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PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O Hip-Hop na linha do tiro: Rap noventista e a denúncia estética da
necropolítica
Enio Passiani
1
Róbson Peres da Rocha
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65176
Resumo: O presente artigo argumenta que o rap dos anos 1990, enquanto forma estética
constantemente reelaborada, realizou a denúncia da necropolítica no Brasil, abrindo caminho para uma
formação intersubjetiva libertadora para a periferia. Sustentamos este argumento a partir de uma
revisão bibliográfica e dos conteúdos históricos, assim como pela análise de discurso de matriz
foucaultiana das letras produzidas no período, uma vez que, para Foucault, os discursos só podem ser
compreendidos no interior de formações discursivas que também são sociais. A conclusão é a de que,
para além da denúncia, o rap possibilita a produção de uma consciência crítica calcada na noção de
periferia, que anuncia uma relação mais diversa com raça, classe, gênero e território.
Palavras-chave: Hip-Hop; rap nacional; necropolítica; periferia; intersubjetividade.
Hip-Hop in the firing line: 1990s Rap and the aesthetic denunciation of necropolitics
Abstract: This article argues that 1990s rap, as a constantly re-elaborated aesthetic form, denounced
necropolitics in Brazil, paving the way for a liberating intersubjective formation for the periphery. The
article supports this argument through a bibliographic review and historical content, as well as a
Foucauldian discourse analysis of the lyrics produced during this period, since, for Foucault, discourses
can only be understood within discursive formations that are also social. The conclusion is that, beyond
denunciation, rap enables the production of a critical consciousness grounded in the notion of the
periphery, which announces a more diverse relationship with race, class, gender, and territory.
Keywords: Hip-Hop; rap; necropolitics; periphery; intersubjectivity.
1
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH), do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Mestrado Profissional
em Segurança Cidadã, todos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
eniopassiani@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9937-4413.
2
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGS-UFRGS). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-
UFRGS). Graduado em Comunicação Social - Habilitação em Publicidade e Propaganda pela
Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: robperesrocha@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3281-2997.
Recebido em 13/11/2024, aceito para publicação em 20/12/2024.
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PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
El Hip-Hop en la línea de fuego: El rap de los 1990 y la Denuncia Estética de la Necropolítica
Resumen: Este artículo argumenta que el rap de los años 1990, como una forma estética en constante
reelaboración, realizó una denuncia de la necropolítica en Brasil, abriendo camino a una formación
intersubjetiva liberadora para la periferia. Sostiene este argumento a partir de una revisión bibliográfica
y de los contenidos históricos, así como mediante un análisis de discurso de matriz foucaultiana de las
letras producidas en el período, dado que, para Foucault, los discursos solo pueden ser comprendidos
dentro de formaciones discursivas que también son sociales. La conclusión es que, más allá de la
denuncia, el rap posibilita la producción de una conciencia crítica fundamentada en la noción de
periferia, que anuncia una relación más diversa con la raza, clase, género y territorio.
Palabras clave: Hip-Hop; rap; necropolítica; periferia; intersubjetividad.
O Hip-Hop na linha do tiro: Rap noventista e a denúncia estética da
necropolítica
Introdução
O presente artigo tem por
objetivo demonstrar que o rap,
enquanto forma estética
constantemente reelaborada, abriu
caminho para uma formação
intersubjetiva libertadora para a
periferia nacional. Para tanto,
argumentamos que o rap noventista
realizou a denúncia da necropolítica no
Brasil. Antes mesmo do conceito
propriamente existir nos termos dados
pelo filósofo e cientista político, Achille
Mbembe (2006), cantores,
compositores e produtores de rap
evidenciavam uma política de morte
sustentada pelo racismo no país,
superando, muitas vezes, o olhar
estigmatizante da mídia e da própria
ciência vigente. Com isso, abriu a
possibilidade para que moradores da
periferia contassem sua própria
história.
Durante os anos 1990 grupos
como os Racionais MC’s, Realidade
Cruel, De Menos Crime e Câmbio
Negro registraram, de forma visceral, a
“história dos pobres” (Santos, 2015) no
Brasil. Rompendo com o discurso
conciliatório dominante, os rappers
causaram uma verdadeira revolução no
modo como a desigualdade passou a
ser vista, ou melhor, ouvida por todos.
Radicalizando os limites do discurso
sobre democracia racial, o tom de
denúncia presente em álbuns, como
Sobrevivendo no inferno (1997), que
representaram uma mudança no
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noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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paradigma cultural estabelecido à
época em toda a quebrada.
A identificação positiva com sua
própria condição, de acordo com Grada
Kilomba (2019), é parte do processo de
reparação que leva à descolonização;
desse modo, a intersubjetividade que
leva à visão positiva da periferia é um
passo fundamental para a libertação do
“eu” de sua condição de
subalternidade. Nas palavras de bell
hooks, sujeitos são aqueles que “têm o
direito de definir suas próprias
realidades, estabelecer suas próprias
identidades, de nomear suas histórias”
(hooks, 1989, p.42 apud Kilomba, 2019,
p. 28). Tornar-se sujeito, desse modo, é
um fazer, um falar “em nosso próprio
nome” (Hall, 1990, p. 222 apud
Kilomba, 2019, p. 29). De tal forma que
se manifestar enquanto sujeito é tomar
parte na história.
Procuramos percorrer o caminho
que leva à identificação da periferia
como sujeito histórico a partir da
abertura proporcionada pelo rap
enquanto contraposto à gestão da
pobreza pelo Estado, mas também
como uma alternativa ao mundo do
crime.
Recuperar esses momentos
históricos sob um olhar crítico
possibilita novas aberturas para se
pensar a periferia, hoje, sob o ponto de
vista do próprio marginalizado. Para
tanto, o artigo se divide em três tópicos,
o primeiro, “Da biopolítica à
necropolítica: o rap na linha do tiro”,
recupera o conceito de necropolítica de
Mbembe (2016) evidenciando como ele
coloca a periferia na linha do tiro,
marcando o território das favelas como
território hostil e perigoso. O segundo
tópico, “De volta aos anos 90: o ‘fazer
ver’ como política”, procura demonstrar,
por meio de uma contextualização
histórica, como o rap produziu uma
alternativa à política de morte do
Estado, produzindo dissenso na visão
hegemônica sobre a periferia. Por fim,
argumentamos que a partir dessa
abertura o rap instaura uma
subjetividade dialógica capaz de
produzir uma forma de consenso que
se contrapõe à lógica da democracia
racial. A conclusão é a de que, para
além da denúncia, o rap possibilita a
produção de uma consciência crítica
que anuncia novas possibilidades para
a periferia.
A metodologia utilizada foi a
revisão bibliográfica de artigos e teses
sobre o tema e análise discurso de
trechos de letras que tiveram
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expressividade à época. Os trechos
escolhidos procuram demonstrar a
diversidade de temas abordados que
passam por raça, classe, violência, a
crítica ao Estado neoliberal, assim
como a manifestação de uma
consciência que aponta para saídas
coletivas aos problemas encontrados.
Para tanto, optamos por uma
abordagem de matriz foucaultiana.
Segundo Foucault (2018), o discurso é
formado por um grupo de enunciados,
que, por sua vez, é regulado por uma
formação discursiva, que se constitui
de regras discursivas acessadas por
meio dos enunciados. Nas palavras de
Machado (2007, n.p): “Os discursos
são analisados no nível do enunciado,
e o que circunscreve, delimita e regula
um grupo de enunciados é uma
formação discursiva”.
Da biopolítica à necropolítica: o rap
na linha do tiro
Quer seu filho indo pra escola
e não voltando morto? / Então
meta a mão no cofre e ajude
nosso povo / Ou veja sua
mulher agonizando até morrer
/ Porque alguém precisava
comer / Isso aqui é uma guerra
Isso, 1999.
O rapper Eduardo Taddeo, ex-
membro do grupo Facção Central, em
seu livro A guerra não declarada na
visão de um favelado (2012), descreve
o modo como percebe a periferia, mais
especificamente a favela. Em seu relato
é possível notar que, em sua
perspectiva, o território das favelas é
escorregadio aos sensores científicos e
às demarcações oficiais enquanto
localização, mas nem por isso são
invisíveis à repressão estatal e à
política de morte. Os moradores da
periferia estão sempre na “linha do tiro”:
Uma vez desprezados pela
cartografia comum, que produz
os mapas tradicionais, as
linhas divisórias de onde
começam e terminam
localizações independentes
(não por escolha) reservadas
aos marginalizados, são
encontradas na geografia
delimitada pela miséria. Cada
bolsão de pobreza é uma pátria
composta por pessoas
afastadas à força da dignidade
humana, assistidas
exclusivamente pelos órgãos
de repressão. A demarcação
sociológica é o ponto cardeal
que rumo à agulha da
bússola dos repressores
garantidores da padronização
comportamental geral e letal.
Com ela, mesmo os citados
lugares sendo países
clandestinos, sem Cep,
menções em páginas de guias
de ruas e nomes de moradores
inclusos em listas telefônicas,
os cães diabólicos não se
deparam com a menor
dificuldade em encontrar as
suas latitudes e longitudes.
Com ela os cães diabólicos não
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transformações da cultura")
se deparam com a menor
dificuldade em encontrar as
suas latitudes e longitudes,
para aplicar as famosas e
desprezíveis: atuações
ostensivas, preventivas,
tirânicas e assassinas que nos
mantêm na linha. Na linha do
tiro! (Taddeo, 2012, p.312).
Esse trecho do livro denuncia o
modo como a modernidade e seus
desdobramentos no capitalismo, por
meio do ordenamento e da
“padronização comportamental geral”
estruturada pela ciência “sociológica”,
podem ser “letais” para os moradores
da periferia, pois viver “sem CEP” e
sem menções “em páginas de guias”
causa seu apagamento e sua
esterilização
3
geográfica, demarcada
pela ideia de “bolsão de pobreza ou
“miséria”. Portanto, uma zona espacial
passível de ser encontrada pelos
órgãos repressores e mantida na “linha
do tiro” por meio dessa caracterização.
Em última instância, os marcadores
externos de “miséria e “pobreza”
delimitam a fronteira sobre quem deve
viver e quem deve morrer a partir da
produção de estereótipos e estigmas.
3
Seguindo Kilomba (2019, p. 168), o termo
'contágio racial' descreve a ansiedade e o medo
que pessoas brancas sentem ao se
aproximarem de espaços historicamente
associados a pessoas negras. Essa divisão
territorial, imposta por brancos, cria uma
A descrição da periferia feita por
Taddeo (2012) constitui uma
interpretação do esquema que
fundamenta as constatações feitas por
Jaime Amparo Alves (2011), as quais
indicam que têm se produzido
“afinidades eletivas” entre punição e
cor, a colocar jovens negros periféricos
como as principais vítimas de
assassinatos no país. Alves sugere que
“espaço urbano” e “raça” (mas também
idade, classe e gênero) são categorias
importantes para o modo como os
jovens vivem o “urbano” em um
contexto letal. As altas taxas de
letalidade do jovem negro no Brasil são
demonstrativas do modo como a
“necropolítica” (Mbembe, 2016),
categoria que indica que o Estado é
incapaz de domesticar o direito de
matar, tem sido fundamental para o
entendimento da gestão da vida das
populações periféricas no Brasil.
Necropolítica e necropoder,
conceitos de Achille Mbembe (2016),
ampliam o conceito de biopolítica de
Michel Foucault, que, segundo
fronteira simbólica que separa os considerados
'superiores' dos 'inferiores', reforçando relações
de poder raciais.
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transformações da cultura")
Mbembe, não explica completamente o
controle das vidas contemporâneas
pela morte. Para Foucault (2005), o
poder sobre a vida se organiza em dois
pólos: o primeiro, no século XVII,
focava na disciplinarização dos corpos,
tornando-os dóceis e controláveis; o
segundo, no século XVIII, tratava do
corpo como espécie, regulando
aspectos como natalidade, mortalidade
e saúde, configurando a biopolítica.
Essa gestão sobre os corpos,
“anatômica e biológica”, acontece por
meio de regulações e correções
coordenadas por “dispositivos”
4
: “Já
não se trata de pôr a morte emão no
campo da soberania, mas de distribuir
os vivos em um domínio de valor e
utilidade” (Foucault, 2005, p. 135). A
soberania, nesse sentido, diz respeito
ao poder de suspensão da morte, de
fazer viver e deixar morrer.
Foucault identificou o racismo
como uma tecnologia de poder
essencial ao biopoder, em que o
Estado se torna mais disciplinador e
regulamentador. O racismo exerce
duas funções: fragmenta o contínuo
4
“(...) discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais,
biológico, criando hierarquias entre
superiores e inferiores, determinando
quem deve viver ou morrer; e permite
uma relação positiva com a morte do
outro, visto como "degenerado" e cuja
eliminação fortalece o grupo dominante
(Almeida, 2018). Assim, o racismo
regula a distribuição da morte,
possibilitando a existência de um
Estado assassino (Mbembe, 2016).
No entanto, se, para Foucault, a
experiência exemplar da relação entre
racismo e burocracia estatal foi o
regime nazista, para Mbembe, “as
premissas materiais do regime nazista”
(2016, p. 129) se encontravam em
períodos anteriores, como no
colonialismo imperialista. Desse modo,
as técnicas de morte utilizadas no
regime nazista são a culminância de
um longo processo de
“desumanização” e de “industrialização
da morte”: a morte se encontra
encarnada na própria razão moderna,
se comprovando pela produção de
equipamentos tecnológicos cada vez
mais eficazes para o assassínio das
populações:
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito o
os elementos [ou escalas] do dispositivo”
(Foucault, 2000, p.244 apud Gomes, 2017, p.
49).
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O mundo hobbesiano do
Holocausto não veio à tona
saindo de sua sepultura rasa
demais, ressuscitado pelo
tumulto das emoções
irracionais. Apareceu (de uma
forma formidável que Hobbes
certamente desautorizaria)
num veículo de produção
industrial, empunhando armas
que a ciência mais
avançada poderia fornecer e
seguindo um itinerário traçado
por uma organização
cientificamente administrada. A
civilização moderna o foi a
condição suficiente do
Holocausto; foi, no entanto,
com toda a certeza, sua
condição necessária (Bauman,
1998, p. 32).
A soberania é constituída e
demanda morte para sua manutenção
(Mbembe, 2016, p. 127). Sendo assim,
a soberania é o próprio “direito de
matar” normatizado pelo “estado de
exceção” e pela “relação de inimizade”.
O Estado não exerce o direito de
matar como trabalha para produzir tais
exceções, emergências e inimigos
ficcionais (Mbembe, 2016, p. 128).
A relação entre política e terror
não é recente: as tecnologias de poder
que fazem a “seleção de raças, a
proibição de casamentos mistos, a
esterilização forçada e até mesmo o
extermínio dos povos vencidos foram
inicialmente testados no mundo
colonial” (Mbembe, 2016, p. 132). Para
Mbembe, o que persiste da filosofia
moderna é a colônia como a
representação de um lugar em que a
soberania consiste em um exercício de
poder que ocorre à margem, “no qual
tipicamente a ‘paz’ assume a face de
uma ‘guerra sem fim’” (2016, p. 132). As
colônias são os locais em que as
garantias e a ordem legal são
suspensas, a zona em que a violência
estatal pode ser exercida
“supostamente a serviço da civilização”
(Mbembe, 2016, p. 133).
Na colônia, a ausência de
qualquer normatividade jurídica abre
espaço para que o terror se entrelace
com uma série de ficções, produção de
“terras selvagens” de modo a produzir
um “efeito de real”. Junto a esse efeito
de real, os territórios se caracterizam
como hostis, em que a diferença entre
criminoso e inimigo não faz mais
sentido: “As guerras coloniais o
concebidas como a expressão de uma
hostilidade absoluta que coloca o
conquistador contra um inimigo
absoluto” (Mbembe, 2016, p. 134).
Sendo assim, todo território colonial é
interpretado como um território
perigoso:
Alguns políticos, ao invés de
usar o seu ‘precioso tempo’
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articulando medidas para
resgatar a nossa gente das
masmorras modernas,
desperdiçam o dinheiro do
contribuinte, cogitando ideias
para projetos de lei
estapafúrdios, como o de
sinalizar os arredores das sub-
pátrias, com placas contendo
os dizeres: ÁREA DE RISCO
(Taddeo, 2012, p. 324, grifo do
autor).
A ocupação colonial não pode
mais ser vista como um evento restrito,
mas como uma nova forma de
dominação política em que poderes
disciplinares, biopolíticos e
necropolíticos atuam juntos nas
ocupações tardo-modernas (Mbembe,
2016, p. 137). Viver sob os diversos
regimes de ocupação é viver, portanto,
sob uma condição permanente de
“estar na dor”:
(...) estruturas fortificadas,
postos militares e bloqueios de
estradas em todo lugar;
construções que trazem à tona
memórias dolorosas de
humilhação, interrogatórios e
espancamentos; toques de
recolher que aprisionam
centenas de milhares de
pessoas em suas casas
apertadas todas as noites
desde o anoitecer ao
amanhecer; soldados
patrulhando as ruas escuras,
assustados pelas próprias
sombras; crianças cegadas por
balas de borracha; pais
humilhados e espancados na
frente de suas famílias;
soldados urinando nas cercas,
atirando nos tanques de água
dos telhados por diversão,
repetindo slogans ofensivos,
batendo nas portas frágeis de
lata para assustar as crianças,
confiscando papéis ou
despejando lixo no meio de um
bairro residencial; guardas de
fronteira chutando uma banca
de legumes ou fechando
fronteiras sem motivo algum;
ossos quebrados; tiroteios e
fatalidades um certo tipo de
loucura (Mbembe, 2016, p.
146).
Apesar do terror e da reclusão,
outras formas de compreensão do
tempo, do espaço e do trabalho
emergem da “loucura”. Mesmo no
regime colonial, sendo tratado como se
não existisse, o escravizado foi capaz
de extrair de “qualquer objeto,
instrumento, linguagem ou gesto uma
representação, e ainda lapidá-la”
(Mbembe, 2016, p. 132). Onde há
poder, resistência (Foucault, 2005,
p. 91):
Rompendo com sua condição
de expatriado e com o puro
mundo das coisas, do qual ele
ou ela nada mais é do que um
fragmento, o escravo é capaz
de demonstrar as capacidades
polimorfas das relações
humanas por meio da música e
do próprio corpo, que
supostamente era possuído
por outro (Mbembe, 2016, p.
132).
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O rap, nesse sentido, é o próprio
modo de manifestação do “expatriado”
que rompe com sua condição.
Deslocando sentidos, Edi Rock rima: “O
dinheiro tira um homem da miséria /
Mas não pode arrancar de dentro dele
a favela” (Negro, 2017). Para além de
uma condição econômica, aquilo que é
considerado “pobreza” passa a
representar um estilo de vida
vivenciado e compartilhado por
indivíduos que são marginalizados. Ser
favelado para quem vive nesses
espaços não necessariamente é
idêntico a ser miserável. A miséria,
como descrita por Eduardo Taddeo, é o
modo como a estrutura repressiva
(colonizadora, patriarcal, branca,
hétera) identifica (racializa, generifica,
coloniza etc.) os moradores dessa
delimitação geográfica, arrastando-os
para uma política de morte.
De volta aos anos 1990: o “fazer ver”
como política
Embora a história mais
reproduzida sobre o início do
movimento Hip-Hop no Brasil esteja
ligada à Estação de Metrô São Bento,
5
Em itálico, pois diz respeito ao funk americano
que tem um papel influente tanto no rap quanto
no funk carioca (funk nacional), que mais tarde
em São Paulo, de acordo com Roberto
Camargos (2015) o movimento
apareceu de maneira simultânea em
várias localidades do país, não de
maneira idêntica, mas similar. No
princípio de tal processo era comum
que as pessoas de classe média e alta
viajassem para fora do país e
trouxessem os discos e vídeos de Hip-
Hop disseminando-os em diferentes
contextos (Camargos, 2015, p. 40).
A chegada do Hip Hop à periferia
se deu de forma um pouco diferente a
partir de movimentos coletivos, como
os bailes promovidos por equipes de
som, nos quais os jovens procuravam
diversão nos denominados “bailes
black”. Os estilos de música que
frequentemente tocavam nestes bailes
eram o samba, o soul, o funk
5
e, mais
tarde, o rap. Por terem uma acentuada
marcação rítmica, esses ritmos levaram
o público a criar uma designação
comum a todos: o balanço (Camargos,
2015; Guedes, 2007).
Em relação aos quatro
elementos do Hip Hop, foi o break quem
tomou a dianteira abrindo espaço nos
programas de TV em que aconteciam
veio a ser hegemônico dentro dos bailes
(Guedes, 2007).
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competições de dança entre diferentes
“gangues”, que mais tarde viriam a
formar as crews (Macedo, 2016, p.
228). Foi apenas em 1985 que o ponto
de encontro em São Paulo passou a ser
a Estação de Metrô São Bento, lugar
simbólico, pois as estações de trem e
metrô costumavam ser o cenário de
muitos filmes americanos:
O boca a boca trazia mais e
mais gente, reunindo na São
Bento jovens de dezenas de
bairros. Inúmeras ‘gangues’ se
formavam, como Back Spin,
Street Warriors, Nação Zulu e
Crazy Crew, cada uma com
suas cores e uniformes,
sempre no street wear. O termo
‘gangue’, usado pelos próprios
jovens, não implicava na [sic]
realização de baderna, crimes
ou provocações era uma
maneira provocadora de se
apropriar de um vocabulário
que designa uma associação
de pessoas (Teperman, 2015,
p.33).
Segundo Guilherme Botelho
(2018), a Estação São Bento
inicialmente funcionou como um
espaço de troca e lazer para jovens,
onde eram compartilhados artefatos
culturais como fitas VHS, recortes de
jornais e revistas. O cinema teve um
papel crucial na disseminação da
cultura Hip Hop, com filmes como Wild
Style (1983) circulando em versões
piratas até os anos 2000, aproximando
o público do lifestyle do movimento.
Durante esse período, as vias públicas
tornaram-se palco central para a cultura
Hip Hop, caracterizada como uma
"cultura de rua" por Márcio Macedo
(2016).
As primeiras coletâneas de rap
foram gravadas a partir de 1987. O
grupo de baile Kaskatas lançou a
primeira, intitulada Ousadia do rap, em
1987; em 1988 a gravadora Eldorado
lançou a coletânea Hip Hop Cultura de
Rua; e, em 1989, Consciência Black
saia pela Zimbabwe, o que veio a
aproximar o rap da indústria fonográfica
de maneira incipiente. A coletânea Hip
Hop Cultura de Rua trazia em seu
repertório os até então desconhecidos
Thaíde e DJ Hum, que passaram a
fazer um sucesso considerável com a
canção Corpo fechado, hit que trouxe
projeção nacional para o rap. Ainda em
1988, o primeiro disco seria gravado
por um grupo de rap, Hip Rap Hop, do
grupo Região Abissal (Macedo, 2016,
p. 31).
No final dos anos 1980, as
músicas gravadas na coletânea
Consciência Black: de Mano Brown e
Ice Blue, Pânico na Zona Sul; e, de Edi
Rock e KL Jay, Tempos Difíceis, viriam
a estabelecer o tom estético do próximo
133
PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
período, caracterizado pela temática
racial (Macedo, 2016, p.31). Nos anos
seguintes os rappers viriam a formar o
Racionais MC’s. O Racionais MC’s foi
responsável pela venda de mais de 1
milhão de cópias, de forma
independente, somente pelo disco
Sobrevivendo no inferno, de 1997,
lançado pelo selo Cosa Nostra,
pertencente aos próprios integrantes.
De acordo com Macedo (2016,
p. 32), a primeira metade dos anos
1990 foi atravessada por uma forte
consciência das lutas antirracistas,
muito influenciadas, de acordo com o
autor, pelas lutas por direitos civis nos
EUA e pela influência da segunda
geração do rap naquele país, tendo
como destaque o grupo Public Enemy
(PE), o que reafirma o caráter global
que o rap assumia naquele período e
a conexão entre as opressões vividas
por jovens no mundo todo:
O impacto do PE sobre o
Racionais MCs é visível no seu
primeiro álbum, Holocausto
Urbano. Lançado em 1990, o
disco capitalizava a boa
recepção das faixas ‘Pânico na
Zona Sul’ e ‘Tempos Difíceis’,
presentes na coletânea
Consciência Black Volume 1
lançada dois anos antes. O
álbum, composto de seis
faixas, se aproxima de uma
espécie de aula sobre racismo,
desigualdade e violência
policial, contando ainda com
uma faixa de aspecto machista
e misógino intitulada ‘Mulheres
Vulgares’ (Macedo, 2016, p.
33).
A cada de 1990 foi marcada
por turbulências econômicas, políticas
e sociais no Brasil. Nos primeiros anos,
a violência, incluindo chacinas, expôs o
genocídio da população negra
(Oliveira, 2018). Organizações sociais,
partidos de esquerda e sindicatos
enfraqueceram com o avanço
neoliberal, que deteriorou o poder de
compra, aumentou o desemprego e a
informalidade, dificultando a
organização política dos trabalhadores
e ampliando a desigualdade (D'Andrea,
2013).
O enfraquecimento das
organizações sociais, acompanhado de
forte aparato propagandístico
ideológico neoliberal, criou espaço para
o fortalecimento de uma ética da
prosperidade no período pós-ditadura.
O incentivo ao consumo exacerbado,
amparado em uma lógica individualista,
colocava abaixo qualquer tentativa de
saída coletiva no âmbito social: “Tudo
aquilo que denotasse ser comum ou
público era criticado em nome das
vantagens do privado (D’Andrea,
2013, p. 54, grifo do autor).
134
PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A partir desse discurso, o
desmonte do Estado, a expropriação e
a marginalização das populações
periféricas passaram a ser o plano
principal, trazendo à luz um novo
sistema de exploração local ligado à
dinâmica econômica mundial. A
transformação dos serviços públicos
em privados, a responsabilização dos
indivíduos, somados a um histórico
escravagista e autoritário formaram “o
caldeirão explosivo no plano social”
(D’Andrea, 2013, p. 54).
Em 1992, o Massacre do
Carandiru, em que 111 detentos,
majoritariamente réus primários, foram
mortos pela polícia, impactou o
imaginário social e a história do sistema
penitenciário brasileiro. Em 23 de julho
de 1993, a Chacina da Candelária
chocou o país com o assassinato de
oito crianças em situação de rua por ex-
policiais no Rio de Janeiro. Pouco
depois, em 29 de agosto de 1993, outro
massacre ocorreu em Vigário Geral,
onde um grupo de extermínio formado
por policiais matou 21 moradores sem
qualquer evidência de ligação com atos
ilícitos, em vingança pela morte de
quatro policiais no dia anterior.
O genocídio negro no Brasil não
se inicia nos anos 1990, períodos
anteriores são permeados por
episódios violentos por parte do Estado
(Nascimento, 1978). Contudo, como
constatado por Acauam Oliveira, na
apresentação do livro Sobrevivendo no
inferno (2018), a partir desse período
uma expansão da política de morte
operada pelo Estado por meio de um
processo de “gestão da pobreza”:
O que a periferia percebeu
antes de todos é que esse
modelo genocida de
organização social, ancorado
numa série de mecanismos
herdados da escravidão e
aperfeiçoados durante a
ditadura, não se voltava
apenas contra aqueles
considerados “criminosos”,
tendo se convertido em norma
geral, com aprovação quase
irrestrita da opinião pública
(Oliveira, 2018, n. p).
Assim como no Bronx, o rap no
Brasil dos anos 1990 emerge em meio
à fragmentação social, exclusão
institucional e abandono das
populações mais pobres. Diante do
capitalismo exacerbado, o rap oferece
uma nova forma de organização. Para
Walter Garcia (2007), são "versos em
cima dos destroços", em que sons
recorrentes e o ritmo preenchem as
lacunas de um sistema violento que se
pretende civilizado.
135
PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Para Giordano Bertelli (2012), a
partir dos anos 1990 a experiência
política da periferia se encontra cindida
entre duas formas de organização: de
um lado, o Estado gerindo populações
e territórios; de outro, o “mundo do
crime” como uma alternativa
econômica atrativa. O rap instaura uma
dissensão tanto em relação às políticas
do Estado quanto ao mundo do crime.
Essa dissenção não isola o rap de suas
relações com ambas as formas de
organização. Longe disso, se torna:
Mescla de conflito político e
agressividade, a
ressignificação da política pelo
crime palavras convertidas
em armas e do crime pela
política armas convertidas em
palavras deixa entrever o fio
da navalha em que se equilibra
o potencial político da dinâmica
social das periferias
contemporâneas (Bertelli,
2012, p. 234).
Contrariando a lógica
consumista do mercado, o rap se
posiciona como uma forma de
expressão autêntica e inclusiva. Como
argumenta Kehl (1999), o rap 'não quer
excluir nenhum garoto ou garota que se
pareça com eles', revelando uma
'intenção de igualdade' e uma
capacidade de dar voz aos
marginalizados. Desse modo, não se
desenvolveu de forma isolada, mas
com o apoio de instituições como o
Geledés Instituto da Mulher Negra,
criado em 1978 para combater o
racismo e o sexismo. A pedagogia do
grupo foi fundamental para os primeiros
projetos de rap. Segundo Botelho
(2018), a aproximação entre o Instituto
e os Hip hoppers ocorreu após a morte
de um jovem por um policial nos anos
1990, quando os jovens buscaram
parcerias para combater a violência
policial:
Um caso emblemático, na
época, uma banda de rock se
apresenta em São Paulo, seu
vocalista abaixa as calças e
mostra as suas partes traseiras
para a plateia que delira e
ainda cospe na bandeira
brasileira. Nada lhes
aconteceu. No entanto, rappers
cantando e denunciando a
violência eram brutalmente
retirados dos palcos e
enquadrado pela polícia em
crime de desacato à
autoridade. Eles então nos
procuram para saber o que o
SOS Racismo do Geledés
poderia fazer para protegê-los
(Geledés - Instituto da Mulher
Negra, 2009, on-line).
O Projeto Rappers,
desenvolvido a partir dessa parceria,
contribuiu significativamente para a
descriminalização do movimento Hip-
Hop em São Paulo, mas não isso,
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PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
instrumentalizou o discurso das e dos
MC’s a partir de oficinas e eventos,
discurso esse que passou a tratar a
questão cultural relacionando-a à
política, impactando diretamente a
estética do rap. De acordo com Botelho
(2018, p. 79-85), foi por meio do
Instituto Geledés que pautas presentes
no Movimento Negro Unificado Contra
a Discriminação Racial (MNUCDR)
chegaram até os rappers:
Em suma, um número
considerável de artistas de Rap
colocaram o seu ‘eu-lírico’ na
função de anunciar os ideais
contidos na perspectiva da
militância. Entre tantos já
citados no decorrer do trabalho,
também ouve-se: ‘Sou Negrão’
do Possemente Zulu;
‘Afrobrasileiro’ de Thaíde e DJ
Hum. Agora, como isso
apareceu nas letras de Rap na
década de 1990? Os estudos
comprovam que foi através do
debate oriundo das ações do
Instituto da Mulher Negra. As
atuações do Geledés estão
dentro dessa concepção de
Quilombismo (Botelho, 2018, p.
91).
A virada estética e política no rap
dos anos 1990 não ficou restrita ao eixo
Rio-São Paulo. Segundo Tavares
(2010, p. 309), nesse mesmo período o
rap de Brasília passou por uma
6
Também conhecidos como “tagarela” ou “funk
falado” (Macedo, 2016, p.27).
reestruturação. As letras cômicas
conhecidas como “melôs
6
foram
perdendo espaço para narrativas que
abordavam problemas sociais. O grupo
Câmbio Negro, antes descrito pela
mídia como uma das “gangues de
delinquentes” que espalhavam o terror
pelo Distrito Federal, agora
apresentava, na canção Sub-raça
(1995), o peso crítico característico do
rap que vinha se desenvolvendo no
resto do país:
Agora irmão vou falar a
verdade/ A crueldade que
fazem com a gente/ por
nossa cor ser diferente/ Somos
constantemente assediados
pelo racismo cruel/ Bem pior
que fél, é o amargo de engolir
um sapo”, só/ por ser preto/
isso é fato/ O valor da própria
cor não se aprende em
faculdades ou colégios que/ ser
negro/ nunca foi um defeito
será sempre um privilégio/
Privilégio de pertencer a uma
raça/ Que com o próprio
sangue construiu o Brasil/ Sub-
raça é a puta que pariu (Sub-
raça, 1995).
De acordo com Macedo (2016,
p. 31-35), a partir de 1995 o rap viria a
abandonar a estética baseada
centralmente na concepção de
negritude em prol de um
137
PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
posicionamento ampliado de pautas
sociais que colocaria a periferia
7
no
centro do movimento, o que daria força
a uma “cultura periférica” baseada na
ideia de que a “A periferia nos une!”. A
virada rumo à periferia se daria pela
estética do álbum Sobrevivendo no
inferno, que incorporaria temáticas
ligadas ao cotidiano periférico, entre
elas violência, desigualdade e
criminalidade. Teria iniciado, nesse
período, um processo de
ressignificação da representação da
periferia, que de espaço estigmatizado
ressurgiria como elemento identitário
(Macedo, 2016, p. 36-37). De acordo
com D’Andrea (2013, p. 134), os
Racionais MC’s teriam tido a
sensibilidade de captar a subjetividade
da periferia de forma mais bem
acabada, nesse período, em seus
trabalhos.
A força do elemento raça no
primeiro quinquênio dos anos 1990 se
dava por um esforço de inclusão do
jovem negro, que até aquele momento
não era reconhecido como ator político,
7
De acordo com D’Andrea (2013, p. 24-25),
essa virada foi capaz de impactar a visão dos
cientistas sociais e agentes públicos e culturais
sobre a periferia.
8
O termo 'periferia', antes associado a
conotações negativas, foi reinterpretado e
pois não se enquadrava na
representação de juventude engajada,
majoritariamente branca, classe média
e cursando ensino médio e superior:
“Os jovens artistas críticos eram negros
e/ ou mestiços, nordestinos ou filhos de
famílias migrantes, trabalhadores e
com educação incompleta ou precária”
(Macedo, 2016, p. 39).
Contudo, a racialização
exacerbada e, por muitas vezes, o
caráter misógino das letras levava a
conflitos internos no movimento.
Jovens ativos dentro do movimento,
que o se identificavam com o perfil de
homem negro, ou seja, jovens
mulheres e homens brancos pobres,
não se contentavam com os espaços
restritos. Desse modo, a noção de
periferia começou a adentrar o Hip-
Hop
8
: “A categoria periferia, portanto,
desloca a discussão ou a origem dos
problemas dos jovens Hip hoppers do
elemento ‘raça’ para a categoria
‘classe’, através de um construto
espacial” (Macedo, 2016, p. 40).
apropriado positivamente por seus próprios
moradores. D'Andrea (2013) argumenta que
essa transformação ocorreu em resposta à
violência e à desigualdade, tornando-se um
símbolo de identidade e resistência.
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PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Fazendo comunidade: desafiando o
mito da democracia racial
Os rappers podem ser
encarados como produtores do espaço
social onde atuam. Compreender o
contexto nos ajuda a acessar a
complexa rede de relações sociais que
produzem e são produzidas por esses
sujeitos periféricos. A preferência dos
rappers por se posicionarem de
determinado modo diante de certos
tópicos como raça, classe, gênero e
todo tipo de desigualdades só pode ser
interpretada diante de seus
desdobramentos históricos sociais
levando em conta sua referenciação e
o contexto, nesse caso, a periferia
9
(Bentes, 2011, p.61).
O ponto de vista radicalmente
situado trazido pelo rap talvez seja a
sua contribuição mais significativa para
a cultura popular brasileira naquele
momento: “A periferia percebeu antes
de todo mundo que o projeto político do
Estado brasileiro naquele momento
consistia em transformar o país em um
imenso Carandiru” (Oliveira, 2019, on-
line). Isto é, o rap é responsável por
9
Segundo Macedo (2016), a periferia configura-
se como um espaço onde a classe social, mais
do que a raça ou a origem, unifica jovens
diversos em torno de experiências comuns:
evidenciar posições dentro da estrutura
social que, até então, estavam
mascaradas pelo mito da democracia
racial. Evocando Jacques Rancière,
podemos dizer que o rap apresenta a
eficácia estética do “dissenso”, do
“fazer ver” (Rancière, 2009, p. 16).
Nesse ponto, política e estética se
encontram, “o dissenso está no cerne
da política” (Rancière, 2012, 59). O rap
questiona a “normalidade” do sistema:
O PCC controlou os homicídios
em São Paulo, posso ser morto
por falar isso. O sistema é
falho! O sistema depende da
violência pra sobreviver, é
diferente do PCC onde a
violência faz eles perderem
dinheiro. Eles precisam da paz
pra ganhar. O sistema precisa
da guerra pra vender bala,
vender arma, vender munição,
pra empregar mais gente na
polícia, fazer mais cadeia, pra
superfaturar mais. Isso que
gera tudo. O Bezerra da Silva,
antes de morrer, a gente fez um
show junto, ele disse assim:
‘Brown, cadeia é que nem
show, tem que tá lotado pra
dinheiro’ (Brown, 2018, on-
line).
De acordo com Garcia, o grupo
Racionais MC’s pretende “criticar a
sociedade brasileira a partir do ponto
violência, desigualdade e falta de
oportunidades. Essa vivência compartilhada
gera um sentimento de pertencimento e
identidade entre os moradores.
139
PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
de vista do ‘jovem negro’” (2011,
p.221). Na canção Fim de semana no
Parque (1993), argumenta Garcia, esse
ponto de vista se constrói a partir da
experiência da “comunidade pobre”.
Essa delimitação, denominada como
“comunidade pobre”, não é tão simples
assim de ser apreendida diante da
multiplicidade de significados que a
atravessam. Não se trata, portanto, de
uma marcação no mapa, como
argumenta Taddeo (2012), e não se
reduz à delimitação racial ou de classe,
como aponta a perspectiva
necropolítica.
Podemos dizer que o rap não
canta a periferia, o rap faz a periferia
nesse jogo de fazer-sentido. É nessa
busca por ressignificação que o rap se
inscreve como uma poderosa
ferramenta de transformação social:
“Suas gírias transformadas em poesia
criticavam a monopólio da palavra pela
língua culta, afirmando assim uma
identidade periférica que requeria o
status de expressão cultural legítima”
(Gatti, 2005, p. 190).
A respeito da figura do bandido,
por exemplo, Oliveira (2019, on-line)
argumenta que o objetivo do rap no
Brasil dos anos 1990 nunca foi a figura
puramente metafórica. A representação
de um bandido poderoso, endinheirado
e cercado de mulheres estaria muito
mais presente no rap norte-americano,
nesse período. Para o rap nacional, a
questão seria uma intervenção real na
existência do bandido, uma
ressignificação do sentido que até
então era ocupado pela ideia de “corpo
descartável”:
Quando esses artistas falam do
bandido, ou melhor, quando
falam junto com o bandido, é o
criminoso de fato que está
sendo retratado, pois a ideia é
elaborar um horizonte
discursivo onde essa anti-voz,
avesso da nação, possa
efetivamente existir (Oliveira,
2019, on-line).
De acordo com Oliveira, o rap
ajuda a construir “um espaço discursivo
em que os cidadãos periféricos
puderam se apropriar de sua própria
imagem, construindo para si uma voz
que, no limite, mudaria a forma de
enxergar e vivenciar a pobreza no
Brasil” (Oliveira, 2018, n. p). Desse
modo, contrapõe-se à significação
negativa reproduzida pelo Estado e
pela mídia. Em síntese, o rap oferece a
condição para o jovem periférico “atuar
de maneira digna com seu
pensamento, sua voz e seu corpo”
(Garcia, 2013, p. 88, grifo nosso).
140
PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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transformações da cultura")
A experiência da violência e
seus desdobramentos no judiciário e no
sistema penitenciário é ressignificada
por meio de um esforço de
humanização em Diário de um
detento
10
, do Racionais MC’s, ou em
Dia de visita, do grupo Realidade Cruel:
Sinto uma grande vontade de
chorar / Ao ver a minha mãe
aqui vindo me visitar / Talvez se
eu tivesse pensado um pouco
mais / Talvez hoje eu não
estaria atrás / De uma cela num
pátio de um presídio / Numa
triste tarde de domingo / É foda
mano você não sabe, é triste /
Mas sobreviver em paz aqui
tem que ser firme (Dia, 2020).
Como é possível observar no
trecho, a música procura expressar de
forma intimista o modo como um
detento se sente em situação de
cárcere, capaz de expressar
sentimentos como tristeza e vergonha,
e se arrepender; a imagem se
distancia, pois, daquela reproduzida
pela mídia tradicional da figura do
bandido monstruoso e incurável.
O orgulho negro, característico
da luta antirracista, é expresso em
Considere-se um verdadeiro preto, do
grupo DMN: “Negão, moreninho,
mulatinho? Qual é que é mano? /
10
Para uma análise de Diário de um detento,
ver: Garcia, 2007.
Branco é branco, preto é preto. Foda-
se o meio termo, morô?” (Considere-se,
1993).
Ou em Voz Ativa dos Racionais
MC’s:
Eu tenho algo a dizer / E
explicar pra você / Mas não
garanto, porém / Que
engraçado eu serei dessa vez /
Para os manos daqui! / Para os
manos de lá! / Se você se
considera um negro / Um negro
será, mano (Voz, 2015).
O rap rompe com uma rie de
estereótipos segregacionistas e,
também, com mitos históricos que
ligam negros à ideia de passividade
durante o período escravocrata, ao
preconceito com as religiões de matriz
africana, aos padrões de beleza
embranquecidos e ao preconceito com
a língua vernacular (Botelho; Garcia;
Rosa, 2015, p.2). Como é possível ver
em ambos os trechos, a afirmação da
negritude e criação de posições bem
definidas entre negros e brancos
colabora com a desmistificação
causada pela democracia racial,
afirmando uma posição positiva para
negros em relação aos brancos.
141
PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A luta de classes também é tema
central e constante nesse período;
junto a isso, a denúncia das condições
de vidas precarizadas na periferia, a
falta de saneamento básico e saúde, os
subempregos, a inexistência de
espaços de lazer etc. (Garcia, 2011;
Botelho, Garcia, Rosa, 2015, p.3):
Vocês produzem a miséria / E
nos impedem de chegar a nível
social / Enquanto minha gente
se quebra e requebra / Para se
pôr o pão na mesa, sua lixeira
transborda alimentos / Não é
sua fartura que me incomoda /
E sim a sua hipocrisia é que me
sufoca, burguesia idiota
(Burguesia, 2015).
Contrapondo-se ao hedonismo
do mercado e à ética da prosperidade
neoliberal, uma ética da coletividade
11
que parte do ponto de vista da periferia
é prescrita em Fórmula Mágica da Paz:
“A gente vive se matando, irmão, por
quê? / Não me olha assim, eu sou igual
a você/ Descanse o seu gatilho,
descanse o seu gatilho/ Entre no trem
da malandragem, meu rap é o trilho”
11
Maria Rita Kehl argumenta a respeito de uma
“ética da convivência” (Kehl, 1999, 98). Acauam
Oliveira cita uma “teologia da sobrevivência”,
que tem por objetivo “uma ética comunitária
que os permita viver a ‘vida loka’” (Oliveira,
2018, n.p).
12
“(...) conceito de violência contra a violência”
(Brown, 2011 apud Garcia, 2013, p. 82). O
revide está na gênese do movimento Hip-Hop,
(Fórmula, 2015). E em Capítulo 4
Versículo 3, em que Brown evoca seus
50 mil manos:
Vinte e sete anos contrariando
a estatística/ Seu comercial de
TV não me engana / Eu não /
preciso de status nem fama /
Seu carro e sua grana não
me seduz / E nem a sua puta
de olhos azuis / Eu sou apenas
um rapaz latino-americano /
Apoiado por mais de 50 mil
manos / Efeito colateral que o
seu sistema fez / Racionais
Capítulo 4, Versículo 3
(Capítulo, 2017).
À medida que a consciência
sobre a estrutura violenta vai
aumentando, o gesto de revide
12
se
torna mais elaborado: “A agressividade
dos raps, adensada a cada trabalho,
também comunica a lucidez”, aponta
Garcia (2013, p. 82). A prática do revide
abre a possibilidade para uma
visualização do cotidiano que se
demonstra rumo à concretude das
relações, dando corpo a uma
subjetividade intersubjetiva que
possibilita formar uma “comunidade de
portanto, do próprio rap a partir da estética
africanista. O breakdance foi o modo
encontrado para a resolução de conflitos entre
as gangues do Bronx, como explicitado
anteriormente. Na dança, que simula um
confronto, o revide seria a resposta de um
participante a outro, uma espécie de jogo de
ataque e contra-ataque. Essa estrutura se
repete também nas batalhas de rima e de DJ’s.
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PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
vida”, nos termos de Enrique Dussel
(2000, p. 531), um lugar de coabitação
que permite que falem, argumentem,
comuniquem-se e cheguem a
consensos, em última instância,
coordenem suas ações de modo a
produzir uma identidade própria.
Trata-se de um processo
dialógico: “É pela linguagem que o
homem se constitui enquanto
subjetividade, porque abre espaço para
as relações intersubjetivas e para o
reconhecimento recíproco das
consciências” (Brandão, 2005, p. 268).
Portanto, diferente da “racionalização”.
Não só a consciência da violência, mas
o reconhecimento dos manos como
iguais alimenta esse olhar contestatório
sobre o cotidiano, a presença do Outro
que é constitutiva do eu. Desse modo,
como sugerido por Macedo (2016, p.
41), o rap instaura uma democracia de
baixo para cima
13
de modo a se
contrapor ao mito da “democracia
racial”.
Fazendo comunidade: desafiando o
13
O autor emprega a noção de “democracia
sem dente” inspirada no biógrafo do rapper
Sabotage, Toni C. Para Toni C., o fato de
Sabotage não ter os dentes revelava a
característica da democracia no Brasil,
vivenciada pela experiência compartilhada da
mito da democracia racial
A leitura do Brasil sob o ponto de
vista do marginalizado, realizada por
grupos de rap nos anos 1990,
escancarou a desigualdade encoberta
pela ideologia dominante. Ao
“sobreviver no inferno” o Racionais
MC’s possibilitou não apenas a
emancipação individual de Mano
Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay,
mas a formação de um sentimento
comum na periferia tendo como
horizonte a vida. O compromisso
comunitário proporcionado não apenas
pelo rap, mas por um conjunto de
manifestações presentes nesse
território, fundamentou saberes,
práticas, valores e representações que
possibilitam estratégias de
sobrevivência cada vez mais
elaboradas.
Com o avanço do neoliberalismo
e o aumento do genocídio negro por
parte da política de morte aplicada pelo
Estado, o rap uniu quebradas,
fortaleceu os laços e deu voz à
periferia. Dar voz, todavia, é dar as
pobreza, uma vez que a ausência de dentes é
um dos marcadores de classe mais presentes
no país (Macedo, 2016, p. 41).
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PASSIANI, Enio, ROCHA, Róbson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
condições necessárias para que jovens
moradores da periferia possam se
expressar por meio do poder ancestral
das palavras, possibilitando não
apenas que contem, mas que
reinventem sua própria história, o
resultado disso é a abertura para a
diversidade em diversos quesitos.
Desse modo, embora o rap
indique a existência de um sujeito
histórico periférico, isso não implica a
ausência de divergência e diversidade
de pontos de vista nesse contexto. Isso
fica mais claro com a entrada do
movimento no culo XXI. Se, por um
lado, um arrefecimento no discurso
de classe por parte dos rappers no
âmbito “hegemônico”, é na diversidade
que um novo polo de operação será
projetado. Desse modo, outros debates
vão entrando no radar do movimento. A
inclusão de DJ’s femininas na abertura
dos shows do Racionais MC’s foi,
justamente, uma exigência de Eliane
Dias
14
. Os avanços do movimento
feminista no Brasil, assim como o
aumento no poder de compra centrado
nas mulheres, impulsionado pelas
14
“O Brown falou: ‘Ô, Eliane, para de dar
esperança para essas meninas’. Eu falei: ‘Você
larga de ser machista, vou colocar, sim!’. Ele
retrucou: ‘Ah, mas isso não vira’. Eu falei: ‘Se
políticas públicas, possibilitaram uma
série de reavaliações, não só na classe
média, mas em frações da própria
periferia. Embora possamos recuperar
de algum modo um sujeito contestatório
calcado nos interesses da periferia é
sempre a favor de uma certa
provisoriedade.
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não vira não é problema meu, a minha questão
é a inclusão social. Eu tenho a obrigação de
colocar as mulheres no palco e dar visibilidade
a elas’” (Dias, 2016).
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