SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Entrevista com José Jorge de Carvalho
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v13i25.
Realizada por Flávia Salgado
No
contexto da produção e pesquisa do primeiro Mapa de Mestres e Mestras dos Saberes
Populares realizado pelo INCTI/UnB/CNPq
Inclusão no Ensino Superior que entrevistamos o professor Jo Jorge de Carvalho,
coor
Encontro de Saberes.
Por Otra Universidad -
Entrevista a José Jorge de Carvalho
En el contexto de la elaboración e investigación del primer Mapa de Maestrías de Saber
P
opular realizado por el INCTI/UnB/CNPq
Inclusión en la Educación Superior, que entrevistamos al profesor Jo Jorge de Carvalho,
coordinador del Instituto y de sus dos frentes: el Observatorio de Cuotas y el En
Saber.
For Another University -
José Jorge de Carvalho Interview
In the context of the production and research of the first Map of Masters of Popular
Knowledge carried out by INCTI/UnB/CNPq
and
Inclusion in Higher Education that we interviewed Professor Jo Jorge de Carvalho,
coordinator of the Institute and its two fronts: the Quota Observatory and the Knowledge
Meeting.
1 Flávia Salgado.
Doutoranda do Programa de Pós
Fluminense, Brasil. E-mail:
flavia.salazar.salgado@gmail.com
2
Daniel Bitter. Doutor em Antropologia pelo
Federal do Rio de Janeiro (IFCS
-
Universidade Federal Fluminense
Territorialidade PPCULT-
UFF, Brasil. E
2080-9926
3
Wagner Chaves. Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidadede Federal do
Rio de Janeiro. Profes
sor do departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós
Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (IFCS
-
https://orcid.org/0000-0003-
0479
Recebido em 28/07/2023,
aceito para publicação em
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Por uma Outra Universidade
Entrevista com José Jorge de Carvalho
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v13i25.
57931
Realizada por Flávia Salgado
1, Daniel Bitter2
e Wagner Chaves
contexto da produção e pesquisa do primeiro Mapa de Mestres e Mestras dos Saberes
Populares realizado pelo INCTI/UnB/CNPq
-
o Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e
Incluo no Ensino Superior que entrevistamos o professor José Jorge de Carvalho,
denador do Instituto e das suas duas frentes de atuação: o Observatório de Cotas e o
Entrevista a José Jorge de Carvalho
En el contexto de la elaboración e investigación del primer Mapa de Maestrías de Saber
opular realizado por el INCTI/UnB/CNPq
-
Instituto Nacional de Ciencia, Tecnología e
Inclusión en la Educación Superior, que entrevistamos al profesor José Jorge de Carvalho,
coordinador del Instituto y de sus dos frentes: el Observatorio de Cuotas y el En
José Jorge de Carvalho Interview
In the context of the production and research of the first Map of Masters of Popular
Knowledge carried out by INCTI/UnB/CNPq
-
the National Institute of Science, Technology
Inclusion in Higher Education that we interviewed Professor José Jorge de Carvalho,
coordinator of the Institute and its two fronts: the Quota Observatory and the Knowledge
Doutoranda do Programa de Pós
-
Graduação em Educação da U
flavia.salazar.salgado@gmail.com
-
https://orcid.org/0000
Daniel Bitter. Doutor em Antropologia pelo
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
-
UFRJ
. Professor Associado do Departamento de Antropologia da
Universidade Federal Fluminense
- UFF e do Programa de Pós-
graduação em Cultura em
UFF, Brasil. E
-mail: danielbitter@gmail.com -
https://orcid.org/0000
Wagner Chaves. Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidadede Federal do
sor do departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós
Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
-
UFRJ), Brasil. E-mail:
wagnerchaves03@gmail.com
0479
-4445
aceito para publicação em
31/07/20
23 e disponibilizado online em
01/09/2023.
604
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
e Wagner Chaves
3
contexto da produção e pesquisa do primeiro Mapa de Mestres e Mestras dos Saberes
o Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e
Incluo no Ensino Superior que entrevistamos o professor Jo Jorge de Carvalho,
denador do Instituto e das suas duas frentes de atuação: o Observatório de Cotas e o
En el contexto de la elaboración e investigación del primer Mapa de Maestrías de Saber
Instituto Nacional de Ciencia, Tecnología e
Inclusión en la Educación Superior, que entrevistamos al profesor Jo Jorge de Carvalho,
coordinador del Instituto y de sus dos frentes: el Observatorio de Cuotas y el En
cuentro de
In the context of the production and research of the first Map of Masters of Popular
the National Institute of Science, Technology
Inclusion in Higher Education that we interviewed Professor Jo Jorge de Carvalho,
coordinator of the Institute and its two fronts: the Quota Observatory and the Knowledge
Graduação em Educação da U
niversidade Federal
https://orcid.org/0000
-0001-5065-9864
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade
. Professor Associado do Departamento de Antropologia da
graduação em Cultura em
https://orcid.org/0000
-0003-
Wagner Chaves. Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidadede Federal do
sor do departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós
-
Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
wagnerchaves03@gmail.com
-
23 e disponibilizado online em
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Entrevista com José Jorge de Carvalho
Coordenador do Instituto Nacional de Ciência
Ensino Superior -
INCTI/UnB/CNPq, Jo Jorge de Carvalho nos concedeu essa
entrevista em 2014 -
dois anos depois de promulgada a Lei 12.711 de 2012
estabelece cotas sociais para alunos das escolas públicas nas universidades
federais -
e que reconhecia a luta iniciada pelo professor, acompanhado por Rita
Segato4
, que resultara, em 2003, na adoção por parte da UnB de cotas raciais
para estudantes negros e negras. Naquela ocasião, interessava
da trajetóri
a daquele que tem estado na vanguarda desse movimento, a evolução do
pensamento que levaria à proposição das cotas epistêmicas
de saberes de outras matrizes de conhecimento na universidade
pelas diferentes experiênc
ias do Encontro de Saberes.
Em 2015 finalizamos essa entrevista quando o Encontro de Saberes havia se
expandido para mais cinco universidade. Ela reflete apenas a experiência inicial na
UnB. Atualmente, o Encontro de Saberes acontece em 18 universidades br
Testemunha de um espírito da nossa época, o professor de estudos afro
do departamento de Antropologia da UnB, revela na sua trajetória o nascimento de
um pensamento brasileiro que é filho da proposta dialógica freiriana, do projeto
uma universidade nacional e politizada de Darcy Ribeiro, do convívio profundo com
folcloristas latino-
americanos e de uma imersão etnográfica no mundo do Xangô
pernambucano.
Entre tantas experiências que sua longa e intensa vida de pesquisador
guarda, e
stão também anos de pesquisas de campo e registros etnográficos que
seguiram o rastro de rio de Andrade no Nordeste brasileiro, mas também
passaram pela Venezuela, Trinidad e Tobago e o Suriname.
4Vide documento que
inicia a luta dos dois professores pela adoção de cotas na UnB: SEGATO, R
CARVALHO, J. J. de.
Uma Proposta de Cotas e Ouvidoria para a Universidade de Brasília.
Preparada para a sessão do C.E.P.E. de 8 de março de 2002, assim como dos mesmos autores, o
P
lano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília
(
https://noticias.unb.br/images/Noticias/2018/06
06/05/2023)
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Por uma Outra Universidade
Entrevista com José Jorge de Carvalho
Coordenador do Instituto Nacional de Ciência
e
Tecnologia de Incluo no
INCTI/UnB/CNPq, José Jorge de Carvalho nos concedeu essa
dois anos depois de promulgada a Lei 12.711 de 2012
estabelece cotas sociais para alunos das escolas públicas nas universidades
e que reconhecia a luta iniciada pelo professor, acompanhado por Rita
, que já resultara, em 2003, na adoção por parte da UnB de cotas raciais
para estudantes negros e negras. Naquela ocasião, interessava
-
nos mapear, a partir
a daquele que tem estado na vanguarda desse movimento, a evolução do
pensamento que levaria à proposição das “cotas epistêmicas”
-
cotas para a entrada
de saberes de outras matrizes de conhecimento na universidade
ias do Encontro de Saberes.
Em 2015 finalizamos essa entrevista quando o Encontro de Saberes havia se
expandido para mais cinco universidade. Ela reflete apenas a experiência inicial na
UnB. Atualmente, o Encontro de Saberes acontece em 18 universidades br
Testemunha de um espírito da nossa época, o professor de estudos afro
do departamento de Antropologia da UnB, revela na sua trajetória o nascimento de
um pensamento brasileiro que é filho da proposta dialógica freiriana, do projeto
uma universidade nacional e politizada de Darcy Ribeiro, do convívio profundo com
americanos e de uma imersão etnográfica no mundo do Xangô
Entre tantas experiências que sua longa e intensa vida de pesquisador
stão também anos de pesquisas de campo e registros etnográficos que
seguiram o rastro de Mário de Andrade no Nordeste brasileiro, mas também
passaram pela Venezuela, Trinidad e Tobago e o Suriname.
inicia a luta dos dois professores pela adoção de cotas na UnB: SEGATO, R
Uma Proposta de Cotas e Ouvidoria para a Universidade de Brasília.
Preparada para a sessão do C.E.P.E. de 8 de março de 2002, assim como dos mesmos autores, o
lano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília
https://noticias.unb.br/images/Noticias/2018/06
-Jun/Plano-de-Metas-Cotas-UnB1.pdf
-
605
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Tecnologia de Inclusão no
INCTI/UnB/CNPq, Jo Jorge de Carvalho nos concedeu essa
dois anos depois de promulgada a Lei 12.711 de 2012
- que
estabelece cotas sociais para alunos das escolas públicas nas universidades
e que reconhecia a luta iniciada pelo professor, acompanhado por Rita
, que já resultara, em 2003, na adoção por parte da UnB de cotas raciais
nos mapear, a partir
a daquele que tem estado na vanguarda desse movimento, a evolução do
cotas para a entrada
de saberes de outras matrizes de conhecimento na universidade
- reivindicadas
Em 2015 finalizamos essa entrevista quando o Encontro de Saberes havia se
expandido para mais cinco universidade. Ela reflete apenas a experiência inicial na
UnB. Atualmente, o Encontro de Saberes acontece em 18 universidades br
asileiras.
Testemunha de um espírito da nossa época, o professor de estudos afro
-brasileiros
do departamento de Antropologia da UnB, revela na sua trajetória o nascimento de
um pensamento brasileiro que é filho da proposta dialógica freiriana, do projeto
de
uma universidade nacional e politizada de Darcy Ribeiro, do convívio profundo com
americanos e de uma imersão etnográfica no mundo do Xangô
Entre tantas experiências que sua longa e intensa vida de pesquisador
stão também anos de pesquisas de campo e registros etnográficos que
seguiram o rastro de Mário de Andrade no Nordeste brasileiro, mas também
inicia a luta dos dois professores pela adoção de cotas na UnB: SEGATO, R
.;
Uma Proposta de Cotas e Ouvidoria para a Universidade de Brasília.
Preparada para a sessão do C.E.P.E. de 8 de março de 2002, assim como dos mesmos autores, o
lano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília
-
acessado em
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
A convivência com John Blacking, seu orientador, em Belfa
para sua percepção do “racismo acadêmico brasileiro e do seu envolvimento direto
com o processo que resultaria na implantação das cotas para negros e indígenas
nas nossas universidades.
Muito bem acompanhado por Eduardo Viveiros de Cast
Scherer-Warren
UFSC, Kabengele Munanga
fundação do INCT de Incluo e tanta/os outra/os professoras/ES de mais de dez
universidades federais e latino
de u
ma universidade aberta aos corpos e aos saberes populares, Jo Jorge de
Carvalho traz, nesta conversa, reflexões que seguem iluminando as práticas para
uma outra universidade brasileira.
Para edição digital dessa entrevista, convidamos a todos a acessar o
que remetem a algumas das experiências já vividas pelo Encontro de Saberes.
O Espírito do Tempo
Em que medida sua vivência em Belfast com John Blacking
naquela ocasião sobre o Xangô do Recife, colaboraram para o seu trabalho
atual, no âmbito do INCTI por um novo paradigma de Universidade?
Naquele momento ainda era muito difuso, mas imagine: eu saí do Brasil para
atravessar o Atlânti
co para uma universidade distante, na Irlanda do Norte, em plena
guerra entre católicos e protestantes. Não era o lugar em que as pessoas
normalmente iam estudar, como os Estados Unidos, a Inglaterra ou a Alemanha...
John Blacking foi o motivo da minha esc
de Antropologia de Queens (e talvez de toda a universidade) que motivava os
5 “John Blacking (1928-
1990) integra o grupo de autores de referência na etnomusicologia, e seu livro
How musical is man?
(traduzido para o francês,
nesse campo de estudos, que ele identificou, diversas vezes, como antropologia da música (…) John
Blacking não apenas estabeleceu na Queens University of Belfast (Irlanda do Norte) um centro de
formaç
ão em etnomusicologia, que atraiu pesquisadores de todo o mundo como, também, participou
de modo incisivo e original dos destinos da disciplina na segunda metade do século XX.
(TRAVASSOS, Elizabeth.
John Blacking ou uma Humanidade Sonora e Saudavelmente O
Cadernos de Campo
, São Paulo, n. 16, p. 1
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
A convivência com John Blacking, seu orientador, em Belfa
para sua percepção do racismo acadêmico” brasileiro e do seu envolvimento direto
com o processo que resultaria na implantação das cotas para negros e indígenas
Muito bem acompanhado por Eduardo Viveiros de Cast
UFSC, Kabengele Munanga
-
USP que constituíram o esforço de
fundação do INCT de Inclusão e tanta/os outra/os professoras/ES de mais de dez
universidades federais e latino
-
americanas que foram se somando às experiências
ma universidade aberta aos corpos e aos saberes populares, Jo Jorge de
Carvalho traz, nesta conversa, reflexões que seguem iluminando as práticas para
uma outra universidade brasileira.
Para edição digital dessa entrevista, convidamos a todos a acessar o
que remetem a algumas das experiências já vividas pelo Encontro de Saberes.
Em que medida sua vivência em Belfast com John Blacking
5
e o estudo que fez
naquela ocasião sobre o Xangô do Recife, colaboraram para o seu trabalho
atual, no âmbito do INCTI por um novo paradigma de Universidade?
Naquele momento ainda era muito difuso, mas imagine: eu saí do Brasil para
co para uma universidade distante, na Irlanda do Norte, em plena
guerra entre católicos e protestantes. Não era o lugar em que as pessoas
normalmente iam estudar, como os Estados Unidos, a Inglaterra ou a Alemanha...
John Blacking foi o motivo da minha esc
olha. Ele era a única figura do Departamento
de Antropologia de Queen’s (e talvez de toda a universidade) que motivava os
1990) integra o grupo de autores de referência na etnomusicologia, e seu livro
(traduzido para o francês,
grego, italiano e japonês) está entre os mais citados
nesse campo de estudos, que ele identificou, diversas vezes, como antropologia da música (…) John
Blacking não apenas estabeleceu na Queen’s University of Belfast (Irlanda do Norte) um centro de
ão em etnomusicologia, que atraiu pesquisadores de todo o mundo como, também, participou
de modo incisivo e original dos destinos da disciplina na segunda metade do século XX.
John Blacking ou uma Humanidade Sonora e Saudavelmente O
, São Paulo, n. 16, p. 1
-304, 2007).
606
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
A convivência com John Blacking, seu orientador, em Belfa
st, seria decisiva
para sua percepção do racismo acadêmico brasileiro e do seu envolvimento direto
com o processo que resultaria na implantação das cotas para negros e indígenas
Muito bem acompanhado por Eduardo Viveiros de Cast
ro UFRJ, Ilse
USP que constituíram o esforço de
fundação do INCT de Incluo e tanta/os outra/os professoras/ES de mais de dez
americanas que foram se somando às experiências
ma universidade aberta aos corpos e aos saberes populares, José Jorge de
Carvalho traz, nesta conversa, reflexões que seguem iluminando as práticas para
Para edição digital dessa entrevista, convidamos a todos a acessar o
s links
que remetem a algumas das experiências já vividas pelo Encontro de Saberes.
e o estudo que fez
naquela ocasião sobre o Xangô do Recife, colaboraram para o seu trabalho
atual, no âmbito do INCTI por um novo paradigma de Universidade?
Naquele momento ainda era muito difuso, mas imagine: eu saí do Brasil para
co para uma universidade distante, na Irlanda do Norte, em plena
guerra entre católicos e protestantes. Não era o lugar em que as pessoas
normalmente iam estudar, como os Estados Unidos, a Inglaterra ou a Alemanha...
olha. Ele era a única figura do Departamento
de Antropologia de Queens (e talvez de toda a universidade) que motivava os
1990) integra o grupo de autores de referência na etnomusicologia, e seu livro
grego, italiano e japonês) está entre os mais citados
nesse campo de estudos, que ele identificou, diversas vezes, como antropologia da música (…) John
Blacking não apenas estabeleceu na Queens University of Belfast (Irlanda do Norte) um centro de
ão em etnomusicologia, que atraiu pesquisadores de todo o mundo como, também, participou
de modo incisivo e original dos destinos da disciplina na segunda metade do século XX.”
John Blacking ou uma Humanidade Sonora e Saudavelmente O
rganizada.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
estudantes a atravessar o Atlântico ou virem da Nova Zelândia, da Austrália, da
China, de diferentes países da África ou da Europa.
O que me levou a procurá
-
Porém, passei a observar igualmente a sua militância na luta anti
deixou o país com Zureena Desai. Quando o visitávamos, nos encontrávamos
também com Zureena e as duas fi
Muitos alunos negros iam, para Belfast, estudar com ele. Vitor Ralushai, um
que o ajudou a traduzir as canções das suas pesquisas de campo
6
University of the Witwatersrand, em Johanesburgo, é a terceira mais antiga Universidade sul africana
e palco importante da luta
antiapartheid
de Direito.
7“Venda children’s songs
é um extenso
meses entre os vendas
, que se destacou por representar a curiosidade por um tema que não estava
entre os mais típicos da antropologia africanista (e.g. linhagens, sistemas políticos, rituais, feitiçaria).
Bruno Nettl (1995, p. vii) observa que a influência e respeitabilidade
etnomusicologia não se devem à formalização de um método
outra referência importante nos campos da etnomusicologia e antropologia da música. Contudo,
Venda childrens songs
contém um programa de pesq
da música.” (TRAVASS
OS, Elizabeth, 2007, p.192
Capa do LP Music from Petauke of Northern Rhodesia, Vol. 1.
Fonte: https://folkways.si.edu/music-
from
rhodesia-vol-
1/world/album/smithsonian (acessado em
27/08/2023).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
estudantes a atravessar o Atlântico ou virem da Nova Zelândia, da Austrália, da
China, de diferentes países da África ou da Europa.
-
lo foi seu trabalho de referência com a Etnomusicologia.
Porém, passei a observar igualmente a sua militância na luta anti
apartheid
do Sul de onde tinha sido banido como
catedrático de Antropologia da
Universidade de Witwa
Johanesburgo.
Ali, como diretor de Departamento, ele
fomentava atividades e o debate
contra a segregação no campus e
acabou sendo banido, num epidio
dramático. Envolvido com uma aluna
indiana, chamada
contexto do apartheid, John Blacking
foi forçado a opta
permanência no cargo ou aquele
relacionamento e o banimento do país.
Decidiu-
se pela separação de sua
primeira mulher e de seus dois filhos e
deixou o país com Zureena Desai. Quando o visitávamos, nos encontrávamos
também com Zureena e as duas fi
lhas do casal.
Muitos alunos negros iam, para Belfast, estudar com ele. Vitor Ralushai, um
que o ajudou a traduzir as canções das suas pesquisas de campo
7
University of the Witwatersrand, em Johanesburgo, é a terceira mais antiga Universidade sul africana
antiapartheid
. Nos anos 40, Nelson Mandela esteve entre seus e
é um extenso
trabalho de análise de 56 canções infantis, realizado após 22
, que se destacou por representar a “curiosidade por um tema que não estava
entre os mais típicos da antropologia africanista (e.g. linhagens, sistemas políticos, rituais, feitiçaria).
Bruno Nettl (1995, p. vii) observa que a influência e respeitabilidade
de John Blacking na
etnomusicologia não se devem à formalização de um método
à maneira do que fez Alan Merriam,
outra referência importante nos campos da etnomusicologia e antropologia da música. Contudo,
contém um programa de pesq
uisa que seu autor chamou de análise cultural
OS, Elizabeth, 2007, p.192
-193)
Capa do LP Music from Petauke of Northern Rhodesia, Vol. 1.
from
-petauke-of-northern-
1/world/album/smithsonian (acessado em
607
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
estudantes a atravessar o Atlântico ou virem da Nova Zelândia, da Austrália, da
lo foi seu trabalho de referência com a Etnomusicologia.
apartheid
na África
do Sul de onde tinha sido banido como
catedrático de Antropologia da
Universidade de Witwa
tersrand6,
Ali, como diretor de Departamento, ele
fomentava atividades e o debate
contra a segregação no campus e
acabou sendo banido, num episódio
dramático. Envolvido com uma aluna
indiana, chamada
coloured no
contexto do apartheid, John Blacking
foi forçado a opta
r: a sua
permanência no cargo ou aquele
relacionamento e o banimento do país.
se pela separação de sua
primeira mulher e de seus dois filhos e
deixou o país com Zureena Desai. Quando o visitávamos, nos encontrávamos
Muitos alunos negros iam, para Belfast, estudar com ele. Vitor Ralushai, um
Venda
7
foi um dos seus
University of the Witwatersrand, em Johanesburgo, é a terceira mais antiga Universidade sul africana
. Nos anos 40, Nelson Mandela esteve entre seus e
studantes
trabalho de análise de 56 canções infantis, realizado após 22
, que se destacou por representar a curiosidade por um tema que não estava
entre os mais típicos da antropologia africanista (e.g. linhagens, sistemas políticos, rituais, feitiçaria).
de John Blacking na
à maneira do que fez Alan Merriam,
outra referência importante nos campos da etnomusicologia e antropologia da música. Contudo,
uisa que seu autor chamou de análise cultural
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
alunos de doutorado que, antes de voltar para a África do Sul, foi dar aulas
nada sequer parecido porque não haviam negros nas nossas universidades! Nem
alunos, nem professores, nem debate, nem nada
um conflito aberto sobre a questão do racismo dentro da universidade, o que estava
presente, agora em Belfast, na figura do Blacking e dos estudantes que vinham da
África, a todo momento. Obviamente, o movimento negro
tem
po todo, porém contando com poucos negros no interior do espaço acadêmico.
Nosso racismo acadêmico é tão absurdo que Abdias do Nascimento foi professor
em várias
universidades estadunidenses e africanas, mas não foi professor nas
universidades brasileiras!
Ao contrário, a experiência, com a pesquisa sobre o Xangô no Recife, foi
bastante difícil8
. Não é o mesmo que estudar o candomblé, na Bahia. Eu não tinha
nenhuma relação com aquelas instituições todas gilbertofreirianas. Ainda vai levar
muito tempo para a
gente avaliar o
8
Sobre esse período, José Jorge de Carvalho dirá em entrevista de 2011: No período da tese de
doutorado passei mais de um ano em uma casa de santo, no Xangô
contato com rituais, mas não tenho iniciação. Tenho relação de proximidade com os oris Xangô e
Oxum, que são meus orixás, e também Oxalá e com aspectos da Jurema. (ROCHA, S.P., FLORES,
E.C. et alii –
Africanidades, Cotas e Qu
Pessoa, jul/dez 2011, p. 255). Esse estudo deu origem ao livro
1993.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
alunos de doutorado que, antes de voltar para a África do Sul, foi dar aulas
Quênia. Lembro-
me de como estava preocupado com
seu pouco conhecimento do swahili…
Fiquei cinco anos estudando e convivendo com
aquela realidade, percebendo o que era a África do Sul
nos anos 70 e 80, antes da queda do Apartheid, quando
Mandela ainda
estava na cadeia. Steve Biko havia sido
assassinado menos de um mês antes de minha
chegada a Queen’s e o clima do Departamento estava
ainda marcado por essa morte.
Tudo isso reverberava na minha cabeça... A ideia
de que John Blacking transitava entre mundo
racializados, de uma forma sem paralelo nenhum com o
que acontecia nas universidades brasileiras. Não havia
nada sequer parecido porque não haviam negros nas nossas universidades! Nem
alunos, nem professores, nem debate, nem nada
-
enquanto na África do
um conflito aberto sobre a questão do racismo dentro da universidade, o que estava
presente, agora em Belfast, na figura do Blacking e dos estudantes que vinham da
África, a todo momento. Obviamente, o movimento negro
brasileiro q
po todo, porém contando com poucos negros no interior do espaço acadêmico.
Nosso racismo acadêmico é tão absurdo que Abdias do Nascimento foi professor
universidades estadunidenses e africanas, mas não foi professor nas
Ao contrário, a experiência, com a pesquisa sobre o Xangô no Recife, foi
. Não é o mesmo que estudar o candomblé, na Bahia. Eu não tinha
nenhuma relação com aquelas instituições todas gilbertofreirianas. Ainda vai levar
gente avaliar o
dano
que fez uma figura como Gilberto Freyre.
Sobre esse período, Jo Jorge de Carvalho dirá em entrevista de 2011: “No período da tese de
doutorado passei mais de um ano em uma casa de santo, no Xangô
do Recife. Estive sempre em
contato com rituais, mas não tenho iniciação. Tenho relação de proximidade com os oris Xangô e
Oxum, que são meus oris, e também Oxalá e com aspectos da Jurema.” (ROCHA, S.P., FLORES,
Africanidades, Cotas e Qu
estões Raciais in SAECULUM –
Revista de História 25,
Pessoa, jul/dez 2011, p. 255). Esse estudo deu origem ao livro
Cantos Sagrados do Xangô do Recife,
608
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
alunos de doutorado que, antes de voltar para a África do Sul, foi dar aulas
no
me de como estava preocupado com
Fiquei cinco anos estudando e convivendo com
aquela realidade, percebendo o que era a África do Sul
nos anos 70 e 80, antes da queda do Apartheid, quando
estava na cadeia. Steve Biko havia sido
assassinado menos de um mês antes de minha
chegada a Queens e o clima do Departamento estava
Tudo isso reverberava na minha cabeça... A ideia
de que John Blacking transitava entre mundo
s
racializados, de uma forma sem paralelo nenhum com o
que acontecia nas universidades brasileiras. Não havia
nada sequer parecido porque não haviam negros nas nossas universidades! Nem
enquanto na África do
Sul tinha
um conflito aberto sobre a questão do racismo dentro da universidade, o que estava
presente, agora em Belfast, na figura do Blacking e dos estudantes que vinham da
brasileiro q
uestionava o
po todo, porém contando com poucos negros no interior do espaço acadêmico.
Nosso racismo acadêmico é tão absurdo que Abdias do Nascimento foi professor
universidades estadunidenses e africanas, mas não foi professor nas
Ao contrário, a experiência, com a pesquisa sobre o Xan no Recife, foi
. Não é o mesmo que estudar o candomblé, na Bahia. Eu não tinha
nenhuma relação com aquelas instituições todas gilbertofreirianas. Ainda vai levar
que fez uma figura como Gilberto Freyre.
Sobre esse período, Jo Jorge de Carvalho dirá em entrevista de 2011: No peodo da tese de
do Recife. Estive sempre em
contato com rituais, mas não tenho iniciação. Tenho relação de proximidade com os orixás Xangô e
Oxum, que são meus oris, e também Oxalá e com aspectos da Jurema. (ROCHA, S.P., FLORES,
Revista de História 25,
João
Cantos Sagrados do Xangô do Recife,
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
no dia 2 de abril de 1964 escreveu um artigo nos jornais apoiando o golpe militar e,
depois, foi presidente do Conselho Federal de Educação. Era uma pessoa
completamente alinhada com o regime militar, dedurando professores de
esquerda…
O Xangô e
ra um mundo à parte em relação àquela intelectualidade da UFPE
e da Fundação Joaquim Nabuco; um clima desencaixado, completamente diferente
da experiência que vivia em Belfast.
Fiquei completamente imerso no Xangô e não tinha nenhum acesso à classe
média
ou ao mundo da universidade, onde fui literalmente perseguido, naquele
contexto da ditadura. Recife era um lugar cercado, de um lado pelo clima da
ditadura, de outro, por aquele racismo em torno da
9
O pensamento social brasileiro é para José Jorge de Carvalho fortemente marcado pela influên
Gilberto Freyre e sua teoria da mestiçagem. Do mesmo modo, outros países latino
evocam a sua teoria, reproduzindo seu nacionalismo racista ou seu racismo cordial. Este foi o caso
de Cuba, Colômbia, Venezuela, México, Porto Rico, Repúbli
“racismo cordial”, José Jorge de Carvalho dirá ainda: O centro dessa discuso é que, aqui, há um
confronto simultâneo de opreso e de racismo, com ideologia de cordialidade interracial: o racista,
além de oprimir
e discriminar racialmente, nega todo tempo que é o discriminador, algo muito
parecido com a esquizofrenia, 'estou te acolhendo, mas não quero você perto de mim!', são essas as
injunções que caracterizam o discurso do esquizofrênico no nosso caso, de um tip
parece esquizofrênico. Um exemplo maior é o trabalho monumental (no mau sentido do termo) de
Gilberto Freyre, ele que lutou contra a Frente Negra Brasileira (1931
importante entidade política de afrodescendentes n
tempo dizia que a cultura negra é valiosa para o Brasil. in: ROCHA, S.P., FLORES, E.C. et alii
Oluyemi Olaniyan e José Jorge de Carvalho,
em 1981, na Universidade de Queen´s, em
Belfast, traduzindo os textos em iorubá.
Fonte: CARVALHO, José Jorge. Cantos
Sagrados do Xangô do Recife, 1994.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Um homem poderosíssimo que fez um estrago na
consciência nacional com o seu poder de escrita.
A Universidade Federal de Pernambuco era
dominada pelo pensamento da democracia
racial” - um pensa
mento racista
Fundação Joaquim Nabuco -
que foi fundada por
ele.
Minha pesquisa no Xangô tinha a primeira parte
relacionada com a FUNDAJ que naquele momento
se chamava Instituto Joaquim Nabuco e tinha um
clima insuportável. O diretor, o próprio Freyre,
alinhado com a ditadura, foi a primeira
no dia 2 de abril de 1964 escreveu um artigo nos jornais apoiando o golpe militar e,
depois, foi presidente do Conselho Federal de Educação. Era uma pessoa
completamente alinhada com o regime militar, dedurando professores de
ra um mundo à parte em relação àquela intelectualidade da UFPE
e da Fundação Joaquim Nabuco; um clima “desencaixado”, completamente diferente
da experiência que vivia em Belfast.
Fiquei completamente imerso no Xangô e não tinha nenhum acesso à classe
ou ao mundo da universidade, onde fui literalmente perseguido, naquele
contexto da ditadura. Recife era um lugar cercado, de um lado pelo clima da
ditadura, de outro, por aquele racismo em torno da
figura de
Gilberto Freyre
O pensamento social brasileiro é para José Jorge de Carvalho fortemente marcado pela influên
Gilberto Freyre e sua teoria da mestiçagem. Do mesmo modo, outros países latino
evocam a sua teoria, reproduzindo seu nacionalismo racista ou seu “racismo cordial. Este foi o caso
de Cuba, Colômbia, Venezuela, México, Porto Rico, Repúbli
ca Dominicana, entre outros. Sobre esse
racismo cordial, José Jorge de Carvalho dirá ainda: “O centro dessa discussão é que, aqui, há um
confronto simultâneo de opressão e de racismo, com ideologia de cordialidade interracial: o racista,
e discriminar racialmente, nega todo tempo que é o discriminador, algo muito
parecido com a esquizofrenia, 'estou te acolhendo, mas não quero você perto de mim!', são essas as
injunções que caracterizam o discurso do esquizofrênico no nosso caso, de um tip
parece esquizofrênico. Um exemplo maior é o trabalho monumental (no mau sentido do termo) de
Gilberto Freyre, ele que lutou contra a Frente Negra Brasileira (1931
-
1937) [considerada a mais
importante entidade política de afrodescendentes n
a primeira metade do século XX] e ao mesmo
tempo dizia que a cultura negra é valiosa para o Brasil.” in: ROCHA, S.P., FLORES, E.C. et alii
Oluyemi Olaniyan e José Jorge de Carvalho,
em 1981, na Universidade de Quees, em
Belfast, traduzindo os textos em iorubá.
Fonte: CARVALHO, José Jorge. Cantos
609
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Um homem poderossimo que fez um estrago na
consciência nacional com o seu poder de escrita.
A Universidade Federal de Pernambuco era
dominada pelo pensamento da “democracia
mento racista
assim como a
que foi fundada por
Minha pesquisa no Xangô tinha a primeira parte
relacionada com a FUNDAJ que naquele momento
se chamava Instituto Joaquim Nabuco e tinha um
clima insuportável. O diretor, o próprio Freyre,
alinhado com a ditadura, foi a primeira
pessoa que
no dia 2 de abril de 1964 escreveu um artigo nos jornais apoiando o golpe militar e,
depois, foi presidente do Conselho Federal de Educação. Era uma pessoa
completamente alinhada com o regime militar, dedurando professores de
ra um mundo à parte em relação àquela intelectualidade da UFPE
e da Fundação Joaquim Nabuco; um clima desencaixado, completamente diferente
Fiquei completamente imerso no Xangô e não tinha nenhum acesso à classe
ou ao mundo da universidade, onde fui literalmente perseguido, naquele
contexto da ditadura. Recife era um lugar cercado, de um lado pelo clima da
Gilberto Freyre
9.
O pensamento social brasileiro é para José Jorge de Carvalho fortemente marcado pela influên
cia de
Gilberto Freyre e sua teoria da mestiçagem. Do mesmo modo, outros países latino
-americanos
evocam a sua teoria, reproduzindo seu nacionalismo racista ou seu racismo cordial”. Este foi o caso
ca Dominicana, entre outros. Sobre esse
racismo cordial, José Jorge de Carvalho dirá ainda: O centro dessa discuso é que, aqui, há um
confronto simultâneo de opreso e de racismo, com ideologia de cordialidade interracial: o racista,
e discriminar racialmente, nega todo tempo que é o discriminador, algo muito
parecido com a esquizofrenia, 'estou te acolhendo, mas não quero você perto de mim!', são essas as
injunções que caracterizam o discurso do esquizofrênico no nosso caso, de um tip
o de racismo que
parece esquizofrênico. Um exemplo maior é o trabalho monumental (no mau sentido do termo) de
1937) [considerada a mais
a primeira metade do século XX] e ao mesmo
tempo dizia que a cultura negra é valiosa para o Brasil. in: ROCHA, S.P., FLORES, E.C. et alii
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Como foi essa experiência direta com o Xangô e o pensamento negro?
Com o Xangô, pela primeira vez, tive uma vinculação afetiva e concreta com
pessoas negras no Brasil, o que eu nunca tinha tido antes. Isso porque também
estudei numa universidade branca, a UnB, que tinha estudantes brancos como
qualquer outra universida
de brasileira nos anos 60, 70, 80, 90... Lembro
de uma colega negra na Música, uma da Medicina e outro nas Artes.
A experiência que tive na Venezuela
Africanidades, Cotas e Questões Raciais in
jul/dez 2011, p. 250.
10E
m entrevista de 2010, José Jorge de Carvalho compararia o trauma vivido por John Blacking ao
que viveria anos mais tarde: “Quando iniciei minha carreira docente na UnB, procurava espelhar
apenas nos ensinamentos antropológicos e etnomusicólogos de John,
vividos pelo engajamento na luta anti
conflito do famoso “Caso Ari” quando me envolvi contra a maioria dos colegas em defesa do nosso
primeiro aluno negro do Doutorado
identificação concreta, não programada, mas posvel, com a trajetória política do meu mestre (…).
(LIMA, A. e JAIME, P. -
Entrevista com Prof. José Jorge de Carvalho in:
Paulo, n.19, p. 210).
11
É no Instituto Interamericano de Etnomusicología y Folklore (INIDEF) de Caracas que José Jorge de
Carvalho é introduzido ao estudo das culturas afro
Saignes. No ano seguinte, engaja
da Universidade Central da Venezuela, onde, em suas palavras, teve o privilégio do contato com o
antropólogo paraguaio Bartolomé Meliá que dava início ao que seria, mais tarde, configurado co
perspectiva descolonizadora (LIMA, A. e JAIME, P.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Assim que, para concluir, d
uma grande admiração pelo significado de John
Blacking e o preço que pagou por sua luta contra o
racismo10
na África do Sul. De outro lado, em meu
trabalho de campo no Recife, vivia a barreira entre o
mundo intelectual e universitário brasi
realidade do Xangô.
Como foi essa experiência direta com o Xangô e o pensamento negro?
Com o Xangô, pela primeira vez, tive uma vinculação afetiva e concreta com
pessoas negras no Brasil, o que eu nunca tinha tido antes. Isso porque também
estudei numa universidade branca, a UnB, que tinha estudantes brancos como
de brasileira nos anos 60, 70, 80, 90... Lembro
de uma colega negra na Música, uma da Medicina e outro nas Artes.
A experiência que tive na Venezuela
11
, um país bem menos racista do que o
Africanidades, Cotas e Questões Raciais in
SAECULUM –
Revista de História 25,
m entrevista de 2010, José Jorge de Carvalho compararia o trauma vivido por John Blacking ao
que viveria anos mais tarde: Quando iniciei minha carreira docente na UnB, procurava espelhar
apenas nos ensinamentos antropológicos e etnomusicólogos de John,
e nunca em seus conflitos
vividos pelo engajamento na luta anti
-
racista. Somente anos depois, após sofrer as consequências do
conflito do famoso Caso Ari quando me envolvi contra a maioria dos colegas em defesa do nosso
primeiro aluno negro do Doutorado
de Antropologia da UnB, pude refletir um dia, perplexo, sobre uma
identificação concreta, não programada, mas possível, com a trajetória política do meu mestre (…).
Entrevista com Prof. José Jorge de Carvalho in:
Cadernos de Campo
É no Instituto Interamericano de Etnomusicología y Folklore (INIDEF) de Caracas que José Jorge de
Carvalho é introduzido ao estudo das culturas afro
-
americanas, em um curso com Miguel Acosta
Saignes. No ano seguinte, engaja
-se
como pesquisador do Instituto de Antropologia e História (IAH)
da Universidade Central da Venezuela, onde, em suas palavras, teve “o privilégio do contato com o
antropólogo paraguaio Bartolomé Meliá que dava início ao que seria, mais tarde, configurado co
perspectiva descolonizadora (LIMA, A. e JAIME, P.
-
Entrevista com Prof. José Jorge de Carvalho in:
610
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Assim que, para concluir, d
e um lado, vivia
uma grande admiração pelo significado de John
Blacking e o preço que pagou por sua luta contra o
na África do Sul. De outro lado, em meu
trabalho de campo no Recife, vivia a barreira entre o
mundo intelectual e universitário brasi
leiro e a
Como foi essa experiência direta com o Xangô e o pensamento negro?
Com o Xangô, pela primeira vez, tive uma vinculação afetiva e concreta com
pessoas negras no Brasil, o que eu nunca tinha tido antes. Isso porque também
estudei numa universidade branca, a UnB, que tinha estudantes brancos como
de brasileira nos anos 60, 70, 80, 90... Lembro
-me apenas
de uma colega negra na Música, uma da Medicina e outro nas Artes.
, um país bem menos racista do que o
Revista de História 25,
João Pessoa,
m entrevista de 2010, José Jorge de Carvalho compararia o trauma vivido por John Blacking ao
que viveria anos mais tarde: Quando iniciei minha carreira docente na UnB, procurava espelhar
-me
e nunca em seus conflitos
racista. Somente anos depois, após sofrer as consequências do
conflito do famoso Caso Ari quando me envolvi contra a maioria dos colegas em defesa do nosso
de Antropologia da UnB, pude refletir um dia, perplexo, sobre uma
identificação concreta, não programada, mas posvel, com a trajetória política do meu mestre (…).”
Cadernos de Campo
, São
É no Instituto Interamericano de Etnomusicología y Folklore (INIDEF) de Caracas que José Jorge de
americanas, em um curso com Miguel Acosta
como pesquisador do Instituto de Antropologia e História (IAH)
da Universidade Central da Venezuela, onde, em suas palavras, teve o privilégio” do contato com o
antropólogo paraguaio Bartolomé Meliá que dava início ao que seria, mais tarde, configurado co
mo a
Entrevista com Prof. José Jorge de Carvalho in:
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Brasil também foi importante, mas foi com o Xangô do Recif
pessoal com o mundo negro e com pessoas negras. Pessoas com quem tenho
relações afetivas até hoje. Foi uma experiência fundamental, ainda que não se
tratasse, naquele momento, da questão de romper com o
universidades.
Seus estudos em Belfast foram contemporâneos ao nascimento dos Estudos
Culturais em Birmingham que, em suas palavras foi uma “pequena revolução
intelectual, política e ideológica do espaço acadêmico britânico e ocidental
Essa proximidade
espaço
Colaboraram muito, porque a minha formação não foi em Ciências Sociais.
Hoje sou professor das chamadas Ciências Sociais, na Antropologia, mas entrei na
universidade para estudar Física, depois de ter estudado na Escola Técnica de
Mineralogia e Geologia de
Música e, desde os 19, 20 anos, meu interesse pelo budismo, pelo taoísmo e o
hinduísmo foi constante.
Em Belfast, também vivi esse desencaixe, estudando Música e Antropologia
no departamento de Antr
opologia Social da Faculdade de Artes. havia ali uma
interdisciplinaridade. Além disso, John Blacking também tinha interesse pelo mundo
oriental, tinha morado na China e eu me identificava com a sua biblioteca, onde eu
via todos os clássicos do pensamen
oriental. Então, esses também foram anos de muita leitura sobre o budismo, por
exemplo13.
Não me encaixava na Antropologia Social britânica, como ainda não me
Cadernos de Campo, São Paulo, n.19
12CARVALHO, José Jorge –
Los Estudios Culturales como una Innovación en las Humanidades y las
Ciencias Socia
les de América Latina, in:
13
Sobre suas leituras, José Jorge de Carvalho dirá que: É importante para mim mencionar os nomes
dos textos e mestres orientais porque eu me construí intelectualmente mantendo um diálogo
constante (ou essa gnose, talvez) com o Oriente, ainda que nem sempre
para falar disso na academia. Em ntese Marx, Lévi
Rumi, Dogen de outro; este é o antropólogo que sou. (LIMA, A. e JAIME, P.
Rumi, ver: CARVALHO, José Jorge.
de Carvalho. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Brasil também foi importante, mas foi com o Xangô do Recif
e que tive intimidade
pessoal com o mundo negro e com pessoas negras. Pessoas com quem tenho
relações afetivas até hoje. Foi uma experiência fundamental, ainda que não se
tratasse, naquele momento, da questão de romper com o
apartheid
Seus estudos em Belfast foram contemporâneos ao nascimento dos Estudos
Culturais em Birmingham que, em suas palavras foi uma “pequena revolução
intelectual, política e ideológica do espaço acadêmico britânico e ocidental
espaço
-
temporal o influenciou de algum modo?
Colaboraram muito, porque a minha formação não foi em Ciências Sociais.
Hoje sou professor das chamadas Ciências Sociais, na Antropologia, mas entrei na
universidade para estudar Física, depois de ter estudado na Escola Técnica de
Mineralogia e Geologia de
Ouro Preto. Na universidade, transferi meu curso para
Música e, desde os 19, 20 anos, meu interesse pelo budismo, pelo taoísmo e o
Em Belfast, também vivi esse “desencaixe”, estudando Música e Antropologia
opologia Social da Faculdade de Artes. havia ali uma
interdisciplinaridade. Além disso, John Blacking também tinha interesse pelo mundo
oriental, tinha morado na China e eu me identificava com a sua biblioteca, onde eu
via todos os clássicos do pensamen
to africano e todos os clássicos do pensamento
oriental. Então, esses também foram anos de muita leitura sobre o budismo, por
Não me encaixava na Antropologia Social britânica, como ainda não me
Cadernos de Campo, São Paulo, n.19
, p.208).
Los Estudios Culturales como una Innovación en las Humanidades y las
les de América Latina, in:
Alter/nativas, 3, 2014.
Sobre suas leituras, José Jorge de Carvalho dirá que: “É importante para mim mencionar os nomes
dos textos e mestres orientais porque eu me construí intelectualmente mantendo um diálogo
constante (ou essa gnose, talvez) com o Oriente, ainda que nem sempre
tenha encontrado vao
para falar disso na academia. Em síntese Marx, Lévi
-
Strauss, John Blacking, de um lado; Nagarjuna,
Rumi, Dogen de outro; este é o antropólogo que sou.” (LIMA, A. e JAIME, P.
, 2010
Rumi, ver: CARVALHO, José Jorge.
Rumi- Poemas Místicos
. Tradução e introdução de José Jorge
de Carvalho. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
611
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
e que tive intimidade
pessoal com o mundo negro e com pessoas negras. Pessoas com quem tenho
relações afetivas até hoje. Foi uma experiência fundamental, ainda que não se
apartheid
brasileiro nas
Seus estudos em Belfast foram contemporâneos ao nascimento dos Estudos
Culturais em Birmingham que, em suas palavras foi uma “pequena revolução
intelectual, política e ideológica do espaço acadêmico britânico e ocidental”
12.
temporal o influenciou de algum modo?
Colaboraram muito, porque a minha formação não foi em Ciências Sociais.
Hoje sou professor das chamadas Ciências Sociais, na Antropologia, mas entrei na
universidade para estudar Física, depois de ter estudado na Escola Técnica de
Ouro Preto. Na universidade, transferi meu curso para
Música e, desde os 19, 20 anos, meu interesse pelo budismo, pelo taoísmo e o
Em Belfast, também vivi esse desencaixe, estudando Música e Antropologia
opologia Social da Faculdade de Artes. havia ali uma
interdisciplinaridade. Além disso, John Blacking também tinha interesse pelo mundo
oriental, tinha morado na China e eu me identificava com a sua biblioteca, onde eu
to africano e todos os clássicos do pensamento
oriental. Então, esses também foram anos de muita leitura sobre o budismo, por
Não me encaixava na Antropologia Social britânica, como ainda o me
Los Estudios Culturales como una Innovación en las Humanidades y las
Sobre suas leituras, José Jorge de Carvalho dirá que: É importante para mim mencionar os nomes
dos textos e mestres orientais porque eu me construí intelectualmente mantendo um diálogo
tenha encontrado vazão
Strauss, John Blacking, de um lado; Nagarjuna,
, 2010
, p.209). Sobre
. Tradução e introdução de José Jorge
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
encaixo nos Programas daqui todos PPGAS. Fico me p
Antropologia simplesmente? É como se apenas as questões sociais e de parentesco
fossem mais válidas ou determinantes, enquanto a arte ou a religião, a mitologia ou
o simbolismo, tivessem menos importância. Por isso, os Estudos Cultur
também, a Sociologia Britânica, mais politizada e marxista, interessavam
Tinha um amigo que sempre ia a Birmingham e trazia uns panfletos
publicados por . Eram os primeiros
trabalho datilografados,
sobre
Tinham estudos dos movimentos urbanos
terninho), dos mods
(os moderninhos de cabelo todo ajeitadinho), dos
que fazia muito sentido para mim que vivia o auge
Estudos Culturais tinham esse
novos movimentos, com as manifestações da juventude fora do esquema,
desenquadrada.
Um texto que me fascinava particularmente era o
Ness Monster
. Aquela história de um lago na Escócia, onde supostamente vive uma
família de monstros, milhares de anos. Um ensaio que trazia um campo
interdisciplinar e os diversos discursos ao redor do monstro: questões políticas, a
iden
tidade escocesa, as fantasias e paranóias urbanas da sociedade industrial
moderna, o inconsciente de tipo junguiano de uma animalidade primordial e que
aflora apenas fugazmente.
Nada disso seria possível ou capturado
como a Antropologia, a Sociologia, a História ou a Ciência Política. Os Estudos
Culturais trouxeram a interdisciplinaridade.
14
Sobre o ambiente de Belfast, Jo Jorge de Carvalho ainda dirá, nesta entrevista: Alguns dos meus
colegas eram punks de verdade, não de boutique, eram os 'quebra
pegavam o resto de uma coleira
arruinada, como Liverpool, como Birminghan: uma parte era a briga entre católicos e protestantes e
out
ra parte era a juventude punk.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
encaixo nos Programas daqui todos PPGAS. Fico me p
erguntando por que o
Antropologia simplesmente? É como se apenas as questões sociais e de parentesco
fossem mais válidas ou determinantes, enquanto a arte ou a religião, a mitologia ou
o simbolismo, tivessem menos importância. Por isso, os Estudos Cultur
também, a Sociologia Britânica, mais politizada e marxista, interessavam
Tinha um amigo que sempre ia a Birmingham e trazia uns panfletos
publicados por lá. Eram os primeiros
working papers,
espécies de cadernos de
sobre
temas e abordagens
que eu achava fascinantes.
Tinham estudos dos movimentos urbanos
- dos teddys
(aqueles que andam de
(os moderninhos de cabelo todo ajeitadinho), dos
que fazia muito sentido para mim que vivia o auge
da cultura punk
14
Estudos Culturais tinham esse
feeling
, essa relação com a cultura punk e com os
novos movimentos, com as manifestações da juventude fora do esquema,
Um texto que me fascinava particularmente era o
The Mean
. Aquela história de um lago na Escócia, onde supostamente vive uma
família de monstros, há milhares de anos. Um ensaio que trazia um campo
interdisciplinar e os diversos discursos ao redor do monstro: questões políticas, a
tidade escocesa, as fantasias e paranóias urbanas da sociedade industrial
moderna, o inconsciente de tipo junguiano de uma animalidade primordial e que
aflora apenas fugazmente.
Nada disso seria possível ou capturado
na sua integralidade por
como a Antropologia, a Sociologia, a História ou a Ciência Potica. Os Estudos
Culturais trouxeram a interdisciplinaridade.
Sobre o ambiente de Belfast, José Jorge de Carvalho ainda dirá, nesta entrevista: Alguns dos meus
colegas eram punks de verdade, não de boutique, eram os 'quebra
-
paus'. Era 1977
de cachorro na rua e a vestiam..
. Belfast era aquela cidade industrial
arruinada, como Liverpool, como Birminghan: uma parte era a briga entre católicos e protestantes e
ra parte era a juventude punk.”
612
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
erguntando por que não
Antropologia simplesmente? É como se apenas as questões sociais e de parentesco
fossem mais válidas ou determinantes, enquanto a arte ou a religião, a mitologia ou
o simbolismo, tivessem menos importância. Por isso, os Estudos Cultur
ais e,
também, a Sociologia Britânica, mais politizada e marxista, interessavam
-me muito.
Tinha um amigo que sempre ia a Birmingham e trazia uns panfletos
espécies de cadernos de
que eu achava fascinantes.
(aqueles que andam de
(os moderninhos de cabelo todo ajeitadinho), dos
punks... (o
14
, em Belfast). Os
, essa relação com a cultura punk e com os
novos movimentos, com as manifestações da juventude fora do esquema,
The Mean
ing of the Lock
. Aquela história de um lago na Escócia, onde supostamente vive uma
família de monstros, há milhares de anos. Um ensaio que trazia um campo
interdisciplinar e os diversos discursos ao redor do monstro: questões políticas, a
tidade escocesa, as fantasias e paranóias urbanas da sociedade industrial
moderna, o inconsciente de tipo junguiano de uma animalidade primordial e que
na sua integralidade por
disciplinas
como a Antropologia, a Sociologia, a História ou a Ciência Política. Os Estudos
Sobre o ambiente de Belfast, Jo Jorge de Carvalho ainda dirá, nesta entrevista: “Alguns dos meus
paus'. Era 1977
-78, os jovens
. Belfast era aquela cidade industrial
arruinada, como Liverpool, como Birminghan: uma parte era a briga entre católicos e protestantes e
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
A “interdisciplinaridade”, não a transdisciplinaridade?
Uma interdisciplinaridade, ainda. No tema do monstro, por exemplo,
ide
ntificamos leituras sociológicas, históricas, literárias, geográficasas disciplinas
ainda estão bem demarcadas. Na transdisciplinaridade, perde
disciplinas que se misturaram para chegar naquele tema.
De toda forma era um passo adiante. Se
Queen’s era bidisciplinar, misturando a Antropologia e a Música, os Estudos
Culturais eram multi e
interdisciplinares,
quadro. Isso porque, como Einstein falava: A mente que s
jamais voltará ao seu tamanho original. Depois que vo experimentou uma vio
de mundo interdisciplinar, não é mais possível se encaixar numa perspectiva
disciplinar, fica difícil, você fica sufocado.
A Universidade Excludente
A
Universidade de Brasília
olhar para a ciência e para a cultura. O Encontro de Saberes foi, de alguma
forma, inspirado por essa ideia de universidade?
Minha experiência na UnB é, talvez, a dos últimos anos de
de cursar matérias. Por exemplo, pude passar da Física para a Música, o que hoje
não seria mais possível. Entrei para Física, tinha um amigo muito querido que era
professor da Geologia, fiz Geologia I e II. Na Comunicação, participei do
curso universitário sobre História em Quadrinhos que foi, inclusive, citado por
Humberto Eco pelo ineditismo. Depois, participei de um Seminário de Lógica
Simbólica com um grande matemático, o Fausto Alvim nior, com quem fiz uma
espécie de curs
o universitário paralelo, completo e exclusivo, em uma interação de
15
A criação da UnB em 1961, contou com a idealização de Anísio Teixeira e Darcy Ribe
no modelo norte-
americano, adaptado à realidade brasileira pelos seus idealizadores, a Universidade
extinguia as cátedras, flexibilizando os currículos dos cursos, além de reunir basicamente professores
e pesquisadores brasileiros, em torno da
(Darcy Ribeiro -
Universidade para quê?
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
A “interdisciplinaridade, não a transdisciplinaridade?
Uma interdisciplinaridade, ainda. No tema do monstro, por exemplo,
ntificamos leituras sociológicas, históricas, literárias, geográficasas disciplinas
ainda estão bem demarcadas. Na transdisciplinaridade, perde
-
disciplinas que se misturaram para chegar naquele tema.
De toda forma era um passo adiante. Se
o Departamento de Antropologia em
Queens era bidisciplinar, misturando a Antropologia e a Música, os Estudos
interdisciplinares,
o que amplia muito e de forma irrevervel o
quadro. Isso porque, como Einstein falava: “A mente que s
e abre a uma nova ideia,
jamais voltará ao seu tamanho original”. Depois que você experimentou uma vio
de mundo interdisciplinar, não é mais possível se encaixar numa perspectiva
disciplinar, fica difícil, você fica sufocado.
A Universidade Excludente
Universidade de Brasília
15
, na sua origem, continha o gérmen desse novo
olhar para a ciência e para a cultura. O Encontro de Saberes foi, de alguma
forma, inspirado por essa ideia de universidade?
Minha experiência na UnB é, talvez, a dos últimos anos de
liberdade completa
de cursar matérias. Por exemplo, pude passar da Física para a Música, o que hoje
não seria mais posvel. Entrei para Física, tinha um amigo muito querido que era
professor da Geologia, fiz Geologia I e II. Na Comunicação, participei do
curso universitário sobre História em Quadrinhos que foi, inclusive, citado por
Humberto Eco pelo ineditismo. Depois, participei de um Seminário de Lógica
Simbólica com um grande matemático, o Fausto Alvim Júnior, com quem fiz uma
o universitário paralelo, completo e exclusivo, em uma interação de
A criação da UnB em 1961, contou com a idealização de Anísio Teixeira e Darcy Ribe
americano, adaptado à realidade brasileira pelos seus idealizadores, a Universidade
extinguia as tedras, flexibilizando os currículos dos cursos, além de reunir basicamente professores
e pesquisadores brasileiros, em torno da
construção de um “novo modelo civilizatório para o Brasil
Universidade para quê?
Brasília: Editora U
niversidade de Brasília, 1986).
613
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Uma interdisciplinaridade, ainda. No tema do monstro, por exemplo,
ntificamos leituras sociológicas, históricas, literárias, geográficas… as disciplinas
-
se o rastro das
o Departamento de Antropologia em
Queens era bidisciplinar, misturando a Antropologia e a Música, os Estudos
o que amplia muito e de forma irreversível o
e abre a uma nova ideia,
jamais voltará ao seu tamanho original. Depois que vo experimentou uma visão
de mundo interdisciplinar, não é mais possível se encaixar numa perspectiva
, na sua origem, continha o gérmen desse novo
olhar para a ciência e para a cultura. O Encontro de Saberes foi, de alguma
liberdade completa
de cursar matérias. Por exemplo, pude passar da Física para a Música, o que hoje
não seria mais posvel. Entrei para Física, tinha um amigo muito querido que era
professor da Geologia, fiz Geologia I e II. Na Comunicação, participei do
primeiro
curso universitário sobre História em Quadrinhos que foi, inclusive, citado por
Humberto Eco pelo ineditismo. Depois, participei de um Seminário de Lógica
Simbólica com um grande matemático, o Fausto Alvim nior, com quem fiz uma
o universitário paralelo, completo e exclusivo, em uma interação de
A criação da UnB em 1961, contou com a idealização de Anísio Teixeira e Darcy Ribe
iro. Baseada
americano, adaptado à realidade brasileira pelos seus idealizadores, a Universidade
extinguia as tedras, flexibilizando os currículos dos cursos, além de reunir basicamente professores
construção de um novo modelo civilizatório para o Brasil”
niversidade de Brasília, 1986).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
duas, três vezes por semana. Com Fausto aprendi sobre Lógica Simbólica, Física
Quântica, Jung, I Ching
, T. S. Eliott, o
Murasaki Shikibu, e tan
tos mais
De acordo com a racionalidade atual, perdi tempo, mas, naquele momento,
a grade disciplinar da UnB era flexível
penso que talvez tenha reverberado de algum modo, mas o Encontro de Saberes
surge de ou
tras demandas, ele é pós
O Encontro de Saberes é fruto de lutas políticas que Darcy Ribeiro não
previu. Ainda que Darcy se colocasse como defensor dos povos indígenas, eles não
estavam na Universidade e os negros também
previa uma universidade nova, mas que continuava sendo, pelo menos
implicitamente, para brancos.
Talvez a maior contribuição
ideia de “povos transplantados, de povos novos”. Ele tinha uma visão de continente
que, hoje, a maioria dos nossos colegas ainda não gosta; pelo contrário, muitos
odeiam. Por um lado, Darcy Ribeiro não se
disciplinar, em função do seu evolucionismo um pouco superado, mas, também, por
seu discurso politizado. De qualquer forma, na universidade, apenas uma minoria é
assumidamente politizada.
Penso que o Encontro de Saberes po
projeto claramente político, mas não pela discuso racial que, ainda, não estava
presente na esfera acadêmica.
O senhor se reconhece como folclorista, além de etnomusicólogo e
16 CARVALHO, José Jorge.
Mutus Liber. O Livro Mudo da Alquimia
17
Sobre o papel dessa experiência de uma graduação marcada pela exposição constante a áreas de
conhecimento entre as artes, as humanidades e as ciências exatas, José Jorge de Carvalho dirá:
“Não vivi neste sentido, as limitações do fosso entre as duas cult
de C. P. Snow, o que me preparou para propor mais tarde, já como pesquisador e professor, uma
abordagem interdisciplinar e transdisciplinar aos meus temas de estudo. O modo como abordei meus
estudos e minhas pesquisas an
tropológicas foi desenvolvido com a influência desse trânsito de
saberes que pude realizar praticamente sem barreiras de burocracia acadêmica, situação privilegiada
e atualmente inexistente e para cuja retomada procuro agora contribuir com os projetos do I
Inclusão (...)” (CARVALHO, J.J.
-
Anuário Antropológico
, Brasília, UnB, 201
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
duas, três vezes por semana. Com Fausto aprendi sobre Lógica Simbólica, Física
, T. S. Eliott, o
Mutus Liber
(sobre o qual escrevi um livro),
tos mais
16.
De acordo com a racionalidade atual, “perdi tempo”, mas, naquele momento,
a grade disciplinar da UnB era flexível
17
. Você me pergunta se isso me inspirou e eu
penso que talvez tenha reverberado de algum modo, mas o Encontro de Saberes
tras demandas, ele é pós
-
cotas, é resultado de outras lutas.
O Encontro de Saberes é fruto de lutas políticas que Darcy Ribeiro não
previu. Ainda que Darcy se colocasse como defensor dos povos indígenas, eles não
estavam na Universidade e os negros também
não. Quer dizer, o projeto da UnB
previa uma universidade nova, mas que continuava sendo, pelo menos
implicitamente, para brancos.
Talvez a maior contribuição
de
Darcy Ribeiro seja a ideia de América Latina, a
ideia de povos transplantados”, de “povos novos”. Ele tinha uma visão de continente
que, hoje, a maioria dos nossos colegas ainda não gosta; pelo contrário, muitos
odeiam. Por um lado, Darcy Ribeiro não se
encaixaria numa Antropologia tão
disciplinar, em função do seu evolucionismo um pouco superado, mas, também, por
seu discurso politizado. De qualquer forma, na universidade, apenas uma minoria é
assumidamente politizada.
Penso que o Encontro de Saberes po
de estar vinculado à UnB por seu
projeto claramente político, mas não pela discussão racial que, ainda, não estava
presente na esfera acadêmica.
O senhor se reconhece como folclorista, além de etnomusicólogo e
Mutus Liber. O Livro Mudo da Alquimia
. São Paulo: Attar Editorial, 1995.
Sobre o papel dessa experiência de uma graduação marcada pela “exposição constante a áreas de
conhecimento entre as artes, as humanidades e as ciências exatas”, José Jorge de Carvalho dirá:
Não vivi neste sentido, as limitações do fosso entre as duas cult
uras (as ciências e as humanidades)
de C. P. Snow, o que me preparou para propor mais tarde, já como pesquisador e professor, uma
abordagem interdisciplinar e transdisciplinar aos meus temas de estudo. O modo como abordei meus
tropológicas foi desenvolvido com a influência desse trânsito de
saberes que pude realizar praticamente sem barreiras de burocracia acadêmica, situação privilegiada
e atualmente inexistente e para cuja retomada procuro agora contribuir com os projetos do I
-
A Antropologia entre as Ciências Sociais e as Humanidades in:
, Brasília, UnB, 201
7, v.42,n.1: 251-308, p. 252).
614
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
duas, três vezes por semana. Com Fausto aprendi sobre Lógica Simbólica, Física
(sobre o qual escrevi um livro),
De acordo com a racionalidade atual, perdi tempo, mas, naquele momento,
. Você me pergunta se isso me inspirou e eu
penso que talvez tenha reverberado de algum modo, mas o Encontro de Saberes
cotas, é resultado de outras lutas.
O Encontro de Saberes é fruto de lutas políticas que Darcy Ribeiro não
previu. Ainda que Darcy se colocasse como defensor dos povos indígenas, eles não
não. Quer dizer, o projeto da UnB
previa uma universidade nova, mas que continuava sendo, pelo menos
Darcy Ribeiro seja a ideia de América Latina, a
ideia de povos transplantados, de povos novos”. Ele tinha uma visão de continente
que, hoje, a maioria dos nossos colegas ainda não gosta; pelo contrário, muitos
encaixaria numa Antropologia tão
disciplinar, em função do seu evolucionismo um pouco superado, mas, também, por
seu discurso politizado. De qualquer forma, na universidade, apenas uma minoria é
de estar vinculado à UnB por seu
projeto claramente político, mas não pela discuso racial que, ainda, não estava
O senhor se reconhece como folclorista, além de etnomusicólogo e
. São Paulo: Attar Editorial, 1995.
Sobre o papel dessa experiência de uma graduação marcada pela exposição constante a áreas de
conhecimento entre as artes, as humanidades e as ciências exatas, José Jorge de Carvalho dirá:
uras (as ciências e as humanidades)
de C. P. Snow, o que me preparou para propor mais tarde, já como pesquisador e professor, uma
abordagem interdisciplinar e transdisciplinar aos meus temas de estudo. O modo como abordei meus
tropológicas foi desenvolvido com a influência desse trânsito de
saberes que pude realizar praticamente sem barreiras de burocracia acadêmica, situação privilegiada
e atualmente inexistente e para cuja retomada procuro agora contribuir com os projetos do I
NCT de
A Antropologia entre as Ciências Sociais e as Humanidades in:
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
antropólogo. Como interpreta a disputa entre
paulistas? Não estavam dadas as condições para os estudos sobre a tradição
popular e o folclore, na universidade?
Dizer que sou folclorista, antropólogo ou etnomusilogo é, apenas, uma
forma de dar uma pista da minha trajetória.
Talvez eu não seja nenhuma dessas coisas
completamente, porque também não sou um
especialista. Escrevo sobre Etnomusicologia,
mas não sou só
etnomusicólogo.
E por que folclorista? Porque em 1973,
logo que eu terminei a UnB, fui para Caracas
e estudei com Isabel Aretz e Luiz Felipe
Ramón Rivyera
no Museu de Etnomusicologia
y Folklore18
. Essa experiência me abriu um
novo horizonte, uma vez que
universitário, o se chega tão perto da cultura popular, enquanto os folcloristas
pesquisam a estética das suas formas concretas: seus cantos, poesias, danças,
como o joropo, o
tamunangue
O
folclorista não perde o gosto e a paixão pelas tradições populares, pela cultura
popular tradicional que é maravilhosa!
Sim, por isso é acusado de romântico...
E daí? Os sociólogos dizem que os folcloristas não têm teoria, mas a
18
Foi no Instituto Interamericano de Etnomusicologia e Folklore (Inidef)
dos Estados Americanos (OEA) sediado em Caracas
especialização em etnomusicologia, primeiro como estudante e, depois, como pesquisador. Com a
missão de “construir um arquivo de registro audiovisua
correlatas, tais como dança e poesia popular) de todos os países da América Latina, o Inidef
dedicava-
se também “a formar uma geração de jovens pesquisadores latino
etnomusicologia e fol
clore.” (...). Sobre a importância do Instituto, dirá, ainda: fundado por Isabel
Aretz, uma das mais eminentes folcloristas e etnomusilogas da história do continente, que o dirigiu
com Luís Felipe Ramón y Rivera, o decano dos folcloristas e etnomusicólo
foi em seu tempo o centro da inteligência dos estudos das músicas tradicionais do continente, tanto
das tradições folclóricas, assim como das indígenas e afro
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
antropólogo. Como interpreta a disputa entre
os folcloristas e os sociólogos
paulistas? Não estavam dadas as condições para os estudos sobre a tradição
popular e o folclore, na universidade?
Dizer que sou folclorista, antropólogo ou etnomusicólogo é, apenas, uma
forma de dar uma pista da minha trajetória.
Talvez eu não seja nenhuma dessas coisas
completamente, porque também não sou um
especialista. Escrevo sobre Etnomusicologia,
etnomusicólogo.
E por que folclorista? Porque em 1973,
logo que eu terminei a UnB, fui para Caracas
e estudei com Isabel Aretz e Luiz Felipe
no Museu de Etnomusicologia
. Essa experiência me abriu um
novo horizonte, uma vez que
no mundo
universitário, não se chega tão perto da cultura popular, enquanto os folcloristas
pesquisam a estética das suas formas concretas: seus cantos, poesias, danças,
tamunangue
e instrumentos, tais como a
harpa llanera
folclorista não perde o gosto e a paixão pelas tradições populares, pela cultura
popular tradicional que é maravilhosa!
Sim, por isso é acusado de romântico...
E daí? Os sociólogos dizem que os folcloristas não m teoria, mas a
Foi no Instituto Interamericano de Etnomusicologia e Folklore (Inidef)
- um pro
jeto da Organização
dos Estados Americanos (OEA) sediado em Caracas
-
que José Jorge de Carvalho inicia sua
especialização em etnomusicologia, primeiro como estudante e, depois, como pesquisador. Com a
missão de construir um arquivo de registro audiovisua
l das tradições musicais (incluindo as artes
correlatas, tais como dança e poesia popular) de todos os países da América Latina, o Inidef
se também a formar uma geração de jovens pesquisadores latino
-
americanos nas áreas de
clore. (...). Sobre a importância do Instituto, dirá, ainda: “fundado por Isabel
Aretz, uma das mais eminentes folcloristas e etnomusicólogas da história do continente, que o dirigiu
com Luís Felipe Ramón y Rivera, o decano dos folcloristas e etnomusicólo
gos da Venezuela, o Inidef
foi em seu tempo o centro da inteligência dos estudos das músicas tradicionais do continente, tanto
das tradições folclóricas, assim como das indígenas e afro
-amer
icanas” (idem ibidem, p. 253).
Luiz Felipe Ramón y Rivyera e Isabel Aretz.
Plisson. Fonte:
Cahiers d´etnomusicologie
(https:
//journals.openedition.org/ethnomusicologie/1429?lan
g=en, em 26/08/2023)
615
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
os folcloristas e os sociólogos
paulistas? Não estavam dadas as condições para os estudos sobre a tradição
Dizer que sou folclorista, antropólogo ou etnomusilogo é, apenas, uma
universitário, não se chega tão perto da cultura popular, enquanto os folcloristas
pesquisam a estética das suas formas concretas: seus cantos, poesias, danças,
harpa llanera
e o cuatro.
folclorista não perde o gosto e a paixão pelas tradições populares, pela cultura
E daí? Os sociólogos dizem que os folcloristas não têm teoria, mas a
jeto da Organização
que José Jorge de Carvalho inicia sua
especialização em etnomusicologia, primeiro como estudante e, depois, como pesquisador. Com a
l das tradições musicais (incluindo as artes
correlatas, tais como dança e poesia popular) de todos os países da América Latina”, o Inidef
americanos nas áreas de
clore. (...). Sobre a importância do Instituto, dirá, ainda: fundado por Isabel
Aretz, uma das mais eminentes folcloristas e etnomusilogas da história do continente, que o dirigiu
gos da Venezuela, o Inidef
foi em seu tempo o centro da inteligência dos estudos das músicas tradicionais do continente, tanto
icanas (idem ibidem, p. 253).
Luiz Felipe Ramón y Rivyera e Isabel Aretz.
Foto: Michel
Cahiers d´etnomusicologie
//journals.openedition.org/ethnomusicologie/1429?lan
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
pergunta é: precisa? Algu
teorizar... Agora, não é preciso desqualificar o trabalho de alguém por não querer
fazer teoria. Théo Brandão
Câmara Cascudo era um sofisticado
textos do Câmara Cascudo maravilhosos! Um dia, em Copacabana,
andando e conversando com um amigo, passa um o e, enquanto o amigo fez um
cruz em credo, ele falou:
Eneida
de Virgílio que quer dizer: E na noi
num cão ululando pelas ruas. Ele conecta o costume de fazer o esconjuro, do
folclore, com um texto eminente de dois mil anos atrás! O que é um salto
monumental de erudição,
e de capacidade comparativa, valorizando,
modo elitizado, a tradição popular. Isso é Câmara Cascudo!
jogos incríveis de pegar as culturas do mundo antigo. Tem toda uma teoria, uma
espécie de história da cultura erudita e popular
de oral e daquilo que, muitos séculos e milênios anos atrás, foi escrito. Aquela
teoria do zigzag,
formulada por Menéndez y Pelayo,
logo, contada de novo de modo a ficar na memória das pessoas que a expressam e,
então, alguém vem e registra aquela cultura oral que já tinha sido escrita em algum
momento... Esses zigzags
Brandão desvendaram.
Nesses estudos o tem teoria funcionalista da cultura, nem marxista. A
abordagem sociológica quer chamar atenção para o que eles não prestam atenção:o
lugar desses costumes na vida social
costumes do seu contexto e os observam detidamente e os descrevem. As duas
19Theotônio Vilela Brandão (
1907
Nacional do Folclore. Em 1975, a Universidade Federal de Alagoas criou o Museu Théo Brandão de
Antropologia e Folclore para abrigar seu diversifi
biblioteca, além de manuscritos, correspondências, objetos tridimensionais, registros sonoros e
fotográficos. Escreveu, entre outros artigos e ensaios:
de Alagoas (1951),
O reisado alagoano
pastoril
(1964). Em 1961 assume as cadeiras de Antropologia e Etnografia do Brasil na Universidade
Federal de Alagoas até se aposentar, em 1975
20Na apresentação de sua
História da Alimentação no Brasil
chamado de seus críticos: “Sei dos recenseadores de omissões, mais atentos ao que falta que
verificadores do que existe. Conto com êles. CASCUDO, L.C.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
pergunta é: precisa? Algu
mas pessoas querem teoria, então, tudo bem, podem
teorizar... Agora, não é preciso desqualificar o trabalho de alguém por não querer
fazer teoria. Théo Brandão
19
que era um folclorista refinado de Alagoas
Câmara Cascudo era um sofisticado
historiador da cultura.
Há textos do Câmara Cascudo maravilhosos! Um dia, em Copacabana,
andando e conversando com um amigo, passa um cão e, enquanto o amigo fez um
cruz em credo, ele falou:
Nocturnisque Hecate
trivis ululata per urbes
de Virgílio que quer dizer: “E na noi
te, Hécate –
a deusa tenebrosa
num o ululando pelas ruas”. Ele conecta o costume de fazer o esconjuro, do
folclore, com um texto eminente de dois mil anos atrás! O que é um salto
e de capacidade comparativa, valorizando,
modo elitizado, a tradição popular. Isso é Câmara Cascudo!
Ele vivia fazendo esses
jogos incríveis de pegar as culturas do mundo antigo. Tem toda uma teoria, uma
espécie de história da cultura erudita e popular
em olhares cruzados, do que ela
de oral e daquilo que, há muitos séculos e milênios anos atrás, foi escrito. Aquela
formulada por Menéndez y Pelayo,
em que a cultura oral é escrita e,
logo, contada de novo de modo a ficar na memória das pessoas que a expressam e,
então, alguém vem e registra aquela cultura oral que tinha sido escrita em algum
maravilhosos que folcloristas co
mo ele ou como o Théo
Nesses estudos não tem teoria funcionalista da cultura, nem marxista. A
abordagem sociológica quer chamar atenção para o que eles não prestam atenção:o
lugar desses costumes na vida social
20. Ao contrário, os folcl
oristas descolam os
costumes do seu contexto e os observam detidamente e os descrevem. As duas
1907
-1981),
médico e folclorista, foi membro fundador da Comissão
Nacional do Folclore. Em 1975, a Universidade Federal de Alagoas criou o Museu Théo Brandão de
Antropologia e Folclore para abrigar seu diversifi
cado acervo de cultura popular, q
biblioteca, além de manuscritos, correspondências, objetos tridimensionais, registros sonoros e
fotográficos. Escreveu, entre outros artigos e ensaios:
Folclore de Alagoas
(1949),
O reisado alagoano
(1953), Folguedos natalinos (1961),
O guerreiro
(1964). Em 1961 assume as cadeiras de Antropologia e Etnografia do Brasil na Universidade
Federal de Alagoas até se aposentar, em 1975
.
História da Alimentação no Brasil
, Câmara Cascudo responde a esse
chamado de seus críticos: Sei dos recenseadores de omissões, mais atentos ao que falta que
verificadores do que existe. Conto com êles.” CASCUDO, L.C.
- História
da Alimentação no Brasil
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967).
616
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
mas pessoas querem teoria, então, tudo bem, podem
teorizar... Agora, não é preciso desqualificar o trabalho de alguém por não querer
que era um folclorista refinado de Alagoas
,dizia que
Há textos do Câmara Cascudo maravilhosos! Um dia, em Copacabana,
andando e conversando com um amigo, passa um o e, enquanto o amigo fez um
trivis ululata per urbes
”, frase da
a deusa tenebrosa
– encarna
num o ululando pelas ruas. Ele conecta o costume de fazer o esconjuro, do
folclore, com um texto eminente de dois mil anos atrás! O que é um salto
e de capacidade comparativa, valorizando,
mesmo que um
Ele vivia fazendo esses
jogos incríveis de pegar as culturas do mundo antigo. Tem toda uma teoria, uma
em olhares cruzados, do que ela
tem
de oral e daquilo que, há muitos séculos e milênios anos atrás, foi escrito. Aquela
em que a cultura oral é escrita e,
logo, contada de novo de modo a ficar na memória das pessoas que a expressam e,
então, alguém vem e registra aquela cultura oral que já tinha sido escrita em algum
mo ele ou como o Théo
Nesses estudos não tem teoria funcionalista da cultura, nem marxista. A
abordagem sociológica quer chamar atenção para o que eles não prestam atenção:o
oristas “descolam” os
costumes do seu contexto e os observam detidamente e os descrevem. As duas
médico e folclorista, foi membro fundador da Comissão
Nacional do Folclore. Em 1975, a Universidade Federal de Alagoas criou o Museu Théo Brandão de
cado acervo de cultura popular, q
ue incluía sua
biblioteca, além de manuscritos, correspondências, objetos tridimensionais, registros sonoros e
(1949),
Trovas populares
O guerreiro
(1964), O
(1964). Em 1961 assume as cadeiras de Antropologia e Etnografia do Brasil na Universidade
, Câmara Cascudo responde a esse
chamado de seus críticos: Sei dos recenseadores de omissões, mais atentos ao que falta que
da Alimentação no Brasil
,
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
perspectivas se complementam. Maria Isaura Pereira de Queiroz estabelece um
quadro sociológico bem demarcado para compreender a dança de São Gonçalo, e
quem
o fizesse um quadro como aquele era considerado apenas” um folclorista,
o que os rebaixa e exclui. Nos anos 50, havia uma meia dúzia de universidades,
como a USP, e houve uma excluo muito forte dos folcloristas.
Hoje, inclusive, continua essa desconfia
leitura completa, as perspectivas se complementam. Deve ser por isso que não
rejeito ser identificado também como folclorista, porque não excluo o interesse, a
minha paixão pelas formas simbólicas das tradições populares, b
sem que seja preciso explicá
Que outros tipos de “exclusão tem caracterizado o ensino superior
brasileiro?
As universidades foram criadas a partir de uma dupla excluo: uma excluo
étnico-r
acial e uma exclusão epistêmica. Elas foram monoepistêmicas, somente
eurocêntricas, na medida em que reproduziram o saber das universidades modernas
européias no Brasil. A USP era uma missão francesa que replicava uma
universidade francesa, aqui, em São Pa
que moravam no interior do estado, nem dos 30% de negros e suas tradições.
Ficaram todos de fora. Eram universidades monoepistêmicas, na medida em que
deixavam as outras epistemes de fora.
Além disso, era uma universidade para brancos: professores brancos, alunos
brancos e funcionários brancos. Obviamente o racismo organizou tudo isso.
Admitir que o Brasil é formado pelo tripé colonizadores europeus, negros
escravizados e indígenas que já e
principalmente, na Antropologia, os indígenas tenham estado sempre no horizonte.
Bem ou mal, a obra e o papel político de Darcy Ribeiro também influenciaram as
Ciências Sociais, garantindo a presença da questão
Em contraposição, a situação da população afrobrasileira, a questão dos
negros no Brasil, sofre um bloqueio significativo na academia.
sobre os povos indígenas que não estão no nosso meio, mas distantes do nosso
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
perspectivas se complementam. Maria Isaura Pereira de Queiroz estabelece um
quadro sociológico bem demarcado para compreender a dança de São Gonçalo, e
o fizesse um quadro como aquele era considerado “apenas” um folclorista,
o que os rebaixa e exclui. Nos anos 50, havia uma meia zia de universidades,
como a USP, e houve uma exclusão muito forte dos folcloristas.
Hoje, inclusive, continua essa desconfia
nça. Ao nosso ver, ninguém tem a
leitura completa, as perspectivas se complementam. Deve ser por isso que não
rejeito ser identificado também como folclorista, porque não excluo o interesse, a
minha paixão pelas formas simbólicas das tradições populares, b
elas em si mesmas
sem que seja preciso expli
-
las antropologicamente, sociologicamente...
Que outros tipos de “exclusão” tem caracterizado o ensino superior
As universidades foram criadas a partir de uma dupla exclusão: uma excluo
acial e uma exclusão epistêmica. Elas foram monoepistêmicas, somente
eurontricas, na medida em que reproduziram o saber das universidades modernas
européias no Brasil. A USP era uma missão francesa que replicava uma
universidade francesa, aqui, em São Pa
ulo. Não queriam nem saber dos indígenas
que moravam no interior do estado, nem dos 30% de negros e suas tradições.
Ficaram todos de fora. Eram universidades monoepistêmicas, na medida em que
deixavam as outras epistemes de fora.
Além disso, era uma universidade para brancos: professores brancos, alunos
brancos e funcionários brancos. Obviamente o racismo organizou tudo isso.
Admitir que o Brasil é formado pelo tripé colonizadores europeus, negros
escravizados e indígenas que e
stavam aqui, fez com que nas humanidades e,
principalmente, na Antropologia, os indígenas tenham estado sempre no horizonte.
Bem ou mal, a obra e o papel político de Darcy Ribeiro também influenciaram as
Ciências Sociais, garantindo a presença da questão
indígena.
Em contraposição, a situação da população afrobrasileira, a questão dos
negros no Brasil, sofre um bloqueio significativo na academia.
Isso porque no debate
sobre os povos indígenas que não estão no nosso meio, mas distantes do nosso
617
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
perspectivas se complementam. Maria Isaura Pereira de Queiroz estabelece um
quadro sociológico bem demarcado para compreender a dança de São Gonçalo, e
o fizesse um quadro como aquele era considerado apenas” um folclorista,
o que os rebaixa e exclui. Nos anos 50, havia uma meia dúzia de universidades,
nça. Ao nosso ver, ninguém tem a
leitura completa, as perspectivas se complementam. Deve ser por isso que não
rejeito ser identificado também como folclorista, porque não excluo o interesse, a
elas em si mesmas
las antropologicamente, sociologicamente...
Que outros tipos de “exclusão tem caracterizado o ensino superior
As universidades foram criadas a partir de uma dupla exclusão: uma exclusão
acial e uma excluo epistêmica. Elas foram monoepistêmicas, somente
eurontricas, na medida em que reproduziram o saber das universidades modernas
européias no Brasil. A USP era uma missão francesa que replicava uma
ulo. Não queriam nem saber dos indígenas
que moravam no interior do estado, nem dos 30% de negros e suas tradições.
Ficaram todos de fora. Eram universidades monoepistêmicas, na medida em que
Além disso, era uma universidade para brancos: professores brancos, alunos
brancos e funcionários brancos. Obviamente o racismo organizou tudo isso.
Admitir que o Brasil é formado pelo tripé colonizadores europeus, negros
stavam aqui, fez com que nas humanidades e,
principalmente, na Antropologia, os indígenas tenham estado sempre no horizonte.
Bem ou mal, a obra e o papel político de Darcy Ribeiro também influenciaram as
Em contraposição, a situação da população afrobrasileira, a questão dos
Isso porque no debate
sobre os povos indígenas que não estão no nosso meio, mas distantes do nosso
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
cotidiano, a
universidade não é minimamente ameaçada mentalmente, vamos dizer
assim. E o dilema dos indígenas é equacionado a partir da universidade, que ajuda o
Estado a encontrar soluções.
Enquanto isso, os negros, que compõem o mesmo grupo e convivem conosco
em tod
as as áreas da vida cotidiana, da Universidade o excluídos, numa espécie
de apartheid racial.
Como é que o pensamento negro vai entrar onde há um
os negros não estão? Então o pensamento negro também não podia entrar; e
quando
entrava, era porque foram os brancos falando pelos negros. Há um medo
porque a raiz civilizatória negra tem uma psicologia e cosmovio próprias com
características muito fortes que se relacionam, inclusive, com a ecologia. Os
terreiros são um lugar onde
orixás são deuses da natureza. Vo tem um mundo arquetipal politeísta, muito
diferente do mundo ocidental cristão. A espiritualidade é parte disso, quase todas as
tradições afro-
brasileiras questionam ess
universidade.
No Jongo, no Maracatu, no Congado vo tem tradições profundamente
religiosas. Não é possível abordar apenas as questões sobre cidadania, não há
como “limpá-
las” completamente de questões maiores que
tradição do mundo ocidental moderno e vão ter que ser equacionadas.
Um sintoma dessa dificuldade de equacionar essas questões que emergem
das tradições negras é o número pequeno de especialistas em Cultura Afro
brasileira nas nossas un
iversidades. Fiz um apanhado e cheguei a uma concluo
óbvia: os estudos afro-
brasileiros constituem a parte menos desenvolvida da
Antropologia ou da Sociologia no Brasil (pelo menos até agora).
Quando cheguei aqui, na Antropologia da UnB, não tinha pratic
ninguém especializado em Estudos Afro
sistematicamente. Na época, foi emblemática a resposta de um professor importante
do departamento quando comentei que, nas matrizes que ele fazia com as áreas da
An
tropologia, não estavam incluídos os Estudos
modo desdenhoso, que eu estava colado no nível da empiria, enquanto ele estava
trabalhando no “nível do conceito! Fiquei me perguntando se os indígenas seriam
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
universidade não é minimamente ameaçada mentalmente, vamos dizer
assim. E o dilema dos indígenas é equacionado a partir da universidade, que ajuda o
Estado a encontrar soluções.
Enquanto isso, os negros, que compõem o mesmo grupo e convivem conosco
as as áreas da vida cotidiana, da Universidade são excluídos, numa espécie
Como é que o pensamento negro vai entrar onde há um
apartheid
os negros não estão? Então o pensamento negro também o podia entrar; e
entrava, era porque foram os brancos falando pelos negros. Há um medo
porque a raiz civilizatória negra tem uma psicologia e cosmovisão próprias com
características muito fortes que se relacionam, inclusive, com a ecologia. Os
terreiros o um lugar onde
você preserva as ervas, cuida das plantas, onde os
orixás o deuses da natureza. Você tem um mundo arquetipal politeísta, muito
diferente do mundo ocidental cristão. A espiritualidade é parte disso, quase todas as
brasileiras questionam ess
e mundo secular ateísta característico da
No Jongo, no Maracatu, no Congado você tem tradições profundamente
religiosas. Não é posvel abordar apenas as questões sobre cidadania, não há
las” completamente de questões maiores que
foram excluídas da
tradição do mundo ocidental moderno e vão ter que ser equacionadas.
Um sintoma dessa dificuldade de equacionar essas questões que emergem
das tradições negras é o número pequeno de especialistas em Cultura Afro
iversidades. Fiz um apanhado e cheguei a uma concluo
brasileiros constituem a parte menos desenvolvida da
Antropologia ou da Sociologia no Brasil (pelo menos até agora).
Quando cheguei aqui, na Antropologia da UnB, não tinha pratic
ninguém especializado em Estudos Afro
-
brasileiros, fui o primeiro a dar essa matéria
sistematicamente. Na época, foi emblemática a resposta de um professor importante
do departamento quando comentei que, nas matrizes que ele fazia com as áreas da
tropologia, não estavam incluídos os Estudos
Afro-
brasileiros. Disse
modo desdenhoso, que eu estava colado no “nível da empiria”, enquanto ele estava
trabalhando no nível do conceito”! Fiquei me perguntando se os indígenas seriam
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reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
universidade não é minimamente ameaçada mentalmente, vamos dizer
assim. E o dilema dos indígenas é equacionado a partir da universidade, que ajuda o
Enquanto isso, os negros, que compõem o mesmo grupo e convivem conosco
as as áreas da vida cotidiana, da Universidade o excluídos, numa espécie
apartheid
físico, onde
os negros não estão? Então o pensamento negro também não podia entrar; e
entrava, era porque foram os brancos falando pelos negros. um medo
,
porque a raiz civilizatória negra tem uma psicologia e cosmovisão próprias com
características muito fortes que se relacionam, inclusive, com a ecologia. Os
vo preserva as ervas, cuida das plantas, onde os
orixás o deuses da natureza. Vo tem um mundo arquetipal politeísta, muito
diferente do mundo ocidental cristão. A espiritualidade é parte disso, quase todas as
e mundo secular ateísta característico da
No Jongo, no Maracatu, no Congado vo tem tradições profundamente
religiosas. Não é posvel abordar apenas as questões sobre cidadania, não
foram excluídas da
tradição do mundo ocidental moderno e vão ter que ser equacionadas.
Um sintoma dessa dificuldade de equacionar essas questões que emergem
das tradições negras é o número pequeno de especialistas em Cultura Afro
-
iversidades. Fiz um apanhado e cheguei a uma conclusão
brasileiros constituem a parte menos desenvolvida da
Quando cheguei aqui, na Antropologia da UnB, não tinha pratic
amente
brasileiros, fui o primeiro a dar essa matéria
sistematicamente. Na época, foi emblemática a resposta de um professor importante
do departamento quando comentei que, nas matrizes que ele fazia com as áreas da
brasileiros. Disse
-me, de um
modo desdenhoso, que eu estava colado no nível da empiria, enquanto ele estava
trabalhando no nível do conceito! Fiquei me perguntando se os indígenas seriam
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
empiria ou conc
eito… mas sei que reagiu emocionalmente quando lhe fiz a pergunta
sobre os Estudos Afro-
brasileiros.
Na USP, por exemplo, Kabengele Munanga
Instituto de Inclusão
foi o único professor, ao longo
essa área. A Unicamp, a
UnB e tantas outras, ainda têm pouquíssimos professores
negros. Na UFRJ, os Estudos Afro
por dois professores
Peter Fry e Ivone Maggie
campanha para o manife
sto contrário às cotas!
O que exatamente está por trás de ser contra as cotas
aumente exponencialmente e de uma vez por todas o número de estudantes
negros? É porque, em algum momento, alguém, negro ou negra, chegará a
professor (a)? A prob
abilidade é que aumente o número de professores negros,
então “tem que barrar logo? Não
Por uma Outra Universidade
Como o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa –
excludente da Universidade?
O Observatório de Cotas é resultado da luta pelas cotas. Como foi um
processo muito rápido, de efervescência e de expansão, sentimos
saber e de monitorar o processo de incluo, tanto
como qualitativo.
Observamos para que o haja retrocesso e para que esse processo avance,
representado pelo maior mero de estudantes da Graduação e que corresponda a
um processo de inclusão também epistêmica, porque muito
seguir para o mestrado, para o doutorado e vão querer entrar na carreira acadêmica.
começamos a ter os sinais de que isso está acontecendo, tanto que o
Observatório começa
a apontar para os programas de p
docência. O Observatório tem essa miso de não deixar parada a luta pela inclusão
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
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Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
eitomas sei que reagiu emocionalmente quando lhe fiz a pergunta
brasileiros.
Na USP, por exemplo, Kabengele Munanga
que é o Vice Coordenador do
foi o único professor, ao longo
de trinta anos a se dedicar a
UnB e tantas outras, ainda têm pouquíssimos professores
negros. Na UFRJ, os Estudos Afro
-brasileiros
foram coordenados por muito tempo
Peter Fry e Ivone Maggie
que assinaram e fizeram
sto contrário às cotas!
O que exatamente está por trás de ser contra as cotas
? É medo de que
aumente exponencialmente e de uma vez por todas o número de estudantes
negros? É porque, em algum momento, alguém, negro ou negra, chegará a
abilidade é que aumente o número de professores negros,
então tem que barrar logo? Não
deixar entrar”?
Por uma Outra Universidade
Como o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
INCTI/CNPq/UnB se propõe
a intervir nessa condição
excludente da Universidade?
O Observatório de Cotas é resultado da luta pelas cotas. Como foi um
processo muito rápido, de efervescência e de expansão, sentimos
a
saber e de monitorar o processo de inclusão, tanto
do ponto de vista quantitativo
Observamos para que não haja retrocesso e para que esse processo avance,
representado pelo maior número de estudantes da Graduação e que corresponda a
um processo de incluo também epistêmica, porque muito
s desses estudantes vão
seguir para o mestrado, para o doutorado e vão querer entrar na carreira acadêmica.
começamos a ter os sinais de que isso es acontecendo, tanto que o
a apontar para os programas de p
ós-
graduação
docência. O Observatório tem essa missão de não deixar parada a luta pela inclusão
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reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
eitomas sei que reagiu emocionalmente quando lhe fiz a pergunta
que é o Vice Coordenador do
de trinta anos a se dedicar a
UnB e tantas outras, ainda têm pouquíssimos professores
foram coordenados por muito tempo
que assinaram e fizeram
? É medo de que
aumente exponencialmente e de uma vez por todas o número de estudantes
negros? É porque, em algum momento, alguém, negro ou negra, chegará a
abilidade é que aumente o número de professores negros,
Como o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
a intervir nessa condição
O Observatório de Cotas é resultado da luta pelas cotas. Como foi um
a
necessidade de
do ponto de vista quantitativo
Observamos para que não haja retrocesso e para que esse processo avance,
representado pelo maior número de estudantes da Graduação e que corresponda a
s desses estudantes vão
seguir para o mestrado, para o doutorado e vão querer entrar na carreira acadêmica.
começamos a ter os sinais de que isso está acontecendo, tanto que o
graduação
e para a
docência. O Observatório tem essa miso de não deixar parada a luta pela inclusão
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Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
concreta, via cotas, em todo o sistema acadêmico.
Por outro lado, o Encontro de Saberes é um contraponto, é um outro tipo de
cota que é a “cota epistêmica, como poderíamo
enquanto, do mundo dos diplomados, porque os diplomados o monoepistêmicos.
Então, se o que se quer é uma universidade pluriepistêmica, é preciso que seja
através
dos mestres e mestras. E quem o os mestres? Os mestres o
negros, quilombolas
, ou seja, majoritariamente não
uma cota racial e étnica, mas sobretudo garantem a cota epistêmica na
universidade21.
O Encontro de Saberes aponta para o fato de que o mundo acadêmico
cronicamente
excludente do ponto de vista étnico o que, paralelamente, bloqueou o
saber que pudesse vir
das comunidades dessas pessoas excluídas. A universidade
bloqueou o saber dos negros, dos quilombolas
lugar para eles nas ementas d
país europeu ou norte-
americano. O Encontro de Saberes desafia/convida para essa
construção do saber na universidade. É uma gota de água num universo gigantesco
que tem que ser pactuado, argumentado o tempo
missões: acompanhar as Cotas em todos os níveis e colocar um caminho para uma
universidade pluriepistêmica que reflita de fato a riqueza do país, no ensino e na
pesquisa.
Quem são seus pares? Há outras universidades no
que já começaram esse processo?
Pares concretos são poucos porque os sinais de inclusão na universidade
21
Para informações atualizadas sobre o debate das cotas epistêmicas ver: CARVALHO, José Jorge.
Cotas Étnico-
Raciais e Cotas Epistêmicas. Bases para uma Antropologia Antirracista e
Descolonizadora, Revista Mana
, Vol, 8, No, 3, 1
22
O INCTI inicia seus trabalhos em 2009 e é fruto direto do processo de luta pelas cotas para Negros
na UnB e
do Programa dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) criado pela Portaria
MCT Nº 429, de 17 de julho de 2008. No site e canal de Youtube do instituto,
depoimentos da cerimônia
de inauguração da sua sede
processo de julgamento da constitucionalidade das cotas universitárias pelo Supremo Tribunal
Federal (disponível em
https://youtu.be/ALP
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reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
concreta, via cotas, em todo o sistema acadêmico.
Por outro lado, o Encontro de Saberes é um contraponto, é um outro tipo de
cota que é a cota epistêmica”, como poderíamo
s chamar, e o que não vem, por
enquanto, do mundo dos diplomados, porque os diplomados são monoepistêmicos.
Então, se o que se quer é uma universidade pluriepistêmica, é preciso que seja
dos mestres e mestras. E quem são os mestres? Os mestres o
, ou seja, majoritariamente não
-
brancos. E acabam garantindo
uma cota racial e étnica, mas sobretudo garantem a cota epistêmica na
O Encontro de Saberes aponta para o fato de que o mundo acadêmico
excludente do ponto de vista étnico o que, paralelamente, bloqueou o
das comunidades dessas pessoas excluídas. A universidade
bloqueou o saber dos negros, dos quilombolas
, dos povos tradicionais. Não tem
lugar para eles nas ementas d
os nossos cursos que são exatamente como as de um
americano. O Encontro de Saberes desafia/convida para essa
construção do saber na universidade. É uma gota de água num universo gigantesco
que tem que ser pactuado, argumentado o tempo
todo. O INCTI
22
missões: acompanhar as Cotas em todos os níveis e colocar um caminho para uma
universidade pluriepistêmica que reflita de fato a riqueza do país, no ensino e na
Quem são seus pares? outras universidades no
Brasil e na América Latina
que já começaram esse processo?
Pares concretos o poucos porque os sinais de inclusão na universidade
Para informações atualizadas sobre o debate das cotas epistêmicas ver: CARVALHO, José Jorge.
Raciais e Cotas Epistêmicas. Bases para uma Antropologia Antirracista e
, Vol, 8, No, 3, 1
-36, 2022.
O INCTI inicia seus trabalhos em 2009 e é fruto direto do processo de luta pelas cotas para Negros
do Programa dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) criado pela Portaria
MCT Nº 429, de 17 de julho de 2008. No site e canal de Youtube do instituto,
pode
de inauguração da sua sede
em 2012, na UnB que ocorre em pleno
processo de julgamento da constitucionalidade das cotas universitárias pelo Supremo Tribunal
https://youtu.be/ALP
-6NnvOt4, a
cessado em 07/04/2023).
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"
Por outro lado, o Encontro de Saberes é um contraponto, é um outro tipo de
s chamar, e o que não vem, por
enquanto, do mundo dos diplomados, porque os diplomados o monoepistêmicos.
Então, se o que se quer é uma universidade pluriepistêmica, é preciso que seja
dos mestres e mestras. E quem o os mestres? Os mestres são
indígenas,
brancos. E acabam garantindo
uma cota racial e étnica, mas sobretudo garantem a cota epistêmica na
O Encontro de Saberes aponta para o fato de que o mundo acadêmico
é
excludente do ponto de vista étnico o que, paralelamente, bloqueou o
das comunidades dessas pessoas excluídas. A universidade
, dos povos tradicionais. Não tem
os nossos cursos que o exatamente como as de um
americano. O Encontro de Saberes desafia/convida para essa
construção do saber na universidade. É uma gota de água num universo gigantesco
22
tem essas duas
missões: acompanhar as Cotas em todos os níveis e colocar um caminho para uma
universidade pluriepistêmica que reflita de fato a riqueza do país, no ensino e na
Brasil e na América Latina
Pares concretos o poucos porque os sinais de inclusão na universidade
Para informações atualizadas sobre o debate das cotas epistêmicas ver: CARVALHO, José Jorge.
Raciais e Cotas Epistêmicas. Bases para uma Antropologia Antirracista e
O INCTI inicia seus trabalhos em 2009 e é fruto direto do processo de luta pelas cotas para Negros
do Programa dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) criado pela Portaria
pode
-se acessar os
em 2012, na UnB que ocorre em pleno
processo de julgamento da constitucionalidade das cotas universitárias pelo Supremo Tribunal
cessado em 07/04/2023).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
hegemônica são mínimos ainda. O que existe em vários países da América Latina é
uma grande rede que é a Rede das Universidad
última década houve um grande movimento do Ensino Superior Indígena, através de
um modelo de interculturalidade. São universidades bilíngues que começam a
produzir material em suas respectivas línguas, até então negadas pel
educativo. No Brasil, s temos o PROLIND, a rede do MEC de cursos
interculturais24
para a formação de professores indígenas. Mais de vinte muito boas
experiências de interculturalidade indígena em Minas Gerais, Roraima, Acre, Goiás,
Santa Catarin
a, entre outros, estão em andamento. A proposta, no entanto, está
ligada à formação de professores, o que não promove a interculturalidade na
universidade como um todo ou, como no caso equatoriano, você tem uma outra
universidade que é Intercultural Indíge
Nesse sentido, essas experiências não constituem pares” plenos, porque o
que estamos chamando de Encontro de Saberes é o exercio de fazer com que as
nossas universidades, as hegemônicas que formam a elite e todo o poder decirio
do Estado, sejam i
nterculturais, sejam pluriepistêmicas, tenham os saberes afro,
indígenas dentro delas e em todos os cursos
Literatura, onde quer que seja e não apenas na formação de professores.
Temos pares no âmbito da teoria que apontam a
pluriepistêmico. É o caso do pensamento decolonial,
da colonialidade do saber nas universidades. De toda forma, ainda é um processo
incipiente. Na minha conversa com os colegas, em todos os lugares, o En
23Luis Fernando Sarango, ex-
reitor da Universidad
dessa Rede e foi quem proferiu a conferência de abertura do Seminário Encontro de Saberes nas
Universidades
Bases para um Diálogo Interepistêmico, que ocorreu entre os dias 16 e 17 de junho
de 2015 naUnB, Brasília. No vídeo Pluriver
comenta a resistência da instituição frente a sua não aprovação no processo de avaliação do governo
equatoriano. Somente em 2018, um novo acordo com o Ministério da Educação reconhecerá e
garantirá orçamen
to para o funcionamento da Universidad.
24
Programa de apoio à formação superior de professores que atuam em escolas indígenas de
educação básica: “O Ministério da Educação
Continuada, Alfabetização e Diversida
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
Superior -
IES públicas federais e estaduais para apresentarem propostas de projetos de Cursos de
Licenciatu
ras específicas para formação de professores para o exercício da docência aos indígenas,
considerando as diretrizes político
2008). Ver também https://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
hegemônica o mínimos ainda. O que existe em vários países da América Latina é
uma grande rede que é a Rede das Universidad
es Interculturais Indígenas
última década houve um grande movimento do Ensino Superior Indígena, através de
um modelo de interculturalidade. São universidades bilíngues que começam a
produzir material em suas respectivas nguas, até então negadas pel
educativo. No Brasil, nós temos o PROLIND, a rede do MEC de cursos
para a formação de professores indígenas. Mais de vinte muito boas
experiências de interculturalidade indígena em Minas Gerais, Roraima, Acre, Goiás,
a, entre outros, estão em andamento. A proposta, no entanto, está
ligada à formação de professores, o que o promove a interculturalidade na
universidade como um todo ou, como no caso equatoriano, você tem uma outra
universidade que é Intercultural Indíge
na.
Nesse sentido, essas experiências não constituem “pares” plenos, porque o
que estamos chamando de Encontro de Saberes é o exercício de fazer com que as
nossas universidades, as hegemônicas que formam a elite e todo o poder decirio
nterculturais, sejam pluriepistêmicas, tenham os saberes afro,
indígenas dentro delas e em todos os cursos
na Psicologia, nas Artes, na
Literatura, onde quer que seja e não apenas na formação de professores.
Temos pares no âmbito da teoria que apontam a
necessidade de um mundo
pluriepistêmico. É o caso do pensamento decolonial,
que aponta para a superação
da colonialidade do saber nas universidades. De toda forma, ainda é um processo
incipiente. Na minha conversa com os colegas, em todos os lugares, o En
reitor da Universidad
Amawtay Wasi, Equador
é uma das lideranças
dessa Rede e foi quem proferiu a conferência de abertura do Seminário Encontro de Saberes nas
Bases para um Diálogo Interepistêmico, que ocorreu entre os dias 16 e 17 de junho
de 2015 naUnB, Brasília. No vídeo Pluriver
sidad Indígena Amawtay Wasi, Luis Fernando Sarango
comenta a resistência da instituição frente a sua não aprovação no processo de avaliação do governo
equatoriano. Somente em 2018, um novo acordo com o Ministério da Educação reconhecerá e
to para o funcionamento da Universidad.
Programa de apoio à formação superior de professores que atuam em escolas indígenas de
educação básica: O Ministério da Educação
-
MEC, por intermédio da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversida
de -
SECAD, da Secretaria de Ensino Superior
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
- FNDE -
convocam as Instituições de Educação
IES públicas federais e estaduais para apresentarem propostas de projetos de Cursos de
ras específicas para formação de professores para o exercício da docência aos indígenas,
considerando as diretrizes político
-
pedagógicas publicadas neste Edital” (Edital nº3 de 24 de junho de
2008). Ver também https://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/.
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"
hegemônica o mínimos ainda. O que existe em vários países da América Latina é
es Interculturais Indígenas
23. Na
última década houve um grande movimento do Ensino Superior Indígena, através de
um modelo de interculturalidade. São universidades bilíngues que começam a
produzir material em suas respectivas línguas, até então negadas pel
o sistema
educativo. No Brasil, nós temos o PROLIND, a rede do MEC de cursos
para a formação de professores indígenas. Mais de vinte muito boas
experiências de interculturalidade indígena em Minas Gerais, Roraima, Acre, Goiás,
a, entre outros, estão em andamento. A proposta, no entanto, está
ligada à formação de professores, o que não promove a interculturalidade na
universidade como um todo ou, como no caso equatoriano, você tem uma outra
Nesse sentido, essas experiências não constituem pares” plenos, porque o
que estamos chamando de Encontro de Saberes é o exercio de fazer com que as
nossas universidades, as hegemônicas que formam a elite e todo o poder decisório
nterculturais, sejam pluriepistêmicas, tenham os saberes afro,
na Psicologia, nas Artes, na
Literatura, onde quer que seja e não apenas na formação de professores.
necessidade de um mundo
que aponta para a superação
da colonialidade do saber nas universidades. De toda forma, ainda é um processo
incipiente. Na minha conversa com os colegas, em todos os lugares, o En
contro de
é uma das lideranças
dessa Rede e foi quem proferiu a conferência de abertura do Seminário Encontro de Saberes nas
Bases para um Diálogo Interepistêmico, que ocorreu entre os dias 16 e 17 de junho
sidad Indígena Amawtay Wasi, Luis Fernando Sarango
comenta a resistência da instituição frente a sua não aprovação no processo de avaliação do governo
equatoriano. Somente em 2018, um novo acordo com o Ministério da Educação reconhecerá e
Programa de apoio à formação superior de professores que atuam em escolas indígenas de
MEC, por intermédio da Secretaria de Educação
SECAD, da Secretaria de Ensino Superior
- SESu e o
convocam as Instituões de Educação
IES públicas federais e estaduais para apresentarem propostas de projetos de Cursos de
ras específicas para formação de professores para o exercício da docência aos indígenas,
pedagógicas publicadas neste Edital (Edital nº3 de 24 de junho de
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Saberes é visto com surpresa. Penso, sinceramente, que a perspectiva dos mestres
como parte da universidade hegemônica, a partir do reconhecimento dos seus
saberes, foi imaginada aqui no Brasil.
Como se essa proposta de construção da universi
configurada pelo Encontro de Saberes?
O Encontro de Saberes é uma proposta de solução, entre outras, para o
impasse colocado pela teoria da decolonialidade, da chamada modernidade
colonialidade. Essa rede de pensadores na América Lati
Catherine Walsh
para quem a colonialidade é uma espécie de padrão colonial,
racista que ficou instituído na América Latina, que precisa ser superado. Esses
intelectuais fazem um diagnóstico dessa colonialidade do saber, com o qual
plenamente de acordo, mas eles não trazem uma proposta do que fazer para
promover a mudança e a superação da episteme ocidental.
Muitas universidades europeias, por exemplo, têm estudos das tradições
orientais e africanos muito fortes, ainda que com
antes. A produção sobre o pensamento chinês, o indiano, o budista, o hinduista,
islâmico, africano, enfim, todas as grandes civilizações do mundo é expressiva.
Londres tem a SOAS
Escola de Estudos Orientais e Africanos
secular instituição, com o seu equivalente na França, na Alemanha toda formadas
nos sécs. XVII e XIX dentro de uma mentalidade colonialista. Poderíamos dizer que
nesses centros do pensamento oriental e africano, com traduções de textos e
grandes
acadêmicos das escolas dos tradutores dos clássicos da China, dos
clássicos mulçumanos, das grandes narrativas míticas, cosmológicas, filoficas e
literárias dos povos africanos em uma diversidade de línguas, todos poderiam,
lentamente, começar a influen
estão falando da filosofia ocidental, mas nós temos aqui outros filósofos e
pensadores para vocês estudarem: da Escola de Kyoto no Japão, do
Neoconfucionismo, do budismo zen, o pensamento de Ifá, a fi
etc” poderiam começar a influenciar o pensamento dominante da universidade
através do pensamento oriental
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Saberes é visto com surpresa. Penso, sinceramente, que a perspectiva dos mestres
como parte da universidade hegemônica, a partir do reconhecimento dos seus
saberes, foi imaginada aqui no Brasil.
Como se dá essa proposta de construção da universi
dade pluriepistêmica
configurada pelo Encontro de Saberes?
O Encontro de Saberes é uma proposta de solução, entre outras, para o
impasse colocado pela teoria da decolonialidade, da chamada modernidade
colonialidade. Essa rede de pensadores na América Lati
na
Quijano, Mignolo,
para quem a colonialidade é uma espécie de padrão colonial,
racista que ficou instituído na América Latina, que precisa ser superado. Esses
intelectuais fazem um diagnóstico dessa colonialidade do saber, com o qual
plenamente de acordo, mas eles não trazem uma proposta do que fazer para
promover a mudança e a superação da episteme ocidental.
Muitas universidades europeias, por exemplo, têm estudos das tradições
orientais e africanos muito fortes, ainda que com
a perspectiva colonizadora de
antes. A produção sobre o pensamento chinês, o indiano, o budista, o hinduista,
islâmico, africano, enfim, todas as grandes civilizações do mundo é expressiva.
Escola de Estudos Orientais e Africanos
,
secular instituição, com o seu equivalente na França, na Alemanha toda formadas
nos cs. XVII e XIX dentro de uma mentalidade colonialista. Poderíamos dizer que
nesses centros do pensamento oriental e africano, com traduções de textos e
acadêmicos das escolas dos tradutores dos clássicos da China, dos
clássicos mulçumanos, das grandes narrativas míticas, cosmológicas, filoficas e
literárias dos povos africanos em uma diversidade de línguas, todos poderiam,
lentamente, começar a influen
ciar o resto da universidade dizendo Alto lá! Vocês
estão falando da filosofia ocidental, mas nós temos aqui outros filósofos e
pensadores para vos estudarem: da Escola de Kyoto no Japão, do
Neoconfucionismo, do budismo zen, o pensamento de Ifá, a fi
losofia Banto, Dogon
etc poderiam começar a influenciar o pensamento dominante da universidade
através do pensamento oriental
,
que essa universidade trouxe especialistas
622
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Saberes é visto com surpresa. Penso, sinceramente, que a perspectiva dos mestres
como parte da universidade hegemônica, a partir do reconhecimento dos seus
dade pluriepistêmica
O Encontro de Saberes é uma proposta de solução, entre outras, para o
impasse colocado pela teoria da decolonialidade, da chamada modernidade
-
Quijano, Mignolo,
para quem a colonialidade é uma espécie de pado colonial,
racista que ficou instituído na América Latina, que precisa ser superado. Esses
intelectuais fazem um diagnóstico dessa colonialidade do saber, com o qual
estou
plenamente de acordo, mas eles não trazem uma proposta do que fazer para
Muitas universidades europeias, por exemplo, têm estudos das tradições
a perspectiva colonizadora de
antes. A produção sobre o pensamento chinês, o indiano, o budista, o hinduista,
islâmico, africano, enfim, todas as grandes civilizações do mundo é expressiva.
uma poderosa e
secular instituição, com o seu equivalente na França, na Alemanha toda formadas
nos cs. XVII e XIX dentro de uma mentalidade colonialista. Poderíamos dizer que
nesses centros do pensamento oriental e africano, com traduções de textos e
acadêmicos das escolas dos tradutores dos clássicos da China, dos
clássicos mulçumanos, das grandes narrativas míticas, cosmológicas, filosóficas e
literárias dos povos africanos em uma diversidade de línguas, todos poderiam,
ciar o resto da universidade dizendo “Alto lá! Vocês
estão falando da filosofia ocidental, mas nós temos aqui outros filósofos e
pensadores para vos estudarem: da Escola de Kyoto no Japão, do
losofia Banto, Dogon
etc poderiam começar a influenciar o pensamento dominante da universidade
já que essa universidade trouxe especialistas
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
desses pensamentos. Quem sabe, a médio e longo prazo, essa seja uma maneira
de que
essas universidades fiquem mais abertas?
De qualquer forma, não são pensamentos dali, o pensamentos de outros
lugares do mundo, o que não é o nosso caso, o da América Latina, que está
negando o pensamento que está ao seu lado. Como um amigo do México
você
sai da universidade e, na esquina, encontra um senhor maia vendendo comida,
começa a conversar com ele e vo fica sabendo que ele conhece o calendário
maia, um grande mestre de calendário maia está ali, vendendo tamales na porta da
institui
ção acadêmica! Um bio dos povos tradicionais vendendo café para um
sábio diplomado! Isso é um paradoxo. Podemos comparar o Colégio do México com
a Escola de Estudos Orientais de Londres e Africanos onde se lê os textos clássicos
de um, dois, três mil an
os. A diferença
povos tradicionais nas ruas em volta do edifício. Esta é outra história, que também
aponta para outro tipo de exclusão étnico
no México (e em toda América La
Os
acadêmicos hispano
menos até agora, uma proposta de intervenção. O Encontro de Saberes é uma
proposta concreta de intervenção, nessa linha descolonizadora. Não imagino, até
agora,
nenhum outro modo de fazê
dos que estão lá? Se utilizarmos apenas as categorias ocidentais para
descolonizar, não
sairmos desse rculo
mesma, sendo apenas enriquecida
aqueles formados por essas outras epistemes, que vivenciaram outros processos de
transmissão de saberes, outras propostas civilizatórias que não foram absorvidas,
ao contrário, foram quase destruídas, mas resis
O Encontro de Saberes não vem da Academia, foi a Rede das Culturas
Populares que solicitou e que me chamou, foi uma demanda dos mestres, nos dois
Seminários de Culturas Populares
25
I e II Seminários de Políticas Públicas para as Culturas Populares (2005 e 2006), para o qual a
Rede de Culturas Populares convida o professor José Jorge de Carvalho a participar. Promovidos
pelo Ministério da Cultura, os Seminários deram origem ao
publicado em 2010. Vide catálogos de cada Seminário: I Seminário de Política Públicas para culturas
Populares 2005 - disponível em
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
desses pensamentos. Quem sabe, a médio e longo prazo, essa seja uma maneira
essas universidades fiquem mais abertas?
De qualquer forma, não são pensamentos dali, são pensamentos de outros
lugares do mundo, o que não é o nosso caso, o da América Latina, que está
negando o pensamento que está ao seu lado. Como um amigo do México
sai da universidade e, na esquina, encontra um senhor maia vendendo comida,
começa a conversar com ele e você fica sabendo que ele conhece o calendário
maia, um grande mestre de calendário maia está ali, vendendo tamales na porta da
ção acadêmica! Um sábio dos povos tradicionais vendendo café para um
bio diplomado! Isso é um paradoxo. Podemos comparar o Colégio do México com
a Escola de Estudos Orientais de Londres e Africanos onde se lê os textos clássicos
os. A diferença
é que em Londres não existem bios dos
povos tradicionais nas ruas em volta do edifício. Esta é outra história, que também
aponta para outro tipo de exclusão étnico
-
racial e epistêmica; porém, o que acontece
no México (e em toda América La
tina) é ainda pior.
acadêmicos hispano
-americanos
que falam da colonialidade não têm, pelo
menos até agora, uma proposta de intervenção. O Encontro de Saberes é uma
proposta concreta de intervenção, nessa linha descolonizadora. Não imagino, até
nenhum outro modo de fazê
-
lo. Como descolonizar a universidade, a partir
dos que já estão lá? Se utilizarmos apenas as categorias ocidentais para
sairmos desse círculo
vicioso
epistêmico. A episteme seria a
mesma, sendo apenas enriquecida
pelas outras. Seus representantes não seriam
aqueles formados por essas outras epistemes, que vivenciaram outros processos de
transmissão de saberes, outras propostas civilizatórias que o foram absorvidas,
ao contrário, foram quase destruídas, mas resis
tiram e precisam ser retomadas.
O Encontro de Saberes não vem da Academia, foi a Rede das Culturas
Populares que solicitou e que me chamou, foi uma demanda dos mestres, nos dois
Seminários de Culturas Populares
25
. No mundo da universidade, a proposição vei
I e II Seminários de Políticas Públicas para as Culturas Populares (2005 e 2006), para o qual a
Rede de Culturas Populares convida o professor José Jorge de Carvalho a participar. Promovidos
pelo Ministério da Cultura, os Seminários deram origem ao
Plano
Setorial das Culturas Populares
publicado em 2010. Vide catálogos de cada Seminário: I Seminário de Política Públicas para culturas
623
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
desses pensamentos. Quem sabe, a médio e longo prazo, essa seja uma maneira
De qualquer forma, não são pensamentos dali, o pensamentos de outros
lugares do mundo, o que não é o nosso caso, o da América Latina, que está
negando o pensamento que está ao seu lado. Como um amigo do México
me disse,
sai da universidade e, na esquina, encontra um senhor maia vendendo comida,
começa a conversar com ele e vo fica sabendo que ele conhece o calendário
maia, um grande mestre de calendário maia está ali, vendendo tamales na porta da
ção acadêmica! Um bio dos povos tradicionais vendendo café para um
bio diplomado! Isso é um paradoxo. Podemos comparar o Colégio do México com
a Escola de Estudos Orientais de Londres e Africanos onde se lê os textos clássicos
é que em Londres não existem sábios dos
povos tradicionais nas ruas em volta do edifício. Esta é outra história, que também
racial e epistêmica; porém, o que acontece
que falam da colonialidade não têm, pelo
menos até agora, uma proposta de intervenção. O Encontro de Saberes é uma
proposta concreta de intervenção, nessa linha descolonizadora. Não imagino, até
lo. Como descolonizar a universidade, a partir
dos que já estão lá? Se utilizarmos apenas as categorias ocidentais para
epistêmico. A episteme seria a
pelas outras. Seus representantes não seriam
aqueles formados por essas outras epistemes, que vivenciaram outros processos de
transmissão de saberes, outras propostas civilizatórias que não foram absorvidas,
tiram e precisam ser retomadas.
O Encontro de Saberes não vem da Academia, foi a Rede das Culturas
Populares que solicitou e que me chamou, foi uma demanda dos mestres, nos dois
. No mundo da universidade, a proposição vei
o
I e II Seminários de Políticas Públicas para as Culturas Populares (2005 e 2006), para o qual a
Rede de Culturas Populares convida o professor José Jorge de Carvalho a participar. Promovidos
Setorial das Culturas Populares
publicado em 2010. Vide catálogos de cada Seminário: I Seminário de Política Públicas para culturas
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
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Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
das cotas, porque as cotas também não eram colocadas pelos que falam da
decolonialidade. O discurso da descolonização não veio paralelo a nenhum discurso
de intervenção, nem sequer por cotas. Fui à Colômbia inúmeras vezes e, lá, eles
não conseguem dar in
ício a um sistema de cotas convincente, robusto. Também fui
debater as cotas no Equador e lá, também, é uma demanda não realizada. Com
todas as dificuldades aqui, no Brasil, demos esse passo importante.
O Encontro de Saberes é uma proposta de solução para
de uma episteme colonizada. Ele se propõe a trazer os mestres e alterar o sistema
de validação, a partir do
Notório Saber
um doutor. O que significa que não só quem foi formado na episteme oci
um saber válido, mas também quem foi formado em outras epistemes tem outros
saberes válidos. A gente faz uma equivalência.
Essa discussão teórica
comparado a um doutor? Ele sabe o equivalente a um
mestrado ou de doutorado? São perguntas que nos desafiam a pensar o que
sabemos de fato e o que é o saber? Qualquer um tem direito de questionar como é
que a gente está fazendo essa validação. Precisamos de respostas boas para isso.
Quer dizer, o Encontro de Saberes é uma resposta para o problema crônico do
racismo como também para o epistemidio, a negação dos saberes. Ele mexe com
os dois simultaneamente e deve estar ao lado das cotas.
Outro aspecto ainda mais complexo é que idealm
universidade poliglota (com vários idiomas daqui), pluriepistêmica e com diversidade
étnico-racial.
Para isso, precisamos de professores negros, em todas as áreas, mesmo que a
maioria deles esteja apenas na linha da episteme ocidenta
nenhum. Temos que ter matemáticos negros, engenheiros negros, médicos negros,
comunicadores, ensinando o que
fundem: o direto de equidade racial e o direito de equidade epistêmica.
h
ttp://bibliotecadigital.abong.org.br/jspui/bitstream/11465/603/1/979.pdf
Latino Amerincano das Culturas Populares 2006
https://docente.ifrn.edu.br/narapessoa/disciplinas/configuracoes
canibalizacao-das-culturas-
populares
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
das cotas, porque as cotas também não eram colocadas pelos que falam da
decolonialidade. O discurso da descolonização não veio paralelo a nenhum discurso
de intervenção, nem sequer por cotas. Fui à Colômbia inúmeras vezes e, lá, eles
ício a um sistema de cotas convincente, robusto. Também fui
debater as cotas no Equador e lá, também, é uma demanda o realizada. Com
todas as dificuldades aqui, no Brasil, demos esse passo importante.
O Encontro de Saberes é uma proposta de solução para
o problema crônico
de uma episteme colonizada. Ele se propõe a trazer os mestres e alterar o sistema
Notório Saber
equivalente ao de um professor adjunto ou de
um doutor. O que significa que não quem foi formado na episteme oci
um saber válido, mas também quem foi formado em outras epistemes tem outros
saberes lidos. A gente faz uma equivalência.
Essa discussão teórica
-
filosófica é fascinante. Quanto sabe um mestre
comparado a um doutor? Ele sabe o equivalente a um
aluno de graduação, de
mestrado ou de doutorado? São perguntas que nos desafiam a pensar o que
sabemos de fato e o que é o saber? Qualquer um tem direito de questionar como é
que a gente está fazendo essa validação. Precisamos de respostas boas para isso.
Quer dizer, o Encontro de Saberes é uma resposta para o problema crônico do
racismo como também para o epistemicídio, a negação dos saberes. Ele mexe com
os dois simultaneamente e deve estar ao lado das cotas.
Outro aspecto ainda mais complexo é que idealm
ente s teríamos uma
universidade poliglota (com vários idiomas daqui), pluriepistêmica e com diversidade
Para isso, precisamos de professores negros, em todas as áreas, mesmo que a
maioria deles esteja apenas na linha da episteme ocidenta
l, o tem problema
nenhum. Temos que ter matemáticos negros, engenheiros negros, médicos negros,
comunicadores, ensinando o que
ele/ela queira ensinar. São dois direitos que se
fundem: o direto de equidade racial e o direito de equidade epistêmica.
ttp://bibliotecadigital.abong.org.br/jspui/bitstream/11465/603/1/979.pdf
e II Seminário e I Encontro
Latino Amerincano das Culturas Populares 2006
- disponível em
https://docente.ifrn.edu.br/narapessoa/disciplinas/configuracoes
-culturais-
ii/espetacularizacao
populares
- acessados em 01/05/2023.
624
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
das cotas, porque as cotas também não eram colocadas pelos que falam da
decolonialidade. O discurso da descolonização não veio paralelo a nenhum discurso
de intervenção, nem sequer por cotas. Fui à Colômbia inúmeras vezes e, lá, eles
ício a um sistema de cotas convincente, robusto. Também fui
debater as cotas no Equador e lá, também, é uma demanda não realizada. Com
todas as dificuldades aqui, no Brasil, demos esse passo importante.
o problema crônico
de uma episteme colonizada. Ele se propõe a trazer os mestres e alterar o sistema
equivalente ao de um professor adjunto ou de
um doutor. O que significa que não só quem foi formado na episteme oci
dental tem
um saber válido, mas também quem foi formado em outras epistemes tem outros
filosófica é fascinante. Quanto sabe um mestre
aluno de graduação, de
mestrado ou de doutorado? São perguntas que nos desafiam a pensar o que
sabemos de fato e o que é o saber? Qualquer um tem direito de questionar como é
que a gente está fazendo essa validação. Precisamos de respostas boas para isso.
Quer dizer, o Encontro de Saberes é uma resposta para o problema crônico do
racismo como também para o epistemidio, a negação dos saberes. Ele mexe com
ente nós teríamos uma
universidade poliglota (com vários idiomas daqui), pluriepistêmica e com diversidade
Para isso, precisamos de professores negros, em todas as áreas, mesmo que a
l, não tem problema
nenhum. Temos que ter matemáticos negros, engenheiros negros, médicos negros,
ele/ela queira ensinar. São dois direitos que se
fundem: o direto de equidade racial e o direito de equidade epistêmica.
E o mesmo
e II Seminário e I Encontro
ii/espetacularizacao
-e-
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
vale para os docentes indígenas.
Por outro lado, precisamos de professores que conheçam outras epistemes, o
que é mais complexo. Por exemplo, um professor negro que venha também de
religião de matriz africana ou que venha de comunidades quilombolas,
comunidades tradicionais que além do conhecimento ocidental com o qual chegou
no doutorado, tenha outros saberes que também pode e deve ensinar. É um tipo de
docente que não
temos, ou que
Finalmente, há, ainda, uma terceira via para a
universidades que são os
indígenas, os professores quilombolas dos povos tradicionais
diploma e que não foram formados na
muita contenção,
segundo aspecto, além desse quadro mais ligado à diversidade étnico
universidade, é o sistema de transmiso. É validarmos a oralidade.
O Reconhecimento dos Mestres da Oralidade e da
Na abertura do Seminário Encontro de Saberes nas Universidades
um Diálogo Interepistêmico, organizado pelo INCTI, na UNB, em 2015
levantou uma relação de 10 temas que precisam ser aprofundados, entre eles a
questão da Oralidade
paradigma?
A epistemologia dominante tem em Karl Popper uma grande referência. Sua
26
“As universidades se constituíram
uma herança racista que negamos enfrentar. Em um país que abriga a segunda população negra
mais populosa do mundo, a implementação das cotas raciais significa o início de reposicionamentos
polít
icos no mundo acadêmico, uma vez que a universalidade de determinadas formulações passam
a ser questionadas. Este ambiente segregado, mantido pelo que podemos chamar de impunidade da
segregação, não se limita ao corpo docente, está na rede de sociabilidade
brancos, bem como se estende aos currículos acadêmicos que acabam por (re)produzir uma ciência
confinada, monorracial e monoétnica. Questionar a
crise epistemológica provocada pelas co
mundo acadêmico. Revista USP, São Paulo, n.68, p. 88
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
vale para os docentes indígenas.
Por outro lado, precisamos de professores que conheçam outras epistemes, o
que é mais complexo. Por exemplo, um professor negro que venha também de
religião de matriz africana ou que venha de comunidades quilombolas,
comunidades tradicionais que além do conhecimento ocidental com o qual chegou
no doutorado, tenha outros saberes que também pode e deve ensinar. É um tipo de
temos, ou que
são pouquíssimos.
Finalmente, há, ainda, uma terceira via para a
diversidade étnico
universidades que são os
mestres
os professores negros, os professores
indígenas, os professores quilombolas dos povos tradicionais
diploma e que não foram formados na
episteme ocidental.
Há muita contenção,
muito confinamento26
nas nossas universidades. Um
segundo aspecto, além desse quadro mais ligado à diversidade étnico
universidade, é o sistema de transmissão. É validarmos a oralidade.
O Reconhecimento dos Mestres da Oralidade e da
Espiritualidade
Na abertura do Seminário Encontro de Saberes nas Universidades
um Diálogo Interepistêmico, organizado pelo INCTI, na UNB, em 2015
levantou uma relação de 10 temas que precisam ser aprofundados, entre eles a
questão da Oralidade
versus
Escrita. Como operar essa mudança de
A epistemologia dominante tem em Karl Popper uma grande referência. Sua
As universidades se constituíram
como espaços institucionais brancos, devido principalmente a
uma herança racista que negamos enfrentar. Em um país que abriga a segunda população negra
mais populosa do mundo, a implementação das cotas raciais significa o início de reposicionamentos
icos no mundo acadêmico, uma vez que a universalidade de determinadas formulações passam
a ser questionadas. Este ambiente segregado, mantido pelo que podemos chamar de impunidade da
segregação, não se limita ao corpo docente, está na rede de sociabilidade
desses professores
brancos, bem como se estende aos currículos acadêmicos que acabam por (re)produzir uma ciência
confinada, monorracial e monoétnica. Questionar a
neutralidade racial do campo teórico foi a primeira
crise epistemológica provocada pelas co
tas.” -
CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial no
mundo acadêmico. Revista USP, São Paulo, n.68, p. 88
– 103,
dezembro/fevereiro 2005/2006.
625
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Por outro lado, precisamos de professores que conheçam outras epistemes, o
que é mais complexo. Por exemplo, um professor negro que venha também de
religião de matriz africana ou que venha de comunidades quilombolas,
de
comunidades tradicionais que além do conhecimento ocidental com o qual chegou
no doutorado, tenha outros saberes que também pode e deve ensinar. É um tipo de
diversidade étnico
-racial das
os professores negros, os professores
que não têm
nas nossas universidades. Um
segundo aspecto, além desse quadro mais ligado à diversidade étnico
-racial na
universidade, é o sistema de transmiso. É validarmos a oralidade.
Espiritualidade
Na abertura do Seminário Encontro de Saberes nas Universidades
- Bases para
um Diálogo Interepistêmico, organizado pelo INCTI, na UNB, em 2015
, o sr.
levantou uma relação de 10 temas que precisam ser aprofundados, entre eles a
Escrita. Como operar essa mudança de
A epistemologia dominante tem em Karl Popper uma grande referência. Sua
como espaços institucionais brancos, devido principalmente a
uma herança racista que negamos enfrentar. Em um país que abriga a segunda população negra
mais populosa do mundo, a implementação das cotas raciais significa o início de reposicionamentos
icos no mundo acadêmico, uma vez que a universalidade de determinadas formulações passam
a ser questionadas. Este ambiente segregado, mantido pelo que podemos chamar de impunidade da
desses professores
brancos, bem como se estende aos currículos acadêmicos que acabam por (re)produzir uma ciência
neutralidade racial do campo teórico foi a primeira
CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial no
dezembro/fevereiro 2005/2006.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
proposição funda uma ep
comum, isso a partir da matematização que foi o que fez a grande revolução
científica e a consequente reforma universitária da passagem do séc. XVII até
meados do séc. XVIII, quando as universidades fora
Iluminismo. Segundo Koyré
momento que uma ruptura com o senso comum. Isso porque, quando vo
matematiza o universo, qualquer expressão simbólica (que ele chamava de
fabulação)
mítica, espiritual, estética, cosmológica perde o sentido e o
causa eficiente; a única validada por Galileu do sistema das quatro causas
sistematizado por Aristóteles.
Coopera para essa constituição epistemológica galileana o arcabouço
matemá
tico criado por Newton para a compreensão do cosmos a partir das leis da
gravidade e do movimento. O que estava fora disso virou superstição, pensamento
incorreto,
saberes que precisam ser abandonados, enquanto toda uma avenida
maravilhosa se abria para um
Até hoje a gente vive isso. Ligamos o rádio e, em cinco minutos, escutamos
alguma porcentagem: de algum aspecto do nosso corpo, da inflação, do preço da
cebola, da bolsa de valores... Todos os dias,
falando de pontos da bolsa de valores, de números, enquanto o médico fala de seus
índices, do número de plaquetas no seu sangue... Tudo absolutamente
matematizado. O que já colonizou as nossas mentes.
Os únicos territórios
alguma medida, os territórios da Arte e da Psicologia. Mesmo na Arte, há aspectos
dessa colonização. A maneira como o aprendidos os instrumentos musicais é
bastante matematizada. Você fica fazendo vários
quais métodos são mais eficazes. Essa eficácia é medida pela capacidade de
digitar, pela velocidade e até as posições do corpo o matematizadas. A Arte não
27Alexandre Koyré (1862-
1964) foi um filósofo e historiador da ciência, de nacionalidade franco
Em uma de suas principais obras,
da natureza e a transformação dos fundamentos da ciência
entende que este processo corresponde a uma revolução científica que daria origem a um novo
sistema teórico de compreensão do mundo físico e da relação entre saber e percepção. KOYRÉ,
Alexandre.
Estudos de História do
Brasília: Ed. UnB, 1982.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
proposição funda uma ep
istemologia a partir da oposição radical com o senso
comum, isso a partir da matematização que foi o que fez a grande revolução
científica e a consequente reforma universitária da passagem do séc. XVII até
meados do c. XVIII, quando as universidades fora
m entrando no chamado
Iluminismo. Segundo Koyré
27,
a grande revolução se com Galileu porque é neste
momento que há uma ruptura com o senso comum. Isso porque, quando vo
matematiza o universo, qualquer expressão simbólica (que ele chamava de
mítica, espiritual, estética, cosmológica perde o sentido e o
causa eficiente; a única validada por Galileu do sistema das quatro causas
sistematizado por Aristóteles.
Coopera para essa constituição epistemológica galileana o arcabouço
tico criado por Newton para a compreensão do cosmos a partir das leis da
gravidade e do movimento. O que estava fora disso virou superstição, pensamento
saberes que precisam ser abandonados, enquanto toda uma avenida
maravilhosa se abria para um
saber correto, exato, pela sua precisão matemática.
Até hoje a gente vive isso. Ligamos o rádio e, em cinco minutos, escutamos
alguma porcentagem: de algum aspecto do nosso corpo, da inflação, do preço da
cebola, da bolsa de valores... Todos os dias,
ainda que ninguém entenda, ficam
falando de pontos da bolsa de valores, de números, enquanto o dico fala de seus
índices, do número de plaquetas no seu sangue... Tudo absolutamente
matematizado. O que já colonizou as nossas mentes.
Os únicos territórios
que resistiram um pouco à matematização foram, em
alguma medida, os territórios da Arte e da Psicologia. Mesmo na Arte, há aspectos
dessa colonização. A maneira como são aprendidos os instrumentos musicais é
bastante matematizada. Você fica fazendo vários
tipos de simulações para saber
quais métodos são mais eficazes. Essa eficácia é medida pela capacidade de
digitar, pela velocidade e até as posições do corpo são matematizadas. A Arte não
1964) foi um filósofo e historiador da ciência, de nacionalidade franco
Em uma de suas principais obras,
Estudos Galilaicos
, Koyré historiciza o processo de matematização
da natureza e a transformação dos fundamentos da ciência
na primeira metade do séc. XX. Koyré
entende que este processo corresponde a uma revolução científica que daria origem a um novo
sistema teórico de compreensão do mundo físico e da relação entre saber e percepção. KOYRÉ,
Estudos de História do
Pensamento Científico
. Rio de Janeiro, Forense Universitária;
626
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
istemologia a partir da oposição radical com o senso
comum, isso a partir da matematização que foi o que fez a grande revolução
científica e a consequente reforma universitária da passagem do séc. XVII até
m entrando no chamado
a grande revolução se dá com Galileu porque é neste
momento que há uma ruptura com o senso comum. Isso porque, quando você
matematiza o universo, qualquer expressão simbólica (que ele chamava de
mítica, espiritual, estética, cosmológica perde o sentido e o
que resta é a
causa eficiente; a única validada por Galileu do sistema das quatro causas
Coopera para essa constituição epistemológica galileana o arcabouço
tico criado por Newton para a compreensão do cosmos a partir das leis da
gravidade e do movimento. O que estava fora disso virou superstição, pensamento
saberes que precisam ser abandonados, enquanto toda uma avenida
saber correto, exato, pela sua precisão matemática.
Até hoje a gente vive isso. Ligamos o rádio e, em cinco minutos, escutamos
alguma porcentagem: de algum aspecto do nosso corpo, da inflação, do preço da
ainda que ninguém entenda, ficam
falando de pontos da bolsa de valores, de números, enquanto o médico fala de seus
índices, do número de plaquetas no seu sangue... Tudo absolutamente
que resistiram um pouco à matematização foram, em
alguma medida, os territórios da Arte e da Psicologia. Mesmo na Arte, aspectos
dessa colonização. A maneira como o aprendidos os instrumentos musicais é
tipos de simulações para saber
quais métodos são mais eficazes. Essa eficácia é medida pela capacidade de
digitar, pela velocidade e até as posições do corpo o matematizadas. A Arte não
1964) foi um filósofo e historiador da ciência, de nacionalidade franco
-russa.
, Koyré historiciza o processo de matematização
na primeira metade do séc. XX. Koyré
entende que este processo corresponde a uma revolução científica que daria origem a um novo
sistema teórico de compreensão do mundo físico e da relação entre saber e percepção. KOYRÉ,
. Rio de Janeiro, Forense Universitária;
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
está isenta desse avanço. E outra área
de matematização seria a da Espiritualidade.
A radicalidade da ciência
por comunidades científicas. Vo vai
definido muito claramente que não há
aceito é
o idioma científico moderno.
Lacan mostra que a Psicanálise
séc. XIX para o XX
é praticamente o primeiro saber constituído moderno que não
se encaixa nesse parad
igma científico.
defendia a Psicanálise como uma ciência, há textos seus em que discute se ela
deveria ou não estar na universidade. Lacan avança quando diz que o saber não se
restringe ao conhecimento científico ou a
que comparecem sem que sejam pasveis de
Na cena analítica, segundo Lacan, comparece um saber entre o paciente e o
terapeuta que tem concretude, poder transformador, com estatuto
não pode ser repetido ou verificado num novo experimento porque ao entrar um
novo paciente um novo saber será resultado daquela nova cena única, singular. É
preciso admitir, então, que essa outra verdade não seja capturada.
O sujeito da ci
ência moderna é um sujeito esvaziado. Koyré mostra como
Galileu esvaziou esse sujeito, pela matemática. A força desse modelo é esvaziá
tal ponto que o sujeito perde a noção das consequências das suas descobertas e faz
a bomba atômica, por exemplo. Um
uma ciência abelhicida, como a que fazem os químicos da Monsanto. Como pode
passar pela cabeça de um cientista matar as abelhas do planeta? Mas ele não pode
fazer esse questionamento porque ele não tem lugar subje
questão
para si mesmo nem para ninguém.
Daí Lacan dizer que é preciso construir um
no meu modo de ver, os Mestres entram aí, nesse
naquele lugar do sujeito esvaziado galil
Uma nova discussão que me parece fantástica, é a da revolução quântica, do
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
está isenta desse avanço. E outra área
especificamente
resistente a
de matematização seria a da Espiritualidade.
A radicalidade da ciência
versus
senso comum passa por ela ser constituída
por comunidades científicas. Você vai
a qualquer instituição científica
definido muito claramente que não
lugar para o senso comum, o
o idioma científico moderno.
Lacan mostra que a Psicanálise
esse novo saber que aparece na virada do
é praticamente o primeiro saber constituído moderno que não
igma científico.
F
reud tinha essa dificuldade porque
defendia a Psicanálise como uma ciência, textos seus em que discute se ela
deveria ou não estar na universidade. Lacan avança quando diz que o saber não se
restringe ao conhecimento científico ou a
cadêmico, porque existem vários saberes
que comparecem sem que sejam passíveis de
falsificação
, no sentido
Na cena analítica, segundo Lacan, comparece um saber entre o paciente e o
terapeuta que tem concretude, poder transformador, com estatuto
não pode ser repetido ou verificado num novo experimento porque ao entrar um
novo paciente um novo saber será resultado daquela nova cena única, singular. É
preciso admitir, então, que essa outra verdade não seja capturada.
ência moderna é um sujeito esvaziado. Koyré mostra como
Galileu esvaziou esse sujeito, pela matemática. A força desse modelo é esvaziá
tal ponto que o sujeito perde a noção das consequências das suas descobertas e faz
a bomba atômica, por exemplo. Um
descontrole completo! Outro exemplo é o de
uma ciência abelhicida, como a que fazem os químicos da Monsanto. Como pode
passar pela cabeça de um cientista matar as abelhas do planeta? Mas ele não pode
fazer esse questionamento porque ele não tem lugar subje
tivo para colocar essa
para si mesmo nem para ninguém.
Daí Lacan dizer que é preciso construir um
outro lugar
para a Psicanálise. E,
no meu modo de ver, os Mestres entram aí, nesse
outro lugar
, de modo algum
naquele lugar do sujeito esvaziado galil
eano/newtoniano.
Uma nova discussão que me parece fantástica, é a da revolução quântica, do
627
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
resistente a
esse processo
senso comum passa por ela ser constituída
a qualquer instituição científica
e, ali, está
lugar para o senso comum, o
único idioma
esse novo saber que aparece na virada do
é praticamente o primeiro saber constituído moderno que não
reud tinha essa dificuldade porque
defendia a Psicanálise como uma ciência, há textos seus em que discute se ela
deveria ou não estar na universidade. Lacan avança quando diz que o saber não se
cadêmico, porque existem vários saberes
, no sentido
popperiano.
Na cena analítica, segundo Lacan, comparece um saber entre o paciente e o
de verdade, mas
não pode ser repetido ou verificado num novo experimento porque ao entrar um
novo paciente um novo saber será resultado daquela nova cena única, singular. É
ência moderna é um sujeito esvaziado. Koyré mostra como
Galileu esvaziou esse sujeito, pela matemática. A força desse modelo é esvaziá
-lo a
tal ponto que o sujeito perde a noção das consequências das suas descobertas e faz
descontrole completo! Outro exemplo é o de
uma ciência abelhicida, como a que fazem os químicos da Monsanto. Como pode
passar pela cabeça de um cientista matar as abelhas do planeta? Mas ele não pode
tivo para colocar essa
para a Psicanálise. E,
, de modo algum
Uma nova discussão que me parece fantástica, é a da revolução quântica, do
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
início do séc. XX. Desde o prinpio de Heisenberg
a famosa equação psi
de Schrödinger
verificação: demonstra que é o olhar do observador
apresentar
com um determinado padrão que vo mede e parece ser o padrão
estável da natureza, que não é. É o momento em que vo
estável, no entanto, é instável, aleatório, até que haja um observador que o veja, e
possa medi-
lo, ainda em termos probabilísticos, nunca exatos.
Estamos falando da escala do universo subatômico, evidentemente, não de
uma escala macro, m
as de qualquer maneira, com Schrödinger, o lugar do
observador deixa de ser esse lugar neutro postulado pelo modelo
galileano/newtoniano. Como fazer essa passagem para que isto venha, agora, a ter
seu valor e influência em todo campo acadêmico é algo que e
que é fascinante.
O debate com a Psicologia ou a Psicanálise pode ocorrer
das outras disciplinas que queiram dialogar. Poderíamos entrar, modestamente, aqui
na UnB e nas universidades que estão fazendo o Encontro d
essa questão de que o lugar dos mestres não é o lugar em que a epistemologia
popperiana
opera. Eles estão no lugar de sujeito suposto saber, análogo ao lugar
do analista
e do docente acadêmico.
Por isso também o fundamentais aqueles
o discurso do amo, feudal, da relação dialética amo
discurso do universitário; c) o discurso da histérica (aquele discurso que fundou a
Psicanálise com o Freud);
d)
O discurso do mestre não é o discurso do
universitário,
que está conectado com o discurso capitalista do
de produção que é o mandato dado sobre o s
para ser docente e que diz pr
28
Werner Heisenberg, em 1927, formula o prinpio da incerteza que impõe restrições à precio com
que se podem efetuar medidas simultâneas de uma classe de pares de ob
subatômico. Recebeu o prêmio Nobel de Física em 1932 pela criação da mecânica quântica.
29Erwin Schrödinger
foi o físico austríaco que em 1925 desenvolveu a equação que descreve como o
estado quântico do sistema físico muda com o tempo.
30LACAN, Jacques
O Seminário Livro 17. O Avesso da Psicanálise
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
início do c. XX. Desde o princípio de Heisenberg
28
, com o princípio da incerteza e
de Schrödinger
29
sobre o colapso do sistema no momento da
verificação: demonstra que é o olhar do observador
que faz o sistema colapsar e se
com um determinado padrão que você mede e parece ser o padrão
estável da natureza, que não é. É o momento em que você
estável, no entanto, é instável, aleatório, até que haja um observador que o veja, e
lo, ainda em termos probabilísticos, nunca exatos.
Estamos falando da escala do universo subatômico, evidentemente, não de
as de qualquer maneira, com Schrödinger, o lugar do
observador deixa de ser esse lugar neutro postulado pelo modelo
galileano/newtoniano. Como fazer essa passagem para que isto venha, agora, a ter
seu valor e influência em todo campo acadêmico é algo que e
stá anda por fazer e
O debate com a Psicologia ou a Psicanálise pode ocorrer
neste
das outras disciplinas que queiram dialogar. Poderíamos entrar, modestamente, aqui
na UnB e nas universidades que estão fazendo o Encontro d
e Saberes apontando
essa questão de que o lugar dos mestres não é o lugar em que a epistemologia
opera. Eles estão no lugar de “sujeito suposto saber”, análogo ao lugar
e do docente acadêmico.
Por isso também são fundamentais aqueles
quatro discursos lacanianos
o discurso do amo, feudal, da relação dialética amo
-
escravo ou amo
discurso do universitário; c) o discurso da histérica (aquele discurso que fundou a
d)
e o discurso do analista.
O discurso do mestre não é o discurso do
amo
e também não é o do
que está conectado com o discurso capitalista do
mais saber
de prodão que é o mandato dado sobre o s
-
graduando que está se formando
para ser docente e que diz “pr
ocure saber cada vez mais”. O
mais valor
Werner Heisenberg, em 1927, formula o princípio da incerteza que impõe restrições à precio com
que se podem efetuar medidas simultâneas de uma classe de pares de ob
serváveis em nível
subatômico. Recebeu o prêmio Nobel de Física em 1932 pela criação da mecânica quântica.
foi o físico austríaco que em 1925 desenvolveu a equação que descreve como o
estado quântico do sistema físico muda com o tempo.
O Seminário Livro 17. O Avesso da Psicanálise
. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
628
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
, com o prinpio da incerteza e
sobre o colapso do sistema no momento da
que faz o sistema colapsar e se
com um determinado padrão que vo mede e parece ser o padrão
olha que parece
estável, no entanto, é instável, aleatório, até que haja um observador que o veja, e
Estamos falando da escala do universo subatômico, evidentemente, não de
as de qualquer maneira, com Schrödinger, o lugar do
observador deixa de ser esse lugar neutro postulado pelo modelo
galileano/newtoniano. Como fazer essa passagem para que isto venha, agora, a ter
stá anda por fazer e
neste
sentido, além
das outras disciplinas que queiram dialogar. Poderíamos entrar, modestamente, aqui
e Saberes apontando
essa questão de que o lugar dos mestres não é o lugar em que a epistemologia
opera. Eles estão no lugar de sujeito suposto saber, análogo ao lugar
quatro discursos lacanianos
30:a)
escravo ou amo
-servo; b) o
discurso do universitário; c) o discurso da histérica (aquele discurso que fundou a
e também não é o do
mais saber
, da linha
graduando que esse formando
mais valor
do capital é
Werner Heisenberg, em 1927, formula o prinpio da incerteza que impõe restrições à precisão com
serváveis em nível
subatômico. Recebeu o prêmio Nobel de Física em 1932 pela criação da mecânica quântica.
foi o físico austríaco que em 1925 desenvolveu a equação que descreve como o
. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
o mais saber
da academia. O mestre não está na lógica do
produtividade. Ele tem fissuras que também não cabem no lugar fechado
fantasmaticamente do amo que se acha completo quan
verdade, também é um sujeito barrado,
Dos quatro discursos lacanianos, acredito que o discurso do mestre tem
semelhança com o discurso do histérico, porque ele também pergunta para a
a
cademia se ela sabe de fato e pede para que prove que sabe comparado com o
saber que ele tem. Inclusive porque, às vezes, a academia não tem uma boa
resposta para ele e para os diferentes planos de realidade de seu saber, com os
quais a academia
nem sempre
vários outros. Vindos da tradição oral, os mestres ocupam um lugar questionador
que é bastante desafiador
para a ordem científica estabelecida.
Oralidade e Escrita
Falemos então, mais concentradamente, porque a Oralidade e a Escrita
constituem, também
, um tema para o Encontro de Saberes. A universidade funciona
hoje, basicamente pelo sistema da escrita
com que ficasse com os textos escritos: provas, formulários de avaliação,
Mestre José Jerome e o contra mestre Benedito Antonio, aula
do Encontro dos Saberes, na UnB. Foto: Leonardo Fontes.
Fonte:
https://www.antropologiasocial.com.br/sid
alunos-da-unb-recebem-aulas-de-
congado
cultura-popular-de-sao-paulo
(acessado em 27/08/2023)
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
da academia. O mestre não está na lógica do
mais saber
produtividade. Ele tem fissuras que também não cabem no lugar fechado
fantasmaticamente do amo que se acha completo quan
do de fato não é, porque, na
verdade, também é um sujeito barrado,
um sujeito da falta, portanto incompleto.
Dos quatro discursos lacanianos, acredito que o discurso do mestre tem
semelhança com o discurso do histérico, porque ele também pergunta para a
cademia se ela sabe de fato e pede para que prove que sabe comparado com o
saber que ele tem. Inclusive porque, às vezes, a academia o tem uma boa
resposta para ele e para os diferentes planos de realidade de seu saber, com os
nem sempre
lida, como os sistemas de cura, o xamanismo e
vários outros. Vindos da tradição oral, os mestres ocupam um lugar questionador
para a ordem científica estabelecida.
Falemos então, mais concentradamente, porque a Oralidade e a Escrita
, um tema para o Encontro de Saberes. A universidade funciona
hoje, basicamente pelo sistema da escrita
especializada.
Uma longa trajetória fez
com que ficasse com os textos escritos: provas, formulários de avaliação,
ementas. Toda a burocracia é escrita, e
vale enquanto escrita. O lugar da
oralidade é geralmente recalcado ou não
muito refletido, porque parece ser a
um veículo da escrita. O professor fala, na
aula e, na maior parte das vezes, tem um
texto de base. Poucas o as áreas da
universidade em que a oralidade e a
escrita são vistas como um problema,
como uma questão.
O Teatro é um exemplo disso, em
q
ue a corporeidade também está inserida.
Mestre José Jerome e o contra mestre Benedito Antonio, aula
do Encontro dos Saberes, na UnB. Foto: Leonardo Fontes.
https://www.antropologiasocial.com.br/sid
-7-anos-
congado
-com-mestre-da-
(acessado em 27/08/2023)
629
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
mais saber
, na lógica da
produtividade. Ele tem fissuras que também não cabem no lugar fechado
do de fato não é, porque, na
um sujeito da falta, portanto incompleto.
Dos quatro discursos lacanianos, acredito que o discurso do mestre tem
semelhança com o discurso do histérico, porque ele também pergunta para a
cademia se ela sabe de fato e pede para que prove que sabe comparado com o
saber que ele tem. Inclusive porque, às vezes, a academia não tem uma boa
resposta para ele e para os diferentes planos de realidade de seu saber, com os
lida, como os sistemas de cura, o xamanismo e
vários outros. Vindos da tradição oral, os mestres ocupam um lugar questionador
Falemos então, mais concentradamente, porque a Oralidade e a Escrita
, um tema para o Encontro de Saberes. A universidade funciona
Uma longa trajetória fez
com que ficasse com os textos escritos: provas, formulários de avaliação,
ementas. Toda a burocracia é escrita, e
vale enquanto escrita. O lugar da
oralidade é geralmente recalcado ou não
muito refletido, porque parece ser a
penas
um veículo da escrita. O professor fala, na
aula e, na maior parte das vezes, tem um
texto de base. Poucas são as áreas da
universidade em que a oralidade e a
escrita o vistas como um “problema”,
O Teatro é um exemplo disso, em
ue a corporeidade também está inserida.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Não adianta ler apenas o livro de teatro, o trabalho do ator em cena passa pelo
diretor que transmite como deve estar a voz e outras informações que o papel não
transmite e que não o equações galileanas/newtoniana
chamadas masterclasess,
os alunos vêem o mestre tocar, procuram perceber como
o seu corpo está colocado, o que é uma espécie de transmissão oral que é, ainda,
uma parte pequena de todo o processo de aprendizagem do músico, na
universidade
. Temos diferentes níveis de complexidade da passagem da oralidade à
escrita.
A Literatura discute muito isso. Há um termo concebido por
(Uganda)31,
Yoro Fall (Senegal)
como alternativa à
literatura oral. Muitas sociedades tradicionais de onde vêm os
mestres estão baseadas em grandes processos de memorização. Tivemos o
exemplo maravilhoso do
mestre José Jerome
tip
o de mestre que é assim, pessoas de uma memória enciclopédica precisa.
Uma memória longa e precisa, num mundo desmemoriado e impreciso. Fiz
vários testes de memória entre os alunos, cada vez mais amnésicos. Em um deles
pedia que recitassem uma poesia e, co
31
ZIRIMU, Pio. An approach to Black Aesthetics" in: Pio Zirimu; Andrew Gurr, eds. (1973). Black
Aesthetics: Papers from a Colloquium Held at the University of Nairobi, June, 1971.
Literature Bureau.
32Ver
FALL, Yoro. Historiografía,sociedades y c
Africa, vol.26, 3 (86), número especial: África: inventando el futuro, El Colegio de México: México, set
dez,1991, p. 17-37 (https://
www.jstor.org/stable/40312291?origin=JSTOR
26/08/2023).
33THIONG´O, Ngũgĩ wa.
Globalectics.
University Press, 2012.
34
Ver SANTOS, Margareth Nascimento
Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras n.01, dezembro de 2011: O conceito de
oralitura é adotado pelos escritores antilhanos a partir da décad
tal nomenclatura, segundo estes autores, está no fato da literatura tradicional, da forma como é
concebida, não oferecer espaço que abrigue (...) a memória coletiva local que está essencialmente
forjada na oralidade
e que representa as suas tradições. SANTOS (2011). No Brasil, o conceito é
trabalhado por Leda Martins, que amplia sua compreensão para abarcar os processos de inscrição e
grafia das memórias nos corpos e vozes através das performances e práticas rituais,
associadas às cosmovisões africanas e afro
“Performances da oralitura: corpo, lugar da memória.
35
Mestre Zé Jerome do grupo de Congado de Moçambique de Cunha a
Módulo IV da Disciplina ”Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais oferecido pelo Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília (
da-unb-recebem-aulas-de-
congado
27/04/2023). O componente curricular do módulo tinha
conta a história de São Benedito:
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Não adianta ler apenas o livro de teatro, o trabalho do ator em cena passa pelo
diretor que transmite como deve estar a voz e outras informações que o papel não
transmite e que não são equações galileanas/newtoniana
s. Na Música, nas
os alunos vêem o mestre tocar, procuram perceber como
o seu corpo está colocado, o que é uma espécie de transmissão oral que é, ainda,
uma parte pequena de todo o processo de aprendizagem do músico, na
. Temos diferentes níveis de complexidade da passagem da oralidade à
A Literatura discute muito isso. um termo concebido por
Yoro Fall (Senegal)
32, Ngũgĩ wa Thiong´o (Quênia)33
que é
literatura oral. Muitas sociedades tradicionais de onde vêm os
mestres estão baseadas em grandes processos de memorização. Tivemos o
mestre JoJerome
35
, um portento de memória. Há um
o de mestre que é assim, pessoas de uma memória enciclopédica precisa.
Uma memória longa e precisa, num mundo desmemoriado e impreciso. Fiz
vários testes de memória entre os alunos, cada vez mais amnésicos. Em um deles
pedia que recitassem uma poesia e, co
m exceção dos alunos das Letras, nenhum
ZIRIMU, Pio. An approach to Black Aesthetics" in: Pio Zirimu; Andrew Gurr, eds. (1973). Black
Aesthetics: Papers from a Colloquium Held at the University of Nairobi, June, 1971.
FALL, Yoro. Historiografía,sociedades y c
onsciência histórica em África in: Estudios de Asia y
Africa, vol.26, 3 (86), número especial: África: inventando el futuro, El Colegio de México: México, set
www.jstor.org/stable/40312291?origin=JSTOR
-pdf
(acessado em
Globalectics.
Theory and the politics of knowing.
New York: Columbia
Ver SANTOS, Margareth Nascimento
Entre o Oral e o Escrito a Criação de uma Oralitura. BABEL:
Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras n.01, dezembro de 2011: O conceito de
oralitura é adotado pelos escritores antilhanos a partir da décad
a de 80 e a justificativa para o uso de
tal nomenclatura, segundo estes autores, está no fato da literatura tradicional, da forma como é
concebida, não oferecer espaço que abrigue (...) a memória coletiva local que está essencialmente
e que representa as suas tradições.” SANTOS (2011). No Brasil, o conceito é
trabalhado por Leda Martins, que amplia sua compreensão para abarcar os processos de inscrição e
grafia das memórias nos corpos e vozes através das performances e práticas rituais,
associadas às cosmovisões africanas e afro
-
diaspóricas. A esse respeito, ver MARTINS, Leda. 2003.
Performances da oralitura: corpo, lugar da memória”.
Letras, (26), pp. 63–81.
Mestre Zé Jerome do grupo de Congado de Moçambique de Cunha a
tuou em 2010 e 2013 no
Módulo IV da Disciplina Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais” oferecido pelo Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília (
https://www.antropologiasocial.com.br/sid
congado
-com-mestre-da-cultura-popular-de-sao-
paulo/
27/04/2023). O componente curricular do módulo tinha
a música como foco. Neste vídeo, o mestre
conta a história de São Benedito:
https://youtu.be/7SxHuz1oFFo(a
cessado em 27/04/2023)
630
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Não adianta ler apenas o livro de teatro, o trabalho do ator em cena passa pelo
diretor que transmite como deve estar a voz e outras informações que o papel não
s. Na Música, nas
os alunos vêem o mestre tocar, procuram perceber como
o seu corpo está colocado, o que é uma espécie de transmissão oral que é, ainda,
uma parte pequena de todo o processo de aprendizagem do músico, na
. Temos diferentes níveis de complexidade da passagem da oralidade à
A Literatura discute muito isso. Há um termo concebido por
Pio Zirimu
que é
a oralitura34,
literatura oral. Muitas sociedades tradicionais de onde vêm os
mestres estão baseadas em grandes processos de memorização. Tivemos o
, um portento de memória. um
o de mestre que é assim, pessoas de uma memória enciclopédica precisa.
Uma memória longa e precisa, num mundo desmemoriado e impreciso. Fiz
vários testes de memória entre os alunos, cada vez mais amnésicos. Em um deles
m exceção dos alunos das Letras, nenhum
ZIRIMU, Pio. An approach to Black Aesthetics" in: Pio Zirimu; Andrew Gurr, eds. (1973). Black
Aesthetics: Papers from a Colloquium Held at the University of Nairobi, June, 1971.
East African
onsciência histórica em África in: Estudios de Asia y
Africa, vol.26, 3 (86), número especial: África: inventando el futuro, El Colegio de México: México, set
-
(acessado em
New York: Columbia
Entre o Oral e o Escrito a Criação de uma Oralitura. BABEL:
Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras n.01, dezembro de 2011: “O conceito de
a de 80 e a justificativa para o uso de
tal nomenclatura, segundo estes autores, está no fato da literatura tradicional, da forma como é
concebida, não oferecer espaço que abrigue (...) a memória coletiva local que está essencialmente
e que representa as suas tradições. SANTOS (2011). No Brasil, o conceito é
trabalhado por Leda Martins, que amplia sua compreensão para abarcar os processos de inscrição e
grafia das memórias nos corpos e vozes através das performances e práticas rituais,
notadamente as
diaspóricas. A esse respeito, ver MARTINS, Leda. 2003.
tuou em 2010 e 2013 no
Módulo IV da Disciplina Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais oferecido pelo Departamento de
https://www.antropologiasocial.com.br/sid
-7-anos-alunos-
paulo/
- acessado em
a música como foco. Neste vídeo, o mestre
cessado em 27/04/2023)
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
se lembrava de qualquer poesia. Pedi que memorizassem uma poesia e
fracassamos todas as vezes. Vem, então,
eles cantem, memorizem e dancem, ao mesmo tempo em que passam o bastão.
Promove um retorno ao mundo da oralidade.
Vem dos mestres uma oralidade às vezes plena da grande memória. Então,
trazer os mestres é trazer em vários planos a complexidade, a riqueza da relação
oralidade-
escrita, sobre o que nós não temos pensado.
Finalmen
te, também a questão da validação. Como validar o saber de
alguém que não escreve e que não usa a escrita para validar o que sabe? Existe um
tipo de relação oralidade-
escrita que é a tradução, a passagem direta de um texto
oral para a escrita. Muitos me
exemplo, a contar textos maravilhosos, poesias orais, mitos, histórias, lendas que
podem ser transcritos e que produziriam uma espécie de oralitura escrita que reflita
a riqueza cultural dos mestres.
Uma se
gunda relação entre oralidade e escrita se dá quando o que vai ser
escrito é, na verdade, uma transliteração, uma condensação, uma elaboração sobre
o saber do mestre. Uma vez que nem tudo o que está sendo passado tem um
significado de escrita. Trata
intervenção de quem escreve. Trata
denso em que o saber que está sendo transmitido pelo mestre popular é traduzido
nos nossos termos, em uma elaboração co
A pres
ença dos mestres permitiria, por exemplo, uma elaboração psicológica,
uma reflexão filosófica do mestre, um
procedimentos que o mestre vai explicando e que
escrita, na arquitetu
ra, na fitoterapia, na agroecologia. Daí termos um segundo tipo
de relação oralidade-
escrita que é uma tradução rica e criativa que convoca pessoas
de várias áreas.
O terceiro tipo é um terreno que é propriamente da escrita e em que a
oralidade é uma exege
se ou hermenêutica apenas. É um suporte secundário da
eminência do texto, como diz Gadamer, que não pode deixar de ser passado. Na
Teologia, na Filosofia, na Poesia, na Literatura, o texto é eminente, a oralidade
existe o tempo todo como uma hermenêutica,
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
se lembrava de qualquer poesia. Pedi que memorizassem uma poesia e
fracassamos todas as vezes. Vem, então,
mestre Jerôme
e trabalha para que
eles cantem, memorizem e dancem, ao mesmo tempo em que passam o bastão.
Promove um retorno ao mundo da oralidade.
Vem dos mestres uma oralidade às vezes plena da grande memória. Então,
trazer os mestres é trazer em vários planos a complexidade, a riqueza da relação
escrita, sobre o que nós não temos pensado.
te, há também a questão da validação. Como validar o saber de
alguém que não escreve e que não usa a escrita para validar o que sabe? Existe um
escrita que é a tradução, a passagem direta de um texto
oral para a escrita. Muitos me
stres virão para a universidade e começarão, por
exemplo, a contar textos maravilhosos, poesias orais, mitos, histórias, lendas que
podem ser transcritos e que produziriam uma espécie de oralitura escrita que reflita
a riqueza cultural dos mestres.
gunda relação entre oralidade e escrita se quando o que vai ser
escrito é, na verdade, uma transliteração, uma condensação, uma elaboração sobre
o saber do mestre. Uma vez que nem tudo o que está sendo passado tem um
significado de escrita. Trata
-se de
um segundo nível de escrita, onde há uma
intervenção de quem escreve. Trata
-
se do diálogo, de um encontro de saberes
denso em que o saber que está sendo transmitido pelo mestre popular é traduzido
nos nossos termos, em uma elaboração co
-dependente.
ença dos mestres permitiria, por exemplo, uma elaboração psicológica,
uma refleo filofica do mestre, um
insight
, uma intuição ou, ainda, a tradução de
procedimentos que o mestre vai explicando e que
nós traduzimos
ra, na fitoterapia, na agroecologia. Daí termos um segundo tipo
escrita que é uma tradução rica e criativa que convoca pessoas
O terceiro tipo é um terreno que é propriamente da escrita e em que a
se ou hermenêutica apenas. É um suporte secundário da
eminência do texto, como diz Gadamer, que não pode deixar de ser passado. Na
Teologia, na Filosofia, na Poesia, na Literatura, o texto é eminente, a oralidade
existe o tempo todo como uma hermenêutica,
como uma exegese para que esse
631
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
se lembrava de qualquer poesia. Pedi que memorizassem uma poesia e
e trabalha para que
eles cantem, memorizem e dancem, ao mesmo tempo em que passam o bastão.
Vem dos mestres uma oralidade às vezes plena da grande memória. Então,
trazer os mestres é trazer em vários planos a complexidade, a riqueza da relação
te, há também a questão da validação. Como validar o saber de
alguém que não escreve e que não usa a escrita para validar o que sabe? Existe um
escrita que é a tradução, a passagem direta de um texto
stres virão para a universidade e começarão, por
exemplo, a contar textos maravilhosos, poesias orais, mitos, histórias, lendas que
podem ser transcritos e que produziriam uma espécie de oralitura escrita que reflita
gunda relação entre oralidade e escrita se dá quando o que vai ser
escrito é, na verdade, uma transliteração, uma condensação, uma elaboração sobre
o saber do mestre. Uma vez que nem tudo o que está sendo passado tem um
um segundo nível de escrita, onde uma
se do diálogo, de um encontro de saberes
denso em que o saber que está sendo transmitido pelo mestre popular é traduzido
ença dos mestres permitiria, por exemplo, uma elaboração psicológica,
, uma intuição ou, ainda, a tradução de
para a linguagem
ra, na fitoterapia, na agroecologia. Daí termos um segundo tipo
escrita que é uma tradução rica e criativa que convoca pessoas
O terceiro tipo é um terreno que é propriamente da escrita e em que a
se ou hermenêutica apenas. É um suporte secundário da
eminência do texto, como diz Gadamer, que não pode deixar de ser passado. Na
Teologia, na Filosofia, na Poesia, na Literatura, o texto é eminente, a oralidade
como uma exegese para que esse
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
texto possa ser transmitido com mais riqueza. É o caso dos textos clássicos das
chamadas grandes civilizações, tais como a
mestres não entram na educação à distância. Não tratam de virtualizar, mas de
encarnar, corporificar. Nesse ponto, diferentes áreas vão desenvolver diferentes
para extração de seu poder de cura. Ela sabe de memória os procedimento
você os escreve.A validação daquele saber é importante para o reconhecimento do
Notório Saber daquele Mestre
que na cabeça daquela pessoa que não escreve, existe um saber tão vasto quanto o
saber do d
outor que escreve.
Outra forma de validar aquele conhecimento seria a prova oral, a defesa de
tese, a arguição que está legitimada na universidade e pode ser estendida para a
validação do saber dos mestres.
nomeia um relator para a redação do Memorial daquele mestre e o próprio mestre
36
Lucely Pio em parceria com a professora Silria Santos do curso de Enfermagem atuou de 2010 a
2013 na Disciplina ”Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais” oferecido pelo Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília. Pio, mestre raizeira, rom
ensina que as plantas e animais também podem ser sujeitos. No vídeo Histórias que cultivo
Herdeiras dos Saberes do Cerrado pode
https://youtu.be/OvrhPSM_Jb8
, acessado em 07/04/2023).
37
Para uma referência sobre o notório saber e os mestres titulados ver: CARVALHO, José Jorge.
Notório Saber para os Mestres e Mestras dos Povos e Comunidades Tradicionais. Em: Mônica
Medeiros Rib
eiro e Fernando Mencarelli (orgs).
Belo Horizonte: Incipit, 2022.
Mestra Lucely Pio colhe plantas no cerrado. Foto
https://projetocolabora.com.br/ods8/cerrado
-
saberes-ancestrais/
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
texto possa ser transmitido com mais riqueza. É o caso dos textos clássicos das
chamadas grandes civilizações, tais como a
Ilíada, o Mahabharata
, os
mestres não entram na educação à distância. Não tratam de virtualizar, mas de
encarnar, corporificar. Nesse ponto, diferentes áreas vão desenvolver diferentes
protocolos da relação oralidade
escrita.
Na Arquitetura, por exemplo,
podem ser feitas cartilhas de como
fazer as amarrações. O aluno aprende
a fazer uma amarração super
complicada de cipó
para fazer a casa,
mentalmente. O professor, então, vai
fazendo um desenho dessa
amarração, como Leonardo Da Vinci
fazia... Mestra Lucely Pio
que fazer com determinada planta
para extração de seu poder de cura. Ela sabe de memória os procedimento
vo os escreve.A validação daquele saber é importante para o reconhecimento do
Notório Saber daquele Mestre
37
. É preciso fazer uma memória escrita que mostre
que na cabeça daquela pessoa que não escreve, existe um saber tão vasto quanto o
outor que escreve.
Outra forma de validar aquele conhecimento seria a prova oral, a defesa de
tese, a arguição que está legitimada na universidade e pode ser estendida para a
validação do saber dos mestres.
Eis um modo de fazê-
lo: o Conselho
nomeia um relator para a redação do Memorial daquele mestre e o próprio mestre
Lucely Pio em parceria com a professora Silvéria Santos do curso de Enfermagem atuou de 2010 a
2013 na Disciplina Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais” oferecido pelo Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília. Pio, mestre raizeira, rom
pe com o antropocentrismo e nos
ensina que as plantas e animais também podem ser sujeitos. No vídeo Histórias que cultivo
Herdeiras dos Saberes do Cerrado pode
-
se conhecer um pouco Mestra Lucely Pio (disponível em:
, acessado em 07/04/2023).
Para uma referência sobre o notório saber e os mestres titulados ver: CARVALHO, José Jorge.
Notório Saber para os Mestres e Mestras dos Povos e Comunidades Tradicionais. Em: Mônica
eiro e Fernando Mencarelli (orgs).
Mundos Possíveis. Culturas em Pensamento
Mestra Lucely Pio colhe plantas no cerrado. Foto
: divulgação. Fonte:
-
berco-de-guardias-dos-
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
texto possa ser transmitido com mais riqueza. É o caso dos textos clássicos das
, os
Analectos.Os
mestres não entram na educação à distância. Não tratam de virtualizar, mas de
encarnar, corporificar. Nesse ponto, diferentes áreas vão desenvolver diferentes
protocolos da relação oralidade
-
Na Arquitetura, por exemplo,
podem ser feitas cartilhas de como
fazer as amarrações. O aluno aprende
a fazer uma amarração super
para fazer a casa,
mentalmente. O professor, então, vai
fazendo um desenho dessa
amarração, como Leonardo Da Vinci
fazia... Mestra Lucely Pio
36 ensina o
que fazer com determinada planta
para extração de seu poder de cura. Ela sabe de memória os procedimento
s, mas
vo os escreve.A validação daquele saber é importante para o reconhecimento do
. É preciso fazer uma memória escrita que mostre
que na cabeça daquela pessoa que não escreve, existe um saber tão vasto quanto o
Outra forma de validar aquele conhecimento seria a prova oral, a defesa de
tese, a arguição que está legitimada na universidade e pode ser estendida para a
lo: o Conselho
Universitário
nomeia um relator para a redação do Memorial daquele mestre e o próprio mestre
Lucely Pio em parceria com a professora Silria Santos do curso de Enfermagem atuou de 2010 a
2013 na Disciplina Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais” oferecido pelo Departamento de
pe com o antropocentrismo e nos
ensina que as plantas e animais também podem ser sujeitos. No vídeo Histórias que cultivo
-
se conhecer um pouco Mestra Lucely Pio (disponível em:
Para uma referência sobre o notório saber e os mestres titulados ver: CARVALHO, José Jorge.
Notório Saber para os Mestres e Mestras dos Povos e Comunidades Tradicionais. Em: Mônica
Mundos Possíveis. Culturas em Pensamento
, 69-101.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
faz a sua defesa diante de um Conselho de doutores. Como poderia ser? Mestre
Biu38
, por exemplo, cantaria ou dançaria o Cavalo Marinho?
gera um primeiro processo de qualificação.
O que acaba com a relação entre analfabetismo e ignorância. Os mestres o
uma arma poderosa
contra esse preconceito que é dominante: através do
letramento alguém alcança o saber. Que nada! Há muitos
muito mais do que nós e não o letrados!
Em outro tema levantado no Seminário, o sr. fala da necessidade de dialogar
com a
Teologia da Libertação, com a Pedagogia do Oprimido, o IAP, de
Orlando Fals Borda e com a Universidade dos Movimentos Sociais, que
também são experimentos de trabalho com essas outras epistémes...
38Mestre Biu Alexandre
esteve no quadro de mestre
Tradicionais” oferecido pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília nos anos
2010, 2011,
2013.Mestre Biu Alexandre(CARVALHO, Encontro de Saberes: Bases para um diálogo
interepistêmico, Brasília
2015). No deo Oficinas Culturais de Pernambuco, pode
Mestre Biu em uma aula de Cavalo Marinho (disponível em
em 07/04/2023)
39
“A Cartografia visa funcionar como uma ferramenta multidimensional para a valorização e difusão
dos mestres e dos conhecimentos dos povos tradicionais e também subsidiar as políticas públicas
para a área. Trata-
se de uma tarefa extremamente complexa, tend
e populacionais do país e a diversidade de saberes e expressões culturais aqui existentes. Por isso,
configura-
se como um projeto de longo prazo, que deve envolver várias instâncias em cooperação,
na academia, nas insti
tuiçõesblicas e na rede das culturas populares.
Mestre Biu Alexandre (1943-
12022) íder do Cavalo Marinho Estrela
de Ouro de Condado. Foto: Jan Ribeiro/ Secult PE
https://www.flickr.com/photos/fundarpe/322
m/ (acesso em 27/08/2023)
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
faz a sua defesa diante de um Conselho de doutores. Como poderia ser? Mestre
, por exemplo, cantaria ou dançaria o Cavalo Marinho?
É este o papel da
Cartografia de Mestres e de
Saberes Populares Tradicionais
Ela es a serviço disso. Temos
que mostrar que existe uma
quantidade de mestres das
epistemes alternativas, das
epistemes excluí
censuradas, desqualificadas. O
fato de que são muitos mestres e
mestras reconhecidos como tais já
gera um primeiro processo de qualificação.
O que acaba com a relação entre analfabetismo e ignorância. Os mestres o
contra esse preconceito que é dominante: através do
letramento alguém alcança o saber”. Que nada! muitos
mestres que sabem
muito mais do que nós e não são letrados!
Em outro tema levantado no Seminário, o sr. fala da necessidade de dialogar
Teologia da Libertação, com a Pedagogia do Oprimido, o IAP, de
Orlando Fals Borda e com a Universidade dos Movimentos Sociais, que
também são experimentos de trabalho com essas outras epistémes...
esteve no quadro de mestre
s da disciplina ”Artes e Ofícios dos Saberes
Tradicionais oferecido pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília nos anos
2013.Mestre Biu Alexandre(CARVALHO, Encontro de Saberes: Bases para um diálogo
2015). No vídeo Oficinas Culturais de Pernambuco, pode
Mestre Biu em uma aula de Cavalo Marinho (disponível em
https://youtu.be/7e7J07lGAb8
A Cartografia visa funcionar como uma ferramenta multidimensional para a valorização e difusão
dos mestres e dos conhecimentos dos povos tradicionais e tamm subsidiar as políticas públicas
se de uma tarefa extremamente complexa, tend
o em vista as dimensões territoriais
e populacionais do país e a diversidade de saberes e expressões culturais aqui existentes. Por isso,
se como um projeto de longo prazo, que deve envolver várias instâncias em cooperação,
tuições públicas e na rede das culturas populares”.
(CARVALHO, 2015, p.4).
12022) íder do Cavalo Marinho Estrela
de Ouro de Condado. Foto: Jan Ribeiro/ Secult PE
Fundarpe. Fonte:
https://www.flickr.com/photos/fundarpe/322
32131348/in/photostrea
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
faz a sua defesa diante de um Conselho de doutores. Como poderia ser? Mestre
É este o papel da
Cartografia de Mestres e de
Saberes Populares Tradicionais
39.
Ela está a serviço disso. Temos
que mostrar que existe uma
quantidade de mestres das
epistemes alternativas, das
epistemes excluí
das, sufocadas,
censuradas, desqualificadas. O
fato de que são muitos mestres e
mestras reconhecidos como tais
O que acaba com a relação entre analfabetismo e ignorância. Os mestres são
contra esse preconceito que é dominante: “só através do
mestres que sabem
Em outro tema levantado no Seminário, o sr. fala da necessidade de dialogar
Teologia da Libertação, com a Pedagogia do Oprimido, o IAP, de
Orlando Fals Borda e com a Universidade dos Movimentos Sociais, que
também são experimentos de trabalho com essas outras epistémes...
s da disciplina Artes e Ofícios dos Saberes
Tradicionais oferecido pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília nos anos
2013.Mestre Biu Alexandre(CARVALHO, Encontro de Saberes: Bases para um diálogo
2015). No deo Oficinas Culturais de Pernambuco, pode
-se ver uma aula
https://youtu.be/7e7J07lGAb8
, acessado
A Cartografia visa funcionar como uma ferramenta multidimensional para a valorização e difusão
dos mestres e dos conhecimentos dos povos tradicionais e também subsidiar as políticas públicas
o em vista as dimensões territoriais
e populacionais do país e a diversidade de saberes e expressões culturais aqui existentes. Por isso,
se como um projeto de longo prazo, que deve envolver várias instâncias em cooperação,
(CARVALHO, 2015, p.4).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Eu o sei se
o experimentos com outras episte
mesma luta pela valorização das comunidades que foram excluídas, massacradas,
oprimidas pelo poder hegemônico, no processo colonial e republicano.
No caso da Pedagogia do Oprimido, por exemplo, é como se o Encontro de
Saberes fosse uma es
pécie de seu complementar simétrico. É quase uma invero
da lógica de Paulo Freire em que o analfabeto precisa ser alfabetizado. Todo
momento ele fala do “educando e está preocupado em como letrar o iletrado,
entendendo que o educando o é uma tábula ra
aprenderá virão da compreeno do seu universo de origem, do conhecimento que
ele traz. Paulo Freire está preocupado com os elementos do letrar, enquanto nós
estamos dizendo que o iletrado, ou analfabeto, tem um saber para n
fora de questão alfabetizar o Mestre Zé Jerome ou Mestre Biu. Para ser mestre eles
não precisam ser alfabetizados. A Pedagogia do Oprimido aponta na mesma
direção, mas s avançamos na direção de que entre os iletrados, os analfabetos,
exi
stem mestres que são equivalentes aos professores doutores.
A relação com a Teologia da Libertação é semelhante. O exemplo que
sempre cito é o do Ernesto Cardenal, o poeta da Nicarágua que foi ministro de
cultura, um homem maravilhoso. Ele tem um livro mui
em Solentiname
, o nome de uma ilha na Nicarágua, em que se fazia a cada
domingo a leitura da bíblia e as pessoas eram convidadas a interpretar os textos. As
600 páginas do livro são o resultado da gravação dessa hermenêutica pop
bíblia. O paralelo com o Encontro de Saberes acontece, na medida em que se dá
voz e se reconhece a equivalência entre a teologia escrita e a teologia oral, ao lado
da descrição e do reconhecimento dos personagens que mais se manifestavam a
cada domingo.Na
Investigación Acción Participación
Borda40
, todo o processo de pesquisa é compartilhado e se dá a partir do diálogo. A
experiência do Encontro de Saberes no
40
“Una de las características propias de este método, que lo diferencia de todos los demás, es la
forma colectiva en que se produce el conocimiento, y la colectivización de ese cono
Brandao: 1987, 18 apud CALDERÓN & CARDONA
participativa: aportes em el proceso de formación para la transformación in: I Encuentro hacia una
Pedagogía Emancipatoria em Nuestra América.
Buenos Aires, AR –
acessado em
eman-lc3b3pez-cardona-y-
calderc3b3n.pdf
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
o experimentos com outras episte
mes, mas
mesma luta pela valorização das comunidades que foram excluídas, massacradas,
oprimidas pelo poder hegemônico, no processo colonial e republicano.
No caso da Pedagogia do Oprimido, por exemplo, é como se o Encontro de
pécie de seu complementar simétrico. É quase uma invero
da lógica de Paulo Freire em que o analfabeto precisa ser alfabetizado. Todo
momento ele fala do educando” e está preocupado em como letrar o iletrado,
entendendo que o educando não é uma tábula ra
sa. As primeiras palavras que
aprenderá virão da compreensão do seu universo de origem, do conhecimento que
ele traz. Paulo Freire está preocupado com os elementos do “letrar, enquanto nós
estamos dizendo que o iletrado, ou analfabeto, tem um saber para n
fora de questão alfabetizar o Mestre Jerome ou Mestre Biu. Para ser mestre eles
não precisam ser alfabetizados. A Pedagogia do Oprimido aponta na mesma
direção, mas nós avançamos na direção de que entre os iletrados, os analfabetos,
stem mestres que são equivalentes aos professores doutores.
A relação com a Teologia da Libertação é semelhante. O exemplo que
sempre cito é o do Ernesto Cardenal, o poeta da Nicarágua que foi ministro de
cultura, um homem maravilhoso. Ele tem um livro mui
to bonito chamado
, o nome de uma ilha na Nicarágua, em que se fazia a cada
domingo a leitura da bíblia e as pessoas eram convidadas a interpretar os textos. As
600 páginas do livro o o resultado da gravação dessa hermenêutica pop
bíblia. O paralelo com o Encontro de Saberes acontece, na medida em que se dá
voz e se reconhece a equivalência entre a teologia escrita e a teologia oral, ao lado
da descrição e do reconhecimento dos personagens que mais se manifestavam a
Investigación Acción Participación
-IAP
, proposta por Orlando Fals
, todo o processo de pesquisa é compartilhado e se a partir do diálogo. A
experiência do Encontro de Saberes no
Centro de Saberes e Trocas Tecnológicas
Una de las características propias de este método, que lo diferencia de todos los demás, es la
forma colectiva en que se produce el conocimiento, y la colectivización de ese cono
Brandao: 1987, 18 apud CALDERÓN & CARDONA
-
“Orlando Fals Borda y la investigación acción
participativa: aportes em el proceso de formación para la transformación” in: I Encuentro hacia una
Pedagogía Emancipatoria em Nuestra América.
Cen
tro Cultural de la Cooperacíón Floreal Gorini.
acessado em
http://www.javeriana.edu.co/blogs/boviedo/files/pedagogc3a
calderc3b3n.pdf
acessado em 06/04/2016)
634
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
mes, mas
experimentos da
mesma luta pela valorização das comunidades que foram excluídas, massacradas,
oprimidas pelo poder hegemônico, no processo colonial e republicano.
No caso da Pedagogia do Oprimido, por exemplo, é como se o Encontro de
pécie de seu complementar simétrico. É quase uma inversão
da lógica de Paulo Freire em que o analfabeto precisa ser alfabetizado. Todo
momento ele fala do educando e está preocupado em como letrar o iletrado,
sa. As primeiras palavras que
aprenderá virão da compreeno do seu universo de origem, do conhecimento que
ele traz. Paulo Freire está preocupado com os elementos do letrar”, enquanto nós
estamos dizendo que o iletrado, ou analfabeto, tem um saber para n
os ensinar. Está
fora de questão alfabetizar o Mestre Zé Jerome ou Mestre Biu. Para ser mestre eles
não precisam ser alfabetizados. A Pedagogia do Oprimido aponta na mesma
direção, mas nós avançamos na direção de que entre os iletrados, os analfabetos,
A relação com a Teologia da Libertação é semelhante. O exemplo que
sempre cito é o do Ernesto Cardenal, o poeta da Nicarágua que foi ministro de
to bonito chamado
Evangelho
, o nome de uma ilha na Nicarágua, em que se fazia a cada
domingo a leitura da bíblia e as pessoas eram convidadas a interpretar os textos. As
600 páginas do livro o o resultado da gravação dessa hermenêutica pop
ular da
bíblia. O paralelo com o Encontro de Saberes acontece, na medida em que se
voz e se reconhece a equivalência entre a teologia escrita e a teologia oral, ao lado
da descrição e do reconhecimento dos personagens que mais se manifestavam a
, proposta por Orlando Fals
, todo o processo de pesquisa é compartilhado e se dá a partir do diálogo. A
Centro de Saberes e Trocas Tecnológicas
Una de las características propias de este método, que lo diferencia de todos los demás, es la
forma colectiva en que se produce el conocimiento, y la colectivización de ese cono
cimiento.” (Fals y
Orlando Fals Borda y la investigación acción
participativa: aportes em el proceso de formación para la transformación in: I Encuentro hacia una
tro Cultural de la Cooperacíón Floreal Gorini.
http://www.javeriana.edu.co/blogs/boviedo/files/pedagogc3a
das-
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
nas Comunidades
Ywalapiti do Alto Xingu
compartilhamento de conhecimento do IAP.
Movimentos Populares é mais distante. O que Boaventura de Sousa Santos está
chamando de Universidade dos Movimentos P
universidade, mas um termo metafórico. Na verdade é um trabalho de oficinas e
encontros de preparação de quadros dos Movimentos Sociais, em geral em fins de
semana, para uma intervenção na realidade. Muitos dos Mestres vêm da
comunidades e estão, também, na luta dos Movimentos Sociais. É o caso
41 41Kupati Inukusha, o
Centro de Saberes e Trocas Tecnológicas nas Comunidades Ywalapiti do Alto
Xingu, foi criado a partir da parceria articulada pela nação indígena Ywalapiti com o Ministério da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o
da iniciativa a Universidade de Brasília (UnB) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e
Tecnológico (CNPq).
https://redecidadedigital.com.br/noticias/mctic
trocas-tecnologicas-de-
comunidade
42Antônio Bispo, ou Nego Bispo
, como costuma ser chamado, é um intelectual formado a partir das
suas vivências cotidianas no contexto quilombola. Nascido num lugar chamado Francinópolis no
Piauí, Bispo estudou até a 8ª série. Tem o Ensino Fundamental do ponto de vista da
instituciona
lidade e integrou o corpo de mestres na Disciplina Artes e Ofícios dos Saberes
Tradicionais” oferecido pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília em 2012 . Os
saberes quilombolas foram enquadrados no componente curricular de filosofia.
quilombos: modos e significados é um dos livros de Antônio Bispo publicado em 2015 sob
coordenação do professor José Jorge de Carvalho. No canal de Youtube do INCTI é posvel assistir
uma das primeiras participações do Mestre Nego Bispo c
Carvalho (disponível em
https://youtu.be/twpSYJO_QtI?list=PL04336F67AC5C4E6A
07/04/23)
Foto:
Mestre Antônio Bispo dos Santos, Nego Bi
https://www.brasildefato.com.br/2019/11/13/nego
na-
ufrn/ (acessado em 27/08/2023).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Ywalapiti do Alto Xingu
41 se aproxima muito
desse prinpio de
compartilhamento de conhecimento do IAP.
a
relação com a Universidade dos
Movimentos Populares é mais distante. O que Boaventura de Sousa Santos está
chamando de Universidade dos Movimentos P
opulares, não é exatamente uma
universidade, mas um termo metafórico. Na verdade é um trabalho de oficinas e
encontros de preparação de quadros dos Movimentos Sociais, em geral em fins de
semana, para uma intervenção na realidade. Muitos dos Mestres vêm da
comunidades e estão, também, na luta dos Movimentos Sociais. É o caso
Nego Bispo42
CONAQ
Nacional das Comunidades
Quilombolas. Os líderes dos
Movimentos Sociais, muitas
vezes estão próximos dos
mestres
sem o serem,
mestres não o,
necessariamente, lideranças
dos Movimentos Sociais. Na
Universidade dos Movimentos
Centro de Saberes e Trocas Tecnológicas nas Comunidades Ywalapiti do Alto
Xingu, foi criado a partir da parceria articulada pela nação indígena Ywalapiti com o Ministério da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o
INCT de Inclusão Também
da iniciativa a Universidade de Brasília (UnB) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e
https://redecidadedigital.com.br/noticias/mctic
-inaugura-
centro
comunidade
-indigena-no-alto-xingu/6833
. Acesso em: 29/03/2023
, como costuma ser chamado, é um intelectual formado a partir das
suas vincias cotidianas no contexto quilombola. Nascido num lugar chamado Francinópolis no
Piauí, Bispo estudou até a 8ª série. Tem o Ensino Fundamental do ponto de vista da
lidade e integrou o corpo de mestres na Disciplina ”Artes e Ofícios dos Saberes
Tradicionais oferecido pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília em 2012 . Os
saberes quilombolas foram enquadrados no componente curricular de filosofia.
“Colonização e
quilombos: modos e significados é um dos livros de Antônio Bispo publicado em 2015 sob
coordenação do professor José Jorge de Carvalho. No canal de Youtube do INCTI é posvel assistir
uma das primeiras participações do Mestre Nego Bispo c
omo professor parceiro de José Jorge de
https://youtu.be/twpSYJO_QtI?list=PL04336F67AC5C4E6A
Mestre Antônio Bispo dos Santos, Nego Bi
spo. Foto: Guilherme Fagundes. Fonte:
https://www.brasildefato.com.br/2019/11/13/nego
-bispo-pensador-quilombola-
piauiense
ufrn/ (acessado em 27/08/2023).
635
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
desse princípio de
relação com a Universidade dos
Movimentos Populares é mais distante. O que Boaventura de Sousa Santos está
opulares, não é exatamente uma
universidade, mas um termo metafórico. Na verdade é um trabalho de oficinas e
encontros de preparação de quadros dos Movimentos Sociais, em geral em fins de
semana, para uma intervenção na realidade. Muitos dos Mestres vêm da
s
comunidades e estão, também, na luta dos Movimentos Sociais. É o caso
do Mestre
que participa da
Coordenação
Nacional das Comunidades
Quilombolas. Os líderes dos
Movimentos Sociais, muitas
vezes estão próximos dos
sem o serem,
mas os
mestres não são,
necessariamente, lideranças
dos Movimentos Sociais. Na
Universidade dos Movimentos
Centro de Saberes e Trocas Tecnológicas nas Comunidades Ywalapiti do Alto
Xingu, foi criado a partir da parceria articulada pela nação indígena Ywalapiti com o Ministério da
INCT de Inclusão Também
participam
da iniciativa a Universidade de Brasília (UnB) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e
centro
-de-saberes-e-
. Acesso em: 29/03/2023
, como costuma ser chamado, é um intelectual formado a partir das
suas vincias cotidianas no contexto quilombola. Nascido num lugar chamado Francinópolis no
Piauí, Bispo estudou até a 8ª série. Tem o Ensino Fundamental do ponto de vista da
lidade e integrou o corpo de mestres na Disciplina Artes e Ofícios dos Saberes
Tradicionais oferecido pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília em 2012 . Os
Colonização e
quilombos: modos e significados” é um dos livros de Antônio Bispo publicado em 2015 sob
coordenação do professor José Jorge de Carvalho. No canal de Youtube do INCTI é possível assistir
omo professor parceiro de José Jorge de
https://youtu.be/twpSYJO_QtI?list=PL04336F67AC5C4E6A
, acessado em
spo. Foto: Guilherme Fagundes. Fonte:
piauiense
-lanca-livro-
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
Populares a preocupação é preparar quadros dos Movimentos Sociais (de
prefer
ência letrados ou com maior letramento) para o diálogo com o Estado. São
apresentadas ferramentas jurídicas, de vários tipos, os procedimentos burocráticos
para entrar em negociação com o Estado, no sentido de uma
democracia radical e de um
Saberes aponta para a importância das Mestras e Mestres desses saberes
excluídos como forma de efetivar a entrada desses saberes na universidade, na
primeira pessoa.
Há muito o que aprimorar nesse proce
os mestres e seus saberes, mas ainda não damos conta de entender
completamente os processos de transmissão daqueles saberes excluídos. Esse é
um mundo vasto demais. Há pedagogias próprias.
Mestra Lucely, por exemplo,
cura. Como é esse processo de transmissão? Olhar, perceber, sentir, ver a vibração
da planta... a Universidade ainda não está preparada para esse terceiro ponto do
Encontro de Saberes que já enuncio: trata
também, do intuitivo.
Como no
I shin den shin
pensando e meu coração sente o que o seu coração está sentindo, os Mestres
desenvolvem isso no processo de transmissão, no aprendiza
relações humanas quanto com as sua relação com os outros seres que habitam o
cosmos: plantas, animais, fenômenos
Encontro de Saberes como um movimento no universo das epistemologias do
cosmos vivo.
Rompemos com isso até por causa do modelo newtoniano e galileano que
não precisa do coração com o coração, ficando apenas a me
da exegese da escrita. Muitos dos saberes que estamos lidando e nos aproximando,
no encontro com os Mestres, vêm completamente do
espiritualizadas por causa disso.
43
Ditado japonês de tradição zen
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
Populares a preocupação é preparar quadros dos Movimentos Sociais (de
ência letrados ou com maior letramento) para o diálogo com o Estado. São
apresentadas ferramentas jurídicas, de vários tipos, os procedimentos burocráticos
para entrar em negociação com o Estado, no sentido de uma
democracia radical e de um
pluralismo jurídico.
A diferença é que o Encontro de
Saberes aponta para a importância das Mestras e Mestres desses saberes
excluídos como forma de efetivar a entrada desses saberes na universidade, na
Há muito o que aprimorar nesse proce
sso do Encontro de Saberes. Trazemos
os mestres e seus saberes, mas ainda não damos conta de entender
completamente os processos de transmissão daqueles saberes excluídos. Esse é
um mundo vasto demais. Há pedagogias pprias.
Mestra Lucely, por exemplo,
aprendeu com a avó a encontrar plantas de
cura. Como é esse processo de transmissão? Olhar, perceber, sentir, ver a vibração
da planta... a Universidade ainda não está preparada para esse terceiro ponto do
Encontro de Saberes que enuncio: trata
-se do c
ampo psíquico, do psicológico e,
I shin den shin
43:
“minha mente sabe o que a sua mente está
pensando e meu coração sente o que o seu coração está sentindo, os Mestres
desenvolvem isso no processo de transmissão, no aprendiza
do
relações humanas quanto com as sua relação com os outros seres que habitam o
cosmos: plantas, animais, fenômenos
da natureza. Daí essa minha conceituação do
Encontro de Saberes como um movimento no universo das epistemologias do
Rompemos com isso até por causa do modelo newtoniano e galileano que
não precisa do coração com o coração, ficando apenas a me
nte, através da escrita,
da exegese da escrita. Muitos dos saberes que estamos lidando e nos aproximando,
no encontro com os Mestres, vêm completamente do
I shin den shin
espiritualizadas por causa disso.
Ditado japonês de tradição zen
-budista.
636
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
Populares a preocupação é preparar quadros dos Movimentos Sociais (de
ência letrados ou com maior letramento) para o diálogo com o Estado. São
apresentadas ferramentas jurídicas, de vários tipos, os procedimentos burocráticos
para entrar em negociação com o Estado, no sentido de uma
cidadania, uma
A diferença é que o Encontro de
Saberes aponta para a importância das Mestras e Mestres desses saberes
excluídos como forma de efetivar a entrada desses saberes na universidade, na
sso do Encontro de Saberes. Trazemos
os mestres e seus saberes, mas ainda não damos conta de entender
completamente os processos de transmissão daqueles saberes excluídos. Esse é
aprendeu com a avó a encontrar plantas de
cura. Como é esse processo de transmissão? Olhar, perceber, sentir, ver a vibração
da planta... a Universidade ainda não está preparada para esse terceiro ponto do
ampo psíquico, do psicológico e,
minha mente sabe o que a sua mente está
pensando e meu coração sente o que o seu coração está sentindo”, os Mestres
do
tanto nas suas
relações humanas quanto com as sua relação com os outros seres que habitam o
da natureza. Daí essa minha conceituação do
Encontro de Saberes como um movimento no universo das epistemologias do
Rompemos com isso até por causa do modelo newtoniano e galileano que
nte, através da escrita,
da exegese da escrita. Muitos dos saberes que estamos lidando e nos aproximando,
I shin den shin
. São relações
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
O tema da espiritualidade e sua tota
dos temas destacados como necessário, nesse debate. Como propor seu
reconhecimento?
Para mim, a questão espiritual é uma consequência inevitável da in
proposta pelo Encontro de Saberes. Nas reformas napoleô
universidade iluminista europeia, vários saberes chamados esotéricos ficaram de
fora. Muitas das universidades alemãs, até meados de 1700 reconheciam os
saberes dos Maçons, Rosa Cruze de demais tradições que eram também
estudadas. Co
m a consolidação da revolução científica todo esse conhecimento saiu
da universidade: as Matemáticas Qualitativas, as Geometrias Qualitativas e
Simbólicas perderam seu lugar. F
Euclidiana e Newtoniana, que cresceram ma
fantásticos, que são celebrados até hoje.
A espiritualidade foi deixada de fora não porque ela fosse dogmática. Diante
daquele panorama, decidiu
Napoleão acabou co
m todas as ordens monásticas devotadas à meditação e à
contemplação.Thomas Merton
XX, cuja obra se pautou também pela teoria crítica, anti
um herdeiro dos monges beneditinos que
Estados Unidos em meados do culo XIX.
esse arcabouço que sustentava a civilização ocidental, também foi perseguido.
Sistemas de conhecimento, de autoconhecimento, trabalhos com
consciência, todos ficaram de fora. Foi o caso do sistema meditativo da Igreja
Ortodoxa, a chamada Oração do Coração, a Hequia, a Oração Contemplativa, a
Shamata do budismo tibetano, todos os sistemas de Yoga, o Zen, o sistema de
meditação daoísta,
as tradições xamânicas, os vários sistemas de transe das
religiões de matriz africana. Nada disso tem a ver com o dogma, pois não podem ser
44 Thomas Merton (1915–
1968) foi um escritor c
Monge trapista da Abadia de Gethsemani, Kentucky. Poeta, ativista social, dedicou
religiões comparadas, tendo escrito mais de setenta livros, em que a espiritualidade foi um tema
constante.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
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Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
O tema da espiritualidade e sua tota
l exclusão da Universidade foi também um
dos temas destacados como necessário, nesse debate. Como propor seu
Para mim, a questão espiritual é uma consequência inevitável da in
proposta pelo Encontro de Saberes. Nas reformas napoleô
nica e humboldtiana da
universidade iluminista europeia, vários saberes chamados esotéricos ficaram de
fora. Muitas das universidades alemãs, até meados de 1700 reconheciam os
saberes dos Maçons, Rosa Cruze de demais tradições que eram também
m a consolidação da revolução científica todo esse conhecimento saiu
da universidade: as Matemáticas Qualitativas, as Geometrias Qualitativas e
Simbólicas perderam seu lugar. F
icaram apenas as fórmulas da Geometria
Euclidiana e Newtoniana, que cresceram ma
ravilhosamente e deram resultados
fantásticos, que o celebrados até hoje.
A espiritualidade foi deixada de fora não porque ela fosse dogmática. Diante
daquele panorama, decidiu
-
se tirar a religião, os místicos cristãos ficaram de fora.
m todas as ordens monásticas devotadas à meditação e à
contemplação.Thomas Merton
44
, por exemplo, um dos grandes místicos do século
XX, cuja obra se pautou também pela teoria crítica, anti
-
imperialista e antirracista é
um herdeiro dos monges beneditinos que
vieram da França para o Kentucky, nos
Estados Unidos em meados do século XIX.
Simultaneamente, toda espiritualidade,
esse arcabouço que sustentava a civilização ocidental, também foi perseguido.
Sistemas de conhecimento, de autoconhecimento, trabalhos com
consciência, todos ficaram de fora. Foi o caso do sistema meditativo da Igreja
Ortodoxa, a chamada Oração do Coração, a Hesíquia, a Oração Contemplativa, a
Shamata do budismo tibetano, todos os sistemas de Yoga, o Zen, o sistema de
as tradições xamânicas, os vários sistemas de transe das
religiões de matriz africana. Nada disso tem a ver com o dogma, pois não podem ser
1968) foi um escritor c
atólico do século XX de nacionalidade francesa.
Monge trapista da Abadia de Gethsemani, Kentucky. Poeta, ativista social, dedicou
religiões comparadas, tendo escrito mais de setenta livros, em que a espiritualidade foi um tema
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
l exclusão da Universidade foi também um
dos temas destacados como necessário, nesse debate. Como propor seu
Para mim, a questão espiritual é uma consequência inevitável da in
iciativa
nica e humboldtiana da
universidade iluminista europeia, vários saberes chamados esotéricos ficaram de
fora. Muitas das universidades alemãs, até meados de 1700 reconheciam os
saberes dos Maçons, Rosa Cruze de demais tradições que eram também
m a consolidação da revolução científica todo esse conhecimento saiu
da universidade: as Matemáticas Qualitativas, as Geometrias Qualitativas e
icaram apenas as fórmulas da Geometria
ravilhosamente e deram resultados
A espiritualidade foi deixada de fora não porque ela fosse dogmática. Diante
se tirar a religião, os místicos cristãos ficaram de fora.
m todas as ordens monásticas devotadas à meditação e à
, por exemplo, um dos grandes místicos do século
imperialista e antirracista é
vieram da França para o Kentucky, nos
Simultaneamente, toda espiritualidade,
esse arcabouço que sustentava a civilização ocidental, também foi perseguido.
Sistemas de conhecimento, de autoconhecimento, trabalhos com
a expansão da
consciência, todos ficaram de fora. Foi o caso do sistema meditativo da Igreja
Ortodoxa, a chamada Oração do Coração, a Hequia, a Oração Contemplativa, a
Shamata do budismo tibetano, todos os sistemas de Yoga, o Zen, o sistema de
as tradições xamânicas, os vários sistemas de transe das
religiões de matriz africana. Nada disso tem a ver com o dogma, pois não podem ser
atólico do século XX de nacionalidade francesa.
Monge trapista da Abadia de Gethsemani, Kentucky. Poeta, ativista social, dedicou
-se ao estudo de
religiões comparadas, tendo escrito mais de setenta livros, em que a espiritualidade foi um tema
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
impostos de fora para dentro, visto que o trabalhos de vida interior e como tais
gozam de autonomia fa
ce às ideologias sectárias, fundamentalistas ou autoritárias.
A riqueza do conhecimento da vida interior se empobreceu na universidade
que foi simplificada pelos egos hiper desejantes,
mais coisas, reforçando o nível primár
realidade. Uma parte da Psicologia ainda trabalhará com outros níveis do ego, mas
a universidade como um todo perdeu o horizonte da espiritualidade, que seria o
trabalho da liberdade interior, o que leva,
às perversidades consequentes. Dessa forma, a universidade não cumpre a sua
promessa de sabedoria, porque a sabedoria passaria necessariamente pela ativação
simultânea do olhar interno e do externo.
O Encontro de Sa
beres tem uma epistemologia análoga ao que se poderia
chamar de Epistemologia da Espiritualidade. Um modelo que talvez tenha algum
paralelo com o cânon de Confúcio, dos quatro livros do confucionismo: o Lun Yün ou
os Analectos de Confúcio, o livro de Mênci
(que é um texto precioso) e o
epistemologia, expressa no início do
Estado, precisa organizar as regiões, quando organiza as regiões, tem
as comunidades, quando organiza as comunidades, precisa organizar a família que
para se harmonizar, depende da harmonização de si mesmo, do controle das
emoções, da ida ao núcleo para, então, percorrer o caminho de volta e, finalmente,
ajust
ar o Império. Todos os seres humanos, do imperador ao camponês mais
comum, têm que fazer esse ajuste. O que significa que quando olhamos para fora,
estamos olhando para dentro, simultaneamente. É esse o lugar da vida interior no
conhecimento! Não se trata,
mantiveram vivas as técnicas e os métodos de se olhar para dentro para que todos
pudessem se beneficiar disso num certo momento. Para que essas tradições se
mantenham vivas, no entanto, é preciso dedic
mestres espirituais praticarem o tempo todo e, então, irradiarem aos interessados e
discípulos.
Imagino que a situação da Mestra Lucely seja essa. Quando vê uma planta,
olha objetivamente para fora, mapeia a sua morfologia
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
impostos de fora para dentro, visto que são trabalhos de vida interior e como tais
ce às ideologias sectárias, fundamentalistas ou autoritárias.
A riqueza do conhecimento da vida interior se empobreceu na universidade
que foi simplificada pelos egos hiper desejantes,
consumistas, que querem cada vez
mais coisas, reforçando o nível primár
io da identificação egoica do indivíduo com a
realidade. Uma parte da Psicologia ainda trabalhará com outros veis do ego, mas
a universidade como um todo perdeu o horizonte da espiritualidade, que seria o
trabalho da liberdade interior, o que leva,
muitas vezes, aos bloqueios
às perversidades consequentes. Dessa forma, a universidade o cumpre a sua
promessa de sabedoria, porque a sabedoria passaria necessariamente pela ativação
simultânea do olhar interno e do externo.
beres tem uma epistemologia análoga ao que se poderia
chamar de Epistemologia da Espiritualidade. Um modelo que talvez tenha algum
paralelo com o non de Confúcio, dos quatro livros do confucionismo: o Lun Yün ou
os Analectos de Confúcio, o livro de Mênci
o, o Zhong Yong -
A Doutrina do Meio
(que é um texto precioso) e o
Da Xue -
O Grande Ensinamento. Segundo essa
epistemologia, expressa no início do
Da Xue
, o imperador, quando organiza o
Estado, precisa organizar as regiões, quando organiza as regiões, tem
as comunidades, quando organiza as comunidades, precisa organizar a família que
para se harmonizar, depende da harmonização de si mesmo, do controle das
emoções, da ida ao núcleo para, então, percorrer o caminho de volta e, finalmente,
ar o Império. Todos os seres humanos, do imperador ao camponês mais
comum, têm que fazer esse ajuste. O que significa que quando olhamos para fora,
estamos olhando para dentro, simultaneamente. É esse o lugar da vida interior no
conhecimento! Não se trata,
apenas, da vida interior! As tradições contemplativas
mantiveram vivas as técnicas e os métodos de se olhar para dentro para que todos
pudessem se beneficiar disso num certo momento. Para que essas tradições se
mantenham vivas, no entanto, é preciso dedic
ação completa. Daí os monges, os
mestres espirituais praticarem o tempo todo e, então, irradiarem aos interessados e
Imagino que a situação da Mestra Lucely seja essa. Quando vê uma planta,
olha objetivamente para fora, mapeia a sua morfologia
e, ao mesmo tempo, olha
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
impostos de fora para dentro, visto que o trabalhos de vida interior e como tais
ce às ideologias sectárias, fundamentalistas ou autoritárias.
A riqueza do conhecimento da vida interior se empobreceu na universidade
consumistas, que querem cada vez
io da identificação egoica do indivíduo com a
realidade. Uma parte da Psicologia ainda trabalhará com outros níveis do ego, mas
a universidade como um todo perdeu o horizonte da espiritualidade, que seria o
muitas vezes, aos bloqueios
emocionais e
às perversidades consequentes. Dessa forma, a universidade não cumpre a sua
promessa de sabedoria, porque a sabedoria passaria necessariamente pela ativação
beres tem uma epistemologia análoga ao que se poderia
chamar de Epistemologia da Espiritualidade. Um modelo que talvez tenha algum
paralelo com o non de Confúcio, dos quatro livros do confucionismo: o Lun Yün ou
A Doutrina do Meio
O Grande Ensinamento. Segundo essa
, o imperador, quando organiza o
Estado, precisa organizar as regiões, quando organiza as regiões, tem
que organizar
as comunidades, quando organiza as comunidades, precisa organizar a família que
para se harmonizar, depende da harmonização de si mesmo, do controle das
emoções, da ida ao núcleo para, então, percorrer o caminho de volta e, finalmente,
ar o Império. Todos os seres humanos, do imperador ao camponês mais
comum, têm que fazer esse ajuste. O que significa que quando olhamos para fora,
estamos olhando para dentro, simultaneamente. É esse o lugar da vida interior no
apenas, da vida interior! As tradições contemplativas
mantiveram vivas as técnicas e os métodos de se olhar para dentro para que todos
pudessem se beneficiar disso num certo momento. Para que essas tradições se
ação completa. D os monges, os
mestres espirituais praticarem o tempo todo e, então, irradiarem aos interessados e
Imagino que a situação da Mestra Lucely seja essa. Quando uma planta,
e, ao mesmo tempo, olha
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
para dentro, percebendo o reflexo da planta em si mesma. A capacidade de
encontrar uma planta que cura é, então, a capacidade de olhar para dentro e para
fora. O congado do Mestre Jo Jerome é também um olhar para dentro, senão não
se consegue cantar, dançar e bater aqueles bastões simultaneamente. Ficamos num
estado de meditação ativa parecido com as danças sagradas dos sufis da Ásia
Central promovidas por Gurdjieff
Mestre Bíu faz o
mesmo com os arcos que criam diferentes figuras vistas de cima,
como num caleidoscópio. São infinitas figuras com os arcos dobrados ou cruzados,
com simetrias e inversões e as pessoas fazem aquilo dançando, o que é uma
maneira de organizar, também, essa si
projetada para fora é uma retificação de uma simetria interna.
É um trabalho espiritual, não é um trabalho estético. Você sai centrado da
Mestre Bisp
o, por exemplo, contava de Antônio Máximo qu
45N
ascido na Armênia, Georges Ivanovitch Gurdjieff (1872
“permite ao ser humano desenvolver suas capacidades latentes
forma integrada” e no qual o movimento é peça importante
https://gurdjieffsp.org.br/ -
acessado em 27/04/2023).
46
O mestre Seu Badu nasceu em 1932 e vive no Quilombo do Mato do Tição, Jaboticatubas, MG.
Ele é mestre candombeiro (uma manifestação de matriz afro
do Rosário), mestre em encomendação das almas, folia de reis e, destacadamente, mestre terapeuta
no cultivo da agricultura livre de agrotóxicos, e na promoção da saúde com recursos tradicionais.
(
https://www.saberestradicionais.org/retrato
2704/2023). No canal de youtube Saberes Tradicionais UFMG, o vídeo Retrato do Mestre Seu Badu
Silvio da Siqueira, re
gistra uma aula do mestre para o Encontro de Saberes da UFMG:
https://youtu.be/76ZS9ugqwjA -
acessado em 27/04/2023).
Mestre Silvio da Siqueira, Seu Badu. Foto: Divulgação. Fonte:
https://www.saberestradicionais.org/retrato
siqueira-seu-badu/ (ace
ssado em 27/08/2023).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
para dentro, percebendo o reflexo da planta em si mesma. A capacidade de
encontrar uma planta que cura é, então, a capacidade de olhar para dentro e para
fora. O congado do Mestre José Jerome é também um olhar para dentro, senão não
se consegue cantar, dançar e bater aqueles bastões simultaneamente. Ficamos num
estado de meditação ativa parecido com as danças sagradas dos sufis da Ásia
Central promovidas por Gurdjieff
45
. São danças que retificam a razão e as emoções.
mesmo com os arcos que criam diferentes figuras vistas de cima,
como num caleidoscópio. São infinitas figuras com os arcos dobrados ou cruzados,
com simetrias e inveres e as pessoas fazem aquilo dançando, o que é uma
maneira de organizar, também, essa si
metria interna. Dessa forma, a simetria
projetada para fora é uma retificação de uma simetria interna.
É um trabalho espiritual, não é um trabalho estético. Você sai centrado da
experiência do Cavalo Marinho ou
do Congado que são, ao mesmo
tempo, um conhecimento objetivo
do canto, da dança, do movimento
e um conhecimento subjetivo.
Mestres estão todos nessa linha,
não vejo um que não esteja
daquele que faz artesanato, ao que
faz arquitetura ou agroecologia. O
que é a terra para o Mestre Badu
que nos ensina a energizá
o, por exemplo, contava de Antônio Máximo qu
e planta nos lugares mais
ascido na Armênia, Georges Ivanovitch Gurdjieff (1872
-
1949) desenvolveu um sistema que
permite ao ser humano desenvolver suas capacidades latentes
físicas, mentais e emocionais
forma integrada e no qual o movimento é peça importante
. (Instituto Gu
rdjieff SP
acessado em 27/04/2023).
O mestre Seu Badu nasceu em 1932 e vive no Quilombo do Mato do Tição, Jaboticatubas, MG.
Ele é mestre candombeiro (uma manifestação de matriz afro
-
brasileira: candombe de Nossa Senhora
do Rosário), mestre em encomendação das almas, folia de reis e, destacadamente, mestre terapeuta
no cultivo da agricultura livre de agrotóxicos, e na promoção da saúde com recursos tradicionais.
https://www.saberestradicionais.org/retrato
-do-mestre-silvio-da-siqueira-seu-
badu/
2704/2023). No canal de youtube Saberes Tradicionais UFMG, o vídeo Retrato do Mestre Seu Badu
gistra uma aula do mestre para o Encontro de Saberes da UFMG:
acessado em 27/04/2023).
Mestre Silvio da Siqueira, Seu Badu. Foto: Divulgação. Fonte:
https://www.saberestradicionais.org/retrato
-do-mestre-silvio-da-
ssado em 27/08/2023).
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
para dentro, percebendo o reflexo da planta em si mesma. A capacidade de
encontrar uma planta que cura é, então, a capacidade de olhar para dentro e para
fora. O congado do Mestre Jo Jerome é também um olhar para dentro, senão não
se consegue cantar, dançar e bater aqueles bastões simultaneamente. Ficamos num
estado de meditação ativa parecido com as danças sagradas dos sufis da Ásia
. São danças que retificam a razão e as emoções.
mesmo com os arcos que criam diferentes figuras vistas de cima,
como num caleidoscópio. São infinitas figuras com os arcos dobrados ou cruzados,
com simetrias e inveres e as pessoas fazem aquilo dançando, o que é uma
metria interna. Dessa forma, a simetria
É um trabalho espiritual, não é um trabalho estético. Você sai centrado da
experiência do Cavalo Marinho ou
do Congado que são, ao mesmo
tempo, um conhecimento objetivo
do canto, da dança, do movimento
e um conhecimento subjetivo.
Os
Mestres estão todos nessa linha,
não vejo um que o esteja
-
daquele que faz artesanato, ao que
faz arquitetura ou agroecologia. O
que é a terra para o Mestre Badu
46,
que nos ensina a energizá
-la?
e planta nos lugares mais
1949) desenvolveu um sistema que
físicas, mentais e emocionais
– de
rdjieff SP
-
O mestre Seu Badu nasceu em 1932 e vive no Quilombo do Mato do Tição, Jaboticatubas, MG.
brasileira: candombe de Nossa Senhora
do Rosário), mestre em encomendação das almas, folia de reis e, destacadamente, mestre terapeuta
no cultivo da agricultura livre de agrotóxicos, e na promoção da saúde com recursos tradicionais.”
badu/
- acessado em
2704/2023). No canal de youtube Saberes Tradicionais UFMG, o vídeo Retrato do Mestre Seu Badu
-
gistra uma aula do mestre para o Encontro de Saberes da UFMG:
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
impressionantes e está colhendo cacau no semi
objetivo sobre o solo e as plantas, mas tem também conhecimento subjetivo ali.
A espiritualidade perpassa a proposta dessas epistemes que o Encontro de
S
aberes traz porque essas pessoas aprenderam em um sistema de transmiso que
não a censurou, ao contrário, estava integrado a ela. Tivemos que aprender, na
escola, a deixar a espiritualidade para fora. Então ganhamos com a presença de
pessoas que não a exc
luem e que não censuraram sua espiritualidade plena em
cada coisa que realizam.
Os alunos têm a oportunidade de perceber o fascínio e a amorosidade dos
mestres que são, também, elementos da espiritualidade. O que não quer dizer que
eles sejam todos santos
normalmente têm uma forma mais centrada de lidar com as dificuldades.
vezes silenciam sobre seus problemas e esperam o momento oportuno para saná
los.
Quando Mestre Jerome mostrou que está com
porque não tinha médico, ao longo de sua longa vida, por exemplo, não falou num
tom de queixa, mas num tom direto, natural, espontâneo: Isto é como eu estou
agora”. “Essa é a minha situação. Eu sou isso.
Nina Laranjeira47
falou
relacionado a essa questão e explica por que os estudantes ficam tão fascinados
pelos mestres. É que os mestres o o que eles o. Eu não posso ser outra coisa
que não o que eu sou. Não é o que todos deveríamos
um ego-
ideal completamente fantasioso, uma fantasia de perfeição que as pessoas
não alcançam. Isso leva a um sofrimento interno que, no limite, faz com que sejamos
perversos uns com os outros. Há competições loucas, sem nenhu
interna ficou grande demais e não há nenhuma resignação em relação à essa
condição de incompletude, de imperfeição ou de ignorância. Os mestres sabem que
são ignorantes em muitas coisas, eles não têm uma fantasia de onisciência que é o
que a academia estimula.
Este é o primeiro passo da espiritualidade: vo começar a se enxergar, a
47Nina Paula Ferreira Laranjeira
é Pesquisadora do NASPA (Núcleo de Alimentação Sustentável e
Produção Agroecológica) efoi uma das professoras parceiras do Encontro de Saberes da UnB.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
impressionantes e está colhendo cacau no semi
-
árido! Ele tem um conhecimento
objetivo sobre o solo e as plantas, mas tem também conhecimento subjetivo ali.
A espiritualidade perpassa a proposta dessas epistemes que o Encontro de
aberes traz porque essas pessoas aprenderam em um sistema de transmiso que
não a censurou, ao contrário, estava integrado a ela. Tivemos que aprender, na
escola, a deixar a espiritualidade para fora. Então ganhamos com a presença de
luem e que não censuraram sua espiritualidade plena em
Os alunos têm a oportunidade de perceber o fascínio e a amorosidade dos
mestres que são, também, elementos da espiritualidade. O que o quer dizer que
eles sejam todos santos
ou seres perfeitos. Nada disso. Vivem conflitos, mas
normalmente têm uma forma mais centrada de lidar com as dificuldades.
vezes silenciam sobre seus problemas e esperam o momento oportuno para saná
Quando Mestre Zé Jerome mostrou que está com
os dedos já entrevados,
porque não tinha médico, ao longo de sua longa vida, por exemplo, não falou num
tom de queixa, mas num tom direto, natural, espontâneo: “Isto é como eu estou
agora. Essa é a minha situação”. “Eu sou isso”.
falou
algo muito bonito sobre os mestres que está
relacionado a essa questão e explica por que os estudantes ficam tão fascinados
pelos mestres. É que os mestres são o que eles são. Eu não posso ser outra coisa
que não o que eu sou. Não é o que todos deveríamos
ser? A universidade te coloca
ideal completamente fantasioso, uma fantasia de perfeição que as pessoas
não alcançam. Isso leva a um sofrimento interno que, no limite, faz com que sejamos
perversos uns com os outros. competições loucas, sem nenhu
interna ficou grande demais e não nenhuma resignação em relação à essa
condição de incompletude, de imperfeição ou de ignorância. Os mestres sabem que
o ignorantes em muitas coisas, eles não têm uma fantasia de onisciência que é o
Este é o primeiro passo da espiritualidade: você começar a se enxergar, a
é Pesquisadora do NASPA (Núcleo de Alimentação Sustentável e
Produção Agroecológica) efoi uma das professoras parceiras do Encontro de Saberes da UnB.
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
árido! Ele tem um conhecimento
objetivo sobre o solo e as plantas, mas tem também conhecimento subjetivo ali.
A espiritualidade perpassa a proposta dessas epistemes que o Encontro de
aberes traz porque essas pessoas aprenderam em um sistema de transmissão que
não a censurou, ao contrário, estava integrado a ela. Tivemos que aprender, na
escola, a deixar a espiritualidade para fora. Então ganhamos com a presença de
luem e que não censuraram sua espiritualidade plena em
Os alunos têm a oportunidade de perceber o fascínio e a amorosidade dos
mestres que são, também, elementos da espiritualidade. O que não quer dizer que
ou seres perfeitos. Nada disso. Vivem conflitos, mas
normalmente têm uma forma mais centrada de lidar com as dificuldades.
Muitas
vezes silenciam sobre seus problemas e esperam o momento oportuno para saná
-
os dedos entrevados,
porque não tinha médico, ao longo de sua longa vida, por exemplo, não falou num
tom de queixa, mas num tom direto, natural, espontâneo: Isto é como eu estou
algo muito bonito sobre os mestres que está
relacionado a essa questão e explica por que os estudantes ficam tão fascinados
pelos mestres. É que os mestres o o que eles o. Eu não posso ser outra coisa
ser? A universidade te coloca
ideal completamente fantasioso, uma fantasia de perfeição que as pessoas
não alcançam. Isso leva a um sofrimento interno que, no limite, faz com que sejamos
perversos uns com os outros. Há competições loucas, sem nenhu
ma base. A falta
interna ficou grande demais e não há nenhuma resignação em relação à essa
condição de incompletude, de imperfeição ou de ignorância. Os mestres sabem que
o ignorantes em muitas coisas, eles não têm uma fantasia de onisciência que é o
Este é o primeiro passo da espiritualidade: vo começar a se enxergar, a
é Pesquisadora do NASPA (Núcleo de Alimentação Sustentável e
Produção Agroecológica) efoi uma das professoras parceiras do Encontro de Saberes da UnB.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
auto-
observação sobre as expressões do ego que pode acontecer de vários modos
pela oração, meditação). Os sintomas vão aparecendo quando fica difícil meditar,
orar ou qualquer outra prática de introspecção. Por que é que não estou
conseguindo? O que me trava? Você começa a se olhar e percebe que este
bloqueio está relacionado com as fantasias do ego. Começa então a questioná
Vai precisar enquadrá-
lo. Na
tem que dar lugar a uma integração maior e, então, outros planos vão surgindo.
Em grande medida, o Encontro de Saberes nos espiritualiza. Um de seus
efeitos é este. Estamos trazendo pessoas espiritual
uma minoria de professores espiritualizados. Muitos negam suas práticas porque
não são bem-
vistas, assim como a amorosidade não é bem
universitário.
A amorosidade é uma consequência desse processo de que estam
Ela cresce quando agimos com naturalidade entre nós. Quando estamos mais perto
da verdade de quem somos, é mais fácil amar. Ao contrário, quando criamos uma
fantasia alta demais de quem somos ou do quanto sabemos, a competição é o
nosso idioma.
Você fica mais armado, sempre pronto para um duelo com quem
acaba de chegar. É um universo de disputa que torna difícil a amorosidade. O que
tem consequências na estrutura do saber, na estrutura da transmissão como nos
fala,
entre outros, Paulo Freire. A
de ensinar é um ato amoroso. Paulo Freire insistia demais nisso: Eu sou um
educador porque eu amo!” é uma frase dele.
Como se vê, a questão da espiritualidade tem diferentes implicações. De um
lado, ela expõe
a perda cognitiva e epistêmica que sucedeu no processo histórico do
iluminismo quando os vários conhecimentos e tradições de exploração dos níveis de
consciência ficaram de fora das universidades. Como consequência disso,
perdemos a oportunidade de explor
não os deixaram ensinar nos últimos três séculos, depois que foram retirados da
episteme hegemônica. Além disso, há, como falamos, a consciência dos mestres
sobre o seu próprio valor, seu exemplo de um mundo a
Os mestres ocupam o lugar do sujeito suposto saber que é análogo ao lugar
do analista proposto por Lacan e que é também o lugar do professor, para além do
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
observação sobre as expressões do ego que pode acontecer de vários modos
pela oração, meditação). Os sintomas vão aparecendo quando fica difícil meditar,
orar ou qualquer outra prática de introspecção. “Por que é que não estou
conseguindo? O que me trava?” Você começa a se olhar e percebe que este
bloqueio está relacionado com as fantasias do ego. Começa então a questioná
lo. Na
oração, na meditação, na prática o ego diminui, porque
tem que dar lugar a uma integração maior e, então, outros planos vão surgindo.
Em grande medida, o Encontro de Saberes nos espiritualiza. Um de seus
efeitos é este. Estamos trazendo pessoas espiritual
izadas a um espaço em que há
uma minoria de professores espiritualizados. Muitos negam suas práticas porque
vistas, assim como a amorosidade não é bem
-
vista
A amorosidade é uma consequência desse processo de que estam
Ela cresce quando agimos com naturalidade entre nós. Quando estamos mais perto
da verdade de quem somos, é mais fácil amar. Ao contrário, quando criamos uma
fantasia alta demais de quem somos ou do quanto sabemos, a competição é o
Vo fica mais armado, sempre pronto para um duelo com quem
acaba de chegar. É um universo de disputa que torna difícil a amorosidade. O que
tem consequências na estrutura do saber, na estrutura da transmissão como nos
entre outros, Paulo Freire. A
Pedagogia, na verdade, depende do amor. O ato
de ensinar é um ato amoroso. Paulo Freire insistia demais nisso: Eu sou um
educador porque eu amo! é uma frase dele.
Como se vê, a questão da espiritualidade tem diferentes implicações. De um
a perda cognitiva e epistêmica que sucedeu no processo histórico do
iluminismo quando os vários conhecimentos e tradições de exploração dos níveis de
consciência ficaram de fora das universidades. Como consequência disso,
perdemos a oportunidade de explor
á-
los, porque o quem os ensine, porque
não os deixaram ensinar nos últimos três séculos, depois que foram retirados da
episteme hegemônica. Além disso, , como falamos, a consciência dos mestres
sobre o seu próprio valor, seu exemplo de um mundo a
lém da competição.
Os mestres ocupam o lugar do “sujeito suposto saber” que é análogo ao lugar
do analista proposto por Lacan e que é também o lugar do professor, para além do
641
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
observação sobre as expressões do ego que pode acontecer de vários modos
-
pela oração, meditação). Os sintomas vão aparecendo quando fica difícil meditar,
orar ou qualquer outra prática de introspecção. Por que é que não estou
conseguindo? O que me trava? Você começa a se olhar e percebe que este
bloqueio está relacionado com as fantasias do ego. Começa então a questioná
-lo.
oração, na meditação, na prática o ego diminui, porque
tem que dar lugar a uma integração maior e, então, outros planos vão surgindo.
Em grande medida, o Encontro de Saberes nos espiritualiza. Um de seus
izadas a um espaço em que
uma minoria de professores espiritualizados. Muitos negam suas práticas porque
vista
no ambiente
A amorosidade é uma consequência desse processo de que estam
os falando.
Ela cresce quando agimos com naturalidade entre nós. Quando estamos mais perto
da verdade de quem somos, é mais fácil amar. Ao contrário, quando criamos uma
fantasia alta demais de quem somos ou do quanto sabemos, a competição é o
Vo fica mais armado, sempre pronto para um duelo com quem
acaba de chegar. É um universo de disputa que torna difícil a amorosidade. O que
tem consequências na estrutura do saber, na estrutura da transmissão como nos
Pedagogia, na verdade, depende do amor. O ato
de ensinar é um ato amoroso. Paulo Freire insistia demais nisso: “Eu sou um
Como se vê, a questão da espiritualidade tem diferentes implicações. De um
a perda cognitiva e epistêmica que sucedeu no processo histórico do
iluminismo quando os vários conhecimentos e tradições de exploração dos níveis de
consciência ficaram de fora das universidades. Como consequência disso,
los, porque já não há quem os ensine, porque
não os deixaram ensinar nos últimos três séculos, depois que foram retirados da
episteme hegemônica. Além disso, há, como falamos, a consciência dos mestres
lém da competição.
Os mestres ocupam o lugar do sujeito suposto saber que é análogo ao lugar
do analista proposto por Lacan e que é também o lugar do professor, para além do
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
estudo e da inquirição científica objetiva. Para Lacan, o analista é como um mestre
antigo -
Sócrates, Epicuro, Demócrito, Marco Aurélio, ou como os mestres da
filosofia alexandrina, neoplatônica. Mestres que aplacaram as paixões, atravessaram
as volições
da alma e chegaram a um estado de sabedoria análogo ao do
um estado de equilíbrio. O que é muito diferente da imagem que se tem e se espera
de um docente na universidade. A auncia da espiritualidade tem consequências.
O Encontro de Saberes está p
foi uma demanda dos mestres das culturas populares. Entendo que ele faz sentido
na América Latina e na África, onde as universidades o pressionadas para serem
eurocêntricas e negar os saberes tradicionais. O
pressão gigantesca, porque as universidades chamadas de ponta no mundo, são
as ocidentais. impressão de que os saberes tradicionais não vão jogar papel
nenhum e, provavelmente, onde o mais vivos a pressão é maior. Pen
nesses contextos que o Encontro de Saberes faz sentido. Países como Estados
Unidos, França ou Inglaterra não têm como entender a validade disso, pois esses
mestres e suas epistemes foram, ali, desqualificadas há 200 ou 300 anos.
A Física, a Matem
ática, a Química, depois, a Biologia e as Engenharias
reproduziram padrões disciplinares pelo mundo inteiro. Não há dúvida de que um
país não ocidental precisa se apropriar dessa lógica e desses conhecimentos. Nesse
sentido, é uma iniciativa semelhante à U
que falamos. Precisamos de pontas de lança, pessoas preparadas para a luta contra
o Estado e o capitalismo global. Só que eles não podem ficar sem a base dos seus
mestres, sob o risco de se desespiritualizarem e de t
luta ocidental alienada e desumanizada. São os mestres que vão humanizar esses
movimentos sociais que não podem correr o risco de perder suas matrizes
civilizatórias, assim como os mestres sufis trazem a matriz civilizatória d
islâmico, os mestres zen, os yogues, os budistas, os daoístas.
Com que mundo interno vamos construir uma sociedade nova? Essa é a
pergunta! Se estamos falando numa revolução, no homem novo temos que
espiritualizar a classe camponesa e a classe op
mais golpeada pela desespiritualização do mundo ocidental submetida a perda de
suas tradições e a um regime maquínico de trabalho como descreve Marx.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
estudo e da inquirição científica objetiva. Para Lacan, o analista é como um mestre
Sócrates, Epicuro, Demócrito, Marco Aurélio, ou como os mestres da
filosofia alexandrina, neoplatônica. Mestres que aplacaram as paixões, atravessaram
da alma e chegaram a um estado de sabedoria análogo ao do
um estado de equilíbrio. O que é muito diferente da imagem que se tem e se espera
de um docente na universidade. A ausência da espiritualidade tem consequências.
O Encontro de Saberes está p
ensado aqui, no Brasil, nessa circunstância e
foi uma demanda dos mestres das culturas populares. Entendo que ele faz sentido
na América Latina e na África, onde as universidades são pressionadas para serem
eurontricas e negar os saberes tradicionais. O
mundo asiático também sofre uma
pressão gigantesca, porque as universidades chamadas “de ponta no mundo, são
as ocidentais. Dá impressão de que os saberes tradicionais não vão jogar papel
nenhum e, provavelmente, onde são mais vivos a pressão é maior. Pen
nesses contextos que o Encontro de Saberes faz sentido. Países como Estados
Unidos, França ou Inglaterra não têm como entender a validade disso, pois esses
mestres e suas epistemes foram, ali, desqualificadas há 200 ou 300 anos.
ática, a Química, depois, a Biologia e as Engenharias
reproduziram padrões disciplinares pelo mundo inteiro. Não dúvida de que um
país não ocidental precisa se apropriar dessa lógica e desses conhecimentos. Nesse
sentido, é uma iniciativa semelhante à U
niversidade dos Movimentos Populares de
que falamos. Precisamos de pontas de lança, pessoas preparadas para a luta contra
o Estado e o capitalismo global. que eles não podem ficar sem a base dos seus
mestres, sob o risco de se desespiritualizarem e de t
ornarem a luta uma réplica da
luta ocidental alienada e desumanizada. São os mestres que vão humanizar esses
movimentos sociais que não podem correr o risco de perder suas matrizes
civilizatórias, assim como os mestres sufis trazem a matriz civilizatória d
islâmico, os mestres zen, os yogues, os budistas, os daoístas.
Com que mundo interno vamos construir uma sociedade nova? Essa é a
pergunta! Se estamos falando numa revolução, no “homem novo temos que
espiritualizar a classe camponesa e a classe op
erária. Esta última foi certamente a
mais golpeada pela desespiritualização do mundo ocidental submetida a perda de
suas tradições e a um regime maquínico de trabalho como descreve Marx.
642
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
estudo e da inquirição científica objetiva. Para Lacan, o analista é como um mestre
Sócrates, Epicuro, Demócrito, Marco Aurélio, ou como os mestres da
filosofia alexandrina, neoplatônica. Mestres que aplacaram as paixões, atravessaram
da alma e chegaram a um estado de sabedoria análogo ao do
Da Xue,
um estado de equilíbrio. O que é muito diferente da imagem que se tem e se espera
de um docente na universidade. A auncia da espiritualidade tem consequências.
ensado aqui, no Brasil, nessa circunstância e
foi uma demanda dos mestres das culturas populares. Entendo que ele faz sentido
na América Latina e na África, onde as universidades o pressionadas para serem
mundo asiático também sofre uma
pressão gigantesca, porque as universidades chamadas de ponta” no mundo, são
as ocidentais. Dá impressão de que os saberes tradicionais não vão jogar papel
nenhum e, provavelmente, onde o mais vivos a pressão é maior. Pen
so que é
nesses contextos que o Encontro de Saberes faz sentido. Países como Estados
Unidos, França ou Inglaterra não têm como entender a validade disso, pois esses
mestres e suas epistemes foram, ali, desqualificadas há 200 ou 300 anos.
ática, a Química, depois, a Biologia e as Engenharias
reproduziram padrões disciplinares pelo mundo inteiro. Não há dúvida de que um
país não ocidental precisa se apropriar dessa lógica e desses conhecimentos. Nesse
niversidade dos Movimentos Populares de
que falamos. Precisamos de pontas de lança, pessoas preparadas para a luta contra
o Estado e o capitalismo global. Só que eles não podem ficar sem a base dos seus
ornarem a luta uma réplica da
luta ocidental alienada e desumanizada. São os mestres que vão humanizar esses
movimentos sociais que não podem correr o risco de perder suas matrizes
civilizatórias, assim como os mestres sufis trazem a matriz civilizatória d
o mundo
Com que mundo interno vamos construir uma sociedade nova? Essa é a
pergunta! Se estamos falando numa revolução, no homem novo” temos que
erária. Esta última foi certamente a
mais golpeada pela desespiritualização do mundo ocidental submetida a perda de
suas tradições e a um regime maquínico de trabalho como descreve Marx.
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
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25, p. 604-645, set. 2023.
A Ciência das Religiões talvez seja um lugar possível de retomada da
espiritualidade, na universidade, na medida em que, diferente da Teologia de
tradição cristã, ela consiste num estudo acadêmico e comparativo dos textos
sagrados das diferentes religiões. Que interessante será o encontro dessas
Ciências, também européias,
Candomblé, da Umbanda, do Espiritismo, do Xamanismo
Nas outras disciplinas, como na Medicina ou na Psicologia, o Encontro de Saberes
traz os planos sutis e o olhar integrado. H
propor o diálogo com terapias que não passam pela escrita, como as bendições.
A questão da colonialidade epistêmica é generalizada, mas existem algumas
áreas que mostram o sintoma, no sentido psicanalítico, de forma
na Filosofia e nas Artes. Na primeira, os alunos aprendem que não podem filosofar.
Quem é você para pensar qualquer coisa diante de Kant? Platão ou Aristóteles já
pensaram tudo o que você poderá algum dia, ousar pensar. O que vo pode f
ensiná-
los, ficar eternamente repetindo o que eles diziam disso e daquilo. Como diz
Murilo Seabra48:
todas as teses têm o mesmo formato: o conceito de X em Y. O
conceito de Deus em Santo Agostinho; o conceito de Ser em Heidegger.
Nas Artes, o sintom
paralisada para que possamos aprender a música erudita ocidental! É um
desencaixe completo. Como podemos competir com a Filarmônica de Berlim? Se
não temos recurso, estabilidade, público…. Deixamos de fora a
artística e musical de inúmeros alunos, porque eles têm que se enquadrar numa
musicalidade na qual são quase sempre perdedores e por isso serão sempre
subalternos –
salvo exceções, jogarão sempre em um segundo time.
É muita contenção da for
uma escola de música e não vemos nenhum percussionista de gêneros afro
brasileiros. Não
é possível! Parece
que no país e que somos como a Bélgica, um país que
48
Murilo Rocha Seabra tem graduação e mestrado em Filosofia pela UnB e é doutor pela La Trobe
University (2018). Em seu livro
Oftalmopolítica
enxergar uma filosofia autoral no Brasil. Vide TEIXEIRA, João de Fernandes
filosofia brasileira segundo Murilo Seabra em https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna
olhar-distorcido-a-filosofia-
brasileira
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
A Ciência das Religiões talvez seja um lugar possível de retomada da
espiritualidade, na universidade, na medida em que, diferente da Teologia de
tradição cristã, ela consiste num estudo acadêmico e comparativo dos textos
sagrados das diferentes religiões. Que interessante será o encontro dessas
Ciências, também européias,
com os mestres vivos das religiões tradicionais
Candomblé, da Umbanda, do Espiritismo, do Xamanismo
-
como parte do currículo.
Nas outras disciplinas, como na Medicina ou na Psicologia, o Encontro de Saberes
traz os planos sutis e o olhar integrado. H
á muitos mestres que curam. É possível
propor o diálogo com terapias que não passam pela escrita, como as bendições.
A questão da colonialidade epistêmica é generalizada, mas existem algumas
áreas que mostram o sintoma, no sentido psicanalítico, de forma
mais nítida, como
na Filosofia e nas Artes. Na primeira, os alunos aprendem que não podem filosofar.
Quem é você para pensar qualquer coisa diante de Kant? Platão ou Aristóteles já
pensaram tudo o que vo poderá algum dia, ousar pensar. O que vo pode f
los, ficar eternamente repetindo o que eles diziam disso e daquilo. Como diz
todas as teses têm o mesmo formato: o conceito de X em Y. O
conceito de Deus em Santo Agostinho; o conceito de Ser em Heidegger.
Nas Artes, o sintom
a aparece quando toda a nossa riqueza musical é
paralisada para que possamos aprender a música erudita ocidental! É um
desencaixe completo. Como podemos competir com a Filarmônica de Berlim? Se
não temos recurso, estabilidade, público…. Deixamos de fora a
artística e musical de inúmeros alunos, porque eles têm que se enquadrar numa
musicalidade na qual o quase sempre perdedores e por isso serão sempre
salvo exceções, jogarão sempre em um segundo time.
É muita contenção da for
ma, de estilo, de linguagem quando entramos em
uma escola de música e não vemos nenhum percussionista de gêneros afro
é posvel! Parece
que não existe toda a diversidade de percussão
que há no país e que somos como a Bélgica, um país que
não tem tradição própria
Murilo Rocha Seabra tem graduação e mestrado em Filosofia pela UnB e é doutor pela La Trobe
Oftalmopolítica
questiona por que não existe ou não conseguimos
enxergar uma filosofia autoral no Brasil. Vide TEIXEIRA, João de Fernandes
-
O olhar distorcido: a
filosofia brasileira segundo Murilo Seabra em https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna
brasileira
-segundo-murilo-
seabra (acessado em 30/04/2023).
643
ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
A Ciência das Religiões talvez seja um lugar possível de retomada da
espiritualidade, na universidade, na medida em que, diferente da Teologia de
tradição cristã, ela consiste num estudo acadêmico e comparativo dos textos
sagrados das diferentes religiões. Que interessante será o encontro dessas
com os mestres vivos das religiões tradicionais
- do
como parte do currículo.
Nas outras disciplinas, como na Medicina ou na Psicologia, o Encontro de Saberes
á muitos mestres que curam. É possível
propor o diálogo com terapias que não passam pela escrita, como as bendições.
A questão da colonialidade epistêmica é generalizada, mas existem algumas
mais nítida, como
na Filosofia e nas Artes. Na primeira, os alunos aprendem que não podem filosofar.
Quem é você para pensar qualquer coisa diante de Kant? Platão ou Aristóteles
pensaram tudo o que vo poderá algum dia, ousar pensar. O que você pode f
azer é
los, ficar eternamente repetindo o que eles diziam disso e daquilo. Como diz
todas as teses têm o mesmo formato: o conceito de X em Y. O
conceito de Deus em Santo Agostinho; o conceito de Ser em Heidegger.
a aparece quando toda a nossa riqueza musical é
paralisada para que possamos aprender a música erudita ocidental! É um
desencaixe completo. Como podemos competir com a Filarmônica de Berlim? Se
não temos recurso, estabilidade, público…. Deixamos de fora a
rica qualidade
artística e musical de inúmeros alunos, porque eles têm que se enquadrar numa
musicalidade na qual o quase sempre perdedores e por isso serão sempre
salvo exceções, jogarão sempre em um segundo time.
ma, de estilo, de linguagem quando entramos em
uma escola de música e não vemos nenhum percussionista de gêneros afro
-
que não existe toda a diversidade de percussão
não tem tradição própria
Murilo Rocha Seabra tem graduação e mestrado em Filosofia pela UnB e é doutor pela La Trobe
questiona por que não existe ou não conseguimos
O olhar distorcido: a
filosofia brasileira segundo Murilo Seabra em https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna
-anpof/o-
seabra (acessado em 30/04/2023).
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
de percussão. O mesmo acontece com os instrumentos de corda. Temos várias
violas, banjos e nada! o violão de estilo europeu é ensinado, é impressionante.
Nossas escolas de música não refletem a riqueza musical do país.
As discip
linas das Artes, por exemplo, têm que ser repensadas
completamente, porque elas negam técnicas, estilos, formas e tradições estéticas
não-
ocidentais desenvolvidas pelos nossos povos tradicionais. O que dizer da arte
plumária? Na universidade vo não estud
muitas delas maravilhosas.Todas as artes tradicionais riquíssimas não se encaixam
nos cursos nem nas disciplinas estabelecidas dos cursos de Arte porque o modelo
de Arte é ainda influenciado fortemente pelas bienais a
MOMA, Nova Iorque, Bilbao, etc Então, você tem um curso de Artes no Rio de
Janeiro que não tem Arte Indígena, nem tem Arte Africana e é criado com verbas
públicas. Imagine ensinar, no Brasil inteiro, a maravilha do Cavalo Ma
Congado e sua dança dos bastões?
O trabalho artístico e pedagógico dos mestres é sempre surpreendente. É de
fato um trabalho transartístico ou transestético. Transartístico porque o várias
formas de arte que os mestres ensinam simultaneament
cada uma das formas pode contar com uma estética própria. A estética musical é
uma que não é a mesma da estética da dança, por exemplo e tanto o Cavalo
Marinho como o Congado são exemplos disso. Isso enquanto a universidade ain
um lugar monoartístico e monoestético.
Os mestres trazem saberes integrados, não apenas especializados ou
confinados à solução de algo prático, espefico, mas voltados à
vida como um todo, ao chamado bem
Que projeto de vida est
na Universidade? A Universidade é como um laboratório para a sociedade. Quem
estudou num container, depois vai para uma empresa e fica numa baia e está tudo
bem, não é? O universo está reduzido mesmo: col
cima do computador e pronto. Um mundo completamente restringido e, termos de
corpo, espaço, expressão oral, expressão corporal, relações, troca de afeto, tudo vai
empobrecendo ao passar do tempo.
Os mestres mateiros da Agroecol
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
de percussão. O mesmo acontece com os instrumentos de corda. Temos várias
violas, banjos e nada! Só o violão de estilo europeu é ensinado, é impressionante.
Nossas escolas de música não refletem a riqueza musical do país.
linas das Artes, por exemplo, têm que ser repensadas
completamente, porque elas negam técnicas, estilos, formas e tradições estéticas
ocidentais desenvolvidas pelos nossos povos tradicionais. O que dizer da arte
plumária? Na universidade você não estud
a plumária ou as técnicas do trançado,
muitas delas maravilhosas.Todas as artes tradicionais riquíssimas não se encaixam
nos cursos nem nas disciplinas estabelecidas dos cursos de Arte porque o modelo
de Arte é ainda influenciado fortemente pelas bienais a
lemãs, italianas, francesas, o
MOMA, Nova Iorque, Bilbao, etc Então, você tem um curso de Artes no Rio de
Janeiro que não tem Arte Indígena, nem tem Arte Africana e é criado com verbas
públicas. Imagine ensinar, no Brasil inteiro, a maravilha do Cavalo Ma
Congado e sua dança dos bastões?
O trabalho artístico e pedagógico dos mestres é sempre surpreendente. É de
fato um trabalho transartístico ou transestético. Transartístico porque o várias
formas de arte que os mestres ensinam simultaneament
e; e é transestético, porque
cada uma das formas pode contar com uma estética própria. A estética musical é
uma que não é a mesma da estética da dança, por exemplo e tanto o Cavalo
Marinho como o Congado são exemplos disso. Isso enquanto a universidade ain
um lugar monoartístico e monoestético.
Os mestres trazem saberes integrados, não apenas especializados ou
confinados à solução de algo prático, específico, mas voltados à
vida como um todo, ao chamado bem
-viver.
Que projeto de vida est
á sendo apresentado para os estudantes que chegam
na Universidade? A Universidade é como um laboratório para a sociedade. Quem
estudou num container, depois vai para uma empresa e fica numa baia e está tudo
bem, não é? O universo es reduzido mesmo: col
oca um ursinho de pelúcia em
cima do computador e pronto. Um mundo completamente restringido e, termos de
corpo, espaço, expressão oral, expressão corporal, relações, troca de afeto, tudo vai
empobrecendo ao passar do tempo.
Os mestres mateiros da Agroecol
ogia, como o Mestre Bispo, o Mestre Badu
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
de percussão. O mesmo acontece com os instrumentos de corda. Temos várias
violas, banjos e nada! Só o violão de estilo europeu é ensinado, é impressionante.
linas das Artes, por exemplo, têm que ser repensadas
completamente, porque elas negam técnicas, estilos, formas e tradições estéticas
ocidentais desenvolvidas pelos nossos povos tradicionais. O que dizer da arte
a plumária ou as técnicas do trançado,
muitas delas maravilhosas.Todas as artes tradicionais riquíssimas não se encaixam
nos cursos nem nas disciplinas estabelecidas dos cursos de Arte porque o modelo
lemãs, italianas, francesas, o
MOMA, Nova Iorque, Bilbao, etc Então, você tem um curso de Artes no Rio de
Janeiro que não tem Arte Indígena, nem tem Arte Africana e é criado com verbas
públicas. Imagine ensinar, no Brasil inteiro, a maravilha do Cavalo Ma
rinho ou do
O trabalho artístico e pedagógico dos mestres é sempre surpreendente. É de
fato um trabalho transartístico ou transestético. Transartístico porque são várias
e; e é transestético, porque
cada uma das formas pode contar com uma estética própria. A estética musical é
uma que não é a mesma da estética da dança, por exemplo e tanto o Cavalo
Marinho como o Congado o exemplos disso. Isso enquanto a universidade ain
da é
Os mestres trazem saberes integrados, não apenas especializados ou
confinados à solução de algo prático, espefico, mas voltados à
humanização, à
á sendo apresentado para os estudantes que chegam
na Universidade? A Universidade é como um laboratório para a sociedade. Quem
estudou num container, depois vai para uma empresa e fica numa “baia” e está tudo
oca um ursinho de pelúcia em
cima do computador e pronto. Um mundo completamente restringido e, termos de
corpo, espaço, expressão oral, expressão corporal, relações, troca de afeto, tudo vai
ogia, como o Mestre Bispo, o Mestre Badu
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Universidade –
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
25, p. 604-645, set. 2023.
ou Mestra Tiana, ensinam que tudo está vivo e que vo tem que preservar a ordem
da vida. Em tudo a vida está sendo preservada, a terra e a água o valores e não
mercadorias. São Mestres da Terra e da Água como o
fala que o melhor lugar para guardar um peixe é o rio. Ou como o Mestre Geraldo
que guarda feijões para fertilizar o solo.
John Blacking usava aquele prorbio zulu sobre a filosofia do Ubuntu:
umuntu ngumuntu ngabantu
dos outros seres humanos. Em quase toda aula repetia o provérbio, sempre na
língua venda:
Muthu ndi muthu nga vhanwe
prática política e espiritual. Como admitir uma ciência
se eu me lembro que somente sou por causa de todos os outros seres humanos?
SALGADO, Flávia; BITTER, Daniel; CHAVES, Wagner. Por uma Outra
Entrevista com José Jorge de Carvalho..
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 13, n. www.periodicos.uff.br/pragmatizes -
(Dossiê "Imagens
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
Entrevista)
ou Mestra Tiana, ensinam que tudo está vivo e que você tem que preservar a ordem
da vida. Em tudo a vida está sendo preservada, a terra e a água são valores e não
mercadorias. São Mestres da Terra e da Água como o
Mestre Nego Bispo, quando
fala que o melhor lugar para guardar um peixe é o rio. Ou como o Mestre Geraldo
que guarda feijões para fertilizar o solo.
John Blacking usava aquele provérbio zulu sobre a filosofia do Ubuntu:
umuntu ngumuntu ngabantu”
- que
quer dizer: “o ser humano é humano, por causa
dos outros seres humanos”. Em quase toda aula repetia o provérbio, sempre na
Muthu ndi muthu nga vhanwe
”. A repetição era, em si mesma, uma
prática política e espiritual. Como admitir uma ciência
e um modo de viver anti
se eu me lembro que somente sou por causa de todos os outros seres humanos?
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ISSN 2237-1508
reflexas sobre os Encontros de Saberes nas universidades
"
ou Mestra Tiana, ensinam que tudo está vivo e que vo tem que preservar a ordem
da vida. Em tudo a vida está sendo preservada, a terra e a água são valores e não
Mestre Nego Bispo, quando
fala que o melhor lugar para guardar um peixe é o rio. Ou como o Mestre Geraldo
John Blacking usava aquele prorbio zulu sobre a filosofia do Ubuntu:
quer dizer: o ser humano é humano, por causa
dos outros seres humanos. Em quase toda aula repetia o provérbio, sempre na
. A repetição era, em si mesma, uma
e um modo de viver anti
-vida
se eu me lembro que somente sou por causa de todos os outros seres humanos?