando co-
organizamos um livro que traz uma
pequena parte do monumental
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
conhecimento do Ñanderu Valdomiro
Flores e da Ñandesy Tereza Amarília
Flores (FLORES; FLORES; OLIVEIRA;
2020). Ele e ela ministraram cursos de
cosmologia Kaiowá na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG),
onde trabalho, em 2014 e 2016
(Valdomiro) e 2018 (Tereza), nos quais
fui professora parceira. Em 2021, em
plena pandemia da Covid-19, Genito
Gomes e Jhonn Nara Gomes também
ministraram um curso no mesmo
contexto institucional que Valdomiro e
Tereza. Antes disso, porém, passei
algumas temporadas menores no
tekoha produzindo oficinas de cinema
para formação de jovens e lideranças
pelo Programa de Extensão Imagem
Canto Palavra no Território Guarani e
Kaiowá (2014-2022). Cuido ainda de
uma parte da assessoria dos filmes
realizados, da circulação dos livros e
de contar as histórias do povo Kaiowá
que sei e vivenciei no tekoha, a pedido
de Valdomiro e Tereza, da melhor
forma que posso.
Sendo os encontros entre os
mundos indígenas e não-indígenas
marcados pela violência, tanto nas
dinâmicas racistas e genocidas do
contexto Moderno-Colonial e suas
diversas formas de colonialidade,
quanto nas condições de
desigualdades econômicas,
existenciais e étnicas de contextos
nacionais como o brasileiro, pode-se
inferir também que são encontros para
os quais não protocolos. Como
enfatiza Carvalho (2018), é de suma
importância e urgência, a criação de
protocolos não universais mas
específicos para cada área de
conhecimento, capazes de conduzir a
diálogos interepistêmicos no que tange
à dimensão pedagógica da experiência
de encontro de saberes nas
universidades. No caso do presente
artigo e das ações em colaboração
que o precedem, estamos buscando
construir protocolos na área de
comunicação intermundos e produção
de imagens.
Encontro de Saberes é o nome
de um projeto que começou em 2010,
na Universidade de Brasília
(CARVALHO, 2010; CARVALHO;
FLOREZ, 2014a; 2014b; CARVALHO;
ÁGUAS, 2014). A iniciativa parte do
gesto político pedagógico de
alargamento do horizonte
epistemológico que delineia o papel
social da universidade, qual seja, o de
guardar, produzir e compartilhar
conhecimentos. Não se trata apenas,
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
portanto, de resguardar um único tipo
de conhecimento, aquele de matriz
europeia, mas de admitir a
multiplicidade de ciências e formas de
produção e validação dos
conhecimentos. Sob inspiração da
experiência exemplar da UNB, na
UFMG, aconteceram, primeiramente,
uma disciplina experimental de Artes e
Ofícios dos Saberes Tradicionais em
2014 e, a partir de 2015 até os dias
atuais, um conjunto de disciplinas de
Formação Transversal em Saberes
Tradicionais, com oferta regular na
graduação e pós-graduação, buscando
promover a interlocução entre
diferentes saberes e práticas de
mestres e mestras indígenas,
quilombolas, de povos e comunidades
tradicionais com os saberes
presentes na universidade. Nesse
texto, encontro de saberes deixa de
ser o nome próprio de um projeto para
atuar como inspiração a uma
sensibilidade formal e metodológica
que, por sua vez, como experiência
concreta, qualifica um experimento de
pensamento em co-autoria
4
.
4
Outro experimento formal de co-autoria
similar ao que propomos aqui está presente
em Oliveira e Vasquez (2018).
-----
Genito Gomes - Ava Apyka Vera
Rendy
5
A gente nasceu pelo nosso
território, cresceu pelo nosso território.
Os nossos ancestrais indígenas
nasceram nesse território, nasceram
pelo Yvy Pyte, ou seja, nasceram pelo
Coração da Terra. Nasceram pela
reza, aqui em cima da terra. Nós,
Kaiowá e Guarani, lutamos pelo nosso
território, pelo nosso direito. Mas não é
que a gente lute. Quem está lutando
contra nós é o homem branco que está
lutando para tomar o nosso território.
Porque nós não cortamos os rios para
chegar ao nosso território, nós
nascemos aqui. Não fomos nós que
chegamos em barcos e depois em
aviões. Se fosse assim eu concordaria
que somos nós que estamos lutando.
Se nós tivéssemos chegado para
invadir os Estados Unidos ou a
Europa. Se tivéssemos cortado o
oceano e os rios para chegar a um
lugar que não é nosso, eu concordaria
que os indígenas fizeram invasão.
Mas, ao contrário, nós é que sempre
5
Esse texto é uma transcrição da oralidade
em aula ministrada por autor em 02/06/2021
na Universidade Federal de Minas Gerais.
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
vivemos pelo nosso território
tradicional.
Quando Ñanderu e Ñandesy
fizeram a terra, primeiro vieram as
montanhas que foram queimadas três
vezes. Na primeira a terra não ficou
boa, na segunda tampouco, na terceira
sim: ficou boa para seres humanos
plantarem. Para finalizar esse trabalho
da terra, mandaram y (água) e se
formaram os rios. Por isso que na
nossa língua Kaiowá, a primeira coisa
que fala é y
6
. A água vem primeiro, é
muito sagrada, não se pode
envenenar. Em qualquer lugar que
tenha água é muito sagrado. Somos
gerados na água e a primeira coisa
que recebemos é água para limpar
nosso corpo. Água é nossa mãe.
Nossas mães são muito sagradas. A
água cuida de nós quando estamos
doentes, seja por banhos, seja pelos
remédios que tomamos, seja pela
comida que preparamos. A chuva
também é mensagem de nossa mãe.
E a água não se segura.
Em nosso ñembo'e puku (reza
longa), nós relembramos a criação do
mundo que foi cantada e a gente tem
6
Y é água em língua Kaiowá. É uma vogal
central alta, [ɨ] que soa como u pronunciado na
garganta e sem flexão de lábios.
esses cantos até hoje. Se vocês
brancos dizem que existem nove
planetas, nós Kaiowá caminhamos
pelos quinze patamares que existem
acima de nós que chamamos de teta.
Cada teta tem as palavras certas para
conversar com os povos que moram
nesse lugar. Mesma coisa aqui em
cima da terra, nós temos que
conversar entre nós indígenas em todo
lugar porque nós somos povos
originários dessa terra. Mas também
temos que conversar com os mbayry
(não-indígenas). É por isso que temos
usado tecnologias dos mbayry. Do
mesmo jeito que a reza constrói
linhagens de conexão com vários
lugares sagrados, explicamos a
nossos anciãos e anciãs que aquelas
tecnologias também criam conexões
entre as pessoas que moram nessa
terra em que vivemos. É assim que
conseguimos explicar bem. Quando
conseguimos fazer esse tipo de
explicação pelos dois modos de vida,
costumamos dizer ojopo pyhy (o que
faz dar as mãos).
Por que isso? Porque é o
começo de tudo. O começo da terra. O
segundo elemento: yvy.
Terceiro vem Ka'aguy yva yvy
(terra dos frutos da floresta). Yva é
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fruta. Então essas coisas é que vieram
no começo. A água é nossa mãe, sem
ela a gente não vive. Da terra fazem
parte os nossos grandes pais porque
ela tudo o que você planta, produz
e come. Nossos pais sempre procuram
fazer isso, o que nós em Kaiowá
chamamos jeporeka katu pyry, para
trazer alimentos aos nossos filhos e
filhas. Com esse tipo de sabedoria
repassados a nós por nossos pais,
avós, tataravós é que sabemos
reconhecer qual é o nosso território
verdadeiro. Toda a minha formação
vem de saber dessas coisas. que
não tenho certificado dado pelos
karai
7
. É tudo formado por Ñanderu e
Ñandesy. O meu certificado está
comigo, está na minha fala. Vem da
reza que eu peguei como era no
começo da terra e como é agora para
viver com minha comunidade e com
meu povo. Eu recebi essa formação.
Antigamente nós vivíamos bem,
antes dos karaí chegarem pelo nosso
território. As famílias extensas ficavam
localizadas longe uma da outra.
depois o SPI criou as reservas, oito
7
Karai e mbayry são palavras utilizadas para
designar os brancos ou não indígenas.
reservas
8
. Trouxeram e colocaram
todo mundo dentro, criaram os
chiqueiros. Tudo pela fala dos
brancos. Os indígenas não tiveram
direito de falar. Eles tinham tudo
pensado e planejado quando criaram
aquelas oito reservas: Dourados,
Caarapó, Amambai, Pirajuy, Porto
Lindo, Saassoró, Taquepery e Limão
Verde. O tal de Marechal Rondon e os
outros do SPI pensaram: e daqui a 100
anos? Ah… Deixa eles assim. Porque
quem fez desse jeito não viveu mais
100 anos para se responsabilizar pelo
que aconteceu. O SPI enganou os
indígenas dizendo que a reserva seria
o seu território. O próprio governo
vendeu nossas terras para vários
fazendeiros, titularam eles com papel
batido à máquina e disseram agora
ninguém vai mexer com vocês porque
você tem o papel. Para nós não é
assim. Qual é o nosso registro? Qual é
o nosso título da terra? É nós. Primeira
coisa é a nossa reza. Porque com ela
chegamos a Ñanderu, o dono da
reza verdadeiro que fez a terra, pelo
ñembo'e ñemongeta (conversação que
8
As reservas foram criadas pelo Serviço de
Proteção ao Índio no período de 1910 a 1928.
Para uma análise etnohistórica detalhada
desse processo e seus nefastos resultados
como estratégia de confinamento territorial, ver
Brand (1993; 1997).
489
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faz falar o espírito). Ñanderu e
Ñandesy foi quem criaram a terra.
Todo mundo fala Jesus, mas não é
Jesus. Outros falam Jesus Cristo. Mas
nenhum Jesus ou Cristo fez a terra.
No nosso conhecimento tem
vários tipos de seres espirituais. Tudo
depende da reza que se usa e de qual
motivo que se manda algum tipo de
espírito para uma pessoa. Um
exemplo: quando nós Kaiowá vamos
pescar temos que colocar o anzol
(pindai) e a linha (nimbó), mas
precisamos rezar. Temos que estudar
qual é a vara que vai encaixar com
aquela linha e aquele anzol. Porque o
peixe tudo. Para pescar lançamos
essa linha com anzol dentro da casa
deles e do mesmo jeito que nós
sabemos tudo o que está dentro da
nossa casa, eles também sabem.
Quando a gente reza pelo anzol, pela
linha, pela vara e pelo nosso corpo
também, a jari (avó muito antiga)
nossa ancestral do rio, vem nos pedir
alguma coisa. É entregar para ela e
ela nos dá os peixes de que
precisamos. Devemos comer tudo. Ou
dividir com nossos vizinhos. Nem um
pedacinho deve ser perdido, nem
mesmo os ossos que não podem ser
jogados, mas enterrados com muito
respeito. Se chega uma pessoa
estranha em nossa casa é difícil a
gente receber. A mesma coisa
acontece com as avós dos rios porque
chegamos nas casas delas e somos
estranhos. Se as coisas o forem
bem negociadas a pessoa pode
pescar pouco, não pescar ou acontece
alguma coisa com ela - pode cair no
rio ou sofrer um acidente no caminho.
Tudo isso se vai sem pedir
autorização.
Outro exemplo é quando
entramos na mata. Por que dizemos a
esse bando de judiadores de
indígenas no congresso federal que
vamos chamar o dono da mata para
eles? Quando s fazemos a casa,
usamos a madeira. Alguns dizem:
estou fazendo a casa com alvenaria.
Mas não é alvenaria. Em alguma
parte leva a madeira. Por isso que
mata é nosso grande pai e nossa
grande mãe. Porque eles dão energia
para os seres humanos que é a lenha
com a qual fazemos fogo, a madeira
que fazemos nossas casas. Para
cortar uma árvore, nós temos que
pedir autorização. Nós temos que
rezar o machado, a foice ou o
machete, Os brancos não fazem isso e
mandam logo a motosserra e
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derruba tudo. Por isso, nosso grande
pai e nossa grande mãe, além dos
guardiães e das guardiãs da mata,
cuidam de tudo isso espiritualmente.
De pequenos acidentes a grandes
catástrofes, tudo vem com esse
desrespeito ao espírito da mata e dos
animais que a protegem também.
Gosto de falar sobre essas
verdades da nossa cultura Kaiowá.
Nossa cultura tem lei. Em geral as
pessoas não sabem. Gosto dessa
universidade que tem essa proposta
de chamar a gente para repassar. Meu
coração fica muito feliz. Porque a
gente pode falar de seres muito
poderosos. O branco quando vai falar
de poderosos fala de advogado - que
ele chama de doutor -, do procurador,
do juiz, mas eles têm poder abaixo
da nossa lei. A nossa lei-realidade vem
pelo espírito e diz: esses daí não são
nada para nós. Recentemente no
congresso, pessoal estava lutando
para aprovar algo contra a vontade
dos povos indígenas: o marco
temporal. Porque querem fazer leis
que valem aqui em cima da terra
pelo kuatiá (papel) e pelo computador.
Mas a nossa lei é mais forte porque
ninguém pode segurá-la. As grandes
catástrofes de tempestades,
terremotos e chuvas de granizo, elas
são espíritos dos povos indígenas.
Nós rezamos, fazemos pedido e esses
espíritos vêm! Isso os brancos o
sabem fazer. E se matarem todos os
povos indígenas, não restarão brancos
aqui em cima da terra. Pode até vir a
nascer outro povo, mas depois que
todo mundo morrer.
É por isso que nós Kaiowá
conhecemos bem o nosso território,
onde nossos ancestrais moravam,
onde foram enterrados, onde nossos
bisavós plantavam mandioca, batata,
avati puku (milho longo), avati moro
(milho branco), milho cateto. Por isso
que nós voltamos de novo. Retomadas
para tomar o que é nosso. Porque a
justiça e o político, o deputado e os
governamentais não vão dar o nosso
território de volta. Se não somos nós,
guerreiros e guerreiras, e nossa reza
para voltar, não vão deixar a gente
voltar nunca. Porque prefeito, juiz,
deputado, governo são fazendeiros. O
homem branco não é dono desse
território. Quem somos os donos
somos nós, Kaiowá. Se matarem todos
os indígenas, ninguém vai sobrar. Por
isso a gente tem coragem. Conheço
três maneiras de cultivar a coragem.
Antes de meu pai morrer, eu tinha
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medo de falar com as autoridades ou
qualquer pessoa do mundo dos
brancos. Mas depois que meu pai
passou para outro mundo, a coragem
dele se encarnou em mim. Fiquei
corajoso porque meu pai repassou sua
coragem pra mim. Voltamos ao nosso
território Guaiviry Yvy Pyte Y Jere no
dia 01 de novembro de 2011 depois de
esperar mais de 40 anos e ninguém
fazer nada. Porque até na Funai tem
fazendeiro. Nísio Gomes (Pa'i Tiryryju),
meu pai, viveu 18 dias nesse
território e foi assassinado. Nós não
temos medo de morrer porque todo
mundo morre. Nós também temos os
nossos ñembo'e (rezas) para nos dar
coragem, pois a reza nos faz segurar o
conhecimento em nosso cérebro, em
nossa fala e em nossos olhos. Em
Kaiowá falamos: omboguapy nderehe
nde rete monde va'erã (tem que deixar
assentar em seu corpo a roupa
sagrada). Temos também rezas
específicas como as dos raios para
nos dar coragem. Estamos sempre
pensando nos nossos filhos e no
futuro. Por isso, retomamos com
coragem o que é nosso.
--
Jhonn Nara Gomes - Kuña Po'apy
Tukambi Vera'i
9
Nossa luta é ter terra, não para
explorá-la ou para ganhar dinheiro. A
nossa vida e o nosso objetivo é
proteger a mãe terra, plantar na mãe
terra, proteger os rios, os peixes.
Porque aqui, no estado de Mato
Grosso do Sul/Brasil a gente protege o
resto da mata que sobrou com a nossa
vida. Por terra, os fazendeiros nos
matam. E se a terra ainda está firme é
porque nós Kaiowá estamos rezando e
fazendo Ñanderu Guasu e Ñandesy
Guasu escutarem os nossos cantos.
Eles ainda estão escutando os sons
dos pássaros e os sons dos rios e é
por isso que a terra ainda está firme.
Existem brancos que nos julgam
porque não conhecem a nossa luta.
Alguns dizem, se vêm a gente na TV,
"ah é o índio, índio é aquele
vagabundo, esse não é mais índio
porque vestindo roupa e tal".
Quando falo da nossa luta, eu me
emociono muito. Porque lembro do
meu avô, Nísio Gomes, que morreu
pelas mãos de 40 pistoleiros com três
tiros de calibre 12 na coxa, no peito e
9
Esse texto é uma transcrição da oralidade
em aula ministrada pela autora em 02/06/2021
na Universidade Federal de Minas Gerais.
492
GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 482-505, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
na cabeça. Eu era uma criança de 11
anos quando isso aconteceu e me dói
no coração. Como me dói ter perdido a
minha avó, Odúlia Mendes, uma
grande Ñandesy do nosso povo, que
morreu antes que pudéssemos entrar
e permanecer no nosso Tekoha.
Quando fui à Suécia falei para a
Rainha Sofia
10
e seus ministros: vocês
deveriam agradecer aos povos
indígenas, porque se são ricos é
porque roubaram nossas riquezas
no Brasil. O homem branco diz que o
índio quer a terra para sujá-la.
Nosso interesse nunca foi pegar terra
para plantar soja e milho e gerar
dinheiro pra nós. O nosso interesse
sempre foi pegar a terra para plantar e
para comer. Porque nós que somos
indígenas a gente não vai no mato
matar animalzinho à toa. A gente vai
no mato quando a gente precisa de
carne. A gente vai no mato para pegar
um porco do mato para comer com
mandioca. A gente não mata bicho à
toa. A gente corta árvores para
construir casas. O homem branco não
faz como nós. A terra é nossa e está
10
Jhonn Nara Gomes participou do Prêmio
das Crianças do Mundo organizado pela ONG
The World’s Children’s Prize for the Rights of
the Child (www.worldschildrensprize.org) com
apoio da rainha sueca.
escrito isso na reza. E eu digo que os
espíritos também estão com a gente.
Seres invisíveis que a gente não vê
como o raio, como terremoto, uma
coisa que a gente não sabe
exatamente quem é o dono. Mas são
seres espirituais que estão fazendo os
brancos pagarem por seus erros. Não
é de ontem que somos julgados e
discriminados.
A morte do meu avô me ensinou
que aqui no Brasil nós temos que
perder a vida para recuperar nossa
terra. Por isso nós lançamos o filme
Ava Yvy Vera - A Terra dos Povos do
Raio (2016). Porque esse filme mostra
como o sonho do meu avô Nísio
permanece vivo aqui no Tekoha
Guaiviry. Nossa história não tem fim.
Tem o começo e o meio, mas não tem
fim. Lançamos esse filme mostrando o
que a gente vive no tekoha Guaiviry
cada dia. O filme retrata uma imagem
de como vivemos aqui no nosso
tekoha. Primeiramente, o sonho do
Nísio quanto o sonho do Seu
Valdomiro Flores - um dos nossos
grandes rezadores - que passou
também para o mundo invisível. Ele
morreu faz pouco tempo (2017). Mas o
sonho dos dois permanece vivo.
493
GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 482-505, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
No caso do Nísio, o sonho era
voltar para o tekoha antigo de seus
antepassados para levantar de novo a
casa de reza, a cultura, nossas
bebidas, o kagwin, as nossas comidas
indígenas, peixe assado com
mandioca, tudo isso era o sonho do
Nísio. Então o filme Ava Yvy Vera
mostra isso. Tem a casa de reza, as
mulheres, as crianças dançando o
kotyhu. Com o filme, mostramos
também o porque que a gente luta
pela terra.
No final do filme tem a nossa
reza longa que a gente faz a cada
quinta-feira e começa ao entrar do sol,
por volta de cinco horas. Os
rezadores, os jovens e as crianças
entram para a casa de reza onde tudo
acontece durante uma noite toda. A
reza é cantada até o amanhecer. Até o
sol sair novamente e dar o aguyje na
reza que é como o encerrar de uma
reunião com um pedido ao nosso
grande pai Ñanderu enquanto o sol vai
surgindo. Depois disso, as pessoas,
principalmente rezadores e rezadoras,
vão tomar chimarrão (o que também é
mostrado no filme). No filme também
mostramos os raios. Os raios são
como s: eles também se vestem, se
pintam… que não vemos por não
termos os olhos limpos porque é
preciso ter um olhar que cresce junto
com você por meio da reza e de sua
prática constante. Por isso,
rezadores e rezadoras podem -los.
Outras pessoas podem até vê-los mas
não os entendem ou não conseguem
se comunicar com eles. Por isso
aprendemos a tecnologia usando-a em
nosso favor e pedindo licença aos
raios que são, como s, palavra de
Ñanderu e Ñandesy, para incorporá-la
em nossa cultura e em nossa luta.
Os raios o aqueles que vem
aqui na terra como se fossem
cineastas de Ñanderu Guasu e
Ñandesy Guasu que vêm mandados
por eles: "olha vai filmar o que está
acontecendo por lá, na terra em que
nós seres humanos vivemos, e me
traz". Por isso que quando vamos
filmar o raio é preciso pedir permissão
através da reza para capturar a
imagem dele porque senão pode
queimar a câmera. Por isso também,
por vezes, escutamos que um raio caiu
numa pessoa. Mas é porque essa
pessoa não pediu autorização a
Ñanderu para capturar a imagem do
raio. Nós fizemos tudo certo e por isso
conseguimos mostrar no filme.
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
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25, p. 482-505, set. 2023.
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No meio do filme tem o meu tio,
Valmir Gonçalves Cabreira, junto com
meu irmão Jonathan conversando
sentados com uma vela branca
próxima. Aquele lugar foi onde sio
caiu morto. A vela que aparece
acendida na frente dos dois está sobre
o lugar onde tombou a cabeça de meu
avô Nísio Gomes. Nossa intenção foi
mostrar para o mundo e para que as
pessoas possam entender que a gente
não está lutando à toa. No começo do
filme, é possível ver a grande roça de
soja dos karaí. Um plano filmado por
Valmir. Aquela cena aconteceu de
verdade quando meu avô e os demais
retomaram Guaiviry. Nela aparece a
monocultura de soja e uma única
árvore sozinha que foi usada como
torre de celular para que ele pudesse
passar informações para as
autoridades e para os outros parentes.
Então o filme mostra tudo isso. Um
arco entre a morte do Nísio e o sonho
do Nísio, assim como a reza de quinta-
feira que sempre vai permanecer.
Porque o filme também mostra o Seu
Valdomiro, o meu primo Francisco e a
minha prima Jaíde que passaram
para o mundo invisível.
Quando alguém esse filme
parece que ainda estão vivas as
pessoas. Porque é também um
registro que a gente deixa para um dia,
com o passar do tempo e o passar dos
anos, e a gente mesmo não estiver
mais aqui, esse filme vai continuar, vai
ficar para a história. Os jovens e as
criancinhas vão ver e vão entender a
nossa luta, tudo o que a gente passou,
para eles poderem entender a história
através dessa imagem. É um filme
muito forte que fala com a gente
através da imagem. Esse filme
também a gente não fez como no filme
dos karaí. Muitas vezes o homem
branco quando vai fazer filme ele vai
planejar tudo antes. A gente não
planeja. Quando aconteceu a oficina
de cinema, em 2014, a gente
aprendeu a segurar a câmera,
aprendendo e filmando. Não foi
planejado. Pegamos mera e
filmamos, muitas vezes sem tripé, com
a nossa própria mão, filmamos muitas
horas e fomos no meio do mato, no
meio da monocultura de soja.
Corremos perigo porque filmar nesses
lugares é perigoso. O fazendeiro mata
quem está no meio da roça de soja
dele.
Esse filme nos fortalece muito.
O que você no filme é o que a gente
vive aqui no Tekoha Guaiviry. Na
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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25, p. 482-505, set. 2023.
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verdade, o cineasta que é mandado
por Ñanderu e Ñandesy recebe uma
ordem mais ou menos assim: vão
filmar para saber o que está
acontecendo com os meus filhos da
terra. Eles vêm pra filmar tudo numa
câmera invisível. E nem eles a gente
consegue ver porque eles são
completamente invisíveis. Por isso que
não conseguimos enxergar os raios
direito porque eles têm aquele brilho.
Quando vem o raio ele solta aquele
brilho. Eles vêm para filmar tudo o que
acontece nesse mundo, eles filmam
tudo o que acontece com os povos
indígenas e depois voltam para
mostrar tudo o que acontece a
Ñanderu e Ñandesy. Daí eles assistem
a essas imagens para saber como
estamos. Somente rezadores e
rezadoras que conhecem a reza
verdadeira é que conseguem dialogar
com ele e ela sobre esses
acontecimentos. Porque conseguem
cantar a reza e com ela construir
degraus para subir até o teta onde
vivem.
Muitas vezes nós indígenas
recebemos imagens de Ñanderu e
Ñandesy sobre o que vai acontecer
com o homem branco, seja na reza,
sejam mensagens que são ativadas
pela reza e recebemos em sonho. É
como se fosse uma mensagem. A
gente reza em um momento, avisando
que queremos conversar, e depois no
sonho a gente conversa. Como no
mundo ele é invisível, a gente no
sonho. quando a gente acorda a
gente conta: olha eu sonhei com o
homem branco que a tempestade ia
vir, que o terremoto ia vir e que vai
acontecer assim. É assim que
acontece a ligação com Ñanderu e
Ñandesy. Então os raios, esses
cineastas que vêm, ele não nos mostra
as imagens assim mesmo em cima.
O raio está brilhando e a gente
uma imagem. Mas é o raio que vem e
se ele tem alguma coisa para falar,
essa mensagem vem ao dormir.
Que nem exemplo, agora está
parecendo que vai chover e eu vou ver
uns raiozinhos. Depois eu vou dormir e
sonhar em alguma coisa. É sinal de
que o raio está me mostrando uma
imagem.
Quando eu vou ao mato não
vejo como um jovem branco que só
está vendo o rio e as árvores, eu sinto
tudo vivo. É como se fossem pessoas
dançando, cantando e falando em voz
alta comigo. Os homens brancos não
sabem manter esse tipo de
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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conversação com nossos seres
encantados. Eu sinto o vento e vejo
ele balançando as folhas das árvores
e, para mim, é como se ele estivesse
falando comigo - mensagens que
podem ser alegres ou tristes. As donas
das águas também são muito
importantes e elas também podem nos
dizer muitas coisas. A gente vai ao rio
e elas nos dizem, mas a gente
compreende depois por meio do
sonho. Esses seres - donos e donas
das coisas deste mundo e os raios -
também podem descer na terra. Mas
eles trocam de roupa e aparecem pra
gente como uma pessoa qualquer. Se
essas pessoas nos pedem qualquer
coisa, devemos dar a elas, porque
podem ser pessoas comuns ou podem
ser mensageiros de Ñanderu e
Ñandesy. Eu aprendo com as anciãs
de meu tekoha que aquela voz é dos
espíritos que nos ensinam e nos
guiam.
---
Luciana de Oliveira - Kuña Jeguaka
Renda
The Lightning Field (1977), Walter De Maria.
Fonte: https://www.diaart.org
Sempre sonhei em poder
convidar Valdomiro e Tereza para
vermos juntos a obra The Lightning
Field do artista Walter de Maria. Creio
que sua ciência acerca dos Povos do
Raio poderia
ver/sentir/pressentir/conhecer o que a
crítica especializada não viu nessa
obra de arte de paisagem. Nos vários
anos de aprendizagem com Valdomiro
e Tereza, uma das coisas que aprendi
é que existem muitas formas de
codificar/decodificar uma linguagem
"da natureza", para além da linguagem
matemática. Linguagens que priorizam
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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a po(est)ética, as causas finais do bem
comum, da beleza e da justiça, em
lugar das causas eficientes da técnica.
A cosmopráxis Kaiowá acumulou
conhecimentos milenares sobre a
linguagem dos raios. Por linguagem
dos raios, refiro-me a padrões de
codificação/decodificação identificados
em cores, intensidades de luz e brilho,
formas, intervalos temporais,
fenômenos acústicos associados,
modos de ocupação do espaço e
experiências transcendentais que
interligam o mundo dos sonhos com os
fenômenos físicos que nos cercam,
tornando possível a comunicação
interontológica com base numa
pragmática da observação e na
metafísica da con-vivência.
Caminhar pelas três terras (a
terra de cima, a terra em que vivemos
e a terra de baixo) é uma das
atividades mais importantes do
Ñanderu e da Ñandesy na
consolidação de um território e na
construção de um equilíbrio entre os
mundos e os domínios (ver quadro
abaixo). Como destacam Benites e
Marques (2021), "a reza ñembo’e,
enquanto veículo desses códigos
[códigos que regulam as relações],
conecta a infinidade dos domínios de
existência". Elaborei, com base no
aprendizado com os mestres e as
mestras Kaiowá e seus saberes vivos
no tekoha Guaiviry, o seguinte quadro
síntese das relações entre as partes
do mundo e quem pode percorrê-las e
as ontologias que os habitam e quem
pode com elas se comunicar:
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
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25, p. 482-505, set. 2023.
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Quadro 1 - Os mundos e as ontologias que os habitam
MUNDOS
Terra de cima
Terra em que vivemos
Terra de baixo
ONTOLOGIAS
Casal de seres
supremos Ñanderu
Guasu e Ñandesy Guasu
que criaram os três
mundos (1a geração),
animais e plantas
primordiais (modelos),
seres sagrados da
segunda geração (teko
jara), espíritos dos
ancestrais da 3a
geração, todos os tipos
de autoridades
espirituais distribuídos
em 15 teta, patamares,
regiões e tekoha da terra
de cima somente
acessíveis pelos cantos.
Água (Y)
Terra e Roça (Yvy)
Ar e vento (Yvytu)
Fogo (Ka'aguy ou mata
associada ao fogo e à
caça)
Imagens de tudo o que
existe na terra de cima,
incluindo indígenas e
não-indígenas
Pouco descrita/
apenas
mencionada.
Comunicação
intermundos
(dimensão
cosmopolítica)
Elaborado pela autora, 2022
Os mundos são conectados por
linhas e laços que unem as coisas da
terra em que vivemos com seus donos
e suas donas, bem como com seus
modelos originários na terra de cima.
Mas as linhas e os laços podem ser
cortados ou precisam ser sempre
fortalecidos, sob o risco de provocar
doenças ou de desaparecerem
provocando o fim da terra em que
vivemos. Os cantos, novamente,
fortalecem essa conexão: "a gente
canta aqui nessa terra, mas alcança
na terra de cima o dono dos animais
para os quais a gente está cantando e
o primeiro dele e, daí, ele fica forte
aqui" (Valdomiro Flores, anotação de
campo, 2014).
Os cantos-reza são tecnologias
fundamentais nos trânsitos entre as
terras e, consequente, constituição do
território. Para tanto, os Ñanderu e as
Ñandesy da terra em que vivemos
devem observar uma série de
preceitos na vida cotidiana: interdições
alimentares como não comer carne,
especialmente a vermelha, e jejuns;
interdições sexuais nos dias que
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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precedem a reza; não rir alto; o falar
demais; não sentir raiva ou agir de
forma violenta; preservar o uso do
idioma Kaiowá exclusivamente,
principalmente uma versão mais antiga
da língua. Os cantos são uma
combinação perfeita entre palavra e
som que evocam as imagens
propiciadoras de ascensão espiralar
especialmente no sentido da terra em
que vivemos para a terra de cima,
ou seja, presentificam as imagens dos
mundos e também os meios de
acessá-los - descritos muitas vezes
como escadas, cipós, linhas, aviões,
celulares e/ou poderes como caminhar
sobre a água, dentro do fogo,
atravessar ondas de brilho, assim
como a capacidade de "trocar de
roupa" - sendo o próprio corpo uma
roupa - e dialogar da forma correta
com aqueles e aquelas a quem o
rezador/a rezadora se tornam iguais
nos processos, por exemplo, de
ñembo'e puku ou reza longa.
Existem ainda objetos e
substâncias que são também
importantíssimos nessa conexão: o
mbaraka (chocalho ritual), o mimby
(flautas sagradas), os mboy (colares
de contas de lágrima) cruzados no
peito, o fumo ou tabaco, certos
adereços plumários especialmente o
jeguaka - adorno de cabeça feito com
penas vermelhas do peito do Tukano,
além de pulseiras e adereços feitos de
flores, especialmente utilizados pelas
mulheres no tempo antigo. Tais
preceitos e o uso correto dos objetos
ajudam nos processos de ascensão
conferindo as qualidades de força e
leveza, necessárias para que aconteça
o aguyje ou a perfeição.
Valdomiro Flores (FLORES;
FLORES; OLIVEIRA, 2020) se referia
à necessidade do rezador manter os
olhos e os ouvidos bem limpos para
poder enxergar/escutar o que os olhos
e ouvidos comuns não conseguem.
Visão e audição são muito importantes
para lidar com os seres que habitam a
terra de cima pois eles não se dão a
ver facilmente. O rezador é um
visionário que tem uma super
capacidade de ver e ouvir. Seu
olho/olhar, seu ouvido/sua capacidade
de escuta são instrumentos para evitar
o desequilíbrio entre os mundos e,
consequentemente, as doenças. Rezar
para o mundo não acabar é uma
memória muito antiga transmitida
oralmente por infinitas gerações que
faz recordar que o mundo acabou
algumas vezes com ciclos de fogo e
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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água nos processos da criação e que
isso pode acontecer de novo
provocado por desequilíbrios no modo
de vida dos humanos aqui na terra que
afetam as relações com as ontologias
sagradas da terra de cima.
Ta'anga é a palavra em Kaiowá
para imagem, na qual anga aproxima-
se da ideia de imitação e ta é uma
partícula que agregada a outras
palavras expressa uma noção de
futuro. Chamorro (2022), em trabalho
de dicionarização que envolveu na
pesquisa falantes indígenas Kaiowá e
Guarani traduz a palavra da seguinte
forma e com os seguintes exemplos:
ta’ãnga n. [r-, h-, t-] t- + -
a’anga ‘imitação’, 1.
representação visual; che
ambopara ichupe ha’ãnga ‘eu
desenho/pinto sua
representação visual’, ñandesy
naha’ãngái, Santa Maria katu
ha’ãnga ‘a Nossa Mãe não tem
uma representação mas Santa
Maria tem’, che ra’ãnga
oje’opa ‘o meu retrato está
todo desbotado’, bliape he’i
ndajajapói arãha ta’ãnga tupã
kwéry rehegwa ‘na bíblia diz
que não devemos fazer
imagens dos seres dos
patamares superiores.
O etnólogo León Cadogan
(1953, p. 58 e p. 62), com o apoio dos
intelectuais mbya Cantalício e seu
genro Cirilo, do tekoha Yvy Pytã na
fronteira Brasil-Paraguay, registrou na
sua principal obra - Ayvu Rapyta - a
respeito de seres espirituais
Todos estos seres pueblan los
Paraísos; y al ser creada la
tierra que habitamos, Yvy
Pyaú, imágenes de todos ellos
fueron enviadas para poblarla,
v. g., los habitantes de esta
tierra son imágenes: ta'anga
de pobladores de los paraísos
que sufrieron la metempsicosis
o metamorfosis en seres
inferiores por sus pecados.
[...]
Papa Mirĩ pobló la tierra con
imágenes - ta'anga - de los
seres que habían poblado Yvy
Tenonde y cuyas añas
poblaban los paraísos.
Como me foi explicado mais de
uma vez pelos jovens bilíngues no
tekoha Guaiviry, a linguagem dos
antigos muitas vezes é ao contrário.
Então o que vai depois, vem antes. A
partícula -ta, por exemplo, em geral é
usada como posposição aos verbos
para formar essa noção de futuro, mas
como palavra da língua dos antigos, a
partícula vem antes do
nome/substantivo anga. Assim
pensando, ta'anga poderia ser o
espírito em devir nessa terra em que
vivemos, imitação dos espíritos
primordiais que habitam a terra de
cima ou de alguma de suas
qualidades. O espírito ñe'e também
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
ganha um duplo, um anga quando sua
imagem se materializa em espelhos,
reflexos, fotografias e filmagens. Por
isso, é tão necessário cuidar das
imagens que sua circulação pelas
três terras deve colaborar à construção
de equilíbrio entre elas e não colocar
tal equilíbrio em risco.
As imagens são importantes
mediações nos processos do que
venho chamando de comunicação
intermundos (OLIVEIRA; ALTIVO;
FIGUEROA; 2021; OLIVEIRA, 2021a;
OLIVEIRA, 2021b). Com tal termo,
venho buscando dialogar com duas
dimensões empíricas dos processos
de interação entre os mundos indígena
e não indígena. A primeira dimensão
diz respeito aos fóruns cosmopolíticos,
ou seja, a experiência e manutenção
de uma cosmopráxis que se constitui
em interações com seres humanos,
não-humanos e mais que humanos em
espacialidades e temporalidades
espiraladas que conectam,
atualmente, o cotidiano-
local/doméstico com o histórico-
colonial/global com o mítico-
cosmológico/ecológico. A segunda diz
respeito às possibilidades de diálogos
interepistêmicos entre as ciências não
indígenas e as ciências indígenas,
movendo toda uma compreensão - por
hora menos conceitual e mais
metodológica/experimental - acerca
das interações possíveis como
também das inequivalências entre os
mundos, que implicam formas de
produzir, transmitir, reproduzir
conhecimentos com bases epistêmicas
completamente distintas. Sendo as
imagens relações e os mundos
relações entre imagens, considero que
as intrínsecas conexões entre ver-
escutar-sentir, saber e poder são um
desafio às alianças - e,
consequentemente, às escritas de
aliança - entre os mundos indígenas e
não-indígenas.
-----
o território, os espíritos-imagens
O tekoha ou território originário
é aquele lugar onde autoridades
intelectuais-espirituais do povo Kaiowá
e suas redes de parentelas identificam
ser possível viver a vida de verdade ou
um modo de ser autônomo, auto-
definido e em acordo com tradições
milenares vivas nas vivências e
memórias de pessoas mais velhas ou
presentes na vida das mais jovens
pelas imagens constituídas nas
oralituras daquelas. Os sinais mais
502
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25, p. 482-505, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
evidentes dessa possibilidade são a
identificação de correspondência entre
os relatos de anciãos e anciãs com
paisagens e marcos geográficos,
antigos cemitérios que apontam a
presença de antepassados e
antepassadas ou um sentimento de
conexão com a terra que é balizado
pela comunicação com os patamares,
aldeias e habitantes da chamada terra
de cima. Esse último é alimentado
pelo conhecimento acerca da criação
do mundo e de seus elementos
principais - água, terra, ar e fogo -, dos
animais e das plantas. Como
sintetizam Benites e Pereira (2010, p.
207): "quando se vive no modo
tradicional e se consegue produzir a
aldeia madura, plena tekoha
araguyje um fluxo de seres entre
a existência física da aldeia e os seres
dos patamares celestes, multiplicando
a biodiversidade local".
Após longos processos de
invasão e expropriação colonial dos
tekoha tradicionais e remoção das
famílias Kaiowá para minúsculas
reservas - onde não era mais possível
cultivar o modo de vida auto-definido
mas sim viver um modo de vida
imposto pelos invasores -, a re-
existência cultivada nas imagens da
memória ancestral das oralituras e a
comunicação cosmopolítica entre as
terras trazem a força para a realização
de retomadas. As retomadas são
processos de auto-demarcação que
as garantias constitucionais trazidas a
partir das pressões dos movimentos
indígenas em 1988 não foram
suficientes para garantir o respeito ao
direito originário à terra. Retomada
significa tanto entrar na terra de novo
quanto restabelecer a comunicação
com os ancestrais nas aldeias da terra
de cima para viver o teko tee, o jeito
verdadeiro de ser Kaiowá. Mas é
também conversar com os não-
indígenas e integrá-los como
alteridades formadoras de vínculos e
presenças incontornáveis na nova vida
comunitária, mesmo que enfrentando
terríveis formas de preconceito e
violência por parte dos não indígenas,
As rezas ñembo'e e os cantos
guahu e kotyhu permitem a reconexão
entre as imagens-espíritos belas,
perfeitas e modelares que habitam os
patamares superiores com as
imagens-espíritos imperfeitas que
habitam a terra em que vivemos,
promovendo a pregnância das
primeiras sobre as segundas e seu
consequente equilíbrio. Quem
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GOMES, Genito; GOMESD, John Nara; OLIVEIRA, Luciana de. Ape tipo
ijoja ñande ñe’ē . Aqui colocamos juntas nossas palavras. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 482-505, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
promove esse equilíbrio por meio da
comunicação entre os mundos - a terra
de cima, a terra em que vivemos e a
terra debaixo (ver quadro 1 acima) são
o Ñanderu e a Ñandesy, autoridades
intelectuais e espirituais que
protagonizam as caminhadas e as
conversações por meio de linhas de
conexão criadas com as rezas.
As tecnologias de conexão dos
brancos o vistas com grande
desconfiança por anciãos e anciãs que
costumam dizer: essas torres não são
amigas dos raios, não são amigas das
rezas. A energia que as torres de
telefonia celular fazem circular, assim
como as redes de energia elétrica ou
mesmo as casas de alvenaria, são
vistas como um perigo. Porém, para
jovens, as possibilidades de integrar o
celular, a câmera e as tecnologias de
registro dos karaí nas lutas pelos
territórios e na afirmação do modo de
vida tradicional tem sido uma forma de
conversação com velhos/velhas, na
medida em que conseguem aproximar
as conexões tradicionais/ancestrais
entre as três terras com as conexões
das tecnologias aqui na terra em que
vivemos.
O cinema, também utilizado
como arma na luta pela retomada dos
territórios tradicionais, é uma
tecnologia que é kaiowarizada para
que possa ser utilizada, servindo a
duas principais utilidades: mostrar ao
mundo como é a vida no tekoha e
ativar um campo de memórias para as
gerações futuras por meio do registro
dos espíritos-imagem que habitam
hoje a terra que vivemos e fazem a
luta pelos territórios acontecer. Mas,
mesmo mostrando a verdade da vida
sem roteiros prévios, também o
cinema deve ser submetido ao
escrutínio dos seres espirituais
superiores com pedidos de licença e
orientação para a condução no
manuseio da câmera e dos
equipamentos. Afinal, os espíritos-
raios são também como cineastas,
filmando tudo o que existe com suas
câmeras invisíveis.
As imagens constituem parte
das lutas por território mas as lutas por
território também constituem as
imagens e as devolvem para todas as
terras, incorporando-as ao sistema de
equilíbrio entre elas. O território é
composto por um conjunto compósito
de espíritos-imagens visíveis e
invisíveis, materiais e imateriais, bem
como seus espelhamentos e reflexos
nas terras cujo equilíbrio é balizado
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
pelo pertencimento (nós nascemos
aqui), pelo conhecimento (da reza e de
seus efeitos) e por uma ética de
respeito (a tudo o que é vivo e seus
guardiães e guardiãs). A negociação
com tudo o que vive é ampla e
permanente, pois a ética do respeito e
da proteção da terra se contrapõe à
propriedade privada da terra e ao seu
uso para fazer girar a roda do capital
global. Os espíritos-imagens enviam
mensagens codificadas em linguagens
que os olhos e os ouvidos de
intelectuais Kaiowá são capazes de
ver e escutar - seja nos movimentos
das plantas, vento, água, seja por
meio dos sonhos - e que os corpos
Kaiowá são capazes de sentir, pensar,
antecipar e precipitar.
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