DOSSIÊ “ECONOMIA POLÍTICA DA INFORMAÇÃO,
DA COMUNICAÇÃO E DA CULTURA”
DOSSIER “POLITICAL ECONOMY OF INFORMATION,
COMMUNICATION AND CULTURE
ARTIGOS
ARTICLES
Apresentação do Dossiê
Dossier’s presentation
ALEXANDRE BARBALHO
Economia Política da Comunicação e da Cultura:
aportes para a formação de um campo disciplinar
Political Economy of Communication and Culture:
contributions to the formation of a disciplinary eld
RUY SARDINHA LOPES
Políticas culturais e de comunicação:
dimensões estratégicas para a reinvenção do Estado
e para a construção de uma democracia intercultural
– Aportes teóricos
Cultural and communication policies:
stratregic dimensions to the state’s reinvention and to the
reconstrution of the intercultural democracy - Theoretical contributions
FAYGA ROCHA MOREIRA
Museus no Brasil: análise socioeconômica de pers
Brazilian Museums: a socio-economic analysis
ANA FLÁVIA MACHADO | NAYARA SOUZA | LARISSA MACHADO
Políticas de comunicação no Brasil:
a proposta de um novo marco regulatório para a
radiodifusão
Communication Policies in Brazil:
the proposal of a new regulation for media broadcasting
CARLOS HENRIQUE DEMARCHI | MARIA TERESA MICELI KERBAUY
Cultura e trabalho imaterial:
música independente e produção cultural
no novo mundo do trabalho
Culture and immaterial labor:
independent music and cultural production
in the new world of labour
ANDRÉ PERALTA GRILLO
Ano VI nº 10 - out/2015 a mar/2016
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
Políticas para o audiovisual no Brasil
(1985-2002):
Estado, cultura e comunicação
na transição democrática
Audiovisual policies in Brazil (1985-2002):
State, culture and communication
in the democratic transition
RENATA ROCHA
Sentindo do nosso jeito:
humores e estudos culturais
Feeling our way: mood and cultural studies
BEN HIGHMORE
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano VI nº 10 - out/2015 a mar/2016
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Isabel Babo - Universidade Lusófona do Porto, Portugal
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano VI nº 10, (OUT/2015 a MAR/2016). – Niterói, RJ: [s. N.], 2014.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário / Summary
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ / DOSSIER’S PRESENTATION
Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura
Political Economy of Information, Communication and Culture
ALEXANDRE BARBALHO 06
DOSSIÊ / DOSSIER 09
Economia Política da Comunicação e da Cultura:
aportes para a formação de um campo disciplinar
Political Economy of Communication and Culture:
contributions to the formation of a disciplinary eld
RUY SARDINHA LOPES 10
Políticas culturais e de comunicação:
dimensões estratégicas para a reinvenção do Estado
e para a construção de uma democracia intercultural – Aportes teóricos
Cultural and communication policies:
stratregic dimensions to the state’s reinvention
and to the reconstrution of the intercultural democracy - Theoretical contributions
FAYGA ROCHA MOREIRA 20
Museus no Brasil: análise socioeconômica de pers
Brazilian Museums: a socio-economic analysis
ANA FLÁVIA MACHADO | NAYARA SOUZA | LARISSA MACHADO 38
Cultura e trabalho imaterial: música independente
e produção cultural no novo mundo do trabalho
Culture and immaterial labor: independent music
and cultural production in the new world of labour
ANDRÉ PERALTA GRILLO 53
5
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Políticas de comunicação no Brasil:
a proposta de um novo marco regulatório para a radiodifusão
Communication Policies in Brazil:
the proposal of a new regulation for media broadcasting
CARLOS HENRIQUE DEMARCHI | MARIA TERESA MICELI KERBAUY 66
Políticas para o audiovisual no Brasil (1985-2002):
Estado, cultura e comunicação na transição democrática
Audiovisual policies in Brazil (1985-2002): State, culture
and communication in the democratic transition
RENATA ROCHA 77
ARTIGOS / ARTICLES 94
Sentindo do nosso jeito: humores e estudos culturais
Feeling our way: mood and cultural studies
BEN HIGHMORE 95
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apresentação do Dossiê
“Economia Política
da Informação, da Comunicação
e da Cultura”
7
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apresentação
O dossiê Economia Política da
Informação, da Comunicação e da
Cultura (EPICC) se insere no conjunto
de atividades que pesquisadores eu-
ropeus e latino-americanos vêm des-
envolvendo para afirmar esse campo
de pesquisa e que tem na União La-
tina de Economia Política da Infor-
mação, da Comunicação e da Cultura
(Unión Latina de Economía Política de
la Información, la Comunicación y la
Cultura, ULEPICC-Federação), cria-
da em Sevilha, na Espanha, no ano
de 2002, sua principal instituição. No
Brasil, os pesquisadores estão filiados
em torno da Seção Brasil da ULEPICC
(http://www.ulepicc.org.br/), fundada
em 2004, em Aracaju, Sergipe, que
realiza bienalmente seu Encontro Na-
cional, atualmente na sexta versão.
Entre as diversas articulações
acadêmicas e institucionais dos pes-
quisadores brasileiros de EPICC, está
a publicação da Revista Eletrônica In-
ternacional de Economia Política da
Informação, da Comunicação e da Cul-
tura (http://www.seer.ufs.br/index.php/
eptic/issue/current/showToc) e a coor-
denação do Grupo de Trabalho na So-
ciedade Brasileira de Estudos Interdis-
ciplinares da Comunicação - Intercom,
onde é possível compreender, a partir
do texto de apresentação do referido
GT, a área de atuação da EPICC. Ou
seja, as problemáticas relacionadas
com a abordagem econômica das ati-
vidades ligadas à Cultura, à Comuni-
cação e à Informação a partir de uma
abordagem interdisciplinar e crítica.
A EPICC entende que análise
não pode se restringir à lógica econô-
mica e/ou tecnológica, pois o social e o
espaço público, em sua multiplicidade,
são fundantes para o dado econômico.
A partir dessa compreensão, o presen-
te dossiê recebeu contribuições que
abordaram a centralidade econômica
e política que a comunicação e a cul-
tura possuem na produção capitalista,
centralidade esta que se revela de di-
versos modos: na transversalidade da
cultura e da comunicação, na conver-
gência tecnológica e na digitalização
dos meios eletrônicos, na expansão
e novas configurações das indústrias
culturais e criativas, na privatização do
conhecimento, no desenvolvimento de
capital intangível, nas culturas digitais,
entre outros modos.
O texto que abre o dossiê, “Eco-
nomia Política da Comunicação e da
Cultura: aportes para a formação de
um campo disciplinar”, é uma impor-
tante contribuição exatamente no sen-
tido de discutir sobre a conformação
da EPICC como um campo disciplinar
a partir de alguns de seus elementos
definidores: a delimitação do campo e
seus objetos de estudo, sua singulari-
dade e seus aportes teóricos.
O segundo texto, “Políticas cul-
turais e de comunicação: dimensões
estratégicas para a reinvenção do
Estado e para a construção de uma
democracia intercultural – Aportes
teóricos”, traz uma reflexão sobre a
centralidade da cultura e comunicação
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
na democracia contemporânea e so-
bre o descompasso, no Brasil, entre
os investimentos e esforços públicos
nessas dimensões estratégicas, o que
dificulta uma pluralidade de trocas
e de visibilidade das diferenças nos
meios de comunicação.
O artigo “Museus no Brasil:
análise socioeconômica de perfis” se
propõe a construir uma tipologia de
museus, utilizando como fonte bási-
ca o Cadastro Nacional de Museus
(CNM) do IBRAM.
No quarto artigo do dossiê, “Cul-
tura e trabalho imaterial: música inde-
pendente e produção cultural no novo
mundo do trabalho”, se discute a re-
lação do produtor cultural com as mu-
danças no “mundo do trabalho” con-
temporâneo a partir de pesquisa sobre
o ramo da “música independente” bra-
sileira contemporânea, focando o caso
da rede “Circuito Fora do Eixo”.
O quinto artigo, “Políticas de
comunicação no Brasil: a proposta de
um novo marco regulatório para a ra-
diodifusão”, analisa a proposta de um
novo marco regulatório para a comu-
nicação no Brasil.
Por fim, o artigo “Políticas para
o audiovisual no Brasil (1985-2002):
Estado, cultura e comunicação na
transição democrática”, discute as po-
líticas culturais para o audiovisual e as
relações entre Estado, comunicação
e cultura no período de transição de-
mocrática no Brasil, entre os anos de
1985 a 2002.
Boa leitura!
Alexandre Barbalho
1
1 Alexandre Almeida Barbalho, Doutor em Comuni-
cação e Cultura, Professor dos PPGs em Políticas
Públicas da UECE e em Comunicação da UFC. Líder
do Grupo de Pesquisa em Políticas de Cultura e de
Comunicação (CULT.COM). Ceará, Brasil. Contato:
alexandrealmeidabarbalho@gmail.com
9
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Dossiê
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Economia Política da Comunicação e da Cultura:
aportes para a formação de um campo disciplinar
Economía Política de la Comunicación y la Cultura:
contribuciones para la formación del campo disciplinar
Political Economy of Communication and Culture : contributions to the
formation of a disciplinary eld
Ruy Sardinha Lopes
I
Resumo:
O presente artigo pretende interrogar-se sobre a conformação da
Economia Política da Comunicação como um “campo disciplinar”
a partir da circunscrição de algunselementos denidores, a saber: a
delimitação do campo e seus objetos de estudo, sua singularidade e
seus aportes teóricos.
Palavras chave:
Economia Política
Campo disciplinar
Aportes teóricos
11
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Resumen:
El presente artículo tiene la intención de indagar acerca de la
conformación de la Economía Política de la Comunicación y la Cultura
como “campo disciplinar” desde algunos elementos denidores: la
delimitación del campo y sus objetos de estudio, sus singularidades y
sus aportes teóricos.
Abstract:
This article he has the claim to wonder about the constitution of the
Political of Communication and Culture as “disciplinary eld” from the
circumscription of some element: the topic limitation of disciplinary eld
and their subject-matter, their singularities and their theoretical supports.
Palabras clave:
Economía Política
Campo disciplinar
Aportes teóricos
Keywords:
Political Economy
Disciplinary eld
Theoretical supports
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Economia Política da Comunicação
e da Cultura: aportes para a formação
de um campo disciplinar
Temos observado, atualmente,
um esforço em se pensar as ciências da
comunicação e suas áreas constituintes
como um campo cientíco ou disciplinar.
Em “apuros” ou “aberto”, só para nos re-
ferirmos a dois importantes teóricos que
recentemente se dedicaram ao tema
II
, o
conceito parece perfeitamente adequa-
do a uma ciência que, devido sua joviali-
dade, ainda não possui paradigmas for-
temente canonizados e se torna, dessa
forma, propícia aos embates epistemoló-
gicos e às disputas entre os indivíduos e
grupos a ela pertencentes.
Tal conceito - de campo- central
na obra de Pierre Bourdieu liga-se ao
que o mesmo denomina de conheci-
mento praxiológico, isto é, à tentativa de
superação do embate objetivismo/sub-
jetivismoa partir da articulação dialética
entre ator e estrutura sociais. Ou seja,
partindo da ideia de que as relações de
interação entre os agentes se dão num
campo onde as posições sociais já se
encontram objetivamente estruturadas
e desigualmente distribuídas (o que im-
plica relações de poder), as práticas so-
ciais são pensadas na relação dialética
entre a interiorização,pelos atores, das
normas, valores sociais e sistemas de
classicação (habitus) e a singularidade
de suas ações que poderia, em última
instância, levar a uma nova partilha do
sensível (Rancière).
Ainda que, como ressalta Renato
Ortiz (1983), a construção bourdieana se
detenha muito mais sobre os processos
de reprodução do que sobre os meca-
nismos de transformação inerentes a um
determinado campo, seu esforço de pen-
sar as ciênciascomo um campo social,
ainda que “relativamente independentes
das pressões do mundo social global
que o envolve” (BOURDIEU, 2004, p.
21), permite pensá-las como um campo
de forças e um campo de lutas por po-
sições hegemônicas. Denido como um
espaço estruturado onde agentes domi-
nantes e dominados lutam por determi-
nado quantum de posicionamento social
(capital social), não só não existe campo
cientíco desinteressado, e o alerta é de
Bourdieu, quanto “os conitos epistemo-
lógicos são sempre, inseparavelmente,
conitos políticos”.
Para que possamos, pois, falar
em campo das comunicações é preciso
que o mesmo se constitua como “espaço
relativamente autônomo, esse microcos-
mo dotado de suas leis próprias” (idem,
p. 20) - e cabe o alerta para o fato de
nas ciências mais jovens essa autono-
mia ainda estar se consolidando – mas
também que o vejamos como espaço
de manifestação de relações de poder,
onde seus pesquisadores, instituições e
subcampos disciplinares como a Econo-
mia Política da Comunicação (EPC), se
constituem como linhas de força em dis-
puta (epistemológica e política) por po-
sições centrais e hegemônicas. Assim,
se caberia aos agentes em posição fa-
vorecida no campo comunicacional lutar
pela conservação da estrutura e de sua
posição, a renovação do campo – tido
como “em apuros” (SODRÉ, 2012) ainda
que provenha necessariamente de seu
interior, só poderá vir de agentes diver-
samente posicionados.
Até que ponto as áreas periféri-
cas como a EPC ou as epistemologias
do sul podem contribuir para uma re-
novação ou para uma visada mais crí-
tica do campo e virem a constituir uma
nova centralidade é uma questão que
o tempo responderá e que não temos,
no espaço desse artigo, condições de
13
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
perscrutar
III
. Nosso objetivo aqui será
verificar, ainda que de maneira preli-
minar, a existência de elementos mí-
nimos que nos permitam falar apro-
priadamente na Economia Política da
Comunicação como um (sub)campo
disciplinar. Seguindo as indicações de
Bourdieu (1983, 2004, 2004a) e José
D´Assunção Barros (2011)
IV
nos dete-
remos, de maneira preliminar e, portan-
to, incompleta, em três categorias que
permitam delimitar a EPC como um
campo disciplinar, ainda que em forma-
ção: 1) a delimitação do campo e seus
objetos de estudo, 2) as propriedades
específicas ou sua singularidade e 3)
os aportes teóricos e metodológicos.
1) Delimitação do campo e objetos
de estudo.
Pierre Bourdieu (1983, p. 127)
assinala que um dos elementos funda-
mentais na constituição de um campo
científico é a capacidade de seus agen-
tes delimitarem um campo de proble-
mas, métodos e teorias que lhes são
inerentes. Já José Barros (2011, p.254)
pontua que a delimitação de um campo
de interesse inclui desde um interesse
mais amplo capaz de definir o campo
como um todo, até um conjunto mais
privilegiado de objetos de estudos e de
temáticas a serem percorridas pelos
seus praticantes.
Assim, se sempre coube à Econo-
mia Política a busca pelo entendimento
dos mecanismos de mudança social e
das transformações históricas, não pres-
cindindo, para tanto, do exame atento do
todo e da práxis sociais, coube à EPC,
pelo menos à sua corrente crítica
V
, des-
lindar às funções macro e microeconô-
micas que a cultura e a comunicação
passam a assumir no processo de acu-
mulação capitalista em seus estágios
monopolista e recente bem como o es-
tudo das relações de poder daí decor-
rentes e, dessa maneira, informar uma
práxis social emancipatória.
Como afirmado na Carta de Bue-
nos Aires
VI
, ao se contrapor ao pen-
samento único, então hegemônico no
continente americano, a ação de inte-
lectuais engajados latino-americanos:
ha creado un marco teórico propio,
interdisciplinar y pertinente para la
comprensión de la realidad actual,
proporcionando un importante instru-
mental de análisis para fundamentar
la acción de los actores sociales no
hegemónicos en el campo de la co-
municación (ULEPICC,2001).
Segundo Herscovici, Bolaño e Mas-
trini (1999, p.10)
El rol de los medios en el proceso de
acumulación del capital – el problema
de las clases sociales, los medios y
la legitimación de la estraticación so-
cial; la relación entre producción ma-
terial y producción intelectual – cons-
tituye la base analítica de la economía
política de la comunicación.
É certo que as definições de um
“campo de interesse” ou dos “objetos
de estudo” de uma disciplina estão
sempre sujeitas a mudanças com o de-
correr do tempo. Somente a título de
exemplo, Mattelart (1999) ressalta que
o interesse inicial sobre o desequilíbrio
dos fluxos de informações entre os pa-
íses desenvolvidos e subdesenvolvidos
da década de 1960 foi substituído, a
partir de 1975, pela reflexão sobre as
indústrias culturais e sobre os cons-
trangimentos encontrados pelo capital
ao se reproduzir a partir da arte e da
cultura. Mais recentemente, superada
a fase de afirmação do Estado-Nação,
incorporam a ideia de sistema-mundo
capitalista, revisando as análises das
14
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
indústrias culturais e da divisão inter-
nacional do trabalho.
Já Vincent Mosco (1996), que
apontou as diferenças regionais entre as
várias escolas – americana, europeia e
terceiro-mundista - vê a EPC como um
grande conjunto de acadêmicos com di-
versicados interesses temáticos: o pa-
pel do estado e os modelos públicos e
privados na construção dos sistemas de
informação, radiodifusão , telecomunica-
ções e, mais recentemente, da internet;
os elos entre a Economia Política da Co-
municação e as economias políticas na-
cionais e globais, a mercantilização das
relações sociais nos Estados Unidos,
a questão do imperialismo cultural e o
papel das comunicações no desenvolvi-
mento econômico do Terceiro Mundo.
A onda neoliberal trouxe ainda
novas demandas- o reequacionamento-
do papel do Estado, a fragmentação e
diversicação do mercado e a multiplici-
dade da oferta, além de outras – que em
grande medida implicaram a renovação
do campo. Mosco aponta ainda para
a emergência de novos temas, muitos
oriundos da contribuição dos Estudos
Culturais: conexões entre produção, dis-
curso e recepção, relacionamento de
poder entre classes, gêneros e raças,
mudanças estruturais nas indústrias de
comunicação, mudanças no mundo do
trabalho, relacionamento entre sistemas
privados, estatais e públicos de comuni-
cação etc. (MOSCO, 1996, p.132-133).
No Brasil, ainda que a análise do
setor de radiodifusão tenha se mostra-
do um “terreno fértil”, às abordagens
da EPC (CABRAL, 2008), com o mere-
cido destaque para as análises semi-
nais de Cesar Bolaño e Valério Brittos,
outras temáticas como as análises do
trabalho informacional, comunicacional
e cultural, as indústrias cinematográfi-
cas e midiáticas, a economia política
da internet, as políticas culturais e de
comunicação e as consequências para
o campo das comunicações e da cultu-
ra do processo de reestruturação capi-
talista se fazem presentes.
2) As propriedades especícas ou a
singularidade
José de Barros adverte que a sin-
gularidade, não obstante sua ligação di-
reta com o “campo de interesses” deve
ser entendida como “o conjunto dos
seus parâmetros denidores, ou como
aquilo que a torna realmente única, es-
pecíca, e que justica a sua existência
em poucas palavras:aquilo que dene
a Disciplina em questão por oposição ou
contraste em relação a outros campos
disciplinares” (2011, p. 256).
Assim, se os objetos de estudo
aventados acima constituem um primei-
ro recorte, partilhado inclusive por outros
“subcampos” teóricos que constituem o
pensamento crítico social e comunica-
cional, a singularidade da EPC reside
na eleição do materialismo histórico,
tal como posto por Marx em sua “críti-
ca à economia política”, como o método
adequado para a apreensão do todo so-
cial e, mais especicamente, das inge-
rências entre os fenômenos culturais e
comunicacionais e o todo social. Como
vem armando autores como Cesar Bo-
laño, Vicent Mosco e Christian Fuchs, a
EPC se constitui como uma teoria mar-
xista da comunicação.
Pensando na singularidade da
EPC em relação às Ciências Econômicas
e Sociais, Alain Herscovici (2003, 2014)
ressalta que ao considerar a cultura e a
comunicação como centrais no processo
de reprodução do capital (e não apenas
como superestruturais, como nas abor-
dagens funcionalistas ou gramscianas
(ao enfatizar suas dimensões ideológi-
15
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cas), a EPC também se diferencia das
análises econômicas tradicionais, tanto
as ortodoxas quanto as heterodoxas,
uma vez que em seu campoos custos de
trabalho não regulam os mercados de
bens simbólicos, donde o caráter espe-
culativo deste setor;os mecanismos de
maximização micro ou macroeconômi-
ca e as posições “naturais” de equilíbrio
assim como o referencial walrasiano da
concorrência pura e perfeita não se veri-
cam (HERSCOVICI, 2014, p. 87).
Se as abordagens econômicas
desses objetos implicam uma renovação
das Ciências Econômicas (idem, p.92), a
interdisciplinaridade
VII
se constitui como
uma de suas especicidades:
A análise não pode se limitar a uma
dimensão especíca, seja ela estética,
sociológica ou econômica; tal análi-
se será obrigatoriamente limitada. No
âmbito de uma abordagem interdis-
ciplinar, essas diferentes dimensões
precisam ser estudadas nas suas es-
pecicidades e nas suas relações de
interdependência. Para evitar cair na
armadilha do reducionismo, a EPC tem
que ser, intrinsecamente, interdiscipli-
nar. Mas a interdisciplinaridade é uma
prática difícil: acredito que não seja
possível dar conta de todas as dimen-
sões de determinados fatos sociais. O
estudocientíco nunca esgota todas
as possibilidades embutidas no real;
conforme preconizava Marx, é preciso
passar do abstrato ao concreto pensa-
do (1972). Certos autores fracassaram
ao tentar estudar todas as dimensões
dos fatos culturais, informacionais e
comunicacionais. (Castells, 1998).
(HERSCOVICI, 2014, p. 94)
Uma empreitada que, segundo
Herscovici, deveria evitar tanto a dis-
persão quanto o fechamento exces-
sivo. Nesse sentido vale o alerta de
César Bolaño:
Poderíamos falar em interdisciplina-
ridade, desde que que estabeleci-
do, de principio,o caráter não eclé-
tico do empreendimento. Assim, a
articulação das diferentes matrizes
teóricas num corpo conceitual uni-
cado ocorre se a incorporação
de cada uma delas, garantindo uma
efetiva ampliação do poder explica-
tivo do eixo teórico central, for pre-
cedida da explicitação de sua com-
patibilidade com ele, detectadas e
expurgadas as incoerências. Assim,
a incorporação, ao eixo básico da
EPC, de elementos teóricos dos Es-
tudos Culturais, por exemplo, pode
ser extremamente extenso, mas não
pode ferir ahierarquia categorial que
dene o trabalho (cultural, no caso)
como elemento central da articula-
ção, sob pena de contaminação do
quadro geral pelo relativismo pós-
-modernista em que tudo se dissolve
(BOLAÑO, 2008, p. 105)
Tal afirmação ressoa as análises
de Bourdieu sobre a “autonomia rela-
tiva” dos campos disciplinares. Para o
sociólogo francês, ainda que se admita
que os campos se interpenetrem e se
inter-relacionem, a autonomia do mes-
mo, sinal de sua maturidade, faz com
que essas contribuições sofram uma
espécie de refração a partir da lógica
interna do mesmo. No caso específico
do campo da Comunicação e da Cultura
são as especificidades do objeto, como
bem notou Cesar Bolaño (2008) ao
analisar a intrincada rede que caracteri-
za o setor da radiodifusão (ou os diver-
sos níveis de abstração que compõe a
análise da realidade social, que requer
tal mediação: “ainda não nos afasta-
mos do núcleo consensual da proble-
mática da comunicação e já passamos
(sem nos afastarmos da EPC) pela An-
tropologia dos Estudos Culturais, ou a
Sociologia de Habermas, Foucault ou
Bourdieu, referências, todas elas, ne-
16
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cessárias para dar conta do nosso ob-
jeto” (BOLAÑO, 2008, p. 105).
3) Aportes teóricos
Um campo se constitui a partir de
certos repertórios teóricos. Segundo Ra-
mon Zallo (2011, p. 19), “não há uma só te-
oria nem tradição da economia política da
comunicação, senão distintas tradições de
economia crítica da comunicação e da cul-
tura”, a saber: a do estruturalismo althus-
seriano, a dos modelos ideologizados e
monistas que reduziam os media a um
sistema de propaganda do poder, aquelas
que tem como eixo central os proprie-
tários e nanciadores, a que considera
as variáveis internas que inuenciam a
informação, desconsiderando a proprie-
dade e o sistema. Devido ao fato, segundo
Zallo, desses 4 modelos não apreende-
rem a complexa relação dos media com
a sociedade e o poder no período em que
vivemos, é preciso acrescentar um quinto
que nutrindo-se da sociologia crítica dos
primeiros estudos culturais ou de Pierre
Bourdieu, ultrapassasse esse décits.
Vicent Mosco, por sua vez, iden-
tica 4 vertentes contemporâneas: a
vertente ortodoxa, de cunho conserva-
dor e assentada nas categorias da eco-
nomia neoclássica, a Institucionalista,
cuja ênfase recai sobre “as amarras ins-
titucionais e tecnológicas que conforma
os mercados de acordo com o poder de
controle das corporações e dos governos
(Fonseca, 2003), a neomarxista, com a
centralidade do trabalho e da divisão in-
ternacional do trabalho e as análises do
capitalismo monopolista. Por m, a quar-
ta tradição, seria representada pela eco-
nomia política feminista e a economia
política ambientalista.
É certo que outras correntes te-
óricas internas à EPC, mais ou menos
liberalizantes, poderiam ser aqui arrola-
das – nesse sentido, poderíamos pensar
a constituição da EPC brasileira, ao tri-
lhar caminhos próprios e em grande me-
dida diferentes das tradições europeias
e estadunidense, como representativa
de outra matriz teórica – entretanto, as
acima apontadas são sucientes para
mostrar o quanto a mesma se constitui
como um campo de disputa – epistemo-
lógica e, portanto, política.
Se, como apontamos anterior-
mente, o materialismo dialético constitui
uma matriz teórica relevante às correntes
mais críticas, sua adoção não está isenta
de críticas
VIII
. A linha de pesquisa inaugu-
ra por Dallas Smyte (1977) e, de alguma
forma, seguida por Herbert Schiller, Mat-
telart e, ainda que por caminhos diversos,
Cesar Bolaño
IX
, entre outros enfatizará a
centralidade dos conceitos de mercado-
ria, exploração e mais-valia na análise
dos fenômenos comunicacionais e bens
simbólicos. Tal centralidade é questiona-
da, entre outros, por Alain Herscovici que,
a partir da tradição francesa (Grenoble),
vê no desenvolvimento mais recente do
capitalismo o esgotamento do potencial
analítico da forma-mercadoria:
É possível contestar esta interpreta-
ção a partir do seguinte raciocínio:
o valor de uso de um bem cultural é
intrinsecamente ligado às especici-
dades do trabalho aplicado neste tipo
de produção. Na linha da escola fran-
cesa do GRESEC de Grenoble, a va-
lorização no mercado se implementa
a partir do trabalho concreto, ou seja,
especico, aplicado na produção, e
não a partir do trabalho abstrato, por
natureza, indiferenciado (HERSCO-
VICI, 2014, p. 88).
Para a superação dessa insuci-
ência, Herscovici sustenta uma aproxima-
ção com a “Nova Economia da Informa-
ção” construída por autores como Akerlof,
Grossman e Stiglitz e de algumas verten-
17
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
tes institucionalistas como os trabalhos de
Veblen e Commons ou de Williamson e
Ostrom (HERSCOVICI, 2014, p. 89-90).
Para além desses embates teóricos
e apoiando-se no pressuposto materialis-
ta de que o ser social determina o pen-
samento e numa ontologia do ser social
que privilegia os processos e as relações
dialéticas entre sujeito e objeto, Vincent
Mosco sustenta que a EPC deva estar ba-
seada numa epistemologia anti-idealista,
antirreducionista e crítica,
A economia política da informação
necessita ser fundamentada em uma
epistemologia realista, inclusiva, cons-
titutiva e crítica. É realista quando re-
conhece a realidade de conceitos e
práticas sociais, desta forma evitan-
do enfoques idealistas e nomotéticos
(que discutem respectivamente ape-
nas a realidade do discurso ou rejei-
tam as premissas de realidade, tanto
de conceitos como de práticas). Par-
tindo deste ponto, a economia política
é inclusiva porque rejeita o essencia-
lismo, que quer reduzir todas as prá-
ticas sociais a uma única explicação
política econômica, favorecendo uma
abordagem que entende os conceitos
como aberturas para a compreensão
do campo social (Resnick e Wolff,
1987). A escolha de certos conceitos
e teorias, em detrimento de outros,
signica que a economia política os
prioriza como instrumentos explicati-
vos úteis e não que sejam armativas
da melhor, ou única, forma de enten-
der as práticas sociais. Além disto, a
epistemologia é constitutiva porque
reconhece os limites das determina-
ções causais- inclusive o pressuposto
deque as unidades de análise social
interagem como um conjunto homogê-
neo e de forma linear - entendendo a
vida social como um conjunto de pro-
cessos mutuamente constitutivos, atu-
ando uns sobre os outros, em está-
gios diversos de formação e com uma
direção e impacto que só podem ser
compreendidos através de pesquisas
especícas. Finalmente, é um enfo-
que crítico porque vê o conhecimento
como produto de interações entre os
diferentes campos de saber e os valo-
res sociais (MOSCO, 1999, p. 105).
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Recebido em 10/01/2016
Aprovado em 08/02/2016
19
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Ruy Sardinha Lopes. Doutor em Filosoa Professor
e pesquisador do Instituto de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo, campus São Carlos.
Pesquisador do Núcleo de Estudos das Espacialida-
des Contemporânea (NEC-USP) e vice-presidente
da Federação Brasileira das Associações Cientícas
e Acadêmicas de Comunicação (SOCICOM). Brasil.
Contatos: rsard@sc.usp.br
II Ver SODRÉ, Muniz. Comunicação: um campo em
apuros teóricos. MATRIZes, ano 5, nº 2, jan./jul., São
Paulo, 2012 e BOLAÑO, Cesar. Campo aberto: para
a crítica da epistemologia da comunicação. Aracaju:
Editora do Diário Ocial de Sergipe, no prelo.
III No tocante à Economia Política da Comunicação
ver, além do referido livro de Cesar Bolãno, Campo
Aberto, LOPES,Ruy S. As mutações do objeto de es-
tudo e a contribuição da EPC para a renovação do
campo comunicacional. In: Osvando J. de Morais..
(Org.). Ciências da comunicação em processo: pa-
radigmas e mudanças nas pesquisas em comunica-
ção no século XXI: conhecimento, leituras e práticas
contemporâneas, São Paulo: Intercom, 2014 e HERS-
COVICI, Alain – Economia Política da Comunicação:
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http://www.seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/84.
Acesso em 15/12/2015.
IV Ao se perguntar sobre os elementos mínimos ne-
cessários para que se constitua efetivamente um cam-
po disciplinar, José D’Assunção Barros identica 10
dimensões: 1) o seu campo de interesse, 2) a sua Sin-
gularidade, 3) os seus campos Intradisciplinares, 4) o
seu padrão discursivo, 5) as suas metodologias, 6) Os
seus aportes teóricos, 7) as suas interdisciplinarida-
des, 8) os seus interditos, 9) a sua “rede humana”, 10)
o “olhar sobre si” estabelecido a certa altura de seu
amadurecimento (BARROS, 2011, p.265).
V Podemos identificar também no interior da EPC a
coexistência de linhas de força plurais e em disputa,
como observado por diversos autores (ver Gording
e Murdock (2000), Mosco (2011), McChesney (2000)
e que, como apontamos em outra ocasião (LOPES,
2014) foram sintetizadas por José Marques de Melo
(2013,p.15) em duas correntes de pensamento: “uma
‘pragmática’, catalisando as abordagens mais sinto-
nizadas com a preservação do sistema econômico
hegemônico na sociedade – e outra ‘crítica’, mais
preocupada em problematizar as estruturas vigentes,
quase sempre inspiradas ou influenciadas pelo mar-
xismo” (MELO apud LOPES, 2014, p. 603). É a esta
segunda linha que vamos nos referir, sobretudo por
ser a base da EPC produzida no Brasil.
VI Em maio de 2001, um grupo de pesquisadores reu-
nidos no Primeiro Encontro de Economia Política do
Mercosul , em Buenos Aires, lançam a Carta de Bue-
nos Aires, documento fundacional da Unión Latina de
Economia Política de la Información, la Comunicación
y la Cultura, formalizada no ano seguinte, em 2002, na
cidade de Sevilha. Ver ULEPICC (2001).
VII José D’Assunção Barros (2011) observa que toda
disciplina está mergulhada na Interdisciplinaridade,
quer por se constituir na disputa com outros campos já
estabelecidos, devendo demonstrar sua potencialida-
de diante dos mesmos, quer enriquecendo-se a partir
do diálogo com campos distintos.
VIII Mattelart e Mattelart (1999) mostraram o quanto
a teoria da dependência e do sistema mundo capita-
lista (Wallenstein), fundamentais para o desenvolvi-
mento da EPC latino-americana já representavam, à
sua época, uma crítica interna a certos pressupostos
do Marxismo.
IX Ainda que no caso desse autor, a análise da “mer-
cadoria audiência” se dê a partir de uma crítica interna
às análises de Smythe. Ver a esse respeito BOLAÑO
(1995,p.21).
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Políticas culturais e de comunicação: dimensões estratégicas para
a reinvenção do Estado e para a construção de uma democracia
intercultural – aportes teóricos
Políticas culturales y de comunicación: dimensiones estratégicas para
la reinvención del Estado y para la construción de una democracia
intercultural – aportes teóricos
Cultural and communication policies: stratregic dimensions to
the state’s reinvention and to the reconstrution of the intercultural
democracy - Theoretical contributions
Fayga Rocha Moreira
I
Resumo:
Reetimos sobre a centralidade da cultura e comunicação no jogo
político democrático e sobre o descompasso, no Brasil, entre os
investimentos e esforços públicos nessas dimensões estratégicas,
cenário que diculta uma dinâmica mais plural de troca e de visibilidade
das diferenças nos meios de comunicação. Sustentamos que essa
desigualdade representacional gera impactos na construção de uma
democracia realmente intercultural.
Palavras chave:
Políticas culturais
Políticas de comunicação
Democracia intercultural
21
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Discutimos acerca de la centralidad de la cultura e de la comunicación en
el juego político democrático y acerca del desacuerdo entre los esfuerzos
publicos para la cultura y para la comunicação en Brasil, escenario que
diculta una dinámica más plural de intercambio y de visibilidad de
las diferencias en los medios de comunicación. Sostenemos que esa
desigualdad de representaciones genera impactos en la construción de
una democracia realmente intercultural.
Abstract:
We reected on the centrality of culture and communication in
the political and democratic context. Furthermore, we discuss the
imbalance, in Brazil, between the investments and public efforts in these
strategic dimensions, which makes impossible a scenario more plural
and the visibility of the differences in the mass medias. Argue that this
inequality representational generates impacts on the construction of a
truly intercultural democracy.
Palabras clave:
Políticas culturales
Políticas de comunicación
Democracia intercultural
Keywords:
Cultural policies
Comunication policies
Intercultural democracy
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Políticas culturais e de comunicação:
dimensões estratégicas para a
reinvenção do Estado e para a
construção de uma democracia
intercultural – Aportes teóricos
Aportes teóricos sobre as políticas cul-
turais e de comunicação como dimen-
sões estratégicas para a reinvenção do
Estado e para a construção de uma de-
mocracia intercultural
A cultura e a comunicação, tal qual
as entendemos, são dimensões essen-
ciais para a construção de uma democra-
cia intercultural que realmente dê conta
das diferenças e de sua participação ativa
nos processos de decisão e construção
de políticas públicas. Como essas duas
dimensões participam de forma recípro-
ca da construção da realidade social e do
mundo vivido, no atual contexto histórico,
as inovações no âmbito das comunica-
ções produzem transformações nas ma-
neiras de pensar, na produção e recepção
das culturas e, também, da política.
Dito de outro modo, graças à ca-
pilaridade com que as tecnologias de
informação e comunicação penetram na
vida cotidiana, elas causam um impacto
na transmissão, veiculação e fruição das
culturas. Assim, as possibilidades de diá-
logo intercultural no mundo contemporâ-
neo estão cada vez mais atreladas à pro-
dução e difusão de conteúdos via meios
de comunicação.
As tecnologias de comunicação e
informação, então, podem servir de ins-
trumentos para a expressão e articulação
da pluralidade cultural e para a descoloni-
zação do pensamento. A questão das tec-
nologias da informação e comunicação,
contudo, não deve ser pensada desde um
ponto de vista que entenda apenas o aces-
so como condição para o “progresso” dos
grupos subalternizados, vistos em muitos
momentos apenas pela ótica da carência
e da desliação. Isso soaria como uma
nova estratégia de colonização por meio
de uma perspectiva cultural que entende o
acúmulo de informação ou sua produção
desenfreada como critério para mensurar
o desenvolvimento da humanidade.
O que estamos argumentando é
que o acesso à criação, distribuição, exi-
bição e fruição a representações plurais
construídas sobre ou por grupos culturais
diversos é uma estratégia política para ca-
minharmos rumo a uma democracia inter-
cultural. Mas como pensar a possibilidade
de um diálogo intercultural entre a plurali-
dade de grupos culturais no contexto lati-
no-americano sem cair em um idealismo
esvaziado em vista da desigualdade do
acesso à produção e difusão de conteú-
dos culturais no panorama de concentra-
ção comunicacional que concretamente
vivenciamos? O que muitos pesquisado-
res, dentre eles Martín-Barbero e Canclini,
defendem é que isso só seria possível por
meio de políticas públicas efetivas que te-
nham como referência a democratização
do acesso aos meios de comunicação.
É importante a ênfase nas políticas
públicas porque, ao contrário da aposta
entusiasmada que muitos zeram apenas
nas novas dinâmicas colaborativas e em
rede mediadas pela internet como saídas
para superar o uxo verticalizado de in-
formações, nota-se cada vez mais que,
por mais que elas permitam inovações
socioculturais, como o compartilhamento
de informações sem polos centralizado-
res, o que observamos, de modo geral,
na lógica das redes é uma difusão de
informações entre semelhantes: cada
pessoa/grupo se conecta e recebe infor-
mações das demais pessoas/grupos com
as quais se identica, o que cria uma di-
nâmica de circulação comunicacional em
comunidades de interesse.
23
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O desao que se coloca, quando
estamos pensando as estratégias para
promover o diálogo intercultural, é outra:
como estabelecer dinâmicas de afetação,
trocas, sensibilização, comunicação en-
tre alteridades? Não com vistas a chegar
a consensos, mas para que se alcance a
possibilidade de troca igualitária, o que
gera tensões, choques, debates entre vi-
sões de mundo divergentes, motores dos
processos políticos. Além disso, precisa-
mos levar em conta que, diante de um
lastro histórico de sub-representação de
culturas que sempre foram subalterniza-
das, é preciso que haja espaço e investi-
mento para que o imaginário social sobre
elas seja modicado, resignicado, a m
de que participem do jogo político.
Nesse sentido, o audiovisual pa-
rece a linguagem mais apropriada para
possibilitar e potencializar o diálogo in-
tercultural porque não pressupõe o le-
tramento que subjugou toda a diversida-
de e potência da cultura oral dos povos
colonizados. Contudo, à criação desses
materiais deve se seguir sua exibição e
fruição para que a cadeia do diálogo se
complete. Desse modo, o que se observa
é que, diante do contexto comunicacional
e cultural brasileiro, a televisão ainda é
o meio mais contundente a ser atingido
para que o repertório de representações
audiovisuais das diferenças se capilari-
ze. Embora essa defesa da importância
da televisão pareça nadar na contracor-
rente das tendências que apostam nas
redes como forma de romper com a me-
diação entre, por exemplo, os produtores
de vídeos e seu público, como no caso
do youtube, não se pode desconsiderar
que ainda é a televisão um dos meios de
comunicação mais presentes nos lares
brasileiros e o mais utilizado tanto para
informação como para o entretenimento.
De acordo com dados do IBGE, entre os
anos de 2001 e 2009, houve um cresci-
mento de 89% para 95% no número de
domicílios com televisores. Quando cru-
zamos essa informação com a participa-
ção da audiência de acordo com número
de televisores ligados, de acordo com ta-
bela abaixo, vemos a densidade da pre-
ocupação relacionada ao descompasso
entre pluralidade cultural e limitação na
veiculação de representações:
Extraído de: ANCINE, 2010, p.29
24
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Como coloca Alexandre Barbalho
(2008), embora se possa constatar que
a dimensão dos fenômenos midiáticos e
das indústrias culturais pauta cada vez
mais a cultura como um todo, visto que
as construções simbólicas e a constitui-
ção do imaginário contemporâneo estão
apoiados, em grande medida, nestas di-
mensões, as várias esferas governamen-
tais ou deixam de lado ou agem periferi-
camente nesse contexto.
Daí a importância de se discutir
as inter-relações entre política, indústria
cultural e interculturalidade. Precisamos
recordar que não dá para esperar que
essa esperada diversicação (ou des-
colonização) das experiências audio-
visuais seja acionada pelas indústrias
culturais, cuja lógica de funcionamento
está relacionada à conquista de públicos
por meio de um esquema empresarial
em que os parâmetros para mensurar o
sucesso de uma produção são pautados
em valores comerciais, tendo como ins-
trumento de avaliação o Ibope (no caso
de obras veiculadas em ambientes te-
levisivos) ou em quantidade de público
pagante (quando se trata do circuito de
cinemas). No caso da televisão comer-
cial brasileira, “o principal valor de tro-
ca nessa cadeia é a audiência, logo, as
emissoras elaboram grades de progra-
mação com o objetivo de atingir o maior
número de pessoas possível e com isso
obter um preço de anúncio mais valori-
zado” (ANCINE, 2010, p. 22).
Se é inegável que as indústrias
culturais não obliteram ou direcionam por
completo a criação e inovação artística,
ao menos se pode armar como inegável
que os conteúdos que elas fazem circular
estão conectados com a reprodução de
determinados valores, visões de mundo,
comportamentos, ou seja, de determi-
nada cultura alinhada ao poder político
e econômico que as subsidiam. Então,
se estamos certos de que as indústrias
culturais são fundamentais para a cons-
tituição dos imaginários na contempo-
raneidade e de que os valores que elas
reproduzem estão pautados nas culturas
que as alimentam, então é possível con-
cluir que, para pensar na construção de
uma democracia cultural em que as di-
ferenças tenham igualdade de troca no
processo político, ainda que haja sempre
negociação na recepção dos conteúdos
criados pelas indústrias culturais, suas
produções devem coexistir com outras
criadas em dinâmicas diferentes daquela
industrial e conectadas com valores e re-
presentações plurais.
Como bem observa Martin-Barbero
(2009, p. 289),
o desao representado pela indústria
cultural aparece com toda a sua den-
sidade no cruzamento dessas duas
linhas de renovação – que inscrevem
a questão cultural no interior do polí-
tico e a comunicação na cultura. Não
se trata de reviver dirigismos políti-
cos, é certo, mas tampouco se pode
entender a expansão da pluralidade
de vozes na democracia “como um
aumento da clientela dos consumos
culturais.
“Democracia intercultural” e “demo-
cracia plural e radical”: devires possí-
veis ao Estado democrático
Como seria possível, então, uma
reinvenção do Estado, já que ele age de
modo a reproduzir sua dominação biopoli-
ticamente, em camadas tão sutis da exis-
tência? Rancière observa, de modo muito
interessante, que as vias de subjetivação
política se dão por meio de uma partilha
do sensível: “a política e a arte, tanto
quanto os saberes, constroem ‘cções’,
isto é, rearranjos materiais dos signos e
das imagens, das relações entre o que
se vê e o que se diz, entre o que se faz e
25
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2005,
p. 59). Por isso, qualquer deslocamento
político ganha corpo, primeiro, como “de-
sincorporação literária”, ou seja, como li-
nha de fratura na narrativa que compõe
o sensível comum, recongurando o vi-
sível, o possível e o pensável. Seguindo
o pensamento do autor, podemos sugerir
que a ideia de democracia intercultural
surge como uma heterotopia que carrega
um potencial de reconstruir essa partilha
do sensível, atuando, por um lado, “como
revogação das evidências sensíveis nas
quais se enraíza a normalidade da do-
minação” (RANCIÈRE, 2005, p. 61); por
outro, como proposição de um novo hori-
zonte político.
Embora a democracia seja o tipo de
governo que desaa o Estado a atuar de
acordo com o seu máximo potencial cole-
tivizador, existe um descompasso entre o
entendimento formal da democracia – re-
gras para a participação de todos os cida-
dãos no processo político, independente
da consideração dos ns - e o substancial,
“certo conjunto de ns, entre os quais so-
bressai o m da igualdade jurídica, social
e econômica, independentemente dos
meios adotados para os alcançar” (BOB-
BIO et al., 2002, p. 329). Na maior parte
dos países considerados democráticos
prevalece a concepção formal da demo-
cracia, terreno propício, inclusive, para
ancoragem do Estado neoliberal, em detri-
mento do entendimento substancial, que,
respaldado pelos direitos sociais, prevê
uma maior participação do Estado na re-
gulação das práticas da sociedade a m
de garantir o máximo de equidade entre a
pluralidade de grupos que a compõe.
É essa tensão e disputa entre con-
cepções de democracia, fazendo, inclu-
sive, com que um governo considerado
democrático possa atuar de forma an-
tidemocrática, que leva Chantal Mouffe
a insistir no fato de que o projeto demo-
crático é sempre “incerto e improvável”,
que nunca pode ser considerado como
garantido, em vista da inevitabilidade dos
antagonismos políticos. A democracia é,
portanto, “sempre uma conquista frágil,
que precisa ser defendida e aprofundada.
Não existe nenhum limiar de democracia
que uma vez alcançado possa garantir a
continuidade de sua existência” (MOU-
FFE, 1996, p. 17).
Mouffe vai partir da argumentação
de Carl Schmitt de que o conito e o anta-
gonismo são inerentes ao campo político,
terreno em que impera a oposição entre
“amigos” e “inimigos”, ou seja entre um
“nós” e um “eles”. Todas as antíteses cul-
turais, morais, econômicas, éticas, dentre
outras, só se transformam em antítese
política se forem fortes o suciente para
agruparem os seres humanos em amigos
e inimigos. Desse modo, o exercício do
fazer democrático implica abdicar com-
pletamente do consenso enquanto meta
já que este é inalcançável, o que exclui a
possibilidade de que um discurso ou prá-
tica democrática estabeleçam uma sutura
denitiva e homogeneizante entre as dife-
renças antagônicas (lembrando que toda
diferença é construída historicamente e
que nem toda alteridade é sinal, necessa-
riamente, de antagonismo). A conciliação,
na democracia, de demandas opostas e
interesses conitantes, então, só pode ser
parcial e provisória.
O desejo de uma comunicação racio-
nal não distorcida e de uma unidade
social baseada num consenso racio-
nal é profundamente antipolítico, por-
que ignora o lugar fundamental que os
afetos e as paixões ocupam na políti-
ca. A política não pode ser reduzida à
racionalidade precisamente porque é
ela que indica os limites da racionali-
dade. (MOUFFE, 1996, p. 154)
Sair de uma concepção de demo-
cracia fundada em um ideal de consenso
signica “abandonar o universalismo abs-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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trato do iluminismo, a concepção essen-
cialista de uma totalidade social e o mito
de um sujeito unitário” (MOUFFE, 1996,
p. 18). Ou seja, o que ela arma em suas
reexões é justamente a necessidade de
problematizar o legado eurocêntrico que
tenta universalizar concepções forjadas
em um determinado contexto sócio-his-
tórico-cultural. Contudo, se chegamos
a questionar o projeto de modernidade
como referencial para integração de to-
dos os povos e culturas, entendendo que
em seu cerne estão as colonialidades,
para Mouffe o que está em crise é apenas
um determinado projeto de modernidade,
aquele “iluminista da autolegitimação, o
que não implica que tenhamos que aban-
donar seu projeto político de conquista de
liberdade e igualdade para todos” (MOU-
FFE, 1996, p. 25).
Para a pesquisadora, então, pro-
blematizar as noções de racionalidade,
individualidade e universalidade não é
o mesmo que rejeitá-las por completo,
e sim armar “que elas são necessaria-
mente plurais, racionalmente construí-
das e comprometidas com relações de
poder. Signica o reconhecimento do
político em toda a sua complexidade”
(MOUFFE, 1996, p. 18). Isto porque o
ideal de democracia moderno não esta-
va de forma alguma relacionado a um re-
lativismo, mas a um conjunto de valores
que disputa hegemonia.
O projeto de “democracia radical
e plural” dela e de Laclau propõe, nesse
caminho, uma reformulação do projeto
democrático socialista (em oposição ao
projeto liberal), mas que evita as armadi-
lhas do socialismo marxista e da social-
-democracia, ao mesmo tempo que fa-
culta à esquerda um novo imaginário, um
imaginário que se relaciona com a longa
tradição das lutas de emancipação. Para
tanto, a ideia de “democracia plural e ra-
dical” parte do ideal de pluralismo e das
tradições liberais de liberdade individual
e autonomia pessoal presentes nas for-
mulações da democracia moderna, mas
tentando dissociar essas noções dos dis-
cursos que associam liberalismo político a
liberalismo econômico (MOUFFE, 1996).
Só com essa dissociação que seria possí-
vel “apreender a multiplicidade de formas
de sujeição que existem nas relações so-
ciais e facultar um enquadramento para a
articulação das diferentes lutas democráti-
cas” (MOUFFE, 1996, p. 18).
Aquilo de que necessitamos é de
uma hegemonia de valores democrá-
ticos, o que exige uma multiplicação
de práticas democráticas, institucio-
nalizando-as num número cada vez
mais diverso de relações sociais, de
forma que possa ser constituída uma
multiplicidade de posições de sujei-
tos a partir de uma matriz democráti-
ca. É por este meio – e não tentando
proporcionar-lhe um fundamento ra-
cional – que poderemos não apenas
defender a democracia, mas apro-
fundá-la. Um projeto de democracia
radical e plural, pelo contrário, exige
a existência de multiplicidade, de
pluralidade e de conito e neles a
razão de ser da política. (MOUFFE,
1996, p. 33)
A proposta de democracia radical e
plural é importante para o que aqui segui-
mos argumentando por retirar o projeto
democrático de uma moldagem universa-
lista e racionalista e encará-lo como um
conjunto de valores que disputa hegemo-
nia. Ou seja, ao mesmo tempo em que os
conitos e antagonismos são inerentes a
esse ideal democrático, sua própria con-
cepção também depende desses jogos
de forças. Daí o alerta de Mouffe para
a necessidade de se entender que essa
proposta guarda em si um paradoxo: os
conitos e antagonismos “são simultane-
amente condição de possibilidade e de
impossibilidade da sua total realização”
(MOUFFE, 1996, p. 19).
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Por isso, a análise de Boaventu-
ra de Sousa Santos de que a democra-
cia convive com uma série de fascismos
sociais nos parece tão cara. Vamos nos
deter agora no pensamento desse autor
sobre as possibilidades de reinvenção
do Estado, por meio de uma democracia
intercultural, a m de que a participação
das diferenças no jogo político do Esta-
do deixe de ser um discurso esvaziado
ou condicionado a práticas pontuais e
se congure como uma “nova pedagogia
política”. O autor argumenta que a demo-
cracia liberal tem uma baixa intensida-
de para promover a democratização do
Estado de fato porque, dentre outras ex-
plicações, não garante as condições de
igualdade política, reduz a participação
quase sempre ao voto e não reconhece
outras identidades, se não as individuais;
ou seja, desconhece as identidades cul-
turais coletivas. Isso não signica recusar
os princípios da democracia representa-
tiva e, sim, usá-la de forma contra-hege-
mônica, por meio do desenvolvimento de
novas formas de participação, anal em
um processo com regras de debate e de-
cisão monoculturais não pode haver de-
mocracia intercultural.
Antes de seguirmos a argumenta-
ção de Boaventura, é importante sublinhar
que, assim como o autor, estamos defen-
dendo que tanto Estado quanto democra-
cia são conceitos forjados por teorias que
se desdobram em práticas e que partem
de pressupostos epistemológicos; estes,
por sua vez, não podem ser dissociados
dos processos culturais e de coloniza-
ção. Então, acreditamos na necessidade
de pensar como a participação política de
forma a acolher as diferenças depende da
reinvenção das ideias de Estado, de de-
mocracia e de emancipação social, por
meio da interculturalidade.
Práticas políticas inovadoras, que
buscam essa reinvenção, surgiram e sur-
gem a cada dia de “novos atores, novas
lutas sociais e políticas, novas formas de
agência” levadas a cabo por movimentos
como dos indígenas, das mulheres, dos
homossexuais, dos sem-terra, dos sem-
-teto, dos quilombolas, de grupos das
periferias e de coletivos organizados em
variados rincões etc. Dentre eles, desta-
ca-se a importância paradigmática dos
zapatistas, por exemplo, por se coloca-
rem como uma alteridade fundamental ao
sistema-mundo moderno colonial e como
referência para pensar outras vias pos-
síveis para a política. Todos eles apre-
sentam alternativas, que acabam sendo
marginalizadas, invisibilizadas, excluídas
e desprezadas (SANTOS, 2009, p.19). A
proposta teórica que Boaventura apre-
senta para que essas experiências sejam
reconhecidas como fermento para rein-
venção do Estado, é a chamada “Epis-
temologia do Sul”, “una comprensión del
mundo mucho más amplia que la que nos
da la comprensión occidental, y que a pe-
sar de ser cada vez más clara, no está
todavía contabilizada en las soluciones
políticas y teóricas que por ahora tene-
mos” (SANTOS, 2009, p. 20).
Todavia, Boaventura adverte que,
como a diversidade do mundo é inesgo-
tável, também não deve existir uma teoria
geral que dê conta de toda essa pluralida-
de. Por isso, o conceito de interculturali-
dade é operacional ao chamar a atenção
para o entre, para a necessidade de pos-
sibilitar a igualdade de participação de cul-
turas distintas na política, o que signica
sair do formalismo da igualdade jurídica
em que todos são iguais perante a lei des-
de que aceitem participar dela e, portanto,
da cultura que ela emana. Torna-se fun-
damental, então, jogar luz na tensão entre
essa igualdade formal e a desigualdade
real que empurra as diferenças à integra-
ção, à desliação social ou à resistência;
processos que agem como forças progra-
máticas orientadas desde o poder até as
culturas, embora o que de fato aconteça
mais comumente seja a negociação, o
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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agir nas brechas, a camuagem, o sincre-
tismo. Movimentos em que os que pare-
cem se integrar, que se encontram des-
liados ou que resistem, criam táticas para
que suas culturas sobrevivam. Micro guer-
rilha cotidiana que impediu que muitas
das culturas arrefecessem ou, ao menos,
minimizou os estragos da violência que a
colonização impôs a muitas delas.
Essas desigualdades surgem exa-
tamente de assimetrias de poder apoiadas
nas binariedades forte-frágil, oprimido-
-opressor, superior-inferior. Boaventura
identica, em seu trabalho, “constelações”
de poder: a exploração (capital-trabalho), o
patriarcado (homens-mulheres, que acre-
dito ser melhor pensado como masculino-
-feminino), o fetichismo das mercadorias
e a diferenciação identitária desigual, que
têm como consequências o sexismo, o
racismo, as limpezas étnicas e a domina-
ção. Existem, ainda de acordo com o au-
tor, distintas formas de caracterizar o lado
tido como mais frágil: considerá-lo inferior,
ignorante, atrasado, local ou particular, im-
produtivo, preguiçoso (SANTOS, 2009).
Pensando especicamente na pos-
sibilidade de uma interculturalidade iguali-
tária tendo como foco a participação políti-
ca nas decisões do Estado, a questão que
se coloca é: como garantir que a cultura,
ou os valores, a sabedoria, a cosmovisão,
dos grupos marginalizados sejam levadas
em conta nos processos políticos, sem
que sejam considerados inadequados,
precários, limitados em vista da racionali-
dade adotada pelo Estado. Em outras pa-
lavras, é possível levar a democracia à sua
máxima potência permitindo que matrizes
culturais diversas entrem em diálogo,
disputa, tensão igualitária nas questões
relativas às intervenções estatais, contri-
buindo para repensar suas categorias de
intervenção-ação-reexão?
Para Boaventura, existem dois mo-
vimentos paralelos que devem acontecer
para que essa reinvenção aconteça: um
mais imediato e urgente, capaz de dar res-
postas em curto prazo para as injustiças
socioambientais, aqui entendidas de for-
ma integrada como culturais, por meio de
alianças heterogêneas e táticas. Mas esse
movimento não pode estar desconectado
de estratégias de negociação e experi-
mentação de novos conceitos e imaginá-
rios de futuro e de sociedade.
La lucha – por la tierra, por el agua, por
la soberanía alimentaria, que es cada
vez más importante, por los recursos,
los bosques y los saberes tradiciona-
les — tiene que ser democrática. No-
sotros no tenemos las condiciones,
hoy en día, para preparar un proyecto
completo, un proyecto claro para go-
bernar el Estado intercultural y posco-
lonial. Tiene que ser experimental, y
esa experimentación tiene que actuar
en dos niveles: en el nivel de la ins-
titucionalidad del Estado y en el nivel
de la territorialidad del Estado. [...] La
autonomía tiene que ver con procesos
de descentralización administrativa;
la autodeterminación tiene un fuerte
componente político y cultural. (SAN-
TOS, 2009, p.34)
Boaventura fala, no final dessa
citação, da relação entre autodetermi-
nação, política e cultura, e em nenhum
momento o autor desconecta a cultura
das lutas pela soberania alimentar, da
terra e da água. Isso porque a ideia de
democracia intercultural não destaca
a cultura de seu processo integral. E
aí está uma crítica pertinente ao modo
como as políticas culturais são imple-
mentadas na estrutura estatal tal qual
a conhecemos: a separação entre po-
líticas culturais e políticas de saúde,
de comunicação, de educação, agrária
etc., só é operacional em um sistema de
governo que disciplinariza a vida; se se
quiser pensar, falar e agir em função de
uma diversidade radical, é necessário
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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estabelecer uma crítica também radical
a essa compartimentalização.
A não ser que se assuma a limita-
ção do discurso em favor da diversidade,
não se pode levar tão a sério que um go-
verno levante uma bandeira em prol da
cultura negra e estabeleça políticas pú-
blicas para promovê-la, mas permaneça
permitindo o massacre de jovens negros
nas periferias. Não seria o fato desses
jovens negros estarem nessa condição
social resquícios ou resignicações do
mesmo colonialismo que subsidiou a es-
cravidão? Ou que numa mesma gestão
os indígenas recebam prêmios por sua
cultura milenar e suas tradições, mas que
suas terras sejam alagadas pela constru-
ção de uma usina hidrelétrica que vai ser-
vir à movimentação de mais produtivida-
de, mais capital... Como provoca Viveiros
de Castro (2011, p. 7),
as culturas indígenas não estão fun-
dadas no princípio de que a essên-
cia do ser humano é o desejo e a
necessidade, a falta e a ânsia. Seu
modo de vida, seu “sistema” de vida,
no sentido mais radical possível, é
outro. Os índios são os senhores da
imanência: o que nós não podemos
senão pensar, eles vivem. E o que
eles pensam, nós não somos mais
capazes sequer de imaginar. Que
transcendência exatamente temos
nós, os orgulhosos neobrasileiros,
supostos representantes da Razão e
da Modernidade, a oferecer a eles?
E seguindo esse pessimismo crí-
tico, mas sem desconsiderar os avanços
nas políticas culturais nos últimos anos,
que buscamos problematizar a relação
entre políticas públicas, diversidade cultu-
ral, cultura e comunicação. É necessário
que esse senso reexivo se mantenha em
foco para que quem claras as armadilhas
discursivas que escondem os fascismos
sociais por trás de um modelo genérico e
universalizante de democracia. Pensar ou
implementar políticas culturais desde um
horizonte que destaca a cultura de seu
processo integral só ajuda a manter o es-
vaziamento do potencial democrático ou
democratizante do Estado.
Evelina Dagnino, ao tratar do vín-
culo indissociável entre cultura e política,
defende que qualquer projeto político ex-
pressa e veicula signicados de matrizes
culturais mais amplas. É interessante a
argumentação da autora sobre a re-sig-
nicação dos conceitos de participação
e democracia pelo projeto neoliberal.
Contudo, Dagnino parece reduzir a com-
plexidade das limitações do Estado para
se relacionar com a diversidade a uma
tensão apenas entre o projeto neolibe-
ral e o participativo-democrático, sendo
que, como estamos tentando argumen-
tar, a crítica em relação à monocultura da
estrutura estatal não se limita ao modelo
de governo que assume o poder. Como
esclarece Boaventura, a teoria política,
mesmo a da esquerda ocidental, “fue
siempre una lucha por la igualdad y no
una lucha por el reconocimiento de las
diferencias” (SANTOS, 2009, p. 200).
Apesar dessa ressalva, em alguns as-
pectos, a reexão de Dagnino se aproxi-
ma da ideia de Boaventura de democra-
cia intercultural, ao armar, por exemplo,
o “caráter intrínseco da transformação
cultural com respeito à construção da de-
mocracia” (DAGNINO, 2005, p. 56).
Ao aliar a reinvenção da política
com a necessidade de uma transforma-
ção cultural, sua análise abre espaço
para a questão da interculturalidade. Ela
argumenta que de um lado está o neoli-
beralismo, com “seus efeitos de aprofun-
damento da desigualdade, de consolida-
ção do mercado e do interesse privado
como parâmetros de todas as coisas e de
minimalização da política e da democra-
cia” (DAGNINO, 2005, p. 46); do outro,
um processo político de “alargamento da
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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democracia, que se expressa na criação
de espaços públicos e na crescente parti-
cipação da sociedade civil nos processos
de discussão e de tomada de decisões
relacionadas com as questões e políticas
públicas” (DAGNINO, 2005, p. 47). A dife-
rença fundamental entre esses dois pro-
jetos é que, embora o primeiro também
recorra à ideia de participação e pertenci-
mento, estes se dão em um sistema po-
lítico já dado e o que deve estar em jogo
no segundo projeto é o direito de partici-
par na própria denição desse sistema.
Ressalta a autora, ao defender a neces-
sidade de superação do conceito de cida-
dania liberal, que:
O processo de construção da cida-
dania como armação e reconheci-
mento de direitos é, especialmente na
sociedade brasileira, um processo de
transformação de práticas arraigadas
na sociedade como um todo, cujo sig-
nicado está longe de car limitado à
aquisição formal e legal de um conjun-
to de direitos e, portanto, ao sistema
político-judicial. […] Um formato mais
igualitário de relações sociais em to-
dos os níveis implica o ‘reconhecimen-
to do outro como portador de interes-
ses válidos e de direitos legítimos’”.
(DAGNINO, 2005, p. 57)
Esses interesses válidos só podem
ser considerados de um ponto de vista
intercultural, ao passo que a legitimação
desses direitos deve ser considerada de
uma perspectiva pós-colonial, vinculando
ações armativas com descriminações
positivas em relação aos benefícios e
prioridades políticas, anal, como aponta
Boaventura, devemos exigir que as mino-
rias sejam tratadas de forma igualitária,
mas sem esquecer das injustiças históri-
cas que as subjugou. Ou seja, “tenemos
el derecho a ser iguales cuando las dife-
rencias nos hacen inferiores; tenemos el
derecho a ser diferentes cuando la igual-
dad nos quita nuestras características”
(SANTOS, 2009, p. 39). Nesse sentido
que investir (e insistir) na construção de
uma democracia de alta intensidade in-
tercultural e pós-colonial é a única forma
de escaparmos do horizonte para o qual
estamos caminhando como sociedades
politicamente democráticas, mas social-
mente fascistas.
Por “fascismo social”, Boaventu-
ra entende um regime social e civiliza-
cional, que tem suas origens na forma
como o Estado moderno se instituciona-
lizou, por meio de uma violência muito
forte, com vistas a uma acumulação pri-
mitiva, o que gerou todas as formas de
colonização, expropriação, escravidão,
tal qual conhecemos. Contudo, ao con-
trário desse fascismo que nasce com o
Estado, o do tipo social se distingue por
não precisar sacricar a democracia
em favor do capitalismo, o que é talvez
pior: promove-a até ao ponto de não ser
necessário, nem sequer conveniente,
sacricá-la (SANTOS, 1998).
Esse alto poder destrutivo do Es-
tado e do capitalismo foi domesticado
por uma série de lutas sociais, que ge-
raram, inclusive, os organismos transna-
cionais de proteção dos direitos huma-
nos, como Unesco, Anistia Internacional.
Essas lutas reivindicaram e continuam
reivindicando laços políticos capazes de
frear os fascismos sociais auspiciados
pelo Estado, anal a democracia liberal
é uma “isla democrática en un archipié-
lago de despotismos” (SANTOS, 2009,
p. 44). Inúmeras atitudes fascistas coe-
xistem tranquilamente com esse tipo de
democracia formal, gerando desregula-
ção, fragmentação e quebra do contrato
social. Boaventura descreve os seguin-
tes tipos de fascismos sociais: fascismos
“do apartheid social” (divisão do território
em zonas de segregação urbana), “do
Estado paralelo” (discrepância na ação
estatal que age de modo democrático e
como protetor em determinadas zonas
31
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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e de forma fascista e predadora em ou-
tras) , “paraestatal” (quando o Estado
permite que entes privados poderosos
economicamente assumam prerroga-
tivas estatais de coerção ou regulação
social), “populista” (promove a democra-
tização de formas de consumo e estilos
de vida que, na verdade, não estão ao
alcance de toda a população), “da inse-
gurança” (manipulação da insegurança
dos setores vulnerabilizados), “nancei-
ro” (relacionado ao mercados nancei-
ros, que desconsideram laços políticos
e agem num tempo-espaço virtualmente
instantâneo e transnacional).
Esses fascismos sociais se ex-
pressam nas inúmeras privatizações, do
espaço público, dos serviços públicos,
dos recursos naturais, do ambiente co-
municacional, da cultura. Partindo desses
pressupostos, o que tentaremos analisar
a seguir é como a constituição dos meios
de comunicação no Brasil, em especial a
televisão, se colocou como motor desses
fascismos sociais, dicultando o diálogo
intercultural no país.
Nesse contexto, o investimento
no audiovisual se coloca como elemento
estratégico e político para as diferenças,
espécie de descriminação positiva em
vista do processo de injustiça histórica
que constituiu nosso país. Até mesmo
porque, como estamos argumentando, a
democracia intercultural e pós-colonial só
é possível em contextos em que os inte-
resses e direitos das culturas, o que inclui
sua cosmovisão, sejam respeitados como
válidos. Para que essas diferenças par-
ticipem de forma igualitária no processo
político é imprescindível que o imaginá-
rio social construído sobre elas, por meio
de uma sub-representação ou de “repre-
sentações monoculturais” nos meios de
comunicação de massa, seja gradativa-
mente resignicada com a intensicação
na circulação de representações plurais
dessa diversidade.
Políticas de culturais e de comunica-
ção: o problema da concentração e a
necessidade de regulação
Contudo, a questão pendente é:
como pluralizar as experiências audiovisu-
ais em um ambiente comunicacional sem
regulação? Ou seja, como possibilitar que,
nos meios de comunicação, especialmen-
te a televisão, coexistam as produções
das indústrias culturais com as demais
forjadas em outros contextos e lógicas?
Ao analisar a situação da concen-
tração comunicacional, Cesar Bolaño e
Valério Brittos (2008) analisam que o de-
bate a respeito das políticas públicas de
comunicação no Brasil não logrou mudar a
equação construída durante o regime mi-
litar à diferença de outros países em que
o processo de democratização instaurou
mudanças estruturais profundas na área
das mídias. Os autores se referem à prá-
tica nada democrática de concessão da
radiodifusão, pelo poder público, para as
empresas privadas de comunicação. Oc-
tavio Pieranti (2006) apresenta de forma
minuciosa um panorama dessa questão,
mostrando como as concessões sempre
funcionaram, desde os regimes militares
até o governo FHC, como moeda de troca
entre o poder político e o poder privado
II
.
Embora o governo FHC tenha começado
um “processo de moralização” na outorga
das concessões, tornando obrigatória a
abertura de licitação, uma brecha na le-
gislação ainda permitia o uso delas para
barganha política
III
. Como propõe Pieranti,
“o oferecimento de concessões sempre foi
usado como importante moeda de troca
pelos mais diversos governos brasileiros.
Nessas barganhas, saíram favorecidas as
grandes redes, que viram aumentar o nú-
mero de emissoras aliadas e o grau de
cobertura de sua programação” (PIERAN-
TI, 2006, p. 108).
Podemos concluir que, ainda
hoje, embora se tenha avançado muito
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
em favor da transparência nas conces-
sões, ainda muito exibilidade na
legislação vigente. O relatório da Agên-
cia Nacional de Cinema – ANCINE, de
2010, que traz um mapeamento da TV
Aberta no Brasil, nos mostra que ainda
há um descompasso entre o principal
instrumento regulador da atividade de
radiodifusão de sons e imagens, que é o
Código Brasileiro de Telecomunicações
(CBT), de 1962, e a Constituição Federal
(CF) de 1988, que estabeleceu compe-
tências, regras, procedimentos e princí-
pios relativos às concessões de rádio e
TV, criando um capítulo especíco sobre
a Comunicação Social. Embora o CBT
tenha sido alterado ao longo de quase
cinquenta anos por decretos e leis, até
então “muitos aspectos trazidos pela
Constituição permanecem sem regula-
mentação, como é o caso do estímulo
à produção independente e regional, da
vedação do monopólio e oligopólio, do
equilíbrio entre os sistemas público, pri-
vado e estatal” (ANCINE, 2010, p. 5).
Como as empresas privadas de
comunicação exercem muita inuência
na opinião pública nacional e, portanto,
nas decisões políticas, as tentativas de
regulação do setor sempre são adiadas
ou realizadas de forma lenta, já que os
setores interessados em manter as le-
gislações ultrapassadas e pouco opera-
cionais se inamam contra as propostas
de renovação das leis que regulam o
sistema comunicacional brasileiro. Dian-
te dessa diculdade de reformulação, a
estratégia encontrada pelos governos
Lula e Dilma, nos últimos anos, foi de
promover reajustes pontuais, mas subs-
tanciais, na regulamentação, como é o
caso da aprovação da lei nº 12.485/2011,
considerado o novo marco regulatório da
TV paga. Como analisa Manoel Rangel
(2015, s/p), presidente da Ancine, essa
lei em pouco tempo já provocou uma re-
organização completa no ambiente da
TV paga no país, viabilizando a presen-
ça de mais conteúdo nacional nos diver-
sos canais de televisão e fortalecendo
as empresas brasileiras de comunica-
ção. Contudo, o grande impacto desse
marco regulatório aconteceu na TV paga
e não na TV aberta, acessível para todos
os brasileiros.
Desse modo, segue sendo limita-
do o alcance, em termos de pluralidade
cultural representada, da mínima diver-
sicação de conteúdos na TV paga, por
meio da entrada de produtos audiovisu-
ais brasileiros e independentes. A cons-
tituição do sistema comunicacional no
país segue contribuindo, desde seus pri-
mórdios, para a armação e recrudesci-
mento dos fascismos sociais cotidianos,
especialmente, para a criminalização
da pobreza, das diferenças e das lutas
sociais e para a difusão de valores con-
dizentes com uma cultura hegemônica
(cristã, branca, ocidental, liberal, con-
servadora, consumista), o que diculta a
construção de uma democracia intercul-
tural. Como observa Armand Matterlart,
“como implantar uma política cultural
pela diversidade cultural se a política de
comunicação tira das mãos da socieda-
de as ferramentas e tecnologias para
exercer seus direitos?” (MATTELART,
2007 apud YODA, 2007, s/p).
Podemos avaliar que essa inca-
pacidade do Estado de levar adiante os
embates políticos em torno da comuni-
cação revela, de algum modo, como o
Brasil se posiciona na contracorrente da
importância que vem sendo dada, des-
de a década de 70, à necessidade de
intervenção estatal na comunicação em
prol do fortalecimento da democracia.
Enquanto a Unesco estava investindo
nessa perspectiva de regulação e regu-
lamentação dos meios de comunicação
e da indústria cultural, o discurso neoli-
beral já desarticulava de forma estratégi-
ca, em nível transnacional, essa aborda-
gem: Reagan e Thatcher “comandaram
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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a retirada de seus países daquele órgão
das Nações Unidas” (RAMOS, 2005, p.
246). Desde então, o choque de interes-
ses entre a perspectiva liberal e a de-
mocrática tem provocado faíscas de in-
tensidades e impactos diferenciados em
cada país
IV
. Como arma Murilo César
Ramos (2005, p. 250),
difícil é e será sempre o reconheci-
mento da comunicação como política
pública no capitalismo, justamente
por ser ela entendida, na ideologia
liberal das sociedades de mercado,
como a principal garantidora e, mes-
mo, alavancadora da liberdade de
mercado, por meio da teoria do livre
uxo da informação. Segundo esta
teoria toda ação do Estado sobre os
meios de comunicação torna-se au-
tomaticamente ação censória e, por
isso, uma ameaça a todos os direitos
e a toda liberdade.
Martín Becerra e Guillermo Mastri-
ni (2010) observam que os dados sobre
o cenário infocomunicacional na América
Latina demonstram que as margens de
concentração superam os padrões acei-
táveis. De acordo com eles, o padrão
mundial para mensurar a concentração é
o seguinte: caso os quatro primeiros ope-
radores controlem, em média, mais de
50% do mercado e caso os oito primeiros
operadores controlem mais de 75%, há
uma alta taxa de concentração. Algumas
consequências decorrentes desse qua-
dro – extremamente desfavorável para o
diálogo intercultural, vale destacar – são:
centralização geográca da produção de
conteúdos e informações, condenando a
uma sub-representação os grupos que
habitam o “interior” e as periferias; em-
pobrecimento da diversidade de olhares
e interpretações sobre a realidade; orien-
tação comercial para produção e difusão
dos conteúdos; falta de oportunidade dos
médios e pequenos produtores, dentre
outras (BECERRA; MASTRINI, 2010).
Todo esse cenário de alta concentração
na propriedade e gestão dos circuitos in-
focomunicacionais combina-se com uma
“debilidade dos poderes públicos para
dispor de regras de jogo equânimes que
garantam o acesso dos diferentes seto-
res sociais, políticos e econômicos à titu-
laridade de licenças” (BECERRA; MAS-
TRINI, 2010, p. 94).
Em contraponto a esse cená-
rio de falta de posicionamento político
satisfatório e capaz de converter esse
quadro, atores sociais, por meio do Fó-
rum Nacional pela Democratização da
Comunicação, vêm pressionando o go-
verno com uma proposta de projeto de
lei de iniciativa popular que propõe a
regulamentação das rádios e televisões
brasileiras. As questões formuladas
pelo coletivo no texto de apresentação
da proposta trazem reflexões cruciais
para o debate:
Como o índio, o negro, as mulheres,
os homossexuais, o povo do campo,
as crianças, aparecem na televisão
brasileira? Como os cidadãos das di-
versas regiões, com suas diferentes
culturas, etnias e características são
representados? A liberdade de expres-
são não deveria ser para todos e não
apenas para os grupos que represen-
tam os interesses econômicos e so-
ciais de uma elite dominante? Existem
espaços para a produção e veiculação
de conteúdos dos diversos segmen-
tos da sociedade na mídia brasileira?
(FNDC, 2013, s/p)
Tendo em vista essas questões, o
projeto de lei, em seu capítulo 5, sugere
premissas para incentivar a diversidade
na programação das televisões brasilei-
ras. Dentre elas, destacamos as seguin-
tes exigências:
- de que as emissoras de uma rede
ocupem 30% de sua grade veiculada “en-
34
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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tre 7h e 0h com produção cultural, artística
e jornalística regional, sendo pelo menos
sete horas por semana em horário nobre”
(FNDC, 2013, p. 8) e de que as emissoras
locais ocupem no mínimo 70% de sua gra-
de com produção regional;
- de que as emissoras de televisão
veiculem, no horário nobre, “o mínimo de
10% de programação produzida por pro-
dutora brasileira independente, sendo no
mínimo 50% desse tipo de conteúdo reali-
zado na própria área de mercado da emis-
sora” (FNDC, 2013, p. 8);
- de que assegurem ao menos
1 hora por semestre de veiculação de
produção realizada por “cada um de 15
grupos sociais relevantes, denidos pelo
órgão regulador por meio de edital com
critérios transparentes e que estimulem
a diversidade de manifestações” (FNDC,
2013, p. 8);
- de “criação de conselhos consulti-
vos de programação com composição que
represente os mais diversos setores da
sociedade” (FNDC, 2013, p. 8);
- de tempo mínimo de 70% do tem-
po de programação ocupado com conteú-
do brasileiro (FNDC, 2013);
- de proibição de veicular “apologia
ao ódio nacional, racial ou religioso que
constitua incitamento à discriminação,
à hostilidade, ao crime ou à violência ou
qualquer outra ação ilegal similar contra
qualquer pessoa ou grupo de pessoas, por
nenhum motivo, inclusive os de raça, cor,
etnia, gênero, orientação sexual, religião,
linguagem ou origem nacional” (FNDC,
2013, p. 9).
O horizonte possível de demo-
cratização aberto com essa proposta
aponta para um avanço significativo no
que tange à pluralidade na programa-
ção televisiva. Contudo, em termos de
espaço para expressão da pluralidade
cultural, podemos dizer que a única
regra de descriminação positiva apon-
tada pelo documento é ainda muito tí-
mida ao prescrever a necessidade de
apenas 1 hora de veiculação a cada
6 meses para cada um dos 15 grupos
sociais relevantes, sendo, ainda, a re-
ferência a grupo social e não cultural
ou sociocultural um dado importante,
visto que permite uma amplitude de in-
terpretação que não necessariamente
atenderá à necessidade de difusão de
conteúdos criados por ou sobre as cul-
turas sub-representadas, prioritárias
quando se trata de descriminação po-
sitiva. As relações entre uma dimensão
social e cultural, em termos de repa-
ração histórica, são tênues, por certo;
afinal, os fascismos sociais estão as-
sentados, também, em aspectos histó-
ricos de subjugação cultural. Reforçar
esse componente cultural como rele-
vante para avançar nas discussões a
respeito da democracia agrega valor e
complexidade ao debate ao deixar de
referendar as tensões próprias do cam-
po social apenas em uma questão de
classe ou em uma posição de ter mais
ou menos acessos, regalias, benefícios
no sistema.
Somar a esse debate o marco da
interculturalidade traria a exigência de
que as diferenças tivessem espaço de
difusão garantido para que suas leitu-
ras de mundo pudessem ser veiculadas
em contextos outros que não aqueles
que certamente serão assistidos por
suas comunidades de interesse. A di-
mensão cultural, de acordo com Boa-
ventura de Souza Santos, é a que traz à
tona a necessidade de aliar a defesa da
igualdade ao direito da diferença, por
isso é ela, também, que agrega mais
possibilidades de leituras de mundo e,
portanto, de imaginação de futuros, ao
debate sobre a reinvenção do Estado e
da democracia.
35
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Como assinalam Marta Rizo e
Vivian Romeu (2006), a comunicação,
fomentada pelo viés da interculturalida-
de, não deve ser lida como harmônica
nem simétrica; “se trata, justamente por
las diferencias de rol y posición que en
un espacio físico o simbólico compor-
tan los sujetos implicados, así como
sus comunidades de sentido, de una
comunicación mayormente conflictiva
que debe tender, en su ideal, al mante-
nimiento y consolidación de su eficacia,
pero no a la anulación de sus conflictos”
(RIZO; ROMEU, 2006, p. 9). E é nesse
espaço de conflito que a possibilidade
de diálogo intercultural se estabelece,
não como acumulação de informação
e perspectivas compatíveis com o mar-
co hegemônico existente, como defen-
de enfaticamente Schiwy (2002), mas
como espaço potencial de transforma-
ção desse marco e suas implicações
sócio-políticas.
Nesse cenário de tensões e dispu-
tas que envolvem questões econômicas,
políticas, embates de ideias e ideais,
mas também um horizonte de possibili-
dades de abertura para a diversidade, o
Ministério da Cultura do Brasil vem atu-
ando, desde 2002, na tentativa de equa-
cionar as demandas do campo cultural
com as potencialidades e restrições do
campo da comunicação. Convergência
complexa e muitas vezes dicultada por
esse quadro de concentração que tenta-
mos delinear.
Entendendo que dar conta da plu-
ralidade cultural do nosso país é assun-
to para todo um governo e não pode se
limitar a um Ministério, foi que a gestão
que assumiu o Minc, em 2002, propôs
diálogos, avanços e inter-relações com
outras pastas. De fato, como analisa
Anita Simis (2007), embora o conceito
antropológico de cultura exija essa in-
terdisciplinaridade entre os setores do
governo, o que se observa é uma ex-
trema diculdade de estabelecer essa
transversalidade, cando o Minc mais
próximo das ONGs e de organismos in-
ternacionais, como a Unesco. Destaca-
mos aqui a relação entre as políticas de
comunicação e as de cultura, visto que,
como arma Barbalho, uma política cul-
tural “perde muito de sua ecácia, de
sua efetividade, se não interagir critica-
mente com as indústrias culturais e com
as mídias” (BARBALHO, 2008, p. 24).
Necessário sublinhar, nesse
sentido, o descompasso entre os Mi-
nistérios da Comunicação e o da Cul-
tura ao longo dos 8 anos de gestão de
Lula, o que tornou inviável a conjuga-
ção de esforços em prol da democra-
tização cultural, tendo o Minc atuado
fora dos preceitos neoliberais, postu-
ra bem dissonante à do Ministério das
Comunicações, ainda sob forte influên-
cia da indústria cultural, ainda que no
contexto de um governo com postura
política diferente dos anteriores.
Embora o Minc tenha caminhado
na direção de uma democracia comu-
nicacional intercultural em alguns de
suas políticas
V
, é nítida a falta de fôle-
go das ações, que acabam por promo-
ver apenas do-ins pontuais no quadro
grave de desigualdade simbólica do
país. Para que houvesse mais possibi-
lidades de diálogo intercultural e para
que os impulsos experimentadores se
tornassem políticas mais efetivas para
a pluralidade de grupos socioculturais,
seria necessário que a cultura, com sua
pauta democratizante, contaminasse
muito mais o Estado. No que tange à
interface entre cultura e comunicação,
especificamente, seria fundamental um
reequilíbrio entre os direcionamentos
dos Ministérios da Cultura e da Comu-
nicação, a fim de que projetos com alto
potencial de interculturalidade seguis-
sem com outros e muitos olhares ima-
ginando o Brasil.
36
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Recebido em 15/12/2015
Aprovado em 06/02/2016
37
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Fayga Rocha Moreira. Doutora. Professora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, da
Universidade Federal da Bahia, Brasil. Contato: fayga-
moreira@gmail.com
II O autor se refere a episódios como: as relações de
parceria entre as emissoras criadas no regime militar
e os governos do período, em especial à cumplicidade
da TV Globo com o regime; ao aumento considerável
de concessões com nalidades políticas no período de
redemocratização. No governo de Sarney, por exem-
plo, “em três anos, 168 concessões foram outorgadas
apenas para empresas ligadas a 91 deputados fede-
rais e senadores. Desses, 82 (90,1%) votaram a favor
da emenda que aumentou para cinco anos o mandato
de Sarney” (PIERANTI, 2006, p.108).
III O autor observa que, embora a licitação pública te-
nha sido decretada como mecanismo de outorga das
concessões, a brecha na legislação dava-se por meio
das RTVs (retransmissoras de televisão), que não
necessitavam de concessão para funcionar, apenas
de uma portaria. A obtenção de uma RTV, segundo o
autor, era “uma alternativa mais viável para políticos
e empresários, já que dependia de menos verbas e
era regulamentada por legislação mais exível”. Às
vésperas da aprovação da emenda que possibilitaria
a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, “o Minis-
tério das Comunicações distribuiu 1.848 RTVs, sendo
527 a empresas de comunicação, 479 a prefeituras,
472 a empresas e entidades ligadas a igrejas, 102 a
fundações educativas e 268 a empresas ou entidades
controladas por 87 políticos. Desses, 19 deputados e
6 senadores votaram favoravelmente à reeleição. Os
outros beneciários foram dois governadores, onze
deputados estaduais, sete prefeitos, oito ex-deputa-
dos federais, três ex-governadores, oito ex-prefeitos e
outros 23 políticos, não se podendo desprezar a inu-
ência deles sobre membros do Congresso Nacional”
(PIERANTI, 2006, p.109). De acordo com o relatório
da Ancine (2010), são essas RTVs que capilarizam
a produção das “cabeças de rede”: “a formação das
redes nacionais de televisão requer pensar em dois
planos: o comercial e o político. A soma destes dois
fatores afeta tanto a distribuição geográca das au-
torizações de serviço de Retransmissão de Televisão
(RTV) outorgadas para prefeituras, como a opção dos
governos locais por servir a esta ou àquela emissora.
Na prática, as prefeituras municipais de Norte a Sul
do país dão suporte à formação das redes nacionais
de televisão, ou seja, a infraestrutura pública acaba
favorecendo os interesses dos negócios privados”.
(ANCINE, 2010, p.23).
IV No caso da Argentina, por exemplo, a aprovação da
Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual foi um
bom passo dado num rumo oposto ao que estamos vi-
vendo no Brasil. Sobre esse processo argentino, Luiz
Albornoz comenta que, “aún con serios tropiezos en
su aplicación, es un paso rme por terminar con la
herencia de la dictadura cívico-militar (1976-1983) en
materia de radiodifusión y un intento por desmantelar
el oligopolio comercial privado que ha caracterizado la
historia más reciente de la radio y la televisión en este
país (Mastrini, 2008). Así, esta normativa impulsa un
uso del espectro radioeléctrico destinado a la emisión
de señales audiovisuales dividido en partes iguales
entre el sector privado, el público y sin nes de lucro”
(ALBORNOZ, 2014).
V Dentre as ações que demonstram esse passo adiante
do Minc em relação à democratização comunicacional,
tendo em vista, inclusive, as propostas que foram vo-
tadas como prioritárias desde 2005, na 1ª Conferência
Nacional de Cultura, podemos citar:
- o edital para Pontos de Mídia Livre, que teve como
objetivo contemplar iniciativas voltadas para construção
de políticas públicas para comunicação livre e compar-
tilhada, não atreladas ao mercado (foram selecionados
80 propostas na 1ª edição e 60, na 2ª);
- o Programa Cultura Digital, ação que visava fortalecer
e potencializar redes virtuais entre Pontos de Cultura;
- o edital BrGames, que buscou estimular a produção de
demos jogáveis e de jogos completos, com a perspecti-
va de investir no desenvolvimento de jogos eletrônicos e
de inserir os produtores brasileiros nesse mercado;
- o Programa Revelando os Brasis, que incentivou a
produção audiovisual em cidades com até 20 mil habi-
tantes, a m de contribuir para a descentralização dos
olhares e registros sobre o país;
- e o DocTV, único que segue existindo mundo afo-
ra, que tem como objetivo a produção independen-
te de documentários para exibição nas emissoras
públicas de TV brasileiras. Ao longo de 4 edições,
realizadas entre 2003 e 2010, foram produzidos
mais de 150 documentários, realizados em todas as
regiões do país e sobre as mais diversas temáticas,
assegurando a descentralização representacional
pretendida pela ação.
38
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Museus no Brasil: análise socioeconômica de pers
Museos en Brasil: análisis socioeconómico de perles
Brazilian Museums: a socio-economic analysis
Ana Flávia Machado
Nayara Souza
Larissa Machado
I
Resumo:
Este trabalho tem por objetivo construir uma tipologia de museus,
utilizando como fonte básica o Cadastro Nacional de Museus (CNM)
do IBRAM aplicado à estatística multivariada de formação clusters.
Tipologias são nada mais do que classicações que, em um conjunto
heterogêneo, desenham tipos de maior uniformidade e, com isso,
contribuem para reconhecimento e formulação de políticas públicas.
Neste estudo, para além da distribuição espacial, incluímos variáveis
socioeconômicas referentes aos municípios onde se localizam os
museus, como também características referentes a esses equipamentos.
São identicados seis pers de museus no Brasil, observando-se que
a concentração em determinadas unidades da federação, tamanho de
município e tipo de gestão tendem a ser as variáveis mais relevantes
para descrição desses tipos.
Palavras chave:
Museus
Tipologia
Clusters
Brasil
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este trabajo tiene como objetivo construir una tipología de museos,
utilizando como fuente básica El Cadastro Nacional de Museus (CNM)
del IBRAM aplicado a la estadística multivariada de formación clusters.
Tipologías son nada más que clasicaciones que, en un conjunto
heterogéneo, dibujan tipos de mayor uniformidad e, así, contibuyen
para el reconocimiento e para la formulación de políticas públicas.
En este estudio, además de la distribuición espacial, incluímos
variables socioeconómicas referentes a las ciudades dónde se
localizan los museos, como también caracteristicas referentes a estos
equipamientos. Son identicados seis tipos de perles de museos en
Brasil, observándose que la concentración en determinadas unidades
de la federación, tamaño de ciudad e tipo de gestión tienden a ser las
variables más relevantes para descripción de estes tipos.
Abstract:
Applying Cadastro Nacional de Museus (CNM) from IBRAM as main
source for a multivariate analysis of clustering, this article aims at
assemble museums typology. Typologies are classications which draw
more uniformed types in heterogeneous groups, leading to recognize
and formulate public politics. In addition to the space distribution, we
included socio-economic variables of municipalities where the museums
are located and characteristics from this equipment in this study. It is
possible to identify six types of museums in Brazil, considering that
concentration in some states of Brazil, city or municipality size and
management tend to be the main elements to describe these classes.
Palabras clave:
Museos
Tipología
Clusters
Brasil
Keywords:
Museums
Typology
Clustering
Brazil
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Museus no Brasil:
análise socioeconômica de pers
1 - Introdução
Entre os economistas, Jevons (1835-
1882) foi o primeiro a reconhecer a cultura
como um bem público. Neste contexto, ressal-
tou a importância do Estado no nanciamen-
to de museus, especialmente os de temática
cientíca. Recentemente, Frey e Meier (2006)
trataram do termo “economia de museus”, en-
focando dois aspectos. O primeiro se refere ao
de unidade econômica, entendido como uma
rma que produz serviços. Entre os vários
insumos, acervo e pessoal são os mais im-
portantes. As receitas, por outro lado, advêm
do número de visitantes, compras em lojas si-
tuadas no seu interior e de marcas geradas.
O outro aspecto, também, enfatizado pelos
autores, é a possibilidade deste equipamento
ser argumento em uma função de escolha su-
jeita à restrição institucional e ambiental.
A concepção acima reportada pre-
tende entender o papel de um museu em
uma perspectiva teórica microeconômica,
denominada teoria da escolha. Entretanto,
os museus assumem papel relevante em
atividades de lazer e constituem atrações
turísticas importantes, podendo promover
efeitos positivos de transbordamento sobre
a economia local, especialmente em áreas
de turismo popular (FREY; MEIER, 2006).
CWI (1980) ressalta, especialmente,
este último efeito dos museus sobre a econo-
mia, pois destaca a geração de efeitos eco-
nômicos diretos e indiretos, tais como mu-
dança da imagem da cidade; implementação
de políticas públicas de segurança para cria-
ção de ambiente seguro; atração de novos
investimentos e estímulo à integração, de-
senvolvendo identidade local e senso de per-
tencimento. Bille e Schulze (2008) apontam
que arte e cultura podem ter um papel proe-
minente para o desenvolvimento regional e
urbano e, ainda mais amplo, se a denição
de desenvolvimento envolver não somente
geração de renda e postos de trabalho, como
também melhoria da qualidade de vida da
população e inclusão sociocultural. E ainda,
de acordo com o IBRAM (2014), utilizando o
trabalho de Rausell (2011), todos esses im-
pactos dos museus na economia podem ser
classicados em: efeitos diretos, efeitos indi-
retos, efeitos induzidos e efeitos externos.
Entretanto, a localização das ativida-
des culturais, principalmente equipamentos
como museus, não tem atendido a essas
prerrogativas. No Brasil, Pasternak e Bógus
(2012) procuraram analisar a distribuição es-
pacial dos mesmosna cidade de São Paulo e
sua relação com a população a partir de suas
características sócioocupacionais. Para tal,
o tecido urbano foi dividido em cinco anéis –
central, interior, exterior, intermediário e peri-
férico – que são diferenciados pelas distintas
características de renda, escolaridade, perl
etário e taxa de crescimento. Constatam que,
em São Paulo, assim como em outras cida-
des brasileiras, a distribuição de equipamen-
tos culturais segue uma trajetória histórica de
concentração espacial, nas áreas centrais
das grandes cidades. A maior parte desses
espaços culturaisestá localizada no chama-
do centro expandido, isto é, nas áreas cen-
trais e nos bairros nobres da cidade.
Considerando essa problemática,
pretende-se, com esse trabalho, denir uma
tipologia de museus tendo-se por fonte bási-
ca o Cadastro Nacional de Museus (CNM) do
IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) . A de-
nição de tipos é feita pela aplicação de análise
estatística multivariada de formação clusters
ao banco de dados organizado. Tipologias
são nada mais do que classicações que, em
um conjunto heterogêneo, desenham tipos de
maior uniformidade e, com isso, contribuem
para reconhecimento e formulação de políticas
públicas atinentes a essas especicidades.
No contexto deste estudo, para além da dis-
tribuição espacial, incluímos variáveis socioe-
41
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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conômicas referentes aos municípios onde se
localizam os museus como também caracte-
rísticas referentes a esses equipamentos.
Desse modo, o presente artigo está
dividido em quatro seções, incluindo esta.
Na segunda, tratamos da metodologia de
classicação. Em seguida, apresentamos
os principais resultados e, por m, tece-
mos algumas considerações.
2 - Construção da tipologia museal: mé-
todo de agrupamentos e fontes de dados
A análise de agrupamentos, também
conhecida como cluster, é um método es-
tatístico que nos permite agrupar elementos
de uma amostra em grupos homogêneos,
ou seja, elementos com características simi-
lares entre si são classicados em um mes-
mo grupo, que por sua vez são heterogêne-
os em relação aos outros diferentes grupos.
A técnica utilizada para a obtenção
dos clusters foi o k-Means, um método
não hierárquico. Basicamente, cada ele-
mento amostral é alocado àquele cluster
cujo ÿreqüênci (vetor de médias amos-
tral) é o mais próximo do vetor de valores
observados para o respectivo elemento
(MINGOTI, 2007). Para iniciar o processo
de partição é necessário escolher k cen-
troides iniciais. Então, depois de algumas
tentativas, optamos por k=6, seis clusters.
Cada elemento da base de dados é
comparado com cada reqüênci, através de
uma medida da distância ao reqüênci, a distân-
cia Euclidiana. O elemento é, então, alocado no
grupo cuja distância é menor. A cada novo clus-
ter formado, novos valores dos reqüência são
denidos para cada um deles. Esse processo é
repetido até que não seja necessária nenhuma
realocação de elementos, ou seja, todos os ele-
mentos da amostra estejam “bem alocados”.
Assim, o agrupamento dos museus bra-
sileiros em grupos homogêneos permite criar ti-
pologias, buscando facilitar o entendimento da
distribuição dessas instituições pelo país, por
meio da combinação de características e con-
dições socioeconômicas dos municípios.
Para tal intento, foi necessário reu-
nir informações de varias fontes de dados.
A mais importante é o Cadastro Nacional
de Museus (CNM), uma plataforma on-line
construída a partir de questionários próprios
e coordenada pelo IBRAM que, desde 2006,
mapeou mais de 3200 instituições museo-
lógicas em todo o país. Dados como locali-
zação dos museus, natureza administrativa,
cobrança ou não de entrada, se há visitas
guiadas, necessidade de agendamento de
visitas, infraestrutura para turistas estran-
geiros, existência de biblioteca e/ou arquivo
histórico, se o público em geral tem aces-
so a essas instalações e o tipo de acervo
foram incorporados. Entretanto, para esse
estudo, só foram incluídos museus em fun-
cionamento e físicos, museus esses que to-
talizaram 3063 unidades. Os dados são do
período de março de 2006 a junho de 2015.
O Censo Demográco de 2010, rea-
lizado pelo IBGE, reúne indicadores de todos
os 5.565 municípios do Brasil. Dentre esses
indicadores, extraímos para esse estudo a po-
pulação dos municípios em 2010; a taxa de en-
sino médio de adultos com 25 anos ou mais e
a proporção de domicílios com acesso a esgo-
tamento sanitário. Essas variáveis pretendem
descrever a dimensão do público, tanto pelo ta-
manho como também por condições associa-
das à escolaridade (diretamente) e à econômi-
ca (indiretamente), pois a visitação a museus,
assim como a frequência a atividades culturais,
está fortemente associada a essas condições
(SANZ; HERRERO, 2006; BEDATE; HERRE-
RO; SANZ, 2009; FARIA; MACHADO 2015).
O Atlas do Desenvolvimento Hu-
mano no Brasil 2013 é uma plataforma
de consulta ao Índice de Desenvolvimen-
to Humano Municipal – IDHM – de 5.565
municípios brasileiros e ainda apresenta
outros 180 indicadores. Selecionamos a
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renda média dos ocupados com ou mais
de 18 anos para o estudo, em consonân-
cia com os achados na literatura sobre o
tema já reportado em parágrafo anterior.
Outra fonte de dados utilizada foi o Fin-
bra, o relatório das informações sobre despe-
sas e receitas de cada município brasileiro, di-
vulgadas pela Secretaria do Tesouro Nacional.
As informações disponíveis são obtidas me-
diante a coleta dos dados contábeis por meio
do Sistema de Coleta de Dados Contábeis
(SISTN), em parceria com a Caixa Econômica
Federal. Os dados são atualizados anualmen-
te. Como o Finbra disponibiliza informações
sobre os gastos municipais em cultura, em
2010, essa despesa foi ponderada pela popu-
lação residente em cada município. A inclusão
dessa informação para construção da tipologia
pretende evidenciar a possível relação entre a
presença destes equipamentos e a maior dis-
ponibilidade e/ou foco da administração muni-
cipal ao incentivo de atividades culturais.
Dados sobre segurança pública fo-
ram extraídos do website Datasus, depar-
tamento de informática do Sistema Único
de Saúde. Trata-se de um órgão da Secre-
taria de Gestão Estratégica e Participativa
do Ministério da Saúde com a responsabi-
lidade de coletar, processar e disseminar
informações sobre saúde. Dessa forma,
incluímos informações sobre a mortalida-
demunícipio, óbitos por causas externas
por local de ocorrência. A inclusão destein-
dicador se deve ao fato de se constituir em
uma Proxy para descrever a violência ur-
bana – grandes centros, onde a desigual-
dade de renda é mais elevada e, ademais,
um empecilho à reqüência de atividades
culturais que se fazem em maior extensão
nos nais de semana e em horários notur-
nos. (DINIZ; MACHADO, 2011).
No Quadro 1 as variáveis são su-
mariadas, explicando o conceito e a fonte
de onde as informações foram extraídas.
Quadro 1 - Variáveis selecionadas
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3 Tipologia museal: análise dos
aglomerados
Ao se aplicar o método de agru-
pamentos às variáveis selecionadas,
classificamos em seis perfis tipos, clus-
ters ou aglomerados, os 3063 museus
brasileirosfísicos em funcionamento.
De todas as variáveis utilizadas ape-
nas a cobrança (ou não) de “ingresso”
e a necessidade (ou não) de agenda-
mento de visitas não foram relevantes
para a construção dos agrupamentos,
uma vez que a variabilidade dessas
variáveis era ínfima, dado que a maio-
ria dos museus brasileiros é de franca
entrada e também não há necessidade
de agendamento prévio para visitação.
Os tipos de maior concentração de mu-
seus, conforme reportado no Gráfico 1,
são o 5 com 26% da amostra, seguido
pelo 1, com 20%.
Fonte: elaboração própria
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Importante destacar que, dos 3063
equipamentos, quase 50% não possui todas
as informações no Cadastro Nacional de Mu-
seus, o que evidencia escassez de informa-
ções de grande parte dos museus brasileiros e
que acaba dicultando estudos mais precisos
na área de museus. E ainda de acordo com
a Relação Anual de Informações Sociais, em
2010, apenas 460 museus possuem CNPJ.
Logo, essas instituições têm a sua gestão
dicultada, principalmente quanto à falta de
orçamento próprio e quanto à atividade de
captação de recursos (IBRAM, 2014).
Ao analisar a distribuição dos clusters
por região, percebe-se a concentração do gru-
po 1 na região Nordeste, cerca de 50% dos mu-
seus, e do grupo 6 no Sudeste, pouco mais de
80% dos equipamentos. Os grupos 3 e 5 são
formados predominantemente por museus das
regiões Sudeste e Sul. Os da região Sul estão
ausentes somente no sexto grupo (Gráco 2).
Gráfico 1- Distribuição dos museus por clusters (%)
Gráfico 2 – Distribuição dos grupos por regiões (%)
Fonte: elaboração própria
Fonte: elaboração própria
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O grupo 1 apresenta uma distri-
buição bastante uniforme entre os es-
tados brasileiros, embora com alguma
concentração em alguns estados do
Nordeste. Já no cluster 3, o dos mu-
seus localizados nas regiões Sul e Su-
deste, há maior evidência nos esta-
dos de São Paulo, Rio Grande do Sul,
Minas Gerais, Paraná e Santa Catari-
na (Tabela 1).
No grupo 6, museus dos estados
de São Paulo e Rio de Janeiro somam
85% das instituições do agrupamento,
os 15% restantes correspondem a mu-
seus do Ceará.
Tabela 1 – distribuição dos grupos por Unidades da Federação
II
(%)
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A variável natureza administrati-
va (tipo de gestão dos museus) foi igual-
mente signicativa para a construção dos
agrupamentos (veja Gráco 3). Em todos
os grupos, percebe-se uma concentração
maior de museus de gestão pública em
geral. No entanto, pouco mais de 50% dos
museus do grupo 5 possuem gestão públi-
ca municipal, enquanto o grupo 6, formado
por museus de São Paulo, Rio de Janeiro
e Ceará detém 36% de seus museus em
administração privada (Gráco 3).
Com respeito à temática das cole-
ções permanentes dos museus, a distribui-
ção entre os grupos não se diferenciamui-
to, destacando-se museus da categoria
“Documental e Histórico” e “Sem Informa-
Fonte: elaboração própria
Fonte: elaboração própria
ção” (Gráco 4). No entanto, o grupo 3 se
diferencia desse padrão, sendo formado
apenas por museus da categoria “Sem
Informação”, ou seja, que não possuíam
informações sobre o acervo no CNM.
Gráfico 3 – distribuição dos grupos por gestão (%)
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Fonte: elaboração própria
Fonte: elaboração própria
Gráfico 5 – Distribuição dos clusters pelo tamanho dos municípios (%)
Observamos também que o tama-
nho das cidades é uma variável importan-
te, medida pelo tamanho da população
(Tabela 3). Os grupos 4 e 6 são forma-
dos basicamente por museus localizados
em cidades grandes, predominantemen-
te com mais de um milhão habitantes. O
grupo 1 é formado, em sua maioria, por
museus localizados em municípios peque-
nos, com menos de 50 mil habitantes na
região Nordeste.
O segundo grupo engloba os museus lo-
calizados em cidades médias das regiões
Sudeste, Sul e Nordeste, municípios com
100 a 1 milhão de habitantes.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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A variável estrutura para turistas estran-
geiros não foi muito relevante para a formação
dos pers, pois os museus brasileiros, em sua
grande maioria, não apresentam esse tipo de
estrutura (Gráco 6), cerca de 90%. No entanto,
o grupo 6 dos estados de São Paulo e Rio de
Janeiro, destacou-se pelo elevado percentual
de museus que possuem tal estrutura (36%).
Outra característica importante dos
museus brasileiros é a oferta de visitas guia-
das. O grupo 3 se destaca por grande parte
de seus museus, cerca de 90%, não ofere-
cer esse tipo de visita, e já o grupo 5 se des-
taca por apresentar uma situação contrária
a essa, cerca de 90% oferecerem visitas
com acompanhamento de guias (Gráco 7).
Fonte: elaboração própria
Fonte: elaboração própria
Gráfico 6 – Distribuição dos grupos por estrutura para turistas estrangeiros
Gráfico 7 – Distribuição dos grupos por visitadas guiadas
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Fonte: elaboração própria
Fonte: elaboração própria
Gráfico 8 – Distribuição dos grupos por acesso à biblioteca
Gráfico 9 – Distribuição dos grupos por acesso ao acervo histórico
Ainda a respeito das estruturas dos
museus, analisamos a existência de biblio-
tecas e arquivos históricos nesses equipa-
mentos. Cerca de 70% dos museus bra-
sileiros não possuem bibliotecas e pouco
mais de 65% não possuem arquivo históri-
co. No entanto, como mostram os grácos
6 e 7, dentre os museus que possuem tais
instalações, mais de 70% permitem aces-
so ao público.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Através dos indicadores socioe-
conômicos, o grupo 1, composto apenas
por museus localizados em municípios
com menos de 50 mil habitantes, detém o
menor número de mortes por causas ex-
ternas, além das menores proporções de
adultos com ensino médio completo e de
domicílios com acesso a esgotamento sa-
nitário (tabela 2).
O grupo 2, instituições localizadas
em municípios com mais de 100 mil habi-
tantes, possui a maior despesa em cultura
per capita, já o grupo 4 abrange os equi-
pamentos localizados em municípios com
a menor despesa em cultura per capita e
a maior proporção da população com en-
sino médio completo.
Por sua vez, o grupo 6 é formado
por museus em municípios com a maior
renda média dos ocupados, pouco mais
de R$ 2.030 per capita. Além da maior mé-
dia de mortalidade e proporção de domicí-
lios com acesso a esgotamento sanitário.
A despesa em cultura per capita em
todos os grupos não apresentou valores
muitos díspares, variando de R$ 34,80
(Grupo 3) a R$ 49,70 (Grupo 2).
Tabela 2 – Variáveis socioeconômicas
Fonte: elaboração própria
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Ao combinar essas descrições,
podemos identicar tipos característicos
dos museus brasileiros de acordo com
as variáveis que selecionamos. Deste
modo, as especicidades de cada um
dos tipos são assim delineadas:
Tipo 1: museus de gestão mu-
nicipal localizados em municípios com
menos de 50 mil habitantes, principal-
mente na regiãoNordeste, e que apre-
sentaram a menor mortalidade por cau-
sa externa, as menores proporções de
adultos com ensino médio completo e
de domicílios com acesso a esgotamen-
to sanitário, além da menor renda mé-
dia per capita.
Tipo 2: museus localizados em municí-
pios das regiões Sudeste e Sul com po-
pulação superior a 100 mil habitantes e
que apresentaram a maior despesa mé-
dia em cultura per capita.
Tipo 3: equipamentos, principalmente,
de gestão municipal e sem informação
sobre a gestão localizados em municí-
pios do Sudeste e Sul com população
entre 20 mil e 500 mil habitantes. Desta-
ca-se, nesse grupo, o acervo da catego-
ria “Sem Informação” e por não oferecer
visitas guiadas.
Tipo 4: concentra museus de municípios
das regiões Nordeste e Sul com popula-
ção superior a um milhão, além da menor
média em despesa em cultura per capi-
ta. Os equipamentos também se desta-
cam pelas gestões privada e estadual.
Tipo 5: museus localizados em municí-
pios das regiões Sudeste e Sul com po-
pulação entre 20 mil e 500 mil habitantes,
predominantemente com gestão munici-
pal. Destaca-se, nesse grupo, por ofere-
cem visitas guiadas.
Tipo 6: museus localizados em municí-
pios dos estados de São Paulo e Rio
de Janeiro e Ceará com uma popula-
ção superior a um milhão de habitantes
e que apresentam as maiores médias
de renda dos ocupados e de domicílios
com acesso a esgotamento sanitário.
Os museus destacam-se por serem em
sua maioria de gestão privada e apre-
sentar o maior percentual de equipa-
mentos com presença de estrutura para
turistas estrangeiros.
4 – Conclusões
A aplicação de análise de aglomerados ao
caso de museus brasileiros cadastrados
pelo IBRAM, tendo por unidade de análi-
se o município, mostrou que a distribuição
no espaço guarda características especí-
cas. A análise de aglomerados pode, por-
tanto, contribuir para direcionar uma polí-
tica, levando em conta as especicidades
desses equipamentos. Conhecer os po-
tenciais e fragilidades do setor museal no
Brasil é de suma importância para a busca
de instrumentos que possam fortalecer as
potencialidades do mesmo.
A distribuição de museus é bastan-
te concentrada na região Sudeste, corro-
borando o achado – segundo um estudo
III
realizado pelo IBRAM – de que os equipa-
mentos que tiveram mais sucesso em cap-
tar recursos públicos de incentivo scal,
independentemente da natureza adminis-
trativa também se localizam no Sudeste,
ou seja, também há concentração de be-
neciários dos incentivos. Tais recursos
são imprescindíveis para o funcionamento
das instituições, uma vez que os custos -
xos são elevados. Ademais, o tipo preva-
lecente é o de museus de gestão da esfe-
ra municipal, raticando a importância da
descentralização da gestão cultural como
proposto pelo Sistema Nacional de Cultu-
ra. A municipalização da política cultural
deve ser acompanhada pelo provimento
de recursos que assegurem a sustentabili-
dade destes equipamentos.
52
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Sendo assim, uma política que in-
centive este equipamento como centra-
lidade urbana deverá considerar tais es-
pecicidades. Em agenda de pesquisa
futura, pretende-se selecionar alguns mu-
seus como emblemáticos dentro de cada
um dos pers e proceder a uma avaliação
de impactos sobre o entorno.
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Recebido em 10/01/2016
Aprovado em 08/02/2016
I Ana Flávia Machado. Nayara Souza Larissa Macha-
do. Universidade Federal de Minas Gerais.
II Os museus localizados no Distrito Federal não foram
incorporados na análise devido à falta de dados de des-
pesa em cultura per capita.
III Museus e a dimensão econômica: da cadeia produti-
va à gestão sustentável / Instituto Brasileiro de Museus –
Brasília, DF: IBRAM, 2014. (Coleção Museu, Economia
e Sustentabilidade, 2)
53
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Cultura e trabalho imaterial: música independente e produção cultural
no novo mundo do trabalho
Cultura y trabajo inmaterial: la música independiente y la producción
cultural en el nuevo mundo del trabajo
Culture and immaterial labor: independent music and cultural
production in the new world of labour
André Peralta Grillo
i
Resumo:
Este trabalho discute a relação do produtor cultural, denido como
quem realiza eventos ou produz bens culturais e artísticos, com as
mudanças no “mundo do trabalho” contemporâneo. Baseia-se em
pesquisa sobre o tema focada no ramo da “música independente”
brasileira contemporânea, a partir de estudo de caso da rede “Circuito
Fora do Eixo”, fundada em 2005 por coletivos de produção cultural de
diferentes partes do país. Tenho como hipótese que os agentes dessa
rede levam ao limite algumas tendências contemporâneas de vinculação
do trabalho produtivo a um cunho militante, a partir de um repertório de
crenças e práticas forjadas no âmbito dos movimentos de contestação
juvenil dos anos 60, que caram conhecidas como “Contracultura”.
Palavras chave:
Produção Cultural
Trabalho imaterial
Música independente
Movimentos sociais
Circuito Fora do Eixo
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Resumen:
En este trabajo se analiza la relación entre el productor cultural, denida
como aquella que lleva a cabo eventos y produce bienes culturales y
artísticos, con los cambios en el “mundo del trabajo” contemporáneo.
Se basa en la investigación sobre el tema se centró en el negocio de
“música independiente” contemporánea brasileña, a partir del estudio de
la red caso “Off Circuito Eje”, fundada en 2005 por la producción cultural
colectiva en diferentes partes del país. He planteado la hipótesis de que
los agentes de este cable de red para limitar algunas de las tendencias
contemporáneas que vinculan el trabajo de producción de carácter
militante, de un repertorio de creencias y prácticas forjado dentro de
los movimientos de protesta de jóvenes de los años 60, que se conoció
como “contracultura “.
Abstract:
This paper discusses the relationship of the cultural producer, dened
as those who makes events or produces cultural and artistic assets,
with changes in the contemporary “world of labour”. It is based on
research on the topic focused in the business of brazilian contemporary
“independent music”, from a case study of the network “Circuito Fora
do Eixo”, founded in 2005 by collectives of cultural production from
different parts of the country. I have hypothesized that the agents
of this network lead to limit some contemporary trends linking the
production work to a militant nature, from a repertoire of beliefs and
practices forged within the youth protest movements of the 60s, which
became known as “counterculture “.
Palabras clave:
Producción cultural
Trabajo inmaterial
Música independiente
Movimientos sociales
Circuito Fora do Eixo
Keywords:
Cultural Production
Immaterial labor
Independent music
Social movements
Fora do Eixo Circuit
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Cultura e trabalho imaterial: música
independente e produção cultural no
novo mundo do trabalho
Este trabalho discute a relação do
produtor cultural, denido como quem re-
aliza eventos ou produz bens culturais e
artísticos, com as mudanças no “mundo
do trabalho” contemporâneo. Baseia-se
em pesquisa sobre o tema focada no ramo
da “música independente” brasileira con-
temporânea, a partir de estudo de caso da
rede “Circuito Fora do Eixo”, fundada em
2005 por coletivos de produção cultural de
diferentes partes do país. Tenho como hi-
pótese que os agentes dessa rede levam
ao limite algumas tendências contemporâ-
neas de vinculação do trabalho produtivo a
um cunho militante, a partir de um repertó-
rio de crenças e práticas forjadas no âmbi-
to dos movimentos de contestação juvenil
dos anos 60, que caram conhecidas como
“Contracultura”, moldando um momento de
inexão da cultura ocidental como um todo.
O artigo divide-se em três partes,
além da conclusão. Na primeira, apresen-
to um panorama da Contracultura. Na se-
gunda, a discussão sobre o novo mundo
do trabalho no chamado “novo capitalis-
mo”. Na terceira, a música independente
no Brasil contemporâneo e o Fora do Eixo,
que vai além da produção cultural de mú-
sica independente, atuando como um mo-
vimento social na esfera da cultura.
I
A obra do sociólogo Theodore Ro-
zak é um marco não só ao estudo, mas
à própria Contracultura como movimento.
Publicada no calor dos acontecimentos, em
pleno 1968, “The making of a Counter Cul-
ture” (em português “A Contracultura: re-
exões sobre a sociedade tecnocrática e a
oposição juvenial” (ROZAK, 1972) introduz
o “conceito”, academicamente embasado,
de “Contracultura”, no debate público, no
momento em que o fenômeno estava em
seu auge, no esteio de um movimento de
crítica já consolidado, voltado contra a “Tec-
nocracia”. Estes são os dois conceitos cha-
ves aqui, e a obra de Rozak irá sistematizar
as inúmeras frentes de contestação que se
proliferam nos anos 60, em movimentos de
jovens por todo ocidente. Movimentos que,
se diferem substancialmente em seu teor
racial, socioeconômico, muitas vezes em
algumas pautas e no perl de seus mem-
bros, têm sua unidade aqui construída em
torno do conceito de “Contracultura”, como
um levante ante a “Tecnocracia” e tudo o
que esta representa.
Segundo o autor, a contestação
aqui vai a um nível tão profundo, ques-
tionando os princípios basilares e esque-
cidos como tais, adotados por todas as
sociedades industriais, seja qual for seu
sistema político ou ideológico, que não te-
ríamos simplesmente uma cultura ou mo-
vimento de contestação, mas estaríamos
observando o nascimento de uma verda-
deira Contracultura, cuja denição jaz na
oposição total e plena, desde seus funda-
mentos (o que Marcuse chama de “Gran-
de Recusa”), ao “Sistema” estabelecido,
ou seja, à sociedade tecnocrática.
Os princípios da Tecnocracia são
a eciência, o controle cientíco e absolu-
to da vida, da produção e do ser humano,
em uma sociedade (a industrial) que atinge
um nível tal de complexidade que torna as
mais triviais e cotidianas atividades depen-
dentes, para a sua melhor realização, de
“Especialistas”. Todo o “Sistema” depen-
de da ingerência e consulta constante a
especialistas. E isso não só em relação a
questões técnicas ou processos cientícos
complexos. Todo conhecimento, sabedoria,
bem-estar, bem-viver, devem passar pelo
crivo dos especialistas. A ciência, a razão,
o cálculo e o quanticável, são os únicos
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dignos de ensejar conhecimento. A ciência,
ou uma versão vulgar desta, reproduzida
e aceita como uma religião, passa a ter o
monopólio do conhecimento, banindo como
inferior e irracional tudo que seja místico, in-
tuitivo, não-intelectivo, em última instância,
banindo e expurgando a subjetividade.
No decorrer da obra, Rozak irá fun-
damentar teoricamente e denir historica-
mente a Contracultura a partir da crítica
teórica e prática à tecnocracia. Sua socio-
logia é engajada, mostrando uma ferrenha
(com laivos poéticos e místicos) adesão a
esta corrente crítica à tecnocracia, e uma
certa ambiguidade em relação aos movi-
mentos de jovens. Em alguns momentos
entusiasta, noutros cético, noutros ainda
esperançoso. Algo certo é que identi-
ca na Contracultura a única força capaz
de levar a termo uma revolução profunda
e à derrocada da tecnocracia. O grande
problema, que vem a tona em vários mo-
mentos de seu livro, é a imaturidade dos
jovens. Seu próprio trabalho é uma tenta-
tiva de contribuir com uma reexão mais
madura, articulando uma série de pensa-
dores que, além dele, já vinham tentando
dar mais estofo ao movimento de contes-
tação, como Marcuse, Normam Brown e
Paul Goodman, além de jovens literatos e
místicos mais inuentes, como Alen Gins-
berg e Alan Watts, tendo como ponto nodal
a transição temática e estética fundamen-
tal da carreira de Bob Dylan. Nas palavras
do autor (ROZAK, 1972, p. 73):
Neste ponto, a causa que os beats do
começo da década de cinqüenta ha-
viam abraçado – a remodelação de si
mesmos, de sua maneira de viver, de
suas percepções e sensibilidades –
rapidamente toma precedência sobre
a causa pública de reformar institui-
ções ou políticas.
Pode-se, portanto, discernir entre os jo-
vens um continuum de pensamento e ex-
periência que liga a sociologia da Nova
Esquerda de Mills, o marxismo freudiano
de Herbert Marcuse, o anarquismo ges-
táltico de Paul Goodman, o apocalíptico
misticismo corporal de Normam Brown,
a psicoterapia Zen de Alan Watts e, nal-
mente, o narcisismo impenetravelmente
oculto de Timothy Leary [...]
Rozak trata basicamente de seu
país, os EUA, embora ressalte as caracte-
rísticas de continuidade com movimentos
na Europa e América Latina. Destaca as
diferenças entre o movimento estudantil
na Europa, mais propenso às tácticas e
objetivos da esquerda tradicional, visto à
força do movimento (e dos partidos) so-
cialistas e comunistas em vários países,
em relação ao mesmo nos EUA. A Nova
Esquerda estadunidense acaba com isso
expressando de forma mais acentuada o
que identica como as características da
Contracultura.
Ao mostrar essas características, o
autor buscar estabelecer o elo entre atores
aparentemente muito díspares, como hip-
pies andarilhos e militantes do movimento
estudantil, beatnicks e jovens engajados
nas lutas por direitos civis. A unidade se
daria pelo foco na negação da tecnocracia,
da autoridade, da hierarquia, do “sistema”
como um todo, seja nas fábricas ou nas
universidades, no lazer ou na vida familiar.
Essa crítica pode ser identicada também
como uma recusa ao “American Way of Life”
e sua cultura individualista e consumista.
A discussão sobre individualidade
é interessante e merece cuidado. A crítica
aqui é ao individualismo egoísta, consumis-
ta e sectário, e não à individualidade, que é,
ao contrário, alçada a um papel fundamen-
tal. Muito de característico do movimento
de Contracultura está na valorização do
indivíduo, de sua subjetividade ante instân-
cias objetivas que buscam anular sua ex-
pressividade e criatividade, alçando a “re-
volução interior” como elemento central da
mudança social, e desvalorizando todas as
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formas de sacrifício por uma “causa maior”
a se realizar em um futuro distante.
O que está em jogo aqui é a “[...]
insistência quanto a uma reforma revolu-
cionária que deveria nalmente abranger
a psique e a sociedade.” (idem: 74)
Percebemos então a unidade geral a
que se sobrepõe os diversos grupos
contraculturais se considerarmos a
boêmia beat e hippie como um esfor-
ço no sentido de elaborar a estrutura
de personalidade e o estilo de vida to-
tal que se derivam da crítica social da
Nova esquerda. Naquilo que tem de
melhor, esses jovens boêmios consti-
tuem os pretensos pioneiros utópicos
do mundo que jaz além da rejeição in-
telectual da Grande Sociedade. Procu-
ram engendrar uma base cultural para
a política da Nova esquerda, descobrir
novos tipos de comunidade, novos
padrões familiares, novos costumes
sexuais, novas maneiras de ganhar a
vida, novas formas estéticas e novas
identidades pessoais no lado oculto da
política de poder, no lar burguês e na
sociedade de consumo. (idem: 75)
Segundo Goffman e Joy (2004,
p.26), a Contracultura seria, da perspecti-
va de Rozàk, uma “revolta ante uma civi-
lização alienante, mecanizada e excessi-
vamente materialista em favor de um mais
natural, intuitivo, harmônico e generoso
modo de vida”. Mas para outros, como Ti-
mothy Leary e, de forma menos acentua-
da, os Yippies e Diggers, estar-se-ia aden-
trando em um mundo em que “a tecnologia
nos libertaria da escassez humana e do
trabalho alienado, garantindo-nos uma es-
pontânea, lúdica auto-exploração e, até,
auto-indulgência”. Ressoam aqui, de for-
ma exemplar, as idéias de Marcuse (1979;
1977), que se fundamentam em grande
parte na compreensão (bastante discutí-
vel) de que o desenvolvimento tecnológico
teria atingido um patamar que permitiria o
m da escassez e do trabalho alienante,
monótono e degradante, e que este estado
só não era alcançado em função dos me-
canismos de manutenção dos privilégios e
interesses políticos do status quo, consti-
tuindo-se, assim, em termos marxistas, em
uma defasagem entre as forças produtivas
e as relações de produção.
Segundo os autores, movimentos
contraculturais, não importa o quão díspares
pareçam um em relação ao outro, surgem de
combinações variáveis dos mesmos princí-
pios e valores, que distinguem as contracul-
turas da sociedade mainstream, assim como
de subculturas, minorias étnicas e religiosas,
e grupos dissidentes não-contraculturais. As
características primárias da contracultura
seriam (GOFFMAN; JOY, 2004, p. 29):
1) Contraculturas dão primazia
à individualidade às custas de conven-
ções sociais e constrangimentos gover-
namentais
2) Contraculturas desaam o auto-
ritarismo tanto em sua forma óbvia como
em suas formas sutis
3) Contraculturas abrangem mu-
dança individual e social
A individualidade é central à contra-
cultura, podendo facilmente a história des-
ta também ser chamada de história dos
livre-pensadores e do livre pensamento.
Porém, a individualidade contracultural
tem um sentido especíco, que difere do
individualismo: ela é uma individualidade
profunda, compartilhada.
Além destes princípios fundamen-
tais, existem também, para Goffman e Joy,
algumas características quase universais
da Contracultura, manifestas em quase to-
das as contraculturas por eles analisadas,
e que emergem dos princípios fundamen-
tais expostos. São elas:
1) Rompimentos (breakthroughs)
e inovações radicais em arte, ciência,
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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espiritualidade, losoa e viver.
2) Diversidade.
3) Autêntica, aberta comunicação e
profundo contato interpessoal. Além disso,
generosidade e compartilhamento demo-
crático de ferramentas.
4) Perseguição por parte da cul-
tura mainstream das subculturas con-
temporâneas.
5) Exílio ou droping out.
Uma importante característica elen-
cada é a comunicação aberta, “a livre troca
de arte e pensamento entre mentes mu-
tuamente empáticas (like minds)”, impor-
tante principalmente para a expansão das
comunidades contraculturais, sendo a co-
municação intelectual, ademais, elemento
chave para a formação de contraculturas.
A comunicação emocional íntima
também é fundamental ao fortalecimento
da maioria das comunidades contracultu-
rais. Como no movimento beat, em que
recorrentemente se faz menção às longas
conversas e discussões até o amanhecer,
e as inúmeras experiências e aventuras
estradeiras compartilhadas.
II
Boltanski e Chiapello (2009) defen-
dem a tese de que o capitalismo se de-
senvolve a partir da incorporação parcial
da crítica em seus momentos culminantes.
Assim, o que chamam de “Novo Espírito do
Capitalismo”, associado à reestruturação
produtiva e ideológica do mesmo desde iní-
cio dos anos 70, expressa a assimilação de
uma serie de demandas forjadas no bojo no
movimento de Contracultura, moldando a
nova ideologia (em sentido de conjunto de
valores e crenças, ancorados em institui-
ções), que estimula o engajamento e dedi-
cação apaixonada dos agentes econômicos
mais dinâmicos, e se dissemina no conjun-
to da sociedade como forma de legitimar a
precarização do trabalho (SENNET, 2008).
A partir do conceito de “trabalho
imaterial”
II
é possível identicar três dimen-
sões da reestruturação do mundo do tra-
balho contemporâneo: um conceitual, outro
organizacional, e um terceiro da perspecti-
va do sentido da ação do indivíduo.
O primeiro nível, conceitual, se refe-
re ao questionamento da validade, ou perti-
nência, do uso da teoria econômica do va-
lor-trabalho, especialmente a versão crítica
de Marx. No caso, essa negação não seria
da aplicação desta teoria ao capitalismo
(inegável a qualquer autor com alguma re-
lação mínima que seja com o marxismo ou
vertentes intelectuais de esquerda (comum
aos “teóricos do imaterial”), mas à incapa-
cidade da mesma dar conta da produção
de valor no “novo capitalismo”, “cognitivo”,
“informacional”, “em rede”, ”pós-fordista”.
A tese
III
é de que o valor das mercadorias
se realiza predominantemente em seus
atributos imateriais, tornando o tempo de
trabalho que cria o valor imensurável. Isso
não exclui a materialidade da produção de
bens, duráveis ou não, apenas arma que o
que há de imaterial, simbólico, de branding,
são preponderantes ao valor em relação à
sua utilidade, sendo cruciais aqui os gastos
com propaganda e marketing, o trabalho
criativo de designer e etc. O tempo gasto
para se conseguir uma “sacada” em propa-
ganda é imensurável, assim como a qua-
licação dos trabalhadores pós-fordistas,
do “capital humano” das empresas (GORZ,
2005), na medida em que esse capital é
formado pelos conhecimentos e experiên-
cias adquiridos em grande parte no mundo
da vida, do lazer e da sociabilidade “lúdica”.
O segundo nível, organizacional,
trata do que Boltanski e Chiapello (2009)
chamam de passagem da predominância
da lógica industrial para a lógica de rede
na organização das empresas e do mundo
do trabalho, caracterizando a ascensão do
“novo espírito do capitalismo”, a nova ideo-
logia que leva ao engajamento (no sentido
de dedicação apaixonada) dos trabalhado-
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res à produção pós-fordista, ancorada em
instituições que orientam a prática, referen-
dadas por provas, sanções e recompensas.
Segundo os autores, como visto, o capita-
lismo muda de “espírito” a partir da incor-
poração parcial das demandas dos movi-
mentos de crítica, no caso os movimentos
de contestação (em especial da juventude)
dos anos 60 do século passado no ociden-
te, que alcançou, em diferentes matizes,
nível global, e cou conhecido como “Con-
tracultura”. Em meio a uma crítica mais am-
pla, voltada contra a sociedade consumista
e tecnocrática, sobressaem as demandas
por relações não-alienantes de trabalho,
da valorização da subjetividade e do envol-
vimento do trabalhador em sua atividade
produtiva, em oposição à lógica da “linha
de montagem” do fordismo, além da crítica
às formas sociais hierárquicas. Essas de-
mandas são incorporadas às relações tra-
balhistas, chegando ao discurso do patro-
nato em convergência com a ascensão do
toyotismo. Em termos organizacionais te-
mos, então, exibilidade e polivalência em
grupos de trabalho, hierarquias menos rígi-
das e uxos de comunicação mais horizon-
tais (facilitados pelas Novas Tecnologias
de Informação e Comunicação – NTIC),
incentivo ao envolvimento do trabalhador e
a contribuição do mesmo criativamente, re-
lativizando, em teoria, a separação estrita
entre concepção e execução. Ressaltando
que essa apropriação e reestruturação do
capitalismo foi a forma de legitimar a ex-
pansão generalizada do processo de pre-
carização do trabalho. A expansão do setor
de serviços e a informatização (via auto-
mação) mesmo das atividades industriais
“clássicas”, como a produção automotiva
IV
,
também fazem parte deste processo.
Por m, o terceiro nível expressa os
outros dois na perspectiva do indivíduo, ou
seja, o perl esperado (e melhor recom-
pensado) do trabalhador no pós-fordismo.
Flexibilidadde, mobilidade, adaptabilidade,
capacidade de decisão e improviso, de co-
operação, de trabalho em equipe, habilida-
de de comunicação, sociabilidade, desape-
go (a lugares e pessoas), envolvimento da
personalidade e da subjetividade no traba-
lho, criatividade, habilidade em fazer con-
tatos e expandir redes, são algumas das
características que ensejam a conquista do
patamar de “grandeza” no contexto norma-
tivo da “cidade por projetos” (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009; GORZ, 2005). São ca-
racterísticas que, em princípio, aumenta-
riam a liberdade e a autonomia, na vida e
no trabalho, reetindo a incorporação das
demandas contraculturais:
Assim, por exemplo, as qualidades que,
nesse novo espírito, são penhores de
sucesso – autonomia, espontaneidade,
mobilidade, capacidade rizomática, poli-
valência (em oposição à especialização
restrita da antiga divisão do trabalho), co-
municabilidade, abertura para os outros
e para as novidades, disponibilidade,
criatividade, intuição visionária, sensibi-
lidade para as diferenças, capacidade
de dar atenção à vivência alheia, acei-
tação de múltiplas experiências, atração
pelo informal e busca de contatos inter-
pessoais – são diretamente extraídos do
repertório do maio de 68. (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009, p. 130)
Os autores enfatizam que o espíri-
to do capitalismo busca motivar e engajar
os agentes mais dinâmicos da economia,
impulsionando assim a mesma. No caso
do novo espírito, estes agentes seriam ba-
sicamente executivos e engenheiros, por
sua posição e poder na divisão do traba-
lho, por seu papel decisivo na mesma. Po-
rém, como arma também Sennet (2008)
ao falar do “Novo Capitalismo”, este estilo
de vida que propicia uma maior liberdade
e autonomia a esses agentes mais dinâmi-
cos, que possuem os pré-requisitos para se
tornarem notáveis, adquirirem grandeza - e
que lhes permite não almejar a segurança
de um emprego formal com carteira assi-
nada, já que sua notabilidade lhe garante
ser sempre requisitado em novos proje-
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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tos – dissemina-se na sociedade como um
todo como ideal que, de fato, não pode ser
vivido e realizado por todos, que em sua
maioria estaria bem melhor em um empre-
go formal e seguro, e servindo assim para
justicar (legitimar normativamente) a pre-
carização do trabalho e a perda dos direi-
tos trabalhistas, algo que para esta grande
maioria é apenas prejuízo.
E onde entre a produção cultu-
ral neste contexto? No caso brasileiro, as
políticas culturais a partir dos anos 90 es-
timulam a criação de um ambiente que é,
literalmente, uma cidade por projetos, pos-
sibilitando, institucionalmente, a realização
desta dinâmica, embora dicilmente (pra
maioria) garanta que se possa viver da re-
alização de projetos culturais nanciados
por editais. Assim, uma questão geral que
norteia meu trabalho é se a produção cultu-
ral no Brasil, a partir dos anos 90, incorpora
esta lógica em rede, esse contexto norma-
tivo da cidade por projetos, com seus atri-
butos especícos que são recompensados
e que levam à grandeza e sucesso.
Outra questão, interligada a essa, se
refere à possibilidade de pleno envolvimento
no trabalho, característica central ao “novo
espírito do capitalismo”, e que decorre dire-
tamente da crítica, no âmbito da Contracul-
tura, à sociedade tecnocrática. A partir da
pergunta de Gorz (2005) sobre como se ter
pleno envolvimento em uma atividade cujos
ns são indiferentes ao indivíduo, como o
lucro do banco para o bancário, ao menos
para o engajamento, a dedicação apai-
xonada (BOLTANKI; CHIAPELLO, 2009),
desenvolvo a hipótese de que a produção
cultural talvez possa, em princípio, atender
efetivamente às demandas por envolvimen-
to da subjetividade e por uma vida laboral
mais plena e realizada, na medida em que
se tem a Produção Cultural como trabalho
signicativo, ou graticante em si. A seguir,
exploro essas hipóteses sobre a produção
cultural contemporânea a partir do nicho da
chamada “música independente”.
III
Tem-se observado que nos últimos
anos a indústria da música vem passan-
do por uma transição, estando sua “cri-
se” relacionada ao aumento da oferta de
bens e serviços culturais, à limitação de
poder aquisitivo (em especial nos países
periféricos), e ao crescimento da pirataria
(HERSCHMANN, 2012), elementos estes
que enfraqueceriam os dois pilares sob os
quais se assentam o mercado musical tra-
dicional, a saber, o comércio massivo de
obras gravadas em diferentes suportes
físicos e “os direitos econômicos que in-
cidem sobre os fonogramas”, no contexto
das novas tecnologias e do aumento do
compartilhamento de arquivos.
Temos, assim, uma vertiginosa des-
valorização dos fonogramas e um “cres-
cente interesse e valorização da música
ao vivo”, além do “crescente emprego das
novas tecnologias e das redes sociais na
web” (HERSCHMANN, 2012, p.2).
É possível se armar que jamais na
história da música se produziu tanto
e com tanta liberdade, mas também
mais do que nunca hoje o processo
de desenvolvimento de visibilidade e
popularidade de um repertório musical
converteu-se em uma série de etapas
e estratégias de grande complexidade
que buscam evitar a grande tendência
de fracasso enfrentada por artistas e
produtores de música.
Enquanto a grande indústria bus-
ca frear este desenvolvimento (ao mesmo
tempo em que se adapta a ele, elaboran-
do contratos que exploram outras formas
de ganho e gerenciamento de carreiras,
aproveitando-se do aumento do lucro com
apresentações ao vivo e atividades rela-
cionadas à mesma), alguns novos agen-
tes se beneciam destas mudanças, em
especial artistas fora do mercado tradicio-
nal: “com a utilização das mídias interati-
61
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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vas, estabelecem-se redes colaborativas
entre produtores e consumidores-usuários
que ampliam a visibilidade e capacidade
de divulgação e promoção dos artistas”
(HERSCHMANN, 2012, p. 5).
Observa-se também o crescimen-
to signicativo do número de festivais in-
dependentes, organizados por pequenos
produtores, coletivos e pequenas grava-
doras, que fazem uso de “recursos de leis
de incentivo a cultura, emprego das novas
redes sociais, militância na área musical
e até escambo” (HERSCHMANN, 2012,
p. 9; NOGUEIRA, 2009; ALVES, 2013).
Neste sentido, se destaca a rede “Circui-
to Fora do Eixo” (GRILLO, 2014a; 2014b;
2015a; 2015b; 2015c; SAVAZONI, 2014;
BARCELLOS, 2012), cujo surgimento está
imbricado com o fenômeno que podemos
chamar de “festivais independentes brasi-
leiros contemporâneos”.
Nogueira (2009) defende a hipótese
do “surgimento de um circuito de festivais
em todo o país como novo o condutor” do
nicho do rock independente, “ocupando
espaços de circulação que antes cabiam
às rádios”, recongurando a cadeia pro-
dutiva da música no setor que, no Brasil,
teria se consolidado dando ênfase aos fo-
nogramas, e que, a partir de então, terá os
shows ao vivo como seu eixo, em especial
com a disseminação das novas tecnolo-
gias e da internet.
De meados dos anos 1990 até
então (ns do 2000), o rock indepen-
dente brasileiro teria desenvolvido uma
“estrutura organizacional própria e bem
distinta”, a partir da “formação de co-
munidades virtuais, principalmente em
listas de discussão por email”, como a
PB-Rock (Paraíba), RN-Rock (Rio Gran-
de do Norte) e a Nordeste Independente,
que contava então com 334 membros de
todas as capitais da região (NOGUEI-
RA, 2009, p. 7). Estas listas seriam mais
fortes em cidades fora do eixo Rio-São
Paulo, e facilitariam o trabalho de produ-
ção e de selos, que se centrariam mais
em gêneros do que na sua região de
atuação. O maior exemplo, a “Poplist”,
formada em 1998, teria então 368 mem-
bros de todo o país, gerando uma média
de 28.000 email’s por mês. Este recurso
favorece o contato, antes realizado ape-
nas nos festivais.
Como bem conhecido, o marco
desta “nova era de festivais” é o festival
Abril Pró-Rock, realizado no Recife, cuja
primeira edição se deu em 1993. O mesmo
alçou esse patamar de marco e destaque
pela contingência histórica de surgir junto
com o talvez último grande movimento da
música brasileira, o movimento mangue-
-beat. Assim, no ano seguinte o festival já
alcança outro nível, com grande repercus-
são na mídia e transmissão pela MTV.
O contexto aqui é o da preponde-
rância da atuação dos selos independen-
tes como um complemento da grande
indústria, sendo que muitos artistas que
se tornaram consagrados, como Pato Fú,
Raimundos, Skank e etc., começam gra-
vando por um destes selos antes de se-
rem contratados pelas majors, ganhando
notoriedade neste novo circuito de festi-
vais que vai se consolidando (prática que
ainda acontece, mas que naquele momen-
to era como que o único caminho).
Com dezenas pelo país, os produ-
tores dos festivais independentes iriam
criar uma associação, a ABRAFIN, em
2005, tendo como primeiros presidente e
vice Fabrício Nobre (produtor do Goiânia
Noise) e Pablo Capilé (membro do coleti-
vo Espaço Cubo de Cuiabá, responsável
pelo Festival Calango). No mesmo ano
será fundada a rede Fora do Eixo (FdE),
que surge a partir da circulação de mem-
bros do Espaço Cubo por outros festivais
independentes, segundo os mesmos, no
intuito de fazer contato com bandas e ou-
tros produtores.
62
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Um pouco após a troca da direto-
ria, em 2011, a ABRAFIN sofre um racha,
com 13 festivais abandonando a associa-
ção por considerarem que a mesma es-
tava sob inuência excessiva do FdE (a
presidência e vice agora era ocupada por
dois membros vinculados à rede, Ivan Fer-
raro e Tales Lopes). A associação acaba
então se dissolvendo e o FdE, que já era
por si só um vasto circuito cultural, com
dezenas de festivais realizados por seus
coletivos, vinculados ou não à ABRAFIN,
e com o festival integrado “Grito Rock” ,
funda a partir daí a “Rede Brasil de Festi-
vais” que, no ano passado (2014) realizou
82 festivais em todas as regiões do país.
Os dissidentes formam a FBA (Festivais
Brasileiros Associados).
Embora seu ato de fundação “o-
cial” seja realizado em dezembro de 2005,
a compreensão da formação do FdE passa
pela história do que pode ser considerado
seu primeiro coletivo, o Espaço Cubo, de
Cuiabá. As duas principais lideranças aqui,
e que mantêm esse protagonismo na rede
até hoje, são Lenissa Lenza e Pablo Capi-
lé. Ambos são estudantes de comunicação
em 2001, Lenissa na UFMT e Pablo na rede
particular. Segundo Lenissa, que participa-
va do movimento estudantil como liderança
no C.A. de seu curso, Pablo a procura no in-
tuito de articularem possíveis ações conjun-
tas, aproximando os normalmente distantes
mundos das faculdades públicas e parti-
culares. A partir daí, e com a aproximação
do m de sua atuação direta no movimento
estudantil, vislumbram algo para além da
faculdade, algo que, segundo a mesma,
permita levar adiante o que normalmente
se encerra com a graduação acadêmica - a
experimentação e o engajamento críticos e
subversivos - e dar continuidade à produ-
ção de eventos “alternativos”.
O Espaço Cubo forma o modelo de
coletivo que será posteriormente adotado,
total ou parcialmente, pelos outros coleti-
vos do que vai ser a rede FdE. Nele estão
presentes o caixa-coletivo (com retiradas
por demandas, a partir de cartões compar-
tilhados e registro das movimentações),
a sede-moradia (os membros moram na
sede do coletivo), a dedicação exclusiva,
e o sentido militante da atividade coletiva.
No intuito de estabelecer contato
com bandas independentes e outros pro-
dutores desta “cena alternativa”, os mem-
bros do Cubo começam a circular pelos
festivais, a princípio mais próximos (como
em Goiânia), e posteriormente pelo resto
do país, para cuja comunicação contri-
buem de forma fundamental as NTIC.
A consolidação como rede e a atu-
ação como movimento tem como marco
os encontros presenciais nacionais, os
“Congressos Fora do Eixo”. O primeiro é
realizado em 2007, em Cuiabá, junto com
o festival Calango, e conta com represen-
tantes de coletivos espalhados por todo o
país. No segundo, realizado em Rio Branco
(AC) no ano seguinte, tem-se a presença
de aproximadamente 100 pessoas (o do-
bro do anterior). É fundamental aqui a pre-
sença de membros do “Massa Coletiva”, de
São Carlos, já presentes no anterior, mas
desta vez acompanhados do professor da
UFSCAR, e especialista em economia soli-
dária, Ioshiaqui Shimbo, que sugere a cria-
ção coletiva de uma carta de princípios e
de um regimento interno
V
, levando a uma
sistematização da ação da rede.
A carta de princípios rearma os
valores do colaborativismo e da descen-
tralização, da lógica hacker (pautada no
código aberto e no software livre), sua
postura anti-hegemônica aos “modos de
produção, circulação e fruição com ênfase
no campo da cultura”, o fomento da pro-
dução criativa e autoral, valorização do
ser humano e “da igualdade de condições
e da polivalência individual e coletiva”, a
busca por “equilibrar trabalho manual e
intelectual”, o fomento a criação de moe-
das sociais, à organização experimental e
63
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cambiante da rede, as práticas de comu-
nicação livre, a proposta de se “criar fer-
ramentas de formação e qualicação dos
agentes”, e etc. Forma assim um sistema
orgânico e coeso de valores e princípios, e
que reete as demandas assimiladas pela
cultura ocidental a partir do movimento
de Contracultura. Isso em uma atividade
que, ao contrário dos setores avançados
da economia que incorporam essas de-
mandas na formação do “novo espírito do
capitalismo”, não possui ns lucrativos, e
que impossibilita a acumulação privada e
não realiza uma acumulação coletiva de
capital, ao menos econômico.
O regimento interno, aprovado em
2009, serve hoje como documento histó-
rico da trajetória do FdE, na medida em
que a organização da rede se encontra
atualmente transformada, mais enxuta,
embora mantendo os mesmos princípios.
Ao invés das inúmeras frentes gestoras
(simulacros das instituições “mainstrem”,
como Banco FdE, Partido FdE, Mídia FdE
e Universidade Livre FdE) e temáticas
(Música, Palco, Literatura Audiovisual), a
divisão está mais entre o núcleo de comu-
nicação e o núcleo de produção, embora
ambos possam partilhar as mesmas pes-
soas, e a referência e recurso às frentes
mais especícas ainda possa ser feita.
Antes disso, em 2011, é possí-
vel observar um momento de inexão
na rede, que passara a dar mais ênfase
e fortalecer-se como movimento social,
sem deixar de lado sua atuação como cir-
cuito cultural (mantendo até hoje, como
visto, um circuito de festivais por todo o
país, a Rede Brasil de Festivais). Isso se
depreende da própria fala de Capilé no
III Congresso FdE (outubro de 2010), em
Uberlândia: “estamos fortes como circui-
to cultural, mas fracos como movimento
social”. Tratei detidamente desta questão
alhures (GRILLO, 2014b; 2015a; 2015b),
em interpretação próxima a desenvolvi-
da por Savazoni (2014). Este dene o
FdE como uma “rede político cultural”,
armando que ela passa a realizar mais
plenamente suas características a partir
deste momento em que passa a fortalecer
sua atuação como movimento social, se
aproximando de outro movimentos, parti-
cipando da organização e articulação de
uma série de atividades em rede, como
as marchas da liberdade e os movimentos
Existe Amor em SP (contra a candidatura
de Russomano à prefeitura de SP) e Mo-
biliza Cultura (contra a presença de Ana
de Holanda como ministra da cultura). A
minha interpretação difere na medida em
que dou mais ênfase na continuidade da
inserção do FdE no mercado de bens cul-
turais, chamado independente, ou seja,
sua atuação como circuito cultural e como
uma rede de produtores culturais, desen-
volvendo projetos principalmente (mas
não só) em torno de festivais de música
(ou de artes integradas) independente (s).
Utilizo então, para denir o FdE,
o termo rede de militância-laboral, para
acentuar o fato de que em sua atuação
há uma indistinção entre militância e ativi-
dade produtiva. A diferença para agentes
de outros movimentos que tem dedicação
exclusiva à causa é que no FdE a própria
atividade militante se realiza na produção
de bens ou eventos que se inserem em
um mercado, no caso, de bens culturais
VI
.
Os agentes do FdE apresentam
uma identidade militante com a rede, as-
sumindo sua atividade como uma luta, e
como algo que envolva toda a sua vida
(como manifesto na expressão recorrente
“vida FdE”). Possuem ampla mobilidade,
em geral entre os festivais, com desloca-
mentos seja por motivo de ajuda na produ-
ção, seja na cobertura, assim como para a
realização de atividade de formação (em
todos os tipos de atividades desenvolvi-
dos na rede). No período de expansão,
algumas de suas lideranças realizavam as
chamadas “colunas”, fazendo contato com
pessoas ligadas à cultura nas mais diver-
64
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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sas cidades, em especial no interior, no
intuito de apresentar sua iniciativa e inter-
ligar mais pessoas, grupos e/ou coletivos
à rede, ou mesmo apresentando o modelo
de coletivo por eles utilizado.
IV
Fica claro no perl dos agentes do
FdE, e em seu valores professados, as ca-
racterísticas e demandas defendidas pela
Contracultura, e assimiladas pelo novo
espírito do capitalismo. A participação no
FdE engendra o desenvolvimento, perce-
bido como uma transformação pessoal e
intersubjetiva, das habilidades mais valori-
zados no contexto do trabalho imaterial e
do que Boltanski & Chiapello (2009) cha-
mam de “ambiente normativo da cidade
por projetos”. Constitui-se em uma organi-
zação em rede impar, na medida em que
congrega atividade produtiva e engaja-
mento político/cultural, além da defesa de
um ethos, um estilo de vida que se propõe
contra-hegemônico, embora, como visto,
em muitos aspectos, próximo dos setores
mais dinâmicos da economia, tendo, po-
rém, outro sentido para seus agentes.
Dois pontos são importantes aqui:
(1) o sentido mais pleno da realização de
uma atividade cujo m é em si valorado,
e não apenas um meio para se adquirir
capital ou poder: a produção cultural; (2)
uma rede que radicaliza esta tendência
possível à atividade, na medida em que
se constitui em um movimento social e é
imbuída de um sentido militante em suas
atividades, mesmo as mais especícas de
produção.
De modo a contextualizar melhor o
fenômeno, radicalizado pelo FdE, tenho
como hipótese que as novas tecnologias
(LEMOS, 2012; RUDIGER, 2011), a re-
conguração da indústrias culturais e o
ambiente institucional das leis de incentivo
possibilitaram a formação, no campo da
produção cultural, de uma verdadeira “ci-
dade por projetos” pautada na “lógica de
rede” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009),
um contexto normativo e cognitivo com
seus critérios, provas e parâmetros es-
pecícos de sucesso e grandeza, que se
coadunam com a hegemonia do trabalho
imaterial (GORZ, 2005, 2007, 1987; CA-
MARGO, 2011; COCCO, 2003; LAZZARA-
TO; NEGRI 2001; SENNET, 2008) e com
o perl de trabalhador esperado, e melhor
recompensado, neste ambiente, em espe-
cial a capacidade de comunicação, exi-
bilidade, mobilidade, trabalho em grupo e
formação e fortalecimento de redes.
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do país. Compos, Dezembro, 2006.
Recebido em 14/12/2015
Aprovado em 04/02/2016
I André Peralta Grillo. Mestre pela Universidade Federal
de Juiz de Fora. Contato: grillo_andre@hotmail.com
II Sobre os inúmeros autores e correntes que utilizam o
conceito, ver (CAMARGO, 2011).
III Em geral os autores que trabalham com o conceito fa-
zem referência ao próprio Marx, armando que o mesmo
já teria antecipado os desdobramentos do mundo do tra-
balho nos “Grundrisse” (MARX, 2011; CAMARGO, 2011;
ANTUNES, 2009).
IV Para uma boa descrição desta informatização a partir
da automação, ver (GORZ, 1987).
V Ambos estão disponíveis, junto com um cronograma
desde 2001 de momentos, números e eventos consi-
derados mais importantes pela rede, no seu site ocial
,<www.foradoeixo.org.br> .
VI Um movimento como o MST, por ex., tem ns eco-
nômicos e se insere em um mercado, mas nele há uma
separação entre o momento de militância e o momento
de produção, no caso, agrícola.
66
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Políticas de comunicação no Brasil: a proposta de um novo marco
regulatório para a radiodifusão
Políticas de la Comunicación en Brasil: la proposición de un nuevo
marco regulatorio para la radiodifusión
Communication Policies in Brazil: the proposal of a new regulation for
media broadcasting
Carlos Henrique Demarchi
I
Maria Teresa Miceli Kerbauy
II
Resumo:
O presente artigo analisa a proposta de um novo marco regulatório para
a comunicação no Brasil. Descreve, sob o ponto de vista dos aportes
teóricos da economia política da comunicação, como a legislação
existente e a ausência de intervenção do Estado dicultam os avanços
na implementação de políticas para o setor. O estudo mostra ainda que,
apesar de o modelo histórico de concentração dos meios não ter sofrido
alterações, o debate público sobre mudanças no marco legal avançou
com as ações de atores da sociedade civil organizada, como o FNDC
(Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
Palavras chave:
Marco regulatório
Políticas de comunicação
Radiodifusão
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El artículo analisa la proposición de un nuevo marco regulatorio para
las comunicaciones en Brasil. Bajo el punto de vista de los aportes
teóricos de la Economía Política de la Comunicación, describimos
como la legislación existente y la ausencia de intervención del Estado
dicultan el progreso para la implementación de política públicas en
el sector. Nuestro estudio mostra que, aunque el modelo histórico de
concentración de los medios no ha sido alterado, el debate público
acerca de los cambios en el marco regulatorio ha avanzado por medio
de las acciones de actores de la sociedad civil organizada como el
FNDC (Foro Brasileño por la Democratización de la Comunicación).
Abstract:
This paper analyses the proposal of a new regulation for media and
mass communication in Brazil. Based on concepts and theoretical
analysis from the Political Economy of Communication, we characterize
how the current legislation and the lack of intervention by the State
present difculties for the progress in implementing public policies in
the segment. Our study shows that, albeit there is a traditional and
historically unchanging model of concentration of media ownership,
the public debate on making changes to the current regulation have
advanced through the actions of organized civil society actor such as
FNDC (Brazilian Forum for the Democratizing Communication).
Palabras clave:
Marco Regulatorio
Políticas de la Comunicación
Radiodifusión
Keywords:
Media regulation
Communication Policies
Media Broadcasting
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Políticas de comunicação no Brasil:
a proposta de um novo marco
regulatório para a radiodifusão
Introdução
A televisão aberta começou as ope-
rações no Brasil em 1950. Historicamente,
o modelo de radiodifusão comercial é ca-
racterizado pela predominância de poucos
grupos televisivos no território nacional,
sendo a TV Globo a líder de audiência.
Dentro da lógica capitalista de busca
de audiência e de internacionalização eco-
nômica, os canais de rádio e TV investem
em produtos homogêneos, restando pouco
espaço para modelos alternativos, com pro-
duções culturais e regionais diversicadas.
Desde os primórdios, o modo de pro-
priedade e controle da televisão no Brasil, a
exemplo do contexto latino-americano, ba-
seou-se no domínio de estruturas familiares
detentoras dos poderes político e econômico.
Assim, ao longo de décadas do sé-
culo XX, os sistemas de meios latino-ame-
ricanos sustentaram práticas privadas na
exploração de licenças de rádio e televi-
são que não precisaram da sanção de leis
ou da produção de regulações estáveis.
(BECERRA, 2011).
O caso brasileiro revela que a con-
centração da mídia remonta ao surgimen-
to da televisão e se imbrica com a própria
legislação responsável por regular o setor,
cuja origem vem da década de 1960.
Outra característica da realidade
brasileira é a ausência de políticas de
comunicação direcionadas para a aber-
tura de instâncias democráticas de parti-
cipação social. Conforme Bolaño (2007),
a Constituição Federal de 1988 trouxe o
esboço de um modelo alternativo de co-
municação, porém ainda não implemen-
tado efetivamente.
Nos últimos anos, não obstante,
segmentos da sociedade civil organizada,
liderados pelo Fórum Nacional pela De-
mocratização da Comunicação (FNDC),
se mobilizaram e propõem o estabeleci-
mento de um novo marco regulatório para
o setor, defendendo, entre outros pontos,
a desconcentração econômica dos canais
abertos e a proibição de concessões pú-
blicas para políticos.
O movimento ganhou força após a
realização da 1ª Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom) em 2009 e re-
ete o entendimento de que a democrati-
zação da ação do Estado implica a parti-
cipação da sociedade civil nas instâncias
gestoras de políticas.
A atualização de marcos regulató-
rios, defendida na legislação internacional
acerca do assunto e levada adiante em
outros países latino-americanos, enfrenta
a resistência dos empresários de radiodi-
fusão no Brasil e não encontra reforço nas
ações dos poderes Executivo e Legislati-
vo, que não avançam na aprovação e exe-
cução de proposições na área.
Tomando como base os aportes
teóricos da economia política da comu-
nicação, o objetivo do artigo é discutir a
proposta de um novo marco regulatório da
comunicação no Brasil a partir da análise
da legislação existente para o setor e das
políticas necessárias para a área, confor-
me reivindicam os recentes movimentos
pela democratização da mídia.
A Unesco e o início do debate sobre
políticas de comunicação
As políticas de comunicação têm
lugar, em nível mundial, nos debates da
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Unesco (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura)
na década de 1970.
Naquele momento, as nações em
desenvolvimento reivindicavam uma Nova
Ordem Mundial da Informação e da Co-
municação (NOMIC). Em sua forma mais
radical, a NOMIC propunha a distribuição
equitativa dos recursos de comunicação
entre os países e mudanças profundas
nos fundamentos legais e institucionais,
que hoje regem as relações internacionais
de comunicação.
Sob este ponto de vista, passou a
ser questionado o livre uxo de informa-
ções, visto que não correspondia ao equi-
líbrio esperado no acesso aos meios de
comunicação.
Mesmo preocupada em não atin-
gir a autonomia dos países membros, a
Unesco recomendava que todo país de-
veria ter uma política nacional de comu-
nicação, de características democráticas,
participativas e a serviço do desenvolvi-
mento nacional.
Assim, de acordo com Amorim
(1988), quando se fala em políticas de co-
municação pensa-se em discutir as políti-
cas que assegurem a pluralidade das estru-
turas de produção e transmissão o acesso
de todos às mensagens e a participação
dos diversos grupos na sua denição.
Para a Unesco, o esforço para de-
mocratizar a comunicação não se esgota
no plano das relações internacionais, ha-
vendo a necessidade também, em cada
país, da adoção de sistemas nacionais
democráticos de comunicação. Esse pro-
cesso implicaria o desenvolvimento das
dimensões do indivíduo enquanto ser polí-
tico, cultural e social. Deste modo,
A Unesco entende por política nacional
de comunicação um conjunto de regras
e princípios tendo como objetivo esti-
mular comportamentos desejáveis e
inibir os inconvenientes. Insiste em que
esta política deve ser global e explícita.
Neste sentido, deve abranger todos os
aspectos importantes da comunicação.
Caberia, portanto, ao se formular uma
política, tentar responder a perguntas
tão variadas quanto saber se o siste-
ma de comunicação deve ter caráter
comercial ou saber se a comunicação
deve ter um sentido eminentemente de
entretenimento, ou também de educa-
ção e informação ou o que fazer para
desenvolver a pesquisa em comunica-
ção. (AMORIM, 1988, p. 21-22).
Diante da concentração dos meios
de comunicação, fenômeno que se acen-
tuou nas últimas décadas no contexto lati-
no-americano, as políticas de comunicação
também abarcam as ações do Estado que,
conforme as concepções e legitimações de
cada tempo histórico, orientam os destinos
da criação, produção, difusão e consumo
de produtos comunicativos e culturais,
além de abranger iniciativas de segmentos
da sociedade civil e do setor privado (BUS-
TAMANTE apud MORAES, 2009, p. 109).
As discussões do organismo mul-
tilateral culminaram com a publicação do
Relatório MacBride (Um mundo e muitas
vozes) em 1980, documento que identi-
cou e sistematizou o problema da con-
centração dos meios e a relevância de
mecanismos dos poderes públicos para
salvaguardar a cultura nacional dos paí-
ses e ampliar a participação social.
Como forma de fazer frente ao po-
derio da indústria midiática, os Estados
têm praticado intervenções para regu-
lar os sistemas de radiodifusão, medidas
adotadas principalmente na Argentina,
Uruguai e Equador. O tema encontra lugar
em investigações da economia política da
comunicação, para a qual a indústria da
comunicação se tornou parte integrante
70
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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de uma grande ordem corporativa que é
simultaneamente exploradora e anti-de-
mocrática. (MOSCO, 1999).
Essa preocupação com o interesse
público perante os órgãos reguladores e po-
líticos do Estado serve ao quadro brasileiro,
no qual a temática da atualização do marco
regulatório se ampliou na esfera da socie-
dade civil organizada, mas não avançou na
agenda dos poderes Legislativo e Executivo.
Comunicação, Estado e regulação
Com a preponderância do mercado
sobre os sistemas social, cultural e políti-
co, um dos problemas enfrentados pelas
nações tem sido a perda da autonomia do
Estado em proteger os direitos dos cida-
dãos e regular os agentes e dinâmicas so-
ciais e econômicas.
Jambeiro (2001) explica que, nota-
damente no nal do século XX, esse cená-
rio de domínio do livre mercado teve como
consequência a substituição dos valores
coletivos e públicos – tradicionalmente
mediados pelo Estado – por valores indivi-
duais e empresariais.
Nesta perspectiva, o Estado deixou
de regular diversas áreas da sociedade,
cedendo lugar às forças do mercado. Com
isso, surge a preocupação em resguardar
os direitos dos cidadãos, uma vez que
Cabe aos Estados, nas sociedades
contemporâneas, uma função de or-
denação e de regulação das relações
sociais e de composição de interesses
individuais e sociais, frequentemente
no âmbito da prossecução de políticas
públicas. (GONÇALVES, 2003, p. 34).
Essa necessidade de proteção dos
direitos dos cidadãos se verica com o
aprofundamento do processo de globali-
zação, responsável por intensicar o re-
cuo do Estado, inclusive nas políticas que
tratam da comunicação. Assim:
Esta nova realidade revela a conse-
qüência mais visível da consolidação
do processo de expansão do capi-
talismo na área das comunicações,
hoje caracterizada pela conglome-
ração de empresas, globalização
da produção, internacionalização e
oligopolizaçäo do mercado, e cris-
talização da lógica capitalista nas
relações entre os mídia e seus pú-
blicos. Isto pode não ser uma situ-
ação pretendida pela teoria liberal,
no que se refere à economia de
mercado e à democracia, mas sem
dúvida é uma realidade concreta
permitida por sua aplicação. Na me-
dida em que se veja esta situação
como não conducente ao exercício
e ao aprofundamento da democra-
cia, pode-se, portanto, concluir pela
falha do mercado enquanto regula-
dor da sociedade, e da democracia
liberal enquanto sistema de gestão
social, pelo menos no que se refere
à área da comunicação de massa.
(JAMBEIRO, 2001, p. 31).
Para Jambeiro (2001), as políticas
nacionais dos países estariam se originan-
do no interior das estruturas nacionais e in-
ternacionais de mercado. Neste sentido,
Ao invés do Estado e grupos de inte-
resse da sociedade civil nacional, são
as companhias multinacionais e as
organizações internacionais, aliadas
ou não a grupos nacionais, que es-
tão ocupando a posição de principais
forças nos processos regulatórios. No
ambiente regulador da indústria da TV,
por exemplo, ao invés dos governos e
grupos nacionais de pressão lutando
para conciliar interesses econômicos,
políticos e culturais, estaríamos vendo
agora grandes e poderosas corpora-
ções transnacionais ditando as regras
71
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
para os serviços de televisão. (JAM-
BEIRO, 2001, p. 10).
A defesa da intervenção do Estado
no setor das comunicações encontra base
em uma ampla gama de autores da linha
da economia política da comunicação
III
,
para os quais a irrestrita liberdade de mer-
cado no cenário de concentração midiática
não garante o funcionamento adequado de
mecanismos de participação e regulação.
Nesta perspectiva, a ação regulató-
ria do Estado precisa zelar pelo equilíbrio
entre o que deve ser público e o que pode
ser privado, “inclusive deixando claro à
população que as empresas de rádio e te-
levisão não são proprietárias dos canais,
apenas concessionárias de um serviço
público com prazo de validade estabeleci-
do em contrato” (MORAES, 2009, p. 195).
Ao analisar a lógica das políticas de
comunicação e o embate entre os atores
na construção da legislação para o setor
no Brasil, Bolaño (2010) caracteriza o mo-
delo de audiovisual como nacionalista e
concentrador, em que prevaleceu a preo-
cupação em proteger os capitais instala-
dos da concorrência externa, a limitação
da manifestação das expressões locais
e do desenvolvimento de um panorama
audiovisual diversicado, servindo basica-
mente aos interesses políticos e econômi-
cos que se articulam no seu interior.
Nas últimas décadas, com a che-
gada ao poder de governos de orientação
progressista em países latino-americanos,
entendeu-se que a comunicação possui
um caráter estratégico, não apenas para a
formação de consensos sociais, mas tam-
bém para a soberania nacional, o desenvol-
vimento cultural, a integração regional e a
cooperação internacional (MORAES, 2009).
Sob este prisma, compreende-se a
relevância da participação do poder públi-
co nos sistemas de informação e difusão
cultural, por meio de ações direcionadas
para a renovação de leis e marcos regu-
latórios das outorgas de rádio e televisão,
no estímulo às produções regionais e in-
dependentes e no fortalecimento de ca-
nais públicos de comunicação.
Para Romão (2014), a democrati-
zação da ação do Estado também é um
fenômeno que tem sido vericado com
maior ênfase a partir do nal da década
de 1980, sendo a sociedade civil protago-
nista na abertura de espaços de debate e
gestão de políticas.
Considerando que a radiodifusão é
transmitida por meio de um recurso limita-
do – o espectro de frequências – a explora-
ção privada desse bem público nito deve
ter como m os interesses da coletividade.
Marco regulatório da comunicação
no Brasil
Ao longo da história, a radiodifu-
são comercial brasileira é caracterizada
por uma série de falhas, como a ausência
de transparência e de critérios nos pro-
cessos de outorgas de canais de rádio e
televisão; interferências políticas e irre-
gularidades na obtenção e na renovação
de licenças; inexistência de scalização e
falta de mudanças estruturais no proces-
so de participação social em relação às
políticas do setor.
Instituído pela lei nº 4.117, de 27
de agosto de 1962, o Código Brasileiro
de Telecomunicações é o primeiro gran-
de marco regulatório para os serviços de
radiodifusão no país e segue em vigência
até hoje. O dispositivo resistiu às mudan-
ças tecnológicas e conserva intacto o tex-
to que trata da radiodifusão, ao passo que
as telecomunicações sofreram profundas
transformações no decorrer da década de
1990, ganhando um novo marco legal com
a Lei Geral de Telecomunicações.
72
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Com a Constituição Federal de
1988, a Comunicação Social ganhou um
capítulo especíco, com cinco artigos (do
220 ao 224) sobre o tema (BRASIL, 2010).
O texto constitucional estabelece os prin-
cípios da radiodifusão, que deveriam se
orientar para as nalidades educativas, ar-
tísticas, culturais e informativas; promover
a cultura nacional e regional e estimular a
produção independente.
A Constituição de 1988 também
previu a proibição de monopólios e oli-
gopólios nos meios de comunicação e a
complementaridade dos sistemas privado,
público e estatal.
Neste sentido, enquanto os setores
de informática, telecomunicações e TV
segmentada passaram por mudanças re-
gulatórias, reforçando os mecanismos de
mercado, a radiodifusão tradicional seguiu
sem alterações e sob inuência de pode-
rosos interesses políticos e econômicos.
Acerca dos dispositivos legais que
regem a comunicação,
Vivemos hoje um processo de mu-
dança daquele modelo de regulação
denido em 1962 e os contornos bási-
cos do novo modelo já estão bastante
claros. Quanto à questão regional, o
problema da diversidade cultural, de
estímulo à produção local e indepen-
dente, enm, toda a problemática da
regulação dos conteúdos, numa pers-
pectiva progressista, como aquela que
gura nos princípios da Constituição
de 1988, no capítulo sobre a matéria,
ou não está tratada na legislação ou,
quando está, os dispositivos não são
cumpridos. (BOLAÑO, 2007, p. 95).
A análise do momento histórico da
década de 1960 também considera que
havia a centralidade do Poder Executivo
no processo de outorgas e renovações
das concessões de radiodifusão. A fun-
ção centralizadora da União sofreu mo-
dicações com a Constituição Federal de
1988, que trouxe atribuições também ao
Poder Legislativo.
Deste modo, segundo a Consti-
tuição, compete exclusivamente ao Con-
gresso Nacional apreciar os atos de con-
cessão e renovação de emissoras de rádio
e televisão, além de a não-renovação das
concessões depender da aprovação de,
no mínimo, dois quintos do Congresso em
votação nominal. (BRASIL, 2010).
O período que se segue é de ine-
xistência de iniciativas de regulamentação
dos dispositivos constitucionais. Com rela-
ção a esse quadro inalterado de regulação,
Outros dispositivos da Constituição
tiveram destino ainda mais triste, não
sendo implementados até hoje por fal-
ta de regulamentação posterior. É o
conjunto desses dispositivos que pode
ser entendido como a base para a
construção de um novo modelo de re-
gulação das comunicações que jamais
chegou a concretizar-se no país. Cito
os mais importantes: proibição do mo-
nopólio e do oligopólio nos meios de
comunicação (artigo 220, parágrafo 5);
preservação das nalidades educati-
vas, culturais e informativas; proteção
à cultura regional através da garantia
de regionalização da produção; estí-
mulo à produção independente (artigo
221); criação dos três modos comple-
mentares de exploração - privado, es-
tatal e público (artigo 223). (BOLAÑO,
2007, p. 96).
Como consequência da imobili-
dade governamental em propor mudan-
ças na legislação, entidades da socie-
dade civil organizada, representadas
pelo Fórum Nacional pela Democrati-
zação da Comunicação, passaram a
cobrar do poder público um novo marco
legal para a radiodifusão.
73
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Esta iniciativa adquire maior ex-
pressão em 2009, quando ocorre a 1ª
Conferência Nacional de Comunicação no
país. O evento pode ser balizado como o
momento em que a proposta de um novo
marco regulatório efetivamente entra na
agenda das discussões. Os principais ato-
res envolvidos na conferência foram os
radiodifusores, os poderes Executivo e
Legislativo e a sociedade civil organizada.
Para Liedtke e Aguiar (2013), a Con-
fecom representa uma conquista política
oriunda das lutas pela cidadania e pela de-
mocratização dos meios de comunicação
de massa no Brasil por parte das entidades
populares. Conforme os autores,
A experiência em torno da 1ª Confecom
demonstra o importante papel político
da sociedade civil em prol da demo-
cratização da comunicação, unindo
esforços para externar suas demandas
em torno de um novo marco regulató-
rio para a mídia brasileira debatidas no
âmbito da conferência, cujas expecta-
tivas recaem, agora, sobre o Congres-
so Nacional, a quem cabe analisar os
diversos projetos de lei em tramitação
encaminhados pelo Executivo. (LIE-
DTKE; AGUIAR, 2013, p. 79).
A Confecom terminou com a apro-
vação de 633 resoluções que propuseram
critérios democratizantes e mecanismos
de transparência nas outorgas de rádio
e TV. Entre as propostas, estão a regula-
mentação dos artigos da Constituição Fe-
deral, a proibição de concessões públicas
de radiodifusão sonora e de sons e ima-
gens a políticos, a realização de consultas
públicas e audiências nos procedimentos
de renovação das concessões e a cons-
tituição de um Conselho de Comunicação
Social com poderes deliberativos.
O evento, realizado no nal do Go-
verno Lula, possibilitou a participação con-
junta do Estado, sociedade civil e merca-
do, sinalizando a possibilidade de avanços
nas políticas de comunicação no Brasil. O
documento com o caderno de propostas
sintetiza essa expectativa, ao mencionar
os objetivos da conferência e suas conse-
quências para os próximos anos:
A 1ª Confecom buscou fundamentar
e atualizar os debates relacionados à
Comunicação no país, de modo a for-
necer subsídios para a elaboração e
implementação de políticas públicas
para o setor nos próximos anos, mes-
mo a Conferência não tendo caráter
deliberativo. Por isso, é fundamental
recuperar o processo de diálogos e
negociações por meio do qual a Con-
ferência se tornou possível, visando
documentar esse debate democrático.
(CONFECOM, 2010, p. 13).
Na análise do quadro das políticas
de comunicação e regulação no contexto
pós-Confecom, Bolaño (2010, p. 102) sin-
tetiza que “é inegável no país o avanço na
organização de uma esfera pública mais
ampla que discute os problemas da co-
municação, mas ainda falta traduzir esse
avanço em conquistas concretas, materia-
lizadas na legislação”.
Após a Confecom, o movimento
social ocupado com a democratização da
comunicação saiu fortalecido, buscando
canais de diálogo com os poderes de Es-
tado para viabilizar a execução das pro-
postas debatidas e aprovadas.
Um dos primeiros movimentos nes-
te sentido se deu com a realização do
seminário “Marco regulatório – propostas
para uma comunicação democrática” por
iniciativa do Fórum Nacional pela Demo-
cratização da Comunicação. O evento,
realizado no Rio de Janeiro em 2011, ba-
seou-se nas sistematizações aprovadas
e reunidas em documento nal da Confe-
com e teve como meta reunir as suges-
tões da sociedade para a criação de uma
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
plataforma com as contribuições para a
consolidação de uma plataforma para um
novo marco regulatório na área.
A primeira versão da proposta foi
posta em consulta pública e obteve mais de
200 contribuições dos internautas, as quais
foram analisadas e reunidas no documento
nal. O seminário serviu de base, portanto,
para o lançamento da plataforma com os 20
pontos eleitos prioritários para democratizar
as comunicações no país
IV
, no intuito de o
tema ser incluído na agenda política.
Uma das diretrizes para o novo mar-
co regulatório das comunicações aborda
a participação social que, segundo o do-
cumento, deve ser garantida em todas as
instâncias e processos de formulação, im-
plementação e avaliação de políticas de
comunicação, sendo assegurada a repre-
sentação ampla em instâncias de consul-
ta dos órgãos reguladores ou com papeis
ans e a realização de audiências e consul-
tas públicas para a tomada de decisões.
No início de 2012, de acordo com o
FNDC, o ministro das Comunicações Paulo
Bernardo anunciou que colocaria em consul-
ta pública o tema da regulação das comuni-
cações, o que não ocorreu efetivamente.
A demora do governo em viabilizar a
consulta pública acerca do assunto aumen-
tou o descontentamento das organizações
da sociedade civil. Desta forma, em agosto
de 2012, na ocasião dos cinquenta anos de
vigência do Código Brasileiro de Telecomu-
nicações, o fórum lançou a campanha na-
cional “Para expressar a liberdade – uma
nova lei para um novo tempo”, cuja propos-
ta era intensicar o diálogo da sociedade
civil com a esfera governamental em defe-
sa de uma nova regulação para a área.
A aglutinação dos atores sociais de-
sencadeou o lançamento, em maio de 2013,
do projeto de lei de iniciativa popular para
uma Mídia Democrática. A proposta com-
preende um instrumento político de pressão
sobre os atores estatais que se propõe a le-
var ao Congresso Nacional uma lei que mo-
dique a arquitetura institucional do sistema
midiático brasileiro. (PROJETO..., 2013).
A proposta da sociedade civil para
regulamentar a comunicação e garantir a
organização de uma esfera de deliberação
com participação social necessita de 1,5
milhão de assinaturas dos cidadãos para
iniciar a tramitação no Poder Legislativo.
A redenição de marcos regulató-
rios, como é proposta, é defendida pelos
autores da economia política da comuni-
cação, dado que representa a ação do Es-
tado sobre o sistema de radiodifusão em
defesa da democratização.
Estabelecer marcos regulatórios de-
mocráticos signica dotar os países
de mecanismos legais para frear a
concentração monopólica e a mercan-
tilização, bem como atualizar normas
para a concessão e a scalização das
outorgas de rádio e televisão. A revi-
são da legislação pode favorecer tam-
bém a produção nacional, regional,
comunitária e educativa, com estabe-
lecimento de cotas obrigatórias para
exibição nas redes abertas e reserva
de mercado para lmes nacionais nas
salas de cinema, entre outros pontos.
(MORAES, 2009, p. 141).
O tema também tem é reconhecido
no direito internacional. Por consequên-
cia, “a construção de um sólido marco re-
gulatório envolve tanto o estabelecimento,
por lei, de políticas públicas com fortes ob-
jetivos e regras quanto a criação de uma
autoridade reguladora independente que
zelará pelo cumprimento da legislação”
(MENDEL; SALOMON, 2011, p.12).
Entende-se, assim, que a partici-
pação do Estado na garantia de marcos
legais que impeçam práticas monopóli-
75
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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cas contribui para o aprofundamento da
democracia. Segundo Moraes (2009), as
disposições regulatórias devem envolver
três instâncias principais: o Estado, a so-
ciedade civil e o setor privado, cabendo ao
primeiro – ator estatal – garantir o equilí-
brio em termos de acesso, participação e
representatividade aos setores envolvidos.
A análise do panorama brasileiro
revela a diculdade em estabelecer um
debate público sobre as comunicações,
tendo em vista a centralidade histórica da
indústria da comunicação em poucos gru-
pos familiares. Entrementes, alternativas
democráticas surgem com a proeminência
de atores da sociedade civil, que conse-
guiram a realização da Confecom e agora
reivindicam as mudanças no modelo via
novo marco regulatório.
Considerações nais
No presente momento, não há no
Brasil uma política democrática para a co-
municação. Essa constatação se reete
na imobilidade do governo de turno em
dar continuidade às propostas aprovadas
na 1ª Conferência Nacional de Comunica-
ção, realizada em 2009.
O congestionamento de um debate
público tanto na esfera do Executivo quan-
to Legislativo tem levado a sociedade civil
organizada a conduzir esta discussão por
meio de debates em universidades, asso-
ciações sindicais, audiências públicas e
pela internet.
A mobilização da sociedade civil,
conduzida majoritariamente pelo Fórum
Nacional pela Democratização da Comu-
nicação, tem demonstrado a possibilidade
de abertura de canais de discussão públi-
ca sobre temas de interesse coletivo.
A proposta de um novo marco re-
gulatório para a comunicação deve ser
compreendida como parte do processo
de reconstrução democrática do espaço
latino-americano, submetido há décadas
ao neoliberalismo, cujos reexos podem
ser notados na concentração da mídia e
no esvaziamento dos poderes do Estado.
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gos, 2014. pp. 219-264.
Recebido em 15/12/2015
Aprovado em 06/02/2016
I Carlos Henrique Demarchi. Doutorando e Mestre em
Comunicação pela UNESP de Bauru. Docente do Cen-
tro Universitário Católico Salesiano Auxilium (UniSALE-
SIANO). Contato: henriquejornalista@hotmail.com
II Maria Teresa Miceli Kerbauy. Doutora em Ciências
Sociais pela PUC/SP. Docente do Programa de Pós-
-Graduação em Comunicação da UNESP/Campus de
Bauru. Bolsista produtividade do CNPq. Contato: ker-
bauy@travelnet.com.br
III Originalmente, a economia política da comunicação
tem se caracterizado por ser uma área de investigação
com enfoque na concentração dos meios, na erosão
da diversidade de conteúdos e do ponto de vista das
classes sociais. De acordo com Mosco (2011), a área
apresenta atualmente cinco tendências principais: a glo-
balização da investigação na economia política da co-
municação; a mudança de ênfase na investigação histó-
rica; a busca de pontos de vista alternativos; a transição
de ênfase dos meios tradicionais para os novos meios e
a expansão do ativismo político (tradução nossa).
IV O texto consolidado após a consulta pública pode
ser acessado no site <http://www.paraexpressarali-
berdade.org.br/20-pontos-para-democratizar-a-comu-
nicacao-no-brasil/>
77
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Políticas para o audiovisual no Brasil (1985-2002):
Estado, cultura e comunicação na transição democrática
Políticas para el audiovisual en Brasil (1985-2002):
Estado, cultura y comunicación durante la transición a la democracia
Audiovisual policies in Brazil (1985-2002):
State, culture and communication in the democratic transition
Renata Rocha
I
Resumo:
O artigo ora apresentado tem como objetivo discutir as políticas culturais
para o audiovisual e as relações entre Estado, comunicação e cultura
no período de transição democrática no Brasil, entre os anos de 1985
a 2002, ao longo dos Governos José Sarney (1985-1990), Fernando
Collor de Mello (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002). Considerando as necessárias relações
entre os campos da cultura e comunicação e as diculdades para sua
efetiva consecução, enfatiza-se, nesta reexão, as principais propostas
e iniciativas do Governo Federal que envolvem o cinema, as emissoras
de televisão dos campos público e privado, bem como as necessárias,
e muitas vezes frustradas tentativas de regulamentação para o setor.
Palavras chave:
Políticas Culturais
Políticas de Comunicação
Audiovisual
Brasil
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Ese artículo tiene como objetivo discutir las políticas culturales para el
audiovisual y las relaciones entre el Estado, comunicación y cultura en el
período de transición democrática en Brasil, en los años de 1985 a 2002,
durante los gobiernos de José Sarney (1985-1990), Fernando Collor de
Mello (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) y Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002). Teniendo en cuenta las relaciones necesarias
entre los campos de la cultura y comunicacióny las dicultades para
su efectivo cumplimiento, se plantean, en esa reexión, las principales
propuestas e iniciativas del Gobierno Federal que involucran el cine,
las cadenas de televisión de los ámbitos público y privado, así como la
necesaria y a menudo frustrados intentos de regulación del sector.
Abstract:
This article discusses the cultural policies on audiovisual and their
relations between state, communication and culture during the Brazilian
democratic transition period, from 1985 to 2002, in the course of the
Governments of José Sarney (1985-1990), Fernando Collor de Mello
(1990-1992), Itamar Franco (1992-1994), and Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002). Considering the essential links between culture
and communication elds as well as difculties for their effective
performances, this reection emphasizes the main proposals and
initiatives of the Federal Government dealing with cinema, public and
private television broadcasting, and the necessary and often frustrated
attempts to regulate the sector.
Palabras clave:
Política Cultural
Política de Comunicación
Audiovisual
Brasil
Keywords:
Cultural Policies
Communication Policies
Audiovisual
Brazil
79
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Políticas para o audiovisual no
Brasil (1985-2002): Estado, cultura e
comunicação na transição democrática
Premissas
A fim de nos debruçarmos sobre
as políticas para o audiovisual e as rela-
ções entre o Estado brasileiro, a comu-
nicação e a cultura durante o processo
de transição democrática no país entre
os anos de 1985 e 2002, enfatizamos,
inicialmente, alguns conceitos-chave à
reflexão proposta.
Especial atenção merece o concei-
to de política cultural. Ana Maria Ochoa
Gautier (2003) ressalta que o sintoma de
“confusão terminológica, de fragmentação
discursiva, de dispersão escritural e de
sentidos, não é apenas um produto das
diferentes práticas às quais a noção de
política cultural remete, mas parte consti-
tutiva do campo na atualidade” (p. 65-66,
tradução da autora).
Nesse sentido, adotamos uma
noção de política cultural abrangente,
mas quelogra alcançar a dimensão ins-
titucionalizada do campo simbólico, in-
vocada como:
[…] o conjunto de intervenções realiza-
das pelo Estado, as instituições civis e
os grupos comunitários organizados, a
m de orientar o desenvolvimento sim-
bólico, satisfazer as necessidades cul-
turais da população e obter consenso
para um tipo de ordem ou de transfor-
mação cultural. (GARCIA CANCLINI,
2001, p. 65, tradução da autora).
Mesmo abarcando uma dimensão
mais geral do campo simbólico, que ultra-
passa os âmbitos da organização e me-
diação cultural, verica-se, no conceito
utilizado, uma ênfase nestes últimos em
detrimento da primeira. Nesse sentido, é
necessário reconhecer que a adoção de
uma perspectiva antropológica da cultu-
ra implica o risco de ampliar o conceito
ao seu extremo, tornando-o pouco ope-
racional, inclusive no sentido de orientar
uma proposta de política. Por outro lado,
é esta mesma perspectiva que possibili-
ta, e impele, a inserção da comunicação
como questão a ser considerada pelas
políticas culturais.
Sob tal perspectiva, destacamos a
noção de campo, tomando como base a
teoria desenvolvida por Pierre Bourdieu
(1990). Este autor organiza os agentes
e formas institucionais em campos autô-
nomos, que funcionam como um sistema
regido por leis especícas. Sua grande
contribuição metodológica reside na ca-
pacidade de mediar a relação entre in-
fraestrutura e superestrutura, bem como
entre o social e o individual, expressan-
do uma perspectiva relacional da socie-
dade, na qual os sistemas de relações
objetivas (posições), explicariam as prá-
ticas, discursos e escolhas dos agentes
(tomadas de posição).
Ao reetir sobre o campo artísti-
co na obra La sociedad sin relato, Gar-
cía Canclini apresenta a hipótese me-
todológica de que, na atualidade, “para
produzir perguntas não metafísicas, a
pesquisa desenvolvida em cada campo
necessita articular-se com os interro-
gantes dos outros campos” (2010, p. 45,
tradução da autora). A assertiva torna-
-se ainda mais pertinente na discussão
proposta, demarcada pela interseção
entre os campos das políticas de cultura
e comunicação. É neste intercruzamen-
to que ocorrem os principais embates
relacionados aos meios de comunica-
ção e são implantadas as iniciativas de
desenvolvimento tecnológico. E, se au-
tores como Barbalho (2005) e Rubim
(2003), destacam a importância da inte-
80
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ração crítica entre as políticas culturais,
as indústrias culturais e a comunicação,
Jesús Martín-Barbero (2003, p. 299) os
supera quando propõe que a renovação
da cultura política assuma o que está em
jogo, hoje, nas políticas culturais, ultra-
passando as reivindicações em prol da
instituição de políticas para a comunica-
ção. Para o autor, “na redenição da cul-
tura, é fundamental a compreensão de
sua natureza comunicativa”.
Ainda segundo Martín-Barbero
“pensar a política a partir da comunicação
signica por em primeiro plano os ingre-
dientes simbólicos e imaginários presen-
tes nos processos de formação do poder”
(2003, p. 15). A efetividade de qualquer
projeto político depende, portanto, de ba-
talhas travadas no campo simbólico – a
cultura política –, aspecto que não pode
ser deixado em segundo plano.
Ademais, a relação entre políti-
cas culturais e comunicaçãopossui outra
perspectiva que não deve ser subdimen-
sionada: o fato de que a cena pública
construída pelos meios de comunicação
massivos é essencial para a manuten-
ção do caráter participativo da democra-
cia. Nas sociedades contemporâneas, a
comunicação mediada por tecnologias e
as indústrias culturais perpassam as re-
lações humanas nos diversos âmbitos e
redenem modos de convívio e de com-
preensão social. O papel dos meios “não
interessa apenas por seu caráter de difu-
sores, e sim pelas operações de recon-
ceitualização e metaforização que reali-
zam em conexão com outros campos da
vida social” (GARCÍA CANCLINI, 2010, p.
74, tradução da autora).
Embora o reconhecimento da im-
bricação entre a cultura e a comunicação
seja imprescindível para a efetividade
das políticas culturais, isto não denota
uma identidade entre esses campos. Se-
gundo Jean Caune:
A aproximação entre as noções de
cultura e de comunicação não é da
ordem das circunstancias históricas
ou técnicas, ainda que a industriali-
zação da cultura e o desenvolvimento
das comunicações de massa tenham
contribuído a deslocar as fronteiras,
a modicar os atores e a confundir as
funções. Na verdade, a cultura e a co-
municação formam uma estranha par-
ceria. Uma não se constitui nem se ex-
plica sem a outra. Os fenômenos não
são nem perfeitamente ajustados (um
contendo o outro) – a cultura apresen-
tando-se como um conteúdo veiculado
pela comunicação – nem situados em
planos paralelos, em correspondência
analógica. (2008, p. 37, grifo nosso)
Optamos, portanto, por posicionar
a comunicação no campo das políticas
culturais – uma opção de cunho teórico,
metodológico e político –, ao partimos do
pressuposto de que a “cultura só existe
como ‘fato social total’ devido à sua ma-
nifestação como expressão de uma expe-
riência individual na qual se combinam o
psiquismo e a corporeidade, os signos e
os comportamentos, os valores e as nor-
mas” (CAUNE, 2008, p. 38).
Reiteramos a importância da busca
pelos fundamentos teóricos sobre as in-
terações e contradições entre cultura e a
comunicação. No entanto, a produção de
um conhecimento cientíco que contribua
para o desenvolvimento de políticas contra
hegemônicas exige articular e contextuali-
zar os conceitos já assinalados acima e a
práxis política. Tal aspecto torna-se ainda
mais destacado pelas constantes tensões,
pressões e, principalmente, desigualdade
de forças inerentes aos debates nestes
campos interdependentes.
No que se refere ao espaço na-
cional, é impossível mudar a relação do
Estado com a cultura, sem uma política
cultural integral, ou seja, sem desesta-
81
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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tizar o caráter público, ressituando-o no
novo tecido comunicativo do caráter so-
cial, mediante políticas capazes de mobi-
lizar o conjunto dos atores sociais: insti-
tuições e associações estatais, privadas
e independentes, políticas, acadêmicas
e comunitárias (MARTÍN-BARBERO,
2002, p. 74-75). Da mesma forma, as po-
líticas de comunicação não podem hoje
ser denidas apenas pelo Ministério das
Comunicações, como meras políticas de
“tecnologias” ou de “meios”, mas devem
fazer parte de políticas culturais.
Ainda que o Estado não se congu-
re como única possibilidade de promoção
das políticas para a cultura, seu papel é
de grande relevância, por sua capacidade
de normatizar, regulamentar e scalizar,
contribuindo para a solidez e permanência
das intervenções. Nesse sentido, o artigo
proposto busca reetir sobre as ações em-
preendidas pelo poder estatal, sem des-
considerar outros agentes implicados em
seu impulsionamento e consecução, bem
como suas interações com os diversos se-
tores sociais, pois
considerando que nem o estado,
nem outro tipo de organizações são
homogêneas e que se constituem
através de distintos tipos de intera-
ções, concluímos então que as práti-
cas comunicativas através das quais
se constituem essas interações vão
cumprir a função de estruturar as ins-
tituições e organizações do espaço
público(OCHOA GAUTIER, 2003, p.
84, tradução da autora).
Também para Pierre Bourdieu
(2001), o Estado não é uma realidade de-
nida, delimitada e unitária, que se man-
tém em uma relação de exterioridade com
forças externas claramente identicáveis.
Trata-se, concretamente, de um conjunto
de campos administrativos ou burocráti-
cos dentro dos quais agentes diversos e
categorias de agentes – governamentais
e não governamentais – lutam pela forma
particular do poder de governar por meio
da legislação, regulamentos, medidas ad-
ministrativas (subsídios, licenças, restri-
ções etc.), em suma, tudo o que é coloca-
do sob a rubrica de políticas de Estado.
Partindo dos aportes teóricos apre-
sentados e do levantamento bibliográco
sobre o tema, o artigo delineia e analisa
as principais políticas culturais relaciona-
das à comunicação impulsionadas pelo
Governo Federal durante a redemocrati-
zação do país (1985-2002), sob uma pers-
pectiva social e histórica. Apesar da farta
bibliograa abordando cada uma destas
áreas de investigação em separado, a
articulação em uma visão multidisciplinar
mostra-se de grande relevância para o en-
tendimentodo momento em questão.
Período democrático e ausências
contemporâneas
Em meados da década de 1970, o
m da ditadura militar é anunciado como
uma abertura democrática gradual e segu-
ra. Um dos marcos que determina o m
desse período é a eleição, via sufrágio in-
direto, de um presidente não militar para
o país. Com a morte do candidato esco-
lhido, Tancredo Neves, antes mesmo de
sua posse, o vice José Sarney torna-se o
primeiro civil a reger o país, desde a depo-
sição de João Goulart em 1964.
No campo comunicacional, o Go-
verno Sarney– que tem como Ministro
das Comunicações o político baiano An-
tonio Carlos Magalhães –, é marcado
pela utilização ostensiva das conces-
sões de televisão como moeda de troca
política, principalmente em negociações
ligadas ao processo de promulgação
da nova Constituição. Entre os anos de
1985 e 1988, Sarney outorga 1028 con-
cessões ou permissões de rádio e televi-
são. Isto representa, à época, 30% das
82
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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concessões feitas no Brasil, desde 1922.
(JAMBEIRO, 2002).
Com raras exceções, os benecia-
dos foram parlamentares, que direta ou in-
diretamente (por meio de seus familiares
ou sócios) receberam as outorgas em tro-
ca de apoio político a projetos de Sarney,
especialmente para a extensão do man-
dato do presidente para cinco anos. Dos
91 constituintes que foram premiados com
pelo menos uma concessão de rádio ou
televisão, 84 (92,3%) votaram a favor do
presidencialismo e 82 (90,1%) votaram a
favor do mandato de cinco anos (INTER-
VOZES, 2007, p. 6).
Em relação aos debates sobre os
dispositivos que regulamentariam a TV,
durante a Constituinte, cabe destacar a
intensa polarização entre entidades li-
gadas aos trabalhadores da área de co-
municação, conduzidos pela Federação
Nacional dos Jornalistas (Fenaj) — tendo
como principais bandeiras a criação de
um Conselho Nacional de Comunicação
para regular o rádio e a TV e a restrição
da exploração de canais de rádio e televi-
são a organizações sem ns lucrativos
e empresários do setor, liderados, princi-
palmente, pela Associação Brasileira das
Emissoras de Rádio e Televisão (Abert),
que defendiam a permanência do contro-
le da radiodifusão pelo poder executivo,
além da exploração destes serviços pela
iniciativa privada (JAMBEIRO, 2002).
O texto nal do Capítulo da Co-
municação Social da Constituição de
1988 (BRASIL, 1988) se caracteriza por
determinações como: a transformação
da proposta de Conselho Nacional de
Comunicação em Conselho de Comu-
nicação Social, um órgão consultivo do
Congresso; a extensão da competência
da aprovação de concessões ao poder
legislativo, além do executivo; a depen-
dência de, no mínimo, dois quintos dos
deputados e senadores para reprovar a
renovação de uma concessão; o estabe-
lecimento de prazos para permissões e
concessões — na televisão, quinze anos
e na rádio, dez; dentre outras.
Apesar dos avanços, a maio-
ria dos dispositivos criados permanece
aguardando regulamentação. É o caso
dos itens que abordam a regionalização
de programas, a proibição aos mono-
pólios e oligopólios,os direitos dos te-
lespectadores em relação aos serviços
prestados pela emissora, e do art. 223,
que cria três modos complementares de
exploração dos serviços de televisão:
privado, estatal e público. Para Othon
Jambeiro (2000, p. 81),
a televisão, considerada uma das ar-
mas mais poderosas para a conso-
lidação do regime militar, continuou
constituindo um aparato fundamental
para a perpetuação das elites política
e econômica do novo regime. A per-
manência dos princípios básicos da le-
gislação, estabelecidos durante a dita-
dura, deve-se seguramente ao fato da
TV ser um instrumento de poder que o
governo civil não quis perder.
Ainda no bojo desse processo,
buscando centralizar a comunicação es-
tatal e ampliar o poder da Presidência
sobre tais veículos, o Decreto nº 95.676,
de janeiro de 1988 institui o sistema de
comunicação social e divulgação da Ad-
ministração Federal, determinando a
transferência da Radiobrás, então vincu-
lada ao Ministério da Comunicação, e da
Fundação Centro Brasileiro de TV Edu-
cativa (Funtevê)
II
com suas emissoras
– que integram a estrutura do Ministério
da Educação há 21 anos – para o Minis-
tério da Justiça e para o Gabinete Civil
da Presidência da República, respecti-
vamente.Contudo, menos de um ano de-
pois de realizada a transferência,o De-
creto n.º 98.052 de janeiro 1989 devolve
a Fundação ao MEC.
83
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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Também durante o Governo Sarney
é criado o Ministério da Cultura (MinC),
devido às pressões dos movimentos so-
ciais, intelectuais e artísticos que reivin-
dicam a institucionalização da cultura e
o reconhecimento de sua singularidade.
Uma das mais destacadas instâncias de
mobilização foi, sem dúvidas, o Fórum de
Secretários Estaduais de Cultura, criado
em 1983 no bojo do movimento redemo-
cratizante das primeiras eleições diretas
para governos estaduais depois do golpe
de 1964,que resulta na proliferação de
secretarias de cultura. A militância destes
gestores atrai e incita a imprensa e o Go-
verno Federal, tornando irreversível a ins-
tituição do MinC
III
(BOTELHO, 2001).
A despeito da relevante conquista,
o Ministério enfrenta graves problemas,
nos seus primeiros anos.
A sua implantação é um exemplo
contundente desta tradição de instabilida-
de: criado em 1985 por Sarney; desman-
telado por Collor e transformado em se-
cretaria em 1990; novamente recriado em
1993 por Itamar Franco. Além disto, foram
dez dirigentes responsáveis pelos órgãos
nacionais de cultura em dez anos (1985-
1994): cinco ministros nos cinco anos de
Sarney; dois secretários no período Collor
e três ministros no governo Itamar Franco.
(RUBIM, 2012, p. 36)
A instabilidade da instituição não
provém apenas da pouca permanência
dos dirigentes do ministério. A atuação na
área cultural nestes três governos é entre-
meada de descontinuidades. No momento
nal da ditadura e durante o Governo Sar-
ney (1985-1989), por exemplo, são cria-
das diversas instituições da área cultural.
Destas, grande parte é extinta no Governo
Collor (1990-1992), que “no primeiro e tu-
multuado experimento neoliberal no país,
praticamente desmonta a área de cultura
no plano federal” (RUBIM, 2012, p. 36-37).
Esse é o caso da Funarte, da Fundação
Nacional de Artes Cênicas (Fundacen),
criada em 1987, e do próprio MinC, que
inclui em sua estrutura órgãos como a
Embralme e o Concine
IV
, e é transforma-
do em um Secretaria. Em seguida, Itamar
Franco, em seu Governo (1992-1993), tra-
ta de recriar tais órgãos.
A política cinematográca é ilustra-
tiva do período. A extinção dos principais
órgãos norteadores do setor, como parte
do Programa Nacional de Desestatização
do governo Collor, é efetivada sem que
haja um projeto de políticas que substitua
o modelo anterior. A crise, agravada pelo
surgimento de novas tecnologias substitu-
tivas ao cinema, promove um expressivo
retrocesso para o mercado cinematográ-
co do Brasil que, em 1993, lança apenas
três lmes. (EARP, SROULEVICH, 2009)
Delineia-se, já a partir do Governo
Sarney, apesar da paradoxal criação das
instituições culturais acima citadas, a ten-
tativa de substituição do Estado pelo mer-
cado como agente das políticas culturais.
Como principais ferramentas são adota-
das de leis de incentivo scal, como a Lei
n.º 7.505 de 1986, a Lei Sarney, posterior-
mente substituída pela Lei n.º 8.313 de
1991, que institui o Programa Nacional de
Apoio à Cultura (Pronac), mais conhecida
como Lei Rouanet. Tais normas visam a
incentivar que pessoas jurídicas ou físicas
apliquem parte do Imposto de Renda, a tí-
tulo de doações ou patrocínios, no apoio
direto a projetos culturais, ou por meio de
contribuições ao Fundo Nacional de Cultu-
ra. (SALGADO; PEDRA; CALDAS, 2010).
Cultura e Mercado
Fernando Henrique Cardoso (FHC)
assume a presidência do país em 1995.
Como parte do processo de reformas de
cunho liberalizante do seu Governo, está
a reestruturação do setor de telecomuni-
cações iniciada com a promulgação da
84
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Emenda Constitucional n.º 8 de 1995,
que elimina a exclusividade na explora-
ção dos serviços públicos a empresas
sob controle acionário estatal, permitin-
do a privatização e introduzindo o regime
de competição. Em relação às telecomu-
nicações, as iniciativas se baseiam na
substituição do Código Brasileiro de Te-
lecomunicações por uma legislação mais
moderna, cujos marcos seriam a Lei nº
9.472, conhecida como Lei Geral de Tele-
comunicações (LGT), aprovada em julho
de 1997, e a Lei Geral da Comunicação
Eletrônica de Massa (LGCEM), que não
chegou a sair do papel. Com a promul-
gação da LGT, é revogada toda a regula-
mentação referente às telecomunicações
do Código Brasileiro de Telecomunica-
ções, composto atualmente apenas pelos
dispositivos que dizem respeito à radiodi-
fusão, situação anunciada como “transi-
tória” (BOLAÑO, 2007, p. 42).
Ainda segundo Bolaño (2007), do
arcabouço regulatório da LGT, destaca-
-se a criação de um organismo regula-
dor independente. À Agência Nacional
de Telecomunicações (Anatel) cabe de-
nir a regulamentação do setor, com as
missões de promover a justa competição,
defender os direitos e interesses dos con-
sumidores dos serviços e estimular o in-
vestimento privado. A proposta do então
ministro das Comunicações, Sérgio Motta
era reintegrar, posteriormente, a regula-
mentação do rádio e da televisão hertizia-
na aos demais serviços de telecomunica-
ções, utilizando-se “do poder regulador a
uma agência independente que se fun-
diria com a Anatel, formando a Agência
Nacional das Comunicações (Anacom)”
(idem, ibidem, p. 48).
Com a morte do ministro Sergio
Motta, em 1998, sua proposta de uma Lei
de Comunicação Eletrônica de Massa,
em substituição ao antigo Código Brasi-
leiro de Telecomunicações é abandonada
pelo seu sucessor, Luiz Carlos Mendon-
ça de Barros, e posteriormente retomada
por Pimenta da Veiga. Na gestão deste
último, em setembro de 1999, o jorna-
lista Daniel Herz, então coordenador do
FNDC, publica uma versão do anteproje-
to, a m de “derrubar a cortina de silêncio
criada pelo ministério em torno da elabo-
ração dessa lei e para contribuir com o
verdadeiro debate público” (FOLHA DE
SÃO PAULO apud BOLAÑO, 2007, p
42). Cerca de um ano e meio depois, em
junho de 2001, é publicado na internet,
para consulta pública, um anteprojeto de
Lei de Radiodifusão. Mesmo possuindo
um caráter bastante conservador, con-
trariando a proposta inicial do ministro
Motta, a minuta não logra ser enviada ao
legislativo. Segundo Pimenta da Veiga,
“seu anteprojeto de Lei de Radiodifusão
perdeu o timing, não sendo assunto para
ser tratado em m de governo” (ZANAT-
TA, 2002 apud BOLAÑO, 2007, p.49)
Para além das privatizações nos
diversos setores da economia nos oito
anos do Governo FHC, na área cultural a
transferência da atuação do estado para
o mercado, que dá seus primeiros passos
ainda durante o Governo Sarney, também
atinge o seu ápice. O estímulo à atuação
puramente mercadológica pode ser repre-
sentado pelo livreto Cultura é um bom ne-
gócio, distribuído pelo MinC, na época ca-
pitaneado por Francisco Weffort (RUBIM.
A e RUBIM. L, 2004).
Aliás, se houve política de cultura,
ela se concentrou em ampliar a utiliza-
ção das leis de incentivo pelo mercado.
A utilização de dinheiro público subordi-
nado a decisão privadas e ampliou bas-
tante. Um estudo sobre nanciamento
da cultura mostrou que o uso de recur-
sos sofreu profunda transformação en-
tre 1995, 66% das empresas e 34% de
renúncia scal, e 2000, 35% das empre-
sas e 65% de renúncia scal. (DÓRIA,
2003, p. 101) Em outras palavras, as leis
de incentivo ao investimento privado em
85
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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cultura estavam desestimulando tal ati-
tude, pois o dinheiro cada vez mais era
público (RUBIM, 2012, p. 38).
No que diz respeito ao âmbito da
radiodifusão pública/educativa, sob os
auspícios do Estado, a Funtevê, já reno-
meada Fundação Roquette Pinto (FRP),
e suas emissoras, a TVE-BR e a Rádio
MEC, enfrentam uma séria crise econô-
mica, fruto da diminuição signicativa do
apoio técnico e nanceiro desde 1993,
que resulta no declínio de sua programa-
ção e inuência. Dois anos depois, o ór-
gão é novamente transferido, desta vez
do MEC para a Secretaria de Estado de
Comunicação do Governo (Secom). Em
1997, iniciam-se as negociações, no âm-
bito do Governo Federal para a extinção
da Fundação e sua substituição por uma
Organização Social (OS), fato que se con-
cretiza em janeiro de 1998, com a institui-
ção da Associação de Comunicação Edu-
cativa Roquette Pinto (Acerp). Assim, com
o “argumento de maior independência das
pressões estatais, a alteração jurídica re-
meteu a emissora à lei da selva da sobre-
vivência do mercado midiático”. (VALEN-
TE, 2009d, p. 273)
A enfática assertiva do Coletivo
Intervozes encontra eco nos dados apre-
sentados por outros autores. Liana Mila-
nez (2007, p. 167), no livro TVE: Cenas de
uma história relata que:
Com as mudanças para organização
social, a então Fundação Roquette-
-Pinto, detentora de um orçamento
anual de R$ 80 milhões, assinou um
contrato de gestão com o Governo
Federal como Acerp e teve sua verba
reduzida para R$ 12 milhões. O ór-
gão supervisor, conforme o decreto
presidencial (nº 1.361 – 01/01/1995)
passou a ser a Secretaria de Comu-
nicação do Governo e Gestão Estra-
tégica da Presidência da República
– Secom/PR.
A iniciativa é complementada, ain-
da, pela promulgação da Lei nº 9.637 de
15 de maio de 1998, que dispõe sobre a
qualicação de entidades como organiza-
ções sociais. Contribuindo para a exibi-
lização da publicidade nas emissoras de
serviço público no Brasil, a norma jurídica
determina que:
[as] entidades que absorverem ativi-
dades de rádio e televisão educativa
poderão receber recursos e veicular
publicidade institucional de entidades
de direito público ou privado, a título
de apoio cultural, admitindo-se o pa-
trocínio de programas, eventos e pro-
jetos, vedada a veiculação remunera-
da de anúncios e outras práticas que
congurem comercialização de inter-
valos (BRASIL, 1998, online).
Esse dispositivo, sem dúvidas,
abre um importante precedente para a
inclusão do apoio cultural como fonte
de recurso das rádios e TVs de serviço
público, ainda que restrinja sua utiliza-
ção às organizações sociais que operam
emissoras educativas de televisão, a
exemplo da Acerp.
Também merece relevo, no perío-
do, a promulgação da lei 8.977 de 1995,
conhecida como a Lei do Cabo. A promul-
gação desta norma jurídica contribui so-
bremaneira para a radiodifusão de serviço
público, ao possibilitar a reserva de canais
gratuitos para a sociedade, possibilitando
a existência de emissoras legislativas, uni-
versitárias e comunitárias, bem como um
canal educativo-cultural
V
sob responsabili-
dade do poder executivo. Posteriormente,
a Lei nº 10.461, de 2002, determina tam-
bém a inclusão de um canal do judiciário.
Trata-se de um passo importante
rumo à ampliação das ofertas televisivas,
ainda que restrito à parcela minoritária da
população que tem acesso a esse tipo de
serviço. Parte dessas emissoras conse-
86
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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gue romper as amarras do cabo passan-
do a transmitir sinais também para ante-
nas parabólicas (LEAL FILHO, 2007). A
elaboração e instituição desta legislação
é objeto de um amplo debate entre di-
versos agentes interessados no tema, a
saber, os grandes grupos empresariais li-
gados à Associação Brasileira de TV por
Assinatura (ABTA)
VI
, o Fórum Nacional
pela Democratização das Comunicações
(FNDC) – composto por entidades como
a Fenaj e a Federação Nacional dos Sin-
dicatos de Telecomunicações (FITTEL),
dentre outros –, a Empresa Estatal de Te-
lecomunicações (Telebrás) e o Congresso
Nacional. O Ministério das Comunicações,
importante protagonista nos tradicionais
processos regulatórios, permanece à mar-
gem das negociações
VII
.
Políticas para o Cinema: a retomada
e a criação da Ancine
Durante os anos 1990, o setor au-
diovisual é marcado pela a ausência de
políticas públicas efetivas e de um órgão
estatal de regulação e nanciamento da
produção independente. Em meio a este
contexto, durante o Governo de Itamar
Franco é criada a Lei nº 8.685, de 20 de
julho de 1993, que cria mecanismos de fo-
mento à atividade audiovisual por meio de
renúncia scal e se torna conhecida como
a Lei do Audiovisual. Tomando como base
a Lei Rouanet, a Lei do Audiovisual, regu-
lamentada pelo Decreto n.º 974, de 1993,
possibilita que o apoiador readquira até
100% do valor investido por meio da de-
dução do imposto de renda, limitada a 1%
do valor total devido por Pessoa Jurídica e
3% por Pessoa Física.
A utilização ostensiva desse me-
canismo congura o período que se torna
conhecido como a “retomada” do cinema
brasileiro, que tem como principal caracte-
rística o aumento da produção cinemato-
gráca na produção do cinema brasileiro,
na primeira gestão do governo FHC. Seu
marco é a realização do lme Carlota Joa-
quina: Princesa do Brasil, em 1996
VII
. Se-
gundo Anita Simis (2010, p. 159):
Assim estabeleceu-se uma nova re-
lação com o Estado, o qual, indireta-
mente, passou a incentivar a produ-
ção. Na verdade por meios tortuosos,
como mecenas de um novo tipo, a
partir de então está ele próprio nan-
ciando a produção audiovisual, inclu-
sive porque várias das empresas que
aplicam recursos em atividades cultu-
rais são estatais. [...] Se, por um lado,
não há mais tutela do governo, com
comissões que selecionam os lmes
aptos a obter recursos do Estado, o
que conta é a capacidade do produ-
tor de atrair uma empresa pagadora
de impostos, que tem seus créditos
rearmados e que, por sua vez, não
corre nenhum risco.
No entanto, o incremento viabiliza-
do pelas leis de incentivo, não chega a se
igualar à chamada “época de ouro”, não
apenas no número de títulos lançados,
como também quanto à participação no
mercado nacional em relação ao número
de ingressos vendidos. Naquele período,
o produto nacional chega a deter 20% do
mercado, enquanto que, atualmente, sua
participação é de pouco mais da metade
deste valor. (EARP; SROULEVICH, 2009)
O modelo entra em crise, porém,
a partir de 1999
IX
, quando a conjuntura
mundial desfavorável provoca a redu-
ção dos lucros das grandes empresas
do país e, portanto, da margem de nan-
ciamento
X
. Além disso, os custos de pro-
dução dos lmes brasileiros aumentam
em reais devido à valorização do dólar
(ALVARENGA, 2010).
Ainda no ano de 1999, a Secretaria
de Desenvolvimento Audiovisual do MinC,
então a cargo do cientista político José Ál-
87
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
varo Moisés, é reestruturada. São instituí-
dos concursos públicos, linhas de crédito,
prêmios etc.
XI
A ação mais signicativa,
porém, segundo Melina Marson (2006), se
refere “às restrições impostas aos novos
cineastas, como a criação de limites para
captação e a denição de critérios mais
rígidos para a emissão de certicados au-
diovisuais, através da utilização da ava-
liação curricular do proponente” (p. 132).
Embora aclamada pelos cineastas mais
inuentes, a medida contribui para acirrar
a divisão do setor cinematográco, devi-
do a seu caráter restritivo e de priorização
dos cineastas de “grandes produções”.
Por outro lado, as iniciativas não logram
responder aos anseios dos prossionais
do setor audiovisual.
A crise atravessada pelo cinema
nacional pode ser explicitada pela publi-
cação, na revista Veja, da matéria Caros,
ruins e você paga, de autoria de Celso
Masson(1999), que questiona a viabilida-
de e a necessidade do investimento estatal
em cinema, fundamentada em “fracassos
de bilheteria”, bem como nos escândalos
da interrupção do audacioso lme Chatô
do ator Guilherme Fontes
XII
– que já ha-
via captado o montante R$7,5 milhões do
custo estimado de R$ 12 milhões –, e da
constatação de irregularidades na utiliza-
ção dos R$ 2,5 milhões captados para a
realização de O Guarani, de Norma Ben-
gell (1996)
XIII
. Em tom irônico, o texto tam-
bém critica as iniciativas de fomento do
audiovisual.
Outro episódio ilustra o descompas-
so entre o MinC e os prossionais do cam-
po cinematográco no período: a propos-
ta, apresentada ao presidente Fernando
Henrique Cardoso pelo ministro Weffort,
já em 2000, de estender o acesso às leis
de incentivo às emissoras de radiodifusão,
a m de inseri-las na produção cinemato-
gráca. Neste caso, porém, as consequ-
ências são diversas. “Com diculdades
para conseguir patrocínio em virtude da
crise e em pânico frente à perspectiva de
uma concorrência desleal da televisão”
(MARSON, 2006, p. 139), os cineastas se
unem e se mobilizam diante do inimigo co-
mum: a televisão comercial.
A insatisfação do modelo estrutu-
rado pelas leis de incentivo, da crise eco-
nômica que se desdobrava intensamente
no setor e da falta de ação do Ministério
da Cultura em relação a uma política efe-
tiva para o cinema fez com que cineastas
passassem a se movimentar para uma
articulação política que pudessem apro-
ximá-los do Estado, buscando dialogar
com outras esferas do governo. (ALVA-
RENGA, 2010, p. 49-50).
Diante de tal conjuntura, o Senado
Federal instala uma Subcomissão de Ci-
nema, a m de investigar a atividade ci-
nematográca no Brasil, diagnosticando
problemas e propondo alternativas
XIV
. As
atividades da Subcomissão ocorrem en-
tre julho de 1999 e junho de 2000, perí-
odo em que são convidados a prestarem
depoimento cineastas, produtores, repre-
sentantes de grupos exibidores, de distri-
buidoras, de associações de prossionais,
pesquisadores, coordenadores de festi-
vais de cinema e o próprio Secretário para
o Desenvolvimento do Audiovisual. (ALVA-
RENGA, 2010)
Cabe ressaltar a importância dos
trabalhos da Subcomissão para a intro-
dução das discussões sobre a situação
do cinema brasileiro no Poder Legislati-
vo, fato que contribui para a propagação
e acolhimento das propostas apresenta-
das pela corporação cinematográca, du-
rante o III Congresso Brasileiro de Cine-
ma (III CBC) em 2000.
Grande parte das temáticas discu-
tidas na Subcomissão do Senado foi re-
tomada com maior ou menor relevância
no III Congresso Brasileiro de Cinema
(III CBC), o qual obteve uma represen-
88
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
tação setorial maciça, desdobrando-se
no estreitamento das relações entre a
corporação cinematográca e o Poder
Executivo Federal.
Mais de quarenta anos após a rea-
lização dos dois primeiros congressos, é
realizado, então, o III CBC, presidido pelo
cineasta Gustavo Dahl. Prossionais e en-
tidades do setor audiovisual – incluindo
exibidores, distribuidores e representantes
de emissoras de TV públicas e privadas –
se reúnem para debater o cinema brasilei-
ro, na cidade de Porto Alegre, entre 28 de
junho e primeiro de julho. Dentre as 69 re-
soluções derivadas do evento, constam a
continuidade do CBC como entidade per-
manente e o apoio à criação, no âmbito do
Governo Federal, de um órgão gestor da
atividade cinematográca, que vem a ser
a Agência Nacional do Cinema (Ancine),
constituída em setembro de 2001.
Após a realização do evento – que
conta com a participação mais de 40 as-
sociações ligadas ao setor audiovisual
–, o Presidente FHC, reconhecendo sua
representatividade, convoca membros do
meio cinematográco e do governo, com o
intuito de discutir e viabilizar o atendimen-
to das demandas apresentadas. A reunião
resulta na criação em 13 de setembro de
2000, por um decreto sem número, do
Grupo Executivo de Desenvolvimento da
Indústria do Cinema (Gedic)
XV
, com o ob-
jetivo de articular, coordenar e supervisio-
nar as ações para o desenvolvimento de
projeto estratégico para a indústria cine-
matográca brasileira.
Finalizados os trabalhos do Gedic,
no dia 23 de março de 2001 é apresen-
tado o sumário executivo do pré-projeto
de planejamento estratégico do grupo. O
texto sugere a adição de cinco medidas:
a) a criação de uma agência reguladora
do setor; b) o fortalecimento da atuação
da Secretaria do Audiovisual junto às ati-
vidades de caráter não-industrial, visto
que à agência caberia as iniciativas re-
lativas ao cinema enquanto indústria; c)
a ampliação do fomento à atividade cine-
matográca, por meio da criação de um
fundo, da taxação do faturamento publi-
citário nas redes de televisão e de apa-
relhos audiovisuais, do recolhimento de
um percentual sobre as loterias da Caixa
Econômica Federal, bem como do provi-
mento de recursos orçamentários gover-
namentais; d) modicação da legislação
a m de promover a ação empresarial
nos setores da produção, distribuição,
exibição e infraestrutura técnica
XVI
; e)
taxação das redes de televisão, em 4%
do seu faturamento publicitário, visando
à coprodução e aquisição de direitos de
antena dos lmes brasileiros de produção
independente (ALVARENGA, 2010).
Grande parte das propostas apre-
sentadas pelo Gedic, portanto, é consi-
derada na edição da Medida Provisória
(MP) 2228-1
XVII
, de 2001. O processo de
elaboração desse dispositivo legal traz um
exemplo bastante ilustrativo do período
em questão. Em entrevista, Gustavo Dahl
(2010, p. 132-133), relata:
Então começou a redação dentro da
Casa Civil do projeto de criação da An-
cine [...]. Depois houve uma proposta
de lei, ela foi discutida internamente,
mas sempre se achou que ela seria
uma Medida Provisória, mas como
mexia com vários interesses, ela foi
tratada dentro de um sigilo, porém foi
discutida internamente tanto no Gedic,
quanto em vários Ministérios, sobretu-
do no Ministério da Fazenda, em que o
Secretário da Receita na época era o
Everardo Maciel, também no Ministé-
rio das Comunicações que tinha como
ministro o Pimenta da Veiga e o Minis-
tério da Cultura também participou.
Ou seja, a m de evitar polêmicas e
embates em torno das propostas apresen-
tadas pelo Gedic, a elaboração da norma
89
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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jurídica se dá de forma sigilosa e reduzida
a um pequeno número de pessoas. Ade-
mais, sua instituição através de MP, e não
de uma Lei – que implicaria discussão e
apreciação pelo Congresso Nacional e
pelo Senado –, também revela o caráter
antidemocrático do processo.
Em relação à Ancine, por exem-
plo, a proposta inicial, segundo Gus-
tavo Dahl (2010) é de criação de uma
agência reguladora que viesse a abarcar
todo o setor audiovisual, e não apenas
o cinema. No entanto, as pressões dos
radiodifusores, naquele momento, so-
mam-se à urgência para a publicação da
norma jurídica, visto que a promulgação
da Emenda Constitucional n.º 32, com o
intuito de coibir os abusos do poder exe-
cutivo em relação às Medidas Provisó-
rias
XVIII
, é iminente. (BRASIL, 2001a)
quando a Medida Provisória (MP) es-
tava pronta e o Ministério das Comu-
nicações tinha participado, houve uma
manifestação conjunta das emissoras
de televisão se recusando em serem
reguladas pelo governo e pela MP,
elas conversaram com o presidente
Fernando Henrique para comunicarem
que não estavam de acordo com as
propostas da MP, fazendo uma pres-
são violenta, então o governo federal
recuou e restringiu a MP ao cinema
e à produção videofonográca. [...] o
termo videofonográco foi modicado
dois dias antes da aprovação da MP,
numa reunião tensa na Casa Civil com
a presença de alguns elementos, do
relator e de grupos da televisão, con-
siderando o fato de não haver viabili-
dade para a aprovação da MP. (DAHL,
2010, pp. 134-135)
A nova agência reduz, portanto,
seu campo de atuação, excluindo toda e
qualquer menção à regulação televisiva.
O governo também suprime da MP a pro-
posta de taxação das emissoras, em 4%
do faturamento bruto, para coprodução
de obras cinematográcas. Outra ques-
tão que merece destaque é a vinculação
da Ancine. O texto determina seu atrela-
mento ao Ministério do Desenvolvimento
da Indústria e Comercio, no entanto, sua
permanência transitória na estrutura da
Casa Civil, prevista para durar um ano,
é prorrogada em 2002, transferindo ao
Governo posterior as decisões, e o con-
fronto, entre a política cultural e a indus-
trial (BRASIL, 2001b). Por outro lado, a
MP 2228-1, e as consequentes criação
da Ancine e do Conselho Superior de Ci-
nema conguram grandes conquistas da
corporação cinematográca.
Entre 14 e 18 de novembro de
2001, é realizado, na cidade do Rio de Ja-
neiro, o IV Congresso Brasileiro de Cine-
ma (IV CBC). Sua carta nal demarca as
conquistas da mobilização resultante do III
CBC, em especial quanto à estruturação
da Ancine e de uma política pública para o
cinema. Em seu Relatório Final, o IV CBC
enfatiza, ainda:
O IV Congresso Brasileiro de Ci-
nema chama a si a defesa do conteú-
do audiovisual nacional, absolutamente
convicto de que o Cinema Brasileiro é
expressão essencial da criatividade e di-
versidade cultural do povo brasileiro. Re-
conhecem, os congressistas, que o cine-
ma nacional é produzido com recursos do
povo brasileiro, que também é, em última
instância, o nanciador da TV brasileira,
tendo, portanto, o direito de acesso ao
seu cinema, em sua TV. É intolerável a
persistência do excessivo e quase incon-
trolável poder dos meios de comunicação
social sobre a vida cultural e política da
nação (IV CONGRESSO BRASILEIRO
DE CINEMA, 2001, online).
Ou seja, são reiteradas deman-
das, já apresentadas anteriormente e
ainda não solucionadas: o estímulo à
construção de salas de exibição, a inter-
90
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
nacionalização do cinema brasileiro, e a
atuação efetiva do Estado no fomento e
regulamentação da articulação entre o
cinema e a televisão.
Considerações nais
A reexão retrospectiva sobre as
trajetórias das políticas culturais e de co-
municação no Brasil entre 1985 e 2002,
conrmam as três tristes tradições res-
saltadas por Rubim (2012): autoritarismo,
instabilidade e ausência. No período abar-
cado, a despeito de diferenciações pontu-
ais, é possível constatar o encadeamento,
sem alterações profundas, das relações
entre a implantação de políticas culturais e
autoritarismo e asinstabilidades e ausên-
cias nos período democrático.
Apesar dos avanços obtidos no
período, as políticas para o setor audiovi-
sual são formuladas e implementadas de
forma desintegrada e a televisão segue
restrita ao âmbito do Ministério das Comu-
nicações – de um ponto de vista eminen-
temente técnico –, de modo que:
as áreas de Educação e Cultura pouco
tiveram a dizer a respeito, exceto no
campo de suas emissoras especícas,
de escassa audiência. Assim, quanto
ao conteúdo da programação e em
especial quanto ao seu compromisso
com valores democráticos, o poder
público pouco tem efetuado, cando
as poucas iniciativas positivas e as
muitas duvidosas ao exclusivo arbítrio
das emissoras (JANINE, 2001, p. 1).
Signica dizer que a ausência de
uma política pública efetiva implica na
instituição de uma política comunicacio-
nal — e, portanto, cultural — regida ape-
nas pelos interesses do mercado. Espe-
cialmente no que diz respeito ao âmbito
regulatório, a instituição de mudanças
conjunturais, em especial as que contra-
riam interesses das empresas de radio-
difusão são inviabilizadas por acirradas
campanhas, ou ainda por profundos si-
lenciamentos, por parte dos meios de co-
municação tradicionais. Por outro lado, a
necessidade de atualização da legislação
para o setor é premente.
Tal quadro passa a apresentar no-
vos matizes apenas a partir do ano de
2003, após a paradigmática gestão de Gil-
berto Gil frente ao Ministério da Cultura.
Por sua relevância e caráter inaugurador,
tal período, ao contrário do momento anali-
sado ao longo deste texto, vem sendo alvo
de diversas e relevantes investigações.
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Recebido em 16/12/2015
Aprovado em 07/10/2016
I Renata Rocha. Centro de Estudos Multidiscipli-
nares em Cultura / Universidade Federal da Bahia.
Bolsista em Políticas Culturais do Programa Nacional de
Pós-Doutorado - CAPES/UFBA
Vice-coordenadora do Centro de Estudos Multidiscipli-
nares em Cultura - UFBA
II Criada em 1967, pela Lei nº 5.198, a Fundação Cen-
tro Brasileiro de TV Educativa (FCBTV), vinculada ao
Ministério da Educação e Cultura, tinha como nalidade
a produção, aquisição e distribuição de material audio-
visual destinado à radiodifusão educativa. Seis anos de-
pois de sua criação, a FCBTVE recebe autorização para
estabelecer uma estação de televisão aberta, a TVE-BR
– Canal 2, que utilizaria o canal 2 do Rio de Janeiro,
antes ocupado pela TV Excelsior(MILANEZ, 2007). Em
1982, a sigla FCBTV é alterada para Funtevê.
III A atuação contundente do Fórum resulta na indica-
ção de seu presidente, o Secretário de Cultura de Minas
Gerais, José Aparecido de Oliveira, para assumir o Mi-
nistério quando de sua criação.
IV Como órgãos componentes da estrutura básica do
então Ministério da Cultura, quando este foi extinto, tam-
bém o foram a Embralme e o Concine, através da Me-
dida Provisória n.º 150 de 1990, posteriormente transfor-
mada na Lei 8.028, de 12.4.1990. (SIMIS, 2008)
V Em 2001, a m de “contrapor-se aos gostos do
mercado” (MINC TIRA DO AR..., 2003, online) a Se-
cretaria de Audiovisual do MinC cria o canal “Cultura e
Arte”. Operado pela TV Cultura, por meio de contrato,
o Canal, em seu primeiro ano de existência, custa aos
cofres públicos cerca de R$ 4,7 milhões. A programa-
ção, de 60 horas semanais, consiste na exibição de do-
cumentários, lmes e programas de debates, além de
obras nanciadas pelo governo, por meio das leis de
incentivo (Lei do Audiovisual e Lei Rouanet). O Canal
é descontinuado em 2003, antes mesmo de completar
dois anos de existência.
VI No ano de 1993, a Associação Brasileira de
Emissoras de Antenas Comunitárias (ABRACOM)
é transformada na ABTA. Segundo Murilo Ramos
(apud BOLAÑO, 2007), a mudança representava
mais que uma simples alteração no nome e estatuto
da organização, visto que ela ocorre após a entrada
de grandes empresas (a exemplo das Organizações
Globo, o Grupo Abril e a recém-criada Multicanal) no
mercado da televisão por assinatura. Estes três gru-
pos empresariais assumem os cargos principais da
diretoria e do conselho deliberativo da nova entida-
de, minimizando a influência dos pequenos e médios
empresários que atuam no mercado da televisão por
assinatura, via concessões do serviço de distribuição
de sinais de TV por meio físico.
VII Para mais informações sobre os embates e nego-
ciações em torno da Lei do Cabo, ver Jambeiro (2002)
e Bolaño (2007).
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VIII Viabilizado por meio do prêmio Resgate com recur-
sos remanescentes da extinta Embralme.
IX No ano de 1998, as crises sequenciais dos merca-
dos emergentes do México, da Rússia e de alguns pa-
íses da Ásia afetaram a economia brasileira. Segundo
Alvarenga (2010), como reação, o governo brasileiro
estabelece uma política cambial de desvalorização do
real perante o dólar, somada à política monetária de
aumento dos juros, a m de retrair o efeito inacionário
que se seguiria a esta ação.
X Conforme mencionado, o nanciamento realizado
era dedutível do imposto de renda, com base nos lucros
auferidos pelas empresas.
XI São exemplos destas ações os programas: Mais Ci-
nema, com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimen-
to Econômico e Social (BNDES), Banco do Brasil e Ser-
viço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae),
que disponibiliza R$ 80 milhões (em valores da época)
em empréstimos para produtores, distribuidores e exi-
bidores; a destinação de verbas para marketing de l-
mes nacionais; concursos públicos para novos talentos,
curtas-metragens, documentários e longas-metragens
autorais; bolsa virtuose para formação prossional; cria-
ção do Grande Prêmio Cinema Brasil, saudado como o
Oscar brasileiro (MARSON, 2006).
XII Cuja pré-estreia ocorreu apenas em novem-
bro de 2015.
XIII Em valores da época. Ao atualizá-los para o mês
de dezembro de 2015, levando em consideração o Índi-
ce de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), os valores
são de R$ 21.1 milhões, R$ 33.8milhões, e R$7 mi-
lhões, respectivamente. Cf: http://calculoexato.com.br/
parprima.aspx?codMenu=FinanAtualizaIndice. Acesso
em 22 abr. 2014.
XIV Segundo Marson (2006), em maio de 1999,
antes mesmo dos escândalos de Chatô e O Guarani
tornarem-se públicos, o senador Francelino Pereira do
Partido da Frente Liberal (PFL) solicita a instalação da
subcomissão. Sua criação, porém, é aprovada ape-
nas no mês seguinte.
XV O grupo era constituído pelos ministros Pedro
Parente (Casa Civil), que o coordenou; Aloysio Nu-
nes (Secretaria Geral da Presidência da República);
Andrea Matarazzo (Secretaria de Comunicação de
Governo da Presidência da República); Francisco
Weffort (Cultura); Pimenta da Veiga (Comunica-
ções); Pedro Malan (Fazenda); e Alcides Tápias
(Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Ex-
terior). Os profissionais do setor audiovisual eram
os cineastas Gustavo Dahl, Cacá Diegues e Luiz
Carlos Barreto; além do então diretor geral da Co-
lumbia Tristar Buena Vista Filmes do Brasil, Rodrigo
Saturnino Braga e de um representante da indústria
televisiva, o funcionário da TV Globo, Evandro Gui-
marães (ALVARENGA, 2010).
XVI As mudanças visam à criação da cota de tela para
a produção independente na programação televisiva; à
ampliação dos segmentos de empresas a pagarem a
Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cine-
matográca; e ao prolongamento das leis de renúncia
scal (ALVARENGA, 2010).
XVII Dentre as quais: o estabelecimento dos princí-
pios gerais da Política Nacional do Cinema, a criação
do Conselho Superior do Cinema e da Agência Nacional
do Cinema (Ancine), a instituição do Programa de Apoio
ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine),
a autorização para criar Fundos de Financiamento da
Indústria Cinematográca Nacional (Funcines) e a alte-
ração da legislação sobre a Contribuição para o Desen-
volvimento da Indústria Cinematográca Nacional (Co-
decine) (BRASIL, 2001b).
XVIII Em caso de relevância e urgência, o Presi-
dente pode baixar uma Medida Provisória, que tem
força de lei, sem a participação do poder legislati-
vo. Para sua conversão, de fato, em lei, a MP deve
ser submetida às duas casas do Congresso Nacional
para sua aprovação no prazo de 60 dias, prorrogável
por igual período. No entanto, segundo Toshio Mukai
(1999 apud PEDRON, 2000, p. 3) “o presidente da
República [FHC] tomou a reiteração da edição das
medidas provisórias uma praxe comum e corriqueira,
tanto que passou a simplesmente reeditá-las, men-
salmente, com idêntico conteúdo e a mesma nume-
ração”. Dessa forma, a utilização ostensiva e inade-
quada deste dispositivo legal impulsiona a edição da
Emenda Constitucional n.º 32/01, que traz várias res-
trições ao uso do dispositivo, tais como: delimitação
das matérias compatíveis com o instituto, mudanças
no prazo de apreciação pelo Congresso Nacional e
finalmente, a previsão legal da impossibilidade da re-
edição das medidas provisórias.
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Artigo
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Sentindo do nosso jeito: humores e estudos culturais
Feeling our way: mood and cultural studies
Sentiendo de nuestra maneira: humores y estudos culturales
Autor: Ben Highmore
I
Tradutor: Paulo Gajanigo
II
Resumo:
Este ensaio é uma contribuição a uma investigação inicial sobre
a utilidade de “humor” [mood] como uma categoria analítica para
os estudos culturais e de comunicação. Aqui ofereço algumas
descrições de paisagens de humor que demonstram a maneira como
humor pode nos levar a um mundo material de orientação, anação
e atmosfera. Sugiro também que os estudos culturais, como uma
forma escritível, pode também, de forma geral, se engajar produtiva
e politicamente com os humores.
Palavras chave:
Humor
Heidegger
Anação
Materialismo Sensorial
Stimmung
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Resumen:
Este trabajo es una contribución a una investigación inicial sobre el
uso de “humor” como categoría analítica de los estudios culturales
y la comunicación. Aquí ofrezco algunas descripciones de paisajes
de humor que muestra cómo el humor que nos puede llevar a un
mundo material de orientación, afinación y atmósfera. También
sugiero que los estudios culturales, como una forma escritible,
también pueden en general participar de los humores como un
proyecto productivo y político.
Abstract:
This essay is a contribution to an emergent investigation into the
usefulness of “mood” as an analytic category for communication
and cultural studies. In it I offer a number of descriptive moodscapes
that demonstrate the way that mood can direct us to a material world
of orientation, attunement, and atmosphere. I also suggest that
cultural studies, as a writerly form, can also engage generatively
with mood as a productive and political project.
Palabras clave:
Humor
Heidegger
Anación
Materialismo Sensorial
Stimming
Keywords:
Mood
Heidegger
Attunement
SEnsorial Materialism
Stimming
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Sentindo do nosso jeito: humores
III
e
estudos culturais
IV
1.
Na atenção em curso que as hu-
manidades e as ciências sociais estão
esbanjando sobre emoção, sentimento
e afeto, um espaço parece estar sendo
aberto para os estudos de humor
V
. Neste
artigo, eu irei esclarecer o que penso ser
a produtividade em olhar a cultura pela
perspectiva dos humores e da atmosfe-
ra. Como muitos que são pegos no pri-
meiro rubor de entusiasmo, eu tenho um
sentimento de que irei reivindicar demais
por essa perspectiva: sem modular ou
moderar meu sentimento o suciente por
humor; e sem proteger o suciente minha
apresentação com qualicações ou no-
tas de alerta. Em minha excitação pelos
humores, estou passível de proselitismo
quando deveria estar balanceando ar-
gumentos, ou de optar pelo bombástico
quando uma apresentação mais sóbria
seria mais indicado. Por isso, eu devo
desculpas antecipadas. Mas a escolha
pela estratégia retórica (sóbrio ou bê-
bado? Analiticamente frio ou descritiva-
mente quente? Seco e cuidadoso ou a-
grantemente exagerado?) acaba por ter
muito a ver com o tópico. As mediações
de humor – seus meios de transmissão e
condutores – estão incorporadas a certas
práticas materiais que são rotineiramente
aplicadas quando o mundo é considerado
cheio de humores. E, fundamentalmen-
te, como cará claro, estão também
quando um sujeito pensa que está sem
qualquer humor, quando ele pensa que
está operando sem paixão, podemos di-
zer. Ao reivindicar os humores como uma
orientação para os estudos culturais,
também gostaria de imaginar o caráter
pleno de humores dos estudos culturais
– dos humores que os estudos culturais
tiveram, e os humores que talvez tenham
buscado adotar ou que podem adotar de
vez em quando na procura de novos hu-
mores, e, possivelmente, dos novos hu-
mores mais adequados a um futuro que
está fazendo suas demandas de humor
sobre nós. É uma questão de tonalidade
e estilo, claro, mas também de impaciên-
cia, irritação, elegância, indiferença e se-
renidade. Tonalidade e estilo não são, no
entanto, meus temas aqui. Para iniciar a
pensar nisso, contarei a vocês sobre um
trabalho que eu tinha.
2.
O truque era sincronicidade. O
truque era ir baixando a música de fundo
ao mesmo tempo que diminuía as luzes,
abria a cortina e iniciava a projeção, de
forma que, no momento chave, quan-
do as luzes estavam quase apagadas e
as cortinas abertas mais da metade, e
quando o silêncio estava se iniciando,
você podia virar a chave que permite
que o intenso feixe de luz seja jogado
do projetor na tela e conectar o sistema
de alto-falante à trilha sonora do lme. É
necessário um pouco de prática.
Para começar, eu entrava em pânico e
esquecia de diminuir as luzes ou de ligar
a luz do projetor. Ou pior, poderia não
instalar bem o rolo, fazendo com que o
lme se agarrasse e começava um giro
louco da película pelo chão da cabine de
projeção, o que signicava que eu teria
que parar o lme antes de me afogar em
celuloide. Mas quando comecei a fazer
tudo certo, eu me orgulhava de escolher
alguma música para antes do lme que
eu gostava, encaixando-a de uma for-
ma que ela ia diminuindo à medida que
eu apagava as luzes, abria as cortinas
e começava o lme. Se eu gostava do
lme, eu tentava achar alguma música
que compartilhava da mesma ressonân-
cia. Mas frequentemente eu sentia que a
Nina Simone cantando a canção que dá
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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título ao seu álbum Baltimore, de 1978,
dava conta do recado.
A canção “Baltimore”, escrita por
Randy Newman e com o vocal de Nina
Simone, parece imbuir cada frase da
canção em um mundo de dor, de um
tempo de se levantar e seguir em fren-
te. Simone parece ter um jeito de pegar
as canções de homens melancólicos –
estou pensando em suas versões das
canções de Bob Dylan e Leonard Cohen
– e ampliar a miséria ao mesmo tempo
que traz o sentimento de uma leve resi-
liência. Sua voz e sua pegada parecem
agir como uma forma de ressonador de
amores difíceis. Baltimore, a canção ao
menos, está repleta de lamentos: “Hard
times in the city, in a hard town by the
Sea, Oh Baltimore, ain’t it hard just to
live”. Sem dúvida é uma vida dura: sem
questionar que Nina Simone vive isso
e vive em meio a isso. Mas é esta voz,
cantando aquelas palavras, situadas
numa paisagem sonora de cordas pon-
tuadas pela batida da guitarra do reggae
que me atinge. Parece um bom prelúdio
para um lme.
Estava em 1987 quando come-
cei: os títulos dos lmes que projetei fa-
cilmente me vêm a mente – Something
Wild; Roxanne; Withnail and I; Angel
Heart; Raising Arizona; Jean de Floret-
te; Manon des Sources; The Lair of the
White Worm; The Moderns; Torch Song
Trilogy; Distant Voices, Still Lives; Patty
Hearst; High Hopes; Red Sorghum; Rita,
Sue and Bob Too; Prick Up Yours Ears;
House of Games; Bagda Cafe; Babette’s
Feast; I’ve Heard the Mermaids Singing;
e assim por diante. Eu consigo lembrar
de alguns lmes com bastante nitidez:
mas principalmente como fragmentos
e particularidades sensoriais. Eu posso
lembrar da cor de Bagda Cafe mas não
da história; posso facilmente puxar da
memória cenas de Distant Voices, Still
Lives, a parte onde todos estão fuman-
do no cinema e então alguém cai, em câ-
mera lenta, pelo teto de vidro; penso que
posso representar a maneira de enunciar
em House of Games. Penso que pode-
ria lembrar de algo se eu sem querer me
deparasse com eles agora. Buscá-los na
consciência, no entanto, foi muitas vezes
decepcionante. Quando eu assisti, como
projecionista, uma porção de lmes du-
rante doze noites de exibição por duas
semanas eu, simplesmente, amei Asas
do Desejo de Win Wenders (especial-
mente o longo travelling que inicia o l-
me sobrevoando os apartamentos), mas
quando eu sentei e assisti na sala de exi-
bição, o lme pareceu ser, fundamental-
mente, sobre um homem de meia idade
apaixonado por uma jovem mulher com
cabelo todo desgrenhado (como o último
lme de Tarkovsky: o dilema existencial
de imaginar alguém). O cinema onde
trabalhei era, e ainda é, um cinema “de
arte” que mostrava o cardápio usual de
lmes independentes, peculiares, assim
como programas mais experimentais de
vanguardas copilados pelo British Film
Institute, que eram sempre exibidos na
pequena segunda sala. Eu me lembro de
encontrar a maravilhosa Margaret Tait,
que comia seus sanduíches na cabine de
projeção enquanto eram exibidos na pe-
quena sala seus vendavais poéticos. Ela
parecia um pouco encabulada em mos-
trar seus lmes: talvez porque eles desa-
celeravam o tempo.
Lembro da maioria dos lmes que
eu exibi nos dois anos em que fui proje-
cionista, não porque eu cava checando
com cuidado se o foco estava bom (ain-
da que eu casse) ou porque eu amava
lmes (eu amava: muito menos agora),
mas porque eu estava assustado. Du-
rante a maior parte do tempo, eu estava
assustado, preocupado em não estra-
gar tudo. Nunca consegui pegar o jeito
nesses dois anos. Meu patrão tentou
me ensinar sobre eletrônica. Até li livros
sobre o assunto. Mas quando as coisas
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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davam errado, eu estava sempre perple-
xo: minha postura básica era o pânico.
Eu estava totalmente despreparado. Por
alguma razão, eu simplesmente pensei
que seria um trabalho fácil e que eu con-
seguiria seguir carreira: começar como
um projecionista e terminar como um
programador de lmes, quem sabe um
curador de festivais de cinema. Mas eu
não estava preparado para o fato de ser
um projecionista em tempos pré-digitais,
pois era um trabalho pesado, difícil, téc-
nico e industrial. Eu não me importava
com trabalhos pesados e difíceis: era o
aspecto técnico que me desesperava. O
que eles precisavam era de alguém com
um pouco de saber técnico – alguém que
fosse capaz de, ao menos, distinguir um
resistor de um carburador! Não alguém
com um diploma de belas artes que gos-
tava de lmes de arte.
Eu me via como um diretor em po-
tencial fazendo minha passagem pelos
bastidores. Na verdade, eu estava sendo
curado da minha cinelia aguda. A cabi-
ne de projeção era como uma overdose
de efeitos de alienação brechtiano por
meio de uma concentração ultra mate-
rialista do aparato fílmico. Eu lembro de
me preparar para as trocas de projetores
(era necessário iniciar o projetor parale-
lo quando o carretel do outro terminava).
Em minha ansiedade, muitas vezes me
preparava muito antes; então eu acaba-
va agachado, olhando pelo vidro, olhan-
do, olhando para o canto direito da tela
esperando o pequeno círculo riscado
aparecer. Algumas vezes eu sentia que
estava admirando este canto por horas,
mas frequentemente era por alguns mi-
nutos. O zumbido maquinal e o creque-
-creque de dois projetores Gaumont
Kalee 21 forneciam a insistente trilha so-
nora. No entanto, na sala de projeção,
era suave e lânguido, lá em cima, na
cabine, era sempre o trabalho frenético,
vinte e quatro fragmentos por segundo,
levando a enorme quantia de celuloide
para a máquina que produzia a trilha so-
nora e o ritmo contagiantes.
Algumas vezes, se eu estava es-
pecialmente interessado em um filme,
eu o assistia na sala de exibição em
meus dias de folga. Normalmente era um
erro: eu ficava preocupado com a quali-
dade do foco; muito nervoso quando as
marcas da troca de projetor apareciam;
muito preocupado com aspectos de vo-
lume e proporção. Eu acabei por trans-
formar cada “texto-clássico-realista”,
com toda sua identificação de caráteres
que ele estava destinado a promover,
em uma experiência estruturalista-ma-
terialista do “filme como filme”. Sentado
lá eu tentava ter a medida da experiên-
cia daqueles à minha volta – um senso
da teatralidade da apresentação. Ouvir
minha tão amada Nina Simone lá de-
baixo era horrível: simplesmente soava
como um sofisticado bar de vinhos. Mas
era incrivelmente ignorado. O que não
era ignorado e funcionava como um tipo
de charme alucinatório era a diminuição
das luzes. Escurecer as luzes era como
abaixar o volume da audiência. Você
poderia vê-los se ajeitarem na cadei-
ra; se reorientarem em relação a suas
companhias, a seu assento e à tela. A
diminuição das luzes, o espaço recali-
brado, fazia os vizinhos retrocederem e
intensificava a atração da tela. As pes-
soas se abaixavam; estávamos prepa-
rados para a longa viagem.
E, com a abertura das cortinas e
o início do lme, você podia perceber as
pessoas sentindo sua entrada no lme
(eu era um deles, claro): catando suges-
tões e pistas. Examinando a sequência
que antecede o título; ouvindo a trilha
sonora; qualquer coisa que poderia in-
dicar que tipo de prazeres e dores es-
tava nos esperando. Precisamos de um
apoio de braço para agarrar? Sentamos
mais para frente em apreensão por al-
guém ser apreendido? Ou nos voltamos
100
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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para trás para rirmos alto? Filmes eram
indícios de gênero, potencializadores de
humor, e introdutores de humor: peque-
nos sinais para nos prepararmos, para
nos sensibilizar para um futuro que pode
acabar bem ou mal.
3.
A seção anterior pode ser enten-
dida como uma “memória dos humores”,
mas se assim for, é de um matiz particu-
lar. Não está particularmente na emoti-
vidade do humor, nem vale gastar muito
tempo pensando sobre meu próprio hu-
mor emocional além de mencionar uma
certa quantia de ansiedade no trabalho
e desapontamento em relação à experi-
ência cinematográca. Eu poderia des-
crever diferentes gamas de experiências
– visitar um hospital ou os primeiros dias
na escola, por exemplo – e fazê-los cheio
de humores da mesma forma. Eu creio
que o tipo de descrições de humor que
estou interessado em buscar frequente-
mente requer a presença e a ausência
de perícia, alguma forma de ambien-
te institucional formal ou informal e um
conjunto de técnicas materiais e supor-
tes materiais sensuais e sensoriais as-
sociados. Na seção anterior, eu escolhi
concentrar-me nas congurações onde
concentração e atenção, como orienta-
ções de humor, estão em primeiro pla-
no. E nesses, os “suportes” sensoriais
parecem ser extremamente importantes:
de fato, os dimmers de luz e os motores
de cortina podem muito bem estarem fa-
zendo boa parte do trabalho de humor,
ou ao menos na conguração de um tra-
balho de humor mais preparatório como
os sentimentos transmitidos pela canção
de Nina Simone.
As pistas de humor de gênero so-
cial são importantes como uma forma
de lidar com o desconhecido, ou se pre-
parar para isso e antecipar as suas de-
mandas (reafinar sua atenção, silenciar-
-se, à medida que as luzes abaixam, por
exemplo). Os humores estão direcio-
nados ao futuro, mesmo quando estão
submersos em reminiscências. Humor
é a atividade de aferir a atmosfera da
enfermaria do hospital, por exemplo, de
modo que você se sensibilize para cer-
tas maneiras de ser e fique menos pro-
penso a fazer papel de bobo: os infinitos
recipientes de loção antisséptica para
as mãos agora são uma importante pro-
priedade nessa performance. Seria inte-
ressante escrever descrições de humor
das primeiras semanas de recrutas do
exército. Mas então eu penso que esses
são apenas momentos em que os hu-
mores estão mais vívidos, e eu deveria
tentar descrever humores quando eles
se tornaram segunda natureza, quando
as pessoas estão pouco cientes do ca-
ráter de humor da vida.
Minhas memórias dos humores
poderiam ser estendidas enormemen-
te para dar atenção devida aos mundos
de humores dos lmes que eu projetei e
me perguntar por algumas questões his-
tóricas sobre a relação entre as atmos-
feras desses lmes, começando com as
produções britânicas, e o momento his-
tórico que inclui a chegada de Margaret
Thatcher a seu terceiro mandato como
Primeira Ministra. Ainda que não haja
um “humor nacional” de uma forma for-
te e imediata, há, claramente, níveis de
otimismo e esperança que estão mais ou
menos disponíveis em momentos especí-
cos para partes da população. Que tipos
de humor estavam circulando no momen-
to em que se viu o nascimento da YBA
(Jovens Artistas Britânicos); em que não
se podia imaginar ainda uma alternativa
ao domínio dos Tories (e não era sabido
dos compromissos que seriam realizados
para fazer esse acordo); em que se re-
tirou triunfalmente a maioria das bases
existentes de uma ação social progressi-
va; mas no momento em que também se
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Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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constituiu artifícios para jovens, congu-
rando tipos de negócios que permitiram
emergir bandas como Portishead; e um
momento onde “o politicamente correto”
era o novo bicho-papão?
Mas esse quadro de humores
pode obscurecer alguns dos humores
mais leves e obviamente mais materiais
que tecem a cultura pelo chão: a matriz
innita de formas sociais que são vivi-
das em vários níveis de intensidade e
em monotonia. Na minha memória de
humores, um dos aspectos que me inte-
ressava era um tipo de desmisticação
banal dos humores que parecia apontar
para algo da fragilidade do humor, mas
também o modo como os humores são
trabalhados e mantidos por ações que
são, ao mesmo tempo, “nosso” trabalho
(estamos todos ocupados fazendo nosso
trabalho de humor), mas também ligado
ao que os estudiosos da ciência se refe-
rem como delegados humanos (o traba-
lho de humor do acionamento do dimmer
ou dos motores da cortina, por exemplo).
Penso que parte disso surge ao pensar
sobre os sentidos humanos e o modo
como são orquestrados para certos hu-
mores e como esses humores podem ser
quebrados facilmente. Eu quebro o clima
[mood] de uma exibição quando eu au-
mento a luz ao m do lme. A fragilidade
da romântica intensidade hedonista de
uma discoteca é, semelhantemente, re-
velada e destruída quando eles acendem
a luz e cortam a música ao m da noite:
- pessoal, vocês não tem que voltar para
casa? - ; meu deus, onde estamos? O
clima [mood] na academia de ginástica
é quebrado quando, em vez de um com-
bustível innito de uma energética músi-
ca house e R&B, alguém acidentalmente
toca uma lenta balada romântica.
Luzes, sons e decoração são im-
portantes para os humores. Isso pode
parecer óbvio quando olhamos para um
mundo de mercadorias que são consi-
derados de ambientação [moodful]: luz
ambiente [mood], música ambiente, arte
ambiente e por aí vai. Sem dúvida há
pessoas que montam hotéis famosos e
hospitais particulares com a composição
correta de cores, luz e música ambien-
te para promover bem-estar. Talvez os
novos designers de interiores se pro-
movam como “engenheiros de ambien-
te [mood]”. Mas eu também estou pen-
sando no “luz ambiente” que você tem
num laboratório cientíco na escola que
é gerada pelas lâmpadas uorescentes.
De fato, um laboratório escolar pode ser
um bom lugar para procurar pelo hu-
mor se eu quero cumprir minha promes-
sa anterior de que há um humor para a
chamada vida desapaixonada. Os labo-
ratórios das escolas de hoje parecem
aqueles que eu lembro de meus dias
escolares exceto pelos bancos e ban-
cadas de madeiras que foram trocados
pelo que parece ser fórmica, alumínio,
plástico e aço. Os bicos de Bunsen são
os mesmos; os grandes quadros da ta-
bela periódica ainda estão lá. O humor
de um laboratório cientíco é garantido
de maneira mais bem-sucedida pela for-
te padronização na forma de escrita: as
anotações do experimento. Eu me lem-
bro de estar numa aula de ciências e de-
veria ter um aluno novo lá, já que o pro-
fessor lhe criticou por, não sabendo das
convenções da escrita cientíca, entre-
gar um relatório que o professor tomou
como uma agressão: “Era uma luminosa
manhã de setembro quando eu cheguei
ao prédio de ciência...” Ele não estava
zoando; ele apenas fez uso dos únicos
recursos que tinha para escrever uma
hipótese ou objetivo, prever um resulta-
do, mostrar um método (essa era a parte
que eu adorava, pois signicava que eu
poderia desenhar os aparelhos – meu
item favorito era o condensador refrige-
rado à água), detalhar os resultados e as
observações, e arrematando com uma
conclusão. Com um jaleco sujo e uma
noção de que a lição de casa da semana
102
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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necessitaria a anotação do trabalho prá-
tico, experimentos cientícos se torna-
vam a performance de certo humor, um
conjunto de ações deliberadas com uma
meta em mente, como terminar a lição
de casa. Algum dos pupilos eram, claro,
bagunceiros e tentavam estragar o clima
[mood]: ainda assim, o clima [mood] do
experimento estava estabelecido, e pa-
recia impossível achar o clima [mood]
tão estranho quanto maravilhoso.
Até agora, eu venho caminhan-
do sem utilizar as propriedades acadê-
micas usuais de citação e de referência
das autoridades acadêmicas; eu deixei
de mobilizar corpos teóricos bem discu-
tidos e utilizar vocabulário técnico. Eu
sei como as exigências insistentes so-
bre as convenções de referências irritam
alguns estudantes. Como um acadêmi-
co que também exige insistentemente o
uso das regras de citação, eu digo aos
estudantes que, ao seguir essas regras,
eles devem sentir uma alegre modéstia
e generosidade: eles estão mostrando
aos leitores uma conversa mais ampla
de que são parte e também dando ao lei-
tor pequenos presentes por mostrá-los
livros e ensaios que eles também podem
ir atrás e ler. Os estudantes não tendem
a ver assim ou se sentir dessa forma.
Eles acham tudo isso limitante: um pro-
cedimento disciplinar, uma formatação
de suas energias. Mas, por mais cons-
trangedora que pareça, o humor pro-
mulgado nas escritas acadêmicas das
humanidades e ciência social é criador:
permite aos estudantes enunciar algo.
Se eu tivesse seguido na química, por
exemplo, aquele humor prescritivo e de-
liberativo do experimento da escrita teria
me permitido fazer coisas, quem sabe
até descobrir algo novo. O clima [mood]
em meu cinema permitiu que certas for-
mas de experiência acontecessem que
provavelmente não seriam possíveis em
outras circunstâncias. O clima [mood] do
hospital permite que pessoas se enga-
jem em conversas práticas sobre morta-
lidade e a fragilidade do corpo humano.
Há preços para todos esses humores:
qualquer humor calibra o mundo – foca-
liza aspectos, borra outras partes. Sem
alguma calibração, o mundo todo seria
indistinto: com calibração, nós perfor-
mamos nossos valores sociais, e isso é
sempre um jogo de perdas e ganhos. É
assim que ideologia e alienação são per-
formadas e sentidas.
4.
Por que falar de humor, e por que
agora? Em sua introdução à edição de
New Literary History sobre o tema (“In
the mood”), as organizadoras Rita Fel-
ski e Susan Fraiman sugerem que “hu-
mor contorna as incômodas categorias
frequentemente impostas à experiên-
cia: subjetivo versus objetivo, sentimen-
to versus pensamento, latente versus
manifesto”; elas também sugerem que
“humor é um termo bem situado para
capturar o tom afetivo pouco elabora-
do da escrita crítica e teórica” (FELSKI;
FRAIMAN, 2012, p. vi). Isto é, em parte,
uma resposta para aquilo que pode ser
visto como uma deciência nas pesqui-
sas culturais sobre emoções e afetos,
que podem ser vistas como tendo uma
tendência a dedicar-se somente aos es-
tados emocionais intensos enquanto, ao
mesmo tempo, privilegiam o corpo sobre
a mente. Humor se benecia da ampla
gama de usos que tem na linguagem
cotidiana: por isso, enquanto você pode
armar que alguém que tem emoções
vacilantes é “temperamental” [moody],
você também pode estar “no clima” [in
the mood] para quase qualquer coisa
– para uma contemplação silenciosa,
pensamento concentrado, festas, arru-
mação, e por aí vai. Para a pes-
quisa sócio-histórica, humores de baixa
intensidade podem ser tão importantes
quanto os de alta intensidade. Na verda-
103
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de, a relação entre produção e gerência
do medo (“que calmo e siga em frente”)
pode ser crucial para pensar sobre um
passado recente construído sobre tan-
to a formatação e quanto a supressão
das ansiedades em relação à guerra,
às ameaças nucleares e ao terror. Hu-
mor é também um termo útil para formas
de análise que se dedicam aos aspec-
tos situacionais da vida. Por exemplo, a
análise de humor é em geral simpática à
compreensão de Bourdieu da ação so-
cial como forma de “improviso regulado”,
mas seria menos simpática a seu senti-
do de como formas de dispensação são
“duravelmente instaladas”. A análise dos
humores oferece uma chance de fazer
um trabalho empírico inspirado por algu-
mas das mesmas preocupações encon-
tradas na sociologia de Bourdieu sem
se ter a sensação de que o resultado é,
de alguma forma, acordado previamente
(BOURDIEU, 1977, p. 78).
Não é difícil apontar as razões
por que ‘humor pode estar na moda:
afinal, durante o crash financeiro de
2007 e 2008, jornalistas forneciam dia-
riamente diagnósticos de humor sobre
o que estava acontecendo. Especialis-
tas na televisão cotidianamente des-
creviam o humor hesitante do mercado,
o sentido de um clima [mood] de des-
crença: como se a expansão do mer-
cado tivesse que acabar pois ninguém
mais estaria com humor para isso. Cla-
ro que isso pode não ser novo: a socie-
dade é economicamente temperamen-
tal [moody] há um bom tempo
VI
. Como
mencionei acima, os humores de medo
que circulam no mundo codificado em
cores dos alertas de “terror” e de “ca-
tástrofe” - permanentemente vermelho
é, com certeza, uma cor que todos nós
podemos imaginar – pode sugerir que
os tempos dos humores chegaram. Mas
e se os humores correntes ajudaram a
fazer do humor um tópico para o es-
crutínio intelectual, revelando, assim, a
importância do humor para a pesquisa
histórica em geral.
Ao tentar oferecer uma considera-
ção persuasiva da produtividade do hu-
mor, eu quero fazer um alerta: o aspecto
mais valioso do humor é também seu as-
pecto mais problemático. Humor está em
todos os lugares, sempre. Mesmo aqueles
momentos que parecem totalmente sem
humor estão, na verdade, apenas com
humores modulados diferentemente. Pro-
curar pelo humor é o equivalente a olhar
para a forma: pode ter exemplos onde a
forma está vividamente à vista, mas nunca
haverá um exemplo de uma ausência da
forma. Martin Heidegger, que viu o Stim-
mung, que é tanto humor quanto tonali-
dade, como uma precondição para nosso
sentido de “ser-aí” (Dasein), arma: “O
fato de que humor pode deteriorar e mu-
dar signica simplesmente que em cada
caso Dasein sempre tem algum humor.
O pálido, eventualmente ausência balan-
ceada de humor, que frequentemente é
persistente e o qual não pode ser confun-
dido com mau humor, está longe de ser
nada” (2008, p.173). Ausência de humor
é apenar humor num diferente registro da
mesma forma que a ausência da forma é
uma forma organizada diferentemente (de
modo aleatório, por exemplo). Para Heide-
gger, não há como escapar do humor.
Humor, em Heidegger, não per-
tence a um sujeito; humor pertence às
“coisas”, tal como na frase “como vão
as coisas” - aponta para a situação
na qual o sujeito se encontra. Charles
Guignon (1984, p. 236), em uma com-
preensão particularmente útil do papel
do humor em Heidegger, adverte contra
tomar o humor como um estado interno:
“Humores são descobertos não olhando
para dentro, mas sim tendo uma ideia
do conjunto da situação”. Este sentido
de humor como uma atmosfera pene-
trante (e frequentemente aquela que é
invisível graças ao hábito) é algo com-
104
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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partilhado por comentadores interes-
sados numa compreensão nuançada
de como subjetividade e sentimento se
intersectam e divergem: “Humores são
modos de sentimento onde o senso de
subjetividade se torna difuso e a sen-
sação emerge em algo próximo de uma
atmosfera, algo que parece invadir o
conjunto da cena ou situação” (ALTIE-
RI, 2003, p. 2). É este sentido situacio-
nal do humor que o faz uma categoria
particular útil para empreender uma
pesquisa cultural ou sócio-histórica que
está interessada na maneira pela qual
o passado é experienciado como uma
orientação preparada para um futuro ir-
realizado. Humor permite ao estudo da
cultura trabalhar com a experiência his-
tórica de um modo antecipatório.
Charles Guignon (1984, p. 237)
segue explicando por que humor é um
termo constitutivo para Heidegger:
Nossos humores modulam e dão
forma à totalidade de nosso Ser-no-
-mundo, e eles determinam como as
coisas podem nos tocar em nossas
preocupações cotidianas. O argu-
mento de Heidegger é que apenas
quando nos sintonizamos ao mun-
do de certa forma nós podemos nos
ligar às coisas e às pessoas em
volta. Humores nos permitem focar
nossa atenção e nos orientar. Sem
essa orientação, um humano seria
um feixe de capacidades brutas tão
difusas e indiferenciadas que nunca
descobriria nada. O que nós real-
mente encontramos em nossa sin-
tonia de situação não é apenas o
mundano, mas sim um mundo cultu-
ral altamente determinado.
O trecho de Guignon é interes-
sante, produtivo e problemático. O “sin-
tonizar” segue o sentido de que humor
em Heidegger (Stimmung) é na raiz
uma orientação sentida. E esse sentido
de sintonização deve direcionar qual-
quer um que deseje estudar os humores
para o material sensorial que constrói o
conjunto da situação.
Talvez a análise dos humores,
então, precise adotar o tipo de formalis-
mo que é encorajado pela preocupação
de Jacques Rancière com a “partilha
do sensível” (le partage du sensible).
A atenção de Rancière ao “sistema de
formas a priori determinando o que se
apresenta à experiência sensível”, que
resulta no “recorte dos espaços e tem-
pos, do visível e do invisível, da palavra
e do barulho que determina simultane-
amente o lugar e o desao da política
como uma forma de experiência” (RAN-
CIÈRE, 2004, p. 13) é uma politização
do Stimmung. Ao alertar-nos para o fato
de que o “mundo cultural altamente de-
terminado” que “encontramos em nos-
sas situações sintonizadas” é desigual e
assimétrico, os humores nos conectam à
aproximadamente cem anos de antropo-
logia e sociologia que, com propriedade,
descobriram as circunstâncias tácitas
que permitem algumas pessoas serem
vistas como um nativo ou um estran-
geiro. Para qualquer um interessado na
performance do sexismo no ambiente de
escritório, por exemplo, as regras táci-
tas que permitem alguns tipos de enun-
ciados sejam vistos como engraçados e
irônicos, enquanto outros sejam toma-
dos como expressões de inveja, alertam
aos estudiosos a forma como o humor é
performado por meio dos códigos de lin-
guagem e da posição dos sujeitos. Des-
sa forma, assim como humor oferece
as circunstâncias de “sintonia”, também
performa a situação que “nos liga”.
Tomem, como exemplo, os Cen-
tros de Remoção de Imigração da Agên-
cia de Fronteira do Reino Unido. São
edifícios usados para deter aqueles
que estão esperando para serem for-
çosamente deportados do Reino Unido
105
Ano 5, número 8, semestral, out/2014 a mar/ 2015
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e para ouvir o resultado das apelações
depois da rejeição de seus pedidos ini-
ciais de asilo. O que constitui humor aqui
não é o grau de otimismo ou pessimismo
envolvido em algum dos casos particula-
res, o que varia, é claro, enormemente,
mas a sintonizações institucionais que
são performadas por meio, por exem-
plo, das mesas e cadeiras com as ba-
ses parafusadas das salas de visitas. O
clima [mood] penal não é mitigado pela
polidez inglesa da Agência de Frontei-
ra; para aqueles que procuram asilo en-
quanto esperam ter um “retorno” forçado
para onde correm perigo, as desculpas
habituais que vem com as sentenças e
começam com “Lamentamos, mas...”
adicionam mais um sentido de incom-
preensão à experiência de ser sintoniza-
do e de ser desligado
VII
.
Se Guignon não destaca a forma
como os humores tornam certas formas
de operar como insignicantes, invisíveis,
inapropriadas, insinceras e inadequadas,
ele nos fornece uma ênfase que faz o hu-
mor excepcionalmente útil para a pesqui-
sa histórica. O sentido de que o humor é
um encontro com um “mundo cultural alta-
mente determinado” é crucial para o tipo
de pesquisa histórica sobre humor que eu
quero fazer. Tome, por exemplo, o que é
um dos momentos mais cheios de humo-
res da recente história britânica: “o inver-
no do descontentamento”. Para muitos
cidadãos com certa idade, a própria frase
traz à mente uma enxurrada de imagens
recolhidas das capas de jornal de ruas in-
festadas de ratos e cobertas de lixo. Parti-
cularmente, no frio inverno de 1978-1979,
disputas salariais causaram greves entre
os lixeiros. O acúmulo de lixo foi intensa-
mente fotografado pela imprensa e acom-
panhado por editoriais denunciando o po-
der dos sindicatos.
Qualquer outra coisa que possa
ser dita daquele momento histórico, o
“trabalho sobre o humor”, que foi perfor-
mado por lideranças políticas da direita
e seus jornais que os apoiam, foi assus-
tadoramente bem sucedido. E ainda é.
Um conjunto de disputas relativamente
menores forneceram marcadores senso-
riais e sensuais de humor que as gre-
ves, mais signicantes economicamen-
te, simplesmente não poderia oferecer.
O fato de que o nal de 1978 e o início
de 1979 estavam ligados a um humor
de “descontentamento”, que era efetiva-
do pelo lixo nas ruas e pela aparição de
vermes, é o álibi pleno de humores que
foi usado recorrentemente para explicar
a “inevitabilidade” da eleição de Marga-
ret Thatcher, que se tornou Primeira-Mi-
nistra em maio de 1979. Hoje, o caráter
pavoroso daquele momento (“não impor-
ta o que aconteça, nós não queremos
voltar a isso”) é um consenso de humor
incentivado no jornalismo popular, na
historicização preguiçosa dos progra-
mas de TV, por trabalhistas tanto quanto
por conservadores. É incentivado quase
diariamente, naturalizando innitamente
o conservadorismo thatcherista e a des-
truição do pacto social do pós-guerra
VIII
.
Uma abordagem dos estudos culturais
sobre os humores pode ser vista como a
re-humorização de tais períodos históri-
cos como uma tarefa particularmente útil
mas extremamente difícil.
5.
O que é, então, o humor dos es-
tudos culturais? Talvez essa não seja
uma forma útil de colocar a questão;
tentar caracterizar os estudos culturais
frequentemente parece seguir a lógica
de caracterizar o cristianismo descre-
vendo os cristãos mais exagerados e
hipócritas, o que não quer dizer que não
haja valor sociológico em olhar para as
funcionalidades institucionais por meio
das personalidades exageradas. Um
pensamento mais pertinente é pensar
sobre o que primeiramente sintonizou
106
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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você ou eu (sintonizou e ligou, na ter-
minologia hippie de Guignon) aos estu-
dos culturais e pensar sobre isso nos
termos de humor. Não necessariamente
precisava ser estudos culturais, é cla-
ro; poderia ser sobre tentar lembrar por
que você se apaixonou pela primeira
vez pelo free jazz, Kylie Minogue, e os
filmes de Paul Thomas Anderson – ou
qualquer outra forma cultural ou perso-
nalidade. Mas você pode estar aqui len-
do isto porque você tem certo amor por
um tipo de coisas que recebem o nome
de estudos culturais, e as vezes vale se
lembrar sobre o que lhe chamou à aten-
ção pela primeira vez – as formas que
agiram sobre o sensorium, sintonizando
ao mundo de uma forma peculiar e par-
ticular. Ou estou errado em pensar que
algo assim aconteceu?
Há um forte elemento de humor
em sua memória do primeiro encontro
com os estudos culturais? Eu lembro de
ser um estudante de graduação em arte
em um evento onde havia algumas pa-
lestrantes feministas. Uma das minhas
professoras se levantou para rebater o
que estava sendo dito. Eu não consigo
lembrar qual foi sua objeção exatamen-
te, apenas que envolvia uma profunda
ambivalência sobre um argumento par-
ticular e as características do mundo
social: mas ela expressava essa am-
bivalência com uma urgência tão calo-
rosa que eu fui capturado pela aura de
sua vontade. Eu penso que até aquele
ponto eu tinha sempre associado meus
próprios sentimentos de ambivalência,
vacilação, indecisão e incerteza por ser
inseguro, ter fraqueza intelectual e mo-
ral. Olhar em volta para pessoas que co-
mandam e recrutam a atenção normal-
mente significa olhar para pessoas que
sabiam exatamente como se sentem e
sabiam o jeito certo de sentir; todos pa-
reciam ter uma certeza inabalável em
como o mundo deveria ser. Eles eram
ferozes, urgentes, intensos, fortes e,
geralmente, homens: já aqui, com essa
pessoa maravilhosa, estava uma incer-
teza dilacerada com um fogo por mu-
danças sociais, uma recusa em tomar
o mundo como ele se apresenta. Essa
ambivalência feroz era um novo humor
para mim e me permitiu agir de um jeito
diferente. Era um humor de engajamen-
to com uma incerteza apaixonada, um
dos humores dos quais ainda sou grato
por encontrar nos estudos culturais.
Creio que minha excitação com
os estudos culturais, ou com o tipo de
coisas que eu considero como estu-
dos culturais, sempre foi animada pela
possibilidade de achar humores novos
e diferentes: quando eu estava ocupa-
do com, e tomado por, os escritos de
Michel de Certeau, foi o humor daqui-
lo que realmente me captou. Eu ainda
acho que os humores do trabalho de de
Certeau são importantes e que eles se
perdem se seu trabalho for reduzido a
uma ou duas seções de A Invenção do
Cotidiano (1984). Em seus escritos, há
uma melancolia produtiva que é apa-
gada quando o autor é transformado
no campeão do tipo de improvisações
informais que performamos para ter
sucesso. Há mais coisas da versão de
Nina Simone de “Baltimore” aqui. Talvez
as pessoas deveriam ler A Invenção do
Cotidiano de traz para frente; começan-
do pelo final, com os capítulos sobre a
morte e o tempo (“O inominável”; “Inde-
terminadas”). Os leitores poderiam en-
tão encontrar o humor de um cotidiano
saturado por fantasmas da labuta e da
tenacidade, juntamente com uma aten-
ção exagerada a tudo aquilo que exce-
de a interpretação. É um humor que eu
não consigo imaginar ser cansativo ou
fácil de se acostumar. Não é o oposto
daquela frase batida de “pessimismo da
razão e otimismo da vontade”, mas a re-
calibra de uma forma significativa, intro-
duzindo um sentido agudo de “Oh Balti-
more, não é difícil simplesmente viver”
107
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suturado a uma orgia de revelações em
detalhes da atualidade vivida. Não ofe-
rece escapatória, panaceia, plano de
ação ou caminho para a revelação ou
revolução. Tais soluções serão encon-
tradas em outro lugar. Em vez, oferece
um instrumento de sintonia, calibrada
finamente à nossa inserção banal ao
mundo: é Heidegger sem florestas e
sem obsessão pela autenticidade.
Talvez humor não é apenas algo
para os estudos culturais descreverem
ou analisarem, mas algo para produ-
zir ativamente. Como trabalhadores da
cultura, podemos não ser os mais bem
localizados para construir hospitais ou
decidir como eles deveriam funcionar,
mas nós talvez tenhamos algo a con-
tribuir em pensar sobre a série dos
humores, e suas metáforas, que pode
ser encorajadora e quem sabe mais
frutífera para pacientes e aqueles que
os cuidam (tanto especialistas e como
não especialistas)
IX
. Nós podemos não
estar dispostos a voltar a trabalhar no
cinema, mas talvez poderíamos experi-
mentar circunstâncias produtivas para
ver filmes. Ou poderíamos olhar para
aqueles que estão experimentando hu-
mores na escrita acadêmica, produzin-
do escritas que tem novas aberturas
X
.
Talvez isso seja recodificar o projeto de
Brecht: “Os métodos se gastam, os es-
tímulos falham. Novos problemas sur-
gem e exigem novas técnicas. A reali-
dade se modifica: para representá-la, é
necessário modificar também os meios
de representação. Nada surge do nada,
o novo nasce do velho, mas é justa-
mente isso que o faz novo”
XI
. Talvez os
estudos culturais necessitem de novos
humores, novas formas de sintonia para
a realidade que se apresenta. Mas num
mundo onde a alienação e a ausência
de empatia pode ser uma condição pa-
tológica geral, talvez nós necessitemos
de um conjunto de humores diferente
daquele imaginado por Brecht.
Bibliograa:
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RANCIÈRE, Jacques. The Politics of Aesthe-
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Recebido em 04/12/2015
Aprovado em 05/02/2016
108
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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I Ben Highmore. Doutor pelo Birbeck College (Uni-
versity of London) e professor de Estudos Culturais
na Universidade de Sussex (Reino Unido). E-mail:
b.highmore@sussex.ac.uk
II Paulo Rodrigues Gajanigo. Doutor em Ciências So-
ciais (UERJ), professor de Sociologia na Universidade
Federal Fluminense. E-mail: gajanigo@gmail.com
III Nota do tradutor: o termo chave deste artigo,
mood, tem difícil tradução para o português. Mais
diretamente, ele é traduzido por humor, no sentido
de estado de ânimo. No entanto, mood se aproxima
muito de uma acepção mais externa e objetiva que o
termo em português não faz ver. Na expressão “I’m
not in the mood” a melhor tradução parece ser “eu
não estou no clima”, pois dessa forma é ressaltado
o caráter externo à vontade, como se houvesse algo
fora das suas intenções que te colocam a fim de fa-
zer algo ou não. O termo mood tem sido objeto de
interesse nos estudos culturais exatamente por esse
lugar híbrido que habita, entre a vontade mais íntima
e os incentivos externos materiais. Optei, para tentar
registrar a potência do termo, de traduzir normalmen-
te por humor – que é de fato a tradução mais usual
– mas traduzir para clima e ambiente (como quando
se trata de “mood lighting”) para registrar esses as-
pectos exteriores e, nesses casos, coloquei o termo
entre colchetes para se ter clareza que no original se
trata do mesmo termo. Outra dificuldade na tradu-
ção está no uso da palavra humor para tratar de algo
engraçado. Muitas vezes, traduzindo para humor, as
frases ficavam extremamente ambíguas, por isso,
para evitar esse erro de leitura, coloquei o termo no
plural – humores. Por fim, cabe registrar que boa par-
te dos estudos sobre o humor [mood] partem das re-
flexões de Martin Heidegger com o termo Stimmung.
Em inglês, o termo foi recorrentemente traduzido por
mood e attunement, em português também há uma
oscilação entre humor e afinação, mas podendo ser
traduzido também por atmosfera (Michael Inwood.
Dicionário Heidegger. Jorge Zahar, 2002, p.93).
IV Tradução autorizada pelo autor do artigo: Ben
Highmore. Feeling Our Way: Mood and Cultural Stu-
dies, Communication and Critical/Cultural Studies,
10:4, 2013, pp.427-43. Esta é uma tradução não
oficial do artigo da Taylor & Francis and Routled-
ge Open Select que apareceu em uma publicação
da Taylor & Francis. Taylor & Francis não endossou
esta tradução.
V Veja, por exemplo, a edição especial de New Litera-
ry History, 43 (2012) intitulada “In the Mood.”
VI Jani Scandura, em Down in the Dumps: Place,
Modernity, American Depression (Durham, NC: Duke
University Press, 2008), faz o seguinte apontamen-
to: “In the nineteenth-century United States, the term
‘depression’ was generally used with a modifier, such
as ‘economic’; ‘melancholia’ was the term of choice
for ‘blue devil’ moods. After the 1929 stock market
crash, however, ‘depression’ came to refer simulta-
neously (and without antecedent) to psychological ill
health and financial collapse in American clinical and
popular discourse. The so-called Great Depression
was marked both by economic and mass psychologi-
cal depression,” p. 4.
VII Veja o ensaio e testemunho fotográfico dos de-
tidos de Melanie Friend no projeto Border Country
disponível online em http://www.melaniefriend.com/
bordercountry/
VIII Veja James Thomas, “‘Bound in by history’: The
Winter of Discontent in British Politics, 1979–2004,”
Media, Culture and Society, 29, 2 (2007): pp.263–83,
para uma excelente abordagem sobre isso.
IX Veja Havi Carel. Illness. Durham, NC: Acumen, 2008.
X Como exemplos de trabalhos que tem sido sen-
síveis aos humores ao mesmo tempo em que estão
abertos a um humor diferente dos escritos escola-
res são particularmente importantes para mim os
seguintes: Sara Ahmed, The Promise of Happiness.
Durham, NC: Duke University Press, 2010; Lauren
Berlant, The Female Complaint: The Unfinished Busi-
ness of Sentimentality in American Culture. Durham,
NC: Duke University Press, 2008; Ann Cvetkovich,
Depression: A Public Feeling. Durham, NC: Duke
University Press, 2012; Sianne Ngai, Ugly Feelings.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 2005; Jani
Scandura, Down in the Dumps: Place, Modernity,
American Depression. Durham, NC: Duke Universi-
ty Press, 2008; Kathleen Stewart, Ordinary Affects.
Durham, NC: Duke University Press, 2007; D. J.
Waldie, Holy Land: A Suburban Memoir. New York:
St Martin’s Griffin, 1996. Vale mencionar também os
escritos de Alphonso Lingis especialmente o ensaio
“Armed Assault” em Aesthetic Subjects, editado por
Pamela R. Matthews e David McWhirter (Minneapo-
lis: University of Minnesota Press, 2003).
XI N.T.: Tradução da edição de Teatro Dialético. En-
saios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.