
Ano I nº 1 - julho 2011
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Editora:
Flávia Lages
LABAC-UFF - Laboratório de Ações Culturais / Universidade Federal Fluminense
Diagramação:
Ubirajara Leal
Comitê executivo:
Luiz Augusto F. Rodrigues
João Domingues
Ítalo Bruno Alves
Comissão editorial:
Adair Rocha (UERJ e PUC-Rio/Comunicação Social)
Adriana Facina (UFF/História)
Ana Enne (UFF/Estudos de Mídia)
Gizlene Neder (UFF/História)
Lia Calabre (Fundação Casa de Rui Barbosa)
Lilian Fessler Vaz (UFRJ/Arquitetura e Urbanismo)
Luiz Guilherme Vergara (UFF/Produção Cultural)
Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez (Universidad de Antioquia/Colombia)
Mónica Bernabé (Universidad Nacional de Rosario/Argentina)
Wallace de Deus Barbosa (UFF/Produção Cultural)
LABAC - Uff
Laboratório de Ações Culturais
PARCEIROS:
REALIZAÇÃO:
APOIO:
Já há algumas décadas, os deba-
tes em torno de definições sobre cultura
deixaram de ser feitos majoritariamente
no âmbito das discussões antropológicas.
Se mesmo antes da antropologia
afirmar-se enquanto disciplina a partir da
segunda metade do século XIX havia
discussões importantes nesse sentido, o
que se observou posteriormente foi uma
centralização, nessa disciplina, das
discussões que se preocupavam com defi-
nições do termo. Certamente havia deba-
tes importantes em outras áreas; mas elas
tiveram impacto menor tanto para a teoria
antropológica, como para o entendimento
do mundo social em outros contextos. Foi
só a partir da década de 1960, que outras
elaborações sobre cultura tiveram implica-
ções para própria antropologia, especial-
mente com os estudos culturais ingleses e
com o orientalismo saidiano.
Foi também a partir desse momen-
to – com movimentos anteriores, certa-
mente – que a própria noção de cultura
expandiu-se de modo a ser operada por
outros agentes em suas práticas de traba-
lho. Nesse contexto, a qualificação “cultu-
ral” passou a ser utilizada de muitas
maneiras, com objetivos distintos, tanto
no mundo acadêmico como entre gesto-
res públicos e cada vez mais em outras
esferas do cotidiano.
Seria possível pensar essas articu-
lações a partir do surgimento de novos
agentes socialmente reconhecidos. Se é
possível, por exemplo, explicar que a
ascensão da juventude como força social
na década de 1960 fez com que as práti-
cas políticas fossem orientadas nesse
sentido, talvez seja igualmente importan-
te pensar como tecnologias de governos
fazem com que certas coletividades
surjam como agentes sociais significati-
vos. Dito de outro modo, não há como
dissociar esse surgimento como coletivi-
dade representativa das próprias ações
de governamentalidade – em sentido
foucaultiano (2008, especialmente aula
de 1 de fevereiro) – que as reconhecem e
atuam para e a partir delas.
A própria emersão do cultural
como qualificador se liga a uma série de
tecnologias de governo que atuaram de
modo sistêmico também nesse contexto.
Não por acaso essa ascensão do cultural
– ou a virada cultural, como propõe Jame-
son (2006) e uma série de outros autores
– pode ser compreendida como um movi-
mento onde operaram agenciamentos
diversos em distintos âmbitos: na acade-
mia, na produção intelectual, na adminis-
tração pública, nas ações de agências
internacionais, etc.
As elaborações discursivas que
acompanham esses agenciamentos
reportam-se a inúmeros conceitos de
cultura, parte significativa importada da
antropologia de modo mais ou menos
frouxo. Uma questão que parece ter sido
deixada de lado nesses processos é uma
característica fundamental de boa parte
dos conceitos antropológicos de cultura:
eles são operativos. Isso significa que,
mais do que uma abstração conceitual, a
cultura serviu para justificar e embasar um
método central para antropologia: a etno-
grafia. Reconhecer essa ponderação é
central, pois – e não se está tratando aqui
de se está falando de características que
seriam basilares para construção de – e
reflexão sobre – práticas e não apenas
para justificativas de ações em curso.
São muitos os processos, tanto
elaborados por sujeitos individuais como
por agentes institucionais da administração
pública e do setor privado, que, se estão
acompanhados do “cultural” como adjeti-
vador, não parecem preocupados com as
implicações do uso do termo a partir de
uma definição do que seria cultura.
A gestão cultural, como saber e
prática, pode ser pensada devedora
desse contexto. A indústria cultural e do
entretenimento já podem ser encontradas
amadurecidas na primeira metade do
século XX; mas um profissional que se
reconheça como “gestor cultural” é um
fenômeno relativamente recente, que
data mais ou menos da década de 1980
(Bonet et al., 2006).
É com esse quadro que este texto
dialoga. Seu objetivo central, nesse senti-
do, é expor três autores centrais para
Antropologia contemporânea – Geertz,
Sahlins e Barth –, dando ênfase para a
maneira como seus conceitos de “cultura”
foram elaborados para dar conta de suas
práticas de compreensão do mundo
social, notadamente através do trabalho
etnográfico. Em outro momento, será con-
ceituada a gestão cultural a partir dessas
reflexões, explorando algumas implica-
ções políticas de sua prática a partir dessa
reconceptualização.
Geertz, Barth e Sahlins são da
mesma geração; nasceram, respectiva-
mente, em 1926, 1928 e 1930. Participa-
ram de momentos cruciais para formação
da Antropologia contemporânea e repre-
sentam, contudo, tradições intelectuais
bastante distintas. Geertz, graduado em
Filosofia, doutorou-se em Harvard no
pioneiro departamento de relações sociais
criado por Parsons; Barth, por sua vez,
graduou-se em Ciências Sociais na Uni-
versidade de Chicago, em um momento
extremamente importante da Escola, e foi
orientado por Edmund Leach em seu dou-
torado em Cambridge; Sahlins, de seu
lado, fez a graduação em Psicologia na
Universidade de Michigan e o doutorado
na Universidade de Colúmbia, sob orien-
tação de Julian Steward.
Em comum, tem o fato de terem
passado por mudanças intelectuais ao
longo de suas carreiras. A mais drástica é
a de Sahlins, que abandona um paradig-
ma neo-evolucionista a favor de um cultu-
ralismo estruturalista. Geertz troca as
discussões sobre sociedades campone-
sas por uma antropologia interpretativa
não mais diretamente relacionada a esse
tipo de debate. E Barth, num movimento
de continuidade, passa a preocupar-se
mais com a questão dos significados e
identidades, ao passo que anteriormente
dedicava-se ao estudo de sistemas políti-
cos – tema no qual esse tipo de discussão
não era tão central, apesar de presente. O
texto que se segue se organiza a partir de
metáforas explicativas da cultura utilizadas
pelos autores: teia, em Geertz; corrente,
em Barth; e estrutura, em Sahlins.
TEIA
Em “Uma descrição densa”, Clifford
Geertz define seu projeto para Antropolo-
gia: uma nova abordagem em que o fazer
antropológico tomaria um viés interpreta-
tivo. O autor utiliza um conceito semiótico
de cultura, assumindo uma inspiração
weberiana. Em suas palavras: “o homem
é um animal amarrado a teias de significa-
dos que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo essas teias e sua
análise; portanto não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa à procura de
significados” (GEERTZ, 1978 A, p. 15).
O autor pressupõe que a definição
de uma ciência seria possibilitada através
do que fazem os seus praticantes; no
caso da Antropologia, etnografia – que o
autor supõe ser método exclusivo da
disciplina. A partir de um exercício de
identificação de afazeres no processo de
construção da etnografia, Geertz postula
que o esforço intelectual representado no
trabalho deste tipo seria marcado por uma
descrição densa, que fosse capaz de
entender como os diversos significados
são hierarquizados nas diferentes situa-
ções; deste modo, o esforço da descrição
densa seria possibilitar
uma hierarquia estratificada de estru-
turas significantes em termos das
quais os tiques nervosos, as piscade-
las, as falsas piscadelas, as imitações
são produzidos percebidos e interpre-
tados, e sem os quais eles de fato não
existiriam (nem mesmo as formas
zero de tiques nervosos as quais,
como categoria cultural, são tanto
não-piscadelas como as piscadelas
são não-tiques), não importa o que
alguém fizesse ou não com sua
própria pálpebra (Op. Cit., p.17).
Os dados etnográficos, nesse con-
texto, seriam escolhas feitas pelo antropó-
logo entre as construções simbólicas
empregadas pelos nativos. Nesse sentido,
não haveria como chegar a uma realidade
propriamente, mesmo nos dados – em
tese – livres de explicações ou interpreta-
ções. Esse tipo de dados possivelmente
não existe; o antropólogo estaria criando
uma explicação – em todos os momentos
da pesquisa, mesmo os mais iniciais, é
preciso ressaltar – em torno de explica-
ções. Assim, a Antropologia de Geertz
seria caracterizada pelo esforço interpre-
tativo e seu resultado deveria ser entendi-
do como uma ficção – no sentido de que é
uma construção e, portanto, não corres-
ponde, e nem poderia, à realidade de fato.
O trabalho do Antropólogo, deste
modo, estaria centrado na identificação
das estruturas de significação mais
expressivas empregadas pelos sujeitos
estudados, determinando sua base social
e formatando sua hierarquia. Deste modo,
o trabalho antropológico, segundo Geertz,
poderia ser aproximado ao do crítico
literário, que também hierarquiza estrutu-
ras de significados, atribuindo-lhes maior
ou menor importância. Neste contexto, o
que o etnógrafo enfrenta é uma “multiplici-
dade de estruturas conceptuais comple-
xas, muitas delas sobrepostas ou amarra-
das, irregulares ou inexplícitas, e que ele
tem que, de alguma forma, primeiro apre-
ender depois apresentar” (GEERTZ, 1978
A, p. 20). A maneira, entretanto, como
essa hierarquização deveria ser executa-
da não é explicitada pelo autor.
A análise antropológica deve, para
Geertz, ser feita em dimensão microscó-
pica. “O antropólogo aborda caracteristi-
camente tais interpretações mais amplas
e análises mais abstratas a partir de um
conhecimento muito extensivo de assun-
tos extremamente pequenos” (Op. Cit., p.
31). Deste modo, para além da represen-
tatividade de uma realidade mais ampla,
ou de uma experiência laboratorial, o
trabalho antropológico deveria ser defini-
do pelo fato de estudar questões socioló-
gicas importantes também para outras
disciplinas, mas em espaços ou grupos
sociais menores.
Nesse sentido,
o locus do estudo não é o objeto de
estudo. Os antropólogos não estudam
as aldeias (tribos, cidades, vizinhan-
ças...), eles estudam nas aldeias.
Você pode estudar diferentes coisas
em diferentes locais, e algumas coisas
– por exemplo, o que a dominação
colonial faz às estruturas estabeleci-
das de expectativa moral – podem ser
melhor estudadas em localidades
isoladas. Isso não faz do lugar o que
você está estudando (Op. Cit., p. 32).
Assim, dá-se ênfase para o que se
estuda. O valor das descrições etnográficas
está no fato de fornecerem à mente
sociológica material suficiente para
alimentar. (...) Os megaconceitos com
os quais se aflige a ciência social
contemporânea – legitimidade,
modernização, integração, conflito,
carisma, estrutura... significado –
podem adquirir toda a espécie de
atualidade sensível que possibilita
pensar não apenas realista e concre-
tamente sobre eles, mas, o que é mais
importante criativa e imaginativamen-
te com eles (Op. Cit., pp. 34-35).
A construção teórico-metodológica
que Geertz propõe tem, portanto, pontos
bem definidos. O modo como o autor a
emprega, contudo, merece considerações.
O trabalho sobre rinhas de galos
em Bali (GEERTZ, 1978 B) pode ser pen-
sado nesse sentido. A construção do
texto é bastante significativa – e dizer que
essa construção é ocasional seria o
mesmo que negar a inteligência de
Geertz –, já que acaba por direcionar a
leitura de modo que a exposição dos
“fatos” seja convenientemente descolada
da análise – que é também uma proposi-
ção teórica. Geertz começa com uma
simpática historieta de campo, onde por
um incidente com a polícia local, o autor
acaba por se esconder com nativos e é
através desta experiência que seu traba-
lho de campo começa efetivamente.
Passa então a uma exposição mais dura
– e, como sempre, muito bem escrita – do
funcionamento das rinhas de galo; e
termina com uma analogia pouco convin-
cente das ideais expostas até então com
a análise de textos. Não fica claro, portan-
to, o porquê do entendimento das rinhas
de galo enquanto texto: a proposição
teórica parece não suportar o embasa-
mento etnográfico – ou o contrário.
O balinês de que trata o texto é
uma espécie de ente coletivo genérico.
Geertz supõe que todos os balineses
compartilham dos mesmos significados; e
não dá espaço para que a briga de galos
seja experimentada de formas diferentes
por diferentes pessoas. Uma faceta cultu-
ral de algum modo tomada como repre-
sentativa de outros; uma polifonia trans-
formada em uníssono; a briga de galos
como representativa do balinês. A análise
de Geertz faz a vida do balinês parecer
centrada nas brigas de galos. Sem negar
a importância que essa prática possa ter,
sua inserção no contexto cotidiano mais
amplo não é explorada pelo autor, resul-
tando numa interpretação hermética.
Seu trabalho sobre senso comum
(GEERTZ, 2000), por outro lado, eviden-
cia o modo como o autor compreende o
mundo social; no texto fica claro um des-
colamento entre sociedade e cultura,
entendidas como sistemas distintos. A
influência de Parsons é importante nessa
situação. “The Social System”, obra do
sociólogo publicada pela primeira vez em
1951, trabalha exatamente por uma visão
do mundo social em três domínios distin-
tos: o social, o da personalidade e o cultu-
ral (ver PARSONS, 1979). A essa divisão
correspondia uma divisão do trabalho
entre sociólogos, psicólogos e antropólo-
gos. Exatamente durante a década de
1950, Geertz realizava seu doutorado no
departamento de relações sociais da Uni-
versidade de Harvard (ver HANDLER &
GEERTZ, 1991), criado por Parsons.
Essa segmentação do mundo social
acompanhou todo essa construção mais
ampliada do pensamento de Geertz.
Nesse contexto, para além de defi-
nições mínimas essencialistas – como na
busca por formas elementares de caracte-
rísticas que nos são próprias – deve-se
entender as maneiras singulares que
cada cultura possui em seus processos de
sistema; precisam-se verificar, assim, as
estratégias de sistematização dentro da
sociedade em si mesma.
É com essa perspectiva que Geertz
pretende analisar o senso comum, ou
seja, como sistema cultural deliberada-
mente estabelecido; ou ainda, como um
corpo organizado de pensamento delibe-
rado. O que contraria a idéia central surgi-
da do pensamento advindo do senso
comum, que se pretende como opinião
resgatada diretamente da experiência e
não de reflexões deliberadamente elabo-
radas acerca destas experiências.
Opera-se, assim, “uma distinção entre
uma mera apreensão da realidade feita
casualmente e uma sabedoria coloquial,
com pés no chão, que julga ou avalia esta
realidade” (GEERTZ, 2000, p. 115).
O bom senso, com isso, precisa ser
visto – do mesmo modo que todo sistema
cultural – como construção e sujeito a
padrões de juízo definidos.
Em suma, é um sistema cultural,
embora nem sempre muito integrado,
que se baseia nos mesmos argumen-
tos que se baseiam outros sistemas
culturais semelhantes: aqueles que os
possuem têm total convicção de seu
valor e de sua validade. Neste caso,
como em tantos outros, as coisas têm
o significado que lhes queremos dar
(Op. Cit., p. 116).
Uma definição básica do senso
comum seria aquilo que o “homem
comum pensa quando livre das sofistica-
ções vaidosas dos estudiosos” (Idem). O
bom senso, nesse contexto, teria uma
capacidade categorizante e, como tal, em
alguma medida estigmatizadora. “O bom
senso não é aquilo que uma mente livre
de artificialismo apreende espontanea-
mente; é aquilo que uma mente repleta de
pressuposições conclui” (Ibidem, p. 127).
Uma análise transcultural do senso
comum só seria possível em termos esti-
lísticos. Existiria, assim, para além do que
diz respeito ao conteúdo, características
do bom senso observáveis nas diversas
culturas; seriam a naturalidade, praticabili-
dade, leveza, não-metodicidade e acessi-
bilidade. Não se trataria, portanto, de uma
sistematização do conteúdo, tarefa impos-
sível por definição, mas “evocar o som e
vários sinais que são geralmente reconhe-
cidos como pertencendo ao senso
comum” (Ibidem, p. 141).
Essas questões geertzianas aqui
apresentadas – cultura como uma teia de
significados, apreensão de práticas cultu-
rais como textualidades e análise socioló-
gica a partir de sistemas – são centrais
para visão da cultura como operadora de
práticas. De um lado, temos a definição
de um universo simbólico que circunscre-
ve as preocupações antropológicas; de
outro se tem um método para dialogar
com esse universo e interpretá-lo, a textu-
alização; e por fim, a divisão do mundo
social em sistemas é operadora de um
cercamento de domínios, que, se pensa a
cultura em relação ao social e individual,
reserva para o trabalho antropológico a
atuação central a partir de apenas um
desses domínios.
CORRENTE
Em entrevista concedida a
Robert Anderson, Fredrik Barth fez a
seguinte afirmação:
Look at this landscape [vista da janela
de sua casa em Oslo], I mean, all the
trees that fortuitously… the seeds
have dropped there, then they aggre-
gate together and create a situation,
that yes, you can characterize it by
abstract structural things, but it hasn’t
been generated by those abstractions.
It has been generated by elemental
processes where each event is pretty
fortuitous. That fascinates me; I think
its much more fun than to abstract until
you have something that is intellectu-
ally clean and exaggerated. And much
less able therefore to handle time and
change (ANDERSON; BARTH, p. x-xi).
A visão que Barth possui do mundo
social caminha nessa direção. Para além
das formulações que buscassem seu
enquadramento, de modo a desvendar
apenas uma série de regularidades, a
dimensão que interessa ao autor é a que
leva em conta o caráter fortuito da vida
cotidiana. Ao invés de excluir o que
pudesse comprometer uma harmonia
analítica, Barth interessa-se pelos proces-
sos; pela interação entre as questões
mais rasteiras do dia-a-dia e o constrangi-
mento de certas instituições sociais:
Methodologically, I believe the key
element to be the focus on efficient
causes: the cultural and interaction
enablements and constraints that
affect actors, with consequences that
can be seen in the patterning of resul-
ting acts and their aggregate entail-
ments. In this way, the micro-level
where most of our anthropological
observations are located and the
macro-level of institutional forms and
historical processes, can be integra-
ted. (BARTH, 1990, p. 651).
A análise cultural, nesse contexto,
deveria levar em conta a matriz mais
ampla de processos com a qual se liga; as
questões culturais não podem ser enten-
didas como sendo destacados da dimen-
são material e das realidades objetivas,
do mesmo modo como essas últimas
dimensões isoladamente não podem ser
entendidas como explicativas. Barth,
seguindo o que chama de uma confluên-
cia entre correntes intelectuais divergen-
tes, acredita que as realidades das pesso-
as são culturalmente construídas. O autor,
entretanto, vai além ao pontuar que os
padrões culturais são resultados de
processos culturais específicos, e que
como tal podem ser identificados.
As abordagens estruturalistas e
interpretativistas, das quais Barth discor-
da, “servem como meio para que seus
atores consigam evitar todos os aspectos
problemáticos do mundo que nos cerca;
reafirmam silenciosamente o pressuposto
de que a cultura apresenta uma coerência
lógica generalizada, sem explorar a exten-
são e a natureza dessa coerência”
(BARTH, 2000, p. 110).
Não se trata, entretanto, de afirmar
que não haja padrão nos comportamentos
humanos. A proposta do autor é a busca
por diversos padrões parciais e aparente-
mente conflitantes que colaboram na con-
formação de certo quadro sociológico. A
coerência, nesse sentido, deve sempre
ser alvo de desconfiança.
Nesse contexto, é necessário que
se compreenda o trânsito dos indivíduos
entre os diversos universos discursivos,
que se interpenetram, sobrepõem,
excluem. Deste modo, a construção
cultural da realidade não vem de uma
fonte única; ao contrário, precisa-se
pensar na interação de diversas tradi-
ções culturais – de origens diversificadas
e nem sempre determináveis – que cola-
boram na formatação dessa realidade.
Uma visão plural pode ser possibilitada a
partir da análise através de “correntes de
tradição cultural”
1
,
cada uma delas exibindo uma agrega-
ção empírica de certos elementos e
formando conjuntos de características
coexistentes que tendem a persistir ao
longo do tempo, ainda que nas vidas
das populações locais e regionais
várias dessas correntes possam
misturar-se (Op. Cit., p. 123).
Barth entende que para identifica-
ção desse tipo de corrente, que represen-
tariam a coerência na cultura, é necessá-
rio que o pesquisador se volte para as
questões empíricas e, conseqüentemente
para os processos sociais. Deste modo, o
trabalho analítico não é produtivo quando
se perde em abstrações formais; em
primeiro plano deve-se procurar o modo
de operar de cada um desses componen-
tes culturais, empregando “metaphors of
process, focused activity, marginal
change, cumulative transformation, and
above all think more imaginatively in terms
of determined models of formative, gene-
rative processes (BARTH, 1990, p. 652)”.
Essa proposta parece ainda mais
interessante, segundo o autor, quando o
antropólogo estuda sociedades diferentes
da sua. Essa perspectiva foi, por exemplo,
importante para o trabalho de Barth em
Bali, pois “o conjunto das imagens luxurian-
tes do bali-hinduísmo parece basear-se em
premissas e epistemologias diferentes
das nossas, e conseqüentemente é difícil
rastrear e compreender sua existência se
ela for abstraída de um contexto de práxis
social” (BARTH, 2000, p. 125).
O conceito de cultura com o qual
trabalha Barth é, deste modo, também de
natureza semiótica, ao passo que as corren-
tes de tradição cultural são entendidas
como universos discursivos que comparti-
lham certos significados. A ênfase, entretan-
to, é para os significados em uso, de modo
que o entendimento de como operam é
fundamental para uma reconceptualização
da cultura. “Desse modo, devemos ser
capazes de identificar as partes envolvidas
nos discursos que se dão, e ‘o segmento do
processo do mundo infinito e sem sentido
sobre os quais elas conferem significado e
sentido’” (Op. Cit., pp. 127-128).
O lugar do significado na teoria
cultural de Barth, nesse contexto, é funda-
mental e o autor faz observações impor-
tantes com relação a sua compreensão. A
primeira delas é a de que o “significado é
uma relação”; assim, para além de algo
cristalizado enquanto expressão cultural,
trata-se de uma relação entre observador
e o signo. O significado, desta maneira,
deve ser visto como algo atribuído, de
modo que só pode ser entendido na rela-
ção do ator e de um fragmento de cultura
com as experiências e conhecimentos
desse ator específico.
Outro ponto explorado por Barth é o
fato da “cultura ser distributiva”, ou seja,
seu compartilhamento não é absoluto.
Atores diferentes têm acessos diferentes
às estruturas significativas; algumas
vezes, “as estruturas mais significativas da
cultura – ou seja, aquelas que mais conse-
qüências sistemáticas têm para os atos e
relações das pessoas – talvez não estejam
em suas formas, mas sim em sua distribui-
ção e padrões de não-compartilhamento”
(BARTH, 2000, p. 128).
No mesmo sentido, os atores
devem ser pensados como estando
sempre posicionados. Deste modo, para
além da relação entre vivência individual,
cultura e contexto, deve-se atentar para o
modo como os significados operam e dife-
renciam relações entre os atores. Barth
recomenda que, para além do diálogo
com os nativos, os antropólogos dêem
importância para os diálogos entre os
próprios nativos. Seria revelado, assim,
que os diferentes atores compreendem
o mesmo evento de maneiras distintas,
de acordo com a posição que ocupam
em determinada situação sociológica.
Barth ressalta, por fim, que os
eventos não podem ser entendidos em
termos de intenções individuais de
atores individuais; ao contrário, eles
seriam resultado do jogo entre causalida-
de e interação social. Trata-se, portanto,
da faceta fortuita da ação social, que
ressalta seu caráter dinâmico, que opera
por meios processuais. “Precisamos incor
-
porar ao nosso modelo de produção da
cultura uma visão dinâmica da experiência
como resultado da interpretação de even-
tos por indivíduos, bem como uma visão
dinâmica da criatividade como resultado
da luta dos atores para vencer a resistên-
cia do mundo” (BARTH, 2000, p. 129).
É importante termos, em mente, a
partir de Barth, o caráter dinâmico da
cultura, de maneira que suas interlocu-
ções consigam se estabelecer em termos
processuais. Por outro lado, é central
reconhecer algumas das dimensões dos
significados compartilhados que com-
põem a cultura: eles são distributivos, de
modo que nem todos os agentes de deter-
minada situação social elaboram interpre-
tações coincidentes; no mesmo sentido, é
importante ter em mente de que um indiví-
duo se relaciona com certa porção de
cultura a partir de categorias anteriormen-
te estabelecidas; e, por fim, os significa-
dos precisam ser pensados como rela-
ções entre observador e signo.
ESTRUTURA
Em “Cultura e Razão Prática”,
Sahlins explora a noção de que para além
de uma razão prática – uma visão utilitária
da ordem social que teria na maximização
de relações meios-fins com intuito de
manutenção da população humana ou da
ordem social seu pilar explicativo –, existe
uma razão de natureza simbólica ou signi-
ficativa. Toma, deste modo,
como qualidade distintiva do homem
não o fato de que ele deve viver num
mundo material, circunstância que
compartilha com todos os organismos,
mas pelo fato de fazê-lo de acordo
com um esquema significativo criado
por si próprio, qualidade pela qual a
humanidade é única. Por conseguinte,
toma-se por qualidade decisiva da
cultura (...) não o fato de essa cultura
poder conformar-se a pressões mate-
riais, mas o fato de fazê-lo de acordo
com um esquema simbólico definido,
que nunca é o único possível. Por
isso, é a cultura que constitui utilidade
(SAHLINS, 2003, pp. 7-8).
O trabalho de Sahlins tem por ques-
tão central o fato de estruturas simbólicas
estarem presentes nas utilidades materiais.
Bastante erudita, a obra é um diálogo, prin-
cipalmente, com o marxismo e o estrutura-
lismo, afirmando os caracteres localizados
culturalmente do último e historicamente do
primeiro. Se o projeto de Sahlins soa
pretensioso – já que acaba por formular
uma espécie de meta-teoria que pudesse
de algum modo abarcar e localizar os ímpe-
tos das duas correntes teóricas citadas –, a
maneira como o autor conduz o texto e a
solidez da bibliografia que utiliza servem
para contrabalançar a sensação. A emprei-
tada intelectual a que se propõe é, portanto,
admirável e justifica-se no sucesso obtido
pelo trabalho – amplamente citado, debati-
do e editado. Há que se criticar, entretanto,
o modo pouco cuidadoso como o autor faz
generalizações e como compara situações
etnográficas bastante distintas.
O foco da teoria de Sahlins é o
debate entre o prático e o significativo,
que seria determinante para as ciências
humanas de modo geral. Aos debates
acerca das diversas relações entre o obje-
tivo e o subjetivo, a Antropologia, de seu
lado, proporia algo diferente: “um terceiro
termo, a cultura, não simplesmente
mediando a relação humana com o
mundo através de uma lógica social de
significados, mas compreendendo através
daquele esquema os termos objetivos
e subjetivos relevantes da relação”
(SAHLINS, 2003, p. 9).
É nesse contexto que o conceito de
significado se mostra pertinente para
Sahlins, pois a cultura deve ser entendida
como “ordens de significado de pessoas e
coisas” (Idem). O autor propõe que essas
ordens de significado são sistemáticas – e
não emanações caóticas do espírito
humano – e que o papel do antropólogo
seria desvendar esse sistema. É deste
modo que pretende desautorizar a idéia
de que os costumes seriam meras expres-
sões fetichizadas das utilidades materiais
da ordem social.
Os significados das ações huma-
nas seriam formatados como projeções
do esquema cultural que as sustentam
num contexto específico; os efeitos da
ação, portanto, seriam dados por uma
relação de significação entre essa refe-
rência pontual – a ação – e a ordem exis-
tente – a estrutura –, de modo que o
evento pode ser entendido como catalisa-
dor de uma relação simbólica. E é no des-
dobramento do evento que, a partir da
ação, a estrutura pode sr modificada.
O significado, nesse contexto, não
cria as forças materiais reais, mas,
na medida em que estas são empre-
gadas pelo homem, o significado
cinge-as e governa sua influência
cultural específica. Não se trata,
então, de dizer que as forças não têm
efeito real; simplesmente que elas não
têm um efeito particular e também
nenhuma existência cultural efetiva
fora de sua integração em esquema
simbólico e histórico dado. A mudança
começa com a cultura, não a cultura
com a mudança (Op. Cit., p. 31).
Sahlins reelabora questões do
estruturalismo para estudar cultura e
história: “sincrônico a princípio, ele [o
estruturalismo] oferece a análise racional
mais elevada para o estudo da diacronia”
(Op. Cit., p. 29). É curioso que as idéias
colocadas por Sahlins aqui pareçam mais
palatáveis do que em seu trabalho poste-
rior, notadamente “Historical Metaphors
and Mythical Realities” (1981). Em “Cultu-
ra e Razão Prática”, as colocações são
feitas como apreciações do Estruturalis-
mo, e não exatamente em termos apolo-
géticos. Digo “exatamente” porque
Sahlins ocupa um grande número de pági-
nas fazendo uma reinterpretação estrutu-
ralista – de sucesso dentro do que propõe
– de um trabalho anterior. Mas a questão
da história, apesar de presente na avalia-
ção teórica, não está presente na
re-análise dos dados etnográficos. Se no
trabalho de 1981 Sahlins pretende expli-
car um evento passado, a prova a que
coloca a teoria é, no caso de “Cultura e
Razão Prática”, menos ardilosa.
De qualquer modo, quando
perguntado sobre sua experiência na
França com Lévi-Strauss, Sahlins faz as
seguintes observações:
I
mpossible to summarize what I
learned in 1968–9 in Lévi-Strauss’s
Laboratoire at the Collège. Allow me to
epitomize: In 1969 I gave a seminar at
the Labo on certain traditional systems
of trade in Australia and Melanesia,
prefaced by the disclaimer that I was
no structuralist, as I was not talking
about the exchange of women or
words but of real-practical material
infrastructure – the analysis of which,
in any case, Lévi-Strauss had already
conceded to Marx. In the discussion,
Lévi-Strauss claimed that I was after
all a structuralist, since what I had
demonstrated in these material
exchanges corresponded to certain
structures of marital exchange he had
described in The Elementary Forms of
Kinship. I protested by citing the
passage in La Pensée Sauvage where
he says that structuralism is specifi-
cally a science of the superstructures.
‘True’, he replied, ‘but you have to
understand that I learned my anthro-
pology at the feet of Franz Boas and
Robert Lowie, who were speaking with
reservation Indians about the customs
of past generations’ – ‘the archaeology
of the living’, he called it. ‘Nobody was
paying attention to the current exis-
tence of the Indians. But now’, he said,
‘we have to extend structuralism to the
infrastructures’. I replied that I thought
his restriction of structuralism to the
superstructures was a matter of scien-
tific principle, so I had to ask, ‘Just what
is structuralism?’ ‘Énfin’, he said, ‘c’est
la bonne anthropologie’. Of course,
on those terms I agreed I was a
structuralist (SAHLINS, 2008, p. 322).
Com relação ao marxismo, a preo-
cupação de Sahlins era dialogar com o
materialismo histórico enquanto articulador
metodológico para a Antropologia. O con-
tato com diversas culturas trouxe outras
realidades sociais, em que a questão
material era menos central – assim como o
uso do marxismo parecia ser enquanto
ferramenta teórica. Uma dessecação
estrutural da vida social – a clássica dicoto-
mia superestrutura e estrutura – parecia
pouco útil ao trabalho antropológico: não
só é difícil diferenciar nessas sociedades
os aspectos materiais dos sociais – não
que seja fácil na sociedade ocidental... –,
como o interesse prático do homem na
produção é uma construção simbólica, e
esse interesse é completamente imbricado
na lógica material. O próprio capitalismo
pode ser entendido, portanto, através de
um sistema simbólico construído.
Pode-se dizer que se a produção
reflete o esquema geral da sociedade, ela
não está senão se olhando no espelho.
Mas seria dizer a mesma coisa, e de uma
forma que não descarta o entendimento já
estabelecido do nosso próprio sistema e
permite a comparação com os outros,
observar que na cultura ocidental a eco-
nomia é o lócus principal da produção
simbólica. Para nós, a produção de mer-
cadorias é ao mesmo tempo o modo privi-
legiado da produção simbólica e de sua
transmissão. A singularidade da socieda-
de burguesa não está no fato de o sistema
econômico escapar à determinação sim-
bólica, mas em que o simbolismo econô-
mico é estruturalmente determinante
(SAHLINS, 2003, p.209).
Sahlins acaba, portanto, por moti-
var uma visão do marxismo como auto-
consciência crítica da sociedade capitalis-
ta, fazendo da verdade do materialismo
histórico ela própria histórica. E o modo
como estabelece o diálogo entre a ques-
tão simbólica e a ordem material é rele-
vante; dizer que a produção estrutura as
relações sociais exatamente por ser o
centro da produção simbólica na socieda-
de moderno-capitalista representou um
passo importante para construção de uma
visão não-unívoca da sociedade moderna.
Tem-se, assim, uma teoria cultural
que está centrada em ordens de significa-
do. Estaria em jogo, na análise cultural, a
identificação de dinâmicas entre eventos e
estrutura, gerando novas categorias para
ordem simbólica. Por outro lado, é central
em sua análise a maneira como identifica
certos centros de produção simbólica, que
nas sociedades moderno-contemporâneas
seria a própria ordem capitalista.
COMPARANDO TEIAS, ESTRUTURAS E
CORRENTES
Apesar das diferentes ênfases para
conceito, cultura para Geertz, Sahlins e
Barth é traduzível em significados.
As diferenças de ênfase podem ser
vistas no modo como operam analitica-
mente: Geertz pensa em teias de signifi-
cados; Barth utiliza-se de correntes de
tradições culturais que representariam
universos discursivos significativos;
Sahlins pensa em termos de estruturas,
que apesar de não serem definidas de
modo explícito, relacionam-se com signos
e significados.
Geertz, assim, trabalha com signifi-
cados de modo um tanto destacados do
tecido social; sua análise efetivamente,
para além da teoria que propõe, centra-se
em formas culturais particulares – como é
o caso da briga de galos – e sua conexão
com o restante da vida cultural parece não
ser levado em conta. Além disso, o traba-
lho de Geertz entende os significados de
modo unívoco, como se pessoas de uma
mesma cultura partilhassem necessaria-
mente os mesmo significados da mesma
forma. Existe, assim, uma preocupação
com uma forma cultural mínima, onde se
percebe um todo cultural harmônico.
Barth tem interesse pelos proces-
sos mais longos e sua reverberação no
cotidiano imediato; preocupa-se com a
tradição e suas implicações na interação.
Sem ser um interacionista clássico –
apesar de ter estudado em Chicago na
década de 1950 e ter sido colega de
Goffman –, a Antropologia de Barth
desenvolve-se em torno das relações
entre indivíduos. Se existe uma preocupa-
ção entre as tradições que são atribuido-
ras de significados, não é excluído o fato
de que esses significados não são com-
partilhados por todos e que o lugar que
ocupa um indivíduo em determinado
evento é definidor do significado atribuído.
Sahlins, por sua vez, pretende a
elaboração de uma estrutura que pudesse
ser interpretada também diacronicamente.
Os significados, assim, seriam ordenado-
res de coisas ou pessoas em determinada
cultura; e esse processo de ordenação
seria feito através de um esquema simbóli-
co apreensível. A estrutura, portanto,
funcionaria como um contexto para signifi-
cação; e se a estrutura se modifica através
da ação ao longo do tempo, os significados
atribuídos às ações também se modificam.
Sahlins e Barth, assim, possuem
interesse na questão da história. Sahlins
preocupa-se em identificar as mudanças da
estrutura ao longo do tempo: a estrutura na
história; já em Barth, a diacronia apresenta--
se por conta da preocupação que o autor
possui com a tradição cultural enquanto
informadora do presente. Os significados
são construídos ao longo do tempo.
Implícito nas três análises está o
fato de a cultura ser tomada como apreen-
sível; na verdade, essa talvez seja uma
condição da Antropologia. Para além disso,
Geertz propõe que a cultura seja pública –
e Sahlins parece fazer o mesmo. Barth, ao
contrário, entende a cultura como sendo
distributiva, e que o não-pertencimento
seria, na verdade, revelador.
Viu-se, portanto, modos distintos
de trabalhar com as noções de cultura. Se
conceito permeia a análise dos três auto-
res, seus lugares são em absoluto distin-
tos e acabam por serem caracterizadores
das teorias antropológicas propostas por
Geertz, Barth e Sahlins, bem como de
suas visões do universo social e dos
problemas sociológicos com os quais
pretendem dialogar.
LINHAS PARA UMA DEFINIÇÃO DA
GESTÃO CULTURAL
Os modos como os Geertz, Barth e
Sahlins exploram o conceito de cultura
têm uma relação bastante próxima, como
vimos, com as maneiras como compre-
endem a prática antropológica. Nesse
sentido, o horizonte de suas conceitua-
ções é a possibilidade de operar essas
construções conceptuais para a realiza-
ção etnográfica. A partir da retomada das
características centrais dos conceitos de
cultura desses autores, tentar compre-
ender como essas questões podem
ajudar a pensar a gestão cultural é um
exercício interessante.
Sahlins preocupa-se, como vimos,
desvencilhar de um utilitarismo que teria
pouca utilidade para pensar as práticas
culturais. Ou seja, os estudos sobre cultu-
ra não deveriam ocupar-se de entender
questões simbólicas a partir de fórmulas
utilitaristas, focada em ganhos materiais.
O autor consegue estabelecer um diálogo
efetivo entre a questão simbólica e a mate-
rial; entre a maneira como a produção
estrutura as relações sociais exatamente
por ser o centro da produção simbólica no
mundo moderno-contemporâneo.
A gestão cultural, como prática das
sociedades contemporâneas ocidentais,
reside – de maneira mais ou menos direta,
dependendo da largura com que se compre-
ende o conceito – exatamente nesse imbri-
camento entre material e simbólico. Não é o
caso de explicá-la e instrumentalizá-la
somente através de práticas habitualmente
ligadas ao campo material; é necessário
que se consiga articular tanto as dimensões
simbólicas como as utilitárias, articular cultu-
ra e razão prática – já que elas não são
verdadeiramente divisíveis.
Esse é um ponto fundamental para
definição da prática e da formação do
gestor cultural. De um lado, há uma série
de relações que se ligam à áreas mais
duras do conhecimento ou a práticas
socialmente compreendidas como sendo
de natureza puramente administrativa.
Mas de outro há um universo sensível com
o qual o gestor precisa lidar cotidianamen-
te. A feitura dessa mediação, entre mundos
aparentemente distantes, é uma caracte-
rística fundadora da gestão cultural.
Se a cultura é um conceito dinâmi-
co, como propõe Barth, cuja prática coti-
diana é insumo para sua constante cons-
trução, as ciências que se utilizam da
idéia precisam preconizar um trabalho de
apreensão que se reconheça enquanto
interpretação. Da polissemia da cultura
nascem seus múltiplos usos. Cabe identi-
ficar, aqui, como o faz a gestão cultural.
Geertz sugere que a melhor forma de
entender o objeto de uma ciência ou
disciplina é verificar o que os seus prati-
cantes fazem.
Os gestores culturais preocupam-se
com a concepção e distribuição de produ-
tos artísticos, com as políticas públicas
para a cultura, com as dotações de patro-
cínio de empresas, com os trabalhos
sociais culturalmente orientados do tercei-
ro setor; a questão, entretanto, é identifi-
car para onde direciona essa prática, com
que objetivo é feita, privilegiando quais
atores sociais envolvidos no processo.
Pode-se entender a gestão cultural
como aquela que facilita o consumo de
bens culturais, ressaltando a capacidade
de transformação advinda do exercício
crítico incitado por essa prática entre os
envolvidos nesse processo. A questão
nesse caso, entretanto, é definir quais
bens de consumo são culturais, ou
melhor ainda, quais, contemporanea-
mente, não o são – haja vista a argumen-
tação de Sahlins exposta no início do
texto e também a objetificação de Bau-
drillard ou a colonização do imaginário de
Jameson, para buscar amparos teóricos
mais diversificados.
Argumentar, de outro lado, acerca
da preconização do empoderamento dos
beneficiários de uma gestão cultural pode
parecer uma saída; mas se precisa defi-
nir quem são esses beneficiários – já
que podem, virtualmente, variar dos
espectadores de uma peça de teatro aos
acionistas de uma sociedade anônima.
Para além disso, dá poder como? Ou
ainda, o que os empoderados farão com
essa nova – e miraculosa – capacidade
auto-gestão? Em que caminho será
usado esse poder? Isso será estratégia da
gestão cultural proposta?
Existem gestões de produtos artís-
ticos, gestões públicas baseadas em
plataformas políticas, gestões de ONGs
(muitas vezes baseadas, também, em
plataformas políticas...); gestões, enfim,
que lidam de forma mais explícita – é
imprescindível admitir – com mundos de
símbolos criados para serem símbolos.
Admitir-se um gestor cultural, nesse con-
texto, poderia ser uma espécie de filiação,
seria assumir a possibilidade de produzir
ideologia inerente a qualquer prática
social – possibilidade essa que a maioria
dessas práticas pretende esconder: “o
caráter simbólico básico do processo [de
trocas matérias, e portanto sociais] fica
totalmente às escondidas dos participan-
tes” (SAHLINS, 2004, p. 210) – mas com
um objetivo específico.
Toda gestão que se diz cultural,
portanto, pressupõe um posicionamento
político, seja ele de que teor for. Por outro
lado, sua definição é dada enquanto posi-
cionamento que tem por definição a articu-
lação de práticas diretamente ligadas e
socialmente reconhecidas como simbóli-
cas; deliberadamente criadas com tal fim.
A gestão cultural nessa perspectiva
é a prática socialmente reconhecida que
cria as condições de possibilidade – maté-
rias e simbólicas – para que ações, insti-
tuições e projetos que engendram signifi-
cados ganhem um espaço singular nas
experiências humanas.
Se, como vimos, a cultura é forma-
tada por teias de significados e seus
estudos, a gestão cultural não se ocupa
de todas as práticas culturais. Os signifi-
cados socialmente compartilhados per-
meiam nossos cotidianos, são condicio-
nais para vida humana em sociedade.
Mas há momentos em que certos conjun-
tos de significados, sejam eles contidos
numa obra de arte ou num ritual, ganham
um status singular, socialmente estabele-
cido, que os destaca das práticas come-
zinhas cotidianas.
A gestão cultural, deste modo, se
ocupa de criar os meios para que certas
práticas culturais – num universo de signi-
ficados certamente muito mais amplo –
ganhem um espaço singular para certa
coletividade. A gestão cultural, portanto,
se sustenta a partir de critérios social-
mente reconhecidos para operar essa
transposição, do comezinho para o que
deve ser lembrado, visto e/ou dissemina-
do. Nesse sentido, opera para a partir de
um sistema de relações entre pessoas e
instituições, que, articulados, formatam a
produção, a distribuição, o uso e o consu-
mo de algumas dessas práticas, objetos
e ações culturais.
Esse processo de singularizar e
dar status especiais a certas práticas
culturais passam, na maioria das vezes,
por alguma objetivação operada pela
gestão cultural. É nesse sentido que uma
festa cotidiana de certa comunidade pode
ser tomada, num processo de objetivação
que passa por práticas de gestão, como
patrimônio imaterial; ou ainda, mais comu-
mente, integrar certo projeto cultural,
como um festival, por exemplo.
Essas objetivações operadas pela
gestão cultural têm características cen-
trais e recorrências importantes. Podem
ser traduzidas em políticas culturais,
projetos culturais, ações culturais, entre
outras. Uma outra objetivação da gestão
cultural está relacionada a espaços que
são criados com o fim específico de abri-
gar a exposição, disseminação, uso e/ou
consumo de certa prática cultural, os
“espaços culturais”.
Os espaços culturais, por exem-
plo, são assim classificados por serem
alvo de uma agência específica, de esfor-
ços de pessoas e instituições articulados,
para que certa atividade ou atividades
culturais ocorram sistematicamente num
determinado espaço. É importante ter em
mente, contudo, que nos interessam
aqueles espaços culturais que são cria-
dos e mantidos a partir da intervenção de
mecanismos de gestão.
Uma Igreja, por exemplo, pode ser
compreendida como um espaço de natu-
reza cultural, já que é um lugar onde, a
partir de esforços individuais e coletivos,
uma atividade cultural específica ocorre
sistematicamente. Mas uma Igreja só nos
interessa como espaço cultural se for
alvo de intervenções de práticas de
gestão cultural. Assim, uma Igreja que
está passando por um processo de tom-
bamento e restauro ou que é alvo de um
projeto cultural, como a realização de
concertos de música sacra, ou que é visi-
tada periodicamente por conta de sua
relevância arquitetônica, se torna um
espaço cultural passível de gestão cultu-
ral institucionalizada.
A agência objetivadora mais cen-
tral da gestão cultural é, sem dúvidas, o
projeto cultural. Ele é uma articulação
discursiva que medeia a mudança de
status de certo conjunto de significados
para que possam ser reposicionados
numa estrutura simbólica. A partir dele,
têm-se a definição de ações a serem
efetuadas, bem como o tempo, custos,
recursos humanos, necessários para
essa transformação.
Esse processo de reposiciona-
mento coloca em contato inúmeros agen-
tes, tanto gestores culturais como profis-
sionais de outras naturezas. Essas dife-
rentes objetivações que compõem a
gestão cultural são traduzíveis numa divi-
são do trabalho específica. A interpola-
ção mais óbvia é a dimensão do executor
ou idealizador de um projeto e seus
financiadores, sejam eles agentes públi-
cos ou privados. Nesse sentido, um pro-
jeto cultural é o que estabelece parâme-
tros dessa relação em variados aspectos.
E coloca em contato os gestores culturais
responsáveis por esses pólos.
O gestor cultural, deste modo, é o
operador de processos de objetivação
que singularizam certo conjunto de signifi-
cados a partir do contato com outros ges-
tores. Cabe retomar, finalmente, uma
característica central para cultura explora-
da por Barth, seu caráter distributivo.
A partir dessa proposição, temos
que a cultura não é acessada do mesmo
modo por todos os agentes que têm con-
tato com um conjunto de significados.
Barth dá o exemplo de um cortejo fúnebre
que, se é acompanhado por diversas pes-
soas, tem apreensões distintas por cada
uma delas: um familiar do morto tem um
tipo de participação no processo; o
oficiante, outro; um passante relaciona-se
com a situação de maneira diferente.
Nos processos de gestão cultural,
essa proposição tem duas implicações. A
primeira delas diz respeito aos modos
como cada um dos diversos agentes que
são colocados em contato por práticas de
gestão significam suas relações, tanto
entre si como com o produto ou ação
cultural propostos. O segundo ponto se
relaciona à natureza mesma do conjunto
de significados a partir dos quais os gesto-
res culturais atuam inicialmente e transfor
-
mam em alvos de seus projetos culturais.
Singularizar certo conjunto de signifi-
cados faz com que as relações estabeleci-
das com eles sejam também elas
re-significadas. Assim, uma atuação da
gestão cultural para fazer com que uma
festa popular seja transformada em um
festival faz com que as maneiras como essa
era inicialmente vivida seja modificada.
Talvez resida aí uma das questões políticas
centrais das práticas de gestão cultural.
Como propõe Guattari há uma
série de profissionais que têm atuação
vocacionada para modificar os modos
como os sujeitos se relacionam com o
mundo; seriam aqueles mais propícios a
“produção social de subjetividade”. A práti-
ca de gestão cultural, desta maneira,
poderia deve ser pensada como um posi-
cionamento num universo simbólico que
reordena, a partir de objetivações, algu-
mas relações entre sujeitos e o mundo.
Nesse contexto, a ação de um
gestor cultural é situada num universo de
significados já existente – seria possível
pensar a ação cultural, em alguns casos,
na fórmula evento-estrutura-mudança
proposta por Sahlins: um evento é com-
preendido a partir de categorias estruturais
já conhecidas, mas por sua ação a estrutu-
ra pode ser, aos poucos modificada.
Essa questão é central para que o
gestor cultural se assujeite de sua prática
enquanto modificador, mesmo que de
impacto reduzido, dependendo de suas
ações, de estruturas sociais. O reposicio-
namento de certos significados tem impli-
cações para os agentes que já o reconhe-
ciam como tal. Nesse sentido, a prática da
gestão cultural deve ser refletida e, se
pode funcionar como impulsionadora de
certas atuações de modo positivo, pode
também servir apenas para que certos
agentes, institucionais ou não, tirem
proveito de suas práticas sem levar em
conta seus impactos para outros grupos.
A gestão cultural, portanto, parte,
por um lado de um universo cultural
amplo, marcado pelo compartilhamento
de redes de significados; mas por outro,
tem-se a singularização de alguns con-
juntos desses significados através de
objetivações específicas, que se perpas-
sam a ordem material, não devem ser
pensadas como tendo como fim último o
utilitarismo ou o ganho econômico.
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