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CASTRO, Andreia A. M. de; ALVES, Luciana P.; CASTRO, Luis Henrique M.
de. A outra praia da Moreninha: diferentes geografias e histórias do
subúrbio carioca. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 27, p. 204-233, set. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Fluxo contínuo)
A outra praia da Moreninha: diferentes geografias e histórias do subúrbio
carioca
Andreia Alves Monteiro de Castro
1
Luciana Pires Alves
2
Luis Henrique Monteiro de Castro
3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i27.62602
Resumo: O presente artigo surge da possibilidade de uma educação patrimonial sobre os marcos
históricos e culturais de um dos mais importantes e polêmicos bairros da chamada Zona de Leopoldina.
Através dessa reflexão, visamos contribuir com o conhecimento crítico e a apropriação consciente pelas
comunidades da Penha de seu patrimônio para que ele seja um fator indispensáveis no processo de
preservação sustentável desses bens e no fortalecimento dos sentimentos de identidade e cidadania,
como preconiza o IPHAN. Entrelaçando passagens de nossa história familiar, pretendemos narrar
acontecimentos históricos importantes que foram transformados, ressignificados e reutilizados pelos
projetos de nação que se sucederam nos mais de quatrocentos anos da fundação da Cidade do Rio de
Janeiro. Nossa narrativa recorre às fontes primárias que documentam os eventos do passado em sua
cronologia e contiguidade. Defendemos uma rota de educação patrimonial composta por elementos
cotidianos que testemunham diferentes tempos históricos, o que inclui a passagem entre eles,
elementos como: a literatura, o samba, os selos, os meios de transporte e as notícias dos jornais.
Palavras-chave: educação patrimonial; preservação sustentável; fontes-primárias; Penha
La otra playa de Moreninha: diferentes geografías e historias del suburbio de Río
Resumen: Este artículo surge de la posibilidad de realizar educación patrimonial sobre los hitos
históricos y culturales de uno de los barrios más importantes y controvertidos de la denominada Zona
Leopoldina. A través de esta reflexión, pretendemos contribuir al conocimiento crítico y a la apropiación
consciente por parte de las comunidades Penha de su patrimonio, de modo que sea un factor
indispensable en el proceso de preservación sostenible de estos bienes y en el fortalecimiento de los
sentimientos de identidad y ciudadanía, como propugna el IPHAN. Entrelazando pasajes de nuestra
historia familiar, pretendemos narrar importantes acontecimientos históricos que fueron transformados,
1
Andreia Alves Monteiro de Castro. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Estadual
do Rio de Janeiro. Professora de Literatura Portuguesa e de Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, Brasil. E-mail:
andreiaacastro@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-2586-6789
2
Luciana Pires Alves. Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense/UFF. E-mail:
lualpires@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-8470-4966
3
Luis Henrique Monteiro de Castro. Doutorando em Educação pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Professor efetivo na Escola Técnica Ferreira Viana (ETEFV - FAETEC), Rio de
Janeiro, Brasil. E-mail: luishmcastro@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-6149-7047
Recebido em 14/04/2024, aceito para publicação em 02/09/2024.
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(Fluxo contínuo)
dotados de nuevos significados y reutilizados por los proyectos de nación que se sucedieron en los
más de cuatrocientos años transcurridos desde la fundación de la Ciudad de Río de Janeiro. Nuestra
narrativa se basa en fuentes primarias que documentan eventos pasados en su cronología y
contigüidad. Defendemos una ruta de educación patrimonial compuesta por elementos cotidianos que
dan testimonio de diferentes épocas históricas, que incluye el paso entre ellas, elementos como:
literatura, samba, estampillas, medios de transporte y reportajes periodísticos.
Palabras clave: educación patrimonial; preservación sostenible; fuentes primarias; Penha.
The other Moreninha beach: different geographies and histories of the Rio suburb
Abstract: This article arises from the possibility of heritage education about the historical and cultural
landmarks of one of the most important and controversial neighborhoods in the so-called Leopoldina
Zone. Through this reflection, we aim to contribute to critical knowledge and the conscious appropriation
by Penha communities of their heritage so that it is an indispensable factor in the process of sustainable
preservation of these assets and in strengthening feelings of identity and citizenship, as advocated by
IPHAN. Interweaving passages from our family history, we intend to narrate important historical events
that were transformed, given new meanings and reused by the nation’s projects that followed each other
in the more than four hundred years since the founding of the City of Rio de Janeiro. Our narrative draws
on primary sources that document past events in their chronology and contiguity. We defend a heritage
education route made up of everyday elements that bear witness to different historical times, which
includes the passage between them, elements such as: literature, samba, stamps, means of transport
and newspaper reports.
Keywords: heritage education; sustainable preservation; primary sources; Penha.
A outra praia da Moreninha: diferentes geografias e histórias do subúrbio
carioca
Igrejas, fazendas, praias e festas
Foi na Penha
Não, foi na Glória
Gravei na memória
Mas perdi a senha
Misturam-se os fatos
As fotos são velhas
Chico Buarque
4
A Fazenda de Nossa Senhora da Ajuda, pertencente à sesmaria de Irajá, foi, em primeiro momento,
propriedade do capitão Baltazar de Abreu, em cujas terras viria a ocorrer o milagre da Penha, que
trouxe tanta fama ao lugar. Essa fazenda, também conhecida como Fazenda Grande da Penha, fazia
divisa com a Fazenda do Engenho da Pedra. Uma pequena parte do que foi a antiga Fazenda
Grande é hoje a Fazendinha da Penha, uma área verde às margens da Avenida Brasil.
5
Deste porto, partiam embarcações para o centro do Rio de Janeiro colonial, permitindo o
escoamento do açúcar, aguardente, frutas, hortaliças e tudo o mais que fosse produzido nas
propriedades rurais da região.
A Igreja da Penha, a sede da
Fazenda de Nossa Senhora da Ajuda
4
,
o Porto de Maria Angu
5
e a Praia da
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(Fluxo contínuo)
Moreninha
6
são marcos, no feminino,
de histórias continuamente contadas,
transformadas, ressignificadas e
reutilizadas pelos projetos de nação que
se sucederam nos mais de
quatrocentos anos da fundação da
Cidade do Rio de Janeiro. As
construções e as ruínas desses
passados ainda são indícios de um
sistema de relações e conexões
históricas, políticas e sociais das quais
nossa família testemunhou e transmitiu
de geração a geração.
Adorávamos, na infância,
caminhar pelo bairro da Penha e ouvir
as histórias de quando as terras do
lugar eram parte de uma grande
fazenda dos antepassados de nosso
pai, das brincadeiras nas belas praias
suburbanas e da crença de que a
“Santa-madrinha” sempre protegeu a
nossa gente. Nossa bisavó Teresa
Vilhena de Vasconcelos Alves contava
sobre o velho Baltazar de Abreu
Cardoso, livrado do ataque de uma
cobra, e, sobretudo, do capitão-mor
José dos Santos, cujos ex-votos ainda
dão conta da salvação em um
6
Praia que ficava entre Cordovil e Penha
circular e que passou por sucessivos aterros
em meados do século XX, a ponto de fazer
desaparecer a Ilha do Anel e a Ilha Comprida.
naufrágio, sem esquecer do livramento
de doenças graves de familiares, nos
levando sempre a recorrer a “Virgem da
pedra” em busca de um acalanto em
todas as horas de aflição: “Nossa
Senhora da Penha, valei-nos”.
Essa forma de transmissão fugiu
aos modus operandi da produção de
lugares de memória e patrimônio. Por
não terem nomeado os espaços a partir
de nossos sobrenomes, nossos
antepassados não marcaram a
fisionomia dos lugares com os índices
de distinção e do direito ao memorável.
Os fundadores de nossa família,
marginais devido às suas origens e pela
afirmação de seus posicionamentos
políticos ao longo dessas histórias
fizeram com que as suas marcas
fossem inscritas no tempo/espaço
somente a partir de menções, de
alcunhas e de passagens em
documentos encerrados em arquivos.
Esse esquecimento foi pensado,
desejado e, posteriormente, imposto
pelas autoridades. Seus rastros
produziram uma “memória
esquecidiça”, uma vez que eles
Nos dias de hoje, este mesmo local é
conhecido como favela da Kelson’s ou como
Favela da Moreninha.
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recorreram ao seu capital financeiro e
social para exercer o feliz poder do
esquecimento, como afirma Blanchot
(2010, p. 51):
Os filósofos diriam que esquecer é
deter em seus segredos a força
mediadora, que aquilo que
assim se apaga de nós de
retornar-nos, enriquecido dessa
perda e acrescido dessa falta. O
esquecimento é mediação, feliz
poder.
O presente texto surge do desejo
de esmiuçar essa memória, que ao
mesclar narrações familiares e
pesquisa documental em periódicos,
defende a presença negra,
principalmente feminina, desde a
fundação do arraial da Penha como
indício das mediações culturais que
fizerem da festa da Penha “avant-
première do Carnaval” (Soihet, 1998) e
o primeiro espaço público do samba,
que à época pertencia ao âmbito
privado nos terreiros e casas das tias na
Pequena África, ressaltando a rede de
sociabilidade que indica as mulheres
negras através de suas barracas na
festa da Penha como principais agentes
dessa tecitura; a fruição estética
musical, literária e geográfica como
meios de educação patrimonial; suscitar
práticas de valorização dos espaços do
subúrbio como lugares de memória que
devem ser sinalizados, preservados e
discutidos. Também, pretende
contribuir para a reconstrução no plano
simbólico de uma geografia surgida das
relações institucionais coloniais como o
clero, representado pela Igreja da
Penha, o comércio portuário diluído
pelo território, representado pela praia
das Morenas e a casa grande,
representada na fazenda grande da
Penha. O apagamento dessa relação foi
estrategicamente calculado quando
interessou às autoridades republicanas
opor cidade ao arraial, modernidade e
atraso, centro e periferia como formas
de abafar os conflitos e violências que
gestaram a sociedade brasileira. Entre
elas, o processo que Vianna (2004)
chamou de “fancáfrica”, o
afrancesamento da cidade que
mascarava o embranquecimento como
face do massacre enfrenado pela
população negra no Rio de Janeiro sob
as luzes do século XX.
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Figura 1 mapa da região com praias e ilhas
Fonte: MASCHEK,1870.
Assim, as memórias dos bares e
das músicas, as leituras de notícias e as
charges dos jornais criam um espaço
de educação patrimonial a partir da
partilha do sensível que permite indagar
e força mediadora que produz
estrategicamente esquecimentos ao
eleger o conteúdo do lembrado.
Retomar essa história é buscar uma
política cultural que permita a circulação
de narrativas, saberes, artes, fisionomia
de pessoas e lugares que foram
rasuradas ou preservada segundo os
interesses dos que detiveram maior
força num determinado período
histórico.
Tomar uma cerveja com bolinho
de aipim na rua dos Romeiros ouvindo
um samba é poder experimentar o que
corpos dos tempos de outrora viveram,
através dos rastros deixados pelo
bulício do povo em dor, ardor e prazer.
Porém, um exercício mais amplo desse
poder de acesso ao memorável é
função de uma educação feita através
da fruição de um lugar acrescido pelas
narrativas pertinentes a eles. O papel
da educação pelos patrimônios tem a
dupla função o que demarca a
importância de um lugar e a função dos
patrimônios a partir do qual se inventam
e adotam identidades. Dessa forma, se
faz necessário reconhecimento da
Penha, como lugar importante para a
consolidação do samba, que passou de
perseguido a valioso meio para produzir
uma identidade nacional, como afirma
Soihet: “Vargas, a partir de sua
ascensão, vale-se da música popular e
das agremiações carnavalescas como
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veículo para a integração dos populares
ao seu projeto de construção da
nacionalidade” (1998, p. 121).
O simples hábito de tomar um
caldo de cana com pastéis e olhar para
o alto para ter com a padroeira,
majestosamente instalada na pedra
ornada pelo brilho dos raios do sol, nos
faz abaixar o olhar, nos lembrando de
nosso lugar de simples mortais é uma
experiência estética, política e de
memória. Propomos, aproveitar o
desvio desse olhar para explorar o que
habita as zonas baixas do
esquecimento: a relação entre a praia o
porto de Maria Angu, a casa grande
sede da Fazenda da Penha e a Igreja;
as tensões entre o arraial e a cidade e
nela a política de apagamento que
deseja fazer esquecer a Penha como
um arraial negro desde sempre e a
paulatina expulsão e estigmatização de
sua gente, que na década de setenta
culmina com a expulsão dos moradores
de Maria Angu e aterramento da praia
para dar lugar a famosa praia de
Ramos. Tudo isso faz ruidosa a frase de
Blanchot: “A memória, esse cume do
abismo” (2010, p. 53).
Tirando o afamado capitão
português seiscentista, Baltazar de
Abreu, as outras personagens das
histórias que contaremos permanecem
obliteradas, perdidas na poeira do
tempo, embora sejam relevantes para a
percepção e para a compreensão dos
fatos e dos fenômenos culturais que,
em pleno século XXI, teimam em resistir
nesse espaço. Comecemos por uma
das mais antigas senhoras do lugar, a
“morena de Angola”, Antônia Maria dos
Santos, que, no final do século XVIII,
recebeu de seu pai, o mencionado
capitão-mor José dos Santos, entre os
vários bens, a grande fazenda situada
no “bairro de Nossa Senhora da Penha,
na Freguesia de Irajá” (Cavalcanti,
2015, p. 148).
Das embarcações que
atracavam na praia daquela moreninha,
trazendo mão de obra para a sua
Fazenda Grande, aos trens e aos
ônibus que levam, no presente, os seus
descendentes ao centro do Rio de
Janeiro, ainda uma grande
continuidade. Suas terras são hoje um
espaço marcado pela pobreza e pela
violência espetacularizadas,
televisionadas, mas no qual as grandes
demonstrações de e as festas
genuinamente populares continuam
insurrectas como patrimônios culturais
que insistem em sustentar a autoestima
dos indivíduos e das comunidades da
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Penha. Antes fazendas, senzalas e
quilombos, agora asfalto e complexos
de favelas. Os conhecidos bailes funk
da Vila Cruzeiro em muito são
devedores e herdeiros das festas
consagradas à nossa padroeira: “Hoje
no baile da Penha, o que vai rolar?” (MC
Livinho, 2019)
Denegação, renúncia e apagamento
- a relação entre fisionomia e
história
São 7 horas da manhã
Vejo Cristo da janela
O sol já apagou sua luz
E o povo lá embaixo espera
Cazuza e Gilberto Gil
Na geografia do subúrbio, quem
vemos da janela não é o Cristo, de
braços abertos, mas a sua mãe, a
sempre virgem Maria, com sua igreja
erguida no cume da grande montanha.
A ela nos habituamos a suplicar
compaixão, por não acreditarmos mais
em uma redenção possível. É
impossível não perceber que a
colonização soube muito bem marcar
no imaginário sua presença: é no alto
das pedras em que se localizam os
marcos das histórias de
escarnecimentos. Como ensina Rama
(2015), a ignorância antropológica fez
com que o processo aplicado no
espaço das Américas, tivesse como
princípio, tábula rasa, recorrendo a
execução das cidades como parto das
ideias, ação impossível em territórios
nos quais alguma percepção do
lugar como um passado histórico
acumulado. O que incluiu a vida
ambiental, matando florestas,
explorando rios, aterrando praias e
desfigurando a paisagem anterior para
imprimir outra.
Sendo assim, é importante
seguir a advertência benjaminiana
sobre os modos da memória
(recordação, rememoração,
comemoração etc.) não são
instrumentos de exploração do
passado, mas um meio (medium) em
que se viveu e deve ser interpelado
com a sensibilidade de quem usa uma
num solo no qual jazem cidades
soterradas. Para isso, um plano
sozinho não basta, é necessário tatear,
arar o solo, dedicar a atenção às
diferenças. São ações para além da
descrição e sem ceder à pressa da
análise, “tentando enfiar a sempre
em sítios diferentes, examinando
camadas cada vez mais fundas as
camadas anteriores” (Benjamin, 2021,
p.176).
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A primeira camada desse texto
será a Festa da Penha, que segundo
Neusa Fernandes, em Cantos e
Encantos do Rio, ocorrem, desde 1728.
Segundo os jornais do século XIX,
aproximadamente 40% da população
carioca subia à colina suburbana,
transportada ao final do Oitocentos,
por carroções, por cavalos e, sobretudo
pelas barcas que partiam e chegavam
no Porto.
Figura 2 Avisos marítimos
Fonte: Diário de Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1844, p. 03
E quem administrava o Porto de Maria Angu? Voltemos ao capitão-mor José
dos Santos. Não é tarefa difícil recuperar documentos comprobatórios de que ele e,
por sucessão, o seu genro, o escrivão da ouvidoria da comarca, Amaro José Viera,
foram, no início do Oitocentos, foram os responsáveis pelo porto. Para além da
circulação das produções agrícolas, as barcas também encaminhavam os romeiros
de todos os cantos da cidade até a Penha:
Figura 3 Avisos sobre os endereços em que Amaro José
Fonte: Diário do Rio de Janeiro, 7 de abril de 1829, p.24
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Contudo a homenagem à
padroeira entra para o imaginário
popular não somente pelos momentos
de oração, mas pelos encontros e pelos
desafios musicais. Ao logo de décadas,
em movimentos lentos, os ranchos
foram dando lugar aos blocos, aos
grupos de sambistas, aos sambas de
roda. Como afirma Tiburcio,
provavelmente um pseudônimo do
cronista do jornal O mequetrefe do dia
30 de outubro de 1882:
Em todos, os pontos da cidade, no
domingo, desde pela manhã havia
nas ruas um movimento
extraordinário, um bulício alegre,
popular, despretensioso. Era a
festa da Penha a popular festa,
que nós desprezamos, por um,
certo preconceito aristocrático,
mas que não deixa de ter a sua
poesia. (Tiburcio, 1882, p. 03).
A Festa da Penha, suburbana,
africana e negra, fazia o Brasil ouvir e
dançar variados ritmos. O bairro era
reduto do chorinho, do samba e do
maxixe. Como indica Antônio Buono
Júnior na reportagem “Aquilo é que foi
tempo bom”, no suplemento do jornal A
noite, de 1951:
Falamos em edição anterior, no
primeiro capítulo desta série,
sobre a origem do Carnaval
moderno, no que se refere às
músicas que lhe servem até hoje
de fundo. A festa da Penha foi o
ponto de irradiação do maxixe e
do samba naquela feição nova.
Poderíamos assim dividir a grande
festa popular em duas fases
distintas - antes e depois da
República. A não ser a proibição
do “entrudo”, as restrições aos
folguedos, durante a monarquia,
não tinham outro caráter a não ser
o de mera disciplina urbana.
(1951, p. 35).
Afinal, a espiritual não se
opunha aos prazeres da carne, como
diziam à época: “a festa é sagrada, mas
o regozijo é profano”. Premissa que, de
tão repetida, fez com que fosse
alterada até a oração: “Nossa Senhora
da Penha não se ofende com o
espetáculo d’esses excessos. Ave
Marina, cheia de tolerância! As almas
dos foliões estão prostadas diante de ti,
porque à sombra do teu manto
estrelado tenham agasalho e desculpa
todas as fraquezas humanas, inclusive
a fraqueza das pernas... depois das
libações repetidas”. (A notícia, ano VII,
n. 235, 6/7de outubro de 1900, p. 02).
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Figura 1 “Cenas da vida carioca”
Fonte: O país, 14 de setembro de 1901, p. 1
A operação que torna os ritos
humanos classificados entre sagrados
e profanos sempre se serviu como um
discursivo que aponta os pecados, os
crimes e os excessos em espaços e em
tempos que deveriam ser puros. Louvor
e devoção necessitam da transgressão
como oposição para se revelarem
ainda mais elevados diante da fraqueza
e “das sujidades” humanas. Para isso,
nada melhor do que uma festa em meio
ao bulício do povo.
Nessas ocasiões, os
comportamentos são observados e
levantados como material suficiente
para a normatização ou a moralização
da população. Priore (1986), em seu
estudo sobre as igrejas nos setecentos,
aponta a festa como instrumento de
observação e controle das
sociabilidades. Segundo a autora, o
diabo conta com a licença divina para
fazer da igreja a sua morada nos
interregnos festivos, sem ele
dificilmente o calendário cristão se
estabeleceria e a alternância entre
trabalho e folgança não seria possível.
É fácil perceber que a sociedade
carioca recorreu a esse imaginário para
estabelecer a imagem do Rio de
Janeiro como uma cidade cindida.
Argumento pensado para fazer da
desordem um atributo distintivo dos
negros, entregues aos seus luxuriosos
ritmos, dos atrasados portugueses,
com seus “cornos cheios de vinho”, e
das mulheres de “má-conduta”, cujos
corpos eram o regozijo final dos últimos
momentos da festa. Assim a rotulagem
social poderia prosseguir condenando
os capoeiras e o chorar dos
cavaquinhos, classificando como
infernal os cantares e os dançares
populares. Relação que esconde a
dinâmica pedagógica cristã que dividia
a festa entre a santidade da Virgem,
firmada na pedra, e a fraqueza da
carne, democraticamente humana.
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As manchetes continuamente
estampavam também que a festa da
Penha não era apenas uma orgia de
gula, de lascívia e de música. No bairro,
também se assistia, com frenesi, o
espetáculo da violência. O teatro da
crueldade se completava com a carne
chagada por luzentes navalhas e facas,
no qual brandiam cacetetes, e com o
sarilho de armas de fogo que
completavam a sensação de perigo do
pitoresco arraial. A festa gerava
preocupação, prazer e lucros. À volta
da festa da Penha, se ocupavam as
notícias de jornais e as charges sobre
as condições de retorno dos romeiros
eram correntes.
Figura 2 “Consequências...”
Fonte: Revista da semana, 07 de outubro de
1900, p. 167
No final do século XIX, os
brancos e abastados fizeram da Festa
da Glória uma opção mais refinada de
“diversão religiosa”, como comenta
Machado de Assis em uma famosa
crônica publicada em 1876:
Esta festa da Glória é a Penha
elegante, do vestido escorrido, da
comenda e do claque; a Penha é
a Glória da rosca no chapéu,
garrafão ao lado, ramo verde na
carruagem e turca no cérebro.
Ao cabo de tudo, é a mesma
alegria e a mesmíssima diversão,
e o que eu lastimo é que o fogo de
artifício da Glória e o garrafão da
Penha levem mais fiéis que o
objeto essencial da festividade. Se
é certo que tout chemin mène à
Rome, não é certo que tout
chemin mène au ciel. (2018, p.
313).
A observação acutilante do
escritor evidencia que, apesar dos
abismos culturais e econômicos, eram
justamente as motivações profanas o
maior ponto de contato entre os
estrangeirados romeiros da Glória e os
castiços romeiros da Penha. Menos
conciliador do que Machado, Olavo
Bilac enxergava a Festa da Penha
como uma mácula insuperável no
tecido social carioca. Nem mesmo o
movimento da Belle époque, que
transformava as feições da cidade, foi
capaz de converter todos os cidadãos
do Rio em elegantes afrancesados
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CASTRO, Andreia A. M. de; ALVES, Luciana P.; CASTRO, Luis Henrique M.
de. A outra praia da Moreninha: diferentes geografias e histórias do
subúrbio carioca. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 27, p. 204-233, set. 2024.
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(Fluxo contínuo)
através da educação pelo olhar. Para o
desespero do Príncipe dos Poetas
Brasileiros” que viu o famoso “bota-
abaixo” de Rodrigues Alves e de
Pereira Passos como uma revolução
“moral e intelectual” enquanto afirmava
que a melhor educação era a que
entrava pelos olhos.
A metamorfose cultural,
paisagística e comportamental que
Bilac tanto almejava havia sido
concretizada plenamente na “cidade
literária”, aquela que ele, com tanto zelo
e talento, criara em seus textos. Na
realidade factual, a cidade do Rio de
Janeiro ainda abrigava celebrações
religiosas e festas populares,
momentos de ruptura e transgressão
com as prescrições estéticas,
profiláticas e sanitárias dos
governantes, de manutenção das
manifestações identitárias tradicionais
ligadas às culturas portuguesa e afro-
brasileira. O encontro das danças e dos
sons dos atabaques dos escravizados
e libertos com as cantorias, rezas e
procissões dos portugueses e seus
descentes, realizado na maior festa
religiosa suburbana, não era tolerado
por Bilac:
E devo confessar que nunca a
Festa da Penha me pareceu tão
bárbara como este ano. É que
esses carros e carroções,
enfeitados com colchas de chita,
puxados por muares ajaezados de
festões, e cheios de gente ébria e
vociferante, passeando pela
cidade a sua escandalosa bruega;
esses bandos de romeiros
cambaleantes, com o chapéu
esmagado ao peso das roscas, e
o peito cheio de medalhas de
papel, e beijando a efígie da
Senhora da Penha com os beijos
besuntados de zurrapa; esse
alarido, esse tropel de povo
desregrado; todo esse espetáculo
de desvairada e bruta desordem
ainda se podia compreender no
velho Rio de Janeiro de ruas
tortas, de betesgas escuras, de
becos sórdidos. Mas no Rio de
Janeiro de hoje, o espetáculo
choca e revolta como um
disparate… Num dos últimos
domingos, vi passar pela Avenida
Central um carroção atulhado de
romeiros da Penha: e naquele
amplo boulevard esplêndido,
sobre o asfalto polido, entre as
fachadas ricas dos prédios altos,
entre as carruagens e os
automóveis que desfilavam, o
encontro do velho veículo, em que
os devotos bêbedos urravam, me
deu uma impressão de um
monstruoso anacronismo: era a
ressurreição da barbaria era a
idade selvagem que voltava, como
uma alma do outro mundo, vindo
perturbar e envergonhar a vida da
idade civilizada... (Kosmos, 1906,
p. 03-04)
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CASTRO, Andreia A. M. de; ALVES, Luciana P.; CASTRO, Luis Henrique M.
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(Fluxo contínuo)
Figura 6: Um carroção enfeitado conduzindo
romeiros
Fonte: Revista da Semana, ano VII, n. 336,
Rio de Janeiro, 21 de outubro de 1906, p.
4003
Em 1906, o polêmico mandato
de Pereira Passos terminou, e o
cenário físico, social e cultural do Rio de
Janeiro, embora tivesse sido alterado,
permanecia híbrido e múltiplo,
profundamente marcado pelo encontro
e a aproximação de pessoas de
diferentes origens e classes sociais,
ainda bem distante da cidade-vitrine do
Brasil moderno. Apesar das
vociferações de Bilac, até mesmo o
presidente Rodrigues Alves continuou a
frequentar o folguedo da Penha, como
registra a charge do jornal O malho, do
ano de 1906:
Figura 7 Como eles foram à Penha...
Fonte: O malho, 27 de outubro de 1906, p. 30
A tradição é feita de muitas
camadas, entre elas está a má-fama.
Apesar de todo o esforço pela mudança
das sensibilidades, as disputas dos
marcos sagrados de um calendário
religioso e das datas comemorativas de
um calendário republicana resultaram
em uma festa híbrida de diferentes
ordens ou natureza. A festa da Penha
desempenhou um papel cultural
decisivo para a música popular
brasileira. O bairro chegou a ser
batizado como arraial do samba,
nomes como Pixinguinha, Donga,
Sinhô, João da Bahiana, Alfredinho
Flautim, Heitor dos Prazeres, Cartola,
Ary Barroso, Lamartine Babo, Getúlio
Marinho lançaram seus sambas em
outubro na festa. Os que caíram no
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(Fluxo contínuo)
gosto do povo, viraram febre no
Carnaval. De tal modo que o sucesso
Feitio de Oração, de Noel Rosa, foi
composto na Penha, e, como afirmou o
velho mestre Tio Maçu, “os pontos de
encontro para a disputa do Partido Alto
e a firmeza na perna eram a Festa da
Penha e a Praça Onze, onde se pesava
e se media o valor de um sambista”.
(Correio da Manhã, 26 de novembro de
1967). Como aponta a poesia de Noel,
o feitio era sempre de oração, mas a
festa era feita mesmo de samba.
O arraial não serviu apenas de
palco, diferentes compositores fizeram
sambas alusivos à Penha, como
enumerou o jornalista Ilmar de
Carvalho:
O samba de Canuto e Braguinha
Vou à Penha Rasgado: Vou à
Penha rasgado/ pra pagar uma
promessa/ eu não sou um
malandro/ pois eu tenho
trabalhado/ com chinelo charlote/
terno de cimento armado/ pois é o
que a moda tem dado”. Noel e
Antenor Gargalhada assim se
vinculam à Penha: “Tenho
vontade/ de ir à Penha/ mas me
falta o principal/ a mulher que eu
adorava tanto/. ela deu o fora/ eu
agora fiquei mal”. Feitio de oração,
o clássico do Poeta da Vila e de
Vadico, assim exprime nos
versos: “Por isso agora/ na
Penha eu vou mandar/ minha
morena pra cantar/ com
satisfação/ e com harmonia/ esta
triste melodia/ que é meu samba
em feitio de oração”. Agenor de
Oliveira, também chamado o
Divino Cartola, assim seu
recado imortalizando a Penha em
Santa Padroeira: “Só não subirei a
escadaria ajoelhado/ para não
rasgar o terno que foi
emprestado”. (Carvalho, p. 15,
Correio da Manhã, 1969)
A rede de relações composta
pela tradição musical e gastronômica
que revelavam a presença africana e o
deboche como forma de enfrentamento
o racismo. Entre a barraca das tias, era
famosa barraca e bloco “O macaco
sabe que sabe” de Tia Ciata, que em
determinado momento da festa da
rompia o cercado da barraca e
desfilava pelo arraial. Mesmo a
nascente indústria cultural foi devedora
da Festa da Penha, segundo, Vianna:
Ao longo dos anos 1920, a festa
da Penha continuou servindo
como plataforma de lançamentos
musicais. Eduardo Souto, um dos
compositores mais populares da
época, chegou a criar um bloco
para divulgar na Penha, seu “Tatu
subiu no pau”, sucesso de 1923.
Na primeira fase de sua carreira,
Francisco Alves, que seria um dos
maiores nomes do rádio, era
presença certa na festa para
testar a força das músicas que
interpretava. Vicente Celestino,
nome fundamental das gravações
mecânicas e pré-
eletromagnéticas, fazia o mesmo.
(2024, p.35)
O folguedo, a fé, as linguagens,
as aflições pessoais e coletivas davam
conta da produção aurática da arte e da
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(Fluxo contínuo)
comunicação, mas perderam espaço
para a massificação cultural
possibilitada pela reprodutibilidade
técnica, que foi alterando os modos de
fazer e de sentir as artes. Porém, ao
seguir os rastros, ainda podemos ser
abarroados pela aura de um
determinado tempo, como afirma
Benjamin, assim podemos bradar: Viva
a Penha!
Figura 8 A pândega da Festa da Penha
Fonte: O malho, 07 de outubros de 1911, p. 09
Selos de época e de destino:
os filhos de Maria Angu
Juro que eu ia até casar na Penha com ela
A vida é bela é...
Chico Buarque
Última camada, a Praia da
Moreninha, não a eternizada pela
literatura, mas a soterrada pela história.
Nossa narrativa remete ao trânsito
entre as cidades de Benguela e do Rio
de Janeiro no final do século XVIII.
Voltemos à Antônia Maria dos Santos,
filha reconhecida do capitão-mor José
dos Santos, a moreninha que recebeu
do pai, como dote, a Fazenda de Nossa
Senhora da Penha, da Freguesia do
Irajá.
Figura 9 Decreto que tornou José dos
Santos capitão-mor do presídio da Caconda,
Angola
Fonte:
https://digitarq.arquivos.pt/d
etails?id=8296667
Antônia Maria teve como mãe a
ex-escravizada Isabel dos Santos
Pereira, designada, no registro de
casamento da filha, como “cabra forra”.
A cerimônia foi realizada na Igreja da
Candelária no dia 11 de fevereiro de
219
CASTRO, Andreia A. M. de; ALVES, Luciana P.; CASTRO, Luis Henrique M.
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(Fluxo contínuo)
1793
7
. Contudo o casamento da
moreninha com José Pereira Dias não
teria durado muito. Os registros do
Monsenhor Pizarro, eclesiástico cuja
função, no final do século XVIII, era
visitar as paróquias existentes nas
capitanias e verificar as suas
condições, observam que, após ser,
por quase um ano, administrada pelo
senhor José Pereira Dias, no ano 1794
a capela de Sra. da Ajuda, localizada
na chamada Fazenda Grande, voltava
da reponsabilidade da capitão-mor
José dos Santos.
Contudo Antônia Maria e a
fazenda não ficaram por muito tempo
sem um novo senhor. Em 18 de março
de 1811, na singela e afastada Capela
de São Domingos, a moreninha se
casou, em presença de autoridades da
época, com Amaro José Vieira
8
, filho
natural do capitão Diogo José Vieira
Falcão, de Campos do Goytacazes,
que a senhorear a bicentenária
propriedade.
Através dos termos do processo
movido, em 1813, por Justiano Manuel
da Paixão, um arrendatário que
7
Livro da Paróquia Nossa Senhora da
Candelária.
https://www.familysearch.org/ark:/61903/1:1:6
X8G-T1JD
pretendia tomar posse dos mangues e
das ilhas da testada da Fazenda de
Nossa Senhora da Ajuda, é possível
reconstituir um pouco da paisagem da
época. Amaro José, para legitimar seus
direitos, enumera suas posses como
meios para o cumprimento de seus
deveres:
A vista do que fica dito, sendo eu
um vassalo útil ao Estado
estabelecido com fábricas de olaria,
das quais tenho suprido com tijolos
as obras Reais, como a Real Quinta
da Boa Vista, Hospital Real e
[Fazenda de] Santa Cruz; com
Fábrica de Caeira e Engenho
aguardentes de que pago devidos
impostos [...]. Neste Porto, embarco
tijolos e pipas de aguardente, tanto
minhas como pertencentes ao
dízimo, sem que disso me paguem
os contratadores cousa alguma [...].
Tenho um Porto público na
paragem denominada Maria Angu.
E aí que é o princípio da testada da
minha fazenda, uma casa de
negócio perto do mar, da qual pago
novos impostos.
Interessante notar que, para
defender a posse de suas terras,
Amaro José não se apresenta como um
cortesão ou como um bom cristão, mas
como um sujeito útil ao Estado, que
produzia e que pagava seus impostos,
ou seja, como um cidadão. Esse
8
Livro de registro matrimônios da Paróquia de
Nossa Senhora da Apresentação. Fonte
Family Search:
https://www.familysearch.org/ark:/61903/1:1:6
X8G-GBV4
220
CASTRO, Andreia A. M. de; ALVES, Luciana P.; CASTRO, Luis Henrique M.
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(Fluxo contínuo)
comportamento pode ser entendido
como um indício de um período de
transição entre a sociedade de corte e
o e ethos burguês, descrito por Norbert
Elias (2011, p. 08). Cabe, porém,
ressaltar que os atributos e as posses
que garantiam a posição apregoada por
Amaro José são tributos oferecidos
pelo capitão-mor José dos Santos a
quem viesse a se casar, em segundas
núpcias, com Antônia Maria, mestiça e
filha natural. Nos periódicos do início do
Século XIX, evidências de que ela
era, na prática, a senhora de Maria
Angu. Os afazeres da fazenda, como o
aluguel de mão obra e a atividade da
“fábrica de pescas”, são exemplos
disso:
Figura 10 Anúncio sobre o sumiço de uma
rede de pesca da Fazenda Grande
Fonte: Correio mercantil, 02 de setembro
1830, p. 04
Essa situação também chama a
atenção para as relações familiares.
Antônia Maria não teve o mesmo
destino de sua mãe. Como senhora de
múltiplos meios de produção vigorosos
o bastante para garantir inclusive parte
da subsistência da Família Real e de
suas obras públicas, ela podia
barganhar no cotidiano do Primeiro
Império. Amaro José e Antônia Maria
tiveram pelo menos uma filha, Rosa
Maria da Assunção, nascida no dia 16
de junho de 1816, menos de um ano
após o final da contenda judicial pelas
ilhas e restingas de Maria Angu.
Antônia Maria, que sabia de cor
a receita do capitão-mor para garantir
um casamento para as filhas, oferece,
em 1835, as terras da Fazenda Grande
como dote de Rosa Maria e, o porto
passa a ser administrado, então, por
seu cônjuge João Marques de
Figueiredo. Os tempos eram outros, e o
português, do qual temos poucas
informações, parecia não ter os
mesmos valores e serventias do sogro
brasileiro e os negócios da fazenda e
do porto não prosperaram como antes.
Esse fato, talvez, se deva aos múltiplos
processos que o novo dono de Maria
Angu respondeu desde que chegou ao
Brasil. Os periódicos que se circulavam
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CASTRO, Andreia A. M. de; ALVES, Luciana P.; CASTRO, Luis Henrique M.
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(Fluxo contínuo)
na corte encerram vários exemplos
dessa perseguição judicial. Talvez os
mais sérios sejam: 1) o envolvimento
de João, no ano de 1833, em uma
revolta de comerciantes de gêneros
alimentícios que fecharam as suas
portas devido à ação de falsários na
corte; 2) e o pronunciamento por
resistência à prisão e, por
consequência, agressão a um guarda
da patrulha que tentava dispersar um
ajuntamento de donos de armazéns em
seu estabelecimento. A liderança
desses ajuntamentos de negociantes
portugueses das Freguesias da
Candelária e de Santa Rita,
insubordinados contra o poder
estabelecido, geraram represálias e
retaliações por parte do Império.
Quando a ameaça de
deportação e o fracasso dos negócios
acossavam João, Amaro José foi um
dos primeiros a se afastar do genro,
que tentava obter, inutilmente, a
naturalização brasileira.
Figura 11 Anúncio sobre a liquidação de
dívidas
Fonte: Jornal do Comércio, 9 de janeiro de
1834, p. 04
Figura 12 - Anúncio sobre o cancelamento da
procuração
Fonte: Diário do Rio de Janeiro, 13 de maio de
1837, p. 03
Pelo rogo de seu advogado, Luís
Gonsalves de França, é possível inferir
que, mesmo sendo absolvido de todas
as acusações e recebendo dos cofres
públicos algumas indenizações, o
insubordinado João parece ter ficado
sem meios para arcar com suas
dívidas, após desembolsar 11200 réis,
mais de 1 milhão de reais em dinheiro
corrente, ao imperador Pedro II, para
“gozar de todos os direitos, honras e
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CASTRO, Andreia A. M. de; ALVES, Luciana P.; CASTRO, Luis Henrique M.
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(Fluxo contínuo)
prerrogativas que, pela Constituição,
competiam aos cidadãos brasileiros”.
Figura 13 Anúncio de pedido de
naturalização
Fonte: Diário do Rio de Janeiro, 03 de maio de
1839, p.03
Figura 3 Anúncio para pagamento de dívida
Fonte: Diário do Rio de Janeiro, 19 de janeiro
de 1842, p.04
Em 1854, vítima de uma
congestão cerebral, João morre,
deixando a mulher em difícil situação.
Rosa Maria precisou retomar as terras
da fazenda, que o marido havia
empenhado, para que ela pudesse
garantir o casamento das três filhas.
Novamente, a Fazenda Grande da
Penha e o Porto de Maria Angu
aparecem como um capital para a
garantia da manutenção do status e da
sobrevivência da família.
Sendo ambos juridicamente
afirmados enquanto dote, os credores
puderam, de fato, reaver seus
fundos no leilão dos bens mais íntimos
de Rosa Maria da Assumpção: a
grande imagem de Nossa Senhora da
Conceição, as suas louças, a sua
mobília, alguns tijolos, um punhado de
cal e o engenho de mandioca e de
cana.
Maria Angu passa, então, a
pertencer a Francisco Xavier de
Vilhena, uns dos derradeiros
administradores do porto, que
consegue mantê-lo até mais uma
geração, quando os Vasconcelos,
últimos senhores da Penha, viram suas
terras entrecortadas pelas estradas de
ferro e o porto deixar de ter relevância
como meio de transporte e de
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(Fluxo contínuo)
comunicação. A modernidade
atravessa a todos, não em sua
subsistência, também atinge a casa da
família no Largo da Prainha que foi
desapropriada por Pereira Passos.
Figura 15- Anúncio sobre o embargo da venda
da fazenda
Fonte: Jornal do comércio, 04 de maio de
1860, p. 04
Figura 16 - Anúncio do leilão dos bens de
Rosa Maria
Fonte: Jornal do comércio, 15 de agosto de
1864, p. 02
Figura 17 - Anúncio que comprova a
propriedade do Porto de Maria Angú
Fonte: Almanaque administrativo, mercantil e
industrial do Rio de Janeiro, 1855, p. 301
No final do Oitocentos, no
prenúncio da Belle Époque carioca, os
três irmãos Vasconcelos desembarcam
na Cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro. Manuel Joaquim de
Vasconcelos morre em poucos anos,
José Joaquim de Vasconcelos herda a
sua parte da Fazenda de Nossa
Senhora da Ajuda e o Porto de Maria
Angu e, por fim, António Joaquim de
Vasconcelos pega carona em uma
nova rota ao se casar Carlota Joaquina
Amado, aparentada com Luís Manuel
de Machado, político influente na
freguesia de Irajá.
António Joaquim, envolvido com
os republicanos, pleiteia equipamentos
públicos que eram alicerces de um
novo sistema social, administrativo e
político. Seu nome consta no abaixo-
assinado que solicita a chegada dos
bondes e o posto dos Correios. O
bonde e as rotas por terra deixam Maria
Angu anacrônica, cujos transportes e o
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(Fluxo contínuo)
serviço de correspondência por terra
esvaziaram de importância e de
atividade econômica o porto, que
passou a ser uma colônia de
pescadores.
O progresso e a traição no seio
dos Vasconcelos inutilizam a fazenda
para a produção agrícola e fazem dos
transportes marítimos uma coisa do
passado. Situação que atendia ao
mencionado projeto de nação
defendido por Rodrigues Alves e
Pereira Passos e artisticamente
idealizado por Bilac. Inclusive, Pereira
Passos desapropria, simultaneamente,
o porto, de um lado da baía, e as casas
comerciais e os casarões residenciais
da família, do outro, no Centro do Rio
de Janeiro.
Figura 48 Anúncio sobre a reunião
solicitação da linha de bonde
Fonte: Gazeta da tarde, 23 de novembro de
1881, p. 02
Figura 19 - Anúncio do abaixo-assinado
solicitando a linha de bonde
Fonte: Jornal do Comércio, 21 de junho de
1881, p. 03
Figura 20 Anúncio sobre o clube rural na Penha
Fonte: Gazeta da tarde, 3 de julho de 1890, p. 01
225
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(Fluxo contínuo)
Figura 21 Anúncio sobre os serviços dos
Correios
Fonte: Jornal da tarde, 30 de junho de 1871, p.
02
Figura 22 Primeiro carimbo do posto dos
Correios da Penha
Fonte:
https://agenciaspostais.com.br/?page_id=8499
Figura 23 Bonde de tração animal:
Madureira Irajá
Fonte: Acervo fotográfico da Light
Modernidade e aterramento: os
últimos filhos de Maria Angu
No decorrer do século XX, não
tardou para que Maria Angu, de porto e
de colônia de pescadores, passasse a
ser vista como favela. No ano de 1962,
não faltaram aos jornais notícias sobre
as possíveis construções irregulares e
as fraudes de seus moradores para ter
acesso aos financiamentos de amparo
aos entrepostos de pesca. Além da
vigilância e conflitos com a Marinha do
Brasil.
Figura 24 Deficiência e desonestidade é que
tornam o peixe caro
Fonte: Jornal do Brasil, 1º caderno, 15 de abril
de 1962, p. 12
O empobrecimento de sua
população fez com que muitos dos
entrepostos de pesca ao longo da Baía
de Guanabara fossem enquadrados
como favelas, apesar de não serem
exatamente morros. A rotulagem sobre
a população pesou mais do que as
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(Fluxo contínuo)
condições geográficas ou percurso
histórico, as gentes de Maria Angu
passaram a ocupar no imaginário o
status de favelados e tudo a ele
atribuído, o que incluía o risco de
remoção.
Valladares (2005) atribui a
gênese das favelas cariocas muito mais
a representação social sobre a
população urbana pobre do que
qualquer outro vínculo. Segundo a
autora, desde a obra Canudos de
Euclides da Cunha, que o estigma da
uma população caracterizada como
aglomerada, perigosa e insurreta é
utilizada como forma de manejo social.
Além de consideradas violentas as
populações urbanas empobrecidas,
também são adjetivadas como sujas,
promíscuas e um risco à higiene da
cidade, o saber médico contribui
novamente para a formação desse
estigma. Entre os termos empregados
para tratar das favelas como um
problema, Valladares (2005) identificou
o termo “lepra estética” como as
moradias de madeira e zinco eram
chamadas.
Tratados como pestilentos, uma
nova onda de “bota-abaixo” e remoções
atinge aqueles que chegaram ao
subúrbio após Pereira Passos. Vamos
para o emblemático ano de 1964,
destacaremos as ações do governo
Carlos Lacerda que, para marcar a sua
trajetória enquanto mais um político
reformador, aterrou a “Praia das
Morenas” e o Porto de Maria Angu.
Essa ação fez parte do plano do
governador para modernizar a cidade,
que tinha perdido o status de capital,
fazendo o Rio passar por uma segunda
“Belle Époque”.
Mais uma vez, o povo capturado
de África, que havia sido tocado do
centro da cidade, se viu
compulsoriamente removido de “seu
lugar”. O cartão de visitas desse
território, na década de 60 do século
XX, passou a ser a Praia de Ramos. Da
configuração antiga, quase tudo
deveria desaparecer no novo mapa,
que conservaria apenas o ícone da
religião oficial: a Igreja de Nossa
Senhora da Penha. Junto ao selo
comemorativo do IV Centenário da
Cidade do Rio de Janeiro, foram
selados os destinos de muitos deste
chão, os vivos transferidos para a Vila
Kenedy, processo intitulado pelo jornal
Última Hora como: “Os favelados
deportados para Bangu”. O próprio ato
de nomear a população como
favelados abre espaço para a
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em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 27, p. 204-233, set. 2024.
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(Fluxo contínuo)
transferência da população e
soterramento da praia para ampliar
espaço para a Variante Rio-Petrópolis,
atual Avenida Brasil.
Figura 25 Selo comemorativo do IV
Centenário da cidade do Rio de Janeiro
Fonte: https://filateliahalibunani.com/produto/c-
516-selo-4-centenario-cidade-rio-de-janeiro-
penha-igreja-1964-dupla/
Figura 26 - “Maria Angu” devorada
pelas chamas
Fonte: Última hora, 25 de junho de 1964, p. 01
A política de remoção ganha
força no regime instituído após o golpe
civil-militar de 1964, como apontam
Leeds e Leeds:
9
Correio da Manhã, 22 de janeiro de 1967, p
05.
A política de erradicação ganhou
amplo apoio e institucional com a
criação, em 1964, após o golpe
militar, do Banco Nacional de
Habitação (BNH), com Sandra
Cavalcanti, primeira secretária de
serviços sociais de Carlos Lacerda,
como sua primeira presidente (Lei
4.380 de 21 de agosto de 1964).
(....) O BNH, assim, resolveria “o
problema da favela” e contribuiria
para o renascimento da economia.
(2015, p. 270)
Com suas moradias queimadas,
suas belezas aterradas, sua população
removida para a Vila Kenedy, a “Praia
das Moreninhas” e o Porto de Maria
Angu “viravam saudades”, passando a
viver na memória de um dos seus mais
ilustres poetas e sambistas, Nelson
Cavaquinho. O sambista chegou a ser
anunciado pelo Correio da Manhã, na
década de 1960
9
, pelo jornalista Jo
Ramos Tinhorão, como uma promessa
da música brasileira que se perdeu do
sucesso por beber cachaça e comer
sopa de siri nas biroscas do Porto de
Maria Angu, lugar de onde voltava
domingo, perto da hora do almoço com
uma galinha para garantir o almoço e
para aplacar a raiva de sua senhora.
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(Fluxo contínuo)
Figura 27 - Mulher em Birosca em favela de
Ramos
Fonte: Leeds; Leeds, p. 381, 2015
A Praia de Ramos, inaugurada
por Carlos Lacerda e seu genro, um
candidato derrotado para as eleições
para governador, foi apresentada como
balneário suburbano, surgido das
cinzas da favela e servindo de lazer
para a população que as elites não
queriam mais ver na orla da Zona Zul.
Assim, o controle social estava
estampado nos jornais e era
disseminado pela boca do povo,
através do samba de Dicró, que não
economizou nos estereótipos:
“Domingo de sol/ Adivinha pra onde nós
vamos/ Aluguei um caminhão/ Vou
levar a família na praia de Ramos”
(2012).
Conclusão: diversas bocas sob a
voz do morro, a perseverança da
escuta como processo educativo
Eu sou o samba
Sou natural aqui do Rio de Janeiro
Sou eu quem leva a alegria para
milhões
De corações brasileiros
A voz do Morro, Zé Keti
Nosso sítio de escavação foi a
Igreja da Penha, a Fazenda de Nossa
Senhora da Ajuda, o Porto de Maria
Angu e a Praia da Moreninha. Nesse
artigo, tentamos destacar os
protagonismos das mulheres, de
nossas marias morenas, que, mesmo
sem tomar a palavra, garantiram e
sustentaram as trajetórias de nossa
família e de seus territórios. Cabe
ressaltar que a aparente subalternidade
dessas mulheres pertencia ao jogo de
luz e sombras, como afirma Spivak: “se
na disputa da produção colonial, o
subalterno não tem história e não pode
tomar a palavra, a subalterna enquanto
mulher está ainda mais enterrada nas
sombras” (2021, p.67).
Para contar a história delas, tão
embricada com as transformações da
cidade do Rio de Janeiro, foi imperativo
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(Fluxo contínuo)
rememorar os processos de
urbanização que culminaram na face
atual desse território, marcado por
disputas familiares e intervenções do
estado, que, paulatinamente,
concretizava interiorização compulsória
das populações da cidade. Buscamos
as histórias no seio de nossa família,
mirando o resultado que não só alterou
os destinos pessoais, mas marcou a
disposição territorial e a desruralização
do Brasil.
Para isso, recorremos a uma
operação metodológica de
entroncamento e buscamos dar nomes
e eleger os sujeitos dos
acontecimentos, como fazem os
cronistas, mas sem perder de vista as
consequências do rumo que a história
tomou. Não se trata apenas de
ascensão e queda de um grupo de
pessoas, mas também dos destinos a
que muitos foram impelidos e de
narrativas que são acionadas quando
interessa ao projeto pensado para a
cidade.
Recorremos também a um corpo
documental composto por charges,
notícias e anúncios de jornais para dar
materialidade à narrativa trazida no
presente texto. A presença dos mapas
e de selos da época e dos sambas
visam uma costura ética-estética paro o
argumento da partilha do sensível
como modo de educar através dos
rastros e das experiências estéticas do
lugar, uma vez que “os atos estéticos
como configurações da experiência,
que ensejam novos modos de sentir e
induzem novas formas da subjetividade
política” (Rancière, 2005, p.11).
Defendemos que a roda de samba
embaixo da Tamarineira do Cacique de
Ramos é um desses atos estéticos e
educativos, cuja fruição compartilham
saberes instaurados e produzidos a
muitas mãos que formam sujeitos,
criam narrativas acerca da experiência
de existir, entre tantas outras
possibilidades que o patrimônio samba
produz.
O presente texto também
procurou contribuir para a discussão
sobre a captura ou apropriação das
criações populares pela política de
unificação nacional, sem, no entanto,
produzir justiça social como foi o caso
da relação entre a festa da Penha, o
samba e as classes populares no
Brasil, principalmente a população
negra.
Rancière (2014), ao se debruçar
sobre a tensão entre as histórias das
massas e as histórias dos sujeitos,
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(Fluxo contínuo)
aponta para a necessidade de nomear,
descrever seus estados, suas afeições
e acontecimentos, saber suas
fisionomias. Assumir o timbre de voz
dos antigos cronistas tem a sua
serventia, segundo o autor:
Com os bons e velhos métodos
devidamente rejuvenescidos, era
possível chegar a um grau
suficiente de certeza sobre os atos
dos príncipes, de seus generais e
embaixadores, sobre os
pensamentos que os animaria,
sobre as consequenciais de sua
política, as razões de seu sucesso
e de seu fracasso. (2014, p.3)
Para nomear os sujeitos,
atribuindo-lhes o lugar dos atores,
também foi preciso definir o enredo e o
cenário. Como havíamos dito antes, em
nossa trama, se sobressaem famílias e
marés de fluxos humanos, são histórias
de pedra e leite que configuraram
lugares. Defendemos o argumento de
que foi sobre e através do corpo de
mulheres negras que a colonização se
instituiu, principalmente, fazendo, de
modo prático e simbólico, desses
corpos matéria-prima para a máquina
colonial.
Na dinâmica agressor-vítima é
importante ressaltar o caráter
monstruoso do primeiro para que não
haja brecha para a continuidade desse
processo, que faz, cotidianamente
imputa às suas vítimas a alcunha de
algoz. Sentenças de morte são
corriqueiramente imputadas às
populações que ainda habitam esses
espaços. Espetáculos da barbárie e da
violência televisionados e propagados
por sentenças como “marginal tem que
morrer” e “bandido bom é bandido
morto”. A “esperança não vem [mais]
do mar”, vem “das antenas de TV”, e a
“arte de viver da fé” não cessou, “só não
se sabe em quê” (Barone; Bi; Vianna,
1886).
Acreditamos que essas repostas
possam vir da Educação Patrimonial,
que ao mirar os bens de pedra e cal,
revela as palavras escritas e cantadas,
cujas imagens produzem imaginários e
nos ensinam a ser quem somos. Afinal,
uma paisagem não é um simples
cenário, ela resulta de relações de força
que performam os corpos em lugares
sonhados por diversas pessoas em
tantos outros tempos e espaços.
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ANÚNCIO para pagamento de vida.
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ANÚNCIO que comprova a propriedade
do Porto de Maria Angu. Almanaque
administrativo, mercantil e industrial do
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segunda série, n. VII, 1855, p. 301.
ANÚNCIO sobre a fuga de Maria
Helena, escrava de ganho de Maria
Antônia. Diário do Rio de Janeiro, ano
XXII, n. 299, 26 de outubro de 1827, p.
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novembro de 1881, p. 02.
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