NAIDIN, Julia; CODEÇO, Fernando. Suportes de memória. Pesquisa-ação
em museologia social: o contexto como regra metodológica.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 14, n. 27, p. 119-139, set. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Educação Patrimonial na América Latina: temas,
metodologías e enfoques pedagógicos")
Suportes de memória. Pesquisa-ação em museologia social: o contexto como
regra metodológica
Julia Naidin
1
Fernando Codeço
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i27.64194
Resumo: Apresentamos reflexões sobre uma atividade de museologia social concebida e realizada na
praia de Atafona, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro, pelo Grupo Erosão, com produção da
CasaDuna centro de arte, pesquisa e memória de Atafona. As reflexões se dão a partir de uma
pesquisa no campo do patrimônio, tentando pensá-lo para além de sua materialidade, nas relações
entre o território e as práticas culturais. Em uma perspectiva crítica às matrizes epistêmicas euro-
centradas aplicadas ao campo da cultura, analisamos uma experiência de museologia social que ensaia
e enseja novos modos de ação local e de pesquisa ambiental.
Palavras-chave: arte contextual; pesquisa-ação; museologia social.
Suportes de memória. Investigación-acción en museología social: el contexto como regla
metodológica
Resumen: Presentamos reflexiones sobre una actividad de museología social concebida y realizada
en la playa de Atafona, en la costa norte del estado de Río de Janeiro, por el Grupo Erosão, con
producción de CasaDuna centro de arte, investigación y memoria de Atafona. Las reflexiones se
basan en investigaciones en el campo del patrimonio, intentando pensarlo más allá de su materialidad,
en las relaciones entre el territorio y las prácticas culturales. Desde una perspectiva crítica a las matrices
epistémicas eurocéntricas aplicadas al campo de la cultura, analizamos una experiencia de museología
social que ensaya y da lugar a nuevos modos de acción local y de investigación ambiental.
Palabras clave: arte contextual; investigación-acción; museología social.
Memory supports. Action research in social museology: context as a methodological rule
Abstract: We present reflections on a social museology activity conceived and developed on Atafona
beach, on the north coast of the state of Rio de Janeiro, by Grupo Erosão, with production by CasaDuna
Atafona's art, research and memory center. The reflections are based on research in the field of
heritage, trying to think about it beyond its materiality, in the relationships between the territory and
cultural practices. From a critical perspective to Euro-centric epistemic matrices applied to the field of
culture, we analyze an experience of social museology that rehearses and gives rise to new modes of
local action and environmental research.
Keywords: contextual art; action research; social museology.
1
Julia Naidin, Pós-doutorado na Universidade Estadual do Norte Fluminense / UENF, Campos dos
Goytacazes, RJ, Brasil. E-mail: jnaidin@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-7729-0793
2
Fernando dos Santos Codeço, Pós-doutorado na Universidade do Estado do Reio de Janeiro /
UERJ, Brasil. E-mail: fernandocodeco@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0122-5557
Recebido em 16/08/2024 e aceito para publicação em 02/09/2024.
NAIDIN, Julia; CODEÇO, Fernando. Suportes de memória. Pesquisa-ação
em museologia social: o contexto como regra metodológica.
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Suportes de memória. Pesquisa-ação em museologia social: o contexto como
regra metodológica
Apresentação
Esta apresentação visa, em uma
breve reflexão, a partir do debate
contemporâneo em torno das noções
de “patrimônio” e da “crise ambiental”,
analisar a atividade do “Museu
Ambulante”, um trabalho de
museologia social realizado pelo
coletivo “Grupo Erosão” centrado em
práticas teatrais. O trabalho foi
produzido pela residência artística que
atua desde 2017 na cidade de São
João da Barra “CasaDuna centro de
arte, pesquisa e memória de Atafona”.
Partindo dos campos da arte
contemporânea e da filosofia,
fundamos, com diversas e variantes
alianças locais, um projeto dedicado a
uma pesquisa interdisciplinar, visando
criar ações socioculturais levando em
conta um contexto antropogeográfico
específico local.
No ano de 2020, fomos
surpreendidos pelo rus da COVID-19
em uma pandemia global que, com as
crescentes mortes e intensidades de
contágio, determinou nossos cotidianos
durante aproximadamente os dois anos
seguintes. Esse foi o contexto no qual
surgiu nosso trabalho que aqui será
apresentado. Tivemos que interromper
as atividades com nosso grupo de
teatro intermunicipal que se encontrava
semanalmente, aos finais de semana,
em imersões de pesquisa ambiental e
de linguagem cênica no
desenvolvimento de um espetáculo
teatral de rua, o Tempontal. Nós, o
Grupo Erosão, assim como grande
parte da humanidade, vimo-nos
atônitos, sem saber como dar
continuidade às atividades e como nos
manter enquanto grupo sem
perspectiva de possibilidade de
podermos voltar a produzir
aglomerações, voltar a ensaiar etc.
Nossa pesquisa se apresenta a
partir de um trabalho territorial na praia
de Atafona, na cidade de São João da
Barra, litoral norte do estado do Rio de
Janeiro. Lá, temos uma comunidade de
aproximadamente 7.000 moradores,
dos quase 30.000 do município, que é
um forte destino turístico durante o
período das férias de verão. Nesta
praia é onde temos o delta do rio
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Paraíba do Sul, um dos mais
importantes rios do país, que aqui
desemboca depois de abastecer seus
estados mais industriais Minas Gerais,
São Paulo e Rio de Janeiro, sendo
responsável pela maior parte da água
potável carioca e fluminense, função
que o levou, nos últimos cinquenta
anos, a ter mais de 70% de seu fluxo
desviado para o rio Guandú. Segundo
muitos estudos
3
, este foi um fator
decisivo da dramática situação de
erosão costeira que acomete a praia.
Sabemos que a erosão é um fenômeno
natural, comum em praias e planícies.
No entanto, a temporalidade, o ritmo do
avanço do mar têm sido alarmantes nas
últimas décadas. Estima-se que mais
de 15 quarteirões estejam debaixo
d´água, com centenas de construções
destruídas, uma ilha próxima a praia,
habitada por mais de 300 famílias, foi
quase toda submersa e, com o
enfraquecimento do rio que não chega
mais ao mar pelo delta, foi acoplada ao
continente. Todas essas mudanças têm
impactos intensos na comunidade, nos
3
https://www.researchgate.net/profile/Alexandre
-Carvalho-
31/publication/349409881_Panorama_da_Ero
ecossistemas, nas visualidades e nos
imaginários.
Apresentaremos um trabalho
realizado por uma residência artística e
projeto de pesquisa acadêmica:
CasaDuna - centro de arte, pesquisa e
memória de Atafona, vinculada a
pesquisas de s-doutorado da UENF,
da UFRJ e da York University, entre
2021 e 2024, na praia de Atafona, em
São João da Barra, realizada pelo
Grupo Erosão. O grupo funciona como
um eixo criativo do projeto da
CasaDuna, e vinha realizando
trabalhos de performance, videoarte e
teatro de rua. O grupo foi fundado em
2017, dedicado a investigar as
“teatralidades da erosão”, relacionando
temas socioambientais e cultura
popular com arte contemporânea,
dedicado a refletir sobre a reconstrução
de pensamentos sociais sobre os
impactos da sociedade no meio
ambiente. Na época deste trabalho, o
grupo era composto por Lucia Talabi,
Rachel Rosa, Paulo Victor Santana,
Jailza Mota, Raynan Aguilar, Julia
Naidin, Rafael Sánchez como
sao_Costeira_no_Brasil/links/63ecd8cd51d7af
054028931f/Panorama-da-Erosao-Costeira-
no-Brasil.pdf
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cenógrafo e Fernando Codeço como
diretor.
Caminhos nos percalços
Com a chegada da COVID, um
desafio foi colocado para o trabalho
artístico, que tipo de “reinvenção”, entre
as tantas que nos estavam sendo
exigidas, ao mesmo tempo pelo
capitalismo e pela sobrevivência, seria
possível a nós, enquanto grupo
independente e sem nenhum tipo de
financiamento? A CasaDuna, por outro
lado, conseguia seguir com a atividade
da pesquisa acadêmica que, com o
apoio de bolsas de pesquisa pode se
dedicar às atividades de trabalho que
podiam ser feitas no espaço físico em
Atafona, acessando e pesquisando
sobre o material de arquivo que vinha
sendo organizado nos últimos anos.
Nesse contexto de extrema
restrição, entendemos que seria
impossível mantermos o projeto que
tínhamos em curso com o grupo de
teatro. Decidimos voltar nossas
energias ao trabalho com arquivo,
pensando em diferentes formas de
suporte e de apresentação.
Desejávamos encontrar as pessoas
que habitavam as áreas retratadas nas
fotos, levadas pelo mar ao longo das
últimas décadas. Entendemos que a
maior parte dessas pessoas não
frequentavam museus, exposições em
espaços tradicionais, sejam eles da
prefeitura de São João da Barra ou
espaços particulares, como
realizamos anteriormente.
havíamos conseguido acessar, até
então, um público específico, dentro de
um recorte existencial, de um modo de
vida inserido nas cidades, isto é, em
uma educação formal com acesso a
instituições e instrumentos culturais.
Sentíamos falta de acessar outros
grupos sociais que também são
diretamente ligados a essa história
visível nas imagens.
Iniciamos reuniões remotas, nas
diversas limitações tecnológicas
impostas, nas quais estudávamos
sobre experiências de museus, teatro e
história em diálogo com o material de
arquivo bibliográfico, etnográfico,
acadêmico e fotográfico. O projeto foi
desenvolvido e contemplado pelo edital
da Lei Aldir Blanc em 2021.
Neste contexto foi idealizado o
Museu Ambulante, como um dispositivo
de museologia social na praia de
Atafona em uma proposta de
apresentação de nosso acervo para a
comunidade. Trabalhamos
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primordialmente com fotografias,
tematizando essa região específica. Na
curadoria, selecionamos imagens das
áreas que já não existem mais, de
celebrações religiosas e culturais, de
ruínas que se tornaram emblemáticas
pelas formas escultóricas que foram
criadas pela ação do mar no processo
erosivo.
1 2
3 4
Operamos o deslocamento do
suporte da bicicleta Devir-a-lata, criada
originalmente para o espetáculo de
teatro de rua TEMPONTAL do Grupo
Erosão, transformando-a em suporte
manipulável para expor o trabalho de
arquivo. Esse dispositivo se
transformou em uma plataforma
performática de museologia social,
criando jogos teatrais e exposições de
arte que são montadas pelas ruas, nas
praias e calçadas, ao ar livre. Essa
transposição do cenário foi feita pois
decidimos adaptar os 36 caixotes de
madeira com velcros, colocados
também nas imagens, permitindo-nos
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com a estrutura do antigo cenário, a
criação de módulos para suporte e
montagem da exibição das fotos nos
locais escolhidos. Tais locais foram
definidos em função da própria
ocupação da região, onde habita a
maior parte da comunidade da pesca,
que vivia nas antigas ilhas e nas áreas
que foram levadas pelo mar.
Entendemos que a vocação do
Museu Ambulante era ouvir as
narrativas de quem habitou os
territórios destruídos pela erosão,
compartilhando os modos de vida
indicados nas imagens, a saber, os
ribeirinhos, pescadores, marisqueiras,
comerciantes, antigos moradores das
ilhas quando eram habitadas, que
foram submersas pelo mar. Decidimos
que com nosso museu, iríamos aonde
essas pessoas estavam para ouvir,
mostrar, cantar e ser encantado,
coletivamente, criando jogos com
caixotes e imagens. Decidimos que as
imagens seriam impressas em um
material rígido, uma vez que iríamos
nos expor ao clima e outras intempéries
possíveis, pois estaríamos fora dos
lugares expositivos tradicionais,
protegidos das variações e
atravessamentos do cotidiano. No
entanto, intuíamos a potência de
causar uma intervenção no território e
de ocuparmos diferentes tipos de
lugares, criando alterações no espaço
comum. Como diz Hommi Baba (1998,
p. 20):
Esses "entre-lugares" fornecem o
terreno para a elaboração de
estratégias de subjetivação -
singular ou coletiva - que dão início
a novas signos de identidade e
postos inovadores de colaboração
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e contestação, no ato de definir a
própria ideia de sociedade.
A estrutura foi construída a partir
de diversas partes de bicicleta, com
cinco rodas e uma base na qual
dispomos os caixotes, as imagens e
outros objetos cênicos. Chegamos
como um grande mamulengo pelas
ruas, praças, praias, avenidas,
padarias, escolas. Montamos móbiles
com as caixas e aplicamos as imagens.
A partir daí, estamos nas ruas,
abrindo caminhos, tempos e espaços
para escuta, composição e
recomposição das peças. Repensar
forma, função e dinâmica de museu,
virou um tema em si dentro do
trabalho.
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Com essa ação, percebemos
que abríamos um campo para repensar
e recriar as narrativas sobre esse
fenômeno para além das exauridas
ficções do apocalipse do cotidiano,
cada dia mais banalizado. Mas
também, valorizar os modos locais de
significar o processo e não se apegar à
destruição, mas pensar, ao invés, como
a vida se produz, como as pessoas se
adaptam e produzem significado na
relação com a dinâmica erosiva e com
o avanço do mar.
A erosão é entendida como um
fenômeno complexo, envolvendo
agenciamentos humanos e não-
humanos, uma dobra da natureza
sobre a cultura. Neste sentido,
buscamos pensar a noção de “erosão”
como uma metáfora existencial, um
campo de experimentação estética e
um modo de crítica cultural em tempos
de colapso ambiental.
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A partir da percepção da
importância da escuta neste trabalho,
se coloca um grande desafio, -
especialmente para um grupo de teatro,
que era o nosso caso - construir a cena
para que nosso público traga a
narrativa e a partir disso, jogamos
coletivamente com as imagens e as
histórias. Um jogo que se constrói a
cada apresentação, no encontro de
cada pessoa com o material que se
comunique com suas memórias, com
seu cotidiano e imaginário da vida na
praia que já se foi e sobre o que fica.
Outra ideia importante foi a de
“arte contextual”, tal como teorizada por
Paul Ardenne, principalmente no livro
"Un art contextuel"- Cration artistique
en milieu urbain, en situation,
d'intervention, de participation (2017).
Segundo o crítico, o papel do agente
cultural pode ser o de estabelecer
pontes de conexão com outros artistas
e disciplinas, mas também o de criar
ações que conectem os próprios
indivíduos atuantes em um campo. Isto
, recriar as relações sociais. Contexto,
aqui, “designa o conjunto de
circunstâncias em situação de
interação (o “contexto”,
etimologicamente, é oriundo da base
latina contextus de contextere, tecer
com)” (Ardenne, 2017, p. 17). Ou seja,
não visamos trabalhar no terreno do
idealismo ou da representação
individual, e sim na tentativa de
infiltração no cotidiano, na ordem das
coisas, situando a arte em relação com
histórias particulares que se conectem
com a vida concreta em um contexto
geral.
Percebemos que o Museu
oferece uma experiência singular que
possui um caráter estético e uma
reflexão ecológica crítica. Ele produz ao
mesmo tempo uma vivência com a
paisagem subjetiva e virtual do
passado impressa nas fotografias,
direcionando-se à memória afetiva dos
indivíduos com seus territórios. Entra
também em contato com a paisagem
atual, aumentando a percepção dos
problemas ambientais, a troca de
experiências e as possíveis soluções
(provisórias) coletivas para eles. Os
procedimentos performáticos e
pedagógicos desenvolvidos para essa
ação foram constantemente
atravessados por estas percepções,
fazendo com que a dinâmica
incorporasse esses diferentes regimes
discursivos às próprias práticas.
Entendemos que a criação de práticas
comunitárias pode funcionar como
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parte processual de um movimento do
pensamento que influencia o modo
como significamos os processos
históricos e ambientais, bem como os
laços de significado e de comunidade.
O trabalho do Museu Ambulante
funciona como um dispositivo de
museologia social que contesta os
limites dos espaços institucionais de
“preservação de memória”, de
produção cultural, de pedagogia
museológica e de educação ambiental.
Com este projeto pretendemos uma
contribuição para o desenvolvimento
das práticas culturais na região Norte
Fluminense. Além disso, pudemos
oferecer uma experiência inovadora de
metodologia transdisciplinar integrando
elementos do teatro, da museologia e
da educação ambiental.
Como abordam Lipovetsky e
Serroy, o sistema capitalista tende a
destruir as capacidades intelectuais e
morais, afetivas e estéticas dos
indivíduos” e não respeitar as tradições
culturais e organizacionais,
enfraquecendo “as formas
harmoniosas da vida, o
desvanecimento do encanto e da graça
da vida em sociedade” (2015, p. 8).
Distanciamo-nos, assim, de uma
construção imaginária que determina
que o capital é o mobilizador da
existência humana, acreditamos na
força da dimensão criadora como
abertura de possibilidades no campo
educacional e das (re)existências
coletivas.
Patrimônio em debate
O debate sobre as noções de
patrimônio vive, nas últimas décadas,
um período de ampliação de suas
demarcações e reelaboração das
práticas que definem o que é e o que
não é patrimônio. Nos últimos anos,
nossas reflexões sobre um projeto
cultural que põe em debate a questão
ambiental em Atafona estiveram
intimamente ligadas ao grupo de
pesquisa Officina de Estudos do
Patrimônio Cultural - um grupo disposto
a investigar e questionar os
procedimentos que organizam as
divisões das manifestações culturais
para o patrimônio artístico e cultural.
Um laboratório de pesquisa sobre
patrimônio na Universidade em um
programa com uma proposta
interdisciplinar que entende e exerce o
seu papel na luta por novas
redistribuições das partilhas nas
ocupações e produções de narrativa no
espaço público, bem como a
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importância da pesquisa de
metodologia de arte contextual e
geosituada agindo sobre essas
partilhas e contribuindo no debate do
patrimônio e das políticas públicas no
campo da cultura. A proposta do grupo
de pesquisa vem sendo trabalhar a
noção de patrimônio como uma
categoria de pensamento, no sentido
em que ela possui uma história e
diferentes usos, desde o século XVIII
na Europa Ocidental e no Brasil, no
último século. Mas, também,
compreender que, independentemente
desta nomenclatura, falamos de um
modo de relação com objetos e com a
criação e manutenção de práticas e
rituais em relações complexas
comunitárias e ambientais,
estabelecendo elementos que
costuram uma cultura em uma história.
A proposta é refletir sobre esses
objetos e rituais que mobilizam
comunidades em torno de práticas que
contribuem com a formação e
transformação de uma identidade
cultural comunitária; sobre os modos de
relação entre as pessoas e os objetos e
práticas que elas sustentam.
Neste sentido, trabalhamos com
importantes textos sobre patrimônio na
modernidade brasileira e referências
internacionais que alimentam o debate
sobre a história do tema. Assim como
os diferentes processos de
musealização que os debates sobre o
patrimônio alimentam. O que
trabalhamos no curso foi o quanto que,
na atualidade, tem se mostrado cada
vez mais evidente o quanto a ideia e as
práticas que envolvem as titulações do
patrimônio constituem-se como campo
de disputa política tanto intrarregional
quanto nacional.
Um conjunto de diversos fatores
fizeram de Atafona uma oportunidade
exemplar para uma maior
conscientização ambiental, uma vez
que falamos de um dos casos mais
significativo de erosão costeira
nacional, deixando-nos diante da tarefa
de compreender os graves problemas
no atual modo de gestão hídrica do rio
Paraíba do Sul, e de modo mais amplo,
da crise ambiental planetária em curso
em seus desequilíbrios geopolíticos
marcados pela história colonial.
O caso que acontece na praia de
Atafona espanta, entre tantas outras
coisas, pelo silêncio em torno de uma
situação de tamanha dramaticidade. É
importante ampliar o debate sobre esse
assunto para que essa informação
circule, para que não nos esqueçamos
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e para que pensemos sobre as origens
e consequências de nossa história
colonial, em sua dimensão humana que
envolve essencialmente a dimensão
ambiental no modo como significamos
os processos de “desenvolvimento”
econômico.
Apresentar uma crítica à
ecologia contemporânea não deve
significar uma renúncia às
preocupações ecológicas que
emergem na atualidade, mas sim uma
outra forma de compreender este
campo, ampliando suas articulações,
tentando criar algum distanciamento de
sua própria matriz epistêmica
moderna/colonial, fundadora das
práticas científicas de segregação e
exploração - ambiental e humana
(fundamentada pelo racismo científico),
- que balizam as ciências da natureza e
seus modos de pesquisa e de
produção. Entendemos que a “crise
ecológica” tem como condição de
existência a constituição colonial do
mundo em práticas exploratórias e
destrutivas. Tais procedimentos
partem de uma fissura ontológica que
se estabelece entre os humanos e
outras espécies, com a Terra, com
outros humanos, em seu modo de
habitar, em diferenciações excludentes
de modos de fazer-mundo”
(Ferdinand, 2022).
Fato é que, a decisão de levar
um rio até sua destruição,
desmantelando junto toda uma rede
socioeconômica que vivia em torno
dele, é uma escolha política. O Paraíba
do Sul, que nasce em São Paulo, onde
tem um enorme desvio, até chegar
em Atafona, sua foz, perde de seu fluxo
a parte desviada para abastecer o
Guandú e suprir a capital do estado. Os
percentuais ficam a cargo das
demandas industriais, deixando, assim,
aquela comunidade que ainda vive
prioritariamente da pesca, à míngua e
com o ritmo da erosão cada vez mais
intenso. Isso é resultado de um
processo político violento que causa
ciclos migratórios insustentáveis e
traumáticos.
Segundo Michel Foucault, no
curso Em defesa da sociedade,
ministrado em 1976, vemos como do
ponto de vista do Estado e de suas
políticas, identificar um grupo equivale
a exercer sobre ele uma série de
funções enquanto agência orientadora
dos dispositivos de poder sobre as
vidas dos indivíduos. Neste caso
podemos ver como a famosa leitura
foucaultiana da inversão da máxima da
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lógica da soberania que se
caracterizada pelo “deixar viver e fazer
morrer”, se transforma na máxima do
“fazer viver e deixar morrer”, própria da
governamentalidade moderna, se torna
palpável.
O discurso biologizante das
raças e de um ideal de pureza denota
ao Estado a função de protetor “da
integridade”, “da superioridade” e da
“pureza da raça”. A soberania do
Estado apoia-se em uma espécie de
“defesa da raça” e passa a operar o que
Foucault chama de “racismo de
Estado”. Saúde pública, saneamento
básico, redes de transporte,
abastecimento, segurança pública etc.
são exemplos do modo o Estado se
organiza de modo a prover (ou
restringir) as condições de manutenção
da vida - e da morte.
Percebemos assim a
necessidade de ampliar o conceito de
biopoder pois ao matarmos rios,
fragilizamos sequências de
ecossistemas, incluindo o humano.
Neste ponto, mobilizamos o conceito de
Foucault de biopolítica, tendo como
novo horizonte a ideia de uma
ecopolítica decolonial, tentando refletir
sobre propostas e práticas políticas que
compreendam as dimensões dos
vínculos ambientais, que são também
fundamentais à própria existência
humana - mas não só. Podemos
entender a ecopolitica como um
desdobramento fértil e talvez
necessário para a noção
foucaultinana de biopolítica. Ecologia e
ecopolítica são noções que hoje, cada
vez mais, se impactam devido ao
crescente grau de interferência humana
no planeta, conforme vemos nos atuais
debates em torno das novas
terminologias conceituais como
Antropoceno, Capitaloceno,
Plantationceno, Chthuluceno (Barad,
2016), entre outros.
O conceito de biopolítica, tal
como trabalhado por Foucault,
enquanto um modo de fazer uma
política para gerir a vida, isto é, uma
política exercida pelo Estado que visa
assegurar a vida biológica do homem,
tomando para si os cálculos, as ações,
regulações e controles sobre as
populações e sobre os indivíduos. Ele
possui também, como desdobramento
de sua dinâmica, além do poder sobre
a vida, o poder sobre a produção da
morte e da destruição - a necropolítica
(Mbembe, 2018). Biopolítica,
ecopolítica e necropolítica confluem no
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em museologia social: o contexto como regra metodológica.
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delta do rio Paraíba do Sul em uma
realidade pauperizada e erosão brutal.
A pertinência do debate
ambiental atualmente consta na
agenda global, demandando uma
ampliação da preocupação com nossos
ecossistemas e compromissos não
humanitários, mas, igualmente,
ambientais. Neste sentido, é
fundamental distanciar-nos do erro de
refletir e agir sobre a crise ecológica de
modo distanciado da crise humanitária,
que assola o país desde as invasões.
Pelo contrário: entendemos que esta
situação resulta de um modelo
criminoso e irresponsável de
exploração de nosso patrimônio
natural, que o trata como “recurso”,
assim como o humano, para os
supostos avanços desenvolvimentistas
em nome da ordem e do progresso,
desconsiderando seus impactos. A
destruição de territórios, rios e
ecossistemas vem sendo tratada como
uma espécie de fatalidade social, como
se fosse inevitável a transformação de
rios em esgotos, terras férteis em
mundos estéreis.
Consideramos, portanto, que o
abandono e a destruição são
socialmente distribuídos, e são parte de
um projeto de mundo, de uma política
de exploração, extermínio e
silenciamento, orientada por princípios
de diferenciação racistas, classistas e
coloniais. Existem cartografias da
destruição e do abandono que
sustentam o progresso e o investimento
e que são a condição mesma da
manutenção do status quo
desenvolvimentista do ideário de
modernidade/colonialidade, imposto
em territórios chamados “perifricos”,
criando as chamadas “zonas de
sacrifício” em pontos específicos da
Terra.
Racismo ambiental é o termo
utilizado para se referir a essa realidade
e ao processo de discriminação que
atinge populações vulnerabilizadas ou
compostas de minorias étnicas com a
degradação ambiental. O termo foi
empregado pela primeira vez por
Benjamim Franklin Chavis, nos Estados
Unidos, químico e liderança do
movimento negro no país, que cunhou
o termo em 1981, a partir de
investigações apontarem que depósitos
de resíduos tóxicos se concentravam
em áreas habitadas pela população
negra norte-americana. Vale lembrar
que, partindo do Brasil e pensando
mundialmente, quando falamos em
racismo ambiental, entendemos o país
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como tendo um lugar e uma função de
recurso natural global, e, ao mesmo
tempo, produzindo também suas
segregações internas, nas “franjas” das
principais capitais.
Percebemos, no entanto, que
esta região, apesar da enorme
degradação sofrida pelo Paraíba do
Sul, ainda guarda resquícios de uma
experiência sensorial intensa e
aprazível, bem como a possibilidade de
um aprendizado com essa brutal
perturbação da ordem do projeto de
mundo humano civilizador, como
mestre soberano e absoluto da
natureza. Neste sentido, buscamos
pensar a noção de erosãocomo uma
metáfora existencial, um campo de
experimentação estética e um modo de
crítica cultural em tempos de colapso
ambiental.
No campo do patrimônio,
podemos pensar o conceito de
destruição enquanto potência positiva,
que também acarreta novas agências e
possibilidades de recriação e
adaptação às mudanças no território,
junto com ele. Talvez esse gesto possa
funcionar como estratégia para não
saímos do campo de disputa que é o do
patrimônio, uma vez que esta não pode
se resumir, no Brasil, a reproduzir as
estruturas herdadas da matriz
eurocentrada, herdeira de uma lógica
colonial, que buscava justamente
dizimar os modos de vida locais,
desqualificando-os. Pesquisar sobre o
tema do patrimônio em Atafona faz com
que identifiquemos que muitas vezes, o
elo ou o laço que mantem tensionada
alguma (ainda que frágil) noção de
comunidade pode passar pelas
dinâmicas e agenciamentos
comunitários, antes de os respectivos
materiais ou espaços definidos,
defendidos e protegidos como
“comuns”.
Pressupõe-se uma necessária
associação entre memória e seus
suportes materiais, os quais
deveriam ser preservados para que
aquela se conservasse. Alguns
autores têm recentemente
problematizado essa relação,
mostrando que não
necessariamente a preservação,
mas muitas vezes a destruição de
objetos e espaços materiais pode
ser o elemento gerador de
identidades e memórias
(Gonçalves, 2015, p. 223).
A tensão entre manutenção e
destruição no campo do patrimônio se
atualmente em um terreno aberto e
em efetiva disputa. Nos apropriarmos e,
de alguma forma, positivarmos
“desobediências epistêmicas”, os
termos de Mignolo, como estratégias
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de resistência (frequentemente usadas
nos saberes emancipatórios e estético-
corpóreos das comunidades afro
diaspóricas e ameríndias em resposta à
colonialidade do ser e do saber), nos
faz colocar em xeque a lógica binária,
sexista e racista que define o modo
como as comunidades estruturaram
seus modos de partilha e de atribuição
de valor e poder.
O contexto como regra
metodológica para um trabalho de
ação cultural
No que tange a decisão pela
pesquisa metodológica, para este
trabalho, o grupo optou por criar uma
performance coletiva de convite, de
fabulação, de chamado a tomar a
palavra. A ação consiste em: o grupo
definir um modo de manipulação do
dispositivo, realizar estudos prévios das
histórias das imagens, dos lugares, dos
arquivos em jogo e convidar as
pessoas ao exercício da memória e
apresentando o dispositivo, as imagens
e as escolhas da curadoria.
Pesquisa-ação, pesquisa-
intervenção, pesquisa-criação, são
algumas das terminologias que se
referem a uma proposta de intervenção
sobre as metodologias tradicionais de
pesquisa, especialmente quando
trabalhamos com ciências “humanas”,
e lidamos com questões referentes à
materialidade histórica da vida das
pessoas, de territórios e de rios. O que
essas metodologias têm em comum
será aqui resumido em dois eixos
principais; o primeiro é o fato do
pesquisador se inserir como co-agente
em jogo nas práticas, que serão mais
ou menos felizes conforme as
condições - externas - que a
possibilitam ou inviabilizam, o que nos
leva ao segundo eixo: o fato de
possuírem uma metodologia de
pesquisa flexível e que acolhe a escuta
territorial para alterar os próprios
procedimentos, ou seja, pesquisador e
pesquisa devem assumir suas posições
e permitirem-se alterações, muitas
vezes radicais, durante o curso.
Por isso, propor um trabalho
interdisciplinar e contextual no Brasil
exige, entre outras coisas, que,
enquanto pesquisadores, nos
coloquemos face às disciplinas como
Filosofia, Metodologia e Epistemologia,
de modo atento e desconfiado. Isto é,
que sejamos capazes de absorvê-las
na medida em que elas nos são úteis e
funcionais, de modo limitado e crítico,
ao invés de aplicá-las como teorias
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verdadeiras (universais) em um
determinado sistema fechado. Ao
invés, chegar a uma abordagem
transdisciplinar, na qual as próprias
disciplinas se infiltram, se alteram, se
contagiam. Neste sentido, o
procedimento que utilizamos em nossa
metodologia de pesquisa não é o da
práxis filosófica da pesquisa tradicional
ou da epistemologia previamente
mapeada como “válida”. Trabalhamos a
partir da micro-história e do
procedimento genealógico, tal como
apresentado na filosofia de Foucault,
que busca compreender os processos
históricos de formação de uma
determinada situação de estudo; as
relações políticas de poder que
constituem os problemas atuais
A genealogia é um método de
pesquisa que busca fazer uma história
do presente em um procedimento de
criar problematizações do que
entendemos como dado. No caso,
temos a produção artística como o
modo de colocar as questões que nos
mobilizam. A partir dos campos da arte
e da filosofia, criamos um dispositivo
em uma metodologia dedicada à
produção de memória em ações de arte
ambiental e intervenção contextual que
pluralize as narrativas sobre este
fenômeno local. A metodologia da
pesquisa-ação é a que melhor nos
contempla para a realização de nossas
atividades no território, de modo que
torna possível uma adaptação da
pesquisa aos impactos e percepções
trazidas pela comunidade sobre as
propostas apresentadas. Neste
sentido, pudemos identificar que a
criação do Museu Ambulante e a
percepção da potência dele enquanto
um instrumento para práticas de
museologia social foi possível a
partir das possibilidades de tal
adaptação metodológica.
ODS, educação patrimonial e a
CasaDuna.
No início dos anos 2000, a
Assembleia Geral da Organização das
Nações Unidas/ONU, aprovou o
documento “Declaração do Milênio
das Nações Unidas”, organizado em
torno de oito objetivos (ODM) e 21
metas, com evidente ênfase na
agenda social. O documento foi
produzido por um grupo de
especialistas e prescindiu de um
amplo debate. No etanto, a partir dele,
deu-se inicio a formulação da
chamada “Agenda 2030” e dos
Objetivos de Desenvolvimento
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Sustável (ODS).
Os ODS começam a ser
pensados em 2010, ganhando lego
na Conferência das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento Sustentável
[Rio + 20], onde se estabelece um
Grupo de Trabalho para sua
elaboração de forma colaborativa. Em
2014 o Grupo de Trabalho apresentou
suas recomendações e em 2015, na
Cúpula das Nações Unidades para o
Desenvolvimento Sustentável, em
Nova York, os 193 países membros
das Nações Unidas, passam a adotar
a Agenda 20302. Diferentemente dos
ODM, esta nova agenda contou com a
participação ativa dos países membros
da ONU, da sociedade civil e outros
grupos interessados, tornando-a mais
representativa para a realização de
seu conteúdo. A agenda 2030 se
apresenta com 17 ODS e 169 metas,
pautando as principais mudanças
ocorridas no planeta, a partir do ano
2000, assumindo a necessidade
atualizar desafios passados de modo
a poder enfrentar as novas
complexidades. O documento
reconhece que o maior desafio global
é a erradicação da pobreza.
Destacam-se ainda a desigualdade
de gênero e a superação da crise
ambiental que promove a mudança
global do clima como temas centrais.
A esses 17 ODS e suas 169
metas se vinculam 231 indicadores,
visando um acompanhamento no
avanço da sua implementação. Estes
indicadores devem servir de
orientação na implementação e
monitoramento das políticas públicas,
permitindo uma avalição do progresso
das políticas no ambito social,
econômico e ambiental que se
deseja observar. Com relação aos
ODS é necessário destacar a
importância dos indicadores em todo
os contextos e dimensões, com fins a
uma real percepção de sua evolução e
alcance.
Assim, coube aos paises
participantes a criação de novas
práticas capazes de promover
adaptações em seus mecanismos de
funcionamento internos de modo que
se alinhassem a tais agendas. Para
tais mudanças, foram desenvolvidas
uma série de medidas que pudessem
promover uma capilaridade das
propostas da Agenda, em diversas
cidades do Brasil e do Mundo (São
João da Barra foi uma delas). Neste
sentido, é notável e contestável a
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ausência do campo da cultura entre os
ODS, entendida como instrumento de
favorescimento dessa implementação.
Uma das medidas para tal
implementeção se deu na
Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF), que destinou um
edital de Pós-doutorado para
pesquisas relacionadas a Agenda
2030.
No ano de 2020, também em
decorrência das transformações nas
rotinas causadas pela pandemia, fui
convidada, devido à minhas atividades
no campo da cultura no município, a
participar de um grupo de articulação
local dedicado a implementação ODS,
oferecido pelo PNUD-Brasil no
município. Enquanto participava deste
grupo de estudos e desenvolvia um
trabalho local no campo da cultura
trabalhando com educação ambiental
em um contexto de crise climática,
identifiquei o quanto os projetos
artísticos e culturais tem um impacto
pedagógico nas mentalidades,
ajudando a formar percepções e
elaborações sobre um tema em um
âmbito comum. Identifiquei também
4
Programa de Pós-graduação em Políticas
Sociais - Laboratório de Estudos do Espaço
toda uma série de críticas focando
justamente na ausência da cultura nos
ODS. Em 2019, o Culture Indicators, é
publicado pela UNESCO, com a
intensão de “garantir que o poder
transformador da cultura favoreça o
desenvolvimento sustentável”
(UNESCO, 2019, p. 7)
No ano de 2021, à luz da referida
formação, dei início a uma pesquisa de
Pós-doutorado
4
visando observar a
ação da residência artística
funcionando como modo de promoção
e fortalecimento das ODS. Pude
identificar que existe toda uma
bibliografia sendo produzida, elaborada
por organizações internacionais, locais,
empresariais, autogeridas ou no âmbito
da UNESCO, que buscam encontrar
correspondência entre os ODS e as
práticas culturais, ao mesmo tempo que
fixar indicadores culturais para os ODS,
no propósito de entender as atividades
culturais contribuem para sua
implementação. Os desdobramentos
dessa pesquisa seguem reverberando
em novos questionamentos no campo
do patrimônio e das possibilidades
pedagógicas que são suscitadas a
Antrópico (LEEA), Officina de Estudos do
Patrimônio, UENF.
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partir dele, ampliando-o para além da
materialidade.
Posições inconclusivas e
proposições temporárias
No contexto local, que envolve a
produção da destruição, como pensar
contemporaneamente, e de modo
crítico, as noções de patrimônio? Como
podemos usar este conceito de modo
que ele fortaleça comunidades,
potencialize a luta por justiça ambiental
e valorize as experiências das
comunidades tradicionais em territórios
precarizados devido a intervenções do
poder público nos ecossistemas
locais?
Evidentemente, as respostas
para tais perguntas não são simples e
de fácil resolução. Pelo contrário, elas
se apresentam em cadeias de
problemas que vão muito além dos
desejos e possibilidades locais. Não
podemos conceber uma medida que
solucione de forma definitiva o amplo
estrago feito. Além disso, o próprio
modelo de desenvolvimento deve
entrar em cheque quando decidimos
pensar amplamente e de forma
equilibrada sobre os impactos nas
comunidades. Longe, portanto, de
propor encerrar qualquer questão,
podemos apontar uma direção de
posicionamento do olhar para elas, de
acordo com as palavras da filósofa
Judith Butler (2018, p. 59):
a responsabilidade deve
concentrar-se não apenas no
valor desta ou daquela vida, ou na
capacidade de sobrevivência de
modo abstrato, mas sim na
manutenção das condições
sociais de vida, especialmente
quando elas falham.
Com o trabalho do Museu
Ambulante percebemos a importância
de criar momentos coletivos e afetivos
nos quais a comunidade consegue
vivenciar as narrativas reverberando
pelas próprias vozes, remontando as
histórias, ressignificando palavras, e
desdobrando camadas de memória, de
modo que ela retorne para a vida,
potencializando essa vida. Afirma-se,
com isso, que a partir das experiências,
existe algo que fica, para além das
ruínas e das fábulas vividas e
narradas.
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