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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais nos
cuidados com o corpo potente da Universidade
Samira Lima da Costa
1
Eliana Nunes Ribeiro
2
Geraldo da Silva Bastos
3
Margareth Alves Pontes
4
Itamara Silva de Almeida Santos
5
Janete Baptista do Nascimento
6
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v13i25.57935
Resumo: Este artigo apresenta as experiências e reflexões de integrantes do comitê organizador do
encontro pluri-epistêmico “Ciranda de Saberes e Cuidados” promovido pelo Laboratório de
Memórias, Territórios e Ocupações: rastros sensíveis, com a colaboração dos demais Grupos de
Pesquisa ligados ao Programa EICOS, de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, do
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no ano de 2022. período
pós pandêmico. Para tanto, o coletivo se posicionou geopoliticamente, assumindo uma
Psicossociologia crítica latino-americana como diretriz. A compreensão referente à experiência da
Ciranda e seu diálogo com o que temos estudado e produzido, junto com as mestras e os mestres,
serão aqui apresentados em forma de rabiscos aos do outro lado, expressão que escolhemos para
dialogar com quem nos lê.
1
Samira Lima da Costa. Doutora em Psicossociologia de Comunidades; Professora Associada
UFRJ/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: biasamira@medicina.ufrj
http://orcid.org/0000-0003-4891-0436
2
Eliana Nunes Ribeiro. Doutora em Psicossociologia de Comunidades; pós-doutoranda, Programa
EICOS, UFRJ. E-mail: lianrib@gmail.com - http://orcid.org/0000-0002-1791-3530
3
Geraldo da Silva Bastos. Mestre em Psicossociologia de Comunidades; doutorando, Programa
EICOS/UFRJ. E-mail: geraldobastosvencedor@gmail.com - http://orcid.org/0000-0002-9905-3385
4
Margareth Alves Pontes. Mestre em Saúde Coletiva - Universidad Americana PY; Doutoranda no
Programa de Pós-graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social - Instituto de
Psicologia da UFRJ. Email: margareth.nei.2018@gmail.com - http://orcid.org/0000-0001-8778-9806
5
Itamara Silva de Almeida Santos. Mestre em Psicossociologia EICOS/UFRJ; integrante do
LabMems, programa EICOS/UFRJ. E-mail: Silvaitamara687@gmail.com - https://orcid.org/0009-0006-
3481-3183
6
Janete Baptista do Nascimento. Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social -
EICOS-Instituto de Psicologia UFRJ. Email. netinhabaptista@gmail.com - http://orcid.org/0009-
0005-9905-3405
Recebido em 31/03/2023, aceito para publicação em 27/06/2023 e disponibilizado online em
01/09/2023.
507
COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Palavras-chave: Psicossociologia comunitária; Saberes tradicionais; Encontros Pluri-epistêmicos,
Práticas de cuidado.
Ciranda de conocimientos y cuidados: Garabatos sobre el Conocimiento Tradicional al
cuidado del poderoso cuerpo de la Universidad
Resumen: Este artículo presenta lasexperiencias y reflexiones de integrantes del comité organizador
delencuentropluriepistémico "Ciranda de Saberes e Care" promovido por elLaboratorio de Memorias,
Territorios y Ocupaciones: huellassensibles, conlacolaboración de losdemás Grupos de Investigación
vinculados a el Programa EICOS, de Psicosociología de las Comunidades y Ecología Social, del
Instituto de Psicología de laUniversidad Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), enelaño 2022.
períodopospandemia. Para ello, elcolectivo se posicionógeopolíticamente, asumiendo como pauta
una Psicosociologíalatinoamericana crítica. La comprensión sobre laexperiencia de Ciranda y su
diálogo conlo que hemosestudiado y producido, junto conlos maestros, se presentará aquíenforma de
garabatos para losdelotro lado, expresión que elegimos para dialogar conquienes nos leen. .
Palabras clave: Psicosociología Comunitaria; conocimiento tradicional; Encuentros pluriepistémicos,
Prácticas de cuidado.
Ciranda of knowledge and care: Scribbles on Traditional Knowledge in the care of the powerful
body of the University
Abstract: This article presents the experiences and reflections of members of the organizing
committee of the pluri-epistemic meeting "Ciranda de Saberes e Care" promoted by the Laboratory of
Memories, Territories and Occupations: sensitive traces, with the collaboration of the other Research
Groups linked to the EICOS Program, of Psychosociology of Communities and Social Ecology, from
the Institute of Psychology of the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), in the year 2022. post-
pandemic period. To this end, the collective position edit selfgeopolitically, assuming a critical Latin
American Psychosociology as a guideline. The understanding regarding the Ciranda experience and
its dialogue with what we have studied and produced, together with the masters, Will be presented
here in the form of scribbles to those on the otherside, na expression that we chose to dialogue with
those Who read us.
Keywords: Community Psychosociology; Traditional knowledge; Pluri-epistemic encounters, Care
practices.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais nos
cuidados com o corpo potente da Universidade
Introdução
O presente artigo nasce do
encontro de muitas pessoas e formas
de pensar que, em algum momento, se
colocaram em aprendizagem junto aos
conhecimentos de comunidades
tradicionais, e os tomaram como
referência. Reunindo essas diferentes
experiências em encontros com
comunidades e saberes tradicionais, a
pesquisa Saberes e Ocupações
Tradicionais - SOT, se tornou o
locusde convergência, confluência e
reflexões acerca de tais saberes. A
pesquisa desenvolveu-se a partir de
uma proposta de investigação de
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
caráter colaborativo interepistêmico,
contando com a participação de
muitas/os pesquisadoras/es, tanto
acadêmicas/os quanto mestras e
mestres do saber tradicional, e teve
início a partir do Encontro de Saberes
(Programa de Inserção de Mestres e
Mestras do saber tradicional no Ensino
Superior, proposto e coordenado pelo
INCTI/UnB). O objetivo central do
estudo foi identificar, a partir das
muitas possibilidades de aproximação,
os modos de existir comunitariamente,
construir caminhos coletivos para o
cuidado e sustentá-los entre as
gerações.
Buscamos com isso dialogar e
produzir conhecimentos e
metodologias que possam apoiar a
prática e as reflexões acerca dos
processos de existência, produção de
vida e cuidado também na
universidade. O resultado da pesquisa
aponta para um processo
descentralizador do eu-individual e
para a constituição de um saber
comunitário - não apenas a
comunidade que reúne pessoas, mas
uma concepção mais ampla, que inclui
pessoas, animais, plantas, o céu, as
águas, o tempo e as entidades da
espiritualidade. Os efeitos da
experiência-conhecimento, produzida
sempre de forma colaborativa, se
evidenciaram e ganharam especial
relevância durante o perído da
pandemia de COVID-19, com
destaque para os anos de 2020 a
2022, período no qual os encontros
com mestres e mestras nos ajudaram
a seguir, resistir, reinventar a vida,
centralizar o pacto comunitário pelo
cuidado coletivo e, mesmo com as
distâncias, afirmar a presença.
Este resultado sugere a
importância de insistir no alargamento
do campo do sensível na produção de
experiências: investir em ampliar
horizontes e expandir repertórios,
multiplicar encontros fronteiriços e
invenções híbridas de nós mesmos,
favorecendo processos de “auto-
construção” de sujeitos mais inclinados
à diversidade e mais disponíveis para
a complexidade dos verdadeiros
Encontros, que implicam em certa
componibilidade dos Saberes todos
eles.
Dentro da experiência da
pesquisa, o Programa de Pós
Graduação em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social
(EICOS) promoveu, em 2019, sua aula
Inaugural com as mestras do Encontro
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
de Saberes do Sul da Bahia: a Mestra
Dona Maria da Gloria de Jesus, do
Saber Tradicional Tupinambá das
Universidades UFMG e UNB e Claudia
Silva Barbosa Aprendiz do Saber
Tradicional Tupinambá, as duas
especialistas em curas e tradição
indígena. Maria da Glória, esposa do
Pajé e mãe do Cacique da Aldeia
Serra do Padeiro (BA), fez uma
revelação que nos chamou a atenção:
Essa universidade está
doente, muitas pessoas aqui
dentro estão doentes, o anjo
de guarda está fraco, é preciso
que se faça uma limpeza para
curar essa universidade, eu
sinto isso aqui dentro (Maria
da Glória - Aula Inaugural, 12
de março de 2019).
Ela também disse que, em
2016, os Encantados chegaram ao
Pajé e avisaram que havia uma
doença que viria de fora do Brasil, mas
chegaria aqui, "doença braba”.
Avisaram que a aldeia tivesse muita
cautela, muito cuidado e que plantasse
sua comida, porque a situação ia ser
muito difícil.
No ano seguinte, 2020, a aula
inaugural seria com a mestra Luceli,
sobre os saberes da Cura, também do
Encontro de Saberes da UnB.
Entretanto, o ano nos reservava outros
planos. Os anos de 2020 e 2021 foram
períodos de muita incerteza e tristeza.
Relembrar e reencontrar com os
mestres, as mestras e seus
conhecimentos foi, para muitos de nós,
imprescindível, no processo de
sobreviver, viver, resistir e atravessar
esse período. A tecnologia remota das
redes sociais e encontros virtuais, que
muitas vezes se colocou como
obstáculo aos encontros, nesse
momento se tornou grande aliada,
garantindo o isolamento físico sem
impor um isolamento social. Durante
esses dois anos, a UFRJ ofereceu de
forma remota a disciplina Encontro de
Saberes, tomando tais saberes como
eixo de sustentação e cuidado com
aqueles que, à distância, se sentiam e
se faziam presentes e, em alguma
medida, também curados.
Os anos seguintes foram
tristes, assustadores, tempos de choro
e de resistência. Nesse contexto, o
que mais precisávamos era de cuidado
mútuo. Foi assim que em 2022,
encerrado o período de isolamento
físico, constituímos um evento que
chamados de Ciranda de Saberes e
Cuidados.
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
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nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
O comitê organizador da
Ciranda de Saberes assumiu uma
prática contra-hegemônica, no sentido
de demarcar, politicamente, a potência
da universidade enquanto um lugar de
produção de vida, sinalizando para as
ações fundamentais de acolher e
partilhar, que se realizam em e a
partir de um campo de saberes pluri-
epistêmico (COSTA; CARVALHO,
2021). Para tanto, o coletivo se
posicionou geopoliticamente,
assumindo como diretriz uma
Psicossociologia crítica
latinoamericana, cujo campo de
conhecimento volta-se para
a composição de saberes e
tecnologias que venham ao
encontro de problemas
contextualizados e localizados
na experiência dos países
latinoamericanos, tanto em
sua diversidade cultural e
geopolítica, quanto em suas
confluências enquanto povos
colonizados (TAKEITI et al.,
2021, p. 3)
A Ciranda foi produzida em
círculos temáticos, incluindo oficinas,
apresentação de pesquisas e
orientações coletivas. Compusemos
uma equipe maior, que organizou o
evento, a partir de nossas partilhas em
diferentes campos de pesquisa.
Nos apresentando: Geraldo
Bastos, doutorando do Programa
EICOS, integrante do LabMems, e da
equipe da pesquisa SOT; erveiro,
atuante com oficinas de saberes
ancestrais; Janete Baptista do
Nascimento, Mestre pelo Programa
EICOS, professora da Rede Municipal
de Nova Iguaçu, integrante do
LabMems, graduada em Letras
(Português/ Literatura Brasileira),
candomblecista, pesquisadora da
sabedoria dos Itan, integrante da
pesquisa SOT; Itamara Silva de
Oliveira, Mameto de Inkice e
Rezadeira na Casa Raíz do Bengue
Ngola Djanga Ria Mutakalambo,
assistente social, Mestre pelo
Programa EICOS, integrante da
equipe da pesquisa SOT e do
LabMems; Eliana Ribeiro, Doutora em
Psicossociologia de Comunidades e
Ecologia Social pelo Programa EICOS,
pós- doutoranda pelo mesmo
programa, Historiadora, integrante dos
grupos de pesquisa LabMems e
Prajna, pesquisa performances
descolonizadoras, integrante da
pesquisa "universidade
Pluriepistêmica", Margareth Alves
Pontes-Doutoranda no Programa
EICOS, Terapeuta Ocupacional,
511
COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
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nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Mestre em Saúde Coletiva -
Universidad Americana PY,
integrante das pesquisas SOTe
universidade Pluriepistêmica, e do
LABMEMS; Samira Lima da Costa,
professora do Departamento de
Terapia Ocupacional (Faculdade de
Medicina) e coordenadora do
Programa de Pós Graduação em
Psicossociologia de Comunidades e
Ecologia Social (Instituto de
Psicologia) da UFRJ. Coordena as
pesquisas "Saberes e Ocupações
Tradicionais" e "Universidade
Pluriepistêmica", vinculadas ao seus
grupos de pesquisa noCNPq:
LabMems e Prajna. É pesquisadora do
INCTI-UnB, compondo o conselho
científico do Encontro de Saberes.
O evento Ciranda de Cuidados
contou com muitas partilhas de
especial de delicadeza. Tivemos
atividades como "Celebração e
cuidados: Reexistência com ervas e
palavras", quando mulheres
participantes de campos de pesquisa
variados se organizaram para nos
oferecer saberes de cura pelas ervas e
promover uma ação de purificação;
"ação de ori: a pororoca da orientação"
quando docentes apresentaram a
discentes suas pesquisas, expuseram
suas fragilidades e pediram ajuda;
"práticas de cuidado e alegria", quando
estudantes ofereceram ao coletivo
atividades de meditação e de
brincadeiras.
Para este artigo, selecionamos
apresentar um dos círculos que
compuseram a Ciranda - a Roda
“Celebração e cuidados: Reexistência
com ervas e palavras”. A compreensão
referente à experiência da Ciranda e
seu diálogo com o que temos
estudado e produzido junto com as
mestras e os mestres, serão aqui
apresentados em forma de rabiscos
aos do outro lado, expressão que
escolhemos para dialogar com quem
nos lê.
A escolha de relatar nossas
impressões através de rabiscos surgiu
da opção por assumir e manter a
pluralidade de vozes dos integrantes
da Ciranda de Saberes. A escrita é
também um campo de disputas; nesse
sentido, os rabiscos fazem frente às
exigências de excelência da forma, e
dão lugar à preciosidade do conteúdo -
tão precioso quanto inacabado, em
sua humildade de existir. Este recurso
é uma alternativa ao esvaziamento
subjetivo, à irrelevância e ao descarte
de nossas biografias, características
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
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nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
da condição moderna da academia
(Carvalho e Viana, 2020).
Consideramos ser parte da
descolonização da produção
acadêmica a busca de novas formas
de linguagem e comunicação, que
permitam o diálogo entre distintos
saberes e matrizes de racionalidades
(COSTA; ALVES, 2017).
Rabiscos para plantar sonhos e
cultivar vidas
De Samira às leitoras e leitores
A partir do meio do ano de
2022, o retorno presencial se tornou
possível, e as feridas eram muitas. Eu,
como professora, coordenadora e
orientadora, me via como um colo
insuficiente para tantas dores. Como
falar de prazos, se para tantos a vida
havia sido interrompida antes do fim?
Como falar de conteúdos, se a vida
esteva sem forma e ao mesmo tempo
apertada em estreitos contornos,
durante tanto tempo? Como falar de
cuidado com o outro, se a tristeza e o
medo nos colocava em feridas
abertas?
Era 2022. Ao mesmo tempo em
que celebramos as vacinas e o retorno
ao presencial, choramos a morte de
uma professora do Programa, Marta
Pinheiro. Nossos corpos pareciam não
dar conta de mais nenhuma perda,
nenhuma morte - não cabia mais esse
sofrimento. O cuidado se fazia
necessário, de preferência, em um
encontro que pudesse ser presencial.
Então, convidei pessoas queridas -
docentes, discentes, amizades de
trilhas do cuidado, para pensarmos um
evento que seria proposto por nosso
Grupo de Pesquisa, o Laboratório de
Memórias, Territórios e Ocupações:
rastros sensíveis - LabMems. O grupo
está vinculado ao Departamento de
Terapia Ocupacional (Faculdade de
Medicina) e ao Programa EICOS de
Pós Graduação em Psicossociologia
de Comunidades e Ecologia Social
(Instituto de Psicologia) da UFRJ.
Nos encontramos num bar do
Campus da Praia vermelha. Sentamos
em roda, entre choros, risos, abraços e
cansaços - sentíamos pulsar nossa
saudade e a necessidade de propor
um encontro de cuidado, mobilizando
comunidades amigas, participantes da
pesquisa, estudantes, docentes…
Todes. O convite foi ampliado a todes
és estudantes, e extendida aos Grupos
de Pesquisa “Prajna”, “Diaspotics” e
“Grupo de Pesquisa Micropolítica,
Cuidado e Saúde Coletiva” (todos do
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
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nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
mesmo Programa), o encontro
“Ciranda de Saberes: acolher, partilhar
e produzir a vida a partir da
experiência e prática de cuidados com
mestras e mestres dos saberes
tradicionais”.
O evento aconteceu em um
cenário de tensões e incertezas, tanto
pela experiência da pandemia do
COVID-19 que, apesar da vacinação já
em processo, ainda demandava uma
série de cuidados, quanto pelo difícil
momento político atravessado pelo
país, com risco de consolidar e
expandir por mais quatro anos o
retrocesso em todos os campos,
intolerância com a pluralidade de
modos de ser e de viver, e nítida
perseguição às universidades
públicas, refletindo-se em violento
corte de verbas e ataques à ciência.
Este cenário derramou sobre o solo
brasileiro, mais uma vez, muito suor e
muitas lágrimas - ao mesmo tempo
que mancharam a terra de tristeza,
também indicavam que ali não haveria
desistência. Foram muitas vidas
ceifadas, muitas outras impedidas de
existência livre e, pela própria
conjuntura, muitas vidas de mãos e
braços dados, no enfrentamento aos
ataques e unidos pela vida. Foi assim
que viver, para muitos povos e
saberes, se tornou sinônimo de
resistir, ao longo de nossa história de
país. Nesse momento ímpar, entre
2020 e 2022, mais uma vez se fez
necessário retomar o que sabíamos
- produzir vida é sustentar a
pluralidade da existência, contínua e
ininterrupta.
Rabisco Ubuntu : Aos vivos, aos
que já foram e aos que ainda irão
chegar
De Geraldo aos leitores
Esse rabisco nasce a partir do
encontro denominado Ciranda dos
Saberes que realizamos na Casa da
Ciência, com grupos de pesquisa do
EICOS UFRJ. Nesse sentido, é um
rabisco de muitas mãos, as mãos
desses grupos, as mãos das
rezadeiras e erveiras presentes, as
mãos da professora Marta Pinheiro
que, para nós do candomblé, retornou
à massa de origem. É também um
rabisco que fica para os que ainda irão
nascer, aqueles para quem
precisamos respeitar e preservar a
vida e a beleza do mundo, em toda
sua natureza. Portanto é um rabisco,
no sentido da concepção Ubuntu, de
uma humanidade que é vivenciada e
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
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nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
realizada com os outros. (KASHIND,
2003). Esse momento que me ensinou
e inspirou a escrever tem sua gênese
no aconselhamento ancestral de
cuidados.
Logo no início da pandemia me
lembrei da aula inaugural de 2019,
quando a Mestra Maria Muniz
Tupinambá nos falou sobre a previsão
dos encantados a respeito de uma
doença que estava prestes a chegar.
Para mim são os ancestrais que
estavam dando orientações sobre a
Covid 19.
Figura 1 aula inaugural 2019 - Campus/UFRJ/ Praia Vermelha (RJ).
Mesmo que a ciência cartesiana ainda esteja predominante nas
universidades, já um forte movimento do “novo pensar” de uma outra ciência nas
universidades, que necessariamente não anula o que está escrito, mas considera
também os ditos de outras ciências e da oralidade, e na oralidade todos falam,
inclusive os o vivos. Djibril Tansir Niane nos traz um importante ensinamento: a
língua escrita não pode ter o calor da voz humana. Todo mundo acredita conhecer,
ao passo que o saber deve ser algo secreto. Os profetas não escreveram a sua
palavra nem por isso é menos viva. Pobre conhecimento, esse que se encontra
imutavelmente fixado nos livros mudos (NIANE, 1982, p, 65).
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
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Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
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Figura 2 Ciranda dos Saberes 2022 - Casa da Ciencia/UFRJ/Urca(RJ)
O encontro na Casa da Ciência
na Urca (RJ) em setembro de 2022,
teve reza, benzedura e oficina de
xarope comandada pelas erveiras
Dona Deise e Débora com dezenas de
ervas. Teve incenso, defumador,
poesias da escritora Lírian Tabosa, e
teve esperanças. A erveira Débora,
que é filha de Oxossi e atua como
liderança no Assentamento Rural de
Campo Alegre (entre os municípios de
Nova Iguaçu e Queimados), ao sentir e
vibrar o espírito desencarnado da
professora Marta Pinheiro na oficina,
nos trouxe a percepção de visão
africana sobre a morte/vida: Os bantu
mortos, ou seja, os antepassados, têm
um lugar privilegiado, pois estão acima
dos vivos. Estes, por outro lado,
recorrem aos primeiros para aumentar
sua força vital (KASHIND, 2003).
Sentimos na pele a necessidade de
aumentar essa força, o que a mestre
Itamara, sacerdotisa de Angola
(Keualombo) fez ao nos benzer com
ramos e ervas sobre nossas cabeças.
Certamente não resolveu ali todos os
males, pois muitas curas ainda
precisam ser feitas na universidade.
Mas o encontro nos possibilitou pensar
outras formas e caminhos
epistemológicos. Como seguir
pensando pesquisas, escritas,
investigações, sem tomar como base o
aspecto sutil que nos atravessa a
todos e todas?
Com estas poucas palavras de
reflexão, espero que este rabisco
ubuntu traga ao leitor e à leitora uma
abertura para pensarmos um ser/viver
a partir da contribuição da cosmovisão
africana. Ubuntu está ligado a outro
516
COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
conceito que é o Muntu (pessoa). Os
conceitos na cosmovisão africana não
é algo que se fale, é o que se vive, é
um modo de vida. É importante
ressaltar que, na cosmovisão bantu,
ser muntu ou umuntu é estar, de fato e
em princípio, intrinsecamente ligado
aos deveres e obrigações morais. Em
outras palavras, ser muntu significa
agir bem. Fazer o mal é perder o
nosso ubuntu (o fato de ser umuntu).
(KASHIND, 2003). Neste sentido,
essas percepções me trazem
questionamentos internos acerca da
experiência de amorosidade vivida
nesse encontro, na companhia dos
que foram, dos que estavam em
nossa roda de conversa e dos que
ainda irão chegar.
Rabisco Cantando para Encantar
De Janete aos leitures e leitoras
Prezado leitor, prezada leitora:
venho aqui por meio dessas mal
traçadas linhas, lhes contar da
experiência que vivenciamos com a
Ciranda de Saberes e Cuidados
ocorrida no espaço acadêmico da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), no ano de 2022,
período pós pandêmico. Período esse
que muito nos afetou, trazendo mortes,
fome, dores, e sofrimentos de diversas
naturezas, inclusive no espaço
acadêmico sentido por estudantes,
docentes e funcionários. Chama-nos
atenção os vários adoecimentos e a
prática de suicídios. Percebemos
então, que nossa Universidade está
doente. A partir dessa percepção de
corpos desencantos pela vida, SIMAS
e RUFINO (2019), nos convida a
refletir sobre o que ele chama de
“contrato social vigente em nossa
sociedade, gerador de não vida.
No contrato social vigente,
aquele edificado em
detrimento de presenças e
sabedorias múltiplas
milenares, o racismo, a
colonização, o capitalismo, o
patriarcado, o consumo, o
dogma religioso e jurídico nos
distancia da vida. Nessa lógica
vamos nutrindo nossa
medíocre existência
aniquilando o que de vida
em tudo e construindo
civilização de assassinatos e
escassez. (SIMAS; RUFINO,
2019, p. 61).
Nos sentimos impelidos a
buscar na ancestralidade o acalanto
para nossas dores e a energia para
seguir em frente.
Iniciamos a Ciranda com a
Sassanha, o encantamento das folhas.
Ossain nos ensina que a folha tem
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
poder curativo, mas que também pode
matar. Por isso é necessário cantar às
folhas, encantá-las para que naquele
momento elas pudessem cumprir com
sua missão de cura e descarrego em
nossos corpos e no ambiente
acadêmico.
Na manhã desse dia pudemos
nos abraçar e nos consolar pelo
retorno à massa de origem da nossa
querida professora Marta Pinheiro. A
ancestralidade ali presente de forma
visível e incorporada, nos mostrou que
a vida desencarnada desse plano
seguia em paz, mas sempre em
sintonia conosco que ainda habitamos
este plano.
O manejo com as folhas nos
ensinou a importância de respeitar as
individualidades, mesmo estando no
coletivo cada pessoa precisa ser vista,
respeitada e acolhida com suas
particularidades e seus ewós
(impedimentos).
As folhas são diversas, assim
como diversos também são os saberes
e o ser de cada um. A Universidade
deveria por excelência ser o lugar
onde as diversidades se encontram,
multiplicam, se acolhem se
potencializam. Para realizar a
benzedura das pessoas e do espaço
foram colhidas diversas ervas, cada
uma com sua potencialidade e
finalidade.
Dentre as folhas ali dispostas
havia uma que me causava
desconforto, a arruda. A
ancestralidade que vive em mim
orienta que, para meu bem estar, as
folhas da arruda sejam retiradas do
conjunto de folhas que compõem o
meu ritual de benzedura. E assim foi
feito, a nossa Mestre e Ialorixá
Itamara, atendeu a orientação dada e
não utilizou as folhas da arruda.
Ossain me trouxe nesse momento um
grande sinal de alerta, a permanência
no espaço acadêmico o pode
obrigar a todos a utilizar as mesmas
folhas, as mesmas ferramentas, as
mesmas metodologias. Ou seja, não é
necessário a utilização de
procedimentos que vão causar dor,
sofrimento e mal estar ao outro.
Existem muitas ervas na natureza, é
possível fazer uso daquelas que
promovam o nosso crescimento,
intelectual, físico e emocional, assim
como existem vários métodos,
técnicas de pesquisa capazes de
atender a múltiplas inteligências dentro
da academia.
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Trago aqui para nossa leitura e
reflexão o Ìtán de Ossain que conta
que Ele vivia na floresta com seu
amigo e ajudante Aroni. Um dia
Ossaim juntou vários tipos de folhas e
as guardou em uma cabaça e
pendurando-a em uma árvore. Porém,
tal atitude despertou a curiosidade dos
outros Orixás, então Xangô e Oya,
criaram um plano para descobrir o que
havia na cabaça que Ossaim guardava
com tanto cuidado e segredo. Oya
cantou e dançou chamando o vento,
seu elemento de Axé, o vento veio
quebrou o galho da árvore e a cabaça,
espalhando as folhas. Os Orixás
correram, cada um pegou uma folha e
a tomou como sua. Porém, o
conhecimento sobre a utilização das
folhas ainda pertencia a Ossaim, a
Ele Olodumare (Deus) deu o poder de
conhecer as folhas e o seu manuseio.
Ossaim sabe acordar as folhas
para que se tornem bálsamos que
curam as mazelas da vida das
pessoas. Mas, uma vez que as folhas
estavam em poder dos Orixás,
Ossaim ensinou a cada um como
utilizar suas folhas, ressaltando que,
antes, uma saudação deverá sempre
ser feita a Ele, para que a folha ganhe
sacralidade e poder de cura. Esse Ìtán
nos traz a beleza do compartilhamento
de saberes, as folhas espalhadas
pelos ventos, assim como os
conhecimentos para serem
potencializados, precisam ser
cantados e encantados diariamente.
Eu termino essas linhas,
saudando Ossaim:
EWE, EWE, OSSAIM!
Eu te saúdo pelo poder de nos
despertar, nos curar e nos empoderar
através de suas folhas sagradas!
Rabiscos sobre o bailar do salão à
cozinha - cirandamos em todos os
lugares
De Eliana àqueles e àquelas que
nos lêem
À você que lê este rabisco,
desejo saúde e paz.
Rabiscar me ajuda a organizar
as experiências da Ciranda de
Saberes e, ao mesmo tempo, permite
que eu as comunique a partir daquilo
que realmente me afetou e que o
mencionaria em uma escrita mais
formal, por considerar que seria
rotulada como “pouco científica”,
“emocional”, “excessivamente
subjetiva”. Ao reler minhas escritas,
com frequência percebo que
invisibilizo a origem negra do saber
tradicional que me habita, e o mesmo
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
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ocorreria aqui, se não fosse o recurso
do rabisco - a liberdade de traçar
escritas. Isso me sinalizou o quanto de
racismo é preciso desconstruir.
A Ciranda marcou nosso
reencontro presencial após um
afastamento de dois anos e meio, em
virtude da COVID-19. Eu estava feliz
pelo encontro e triste pela partida a
professora Marta. Sobre esta partida,
me sentia particularmente mobilizada,
pois estou naquele período tenso e
esperançoso de remissão de um
câncer, e aquela foi a primeira vez que
lancei uma interrogação sobre minha
cura, uma vez que Marta havia perdido
a batalha para essa mesma doença.
Tentava me equilibrar entre a
felicidade do reencontro e a pequena
porém insidiosa sensação de medo
pela existência. Confesso que, por
conta disso, esperava com certa
ansiedade a chegada de Itamara,
colega de Laboratório e Yalorixá, que
nos benzeria com ervas.
Logo no início, durante a
homenagem à professora Marta, uma
das mestras que iria conduzir uma
roda de conversas sobre ervas,
incorporou, suavemente, uma entidade
que nos trouxe notícias da saudosa
professora.
Veja bem, você que este
rabisco: incorporações não me o
estranhas, pois alguns de meus
familiares são praticantes da
Umbanda. Mas aquele corpo
expandido para outras categorias de
tempo/espaço, demarcando um
território onde poderíamos incluir as
várias presenças, me deslocou!
Sempre considerei as entidades de
Umbanda; contudo, sempre tracei uma
fronteira gida entre esta
espiritualidade e a academia.
Presenciar tal manifestação em
um evento acadêmico e começar a
sentir que se fazia uma ponte,
começando a apontar uma cura à
cisão que eu praticava, me emocionou.
Confesso que tive dificuldade em me
concentrar e acompanhar a primeira
parte da roda de conversas sobre as
ervas; sentia-lhes a textura, o aroma,
mas estava pouco atenta às
propriedades das mesmas, que
estavam sendo referenciadas.
A experiência de um círculo
onde, na prática, se apresentaram
outras referências das dimensões
afetivas, espirituais, comunitárias e
ancestrais foi intensa! Ser benzida
pela colega de pesquisa, mãe Itamara,
foi um bálsamo! O aroma da arruda
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
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remeteu-me à minha bisavó, também
benzedeira. As fronteiras entre as
leituras acadêmicas e o vivido
tornaram-se mais fluidas.
Mas as grandes transformações
acontecem, também, nas cozinhas, ao
do fogo, transformando texturas,
unindo sabores. Na cozinha do evento
foi feito o xarope de ervas. Ali
conversei com duas companheiras de
laboratório de pesquisa, ambas
iniciadas, uma no Candomblé e outra
na Umbanda, que me descreveram, na
medida do possível e permitido, seus
processos com a espiritualidade.
Creia, você que está lendo estes
rabiscos: eu as ouvi com a mesma
atenção com que leio Bell Hooks
(2013) quando esta autora nos diz que
a teoria é um bálsamo, e é capaz de
curar.
Mesmo participando de um
laboratório onde os saberes
tradicionais são presentes nos debates
e leituras, reconheço que ali estava
uma episteme impossível de ser
descrita de forma grafocêntrica. Era
um conhecimento que se transmitia,
também, pelo tom da voz, pelo
acolhimento do olhar, pelo som do
tacho no fogo, pelo perfume das ervas.
O tacho onde fervia o xarope de ervas,
parte da programação da Roda,
remeteu-me aos xaropes de guaco e
chás de laranja-da-terra de minha
infância. Pensava em todo o
conhecimento de minha bisavó e avós,
que simplesmente silenciei em mim,
em nome de uma formatação que
considerava mais adequada,
tristemente mais branca.
Fez muito sentido uma
expressão que ouvi da Samira, minha
supervisora de pós doutorado, que
considero um conceito a ser
desenvolvido: o corpo-nuvem, que
atravessa bloqueios físicos, supera
distanciamentos, migra em
deslocamentos existenciais. Quando
ouvi, pela primeira vez, durante a
pandemia, atribui-lhe um sentido literal
a nuvem da web. Entendo agora
esta outra qualidade corporal, que se
expande no tempo/espaço e permite
um encontro com a ancestralidade,
criando outros sentidos de
temporalidade e espacialidade.
Enquanto rabisco, penso nas
escritas de dissertações, teses,
artigos, relatórios de pesquisa, que
como lembra Grada Kilomba,
obscurecem potências (2019), ocultam
justamente esses “encontros na
cozinha”, as falas mais intimistas, as
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
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trocas mais intensas. Não posso
deixar de sorrir quando lembro que a
primeira reunião daquela que se
tornaria a comissão organizadora da
Ciranda de Saberes aconteceu em um
bar, no campus - entre cervejas
geladas e batatas fritas,
entrelaçávamos nossas proposições
para a realização do encontro, nossas
memórias, nossas questões
cotidianas. Não era de se admirar que,
ali naquele bar, falando de pesquisas e
cuidados, se encontrassem corpos
pretos de muitos tons. Os saberes
ancestrais de Itamara, Janete e
Geraldo, vividos e expressos em suas
pesquisas, formaram a base a partir da
qual começamos a conversar sobre o
desenho do encontro.
Comecei a refletir sobre debates
e conversas. A argumentação e defesa
de ideias, bem como as palestras, têm
seu lugar e propósito na academia,
sem dúvida. O que às vezes me
parece perdido é o tempo/ espaço
para o bom exercício coletivo da
conversa, da escuta, como se a
universidade não se concedesse tal
momento para dar atenção e cuidado
ao seu próprio corpo potente. É
urgente, criarmos esses momentos de
encontro com saberes tradicionais, em
um exercício político de cuidado nossa
saúde.
Essa Roda convocou minhas
memórias e ativou em mim um
movimento que chamarei pelo conceito
adinkra de sankofa: nunca é tarde para
voltar e pegar o que ficou para trás.
Muitos desdobramentos estão
acontecendo, muitos movimentos
iniciaram, mas isso contarei em outros
rabiscos. Agradeço sua leitura e até a
próxima correspondência.
Rabiscos sobre a sabedoria
ancestral na arte de curar
De mãe Itamara a quem nos lê
Queridos leitores e queridas
leitoras, desejo a vocês maravilhosas
energias do sol e da lua.
Venho por meio desta carta
conversar com vocês sobre sabedoria
ancestral, arte de curar através das
rezas e benzimentos, memórias,
cuidado costurando ponto a ponto
nossas historias nesta ciranda que é a
vida.
Começarei tecendo como o
aprendizado sobre rezas e
benzimentos deixados por minha
Silvia, transformou o meu ser. Minha
Vovó Silvia era rezadeira, parteira e
Mãe de Santo na Raiz Angola, tinha
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
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muita sabedoria sobre ervas e rituais
para curar. O que minha avó, mulher
preta que criou seus filhos e netos
sozinha, deixou para nós é um legado
de acolhimento e cuidado uns com os
outros.
Minha vida reflete um grande
exemplo de como as nossas vidas
estão envoltas pela ação das
rezadeiras, sempre presentes, de
alguma forma, especialmente na na
minha infância. São mulheres que
conhecem várias orações e ritos que
ajudam na cura de muitas pessoas e
até de plantas e animais. A união de
dois importantes elementos: a na
ação das rezadeiras e a combinação
de ervas contribuem para a cura de
muitas pessoas, que, muitas vezes,
não têm como recorrer à medicina
convencional acadêmica.
As rezadeiras sempre tiveram
papel muito importante junto à
população preta pois, sem acesso à
medicina convencional acadêmica,
recorriam aos chás, garrafadas e ritos
na busca da cura. Foram as rezadeiras
que curaram, salvaram e perpetuaram
a existência da população negra no
Brasil. A elas cabe a importante tarefa
de curar os males do corpo e do
espírito. As rezas, os banhos, os chás
fazem parte dos elementos que
utilizam para realizar sua grande
missão, que é cuidar. São saberes
passados por gerações através da
oralidade, construindo lembranças e
reafirmando suas identidades. Apesar
de todas as tentativas contrárias, as
rezadeiras m resistido ao longo da
nossa história, mulheres que trazem
nessa ciranda da vida sua função
social de preservação da vida e da
cultura junto com a comunidade,
reafirmando suas tradições e crenças
e principalmente o respeito e a
preservação do sagrado e das
memórias.
Na dança desta ciranda das
memórias estivemos juntos no
encontro Ciranda dos Saberes e
Cuidados na Casa da Ciência, em
2022, com o grupo de pesquisa junto
ao qual eu havia acabado de concluir
minha pesquisa de mestrado - sobre
racismo e resistência das casas de
candomblé.
O encontro se constituiu em
uma ciranda de energias, levando
conosco corpos doloridos e
resistentes, carregando sofrimentos e
enfrentamentos causados pela
pandemia da covid 19. Levamos para
esse espaço a reza, as velas, as
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
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folhas, os benzimentos,o respeito e a
união.
O espaço acadêmico tem um
movimento grande de pessoas. São
variadas energias circulando, muitos
caminham só, corpos adoecidos por
diversas dores que a vida impõe. A
reza é um cuidado com o outro, a reza
abraça, acolhe e diz que ali tem amor.
Neste espaço adoecido, a maior
concentração é de energias em torno
do discurso do "eu estou só" e da
competição no clima de que "vence o
melhor". Porém, ninguém sai da
universidade do mesmo modo que
entrou, exatamente por ser um
ambiente com inúmeras
possibilidades. Seguir o modelo
individualista e competitivo é apenas
uma das possibilidades, não é a única.
As diversas mudanças sociais
ocorridas nos últimos anos
relacionadas aos valores, ao avanço
tecnológico e às transformações da
vida em sociedade, como o aumento
do isolamento social, a individualidade
e a competitividade, são alguns fatores
que influenciam na saúde mental da
população como um todo. Os
sentimentos de angústia, tristeza,
saudade, a vontade de desistir, entre
outros, estão presentes. Entretanto,
dadas as condições necessárias e
facilitadoras de uma relação humana
acolhedora, de cuidado entre os
grupos e a universidade, é possível
sair desta experiência positivamente
transformado; mas também é possível
sair morto.
Levar a reza para o espaço
acadêmico nos serve de referência,
preserva memórias e é relevante para
nossa identidade e produção do
cuidado.
Memória é uma palavra que
nos veio do latim,
preservando, em português, os
dois sentidos fundamentais
que possuía na origem.
Memória, em primeiro lugar, é
algo que não está em lugar
algum, por que ocupa e
preenche todos os lugares. É
um substrato, repositório dos
produtos de nosso passado
que sobrevivem no presente,
condição mesma do tempo
presente. É a tramados
vestígios oriundo de diferentes
épocas e condições de
produção, que constitui a
espessura mesma daquilo que
existe, como cristalização e
permanência do que não
morreu, daquilo que nos liga
aos mortos na medida em que
sobrevive no presente”
(GUARINELLO, 1995, p. 187).
Conhecer a ancestralidade pode
nos ajudar a compreender melhor
quem somos, a entender com mais
clareza nossas identidades, nossas
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
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25, p. 506-528, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
origens, nossas crenças e nossas
culturas. Nos auxilia a compreender
como nossas raízes nos influenciam.
Tecer cerzimentos e bordados
entre a ancestralidade e a academia é
sempre colocar um pouco de si, é
confluir, é se reencantar e sonhar.
Lembrando o Mestre Bispo, que
esteve conosco em uma aula do
Mestrado em 2018,“Vemos de forma
circular, pensamos e agimos de forma
circular e, para nós, não existe fim,
sempre demos um jeito de recomeçar”
(Santos, 2015).
A força da minha ancestralidade
me mostra pequena, mas me permite
fazer parte desse todo. Que o canto de
Cristine TakuaMaxacali e seu tambor
tragam esperanças,possibilidades de
voltar a sonhar, a tecer junto, a dançar
ao som do tambor e das maracas,
para dali sim dialogar, criativa e
afetivamente com os mestres, com os
pares, com os encantados e a
natureza que me cerca e da qual sou
feita. Daqui parto, pedindo licença pra
chegança, honrando minha
ancestralidade, minhas raízes
profundas que me possibilitam asas e
reafirmando o título, talvez intuído de
minha humilde, sigo em busca do
aprendizado. Coragem.
É sobre confluir e transfluir com todos
os habitantes do cosmo.
Rabiscos junto aos Encantados
De Margareth para os Leitores e
Leitoras
Prezados leitores
Nestes rabiscos partilho os
ensinamentos sagrados com base na
minha experiência pessoal, para que
cada um possa conhecer um pouco
deste universo para nós ainda
subjetivo.
Primeiramente peço-lhes que
abram seus corações para algumas
experiências que irei relatar que
merecem atenção, uma vida paralela
que poucos conhecem: o mundo dos
seres encantados e de saberes
orgânicos.
Estudiosos de tais assuntos
como Raymundo Heraldo Maués, Luiz
Rufino, Mundicarmo Maria Rocha
Ferretti, João Paulo Lima Barreto,
dentre outros, nos contam que os
encantados são seres invisíveis que
vivem nas florestas e nas águas, que
podem tanto ajudar como malignar os
humanos. Podem possuir o corpo e a
mente de uma pessoa e são vistos
pelos que têm uma “visão aberta” para
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
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a espiritualidade. Querendo ou não,
acreditando ou não, gostando ou não,
estamos vinculados a estes seres não
humanos através dos nossos
ancestrais.
Ainda penso o quanto é
primitiva, visceral e potente esta
relação, estabelecida pelos nossos
povos originários através das
pajelanças e do consumo das ervas
que possibilitam adquirir os seus
saberes. Criou-se um caldeirão de
saberes quando nossos irmãos
africanos chegaram em nossa casa
comum, com a colonização e a
escravização. Fizeram de seus
sofrimentos a base para a resistência,
a existência e a produção da vida.
Hoje, quando presencio uma reza,
uma benzeção, um passe, uma dança,
banhos e chás de ervas, me emociono
por ainda presenciar a origem de
minha vida.
A oportunidade da Universidade
Federal do Rio de Janeiro UFRJ de
realizar uma Ciranda de Saberes
reunindo discentes, docentes e
comunidade participante das
pesquisas (pesquisadoras
comunitárias, portanto) é algo
extraordinário. É proporcionar o
reencontro de mães e filhos. É poder
vivenciar saberes tradicionais. É um
momento especial de união,
acolhimento e cuidado, onde o bem-
estar circula. Me traz uma recordação
afetiva de minha infância quando ía
com meus familiares para as sessões
mediúnicas da umbanda chamadas
pelo meu pai de curimba, a noite numa
cabana no meio do mato no sítio do
meu tio. Apesar de ficar assustada
com as incorporações e com a mata,
valia a pena, pois recebia carinho e
cuidado de um primo mais velho que
me carregava na 'carcunda' (sentada
no ombro) durante todo trajeto de ida e
volta pelo mato a dentro.
A oferta destes encontros de
trocas de saberes nas universidades,
proporcionam de certa forma uma
aproximação com a nossa essência e
com a natureza. Esta aproximação é
algo necessário, quase que obrigatório
para o desenvolvimento de futuros
cientistas. Precisamos nos reconectar
com o sagrado, com a natureza e com
tudo que nela vive, sendo humanos ou
não humanos. Acredito que só assim,
construiremos uma ciência mais
qualificada.
A Ciranda aconteceu porque
se havia iniciado um caminho sem
volta: a entrada dos saberes
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
nos cuidados com o corpo potente da Universidade. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 506-528, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
tradicionais na universidade é
necessário e irreversível.
Em 2021, na disciplina remota
do Encontro de Saberes, como
estudante de doutorado tive a
oportunidade de participar de uma aula
ministrada por uma mãe de santo e foi
visível o encantamento e interesse dos
discentes, a começar pelas
vestimentas e por todo o ritual. Eu
fiquei surpresa ao assistir aquela aula,
pois nunca havia presenciado tal
evento numa universidade. Pensei nas
pessoas que ali estavam e que nunca
haviam visto uma mãe de santo com
suas guias e roupas brancas. Fiquei a
observar a reação das pessoas e para
minha surpresa não presenciei
nenhuma cara feia ou
descontentamento. Acho
importantíssimo o confronto de
realidades para poder modelar novas
epistemes.
Tudo que até agora foi narrado
aqui, para alguns o passa de
crendices e folclore, no entanto para
muitos como no interior do Amazonas
é uma realidade. os não-humanos
vivem como os humanos com
vontades, sensações, emoções e
desejos. São respeitados por seus
poderes de cura ou de maldades. Lá
existem outros mundos onde vegetais,
animais, minerais e outros seres o
humanos compartilham da mesma
vida que temos, e por incrível que
pareça, todos se entendem. Então lhes
pergunto, o que nos distanciou dos
diversos mundos existentes?
Saberes Tradicionais nos cuidados
com o corpo potente da
Universidade fechar uma gira
preparando para um recomeço
A perspectiva hegemônica da
universidade brasileira pauta-se pela
busca de um conhecimento
especializado, precariamente
assentado em ideais inalcançáveis de
pureza, verdade e certeza. Elimina-se,
assim, o desconhecido; a força motriz
de todo processo de conhecer, Desse
modo, elimina-se a vida, seus sinais e
vestígios, criando um território de
segurança e controle consubstanciado
na palavra escrita, desencarnada,
apartada de qualquer possível sinal de
vitalidade, constituindo-se um ideal
eurocentrado, egocentrado e
grafocentrado de formação de
escribas. As experiências e reflexões
proporcionadas pela Ciranda
mostraram-nos que a palavra escrita,
caso fosse empregada em parâmetros
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COSTA, Samira L.; RIBEIRO, Eliana N.; BASTOS, Geraldo da S.; PONTES,
Margareth A.; SANTOS, Itamara S. de A.; NASCIMENTO, Janete B. do.
Ciranda de saberes e cuidados: Rabiscos sobre os Saberes Tradicionais
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25, p. 506-528, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
grafocêntricos_ excluindo as narrativas
plurais de nossos corpos_ silenciaria
a ampla gama de sentimentos e
percepções que nos atravessaram
durante a Ciranda.
A ampliação do horizonte
epistêmico, com a inclusão de saberes
até então considerados “outros”,
abarcando dimensões espaço-
temporais mais sutis, convidaram a
uma expansão de repertório e,
concomitantemente, propiciaram
aprofundamento de conceitos
trabalhados na universidade, como
pode ser lido nos rabiscos de Eliana
que, citando Bell Hooks (op. cit)
encontrou na experiência vivida
durante a Ciranda um encontro unindo
o teorizado e o vivido, permitindo-lhe
refletir acerca de conceitos que vem
desenvolvendo em sua pesquisa.
Fizemos deste artigo um
bálsamo e uma reza forte, nos
protegendo da competição e solidão
ainda presentes na universidade, que
são responsáveis pelo sofrimento
mental e adoecimento físico de muitos
de s A oportunidade de, através do
encontro pluri-epistêmico,
reencontrarmos o que sempre esteve
ali, conosco: nossos corpos, histórias,
nossos caminhos de pesquisa, foi um
alento e um acolhimento, convidando-
nos ao cuidado e autocuidado.
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