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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Racionais Mc’s e a liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição
da Colonialidade
Lucas dos Anjos
1
José Roberto Rodrigues
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65563
Resumo: A década de 1990 no Brasil é marcada por ser um período de constante violência nas regiões
periféricas com ênfase na população negra, além de se destacar como um momento de ampliação à
desigualdade social a partir do avanço de políticas neoliberais que não contemplavam as camadas
populares do país. É nesse contexto que o grupo Racionais Mc’s alcança relevância nacional ao lançar
o álbum Raio X do Brasil. Esse artigo resulta de uma pesquisa exploratória de monografia com foco no
álbum Raio X do Brasil do grupo Racionais Mc’s a partir da análise de conteúdo das letras das músicas
“Introdução”, “Fim de Semana no Parque”, “Mano na Porta do Bar”, “Homem na Estrada” e “Júri
Racional”. Busca investigar a relação que entre o contexto ao qual o grupo está inserido, sua
representação a partir das músicas, bem como as relações entre as denúncias presentes nas faixas
analisadas frente às observâncias críticas trazidas pelo pensamento Decolonial. Conclui-se que o
álbum Raio X do Brasil consegue representar “fraturas expostas” de um país que possui ainda efeitos
da colonialidade em atuação como força dominante a partir da manutenção do capitalismo e do racismo
como ferramenta de opressão. Além disso, nota-se que apesar de o grupo anunciar a existência no
direito da liberdade de expressão na faixa “Introdução”, esse direito não se manifesta de forma plena,
pois o grupo Racionais Mc’s foi constantemente perseguido devido aos seus posicionamentos contra-
hegêmônicos.
Palavras-chave: Racionais Mc’s; rap; colonialidade; liberdade de expressão.
Racionais MC’s and freedom of expression: a X Ray of Brazil and the exposure of Coloniality
1
Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (PPGedu/UNIRIO). Bolsista FAPERJ Nota 10 pelo PPGedu/UNIRIO.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Formação de Professores, Currículo (s), Interculturalidade
e Pedagogias Decoloniais (GFPPD). Email: lucasdosanjos@edu.unirio.br ORCID:
https://orcid.org/0009-0000-7658-424X.
2
Doutor em Ciências Humanas - Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Docente Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro pelo (CAp-UERJ). Foi um dos fundadores e integrou o Programa de Pós-Graduação
de Ensino em Educação Básica (PPGEB). Vice-Líder do Laboratório de Ensino de História - LEH/CAp-
Uerj. Integrante do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas - GECEC/PUC-Rio e do
Grupo de Pesquisa Patrimônio, Memória e Educação PAMEDUC/UFSC. Email:
zrsrodrigues@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1941-1996.
Recebido em 30/11/2024, aceito para publicação em 20/12/2024.
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Abstract: The 1990s in Brazil are marked as a period of constant violence in peripheral regions, with a
focus on the Black population. It is also characterized as a moment of increasing social inequality driven
by the advancement of neoliberal policies that excluded the country’s lower-income groups. Within this
context, the group Racionais MC’s gained national prominence with the release of the album Raio X do
Brasil. This article results from an exploratory monograph research focused on the album Raio X do
Brasil by Racionais MC’s, content analysis of the lyrics of the songs “Introdução,” “Fim de Semana no
Parque,” “Mano na Porta do Bar,” “Homem na Estrada,” and “Júri Racional”. It seeks to investigate the
relationship between the context in which the group is embedded, its representation through the songs,
as well as the connections between the critiques present in the analyzed tracks and the critical
perspectives brought by Decolonial thought. The study concludes that the album Raio X do Brasil
effectively portrays the exposed fractures of a country still grappling with the enduring effects of
coloniality, which remains a dominant force through the perpetuation of capitalism and racism as tools
of oppression. Furthermore, it is noted that, although the group asserts the existence of the right to
freedom of expression in the track “Introdução,” this right is not fully realized, as Racionais MC’s were
consistently persecuted for their counter-hegemonic stances.
Keywords: Racionais Mc’s; rap; coloniality; freedom of expression.
Racionais MC’s y la libertad de expresión: un Rayo X de Brasil y la exposición de la Colonialidad
Resumen: La década de los 1990 en Brasil está marcada por ser un período de constante violencia en
las regiones periféricas, con un énfasis en la población negra. Además, se destaca como un momento
de aumento de la desigualdad social debido al avance de políticas neoliberales que excluían a las capas
populares del país. En este contexto, el grupo Racionais MC’s alcanza relevancia nacional con el
lanzamiento del álbum Raio X do Brasil. Este artículo resulta de una investigación exploratoria de
monografía centrada en el álbum Raio X do Brasil del grupo Racionais MC’s, mediante el análisis de
contenido de las letras de las canciones “Introdução,” “Fim de Semana no Parque,” “Mano na Porta do
Bar,” “Homem na Estrada” y “Júri Racional”. Busca investigar la relación entre el contexto en el que el
grupo está inserto, su representación a través de las canciones, así como las conexiones entre las
denuncias presentes en las pistas analizadas y las observaciones críticas aportadas por el pensamiento
decolonial. Se concluye que el álbum Raio X do Brasil logra representar fracturas expuestas de un país
que aún enfrenta los efectos de la colonialidad, que actúa como una fuerza dominante a través del
mantenimiento del capitalismo y el racismo como herramientas de opresión. Además, se observa que,
aunque el grupo afirma la existencia del derecho a la libertad de expresión en la pista Introdução,” este
derecho no se manifiesta plenamente, ya que Racionais MC’s fue constantemente perseguido por sus
posturas contra-hegemónicas.
Palabras clave: Racionais Mc’s; rap; colonialidad; libertad de expresión.
Racionais Mc’s e a liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição
da Colonialidade
Introdução
A partir da Ditadura Militar no
Brasil, as repressões às favelas foram
intensificadas. diversas denúncias
de vítimas relatando a truculência
policial nos períodos ditatoriais. Uma
das principais formas de abuso policial
era referente a utilização da lei contra a
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
vadiagem, em que permitia que um
policial desse voz de prisão a um
cidadão que não pudesse comprovar
que era um trabalhador, sendo esta
utilizada diversas vezes como pretexto
para agredir pessoas negras. Outro
caso era referente ao ataque à
identidade negra a partir do corte
forçado do cabelo afro, o “black power”,
além da perseguição aos bailes black
3
.
Daniela Vieira e Jaqueline Lima
Santos (2023) apontam os bailes black
como porta de entrada para o Hip-Hop
no Brasil, ao passo que “nesses
espaços, a negritude se sentia entre
iguais e o entretenimento era
vivenciado como uma alternativa ao
racismo cotidiano” (Vieira; Santos,
2023, p. 31). Sob isso, é notável que os
bailes blacks ofereciam um
enaltecimento a identidade negra e
uma ampliação na compreensão sobre
os efeitos do racismo na sociedade e
que devido a isso ocorreram
perseguições a esse movimento, mas
ao mesmo tempo serviu como
inspiração para a chegada abrupta do
Hip-Hop no Brasil.
3
Pedretti (2022) apresenta inúmeros relatos e
documentos registrando prisões por vadiagem,
tortura física, cortes forçados dos cabelos black
power, além de invasões e proibições aos
bailes black.
Anderson da Costa e Silva
Greeco (2007) ressalta que a
expressão Hip-Hop é proveniente dos
Estados Unidos e significa movimentar
os quadris (to hip) e saltar (to hop) e sua
criação é atribuída ao DJ Afrika
Bambaataa, que inventou este termo
em 1968 para caracterizar o encontro
dos dançarinos de break, DJ’s, MC’s e
grafiteiros nas festas de rua produzidas
no bairro do Bronx em Nova Iorque. É
preciso ressaltar que o elemento
corporal no Hip-Hop é representado
pelos dançarinos de break, enquanto o
DJ comanda os aparelhos musicais
montando uma base rítmica e o MC
(Mestre de Cerimônia) complementava
o som através do canto ou da narração
de histórias
4
e o grafite representava o
elemento visual do Hip-Hop através da
expressão artística utilizando as latas
de spray.
É notável que o elemento do
Hip-Hop responsável pela expressão
musical é o rap, composto pelo DJ e o
MC, em que o primeiro é responsável
por prover o ritmo e o segundo a
poesia, daí a tradução de rap ser
4
Atualmente os protagonistas do rap são os
MC’s, o que significa que a mensagem
atribuída ganhou maior relevância no Hip-Hop.
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rhythm and poetry(ritmo e poesia). É
preciso ressaltar a origem jamaicana no
Hip-Hop, que apesar de ter sido
popularizado principalmente através
dos rappers e DJ’s estadunidenses
5
,
[...] o rap, na realidade, possui
em seu “código genético”
influências advindas
inicialmente de um canto falado
da África Ocidental, reflexo da
circularidade cultural entre
América e África e serviu como
elemento de fortalecimento da
negritude. (Grecco, 2007, p.
15)
O rap no Brasil é recepcionado
em São Paulo, por grupos de jovens
moradores da periferia que escolheram
o centro da cidade, apesar da distância
de sua moradia, para difundir essa
manifestação cultural. A princípio,
devido à dificuldade em compreender a
língua inglesa, o Hip-Hop se
caracterizava apenas como um gênero
musical dançante, ao qual o rap,
denominado de tagarela, era somente
uma forma de acompanhar a base
musical através de rimas simples
6
.
Entretanto, ainda na década de 1980, o
rap toma forma como um gênero
musical e uma expressão cultural
negra, crítica e combativa de linguagem
5
Ibidem, p. 14.
periférica, afinal, como aponta Grecco
(2007)
[...] o Hip-Hop demonstra certa
consolidação em suas práticas
e verificamos o lançamento de
trabalhos como os de Thaíde e
DJ Hum gerando dentro do rap
o início de sua fase
contestatória, o que faz com
que o rap enfim possa “repetir
o modelo estadunidense de
contestação”. (Grecco, 2007, p.
20)
Tiaraju Pablo D’Andrea (2017)
ressalta que o rap no Brasil se afirma a
partir de uma ruptura com a esquerda
tradicional (crise do ideário socialista
em escala mundial), ao apresentar uma
transformação social provinda da
periferia e não do mundo do trabalho
(como defendia o marxismo) e com o
pensamento neoliberal (que vinha
ganhando força no Brasil), ao
denunciar a miséria social causada por
esta linha de pensamento. Além disso,
uma perda de referencial político
nas periferias a partir de uma
diminuição na presença de agentes
ligados ao catolicismo de esquerda, o
desaparecimento dos núcleos de base
nas favelas, principalmente, após a
derrota de Lula para o Collor na eleição
presidencial de 1989 e a expansão de
6
Ibidem, p. 19.
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medidas neoliberais que
constantemente privatizam os espaços
públicos. A partir dessas
especificidades ocorridas nos anos
1990, permitiu-se que o rap emergisse
como uma das principais formas de
representatividade das periferias.
É nesse contexto que surge o
grupo Racionais Mc’s, formado pela
união entre a dupla Mano Brown (Pedro
Paulo Soares) e Ice Blue (Paulo
Eduardo Salvador) que se intitulavam
como B.B.Boys (Black Bad Boys) com
Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves) e Kl
Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões)
que se intitulavam como Edi Night e Kl
Night e decidiram se juntar para
realizarem o seu primeiro lançamento
7
É importante ressaltar que enquanto Mano
Brown e Ice Blue eram da Zona Sul de São
Paulo, Kl Jay e Edi Rock moravam na Zona
Norte paulistana e que apesar de cada dupla
pertencerem a zonas regionais distantes, se
juntavam a partir dos territórios negros da
região central da cidade, que como destaca
Mano Brown, para os moradores de periferia,
era necessário buscar constantemente as
“luzes da cidade” e este lugar era o centro de
São Paulo, ao qual se destacava a estação do
metrô São Bento que tornou-se ponto de
encontro para os jovens que se identificavam
com a cultura Hip-Hop (Vieira; Santos; 2023, p.
30-33).
8
Vieira e Santos (2023) destacam que o projeto
Consciência Black registra, portanto, o começo
da formação do Racionais MC’s e permitiu ao
grupo realizar diversos shows; dentre as
canções gravadas, “Pânico na Zona Sul”
obteve maior engajamento do público. Vieira;
Santos, 2023, p. 43).
em conjunto
7
na coletânea Consciência
Black
8
, em 1989, ao qual são lançadas
as músicas “Pânico na Zona Sul” e
“Tempos Difíceis”, que futuramente
iriam compor também o primeiro álbum
do grupo Holocausto Urbano (1990)
9
.
O Grupo Racionais MC’s ganha
destaque ao apresentar uma versão
mais contundente do que a maior parte
dos grupos da época e por
transformarem o rap nacional em um
rap mais “abrasileirado” devido a
montagem de suas bases com forte
influência da música nacional e
apresentar duras críticas aos inúmeros
problemas sociais brasileiros (Grecco,
2007). Segundo Ivan dos Santos
Messias (2008),
9
Vieira e Santos (2023) atentam que “nos anos
1980, uma oportunidade de gravação em vinil
era algo muito raro para os rappers. Esse
processo consistia em compor a música, gravar
a demo em fita de rolo, passar para a fita
cassete e, finalmente, gravar o disco. O custo
desse processo era alto, assim cada grupo
gravou apenas uma ou duas músicas para a
coletânea”. Além disso, ressaltam a
importância de Milton Sales para a
consolidação do grupo Racionais Mc’s que ao
ver o potencial do grupo cantando rap os
convidou para gravar na sua casa e que “a
partir desse projeto da coletânea, foi Sales
quem dividiu o que era político e o que não era
na música rap e começou a divulgar as
produções. A partir disso, resgata as falas de
Kl Jay que afirma que Milton Sales participou
da pré-história dos Racionais, ainda antes de
compor o grupo, ele dava a direção”. (Vieira;
Santos, 2023, p. 43).
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transformações da cultura ")
[...] as canções de rap,
especialmente dos Racionais
MC’s, expõem o mundo
específico: racismo, violência
policial constante, extermínio
etno-físico e orgulho negro. [...]
As composições de Hip-Hop
exumaram o sujeito oculto,
silenciado, esquecido
(Messias, 2008, p. 38).
Além disso, eles se destacam
por, ao longo de 30 anos de carreira,
possuírem uma alta quantidade de
projetos lançados como o álbum
Holocausto Urbano (1990), o EP
Escolha seu Caminho (1992), além dos
álbuns Raio X do Brasil (1993),
Sobrevivendo no Inferno (1997), Nada
como um Dia após o Outro Dia (2002)
e o mais recente Cores e Valores
(2014). Ademais, são também um dos
poucos grupos formados na década de
90 a se manterem ativos, com a mesma
formação inicial e relevância através de
seus shows e projetos individuais e
coletivos.
Em tempos recentes, o grupo
Racionais Mc’s vem ganhando
destaque nos espaços formais de
educação através do reconhecimento
de sua importância enquanto
pensadores críticos e com isso,
adentraram nesses espaços através da
inserção da letra de suas músicas em
vestibulares como o Enem e como obra
obrigatória no vestibular da
Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), além de que o grupo
receberá pela mesma instituição o título
de Doutor Honoris Causa (2025).
Entretanto, apesar de notadamente
serem reconhecidos pelo seu caráter
contestador acerca da sociedade, é
através do álbum Sobrevivendo no
Inferno (1997) que o grupo se destaca
perante à academia, como o exemplo
da escolha da UNICAMP para o seu
vestibular ser este álbum, ou mesmo a
vasta análise das músicas desse álbum
através de artigos, dissertações e
teses, o que causa o apagamento de
seus outros projetos, como é o caso do
álbum Raio X do Brasil, que demanda a
ampliação e aprofundamento na sua
análise e estudo por parte do(a)s
pesquisadores(as) da cultura Hip-Hop.
Desta forma, percebe-se que o
álbum Raio X do Brasil (1993) marca o
grupo Racionais Mc’s de diversas
formas, seja a partir de uma ascensão
social através do rap ao conseguir
consolidá-lo enquanto uma profissão e
se manter economicamente através
disso, seja o alcance nacional com
suas músicas que se tornaram
clássicos do rap. É necessário então
refletir acerca dos impactos que esse
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
álbum tem para a sociedade, de forma
a pensar sobre alguns pontos que o
grupo destaca em suas músicas.
O objetivo geral deste trabalho é
analisar as letras do grupo Racionais
Mc’s e pontuar o seu caráter contra
hegemônico enquanto difusor de
perspectivas críticas em meio a um
contexto social e histórico de sua
época. Os objetivos específicos se
pautam na observação de que, esse
álbum, seria uma forma de demarcar a
efetivação do direito da liberdade de
expressão, como citado na faixa
“Introdução”. Outro ponto de análise é
identificar as críticas realizadas pelo
grupo enquanto “fraturas expostas” e o
diálogo que essas perspectivas têm
com o pensamento decolonial.
Devido a sua expressão no
movimento Hip-Hop a partir dos seus
raps, este trabalho se propõe a fazer
um estudo exploratório a partir da
análise das letras do álbum Raio X do
Brasil de forma a buscar entender as
perspectivas expostas nesse álbum,
bem como identificar as relações que o
projeto tem com o contexto ao qual foi
lançado. Supõe-se que o álbum Raio X
10
D’Andrea (2017) cita dados recolhidos do
PRO-AIM, SIM Sistema de Informação sobre
do Brasil está inserido em um contexto
com perpetuações de ideais coloniais
reexposto através da ditadura e que
devido a isso é possível notar
denúncias nas músicas, de forma a
perceber os efeitos da colonialidade em
corpos negros e periféricos.
Raio X do Brasil e a década de 1990
Os anos 1990 são marcados por
um período de extrema violência às
periferias e pessoas negras, além de se
destacar pela desigualdade social entre
as classes sociais brasileiras, com um
avanço de políticas neoliberais que não
contemplavam as camadas populares
no país. A violência era tanta que
D’Andrea (2017) afirma que nos bairros
da Zona Sul de São Paulo os índices de
assassinatos eram próximos aos de
países em guerra civil. Nos anos 1990,
o bairro do Jardim Ângela era
considerado o mais violento do mundo
e junto com o Capão Redondo e o
Jardim São Luís foi denominado como
“o triângulo da morte”
10
. a respeito
da questão econômica nos anos 1990,
Brettas (2007) analisa os dados
Mortalidade, Município de São Paulo a partir do
trabalho de Telles (2012).
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transformações da cultura ")
apresentados por Mattoso (2001) e
identifica que
Um balanço da década de 1990
nos permite analisar os efeitos
da adoção do receituário
neoliberal que começa no
início da década e ganha força
e expressão em 1994, com a
implementação do Plano Real
para o Brasil. O desempenho
econômico desta década foi
menor se comparada ao de
qualquer outra década do
século XX, inclusive a década
de 1980, conhecida como a
“década perdida” (Brettas,
2007, p. 5)
Além disso, o autor descreve
que apesar de haver o controle da alta
inflação na década de 90, é notável que
[...] a instabilidade econômica
articulada à queda da
atividade, produziram efeitos
extremamente danosos para
os níveis de emprego e renda.
Qualquer que seja a
metodologia adotada, o
desemprego aumentou
substancialmente. (Brettas,
2007, p. 5).
Já Aguiar (2011) aponta que
[...]durante a cada de
noventa, temos um processo
de flexibilização das leis
trabalhistas, e a CLT
(Consolidação das Leis do
Trabalho) passa a ser vista
pelos neoliberais como
empecilho para as relações
trabalhistas e principalmente
como obstáculo na geração de
empregos. (Aguiar, 2011, p. 8).
Sob essa perspectiva, Brettas
(2007) complementa que além da falta
de empregos, ocorre na cada de 90
a perda na qualidade de empregos, o
que gera
[...] O crescimento do emprego
temporário, parcial, em
domicílio, informal, e outras
tantas formas de expressão da
precariedade das condições de
trabalho, ganhou força. Este
fato contribuiu para fragilizar e
desarticular a organização dos
trabalhadores, além de criar um
ambiente favorável para a
intensificação destas
mudanças. Um movimento de
mútua influência que vem
deteriorando as condições de
vida de um número cada vez
maior de pessoas. (Brettas,
2007, p. 5).
Campos (2015) apresenta dados
que demonstram que a pobreza
permaneceu como um fator marcante
na década de 1990 no Brasil, afinal
[...] entre 1992 e 1993, o
número de indivíduos
considerados “pobres” (com
renda domiciliar per capita
inferior à linha de pobreza)
aumentou de 58,9 para 60,9
milhões. Entre 1993 e 1995,
diminuiu de 60,9 para 51,8
milhões. Entre 1995 e 2003,
por conta da variação na
dimensão da população,
aumentou de 51,8 para 61,8
milhões sendo assim, o maior
número da série.” (Campos,
2015, p. 30).
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
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transformações da cultura ")
É possível aferir que a
desigualdade econômica foi um ponto
marcante na década de 1990 e
acompanha a trajetória do grupo
Racionais Mc’s que, afirmam em
entrevista realizada pelo canal Red Bull
Station (2017) que é apenas a partir do
sucesso com o álbum Raio X do Brasil
(1993) que eles conseguem realmente
transformar o rap como sua profissão
11
,
o que tornou o rap como uma
alternativa para a ascensão social em
um período marcado pela
desigualdade.
A partir do álbum Raio X do
Brasil (1993) o grupo Racionais Mc’s
amplia sua difusão a âmbito nacional
12
,
conquistando hits com faixas como
“Fim de semana no parque” e “Homem
na Estrada”, que demonstram uma
11
Vieira e Santos (2023) destacam que essa
mudança causou estranhamento para o
grupo”, pois o objetivo deles não seria a fama
ou que tivessem suas músicas tocando nas
rádios, mas sim que o princípio seria “tocar no
coração dos pretos para falar com eles”, pois
viam suas produções como um “trabalho social
do rap.
12
Vieira e Santos (2023) ressaltam que através
do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) a faixa
“Homem na Estrada” do álbum Raio X do Brasil
chegou ao Senado Federal durante uma
sessão da Comissão de Constituição e Justiça
a respeito da redução da maioridade penal e
que esta foi utilizada como argumentação para
que o político protestasse contra a proposta de
diminuir a idade mínima para a prisão.
alteração de postura do grupo que,
segundo Acauam Oliveira (2018)
13
.
a multiplicidade de vozes e
olhares oferece uma
percepção mais densa da
realidade periférica ao conferir
à dispersão das experiências
particulares fragmentárias um
sentido geral de coletividade
(Oliveira, 2018, p. 29).
O Raio X do Brasil e as fraturas
expostas
A premissa deste trabalho é de
que ao analisar as letras do álbum Raio
X do Brasil encontrar-se-á “fraturas
expostas” referentes aos resquícios de
colonialidade e os seus efeitos que
continuam em atuação na sociedade.
Em sua faixa “Introdução”, o Grupo
atenta-se ao mantenimento do direito
de liberdade de expressão, muitas
vezes negado nas periferias e aos
sujeitos periféricos, sendo suas
13
Oliveira (2018) apresenta a ideia de que “a
partir de Raio X do Brasil o Grupo vai
apresentar uma mudança radical de postura. O
ponto de vista particular dos rappers deixa de
ser o elemento principal em canções como
“Pânico na Zona Sul” e “Mano na porta do bar”
para se tornar apenas uma das muitas
perspectivas possíveis, criando um mosaico de
vozes e olhares contraditórios entre si. A obra
se torna essencialmente aberta, apresentando
perspectivas que são confrontadas da forma
mais complexa possível e assumindo um
modelo épico de representação narrativa,
conforme definido por Walter Garcia (Oliveira,
2018, p. 29).
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
músicas uma forma de exercer esse
direito ao expor a realidade das
periferias e a violência ao qual estão
submetidos. A partir disso, o álbum é
iniciado pelos versos:
1993! Fudidamente voltando!
Racionais! Usando e abusando
da nossa liberdade de
expressão. Um dos poucos
direitos que o jovem negro
ainda tem nesse país. Você
está entrando no mundo da
informação,
autoconhecimento, denuncia e
diversão. Este é o Raio-X do
Brasil, seja bem-vindo
(Racionais Mc’s, 1993)
Primeiramente, é preciso
ampliar a ideia de Liberdade de
Expressão, afinal apesar do grupo ter
liberdade para lançar suas músicas
contestando a desigualdade social e o
racismo no Brasil diferente da época
da Ditadura, em que a censura impedia
qualquer manifestação crítica a esse
regime , o grupo passou por episódios
de censura na realização de seus
shows, como aponta Vieira e Santos
(2023)
Ao narrar a violência do braço
armado do Estado (as polícias)
em tom de revolta, explicitando
a reação dos rappers com o
racismo institucional
enfrentado cotidianamente, o
grupo chama a atenção das
autoridades, em especial da
Polícia Militar, e passa a ser
alvo de perseguições (Vieira;
Santos, 2023, p. 56-57).
Devido a isso, as autoras
destacam o que ocorreu no ano de
1994, em que o Racionais Mc’s foram
presos durante sua apresentação no
evento Rap do Vale”, realizado em São
Paulo, no Vale do Anhangabaú,
acusados de estimularem a violência.
Dessa forma, é necessário repensar se
a liberdade de expressão é de fato “um
dos poucos direitos que o jovem negro
ainda tem nesse país” (Racionais Mc’s,
1993), pois, quando expressadas suas
críticas, tiveram sua liberdade cerceada
e nesse período o grupo ficou marcado
por constantemente ser “criminalizado
pela mídia e pelas forças de segurança
por denunciar as formas de violência,
exclusão e abandono em que estavam
submetidas as pessoas negras, pobres
e periféricas” (Vieira; Santos, 2023, p.
56).
As autoras apontam que o grupo
era noticiado pela mídia hegemônica de
forma estigmatizada como “os jovens
que falam de crime, de drogas, de
violência e que enunciam palavrões”
(Vieira; Santos, 2023, p. 57) , ou seja, a
forma que eram lidos pela mídia era a
da ignorância, apesar de estarem
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
utilizando sua música, como uma forma
de expor um “Raio X do Brasil” a partir
da “informação, autoconhecimento,
denuncia e diversão” (Racionais Mc’s,
1993), o que representa também outro
fator que se distancia de uma liberdade
de expressão plena, afinal, suas ideias
estavam sendo deturpadas de forma a
gerar a sua deslegitimidade enquanto
pensadores negros e periféricos.
Dentre os principais
apontamentos presentes no álbum
Raio X do Brasil, Vieira e Santos (2023)
ressaltam que “o foco do grupo são as
trajetórias e experiências de vida na
periferia e os temas são segregação
espacial e urbana, violência,
encarceramento, autovalorização,
capitalismo, poder, ganância, crime,
conflitos e morte” (Vieira; Santos, p.
56). Ao adentrarmos na análise da
música “Fim de semana no Parque”,
notamos as críticas ao capitalismo em
que o grupo expõe a discrepância entre
um fim de semana comum nas
periferias da favela em relação a de
famílias com melhores condições
14
Boaventura de Sousa Santos (2009)
caracteriza o fascismo social como sendo “um
regime social de relações de poder
extremamente desiguais que concedem à parte
mais forte o poder de veto sobre a vida e o
financeiras. Isso fica explícito no verso
abaixo:
A número 1 em baixa renda da
cidade. Comunidade zona sul
é, dignidade. Tem um corpo no
escadão, a tiazinha desce o
morro. Polícia a morte, polícia
socorro. Aqui não vejo nenhum
clube poliesportivo. Pra
molecada frequentar, nenhum
incentivo. O investimento no
lazer é muito escasso. O centro
comunitário é um fracasso.
Mas aí, se quiser se destruir
está no lugar certo. Tem bebida
e cocaína sempre por perto
(Racionais Mc’s, 1993).
Essa situação descrita pelo
grupo é o que Boaventura de Sousa
Santos (2009) entende como efeitos da
colonialidade a partir da ascensão do
fascismo social
14
e ao relacionar com
este caso, se apresenta sob a forma de
apartheid social, que trata da
“segregação social dos excluídos
através de uma cartografia urbana
dividida em zonas selvagens e zonas
civilizadas” (Santos, 2009, p. 37). A
partir disso,
[...] a divisão entre zonas
selvagens e zonas civilizadas
está a transformar-se num
critério geral de sociabilidade,
um novo espaço-tempo
hegemônico que atravessa
modo de vida da parte mais fraca.” (Santos,
2009, p. 37).
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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todas as relações sociais,
econômicas, políticas e
culturais e que, por isso, é
comum à acção estatal e à
acção não-estatal”. (Santos,
2009, p. 37).
Logo, é possível perceber que
os efeitos da colonialidade dialogam
entre si pela manutenção desse
sistema de dominação, ao passo que a
segregação social se faz presente a
partir da dominação pelo capitalismo e
escolhe se fazer mais presente a partir
das perspectivas raciais e coloniais
cujo alvo se encontra o povo negro e
periférico.
A música “Mano na porta do bar”
escancara os efeitos do capitalismo na
sociedade e expõe uma de suas
atuações, que é a partir da ilusão em
virtude de superar as questões éticas e
morais do ser humano em prol de tentar
alcançar bens pessoais para que assim
seja possível alcançar a felicidade.
Rachel Sciré (2023) ressalta que nessa
música “o MC se apresenta como uma
“testemunha ocular” da transformação
de um mano respeitado em traficante e
homicida, e o foco narrativo permanece
na terceira pessoa” (Sciré, 2023, p.
319). Essa faixa conta a história de um
homem comum, que possuía amigos,
tentava ajudar as pessoas ao seu
redor, tinha poucos bens como um
carro antigo e tinha uma mulher
apaixonada por ele, ou seja, uma vida
tranquila e feliz, porém devido a sua
ambição entrou para a venda de drogas
e caiu na ilusão da ostentação, ao
passo que sua única preocupação se
tornou fazer mais dinheiro
independente do que fosse necessário
ser feito e a consequência disso é que
ele acaba sendo assassinado, como
aponta os versos:
Ele é feliz e tem o que sempre
quis. Uma vida humilde, porém
sossegada. Um bom filho, um
bom irmão. Um cidadão
comum, com um pouco de
ambição [...] A lei da selva
consumir é necessário.
Compre mais, compre mais,
supere o seu adversário! O seu
status depende da tragédia de
alguém. É isso, capitalismo
selvagem! Ele quer ter mais
dinheiro, o quanto puder [...]
Você viu aquele mano na porta
do bar? Ele mudou demais de
uns tempos para cá... Cercado
de uma de tipo estranho,
que promete pra ele o mundo
dos sonhos. Ele está diferente,
não é mais como antes. Agora
anda armado a todo instante.
Não precisa mais dos aliados
[...] A lei da selva é traiçoeira,
surpresa! Hoje você é o
predador, amanhã é a presa.
(Racionais Mc’s, 1993).
É possível notar em evidência os
efeitos do Racismo enquanto forma de
dominação social ao analisarmos a
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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transformações da cultura ")
faixa Homem na Estrada
15
. Essa
música conta a história de um jovem
adulto que acaba de ser liberado da
prisão e tem a intenção de mudar de
vida e sair do crime. O rapaz, desde a
infância está inserido na criminalidade,
porém agora que é mais velho, não
quer que o filho passe pelas mesmas
coisas. Apesar de ter cumprido sua
pena, ele ainda é marcado como um ex-
presidiário, o que dificulta que o
protagonista de fato siga adiante. E é
justamente pelo seu passado, que o
protagonista é julgado pela sociedade
como culpado de um assassinato ao
qual não investigação sobre isso,
apenas o preconceito social que gera a
execução dele pela polícia, ao qual os
rappers ressaltam na música ser algo
“planejado”, de forma a se manter o
ciclo, em que futuramente o filho desse
homem executado acabaria entrando
na criminalidade por não enxergar outra
forma de ascensão social, como
destacado no trecho “Se eles me
pegam, meu filho fica sem ninguém. É
15
Rachel Sciré ressalta que “em “Homem na
Estrada”, quinta faixa do mesmo disco, o foco
narrativo oscila entre a primeira e a terceira
pessoa para contar a história de vida de um ex-
presidiário. (Sciré, 2023, p. 319).
16
Djamila Ribeiro (2018) conta em entrevista
para o lançamento do livro Sobrevivendo no
Inferno que em sua docência numa escola
o que eles querem: mais um pretinho na
FEBEM”
16
(Racionais Mc’s, 1993).
A partir disso, podemos concluir
que a perspectiva que o grupo
Racionais Mc’s expõe nas letras
mencionadas dialoga com a ideia de
“colonialidade” ao qual Aníbal Quijano a
configura como
um dos elementos constitutivos
e específicos do padrão
mundial do poder capitalista.
Sustenta-se na imposição de
uma classificação racial/étnica
da população do mundo como
pedra angular do referido
padrão de poder e opera em
cada um dos planos, meios e
dimensões, materiais e
subjetivos, da existência social
quotidiana e da escala societal.
(Quijano, 2000, p. 73)
Logo, nota-se que há uma
relação direta entre o Capitalismo e o
Racismo enquanto força de opressão
voltada para a manutenção da
colonialidade, ao passo que esta busca
exercer poder sobre classes pré-
selecionadas como é o caso do povo
negro periférico , de forma que
[...] a colonialidade do poder, tal
como foi conceitualizada por
pública de periferia, utilizou a faixa “Homem na
Estrada” presente no álbum Raio X do Brasil
para realizar sua aula de filosofia e a partir disso
gerou-se uma análise crítica sobre a música, no
qual não só ocorreu uma participação da turma
que se interessou pela atividade, mas também
a dedicação ao refletir sobre uma realidade que
eles se identificavam.
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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transformações da cultura ")
Quijano, é a chave analítica
que permite visualizar o espaço
de confluência entre a
modernidade e o capitalismo,
bem como o campo formado
por essa associação estrutural.
(Quintero; Figueira e Elizalde,
2019, p. 5-6)
É preciso ressaltar também a
faixa “Juri Racional”, que retoma o
caráter julgador presente desde o
primeiro disco do grupo. Essa música
simula um júri em que o acusado está
sendo julgado por negar sua
ancestralidade, negritude e de servir
como instrumento para que a
branquitude exerça o racismo sem
reações. Apesar disso, é destacado a
necessidade de se aceitar como negro
e trabalhar a autoestima do povo preto,
através dos versos:
Você não tem amor próprio,
fulano! Nos envergonha, pensa
que é o maior. Não passa de
um sem-vergonha em seus
atos! Por si define sua
personalidade, mas é a
inferioridade que você sente no
fundo. aos racistas imundos
razões o bastante, pra
prosseguirem nos fodendo
como antes” [...] Do que valem
roupas caras, se não tem
atitude? Do que vale a
negritude, se não pô-la em
prática? A principal tática,
herança de nossa mãe África!
A única coisa que não puderam
roubar! Se soubessem o valor
que a nossa raça tem, tingiam
a palma da mão pra ser escura
também! (Racionais Mc’s,
1993)
É possível compreender que o
grupo está preocupado em ampliar as
perspectivas acerca do orgulho e
identidade negra. É um enaltecimento a
ser negro, em constraste aos efeitos
que o racismo têm enquanto forma de
dominação social. Além disso, para
além da identificação, ressalta-se
também o “por em prática a negritude”
como uma forma de incentivar a
militância negra, ao passo que dialoga
com as ideias trazidas por Neusa
Santos Souza (1983) com a ideia de
“Tornar-se negro” em que a autora
ressalta que “saber-se negra [...] é
também, e sobretudo, a experiência de
comprometer-se a resgatar sua história
e recriar-se em suas potencialidades.”
(Souza, 1983, p. 17-18). Sendo assim,
“Independente dos modos de
compreender o sentido da prática
política, seu exercício é representado
para o negro como o meio de recuperar
a auto-estima, de afirmar sua
existência, de marcar o seu lugar.”
(Souza, 1983, p. 44).
Dessa forma, ao ressaltar a
necessidade de se reconhecer como
negro e ter orgulho de sua negritude, o
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ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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transformações da cultura ")
grupo busca auxiliar os ouvintes a
retomar sua autoestima como pessoa
negra. A partir disso, Prado (2020)
relaciona o rap com a perspectiva de
Tlostanova (2014) como uma ruptura
com a estética normativa ocidental de
forma que:
Tlostanova (2014) defende que
a ruptura com a estética
normativa ocidental é crucial
para a emergência de novas
experiências e sujeitos no
campo da arte. Na sua
perspectiva, o surgimento de
uma estética decolonial que,
nos parece, é também
promovida pelo rap permite
exercer uma remodelação
subjetiva do lugar dos sujeitos
no mundo, na qual se “[...] Trata
de curar uma mente y alma
colonizadoras, libertando a la
persona de complexos de
inferioridade coloniales, y
permitiéndole sentir que ella
también es un ser humano con
dignidad, que también es
valiosa como es” (Tlostanova,
2014 apud Prado, 2020, p. 148)
Considerações finais
É possível concluir que o álbum
Raio X do Brasil lançado pelo grupo
Racionais Mc’s em 1993 é altamente
relevante para se compreender o
contexto histórico ao qual estavam
inseridos e ampliar a reflexão dos
ouvintes acerca da desigualdade social
e a perpetuação do racismo em
diferentes esferas. Confirmou-se que
apesar de o grupo mencionar a
efetivação no direito à liberdade de
expressão a partir do lançamento do
álbum, esse direito não se afirma em
toda a sua concretude, afinal ainda que
as músicas do grupo não tenham sido
censuradas, houveram perseguições
pela mídia que utilizavam de estigmas
para deslegitimar suas perspectivas
críticas acerca da sociedade e também
pela polícia ao ponto de ocorrer a prisão
do grupo em 1994.
Outro fator relevante que
pudemos perceber é que a partir da
análise das letras desse álbum,
notamos um diálogo com as
perspectivas decoloniais acerca da luta
Anticapitalista e Antirracista, ao qual
constantes menções sobre os
problemas do capitalismo e do racismo,
além do incentivo para que os ouvintes
se rebelem contra essas formas de
opressão, de tal maneira que ao utilizar
sua música como uma forma de
rebelar-se contra os efeitos da
colonialidade, o grupo expõe “fraturas
expostas” da sociedade que vão de
encontro com as críticas realizadas
pelo pensamento decolonial e a
perpetuação dos efeitos da
colonialidade que se mantém ainda na
atualidade. Sendo assim, é notório a
163
ANJOS, Lucas [dos]; RODRIGUES, José Roberto. Racionais Mc’s e a
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importância que o grupo Racionais
Mc’s possui enquanto pensadores
críticos e a força contra hegemônica
que suas músicas possuem frente à
Colonialidade.
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