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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Educando com mel e dendê: saberes dos terreiros, crianças e educação
antirracista
Paula Ferreira dos Reis
1
Elaine Monteiro
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v13i2558002
Resumo: Este artigo é resultado da pesquisa de trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em
Pedagogia. Buscou investigar o terreiro como um espaço de educação e como um lugar que produz
uma narrativa da história do povo preto no Brasil, identificando como ocorreu na diáspora africana a
resistência à escravidão e à dominação no Candomblé, assim como processos de transmissão de
saberes e de afirmação da identidade negra. Se fundamenta e justifica no estudo do racismo
estrutural (Almeida, 2019), em sua relação com a escola e com o currículo e em suas implicações e
consequências na subjetividade de pessoas negras, em especial as crianças. Apresenta o terreiro de
candomblé como espaço de educação, de cultura, de fortalecimento e afirmação da identidade de
pessoas negras. Os referenciais teórico-metodológicos da pesquisa tomam por base os conceitos de
encruzilhada, de rodopio, de pesquisador-cambono, assim como os de oralidade e oralitura
especialmente para tratar a entrevista realizada com Mãe Rosiane Rodrigues de Yemanjá. A partir da
entrevista e do diálogo que nela se estabelece, emergem questões como ancestralidade, educação
nos terreiros, infância, racismo, problemas enfrentados pelas crianças do candomblé na escola e
relação entre o candomblé e a vida.
Palavras-chave: educação nos terreiros de candomblé; infâncias; racismo religioso; racismo na
escola.
Educando con miel y dendê: conocimientos de los terreiros, niños y educación antirracista
Resumen: Este artículo es el resultado de un trabajo de investigación para la realización de la
Licenciatura en Pedagogía. Buscó investigar el terreiro como espacio de educación y como lugar que
produce una narrativa de la historia del pueblo negro en Brasil, identificando cómo ocurrieron las
resistencias a la esclavitud y la dominación en Candomblé en la diáspora africana, así como los
procesos de transmisión. de conocimiento y afirmación de la identidad negra. Se fundamenta y
justifica en el estudio del racismo estructural, en su relación con la escuela y el currículo y sus
implicaciones y consecuencias en la subjetividad de las personas negras, especialmente los niños.
Presenta el terreiro de Candomblé como un espacio de educación, cultura, fortalecimiento y
1
Paula Ferreira dos Reis. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da
Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: paulareis9562@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-
2679-2283.
2
Elaine Monteiro. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Professora Associada do Departamento Sociedade, Educação e Conhecimento da Faculdade de
Educação da UFF, Brasil. E-mail: elainemonteiro@id.uff.br - https://orcid.org/0000-0001-6122-3281
Recebido em 06/04/2023, aceito para publicação em 27/06/2023 e disponibilizado online em
01/09/2023.
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
afirmación de la identidad del pueblo negro. Los referentes teórico-metodológicos de la investigación
se basan en los conceptos de encrucijada, rodopio, investigador-cambono, así como oralidad y
oralitura, especialmente para tratar la entrevista realizada a Mãe Rosiane Rodrigues de Yemanjá. De
la entrevista y del diálogo establecido en ella, emergen temas como la ascendencia, la educación en
los terreiros, la infancia, el racismo, los problemas que enfrentan los niños de candomblé en la
escuela y la relación entre el candomblé y la vida.
Palabras clave: educación en terreiros de candomblé; infancias; racismo religioso; racismo en la
escuela.
Educing with honey and dendê: knowledge of the terreiros, children and anti-racist education
Abstract: This article is the result of research work for the completion of the Degree in Pedagogy. It
aimed at the investigation of the terreiro as a space for education and as a place that produces a
narrative of the history of the black people in Brazil, identifying how resistance to slavery and
domination in Candomblé occurred in the African diaspora, as well as processes of transmission of
knowledge and affirmation of black identity. It is based and justified on the study of structural racism,
in its relationship with the school and the curriculum and its implications and consequences on the
subjectivity of black people, especially children. It presents the Candomblé terreiro as a space for
education, culture, strengthening and affirmation of the identity of black people. The theoretical-
methodological references of the research are based on the concepts of crossroads, whirlpool,
researcher-cambono, as well as orality and oral reading specially to deal with the interview carried out
with Mãe Rosiane Rodrigues de Yemanjá. From the interview and the dialogue established in it,
issues such as ancestry, education in the terreiros, childhood, racism, problems faced by candomblé
children at school and the relationship between candomblé and life emerge.
Keywords: education in candomblé terreiros; childhoods; religious racism; racism at school.
Educando com mel e dendê: saberes dos terreiros, crianças e educação
antirracista
Apresentação
Este artigo é resultado de
pesquisa realizada em trabalho de
conclusão de curso de graduação
Licenciatura em Pedagogia. Minha
participação foi a orientação de Paula
Ferreira dos Reis, jovem mulher negra,
professora, candomblecista. Uma
mulher de Oxum determinada que
quando chegou até mim tinha
certeza do que queria pesquisar e
tinha muito a dizer sobre o seu
trabalho. Por três semestres
consecutivos nos encontramos
regularmente, fizemos leituras
importantes que deram sentido ao
trabalho, conversamos muito e a
pesquisa fluiu.
Tivemos que tomar algumas
decisões: o que fazer com uma
entrevista tão rica em saberes,
posturas, atitudes? Extrair dela
fragmentos e tomar a entrevistada
como informante ou transcrevê-la
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
praticamente na íntegra e conceber a
entrevistada como sujeito da pesquisa
e do conhecimento? E o caminho que
levou Paula até a pesquisa? Uma vida
inteira de relações familiares,
comunitárias, religiosas que deram a
ela um conhecimento tácito sobre o
seu objeto de estudo, os processos
educativos no terreiro de candomblé.
Ela não queria extrair informações de
sua entrevistada, mas queria com ela
dialogar, inclusive a partir de sua
experiência de vida.
Juntas, com uma relação de
confiança mútua baseada em estudos
e em intensos debates sobre nossas
leituras, decidimos tratar os dados da
pesquisa com o cuidado e o respeito
que Mãe Rosiane, a Mãe de Santo
entrevistada, merece, assim como com
a dignidade de concebê-la como
sujeito do conhecimento e de trazê-la
para o texto com suas falas
praticamente na íntegra.Entendemos
que o conhecimento produzido neste
trabalho provém eminentemente de
seus saberes. Mas Paula queria
perguntar, conversar e deixar-nos
conhecer o seu envolvimento com o
tema. Foi isso que ela fez a partir do
conceito de escrevivência de
Conceição Evaristo, com quem
dialogou em textos (2020) e em
depoimentos (2020). E com a
professora Fernanda Felizberto (2020),
em suas reflexões sobre o conceito de
escrevivência como “rota de escrita
acadêmica”, em especial de jovens
mulheres negras universitárias.
Inicialmente, fundamentamos o
trabalho com o racismo estrutural
(Almeida, 2019; Munanga, 2012) e
suas implicações na escola e no
currículo. As leituras iniciais sobre os
terreiros foram realizadas e trazidas
por Paula (Sodré, 2019; Silva e
Borges, 2021), que tinha certo
acúmulo sobre o tema, além de sua
vivência, evidente quando neste texto
nos leva para o terreiro e nos
apresenta o que tem aprendido
desde criança. O aprofundamento de
questões relativas ao terreiro,
sobretudo de sua relação com a
educação, está no que incorporamos à
escrita a partir da entrevista realizada
com Mãe Rosiane. Como apontado, o
maior desafio teórico-metodológico da
pesquisa foi o tratamento da
entrevista. E o resultado das escolhas
feitas e das decisões tomadas pode vir
a contribuir com a realização de
trabalhos que buscam diálogos e
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
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25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
encontros entre saberes considerados
“acadêmicos” e saberes tradicionais.
Debates de caráter
epistemológico têm se intensificado na
universidade desde as primeiras
experiências de implantação das cotas
raciais e a consequente presença de
estudantes negras e negros e
indígenas na academia. Projetos como
o Encontro de Saberes (Carvalho,
2019), que também orientou e
fundamentou este estudo, têm
proposto formas diversas de inclusão
de saberes tradicionais e de suas/seus
detentoras/es na universidade, seja na
produção e difusão de conhecimentos,
com atividades de pesquisa, seja em
atividades de ensino ou de escrita e
comunicação acadêmica. Em Leda
Maria Martins (2021), encontramos a
grafia da memória e da oralidade, com
as oralituras, que muito contribuíram
para que fizéssemos a opção pela
transcrição da entrevista e sua
incorporação ao texto.
Ainda com Martins (2021), em
um belíssimo trabalho sobre o Reinado
do Rosário no Jatobá, cuja primeira
edição é de 1997, aprendemos sobre
as encruzilhadas. Vimos que as
culturas negras são culturas de
encruzilhadas que matizaram
territórios americanos e que
evidenciam cruzamentos entre
tradições e memórias orais africanas
com outros códigos e sistemas
simbólicos.
Como temos visto mais
recentemente, em especial nos
estudos e debates trazidos por Simas
e Rufino (2018) e por Rufino (2019), os
cruzos e as encruzilhadas podem
contribuir para o atual debate
epistemológico sobre a universidade.
Foi nos dois autores que encontramos
na proposta do pesquisador cambono
o caminho para o tratamento que foi
dado à entrevista.
No exercício da cambonagem,
Paula escutou, anotou, escreveu o que
Mâe Rosiane falou.E cuidou dessa
escrita, assim como observou, duvidou
e perguntou. Como os dois autores
colocam, o pesquisador cambono
auxilia, cuida e exercita a dúvida. Foi
um pouco de tudo isso que Paula
procurou fazer. E transformou a
entrevista em diálogo, em uma
conversa entre duas mulheres negras
sobre processos educativos nos
terreiros de Candomblé. Conversa que
produz conhecimento a partir de
trajetórias de vida, de saberes de
experiências, de vivências e de
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
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25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
diálogos com autoras/es, textos e com
fatos que fundamentam o trabalho.
Conversa que ganha materialidade em
um texto escrito quando é oralitura.
Não vou adiantar os resultados
da pesquisa ou fazer deste texto um
uma introdução. A intenção era
apenas delimitar o meu papel, para
avisar que minha participação foi a de
orientar e de fazer certa mediação
institucional a partir do lugar que
ocupo na universidade. Com base nas
referências rapidamente citadas, o
texto é escrito em primeira pessoa.
Na publicação do artigo, eu fiz
apenas a proposição, porque acredito
na importância de compartilhar uma
pesquisa como essa e de procurar
contribuir com o longo caminho a
percorrer no desenvolvimento de
metodologias inclusivas de pesquisa e
de produção de conhecimento para a
educação antirracista. Orientei alguns
aspectos da redação do texto e cumpri
o papel institucional, que a mim
garante a prerrogativa de submissão
do trabalho para publicação.
Paro por aqui, com o
agradecimento a Paula pela parceria
no trabalho e o desejo de sucesso no
mestrado que está cursando. Que
ela voe alto em sua trajetória, que
faz parte das necessárias
transformações da universidade.
Agradeço também a Mãe Rosiane pela
oportunidade de aprender, entre tantas
outras coisas, que os terreiros educam
crianças pretas para a vida na
sociedade racista. As vivências e os
ensinamentos nos terreiros garantiram
e garantem a sobrevivência e a vida
de crianças e de adultos. Axé!
Pesquisa e “escrevivência”
O tema desta pesquisa vem da
minha experiência enquanto
candomblecista e da minha jornada
entre terreiro e escola: em um dos
espaços eu amava e celebrava minha
cultura enquanto no outro sentia
vergonha e escondia o que fortalecia
minha subjetividade. A escola e a sua
dinâmica estão pautadas em uma
lógica ocidental, que exalta uma
cultura e ignora outras. Por isso, o foco
deste trabalho é discutir a educação a
partir das culturas afro-brasileiras.
Joice Berth (2020) afirma que
não se descobriu negra, mas foi
acusada de sê-la. A minha história é
atravessada por essa perspectiva.
Quando percebi que era negra, não foi
algo que me engrandeceu ou foi
motivo de orgulho: o primeiro
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
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25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
sentimento que veio foi o de vergonha
e desprezo.
O racismo nos afeta
subjetivamente e de forma violenta.
Por exemplo, eu, com a experiência de
uma criança preta em uma escola
particular, sempre me senti como uma
figura não pertencente àquele espaço.
Demorou um tempo para eu perceber
porque não me sentia à vontade. A
verdade é que, quando você é preta, o
sentimento de não se encaixar em
algumas situações, de não achar seu
cabelo bonito e de sempre pensar que
algo de errado com você é
constante. Até entendermos o que se
passa demanda tempo, estudo e
autoconhecimento.
Cresci aprendendo a cantar e a
rezar em outra língua, em um espaço
majoritariamente preto, onde as
mulheres eram valorizadas e
respeitadas. A oralidade era a forma
como os ensinamentos eram
passados. Além disso, os itans - mitos
iorubás - o a forma de transmitir os
ensinamentos. A partir deles nós
aprendemos qual orixá come o que, o
porquê se veste de tal forma, o porquê
faz tal ato na hora da festa e como
seus filhos devem se portar no mundo,
levando em consideração que
carregam aquela energia específica
dentro de si.
Os terreiros de candomblé e
umbanda produzem cultura e
educação próprios, mas ficam
marginalizados por pertencerem a
religiões de matriz africana. O racismo
estrutural que existe no Brasil desde
os tempos da escravidão (Almeida,
2019) invisibiliza essa cultura e seus
processos de transmissão, mas ela
resiste. Falar sobre candomblé é tratar
sobre respeito à natureza e aos mais
velhos. Além disso, é possível
aprender geografia a partir da religião,
visto que cada parte da África cultua
os orisás, voduns ou inquices de uma
forma diferente, é aprender também
sobre filosofia, entre outros tantos
ensinamentos.
No entanto, a colonização
impôs uma hierarquia de
epistemologias e determinou o que é
importante e legítimo e o que não é.
Com isso, a escola, por exemplo, tem
em seu currículo uma diretriz que
percebe o mundo em uma única
perspectiva, que sempre trabalha
autores brancos e, mais, conta a
história a partir de uma única narrativa.
O poema de Luiz Antonio Simas
(2021) nos faz refletir:
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
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25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Sonetos de Birosca: Educação
Mas afinal, quem é o bem educado
Somente aquele que conhece o livro e lê
Ou também é alguém que foi versado Na
diferença entre o cabula e o aguerê?
Diga-me lá: quem é o dono do pensar
O bem formado na França, Alemanha
Ou a criança que aprende a despertar
A folha certa no canto da sassanha?
Eu quero Bach cruzado com Pixinguinha
A sinfonia, o toque da avamunha
A Odisseia, o som do barravento
O Danúbio nos versos de Hölderlin
Oxalufan dançando o seu igbin
O bravum arrepiando o ser no tempo.
Entendo que é importante falar
de terreiro com pessoas que fazem
parte desse ambiente, que vivenciam
de forma plena essa religião e ouvem
aqueles que tempos reverenciam
seus ancestrais.
A vivência de terreiro atravessa
minha vida. Quando criança amava
participar das festas e ajudar nas
funções (que é o momento de preparar
os eventos rituais). No terreiro me vi
potente. Naquele território, além de ter
muitas pessoas pretas, as mulheres,
em sua maioria, eram deres, aquilo
mexeu muito comigo. O machismo e o
racismo fizeram com que fora daquele
espaço eu não visse mulheres pretas
em lugar de poder. Na escola, não
tinha uma professora preta, por
exemplo. Além disso, o lugar que para
mim era sinônimo de orgulho e
pertencimento também poderia ser
motivo de vergonha por causa do
racismo religioso.
Na escola, todos se sentiam à
vontade para contar da escola bíblica
dominical ou da catequese e eu, ainda
criança, não entendia bem o porquê,
mas não me sentia bem para falar que
ia ao terreiro. Acredito que naquele
momento minha monografia começava
a ser escrita, a partir dos meus
sentimentos contraditórios. Aliás, vou
mais longe. Minha monografia começa
a ser escrita através da resistência dos
meus ancestrais ao não assimilarem a
religião do colonizador.
Para desenvolver uma
educação antirracista, é preciso
primeiro admitir o racismo epistêmico
3
e romper com ele. A ideia de
hierarquizar saberes e culturas vem da
perspectiva de que o homem europeu
3
O racismo epistêmico tem se constituído
como principal justificativa para a
descolonização da universidade em projetos
como o Encontro de Saberes (Carvalho, 2019)
e se refere à imposição de conhecimentos
brancos e eurocêntricos como se fossem os
únicos nos currículos
acadêmicose,consequentemente,nos
currículos escolares. A defesa que se faz é de
uma universidade pluriepistêmica.
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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branco é a referência. Carneiro (2011)
caracteriza como epistemicídio os
processos de exclusão de saberes e
de corpos negros de instituições como
a escola e a universidade:
Alia-se a esse processo de
banimento social a exclusão
de oportunidades
educacionais, o principal alvo
para a mobilidade social no
país. Nessa dinâmica, o
aparelho educacional tem se
constituído, de forma quase
absoluta, para os racialmente
inferiorizados, como fonte de
múltiplos processos de
aniquilamento da capacidade
cognitiva e da confiança
intelectual. É fenômeno que
ocorre pelo rebaixamento da
autoestima que o racismo e a
discriminação provocam no
cotidiano escolar; pela
negação aos negros da
condição de sujeitos de
conhecimento, por meio da
desvalorização, negação ou
ocultamento das contribuições
do Continente Africano e da
diáspora africana ao
patrimônio cultural da
humanidade; pela imposição
do embranquecimento cultural
e pela produção do fracasso e
evasão escolar. A esses
processos denominamos
epistemicídio. (p. 92-93)
Quando nos deparamos com o
currículo escolar, percebemos uma
escolha de narrativas eurocêntricas.
Por exemplo, nas escolas brasileiras
muito falamos sobre as guerras
europeias e mal conhecemos os povos
que habitavam as Américas. Além
disso, existem muitos autores e
autoras nossos que são apagados.
Os saberes do terreiro podem
proporcionar à escola uma educação
lúdica e antirracista. Por exemplo,
quando falamos de educação infantil,
um dos eixos é “o eu, o outro e o nós”
e, para abordar esse eixo, nada
melhor do que os abebês de Oxum e
de Yemanjá e sua simbologia de
autoconhecimento e cuidado com o
outro. A partir da contação de histórias
e da desconstrução de preconceitos,
podemos construir uma aula potente.
Durante toda a escrita deste
texto, sou atravessada pela ideia de
escrevivência, da autora Conceição
Evaristo (2020). Segundo ela, não é
sobre uma escrita narcísica e sim uma
escrita coletiva, feita por muitos
sujeitos. A partir de uma história geral,
nós escrevemos nossa própria história.
Afirmo que a Escrevivência não
é uma escrita narcísica, pois não é
uma escrita de si, que se limita a uma
história de um eu sozinho, que se
perde na solidão de Narciso. A
Escrevivência é uma escrita que não
se contempla nas águas de Narciso,
pois o espelho de Narciso não reflete o
nosso rosto. E nem ouvimos o eco de
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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25, p. 560-588, set. 2023.
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nossa fala, pois Narciso é surdo às
nossas vozes. O nosso espelho é o de
Oxum e de Iemanjá. Nos apropriamos
dos abebés das narrativas míticas
africanas para construirmos os nossos
aparatos teóricos para uma
compreensão mais profunda de
nossos textos. (EVARISTO, 2020,
p.38)
Acredito que cada vez mais
teremos pesquisas que falam de nós
para nós. A escrita deste texto não
nasce comigo, ela começa a ser
desenvolvida a partir do momento que
meus ancestrais não sucumbem à
colonização e resistem, seja pelo
sincretismo,seja pela ressignificação
do que é família nos terreiros que
começaram a se constituir no território
brasileiro. Nossa história é de luta e
dor coletiva e deve ser contada por
nós.
O samba da Estação Primeira
de Mangueira, no Rio de Janeiro, em
2019, fez sucesso com o título:
História para Ninar Gente Grande. Ele
nos ajuda a pensar como o racismo
tem uma dimensão epistemológica e
ignora os conhecimentos produzidos
por outras culturas. Como no trecho
destacado:
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que
descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no
retrato.
Minha pesquisa busca mostrar
parte do país que não está no retrato a
partir dos terreiros de candomblé e de
seus processos educativos. Busca
identificar conhecimentos produzidos
dentro do terreiro e como eles podem
auxiliar a escola, com base na lei
10.639/03, que inclui no currículo
oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática "História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana".
Levando em consideração que esses
espaços tradicionais preservam um
pouco da África no Brasil, valorizar
essa cultura é resistência negra. Além
de contribuir para descolonizar o
currículo que conta a história na
perspectiva de quem dominou.
A dominação branca produziu
uma história única e fez com que
acreditássemos em uma narrativa de
subordinação sem resistência. O
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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racismo epistemológico esconde e o
reconhece outras culturas como
produtoras de conhecimento,
ignorando sua ciência.
Segundo a Lei 9.394/96, que
estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, no seu primeiro
artigo, a educação abrange processos
formativos diversos que se dão
também em espaços diversos, pois ela
abrange processos formativos que se
dão em diferentes espaços sociais e
na convivência humana. Levando em
consideração a lei maior da educação
no país, o que é produzido nos
terreiros é educação. Entender como
acontecem os processos de ensino-
aprendizagem nesses espaços é
importante por ser mais uma das
alternativas à pedagogia
desencantada
4
por sua rigidez e por
conteúdos que não trazem sentido
nem significado para grande parte dos
alunos nas escolas.
Meu objetivo foi investigar o
terreiro como um espaço de educação
e como um lugar que produz uma
narrativa da história do povo preto no
Brasil, identificando como ocorreu na
diáspora africana a resistência à
4
Rufino, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas.
2019.
escravidão e à dominação, assim
como processos de transmissão de
saberes e de afirmação da identidade
negra. De caráter qualitativo, utilizou
como fonte a realização de uma
entrevista, ainda no período de
distanciamento social provocado pela
pandemia da COVID-19. Para a sua
realização, portanto, o uso da
tecnologia foi fundamental, uma vez
que foi realizada pelo Google Meet. A
proposta inicial era a realização de três
entrevistas. No entanto, diante do
material gerado na primeira entrevista
e do tratamento que pretendia dar a
ela, decidi trabalhar essa única
entrevista que, apesar da distância
física, foi essencial, em termos de
conteúdo, para a realização do
trabalho.
A escolha da entrevista como
fonte de pesquisa se deu pela
valorização dos saberes ancestrais
que resistiram nos terreiros de
candomblé por meio da oralidade,
assim como de detentores de tais
saberes como sujeitos do
conhecimento, naquilo que Simas
(2018) denomina um “rodopio” na
prática de pesquisa:
O rodopio enquanto prática,
orientação teórico-metodológica, além
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saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
de formular uma crítica aos conceitos
alicerçados em bases que não aceitam
o outro como possibilidade, tensiona o
impacto dos discursos provenientes
dessas razões arrogantes nas práticas
que a elegem como ''objetos a serem
estudados''. (SIMAS, 2018, p. 34)
As lideranças religiosas são
entendidas como sujeitos da pesquisa
e não como objeto de estudo. Tomar
sujeitos que sabem, que são as
“fontes” dos conhecimentos
produzidos em pesquisas como
informantes passivos, recortando ou
traduzindo suas falas, não era uma
possibilidade para o estudo que
pretendia realizar. Pretendia pesquisar
e conceber a entrevistada como sujeito
do conhecimento, minha participação
na pesquisa era ouvir e aprender. A
partir da escuta atenta e dos novos
aprendizados, pude pensar
criticamente e compartilhar
conhecimentos adquiridos e
elaborados.
O conceito do pesquisador
cambono (Simas, 2018), que compara
a pesquisa com a cambonagem nos
terreiros é importante para essa
abordagem. O cambono é, dentro da
umbanda, a pessoa que auxilia as
entidades em terra, ou seja, pega suas
bebidas, acende seu cigarro, cuida do
espaço do terreiro antes das festas,
ajuda nas consultas, faz anotações,
ouve muito e observa. Além disso,
Simas fala sobre ter sempre a dúvida
em mente, para assim trazer espaço
para os novos conhecimentos que
estão por vir.
Assumo a postura de
pesquisadora cambona que a partir do
rodopio aceita o outro como sujeito
ativo do seu saber, que trabalha com
ele e para ele, que observa, escuta,
anota, escreve e, assim, aprende. É
necessário termos a humildade de
sentar na esteira para aprender, de
abaixar a cabeça, ouvir e absorver
aquilo que nos é passado, sem
arrogância ou regimes de verdade.
Assumo também que esse
trabalho foi feito pela estudante da
Universidade Federal Fluminense e
pela abian que está no início da sua
caminhada religiosa e entende a
importância do ouvir as mais velhas.
Com isso, afirmo o meu envolvimento
também pessoal com a pesquisa e
com a entrevistada, o que, do ponto de
vista deste estudo, da escrevivência
de Conceição Evaristo e do
encantamento de Simas, lhe traz vida,
experiência e procura colaborar com
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
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25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
novas formas de produção de
conhecimento.
Não foi por acaso que Mãe
Rosiane foi a primeira entrevistada. A
primeira vez que ouvi Mãe Rosiane foi
em um evento na Universidade
Federal Fluminense em 2017,
chamado Mulheres de Axé e
Universidade. O objetivo do encontro
era debater racismo religioso,
educação e exercício profissional. A
ideia do evento foi trazer o terreiro
para dentro da universidade e associar
a academia às religiões de matrizes
africanas. Mãe Rosiane falava sobre
intolerância religiosa e exercício
profissional e sobre sua pesquisa do
doutorado em Antropologia. Falava
ainda como Mãe de Santo. Por isso
fiquei encantada. Depois, ela se tornou
amiga da minha mãe carnal e a
aproximação aumentou, reforçando
ainda mais minha admiração por ela
como mãe de santo.
A fala de Mãe Rosiane mexeu
muito comigo, com sua forma incisiva
de se colocar, mas ao mesmo tempo
com um amor que as mães de
santo têm. A forma como defende sua
e seu modo de ver o mundo é de
emocionar e nos fortalece para que
continuemos na luta. Assim, quando
comecei a pesquisa, ela foi a primeira
pessoa que veio na minha cabeça,
pois tinha certeza de que ela teria
muito o que me ensinar durante o
processo de escrita, não
academicamente, mas, principalmente,
religiosamente. Como afirmei, para
mim não existe pesquisa sobre
candomblé e terreiro sem ouvir as
mais velhas, sem sentar-se na esteira
e aprender atentamente cada palavra.
Assim eu fiz com ela e fui acalentada
pelas águas de Yemanja em cada
palavra.
Retomo com a noção de
escrevivência de Evaristo, com sua
dimensão coletiva da produção de
conhecimento. Procurei tratar a
entrevista (o máximo que pude) como
cambonagem mesmo: quem fala,
quem se apresenta, quem discorre
sobre os temas do estudo é Mãe
Rosiane. Eu apenas anotei, transcrevi
e procurei colocar no papel a sua
oralidade, com todos os seus
ensinamentos, procurando fazer aquilo
que Martins (2021) chama de oralitura.
A questão da oralidade é central
em alguns países da África. Para
povos que não tem a grafia como
expressão principal a palavra tem uma
origem mágica e sagrada, a fala é que
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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conserva as tradições que são
guardadas pelos anciãos, que são
considerados dignos de passar as
tradições adiante. Para nós pode ser
muito difícil ‘’confiar’’ na oralidade por
estarmos inseridos em uma sociedade
grafocêntrica, mas em África existe
outra percepção em torno da fala.
Além disso, quando falamos do
povo iorubá, associamos a palavra a
Exu, aquele que é o dono do mercado
e que é através da fala que ele se
comunica e faz as negociações
necessárias. Para nós do candomblé,
a fala é sagrada não por ela
guardar toda nossa tradição durante
séculos, mas por nós acreditarmos na
força que ela tem nas nossas vidas.
Utilizo o conceito de oralitura de
Leda Maria Martins para trazer a fala
de Mãe Rosiane a este trabalho e com
ela dialogar:
A matriz africana é lida, assim,
como um dos significantes
constitutivos da textualidade e de toda
a produção cultural brasileira, matriz
dialógica e fundacional dos sujeitos
que a encenam e que,
simultaneamente, são por ela também
constituídos. Aos atos de fala e de
performance dos congadeiros
denominei oralitura, matizando nesse
termo a singular inscrição do registro
oral que, como littera, ''letra'', grafa o
sujeito no território narratário
enunciativo de uma nação, imprimindo,
ainda, no neologismo, seu valor de
litura, ''rasura'' da linguagem, alteração
significante, constituinte de diferença e
alteridade dos sujeitos, da cultura e de
suas representações simbólicas.
(MARTINS, 2021, p. 25)
No exercício da oralitura,
procura-se grafar a enunciação de
sujeitos. Não se trata apenas de
transcrever falas, mas de registrá-las
em seus valores, sentidos e
identidades, de com elas aprender em
seus territórios narrativos. Esse foi um
grande desafio para a pesquisadora
cambona.
Educando com mel e dendê -
saberes dos terreiros, crianças e
educação antirracista
Mãe Rosiane se apresenta e
fala sobre sua ancestralidade, sobre
crianças, terreiro e educação. A
entrevista foi registrada praticamente
na íntegra e organizada de acordo
com as temáticas abordadas por ela.
Para esse artigo focaremos na parte
da entrevista que apresenta a Ialorixá
e que aborda temas como crianças,
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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25, p. 560-588, set. 2023.
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terreiro, educação e a importância do
candomblé para a vida de modo geral.
Mãe Rosiane Rodrigues
Eu sou a Rosiane Rodrigues de
Yemanjá. Sou neta carnal de seu Hélio
Curador, que é da tradição de cura, na
cidade de Mairi. Minha família por
parte de pai tem a tradição de
curadores, na cidade de Mairi, no
interior da Bahia. Eu sou baiana, nasci
em Salvador, nasci no Cabula e vim
para oRio de Janeiro com a separação
dos meus pais, quando eu tinha cinco
anos.
Por parte de mãe, eu sou
bisneta de um sacerdote Nkisi, de um
Tata Nkisi
5
chamado Arthur Sales, que
foi contemporâneo do João Cândido,
da Revolta da Chibata. Ele era da
Marinha, meu bisavô, tinha aqui no Rio
de Janeiro um terreiro na Pavuna.
Mas eu só vou me iniciar aos 27
anos de idade, era mãe de dois
filhos. Porque a minha mãe, ela tinha a
ideia de que terreiro era coisa de
preto. E tinha a coisa de clarear a
família. E então ela nunca me deixou
aproximar do terreiro. Eu tive várias
passagens de doença, inclusive, com
5
Tata Nkisi: palavras do candomblé bantu que
significam pai de santo.
13 anos, eu fui para a Bahia com meu
avô, cuidar de mim. Mas eu fui me
iniciar mesmo aos 27 anos de idade,
na família do A do Portão da
Muritiba, aqui no Rio de Janeiro.
Eu venho a ser neta, minha
navalha é de Ajunsun
6
. Eu me inicio
com seu Carlos de Ajunsun, filho de
dona Marieta de Ogunté
7
, que era filha
de seu Nezinho do Portão da Muritiba.
Eu me inicio com ele, mas acabo
tomando todas as minhas obrigações
com o meu Pai Jorge d'Oxóssi, da
família de Mãe Sara Bernardes de
Yemanjá. Eu tomo as obrigações
todas com ele. E meu pai falece em
2011. Eu estou com meu Ijé pronto,
está entregue. Tomei obrigação com
dez anos, tomei meu Odun Ijé
8
com
dez anos de iniciada. Quando meu pai
falece, eu fico com a minha avó, que
foi a Mãe de Santo dele, que é a
minha tradição nagô-ijexá
9
da família.
6
Ajunsun: uma qualidade do orixá Omulu.
7
Ogunté: uma qualidade do orixá Yemanjá.
8
Odun Ijé: obrigação de sete anos no
candomblé, na qual o iniciado passa a ser um
mais velho e se tiver caminho, se torna um pai
ou mãe de santo.
9
Nagô-ijexá: nação de candomblé que a mãe
Rosiane faz parte.
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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Minha mãe é, hoje, minha mãe e
minha avó.
10
Minha mãe é dona Ivanir de
Yewá
11
, filha de mãe Sara Bernardes
de Yemanjá, que tem o seu terreiro
fundado em Nazaré das Farinhas. Mas
depois de alguns anos ela vem para
Belford Roxo e funda o terreiro dela no
bairro de Heliópolis. E, enfim, ela
morre no final da década de 60, e
minha mãe herda o axé e vai para
Pavuna, abre o axé na Pavuna. Em
80, o Axé é transferido para Magé, na
localidade de Rio do Ouro, que é onde
eu estou hoje. Porque eu acabei
assumindo o Axé da minha mãe, ela
está viva, não morreu não, mas ela
está muito, muito velhinha. Ela está
muito velhinha. Das filhas de santo
dela eu sou a mais nova. Minhas irmãs
de santo, uma tem 90 anos, 92 aliás, a
outra está com 74. Mamãe éque
ninguém sabe a idade dela, ela não
conta para ninguém. Mas está com
mais de 80 porque a filha mais velha
dela é mais velha do que eu, ela tem
10
É mãe porque hoje é sua mãe de santo,
mas é avó de santo porque Mãe Rosiane se
iniciou com o filho de santo de sua atual Mãe
de Santo.
11
Yewá: orixá feminina responsável pela
prosperidade, a cobra fêmea, irmã de
Oxumarê.
52 ou 53 anos, ela deve estar
beirando uns 80 fácil.
Ela não tem mais condição, fez
muito poucos filhos de santo. As que
estão vivas estão também muito
velhas, muito idosas. E nós fizemos
um acordo de que eu tomaria conta da
casa. Eu sou o administrativo, ela é a
grande Yabá da família, a matriarca da
família, a mãe de santo minha e dos
meus filhos, eu sou mãe de santo dos
filhos dela, do filho dela mais novo.
Então, ficou assim a conjunção
familiar, de famílias espirituais. E é
isso. Eu estou nessa. Eu fiz santo com
27, então tenho 22 anos.
Educação
Existe uma pedagogia do axé,
que não é uma pedagogia pensada
num plano eurocentrado, pelo menos é
assim que eu entendo, que é a
pedagogia da experiência. É a
pedagogia da vida. Eu gosto muito de
pensar isso porque os terreiros têm
uma prática e eu vejo que é a prática
do fortalecimento da autoestima,
fundamentalmente, mas também é a
preparação para as adversidades.
Todas as práticas, por exemplo,
de preceito, de interditos. É uma forma
de ensinar a você controlar suas
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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paixões, a você ter autocontrole.
Porque a gente entende que o que a
cabeça pode sonhar os pés podem
alcançar. E para isso eu entendo que é
preciso uma disciplinarização, que é
feita nos terreiros. Não uma
disciplinarização do corpo, mas
também uma disciplinarização da
nossa forma de olhar o mundo. O
exercício da gratidão, a compreensão
de que sozinho a gente não consegue
fazer nada na vida, de que nós somos
os nossos irmãos e o terreiro, eles são
extensões nossas e nós também
somos extensões deles.
Não dos assentamentos, não
estou nem falando dos orixás. Não
estou falando dos assentamentos, não
estou falando de nada sobrenatural, eu
estou falando que nós somos as
extensões. Eu, como Mãe de Santo,
eu não consigo iniciar uma pessoa
sozinha, eu dependo da formação de
um grupo de pessoas para iniciar uma
única pessoa. Então essa, que não é
uma prática formulada em livro, em
compêndio, mas é uma prática da
vida, da experiência de vida, da vida
vivida, que você vai, ao experimentar,
ao experienciar, você vai entendendo
dimensões da própria experiência da
vida que você não consegue mais se
dissociar dela.
Então, tem uma conformação
do corpo por conta dos interditos, não
os interditos de cor ou de vestuário,
mas também os interditos alimentares,
os interditos de conduta, que vão
forjando uma nova forma de ser e
estar no mundo. Mas também vão
conformando corpos, conformando
mentalidades. E é uma prática
educativa que está para além de um
aprendizado como a gente pensa
numa escola, por exemplo. Porque é
uma prática educativa que te uma
compreensão cosmológica, filosófica,
matemática, de história, de
mnemônica, de postura corporal.
Enfim, é um sistema de ensino muito
complexo, que está muito além do
entendimento do que se pensa em
pedagogia e didática em sala de aula.
A iniciação das crianças no
candomblé
Eu tenho os meus três filhos
iniciados. Meus três filhos carnais.
Eles foram iniciados dentro de casa.
Claro que eles não são meus filhos de
santo, eles são iniciados pela minha
Mãe de Santo, mas o único que foi
iniciado criança foi o meu caçula, que
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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hoje está com 17 anos. E eu penso
que se eu tivesse a maturidade que eu
tenho hoje e não tivesse o preconceito
que eu tinha há 20 anos atrás, eu tinha
outra forma de entender. Não posso
negar que a minha mãe achava que
isso era coisa de preto, que ia me
fazer mal. E a minha e era uma
mulher que era filha e neta de pai de
santo e de mãe de santo. Minha avó
carnal, se não tivesse morrido tão
jovem, seria a herdeira do meu bisavô.
Então, minha mãe tinha uma
ancestralidade muito potente, apesar
de nunca ter tido incorporação. Mas eu
não posso negar que a ideia que eu
tinha de terreiro aos 27 anos de idade
era uma ideia muito diferente da que
eu tenho hoje. Então, por isso não
iniciei meus filhos mais velhos logo
que me iniciei.
Mas eu penso que a iniciação
da forma como ela é colocada, por
conta dos interditos, por conta das
compreensões, ela é muito mais
facilitada quando ela é com crianças.
Porque as crianças não têm interditos,
você vai interditar a criança de que?
De beber? Você vai interditar a criança
de que? De fumar? Criança não fuma.
A criança não tem vida sexual, então
ela não precisa. Quando eu iniciei o
meu filho mais velho, ele estava
com 23 anos. Ele está com 28,
fazendo cinco anos de feito. Coitado.
Foi um ano sem praia, quase morreu.
Olha, mas era um drama. Em
compensação, o Marquinhos, que vai
fazer nove anos de iniciado, nunca
teve resguardo. Foi um ano sem praia
para uma criança de oito anos. Se
ninguém leva, não vai. Não usa preto,
não usa mesmo. Não vai comer feijão
não sei das quantas. Porque está
brincando, está indo para escola, está
se divertindo, para ele não foi um
trauma.
Hoje eu sou uma das pessoas
que mais defendo a iniciação na
infância, até por todas as questões.
Porque é muito mais tranquilo quando
você pensa na questão dos interditos e
dos preceitos. Um adulto tem um
problema seríssimo de fazer um
preceito de sexo, é um dos dramas. Eu
entendi que não é nem raspar a
cabeça, raspar a cabeça é o menor
dos problemas. Não, o problema são
as pessoas se autodisciplinarem.
Porque o preceito não tem nada
a ver com uma disciplina militar, essa
disciplina militar, escolar, tem a ver
com autoconsciência e com
autocontrole. Isso é um pensamento
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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muito particular meu. Se o fosse
essa disciplina, eu estou usando o
nome porque eu não consegui
encontrar outro termo para classificar
isso. Mas se não fosse esse
autocontrole, esse autoconhecimento,
essa autoestima, essa forma de
domínio das paixões, que é isso que a
gente faz no preceito, o nosso povo
não teria sobrevivido. O nosso povo
não teria sobrevivido, não aos
séculos, aos quase quatro séculos de
escravidão, mas também sob esse
sistema racista, genocida que a gente
vive.
É claro que nem todo mundo
tem que ser iniciado. Eu acho que tem
uma coisa também que precisa ser
dita de alguma forma, é que
candomblé, orixá, vodun, ninkisi,
muquixi são para todo mundo, mas
nem todo mundo é para eles.
Porque nós não somos uma
prática expansionista, a gente não
quer sair raspando todo mundo porque
a gente acha que cada um de nós tem
o seu próprio caminho. E existem
pessoas que efetivamente até não
podem ser iniciadas, por conta de
demandas espirituais. Existem
pessoas que você não pode iniciar.
Mas eu penso que esse processo
iniciático que demanda um ano de
interdição, um ano sem beber, é muita
coisa para um adulto. Mas, por
exemplo, se a pessoa precisa ser
iniciada, eu sou uma grande defensora
que seja enquanto criança. Até para
que facilite a compreensão cognitiva
do que são as práticas, que é muito
comum você ver pessoas, por
exemplo, que não têm uma
compreensão do que significa um
resguardo. Que não têm a
compreensão de o quê, o porquê se
faz determinadas coisas.
Como, por exemplo, eu vejo
agora. Eu não conheço ninguém que
pratique, mas eu vejo como se faz
uma discussão sobre candomblé
vegano e o quanto essas pessoas são
completamente descoladas, têm uma
forma dissociativa de entender o que
significa o éran, a carne, a divisão da
carne, que é um preceito fundamental
para os Olodés
12
, para o povo da caça.
Dividir a comida, dividir o éran, dividir a
carne tem a ver com um pacto que nós
fazemos com os caçadores, com
Oxóssi.
Então, eu acho que quando
você tem uma iniciação jovem,
12
Olodés: caçadores do clã do orixá Odé
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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criança, você consegue associar e
acessar um conhecimento que muitas
vezes os adultos, como eles têm a
cognição muito conformada com base
no preconceito, com base em várias
questões que vão associar às práticas
dos ancestrais com demônio, que é
uma cognição racista mesmo, que é
uma forma racista de olhar o mundo.
Eu vejo o quanto isso é mais fácil
quando a gente lida com as crianças, o
quanto elas conseguem acessar a
dimensão da ancestralidade com muito
mais, eu não digo facilidade, mas com
muito mais transparência, que é a
facilidade mesmo dessa compreensão.
Diálogos sobre a escola - racismo,
educação e religião
No diálogo com Mãe Rosiane,
destaco a relação de seu filho iniciado
quando criança com a escola, fato que
me chamou a atenção e que me levou
a fazer algumas perguntas. No
exercício da cambonagem, que implica
o exercício da dúvida, senti a
necessidade de perguntar. Essa parte
da entrevista, em que o diálogo se
estabelece de forma mais acentuada,
em uma conversa sobre o tema da
escola, me fez destacá-la, junto com
algumas reflexões.
Paula: Quando seu filho se
iniciou, a senhora ficou com
medo dele ir para a escola?
Como a escola ia receber ele?
Mãe Rosiane: Claro. Ele
repetiu o ano que ele se
iniciou, foi perseguição
mesmo. Ele estudava em uma
escola católica. Eu tirei da
escola católica, que era a
Nossa Senhora Rainha dos
Corações, em Jacarepaguá. E
coloquei em outro colégio que
não tinha nenhuma vertente
religiosa. A primeira coisa que
eu fiz foi conversar com a
direção da escola, dizendo:
''Olha, o meu filho vai ser
iniciado”. Isso no início, isso
no final do ano, quando eu
matriculei para o ano seguinte.
Mas ainda assim ele foi
perseguido por uma das
professoras e ele repetiu o
terceiro ano.
Paula: E como a escola
respeita essas crianças que
vem de Candomblé, que não
necessariamente são
iniciadas, mas que podem ser
e que estão no espaço
escolar?
Mãe Rosiane: Não respeitam.
Assim, em todos esses anos,
eu tive uma escola que
respeitou as nossas práticas,
que foi uma escola na Cidade
de Deus, que foi o Colégio
Vivendas, mas ainda assim
porque uma das estagiárias de
docência era ekedi. Uma das
professoras que fazia estágio
docente na escola era ekedi e
se identificava com todas as
crianças que eram de
candomblé e fazia questão
que essas crianças
trouxessem as suas
experiências. Não era uma
579
REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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coisa fácil, mas foi a única, a
única escola, que era
particular, não era pública. Sei
de algumas escolas públicas
que tem inclusive uma coisa
com alimentação, mas, no
geral, não respeitam.
Absolutamente não respeitam,
independente de serem
públicas ou particulares, de
serem religiosas ou não.
Paula: É, eu estou fazendo
estágio em uma escola
particular, aqui em Icaraí, em
Niterói. A gente está fazendo
uma apresentação do final do
ano que Jesus Cristo é o
salvador e eu fico assim:
gente, que isso? É uma coisa
que fica muito normalizada,
como se o cristianismo fosse
uma referência.
Mãe Rosiane: É uma laicidade
cristã, né? O Brasil vive uma
laicidade cristã. Todo mundo
que não é cristão está fora da
casinha. E é demonizado
mesmo. E são assim as
estratégias, elas vão se
sofisticando, porque no caso
da perseguição do
Marquinhos, como eu tinha
feito uma conversa com a
direção da escola, porque a
gente passou por problemas
seríssimos, Marquinhos foi
tirado de mim por dois anos, a
gente teve um processo muito
pesado junto. Então, eu queria
que meu filho não tivesse que
passar por isso novamente e
fui muito clara com a direção
da escola que eu processaria.
Mas a professora que ele
pegou era evangélica e
sabotava os trabalhos dele. E
era uma forma tão sofisticada
que eu consegui entender
depois. Porque ele dizia para
mim ''mamãe, mas eu
entreguei o trabalho'' e ela
dizia que não; ''mamãe, mas
eu fiz a minha prova'' e ela
dizia que não tinha feito. E
se ele estava com um grupo
de coleguinhas, imagina nove
anos de idade, um grupo de
coleguinhas brincando,
fazendo bobagem, o único que
sofria qualquer tipo de
represália era ele, entendeu?
Então tudo o que acontecia
era ele e ele começou a ficar
com a autoestima baixa. Então
tive que fazer terapia de novo,
enfim.
Paula: Eu estou lembrando
agora, acho que foi no
Mulheres de Axé que a Wanda
Araújo
13
falou que o neto dela
começou a sofrer perseguição
na escola também, que
começou a ficar meio com
raiva do terreiro.
Mãe Rosiane: Sim, sim, sim.
Porque é isso, é muito
complicado. A perseguição
religiosa está na chave de
sofrer a perseguição por algo
que você acredita, por algo
que te constitui. É muito
comum que as pessoas se
revoltem com os orixás. Ao
invés de se revoltarem com
aqueles que realmente estão
perseguindo, porque o nosso
racismo é tão sofisticado que
faz com que a gente se sinta
culpado pela violência que
está sofrendo. Então, a
acusação tem a ver com:
''mas, nossa, como você é de
uma religião que mata bicho,
que coisa horrível, isso é do
demônio''; ''isso não é
13
Ialorixá Wanda de Omolú do Axé Egi Omin,
que também participou do evento Mulheres de
Axé, na UFF, em 2017.
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Yemanjá, isso é um espírito
ruim''. É óbvio que isso para
uma criança de oito anos, de
sete anos, para um
adolescente, isso é muito
pesado. Isso foi pesado para
mim, que era uma mulher
madura, mãe de filho. E isso
na cognição para a criança,
para a emoção da criança, é
muito difícil. Eu costumo dizer
que isso, para mim, é uma
experiência de estupro. Eu
nunca passei pela experiência
de estupro em si, mas a
violência contra você é como
se você estivesse sendo
estuprada, de uma forma
como se o seu corpo, como se
a sua existência, que é sua
humanidade, ela
absolutamente não vale de
nada.
Paula: E, para o Candomblé,
qual a importância dos erês?
Mãe Rosiane: Olha, depende,
você vai me perguntar se
referindo aos erês crianças, do
Ayê, ou você está se referindo
às crianças do Orun?
Paula: As crianças do Orun.
Mãe Rosiane: Os erês são a
beleza e a inocência que todos
nós temos e acho que uma
das coisas mais bonitas do
candomblé é esse culto à
inocência, é esse culto ao que
de mais belo, de mais
sagrado, que é o culto à nossa
criança interior, essa criança
ancestral que nós possuímos
em essência. Eu acho que
quando a gente cultua erê, as
crianças do Orun, a gente está
cultuando a nossa. Do ponto
de vista filosófico, vão ter
duas vertentes da filosofia;
uma que diz que os homens
são essencialmente maus e
outra corrente que diz que os
homens são essencialmente
bons. Eu acho que o
candomblé tem essa coisa de
você cultuar e de você achar
que as pessoas são
essencialmente boas e isso
significa cultuar a criança
interior, cultuar essa bondade,
essa inocência, essa beleza,
esse nonsense.
Os erês têm uma coisa do
nonsense, de brincar, de não
levar as coisas a sério (muitas
aspas!), de ser sempre uma
brincadeira. Porque na
verdade a gente chega numa
idade da vida, numa fase da
vida que a gente entende que
é realmente uma grande
brincadeira. Eu gosto de uma
frase que diz que nós, seres
humanos, somos a lontra do
universo, que a gente brinca o
tempo inteiro. Claro que isso é
uma forma muito Poliana,
muito otimista de olhar o
mundo, olhar as pessoas, mas
eu acho que o culto ao erê tem
a ver com isso, de nos lembrar
o tempo inteiro que nós somos
seres que viemos aqui para
brincar, para nos amar, para
termos essa leveza e essa
inocência que os erês trazem
para gente.
Agora, quando a gente está se
referindo aos erês do Aye, as
criancinhas, as crianças
mesmo, os nossos filhos, as
pessoas pequenas, são a
nossa continuidade, eles serão
a gente daqui a pouco, no
futuro. E os terreiros têm uma
forma muito bonita de lidar
com isso, porque você vai ver
que crianças e idosos se
juntam na sua grande
sabedoria e são a nossa
continuidade.
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
Como pode ser observado na
experiência que Mãe Rosiane teve
com seu filho na escola, o racismo é
perverso e usa de várias estratégias
para se legitimar. A colonização é de
corpos e mentes.
Depois que falamos sobre como
o racismo religioso afeta nossas
crianças, falamos sobre a nossa
alegria de vida, a doçura que nos
encanta e força, as crianças do
Orun: os erês! Para nós, os erês são o
orixá em sua forma infantil, no
candomblé eles têm o nome que
remete ao seu orixá, como Borboleta,
o nome de uma erê de Iansã, ou
Correnteza, o nome de um erê de
Oxum. Eles se apresentam de forma
muito brincalhona e é no brincar que
nós acreditamos que eles nos
protegem e nos livram do mal. Cultuar
erê é cultuar a felicidade que nos é
roubada diariamente com as violências
que o povo preto passa, cultuar erê é
olhar para o futuro que são as crianças
e ao mesmo tempo reverenciar o
passado, que são os orixás. Os erês
são nossa esperança de que apesar
de tudo a vida pode ser doce. Não
poderia terminar esse parágrafo sem
saudar a eles: ErêMi! Salve as
crianças que vivem em nós e não nos
deixam desistir.
Terreiro ensina a gente a viver. É
uma didática que é a da experiência
da vida vivida.
O candomblé nos ensina a
viver, nos ensina a lidar com as dores
e nos curar delas, o terreiro é espaço
de resistência e de muito amor e
acolhimento. É importante falar sobre
as levezas e alegrias do nosso povo.
Oxum carrega a adaga e vai à guerra,
mas ela também se olha no espelho,
se banha no rio e, principalmente, se
cuida. É sobre esse cuidado de si e do
outro que o candomblé nos
proporciona que vamos tratar. Para
fechar nossa entrevista, quis saber de
Mãe Rosiane o que ela leva de mais
importante do candomblé para vida e
me emocionei. Não porque é lindo
perceber o amor em sua fala, mas
como é bonito ver uma Mãe de Santo
ter amor pelo seu orixá.
Qualquer semelhança entre as
palavras finais de Mãe Rosiane e
grandes temas e questões de teorias
sociais e políticas, de filosofia e de
tantas outras áreas do conhecimento
não terá sido mera coincidência. Trata-
se apenas de forma diversa de lidar e
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
de explicar os mesmos temas e
questões, mas que segue
invisibilizada. No entanto, essa forma
de ser, de viver, de sentir e de pensar
a realidade está ancorada na vida, na
experiência dos terreiros de
candomblé.
Acredito, depois de tudo o que
eu pesquisei, de tudo o que ouvi de
Mãe Rosiane e que presenciei
enquanto candomblecista que quem
nos salvou e permitiu que a gente
seguisse sem perder a esperança na
vida foi essa ancestralidade que nos
cerca e vive em nós. Segue o trecho
em que conversamos sobre os
ensinamentos do Candomblé para a
vida.
Paula: E, para fechar, o que o
Candomblé te ensinou de mais
importante? Que você leva
para sua vida, que nos
momentos de estresse, você
respira, pensa naquilo e
relaxa.
Mãe Rosiane: A única coisa
perene é a mudança. A coisa
mais importante que o terreiro
me ensinou, que Yemanjá me
ensinou, é que se existe
alguma coisa imutável na vida
é que tudo muda. Essa é uma
dimensão importante, eu
realmente aprendi isso.
Porque eu sou uma pessoa
com um temperamento muito
forte, e obviamente que as
pessoas com um
temperamento muito forte são
pessoas que entendem, que
acham que tem o controle das
coisas que acontecem e
durante muitos anos na minha
vida eu sofri porque achei que
tinha que controlar as coisas,
não as pessoas, mas as
coisas que aconteciam ao meu
redor.
O terreiro me ensinou que a
única coisa perene na vida é a
mudança. A água é
exatamente isso, ninguém se
banha duas vezes no mesmo
rio. A água, ela vai seguindo
seu fluxo e quando se
diante de um grande desafio,
ela contorna. Quando vê uma
montanha, o que ela faz? Ela
não joga a montanha abaixo,
ela contorna, porque ela vai
mudando, inclusive mudando o
fluxo quando tem necessidade
disso. E essa também é uma
compreensão que brecha
para o imponderável, para
aquelas coisas que
acontecem, sejam elas boas
ou más, mas estar preparada
para o imponderável em
qualquer das suas dimensões
foi um dos maiores
ensinamentos que o terreiro
me trouxe.
A serenidade de saber que da
mesma forma que eu estou
aqui conversando com você
agora, eu posso ter um infarto
e puf! Porque é isso. É essa
compreensão que eu estou
falando, coisas acontecem o
tempo inteiro. Aliada a essa
ideia de mudança permanente
está a ideia de que vida e
morte são dois lados da
mesma moeda. Mais um dia
também é menos um dia, a
grande companheira da vida é
a morte, é iku.Então a gente
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
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precisa viver todos os dias
sabendo que aquele dia pode
ser o último e que isso é
inexorável, porque vai
acontecer. Mas sabendo que
isso faz parte de estar vivo.
Às vezes, você está com uma
situação muito terrível no seu
horizonte, um problema muito
grande, muito cruel, muito
perverso que você não
condições de resolver e aí, de
uma hora para outra, as coisas
tomam um outro sentido, um
outro rumo e você diz: mas
olha, eu nunca imaginei que
isso poderia acontecer na
minha vida. É isso, porque a
gente é isso mesmo, essa
mudança perene, estamos
diante de dimensões
imponderáveis da existência e
precisamos estar preparados
para isso.
O grande sofrimento da
humanidade é não saber o que
vai acontecer no dia
seguinte.Então eu vejo que as
pessoas sofrem de ansiedade,
sofrem de depressão, sofrem
de estresse, de não sei o quê,
exatamente porque não
aprenderam a lidar com essa
mudança perene.E não
aprenderam a entender que o
que há de mais sensacional na
vida é exatamente o
imponderável, que é o que o
terreiro nos ensina o tempo
inteiro.
Você faz toda uma
programação, você diz
assim: ''vou recolher uma
pessoa para dar um bori”.
você faz uma programação
linda, três dias, tudo certo.
você recolhe a pessoa e a
pessoa sai 30 dias depois
porque a pessoa vai ter que
raspar. Você bota a mão na
cabeça e diz: ''meu Deus, o
que eu vou fazer?''. O terreiro
te ensina que não é o
improviso, é lidar com o
imponderável e isso é tão
bonito.Claro desespero.
''Meu Deus, o que eu vou
fazer? Tenho trabalho,
marquei cinco palestras, ai
meu Deus do céu, é
aniversário do meu filho”.
Então, o terreiro ensina isso
para a gente e isso leveza.
Não é que a gente não leve a
vida a sério, a gente leva a
vida muito a sério porque a
gente tem muitos problemas
muito graves para resolver o
tempo inteiro, mas a gente
sabe que tem alguma coisa
que nos interliga, que nos
interconecta e que faz com
que a gente em algum
momento consiga olhar e dizer
assim: ''nossa, passou'', ''uau,
resolvi, acabou, olha que
coisa sensacional''.
É isso, eu acho que é isso, e a
partir disso você aprende a
agradecer, você aprende o
dom da gratidão, que é uma
coisa espetacular. (...), mas
agradece isso todo dia?
Agradece todo dia, porque é
privilégio muito grande, minha
cabeça é uma cabeça boa,
agradece a cabeça porque
isso faz parte dessa pedagogia
da vida vivida, é na
experiência do dia a dia. E
quando a gente morre, volta
para o útero, para nascer de
novo. A iniciação traz isso para
gente, uma outra forma de se
entender e de ser e estar no
mundo. (...)
Eu li um texto do Luiz Mott, até
muito mal falado, tem várias
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
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25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
discussões na historiografia
sobre esse texto, que é um
texto que ele recupera a
história da Casa da Torre, em
Salvador, da família Garcia D'
Ávila e as formas como essa
família, o homem dessa
família, o tal do Garcia D'Ávila,
torturava os homens, as
mulheres e as crianças que
viviam assenzalados. (...) É
um texto que eu não
recomendo que as pessoas
leiam porque é de uma
brutalidade, de uma crueza,
muito difícil.
Foi esse texto que me fez
pensar o que fez com que as
pessoas não sucumbissem, o
que fez com que a gente não
perdesse o brilho, não
perdesse a revolta, não
perdesse a vontade de mudar
as coisas, o que fez com que a
gente em uma situação de
tamanha violência, de
tamanha brutalidade...
E eu não consigo dissociar
isso das práticas ancestrais,
das nossas medicinas
ancestrais, das nossas
didáticas ancestrais, do
autocontrole,
autoconhecimento. Então,
para mim, os terreiros tiveram
e têm uma função fundamental
na manutenção da saúde
mental mesmo e da saúde
corporal, das formas da gente
entender o mundo.
Porque orixá não está fora,
orixá está dentro da gente.
Nasce com a gente e morre
com a gente. E a iniciação faz
com que ele se expanda. Eu
ouvia do meu pai: ''Rosiane,
para!Você não tem controle de
nada''. E hoje eu entendo o
que é, fui conduzida a vida
toda. Eu fiz escolhas que eu
jamais saberia que seriam
possíveis. Em outros
momentos, eu deixei de fazer
escolhas e escolhi da mesma
forma. E me apareceram
problemas que eu achei que
eu não conseguiria enfrentar e
eu os ultrapassei. você olha
para trás e diz assim: ''nossa,
se fosse eu sozinha não dava
conta de um milésimo''.
Yemanjá, para mim, eu não
consigo pensar a minha vida
sem Yemanjá, não consigo. Eu
não consigo me pensar sem
que eu acordasse de manhã
sem a certeza de que Yemanjá
me conduz. Porque quem sou
eu para ter sabedoria para
conduzir uma família, esse
monte de cabeça doida das
pessoas? Não sou eu, gente, a
gente é instrumento nesse
negócio, a gente é poeira
cósmica, é a gotinha, é uma
molécula da gota do oceano.
Se não fosse Yemanjá na
minha vida, se não fosse Exu
a me conduzir os caminhos, se
não fosse Yemanjá a conduzir
meu Ori, eu não teria dado
conta dessas coisas todas, eu
não teria, não tem condição.
Então é isso, eu acho que é a
gente pensar o tamanho da
nossa capacidade de atuação,
pensar que nós somos
instrumentos, que a gente
decide muito poucas coisas. A
gente faz muita coisa, mas a
gente decide muito pouca
coisa, nem tudo está ao nosso
alcance e claro que a gente
está ali pronto para a batalha:
''Mamãe, estou aqui, o que é
para fazer?'' ''Ah, é para fazer
isso''. Mas sabendo que
muitas vezes a solução não
está na nossa mão, o controle
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
não está na nossa mão, não
tem mesmo.
É, gente, o que você controla?
Controla nada, isso é uma
bobagem, é uma ilusão, que
tem a ver com a forma egóica,
no centro, antropocêntrica, o
homem no centro. Nada disso.
Bobagem. Você vê, as
pessoas querem sucesso.
Sucesso é relativo, riqueza,
prosperidade é relativo.
Prosperidade para mim é
pegar um quilo de arroz e
alimentar 50 pessoas. Riqueza
é você dizer assim: ''nossa,
todas as pessoas que me
rodeiam têm saúde, estão
bem, estão empregadas''. Isso
é riqueza, gente. O que a
gente leva desse negócio? Por
isso é tão importante manter
essa capacidade memorial, de
memória, por que o que você
leva? São as memórias que
você deixa. É isso. É simples.
Terreiro ensina a gente a viver,
minha filha. É uma didática
que é a da experiência da vida
vivida.
Considerações finais
A construção deste artigo teve
muito estudo, pesquisa e,
principalmente, axé! Como eu disse
anteriormente, acredito que este
trabalho começa a ser escrito quando
meus ancestrais o sucumbiram à
colonização e preservaram o culto aos
orixás, voduns e ninkisis em terras
brasileiras. Nossa resistência é tão
forte que nós, a partir do terreiro,
formamos uma nova estrutura de
família para nos ajudar a sobreviver
nessa nova realidade.
O trabalho teve como objetivo
investigar o terreiro como um espaço
de educação e como um lugar que
produz uma narrativa da história do
povo preto no Brasil, identificando
como ocorreu na diáspora africana a
resistência à escravidão e à
dominação no Candomblé, assim
como processos de transmissão de
saberes e de afirmação da identidade
negra.
A intenção era, a partir das
reflexões sobre o terreiro e seus
processos educativos, que este estudo
pudesse se constituir em uma das
referências para os estudos da
educação para as relações étnico-
raciais. A proposta também é que esta
pesquisa possa fazer com que as
pessoas conheçam um pouco mais a
cultura dos terreiros, que tenham
curiosidade e que queiram se
desconstruir sobre as religiões de
matrizes africanas.
Apresentei, desde o início,
minhas implicações com o estudo e
durante todo o trabalho, a partir do
conceito de escrevivência de
Conceição Evaristo, mostrei que aqui
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
estão a pesquisadora, a abian, a
menina que frequentava o terreiro e a
escola na infância. Não havia como
construir esse trabalho apenas de fora
do terreiro, entendo que enquanto
pessoa de candomblé tenho
responsabilidade com tudo que falo e
com as informações aqui contidas.
Enquanto pessoa não-iniciada e
pesquisadora, senti a necessidade de
chamar para o trabalho uma mais
velha, para escutá-la e com ela
aprender mais sobre Candomblé,
sobre educação e sobre a vida. E Mãe
Rosiane foi o refresco de mãe
Yemanjá no trabalho. Sua doçura e
firmeza me fizeram pensar em
questões que eu ainda não conseguia
identificar. Como exemplo, a dimensão
educativa da disciplina dos preceitos
que acompanham os processos
iniciáticos como forma de
sobrevivência e de (re)existência de
pessoas negras em uma sociedade
racista. Ela afirma a educação dos
terreiros para fortalecimento da
autoestima e para enfrentamento das
adversidades. Além de afirmar o
grande ensinamento do Candomblé
para a vida, de que se existe uma
coisa imutável na vida, é que tudo
muda.
Mãe Rosiane trouxe ainda
conhecimentos sobre ancestralidade,
sobre infância, sobre questões que
perpassam o candomblé, como a
apropriação cultural, sob a forma de
um candomblé vegano, e o fato de o
candomblé não ser uma religião
expansionista, sobre a laicidade cristã
de nossa sociedade. Foram muitos os
ensinamentos e as questões
levantadas por Mãe Rosiane, mas fiz a
opção de priorizar especialmente o
diálogo sobre os processos educativos
dos terreiros, o racismo e a escola.
Procurei fundamentar o trabalho
em diálogo também com autoras/es
como Luiz Rufino e como Luiz Antônio
Simas, com as encruzilhadas, os
rodopios e a ciência encantada das
macumbas. E para ensaiar e ousar na
metodologia da pesquisa com o
exercício da cambonagem. O conceito
de pesquisador-cambono foi essencial
para o tratamento dado à entrevista. A
escolha da entrevista ser colocada
praticamente na íntegra, para que a
fala de Mãe Rosiane tivesse escuta e
para que a oralidade pudesse ser
grafada, constituíram o exercício de
cambonagem. Em um rodopio, tentei
trabalhar com Mãe Rosiane como
sujeito do conhecimento e não como
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REIS, Paula F. dos; MONTEIRO, Elaine. Educando com mel e dendê:
saberes dos terreiros, crianças e educação antirracista. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 13, n.
25, p. 560-588, set. 2023.
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(Dossiê "Imagens reflexas sobre os Encontros de Saberes no ensino superior")
objeto ou informante da pesquisa.
Optei por não recortar sua fala,
usando-a apenas para “ilustrar”
categorias e conceitos emergentes na
análise da entrevista. Fundamentais
para isso foram ainda as discussões
sobre oralidade e oralitura, com
Hampte- e com a Afrografia de
Leda Maria Martins.
Para finalizar, é necessário sim
falar mais uma vez sobre o racismo e
como ele nos afeta enquanto
praticantes de religiões de matriz
africana. Durante o período de
realização deste trabalho ocorreram
diversos casos de ataques a terreiros
e a criminalização da maternidade de
mulheres que optaram por iniciar seus
filhos no Candomblé, perdendo a sua
guarda. Ouvir isso e vivenciar é muito
sofrido, confesso, mas espero que a
entrega deste trabalho contribua para
que nós consigamos enxergar um
novo horizonte para nossas crianças,
nossos mais velhos e para a
pavimentação de caminhos para uma
educação antirracista.
Quando Mãe Rosiane nos faz
refletir sobre como o Candomb nos
ajuda a lidar com as mudanças, as
reviravoltas, nós conseguimos
entender que apesar de não termos o
controle de tudo, nossa nos deu
força para encarar todo o sofrimento
que nos atravessa séculos. Esse
trabalho não quer converter ninguém
ao candomblé, mas penso ser
importante entender como a
constitui o povo preto desde os tempos
da escravidão para que possamos
ressignificar a vida.
Uma vez escutei de uma mais
velha que mulheres de Oxum gestam
mudanças. Espero ter parido junto
com esta pesquisa uma escola mais
democrática, inclusiva e diversa. AXÈ!
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SIMAS, Luiz Antônio. Soneto 32. Rio
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Instagram: @luizantoniosimas.
Disponível em:
https://www.instagram.com/p/CQZ-
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