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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
O Programa Arte, Cultura e Cidadania - Cultura Viva: diálogos no tempo
Lia Calabre1
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.60952
Resumo: No presente artigo pretendemos revisitar o Cultura Viva a partir de alguns aspectos
considerados como os diferenciais do Programa, que permitiram a interação e a integração de
diferentes agentes e atores culturais ao longo do território brasileiro - em geral de territórios e
segmentos pouco atendidos pelo Estado. As redes e teias que foram sendo tecidas nos encontros e
desencontros do programa nessas quase duas décadas de existência do mesmo, contribuíram muito
para uma articulação potente que cumpriu um papel fundamental no momento da emergência sanitária,
do Covid 19.
Palavras-chave: Cultura Viva; políticas públicas de cultura; participação social; pontos de cultura.
El Programa Arte, Cultura y Ciudadanía – Cultura Viva: diálogos en el tempo
Resumen: En este artículo pretendendemos revisitar el Programa Cultura Viva a partir de algunos
aspectos considerados diferenciales del mismo. Estos permitieron la interaccíon y la integración de
diferentes agentes y actores culturales en todo el território brasileno, generalmente en territórios y
segmentos poco atendidos por el Estado. Las redes que se tejieron en los encuentros del programa a
lo largo de casi dos década de su existência contribuyeron, em gran medida, a una importante
articulación que jugó un papel fundamental en el momento de la Covid 19.
Palabras clave: Cultura Viva; políticas culturales; participación social; puntos de cultura.
The Program Art, Culture, and Citizenship - Cultura Viva: Dialogues Across Time
Abstract: In this article, we intend to revisit Cultura Viva from some aspects considered as the
differentiators of the Program, which allowed the interaction and integration of different cultural agents
and actors throughout the Brazilian territory—generally from areas and segments underserved by the
State. The networks and webs that have been woven in the encounters and disconnections of the
program over almost two decades of its existence have greatly contributed to a powerful articulation that
played a fundamental role during the sanitary emergency of Covid-19.
Keywords: Cultura Viva; cultural public policies; social participation; cultural points.
1 Doutora em história. Docente junto às pós-graduações PPCult-UFF; PPGMA-FCRB, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: liacalabre@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-7586-7210
Recebido em 15/12/2023, aceito para publicação em 28/03/2024.
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O Programa Arte, Cultura e Cidadania - Cultura Viva: diálogos no tempo
O Programa Arte, Cultura e
Cidadania Cultura Viva, es quase
completando 20 anos e podemos dizer
que sem perder seu potencial inovador.
O programa manteve sua maior
riqueza, o principal diferenciador, que
é, exatamente, o de chegar a
segmentos da população, que ainda
hoje, não acessam recursos públicos
ou, quando o fazem, é sempre de forma
esporádica. O desenho do Programa,
hoje uma Política, ainda se mantém
causando incômodos e estranhezas
aos órgãos de controle sobre o uso dos
recursos públicos (nos diversos níveis
de governo), assim como, em analistas
de políticas públicas que esperam
encontrar ações padronizadas e
homogêneas, quando se trata de
implementação de políticas públicas.
No presente artigo pretendemos
revisitar o Cultura Viva a partir de
alguns desses diferenciais do
Programa, que permitiram a interação e
a integração de diferentes agentes e
atores culturais, ao longo do território
brasileiro, em geral oriundos de
territórios e segmentos pouco
atendidos pelo Estado. Entre esses
diferenciais está também o fato de que
o Cultura Viva chegou a extrapolar as
fronteiras do país, em um processo de
contaminação positiva, dando origem a
uma articulação maior que se
materializa no Programa IberCultura
Viva. Tendo em vista as próprias
limitações de um artigo, esse olhar,
aqui proposto, pretende manter um
sintético diálogo com as
especificidades dos tempos
transcorridos, nesses quase vinte anos,
sem a pretensão de esgotar tais
questões. As redes e teias que foram
sendo tecidas nos encontros e
desencontros do programa nessas
quase duas décadas - não podemos
esquecer dos momentos de crise -,
contribuíram muito para uma
articulação potente que cumpriu um
papel fundamental no momento da
emergência sanitária, do Covid 19.
No relatório de avaliação do
Programa, produzido pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
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em 2009 2, logo na página 7, na parte
da apresentação da pesquisa, a
pergunta sobre “o que é fazer política
cultural”. Segundo os autores do
relatório, essa não é uma pergunta
retórica, ao contrário, é necessária para
que se possa estabelecer as
especificidades do Programa Cultura
Viva (como é conhecido) e por
conseguinte produzir uma avaliação
adequada.
Partindo dessa provocação
presente no relatório do IPEA, para
começar o diálogo aqui proposto, vou
recorrer a algumas reflexões de Victor
Vich, professor, pesquisador e gestor
peruano. Em sua obra Desculturizar a
Cultura que tem como subtítulo “A
gestão cultural como forma de ação
política”, Vich nos traz uma série de
elementos que podem contribuir para a
elaboração de uma resposta mais
qualificada para a pergunta acima
colocada. Isso sem deixar de remarcar
que estamos trazendo reflexões
publicadas em 2014, para responder a
uma pergunta elaborada em 2009 que,
mesmo tendo sido feita mais de uma
década, não cessou de ser repetida por
2 A pesquisa, que gerou a avaliação contou,
além da equipe do IPEA, com uma equipe da
Fundação Joaquim Nabuco e com alguns
aqueles que pensam as políticas
públicas em moldes padronizados e
homogêneos, afirmando que estas
devem gerar resultados claramente
quantificáveis, em um modelo avaliativo
pouco adequado ao campo da cultura.
Segundo o Víctor Vich: “En primera
instancia, construir políticas culturais
implica constatar la falta de fomento, la
desigualdade en el acceso y la
necesidad de generar mecanismos que
permitan un mayor intecambio de
capitales simbólicos”. (VICH, 2014, p.
14) Seguindo com sua análise, o autor
chama a atenção de que
contemporaneamente, as experiências
que vieram sendo construídas na
América Latina, geraram a percepção
de que uma efetiva necessidade de
se entender e de praticar as políticas
culturais “como dispositivos para
activar nuevos procesos sociales”
(Idem, p. 16)
Não podemos deixar de
assinalar que nessa terceira década do
século XXI, temos vivenciado inúmeros
ataques a liberdade, aos direitos, e a
democracia em si mesma, no caso do
Brasil vivemos uma verdadeira “guerra
professores, pesquisadores e gestores, entre
eles eu mesma.
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cultural”, onde a disputa pela conquista
dos imaginários sociais pela extrema
direita foi - e continua - intensa.
Retornando a Vich, buscando
construir uma resposta para a questão:
“o que é fazer política cultural?”, dentro
dos princípios democráticos, de
garantia de direitos, temos a afirmativa
de que:
Una política cultural
verdadeiramente democrática
debe proponerse abrir espacios
para que las identidades excluídas
accedan al poder de
representarse a mismas y de
significar su própria condición
política participando como
verdadeiros actores en la esfera
pública. Es decir, las políticas
culturales deben intentar hacer
más visibles aquellas estructuras
de poder que han impedido que
muchos grupos humanos puedan
participar y tomar decisiones en la
vida pública. (VICH, 2014, p. 89)
Quando, em final dos anos 1980,
Néstor García Canclini forjou o conceito
(ou noção como preferem alguns) de
políticas culturais, um dos princípios
dessa política deveria ser a construção
integrada, com a participação do poder
público e da sociedade civil, em um
caminho de mão dupla, com o objetivo
de responder, de satisfazer as
3 Isso porque a relação efetiva entre
representantes e representados, quando se
trata das camadas populares e periféricas fica,
na maioria das vezes, restrita ao momento da
necessidades dessa população.
Entretanto em uma sociedade na qual
as estruturas hierárquicas, oriundas
dos tempos coloniais, mantiveram-se
ativas, onde uma série de identidades
permaneceram subalternizadas, como
participar das decisões da vida pública?
Como contribuir na elaboração de
políticas públicas de cultura?
Historicamente, diversas camadas da
população se mantiveram por longo
tempo despossuídas de direitos no
campo da participação política. Não
detinham o direito à cidadania efetiva.
Ao olharmos para a luta pelos
direitos políticos, verificamos que
somente ao longo do século XX, os
grupos foram, gradativamente, obtendo
o direito ao voto. Ou seja, ainda que
em pleno regime republicano, o país
tardou muito a garantir ao conjunto da
população o direito democrático do
voto. Ao longo do século XX, o único
direito no campo da construção das
políticas era o de, teoricamente,
escolher aqueles que os
representariam no poder3. Foi com a
Constituição de 1988, com o
busca dos votos. Após às eleições esses
segmentos seguem “esquecidos por esses
políticos.
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estabelecimento dos conselhos de
políticas públicas democráticos e
paritários, que teve início um processo
de participação mais efetiva na
construção das políticas públicas. No
caso da cultura, essas experiências
datam somente da primeira década do
século XXI e ainda estão sendo
lentamente experimentadas.
Marilena Chauí, ao tratar da
questão da cidadania cultural4, lista
uma série de princípios que
expressavam o que a secretaria de
cultura de São Paulo, na sua gestão
(1988-1992), deveria considerar e
garantir como direitos. Entre eles
estava o “de participar das decisões
quanto ao fazer cultural” (CHAUÍ, 2006,
p. 70). Segundo Chauí, para
implementar a proposta de cidadania
cultural era preciso trabalhar com uma
definição de “política da cultura pelo
prisma democrático e, portanto, como
direito de todos os cidadãos, sem
privilégios e sem exclusões” (Idem. P.
72), assim como praticar:
- uma concepção alargada de
cultura, que não a identificasse
com as belas-artes, mas a
apanhasse em seu miolo
antropológico de elaboração
coletiva e socialmente
4 Segundo a autora, esse artigo foi
originalmente em 1992.
diferenciada de símbolos, valores,
ideias, objetos, práticas e
comportamentos pelos quais uma
sociedade, internamente dividida
e sob a hegemonia de uma classe
social, define para si mesma as
relações com o espaço, o tempo,
a natureza e os humanos.
(CHAUÍ, 2006, p. 72)
Colocando em diálogo as
reflexões de Chauí e de Vich, podemos
pensar as políticas culturais como
espaço que permite aos cidadãos a
construção de novas imagens sobre si
mesmos, libertando as práticas
culturais locais dos olhares
colonizadores, que historicamente as
subalternizam. As políticas culturais
tem potencial transformador quando
são direcionadas a fomentar e
reconhecer a diversidade cultural, em
especial ao que é produzido nos
territórios e por grupos considerados
periféricos, propiciando um novo olhar
sobre si mesmos. Como afirma Vich:
“Construir un proyecto relevante de
política cultural implica, em especial,
activar la producción de nuevas
identificaciones imaginarias” (VICH,
2014, p. 92).
O Programa Cultura Viva,
historicamente, vem atuando no
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sentido de ativar a produção de novos
imaginários, de novas identificações
culturais. É importante destacar que ele
foi potencializado por um conjunto de
outras políticas dos governos Lula
(2003-2010), como a de cotas nas
universidades, a do reconhecimento
das terras e direitos quilombolas ou a
ampliação da demarcação das terras
indígenas, entre outros. Dentro de uma
conjuntura que buscava a construção e
o fortalecimento de novas identidades
culturais, o Cultura Viva cumpriu um
papel fundamental através de
iniciativas como a Ação Griot, os
Pontos de Memória ou os Pontos de
Cultura Indígena. Em momentos de
retração da política, suas redes
serviram como pontos de resistência ao
desmonte completo das políticas
democráticas e de justiça social, que
vieram sendo construídas na busca de
sanar a dívida história da sociedade
brasileira como um todo com diversos
de seus segmentos.
Cultura Viva: Revisitando o tempo e
a trajetória
Na abertura do Catálogo do
Programa Cultura Viva, publicado em
2005, Célio Turino define o Cultura Viva
como um “programa de acesso aos
meios de formação, criação, difusão e
fruição cultural, cujos parceiros
imediatos são agentes culturais,
artistas, professores e militantes sociais
que percebem a cultura não somente
como linguagens artísticas, mas
também como direitos, comportamento
e economia”, afirmando que é preciso
transformar o Brasil e para isso “é
preciso ir além de uma política de
Estado, afinal, o Estado ainda é de tão
poucos” e conclui que “é preciso
transformar o Cultura Viva em política
pública efetivamente apropriada por
seu povo”. (BRASIL, 2010, p. 32-33)
A construção do Programa
Cultura Viva, principalmente em seus
primeiros anos foi muito potente no
acionamento de novos imaginários, na
ideia de redescoberta do Brasil. Os
discursos, os documentos e escritos
desse tempo, em geral, são poéticos e
criativos, em sua maioria provocam,
incitam, convocam a sociedade civil, os
agentes culturais, os pontos de cultura,
a cumprirem um papel transformador.
É muito interessante a reflexão
proposta pelo Célio Turino, de que para
transformar o Brasil é necessário ir
além de uma política de Estado, por ser
a estrutura de Estado vigente
excludente, oligárquica, autoritária e
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
discriminadora. Enquanto no conjunto
das outras políticas o discurso vai no
sentido de transformar as políticas
culturais de governos em políticas de
estado, tentando evitar, assim, o
constante desmonte ao qual são
submetidas as políticas públicas, a
aposta que está na base do Cultura
Viva é a de uma transformação maior
do país, para que o Estado seja de
todos, ou seja, há a necessidade de se
produzir uma nova cultura política. O
Programa propõe a criação de novos
imaginários, alicerçada em novas
relações que o Ministério da Cultura
buscava estabelecer com a sociedade
em geral e com os agentes culturais em
especial.
Em 2005, em um de seus
discursos, o então Ministro da Cultura
Gilberto Gil, enumera alguns dos
objetivos do Programa Cultura Viva
O programa Cultura Viva foi
concebido como uma rede
orgânica de gestão, agitação e
criação cultural, tendo por base de
articulação os Pontos de Cultura.
(...) O Ponto de Cultura expressa
a intenção de construir uma rede
horizontal de articulação e
disseminação de iniciativas e
vontades criadoras; é uma
pequena marca, um sinal, uma
referência, e ao mesmo tempo
uma plataforma.” (GIL apud
ALMEIDA; ALBERNAZ;
SIQUEIRA, 2013, p. 330)
Olhando a trajetória daqueles
inúmeros fazedores de cultura, que
orgulhosamente se apresentavam
como “ponteiros”, nome que se passou
atribuir aos gestores e integrantes dos
Pontos de Cultura, podemos verificar
que tais objetivos foram sendo
razoavelmente cumpridos. A rede se
expandiu, gerando algumas redes
secundárias, como a dos pontos de
cultura rurais em alguns estados. Ou
ainda, formando redes estaduais e
municipais, a partir da descentralização
do Programa. Essa se com o
repasse de recursos e gestão do
programa para estados e municípios.
Parte das redes secundárias seguiram
organizando e participando de
encontros locais, similares ao nacional
as Teias -, assim como se
mobilizando pela manutenção do
programa pelos governos, mantendo-
se em diálogo com os diversos níveis
do poder público. Também devemos
ressaltar que as redes se mantiveram
mais ativas e com uma participação
numericamente maior nos momentos
de crise do próprio programa, como
quando da busca de soluções para os
problemas das prestações de contas,
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atrasos de repasse de recursos, entre
outros.
Antes de seguirmos pelo
caminho da potência dos discursos é
preciso fazer um parêntesis, lembrando
que as propostas de novas formas de
atuação do Estado em relação à
sociedade civil não eram - e ainda não
são - bem compreendidas pelo
conjunto da burocracia do Estado. Ao
longo da história da administração
pública, as áreas de governo
construíram grande parte dessa
estrutura de políticas públicas para
atender as elites, as oligarquias, e, para
a população em geral, sobravam as
ações assistencialistas. A conquista de
direitos básicos se deu à custa de
muitas lutas. Com o campo da cultura
não seria diferente. As resistências de
diversas áreas aos projetos de
ampliação do leque de “atores sociais”
a serem atendidos pelas políticas
culturais se fizeram imediatamente
presentes (dentro e fora da burocracia).
Tais resistências dificultaram os
desdobramentos do Programa, muitas
vezes criminalizando e penalizando
instituições da sociedade civil a partir
do recebimento e uso dos recursos
públicos.
As dificuldades vivenciadas
pelos Pontos de Cultura não é tema
desse artigo, mas é importante deixar
registrado que muito do que foi
proposto nos primórdios do Programa,
vinte anos depois, ainda é plataforma
de luta no campo das políticas culturais.
Célio Turino, no mesmo artigo, de
2005, acima citado, nos informava que:
“Na partida evitamos uma estrutura
fortemente institucionalizada e
hierarquizada, pesada na forma de
gestão e controle, muito comum na
burocracia pública.” (BRASIL, 2010, p.
34) Isso não impediu problemas,
bloqueios e penalizações impostas aos
beneficiários do Programa pelos órgãos
de controle. Os mecanismos de entrada
no Programa foram sendo
simplificados, mas ficaram longe ainda
de serem efetivamente democráticos,
tendo em vista a realidade social. A
complexidade e a rigidez da aplicação
dos processos de prestação de contas
destoavam do espírito de autonomia e
liberdade do Programa. Todo o tempo
trataram os grupos sociais
historicamente subalternizados e
excluídos de cidadania plena, com mais
rigidez, do que integrantes da área
industrial, por exemplo, quando são
subsidiados com verbas públicas e
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muitas vezes anistiados de suas
dívidas com o erário público. Alguns
problemas começavam ainda na
abertura das contas bancárias e
seguiram ao longo do caminho em uma
infinidade de direções.
Retomando o fio do potencial
discursivo do Programa, em 2004, o
Ministro Gilberto Gil afirmava que:
O Programa Cultura Viva é,
sobretudo, uma política pública de
mobilização e encantamento social.
Mais que um conjunto de obras
físicas e equipamentos, ele envolve
a potencialização das energias
criadoras do povo brasileiro. Não
pode ser considerado um simples
‘deixa fazer’, porque parte de uma
instigação, uma emulação, que é o
próprio do-in antropológico, mas os
rumos, as escolhas, as definições
ao longo do processo, são livres. E
os resultados imprevisíveis. E
provavelmente surpreendentes.”
(BRASIL, 2010, p. 37)
O Programa foi crescendo com
base em um processo de diálogo entre
o governo e os fazedores de cultura, a
partir dos insumos que foram sendo
produzidos e do potencial que emergia
do campo cultural. A Ação Griot, por
exemplo, foi uma modalidade surgida a
partir da experiência bem sucedida de
um ponto de cultura do primeiro edital.
Quando o Ministro Gil afirmou, na
citação acima, que o Programa não
poderia ser considerado um “simples
deixar fazer”, ele estava embasado
pela ideia de que o Cultura Viva se
transformaria no “meio de ligão entre
as ações do poder público”, - como
garantidor dos meios de fruição,
produção e difusão cultural “e as
ações da própria comunidade;” assim
como seria, “o meio de ligação entre as
ações culturais das diversas
comunidades articuladas” através do
trabalho em rede. (GIL apud ALMEIDA;
ALBERNAZ; SIQUEIRA, 2013, p. 330)
Ao buscar inverter a lógica da
aplicação dos escassos recursos
orçamentários o Ministério da Cultura,
passou a se empenhar em atender
áreas periféricas que nunca foram
atendidas, tornano-se alvo de críticas,
dentro do próprio setor cultural. Tais
críticas partiram, principalmente, de
artistas consagrados, de
reconhecimento nacional e
internacional. Em uma entrevista
concedida a revista Carta Capital, em
2006, em que o tema eram as políticas
que estavam sendo implementadas, o
Ministro Gil, afirma sobre as críticas
recebidas:
Acho que tem a ver com a
discriminação positiva, digamos
assim, que estamos tentando fazer,
focando áreas que não eram
focadas e, portanto, estabelecendo
um conflito distributivo com esses
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setores. É um conflito que não
existia nessa intensidade antes,
porque eles tinham acesso aos
recursos que estão sendo
redistribuídos. Estamos tentando
trabalhar com um pouco mais de
atendimento periférico, com os
Pontos de Cultura, as políticas para
museus que estamos
descentralizando. (GIL apud
ALMEIDA; ALBERNAZ; SIQUEIRA,
2013, p. 107)
O Programa Cultura Viva, pode
ser pensado como uma política através
da qual foram feitos os primeiros
experimentos de descentralização de
recursos para estados e municípios em
diálogo com a sociedade civil. A
dimensão nacional que o Programa
alcançou, o crescimento numérico dos
pontos, passou a dificultar tanto o
acompanhamento das atividades,
quanto o conhecimento das múltiplas
experiências realizadas, ou ainda, o
mapeamento da riqueza e da
diversidade de atividades
desenvolvidas. Nos anos de 2007 e
2008, houve o esforço de realização de
uma pesquisa censitária sobre o
Programa. O Ipea, foi contratado para a
realização de tal pesquisa. O corpus
original era de 526 pontos conveniados
até dezembro de 2007, mas ao final
5 Dos pontos apresentados pelo MinC como
conveniados: 7% estava com atividades
suspensas, 5% não havia iniciado as
somente 386 foram considerados.5 Os
Pontos estavam localizados em 203
municípios distribuídos por todas as
Unidades da Federação. O processo de
descentralização de recursos para
estados e municípios do Cultura Viva já
tinha início naquele momento, de
alguma maneira antecipando os
mecanismos que estavam sendo
projetados para o funcionamento do
Sistema Nacional de Cultura, aprovado
somente em 2012.
O potencial de articulação e de
representação do Programa estava
institucionalmente assentado em dois
mecanismos. 1 - A Comissão Nacional
dos Pontos de Cultura, a principal
representante dos pontos nos fóruns e
encontros regionais, órgão de diálogo
constante com o Ministério. 2 - O
Fórum Nacional dos Pontos de Cultura,
criado na Teia de 2007, definido como
instância política dos Pontos de
Cultura. O Fórum:
...reúne representantes dos fóruns
estaduais, das ações nacionais,
além das áreas temáticas e redes
que compõem o programa Cultura
Viva. Tem como objetivo fortalecer
o Sistema Nacional de Cultura,
fomentar a construção de marcos
legais que reconheçam a
autonomia e o protagonismo
atividades, 4% estava desativado e 1% havia
concluído o convênio. IPEA. 2010. P. 64
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cultural do povo brasileiro, e
debater os avanços e os desafios
na gestão compartilhada do
programa Cultura Viva. (IPEA,
2010, p. 43)
Os debates políticos nas duas
instâncias de representação eram
intensos, fortalecendo o projeto de uma
gestão participativa, com uma presença
mais efetiva dos agentes da sociedade
civil. Havia uma articulação constante,
fazendo na prática a agitação cultural”
a que o Ministro Gilberto Gil havia se
referido anos antes.
Com o fim do governo do
Presidente Lula, ocorreram algumas
mudanças na gestão do Ministério da
Cultura. A Presidenta Dilma nomeou
Ana de Holanda como a nova chefe da
pasta da cultura. A primeira gestão do
MinC (2011-2012) no governo Dilma,
em especial, configurou-se
discursivamente em oposição a grande
parte das ações implementadas nos
oito anos anteriores. No caso da
manutenção do diálogo com a
sociedade civil, este foi conduzido de
maneira muito particular a partir de
cada uma das áreas do MinC. Por
exemplo, logo no início da gestão a
Ministra fundiu a Secretaria de
Identidade e Diversidade (SID) com a
Secretaria da Cidadania Cultural
(SCC), criando a Secretaria de
Cidadania e Diversidade Cultural
(SCDC). A nova secretaria iniciou a
gestão com muitos conflitos com os
Pontos de Cultura, travando muitas
discussões com a Comissão Nacional
dos Pontos de Cultura. A crise foi
sendo aprofundada e teve como
desdobramento a substituição da
secretária da pasta. Com a posse de
uma nova secretária os diálogos com
os integrantes do Cultura Viva foram
sendo retomados lentamente.
E aqui uma observação se faz
importante. A crise de gestão e de
relacionamento com o poder público
federal e os atores envolvidos no
processo e representados pela
Comissão Nacional de Pontos de
Cultura foi sendo intensificada, ao
mesmo tempo em que o programa
aumentava sua escala nacional. Nos
dois últimos anos do governo Lula, com
a gestão do Ministro Juca Ferreira, o
Ministério havia acelerado o processo
de federalização do Cultura Viva,
fazendo dele a principal ação do macro
programa Mais Cultura. Foram
realizados convênios e repassados
recursos preferencialmente para os
estados, mas alguns municípios
também foram beneficiados, visando
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
ao lançamento de novos editais. Nessa
fase o Programa passou a ter parte
significativa de sua gestão sob a
responsabilidade das secretarias
estaduais e municipais.6
Em 2010, com toda a crise
interna, o Programa Cultura Viva
havia ultrapassado as fronteiras
nacionais, era reconhecido
internacionalmente. Desenhos de
outros programas inspirados nele
começavam a ser rascunhados em
várias localidades da América Latina.
Tal processo complexo é um
interessante indicador de algumas
lógicas “perversas” a que ficam
submetidas às políticas públicas.
Segundo Alexandre Santini, essas
redes, desde cedo, extrapolaram os
limites geográficos, as barreiras
territoriais, pois o primeiro contato de
“agentes culturais latino-americanos
com o Programa Cultura Viva e os
Pontos de Cultura foi na primeira TEIA
Nacional, em São Paulo, no ano de
2006” (SANTINI, 2017, p. 143), onde
vários representantes de grupos
teatrais ligados a Rede Latino-
6 Dessa ação resultaram vários
desdobramentos territoriais pois diversos
desses convênios tinham uma previsão do
desdobramento das ações por quatro anos e
Americana de Teatro em Comunidade
participaram do evento. Dentro das
inovações do Cultura Viva estavam as
“Teias”, encontros que deveriam ter
uma periodicidade anual e reunir
representantes e integrantes de todos
os Pontos de Cultura, gerando maiores
interações nas redes. Segundo
Deborah Lima:
As Teias funcionavam como este
espaço de interação entre os
pontos, mas também como
instância política. Afinal a Teia
abriga o Fórum Nacional de Pontos
de Cultura: um colegiado com um
representante por cada Ponto de
Cultura. No Fórum eles se reúnem
em grupos temáticos de reflexão
sobre o Cultura Viva e em cada um
elegem os representantes a
comporem a Comissão Nacional de
Pontos de Cultura. A CNPdC é a
responsável por fazer mediação
entre Pontos e o Minc. (LIMA,.
2013, p. 94)
No mesmo momento em que
vários impasses dentro do governo
brasileiro reduziam a capacidade de
operação do Programa no âmbito do
governo Federal, as relações e
diálogos com o restante da América
Latina se ampliavam. Segundo Albino
Rubim:
muitos tiveram seus prazos de execução
ampliados ou renovados.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Em contraste com a paralisia bra-
sileira, floresceu na América
Latina a partir de 2010 um
movimento que foi denominado de
Cultura Viva Comunitária. no
ano de 2009, no III Congresso
Ibero-Americano de Cultura,
promovido pela Secretaria Geral
Ibero-Americana (SEGIB), em
São Paulo, aconteceram diálogos.
Mas o marco inicial do processo
ocorreu em Medellín, de 13 a 16
de outubro de 2010, no Encuentro
de Redes Latinoamérica
Plataforma Puente - 100
Organizaciones Socioculturales.
(...)Neste mesmo ano, realizou-se
uma marcha em Buenos Aires e a
entrega na Casa Rosada de pro-
posta de lei Cultura Viva. (RUBIM,
2017, p. 220)
Ainda que estivesse nos planos do
Ministério, o Ministro Juca Ferreira
(2015-2016), que assumiu a pasta da
cultura no segundo governo da
presidenta Dilma Rousseff, não
conseguiu retomar o Programa Cultura
Viva no âmbito do governo federal. O
Programa seguia ativo em alguns
estados e municípios, inclusive na
realização dos encontros locais, das
Teias regionais e temáticas. Mesmo
com os convênios terminados muitas
das iniciativas mantiveram o nome
Ponto de Cultura, fazendo valer a
chancela do governo. A articulação
internacional se mantinha igualmente
intensa.
A partir do golpe contra a
Presidenta Dilma, em 2016, a situação
das políticas de cultura, em todas as
áreas, se agravou. Uma das
medidas do governo Temer foi extinguir
o Ministério da Cultura. Medida
revogada por conta da ampla
mobilização popular que resultou em
ocupação de diversos prédios e sedes
das instituições do Ministério, com
grande repercussão na imprensa. A
recriação do MinC não impediu que o
governo fosse esvaziando as ações,
programas e políticas. Começam pelas
trocas constantes na chefia da pasta,
com sucessivas substituições daqueles
que ocupavam os cargos
comissionados, afetando gravemente a
continuidade da implementação das
políticas e das ações, mesmo as mais
rotineiras. Estas seguidas de cortes
orçamentários e outras estratégicas de
asfixia da área.
O período que se seguiu foi muito
difícil para muitos desses Pontos de
Cultura. Em alguns estados o
Programa foi praticamente extinto. A
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Lei Cultura Viva7 havia sido aprovada
em 2014, mas não foi implementada.
Ela foi fruto de um trabalho vigoroso de
mobilização da sociedade, dos Pontos
de Cultura, na busca de impedir a
descontinuidade do Programa. O
processo de construção da Lei teve por
base a intensa mobilização e parceria
da sociedade civil com o poder
Legislativo, de alguma maneira
demonstrando a importância da
existência e da manutenção da rede de
articulação entre os Pontos de Cultura.
Desde o período da campanha
eleitoral bolsonarista, ficou evidente a
baixa empatia deste grupo político com
a área artística e cultural. Os discursos
de ódio, as fakes news e outros ataques
sistemáticos aos artistas, logo nos
primeiros momentos do governo, eram
indícios claros que tempos bem difíceis
estavam por vir. O ano de 2019 foi
bastante difícil, com bloqueio de
recursos, retirada de incentivos,
paralização de ações e intensa
censura.
Algumas das características
próprias do campo da cultura e das
artes, tais como a visibilidade que parte
7 Ver: Lei nº 13.018, de 22 de julho de 2014.
Institui a Política Nacional de Cultura Viva.
das ações obtém na mídia nacional e
internacional, a capacidade de
articulação de resistência, a habilidade
de provocar deslocamentos, fizeram
desse um campo de ataque sistemático
dos fascistas e conservadores de todas
as vertentes que compuseram esse
governo. As constantes disputas para
que representantes das alas mais
conservadoras tivessem o controle das
instituições vinculadas ao extinto Minc
são reveladoras do projeto político para
a cultura operado pela presidência da
república e seus aliados de extrema
direita.
Chegamos ao início do ano 2020
com uma epidemia de Covid 19 que
assolou o mundo. Como medida
emergencial, para conter o contágio, foi
decretado estado de emergência
sanitária. Logo, todas as atividades
presenciais não essenciais foram
suspensas. Várias áreas e atividades
foram duramente atingidas e talvez a
da cultura tenha sido uma das
principais. Os trabalhadores da cultura
tiveram, de um dia para o outro, todas
as suas atividades suspensas. Os
auxílios emergenciais inicialmente
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
propostos pelo governo federal não
englobavam os fazeres culturais.
A área do executivo federal da
cultura abandonou o conjunto dos
trabalhadores à “sua própria sorte”.
Aqui vale um destaque, o esforço de
uma série de municípios e estados,
alguns logo no início da pandemia, que
criaram editais especiais, auxílios
emergenciais, cadastro para cestas
básicas, pagamento antecipado de
ingressos e outras estratégias para
atender os trabalhadores locais da
cultura.
A situação de emergência, para
a qual toda a sociedade foi levada,
lançou luz sobre os diversos fazeres da
cultura, recompôs muitas das antigas
redes de articulação no campo da
cultura, propiciou a criação de novas
redes, fóruns regionais foram
reativados, assim como ocorreu o
ingresso de novos atores sociais nos
processos de articulação em defesa da
cultura. Como registrado pela
Deputada Benedita e por sua equipe:
A mobilização nacional começou
em março de 2020, período em que
a pandemia exigiu o cancelamento
das atividades com aglomeração de
público. Diante disso, o setor
cultural foi imediatamente
impactado. Ligou-se o sinal
amarelo. Começamos a receber
cartas e manifestos e, com estes
materiais, passamos a elaborar o
PL 1075/2020. A mobilização da
sociedade segue até hoje e deve
permanecer, cumprindo seu papel
republicano e democrático. (SILVA.
2020, p. 2)
A construção da Lei de
Emergência Cultural Aldir Blanc teve
como elemento fundamental a
convocação de encontros e fóruns de
discussão com diversos participantes
da sociedade civil dos mais variados
segmentos da cultura e dos poderes
públicos de estados e municípios,
permitindo que o texto estivesse o mais
ajustado possível aos objetivos
propostos. A complexidade do setor, a
diversidade de funções, atividades e
áreas que ele abrange exigiu um
debate ampliado com representantes
de todo o país. As reuniões virtuais
mobilizaram representantes dos três
níveis de governo, parlamentares,
ativistas, realizadores e trabalhadores
dos mais diversos segmentos e regiões
do país, permitindo o acompanhamento
e a contribuição para a finalização do
texto.
A articulação rápida e o diálogo
intenso com o poder legislativo, em
parte, é tributária da experiência
vivenciada pelos integrantes do
Programa Cultura Viva, dos gestores e
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
legisladores que por mais de uma
década dialogaram com esse
programa.
O Cultura Viva, até a
implementação da Lei Aldir Blanc, era o
Programa de maior capilaridade da
área da cultura, promovendo a chegada
de recursos para os fazedores de
cultura em todas as regiões do país.
Foi, e ainda é, um programa inovador,
que permitiu que os recursos da cultura
chegassem pela primeira vez a alguns
segmentos da sociedade. Esse não é
um programa de simples repasse de
recursos. Ele tem em seu âmbito, como
foi dito anteriormente, o
estabelecimento da rede de Pontos de
Cultura e da realização de encontros
regionais e nacionais as Teias. A
articulação nacional dos Pontos de
Cultura, em diálogo com o poder
legislativo levou a aprovação da Lei
Cultura Viva. Na confecção, difusão e
implementação da Lei Aldir as
experiências das redes dos Pontos de
Cultura tiveram um papel fundamental.
No momento atual, final do ano
de 2023, assistimos à retomada do
Programa Cultura Viva, com o
lançamento de editais para pontos e
pontões. A esperança, o anseio é que
sigamos na direção de efetivar aquilo
que foi dito pelo Ministro Gil em seu
discurso de 2005. Que o Programa
possa;
- Promover pactos com atores
sociais governamentais e não
governamentais locais, visando à
valorização da cultura local.
- Incorporar referências simbólicas
e linguagens artísticas ao
processo de construção de
cidadania.
(...)
- Potencializar energias sociais e
culturais, dando vazão às
dinâmicas próprias das
comunidades para o
desenvolvimento de uma cultura
cooperativa, solidária e
transformadora. (GIL apud
ALMEIDA; ALBERNAZ;
SIQUEIRA, 2013, p. 229)
Ainda parafraseando o Ministro
Gil, que a retomada do Programa
Cultura Viva contribua para a promoção
do reencantamento da sociedade
brasileira, que ajude a liberar as
energias positivas e potentes que
permitirão que a sombra dos
autoritarismos e fascismos deixe de
nos assombrar cotidianamente.
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Ministro da Cultura 2003-2010/Gilberto
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Versal, 2013.
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