DOSSIÊ “CULTURA E RELIGIÃO
DOSSIER “CULTURE AND RELIGION
Apresentação do Dossiê
Dossier’s presentation
JOSÉ ABÍLIO PEREZ JÚNIOR, LEANDRO DURAZZO e DERLEY MENEZES ALVES
O tríplice feminino:
Jesus, Medeia e a identidade do Poeta enquanto
uma feiticeira sacricada
The triple feminine:
Jesus, Medea and the Poet’s identity as a sacricial witch
FÁBIO GERÔNIMO MOTA DINIZ
Islamofobia brasileira online: discursos fechados
sobre o Islam em uma rede social
Online brazilian islamophobia:
closed discourses on Islam in a social media network
FELIPE FREITAS DE SOUZA
O ensino religioso nas políticas de currículo:
o caso da Base Nacional Comum Curricular
The religious education policy curriculum:
the case of the National Curriculum Common Core
MIRINALDA ALVES RODRIGUES DOS SANTOS
Cultura e regionalidade: semelhanças e diferenças nas
festas do Divino Espírito Santo no território brasileiro
Culture and regionality: similarities and dierences in the Holy
Divine Spirit holidays in Brazilian territory
DÉBORA B. G. THOMSEN, ROSÁLIA MARIA NETTO PRADOS
e LUCI MENDES DE MELO BONINI
FÉ MIDIATIZADA? Indagações sobre a abordagem
comunicacional da questão religiosa na era das
tecnologias digitais em rede
MEDIATIZED FAITH?
Inquiries about the communicational approach of the religious
issue in the era of digital network technologies
FERNANDA LIMA LOPES
A atuação de Silas Malafaia contra o PLC 122:
análise de suas páginas no Twitter e no Facebook
The performance of Silas Malafaia against PLC 122:
analysis of his pages on Twitter and Facebook
MÁRCIA ZANIN FELICIANI, LEANDRA COHEN SCHIRMER
e ALINE ROES DALMOLIN
A CNBB como promotora de notícia e fonte de
informação da religião católica no Jornalismo:
notas como ritual estratégico e meios alternativos
de agendamento
CNBB as news promoter and source of information of
the Catholic religion in the media space:
notes as a strategic ritual and alternative Agenda Setting
ROBSON DIAS, ELIANE MUNIZ LACERDA
e VICTOR MÁRCIO LAUS REIS GOMES
As Reestruturações do Sentido de Pertença
à Igreja Católica nos Bispados de D. José
Colaço, D. Paulino Évora e D. Arlindo Furtado:
Adaptação ou Resistência às Mudanças Políticas
e Culturais em Cabo Verde?
The Restructuring of the Meaning of Belonging
to the Catholic Church in the bishoprics of D. José
Colaço, D. Paulino Évora and D. Arlindo Furtado:
Adaptation or Resistance to Political
and Cultural Change in Cabo Verde?
ADILSON FILOMENO CARVALHO SEMEDO
Cultura e Religião:
Um estudo sobre as Festas de Agosto
conforme a Ocialidade Católica
Culture and Religion:
A study on the Feasts of August
according to Catholic Ocial
VIVIANE BERNADETH GANDRA BRANDÃO
Entre imagens, modernidade e religião:
a iconologia protestante no Brasil
Pictures, modernity and religion:
a Protestant iconology in Brazil
PRISCILA VIEIRA E SOUZA
The Missing God of Karl Jaspers
(and Heidegger)
O Deus ausente de Karl Jaspers (e Heidegger)
PURUSHOTTAMA BILIMORIA
Ano VII nº 13 - abr/2017 a set/2017
www.pragmatizes.u.br
ISSN 2237-1508
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano VII nº 13 - abr/2017 a set/2017
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Isabel Babo - Universidade Lusófona do Porto, Portugal
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano VII nº 13, (ABR/2017 a SET/2017). – Niterói, RJ: [s. N.], 2017.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário / Summary
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ / DOSSIER’S PRESENTATION
DOSSIÊ: Cultura e Religião
DOSSIER: Culture and Religion
Tantos grupos humanos, tantas culturas e sociedades
So many human groups, so many cultures and societies
JOSÉ ABÍLIO PEREZ JÚNIOR, LEANDRO DURAZZO e DERLEY MENEZES ALVES 06
DOSSIÊ / DOSSIER 16
O tríplice feminino: Jesus, Medeia
e a identidade do Poeta enquanto uma feiticeira sacricada
The triple feminine: Jesus, Medea and the Poet’s identity as a sacricial witch
FÁBIO GERÔNIMO MOTA DINIZ 17
Islamofobia brasileira online: discursos fechados sobre o Islam em uma rede social
Online brazilian islamophobia: closed discourses on Islam in a social media network
FELIPE FREITAS DE SOUZA 36
O ensino religioso nas políticas de currículo:
o caso da Base Nacional Comum Curricular
The religious education policy curriculum: the case of the National Curriculum Commom Core
MIRINALDA ALVES RODRIGUES DOS SANTOS 53
Cultura e regionalidade: semelhanças e diferenças
nas festas do Divino Espírito Santo no território brasileiro
Culture and regionality: similarities and dierences in the Holy Divine Spirit holidays in Brazilian territory
DÉBORA B. G. THOMSEN, ROSÁLIA MARIA NETTO PRADOS e LUCI MENDES DE MELO BONINI 65
FÉ MIDIATIZADA? Indagações sobre a abordagem comunicacional
da questão religiosa na era das tecnologias digitais em rede
MEDIATIZED FAITH? Inquiries about the communicational approach
of the religious issue in the era of digital network technologies
FERNANDA LIMA LOPES 78
A atuação de Silas Malafaia contra o PLC 122:
análise de suas páginas no Twitter e no Facebook
The performance of Silas Malafaia against PLC 122:
analysis of his pages on Twitter and Facebook
MÁRCIA ZANIN FELICIANI, LEANDRA COHEN SCHIRMER e ALINE ROES DALMOLIN 92
A CNBB como promotora de notícia e fonte de informação
da religião católica no Jornalismo: notas como ritual estratégico
e meios alternativos de agendamento
CNBB as news promoter and source of information
of the Catholic religion in the media space: notes as a strategic ritual
and alternative Agenda Setting
ROBSON DIAS, ELIANE MUNIZ LACERDA e VICTOR MÁRCIO LAUS REIS GOMES 113
Cultura e Religião: Um estudo sobre as Festas de Agosto
conforme a Ocialidade Católica
Culture and Religion:
A study on the Feasts of August according to Catholic Ocial
VIVIANE BERNADETH GANDRA BRANDÃO 130
As Reestruturações do Sentido de Pertença à Igreja Católica
nos Bispados de D. José Colaço, D. Paulino Évora e D. Arlindo Furtado:
Adaptação ou Resistência às Mudanças Políticas e Culturais em Cabo Verde?
The Restructuring of the Meaning of Belonging to the Catholic Church
in the bishoprics of D. José Colaço, D. Paulino Évora and D. Arlindo Furtado:
Adaptation or Resistance to Political and Cultural Change in Cabo Verde?
ADILSON FILOMENO CARVALHO SEMEDO 145
Entre imagens, modernidade e religião: a iconologia protestante no Brasil
Pictures, modernity and religion: a Protestant iconology in Brazil
PRISCILA VIEIRA E SOUZA 159
The Missing God of Karl Jaspers (and Heidegger)
O Deus ausente de Karl Jaspers (e Heidegger)
PURUSHOTTAMA BILIMORIA 179
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apresentação do Dossiê
“Cultura e Religião”
7
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Ao longo da história das ciências
sociais, a ubiquidade de termos analíti-
cos como cultura e sociedade, a despei-
to de suas várias acepções possíveis,
sempre determinou a variedade também
de suas abordagens teóricas e mesmo
metodológicas. A historicidade do ter-
mo cultura, fortemente inuenciado pela
concepção romântica de uma Alemanha
ainda em formação (ELIAS, 1990), é
bem conhecida, tanto na disciplina an-
tropológica quanto nas demais ciências
humanas. Também será bem conhecida
a concepção de padrões culturais que
se fortalece na antropologia dos Estados
Unidos (BOAS, 2004; BENEDICT, 1934),
sobretudo, e o entendimento de cultura
como certo tipo coletivo reconhecível,
que daí deriva.
Mais recentemente, teremos uma
forte contestação à ideia de uma unida-
de analítica delineável – se bem que no
conceito de sociedade, não propriamen-
te cultura. Questionando a existência de
algo que se pode chamar, com proprie-
dade, de “uma sociedade”, Marilyn Stra-
thern (2014) argumenta sobre a obsoles-
cência teórica do conceito, dizendo que
os antropólogos há muito utilizam a ideia
de sociedade como um expediente retó-
rico, e não como um instrumental teóri-
co. Sendo retórica e não teoria, então, a
ideia de sociedade já não daria conta de
Tantos grupos humanos, tantas culturas e sociedades
So many human groups, so many cultures and societies
José Abílio Perez Júnior, Leandro Durazzo e Derley Menezes Alves
compreender as múltiplas dinâmicas de
socialidade observáveis em campo, já
que o trabalho de campo é, por força da
tradição, um dos maiores diferenciais da
antropologia – e que também serve de
inspiração para diversas áreas coirmãs.
A posição de Strathern neste deba-
te, datado de 1989, faz coro ao que Ed-
mund Leach já dizia na década de 1950.
Para o autor, não seria possível ao antro-
pólogo dizer de “uma sociedade” ou “uma
cultura”, em seus sentidos totalizantes,
posto que tais unidades não se encontra-
riam verdadeiramente em campo, sendo
antes uma invenção do encontro etnográ-
co (também cf. WAGNER, 2012). Para
Leach, o estudo de “sistemas sociais”, pa-
drões de organização dos grupos huma-
nos, corresponderia mais verdadeiramen-
te a observações feitas em campo do que
as pretensões universalizáveis de “mo-
delos de estrutura social”, que critica em
Radclie-Brown. Daí se perguntar se “é
legítimo pensar a sociedade Kachin como
organizada de acordo com uma conjun-
to particular de princípios, ou essa vaga
categoria Kachin incluiria uma série de di-
ferentes formas de organização social?”
(LEACH, 1964: 3, tradução nossa).
Já Marshall Sahlins, tematizando
a persistência de ideias sobre culturas,
não se furtará a armar que “fala-se mui-
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
to em ‘culturas da resistência’, embora
fosse claramente mais acurado descre-
ver o que vem acontecendo a diversas
vítimas do imperialismo ocidental como
resistência da cultura” (SAHLINS, 2013:
85). O deslocamento teórico-conceitual
do autor, colocando a cultura como aqui-
lo que resiste à homogeneização im-
posta – e não como em Clastres (2013),
onde a sociedade (primitiva) é resistente
à homogeneização – é sintomático, pos-
to que nos encaminha para o entendi-
mento de cultura como uma instância de
certa forma hermenêutica e instrumen-
tal do pensamento antropológico. Desse
modo, não veríamos “culturas” distintas
e isoladas, mas entenderíamos proces-
sos de prática e representação sociais
como dando corpo a distintas organi-
zações de grupos humanos, algo que
também veremos despontar em Barth
(2000). Marshall Sahlins prossegue:
A subversão cultural, ao envolver a
integração do estrangeiro nas cate-
gorias e relações do familiar – uma
modificação nos contextos culturais
das formas e forças externas que
modifica também seus valores –, é
algo consubstancial às relações in-
terculturais [...] mesmo as vítimas
das modernas relações de depen-
dência [colonialista] agem no mundo
como seres sócio-históricos. Para
parafrasear Freud falando de Marx,
eles não se tornam subitamente
conscientes de quem são quando re-
cebem seu primeiro contra-cheque.
Ao contrário, as forças da hegemo-
nia capitalista, ao serem mediadas
pelo habitus de formas específicas
de vida, realizam-se segundo os es-
quemas de universais culturais alie-
nígenas. (2013: 85)
Fica claro que a cultura, no senti-
do sahlinsiano, nos conduz a uma forma
de compreensão hermenêutica da cul-
tura, em que seu sentido é dado antes
pelas possibilidades de entendimento
que fornecem aos grupos humanos do
que, como quereria Boas, aos traços
distintivos reconhecíveis em cada co-
letividade. Por possibilidades de enten-
dimento queremos dizer, claro está, as
formas através das quais determinados
grupos fazem frente às hegemonias he-
terônomas, aos diversos colonialismos
homogeneizadores com que se defron-
tam (SAHLINS, 1997). Basta, para isso,
lembrarmos do célebre caso da “cultu-
ra com aspas” através do qual Manuela
Carneiro da Cunha ilustra detidamente
os percursos pelos quais povos indíge-
nas manejam elementos de suas tradi-
ções, inserindo-os conscientemente em
complexos relacionais nos quais há uma
explícita assimetria de forças (CUNHA,
2009), e com isso fazendo frente a pro-
cessos hegemônicos que avançam sobre
propriedades intelectuais tradicionais e
coletivas. A cultura se torna uma questão
de sobrevivência, desse modo, mas tam-
bém de inteligibilidade, como veremos.
Socialidades, inteligibilidades
e grupos étnicos
Se tomarmos o célebre trabalho de
Mary Douglas, Pureza e Perigo (1966),
veremos de partida que ela se interessa
em entender simbolismos e ritualidades
– especialmente religiosos – não enquan-
to instâncias sociais isoladas, apartadas
da socialidade mesma que compõe os
grupos humanos. Antes, sua intenção é
compreender símbolo e rito como partes
de um complexo integrado, uma totalida-
de de sentido para aqueles seus pratican-
tes. Para a autora, pureza e perigo nas
relações sociais demarcam formas de in-
teligibilidade dos seres humanos com o
mundo que os circunda, e com suas pró-
prias práticas sociais.
Mas as concepções simbólicas
da autora também apontarão para a im-
9
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
portância da cultura como algo perva-
sivo, não isolável, e para as ideias de
purificação e impureza como elemen-
tos constantemente dispersos pela vida
social. As diferenças observadas entre
sociedades “primitivas” e outras mais
complexas, como a Índia bramânica,
repousam antes em suas elaborações
estruturais do par pureza/impureza,
considerando sua análise, do que em
diferenças propriamente de natureza
essencializada. Mostra-se, por exem-
plo, que o estudo das diversas práticas
rituais bramânicas concernentes à puri-
ficação e a suas observâncias, quanto
mais aprofundados, mais conduz à ob-
viedade de estarmos “estudando siste-
mas simbólicos” (DOUGLAS, 1966: 49).
Há aqui uma clara convergência com al-
gumas considerações de Louis Dumont,
para quem o entendimento das divisões
de castas indianas também deveria se
pautar numa contextualização das prá-
ticas analisadas, pois cada situação
social poderia implicar distintas aproxi-
mações dos nativos às concepções de
pureza/impureza (DUMONT, 1979).
A preservação da pureza e o
afastamento do perigo, desse modo,
não corresponderiam a diferentes está-
gios de complexidade – ou “evolução” –
de cada “sociedade” ou “cultura”. Antes,
seriam organizações simbólicas de sen-
tido, por isso de inteligibilidade, por par-
te de tais grupos sociais, tanto do mun-
do em que vivem quanto das práticas
que têm por características. “A análise
do simbolismo ritual não pode começar
até reconhecermos o ritual como uma
tentativa de criar e manter uma cultura
particular um conjunto de pressupostos
através do qual a experiência é contro-
lada” (DOUGLAS, 1966: 157).
Também Cliord Geertz argumen-
tará sobre a potencialidade simbólica,
ou seja, de sentido, que o pesquisador
pode encontrar em sistemas rituais e re-
ligiosos. Longe estaria a concepção de
cultura como conjunto apenas materiali-
zável de práticas e (auto)representações
sociais; com a dimensão de sistema sim-
bólico, o que se congura como cultura
é o complexo jogo de suporte sociocultu-
ral e armação de inteligibilidade interna
de cada contexto e grupo social, desde
aqueles outrora tidos por “primitivos” até
os mais colonialmente “complexos” e
“avançados”.
Com A interpretação das cultu-
ras de Geertz (1973) dá-se outro passo
no sentido de compreender hermeneuti-
camente a ideia de cultura em antropo-
logia, distante mas ainda tributária da
Kultur alemã (ELIAS, 1990). Porque se
é verdade que também os “traços cultu-
rais” e seus “padrões” derivam, de certo
modo, da clássica distinção teórica en-
tre Kultur e civilization, não deixa de ser
verdade que suas formas de atualização
foram diversas, a depender dos autores.
Em Geertz, temos um marco no desao
antropológico à ideia iluminista de abs-
trações universais, sejam nas categorias
tidas por transcendentes – Cultura e So-
ciedade, e mesmo Humanidade – sejam
nas universalizações tomadas a despeito
da densidade dos contextos em que se
apresentam. Não haveria Cultura, Ho-
mem, Sociedade, na concepção interpre-
tativa de Geertz, justamente porque as
iniciais maiúsculas arrebatariam tais no-
ções – válidas, em certos contextos – de
seus espaços vitais, do campo etnográ-
co mesmo em que foram observadas. Ou
construídas, se voltarmos à invenção da
cultura que Roy Wagner aponta na antro-
pologia (2012). Como Sherry Ortner co-
mentará, ainda sobre Geertz:
o foco mais duradouro da antropo-
logia geertziana tem sido [dos anos
60 até os 80, época desta citação] a
questão de como os símbolos mode-
lam os modos em que atores sociais
veem, sentem e pensam sobre o
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mundo ou, em outras palavras, como
os símbolos operam como veículos
de “cultura”. (ORTNER, 2011: 423)
O que resta, portanto, das noções
centrais cultura e sociedade quando,
como vemos, suas histórias estão mar-
cadas pela contestação de teóricos dos
mais diversos? Ou, ainda mais, a que se
dedicaria a investigação cientíca quan-
do, por seu próprio exercício teórico, já
não fosse possível esperar encontrar o
“Universal” da “Cultura” “Humana”? Não
mais padrões culturais como foco de aná-
lise, então, mas sistemas culturais e pa-
drões de inteligibilidade, formas de comu-
nicação e sentido que congreguem, de
maneiras sempre variáveis, os diversos
seres humanos onde quer que estes se
encontrem em companhia uns dos outros
– para não mencionarmos, claro está,
a profusão de relações estabelecidas
entres seres humanos e outros não-hu-
manos, que comporiam relações sociais
tanto com animais (Ingold, 2007) quanto
com outros sujeitos cosmológicos possí-
veis (Durazzo, 2016).
Edmund Leach já apontara que a
“sociedade Kachin” não seria exatamente
“uma sociedade”, mas um complexo de
relações sociais em que indivíduos e gru-
pos próximos dinamizariam uma constan-
te circulação das/pelas categorias sociais
gumsa e gumlao, como a etnograa expli-
ca (LEACH, 1964). A antropologia de Le-
ach evidenciaria, assim, um sistema de
comunicação social, em que a “cultura”
Kachin não representaria formalmente
uma estrutura social modelar, mas per-
mitiria aos diversos atores sociais articu-
larem suas ações – e os entendimentos
sobre as ações – num universo simbólico
compartilhado. Num universo cultural de
inteligibilidade, se quisermos.
É pelo trânsito possível entre ca-
tegorias sociais locais – gumsa e gumlao
– que os próprios birmaneses da região
se compreendem, delineando diferencia-
ções entre si e estabelecendo aqueles
pertencentes a núcleos mais próximos
ou mais distantes de si próprios. Fredrik
Barth, em seus estudos sobre etnicidade,
poderia chamar tais dinâmicas de grupos
étnicos, apontando em suas fronteiras,
ou seja, nos limites que diferenciam uns
dos outros, uma das características et-
nográcas mais marcantes para o tema
(BARTH, 2000). Diferentemente de um
culturalismo mais radical, ou mesmo de
estruturalismos nos moldes de Radclie-
-Brown ou Lévi-Strauss, os grupos étni-
cos de Barth se caracterizariam, anali-
ticamente, por uma condição até então
não muito enfatizada na antropologia: se-
riam, segundo o autor, tipos organizacio-
nais. Nem modelos de estruturas, como
quereriam uns, nem exemplos de está-
gios evolutivos, como defenderiam ou-
tros. Nem, ainda, tipos culturais autôno-
mos porque autossucientes. Justamente
o contrário: os grupos étnicos como tipos
organizacionais se denem e fortalecem
no movimento de relação com grupos e
sujeitos distintos, mantendo na alteridade
seu motor principal.
Agora, a análise antropológica tem
por força de sua tradição teórica e discipli-
nar, como vemos, a possibilidade de arti-
cular uma série distinta e por vezes com-
plementar de análises e metodologias.
Ainda com Leach, sabemos que tendên-
cias empiristas e racionalistas podem mui-
to bem compor corpo teórico e base para
estudos de fôlego, como os do próprio au-
tor (LEACH, 1978). Pensando a dimensão
simbólica da cultura, por assim dizer, Le-
ach não abandonaria a consideração so-
ciohistórica das trocas econômicas e das
instituições. Por sua vez, a ênfase organi-
zacional de Barth não o faz perder de vista
que, assim como a hermenêutica antropo-
lógica de Geertz poderia dizer, grupos ét-
nicos possuem complexidade total para as
vidas e socialidades daqueles sujeitos que
os compõem e que por eles transitam.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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É possível considerar tanto so-
ciedade quanto cultura como conceitos
teoricamente obsoletos, frutos de um
empenho retórico mais do que uma ela-
boração propriamente teórica e analítica
(STRATHERN, 2014). Entretanto, pode-
-se também historicizar as tendências
intelectuais que conduzem as ideias
desde o berço até sua formulação ter-
minológica, com isso desnaturalizando
sua pretensa universalidade (cf. ELIAS,
1990; GEERTZ, 1973). Procedendo
desta maneira, temos possibilidades de
complementar instrumentais teóricos e
analíticos, mesmo metodológicos, de
acordo com as necessidades e opor-
tunidades de nossas pesquisas. Por-
que, já que sabemos ser uma tendên-
cia acadêmica a bagagem “previamente
adquirida” sobre os grupos com quem
trabalhamos (CLASTRES, 2014: 222),
bagagem esta que levamos a campo, o
investigador deve sempre estar aberto
para compreender o que encontra, sob
as mais diversas luzes.
Como a consideração simbó-
lica da cultura e das práticas sociais
nos indicam, como sumarizado aqui,
abrem-se novas vias de compreensão
antropológica a cada novo elemento en-
contrado em campo, bem como a cada
ajuste teórico e terminológico realizado
por parte do pesquisador. Não despre-
zar quaisquer abordagens, por obso-
letas que sejam ou possam parecer, e
também não se apegar irrefletidamente
aos bastiões das ciências sociais – cul-
tura, sociedade, pessoa, religião, quais-
quer que sejam. Eis um procedimento
teórico apropriado para, a nosso ver, a
consideração contextualizada e válida
dos fenômenos sociais sobre os quais
nos dedicamos.
Neste dossiê, que em muito refle-
te a variedade possível de estudos so-
bre cultura e religião, veremos que há
uma oscilação em tudo benéfica para
o campo em questão, seja uma osci-
lação de abordagens e métodos, seja
em problemas de pesquisa e objetos de
análise. O que até aqui dissemos ser
verdade para cultura, i.e., sua mais que
múltipla capacidade de significar conte-
údos simbólicos e formas organizacio-
nais, também se mostra relevante para
o que tomamos por religião. Afinal, é
mais que sabido que religião, enquanto
objeto e conceito, tampouco se presta
a universalizações: é na profusão de
possibilidades sociais que as religiões
religiosidades, práticas religiosas, fe-
nômenos religiosos – se fazem.
Religiões, filosofias e círculos
hermenêuticos
Noutros termos, se uma aborda-
gem ingênua consideraria óbvia a ca-
tegoria “religião”, que abarcaria cristia-
nismo, islamismo, budismo, judaísmo,
xamanismo, etc., a verdade é que, após
todo o século XX de acalorados deba-
tes, os pesquisadores chegam ao século
XXI sem disporem de um consenso mí-
nimo sobre quais os traços essenciais
e elementares que um fenômeno deve
apresentar para ser considerado como
“religioso”. Não obstante tal diculdade
imposta à pesquisa, a Ciência da Reli-
gião tem se rmado como um campo
plural, distinto da teologia por apresen-
tar caráter laico, em constante diálogo
com outras áreas de pesquisa em ciên-
cias humanas e sociais.
Um dos marcos inaugurais da
Ciência da Religião pode ser encon-
trado no livro “O Sagrado”, de Rudolf
Otto (1985), que lançou um vocabulário
que hoje permeia largamente os estu-
dos da disciplina, tal como o conceito
de numen. Contemporâneo a Husserl e
empregando o método fenomenológico,
Otto se dedica à delineação da experi-
ência da consciência do homo religio-
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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sus diante do Sagrado que, segundo o
autor, é caracterizada pelo duplicidade
entre o caráter fascinans et tremendum
– fascinante e aterradora – desse con-
tato com o numinoso. A fenomenologia
do sagrado, fundada na obra de Otto e
expandida por Mircea Eliade, pode ser
apontada como uma as principais cor-
rentes no estudo da ciência a religião
durante o século XX.
Eliade elaborou uma das primei-
ras propostas de organização da disci-
plina da Ciência da Religião encontrada
lançada em 1949, intitulada “Tratado de
História das Religiões” (2010). Segun-
do o historiador romeno, a Ciência da
Religião (Religionwissenchaft) se es-
truturaria, idealmente, em duas áreas
complementares: i) uma que se dedica-
ria ao estudo dos princípios universais
e arquetípicos do fenômeno religioso,
a que chama “hierofanias”, tais como
os deuses celestes, telúricos, o sim-
bolismo das águas, a sacralidade da
vegetação, o tempo cíclico, a temática
da iniciação…; ii) enquanto a segunda
área, que apresentaria metodologia do-
cumental, se especializaria no estudo
de fenômenos específicos, sobretudo
considerados em termos de desenvolvi-
mento histórico.
Apesar de seu diálogo com Jung
e sua participação no Círculo de Era-
nos (ORTIZ-OSÉS et al, 1994), Eliade
sublinha a inspiração platônica (e não
junguiana) de seu conceito de arquétipo.
Desse modo, manifestações de deuses
ligados aos espaços celestes seriam
atualizações dos arquétipos uranianos.
Quaisquer que fossem os fenômenos
religiosos descritos empiricamente, no
interior da história das religiões, esses
seriam atualizações, ainda que diferen-
ciadas e únicas, dos princípios contidos
na arquetipologia geral, a qual teria sido
obtida por meio de uma metodologia fe-
nomenológica e comparativa, da qual
podemos traçar as origens em James
Frazer, Max Muller e George Dumèzil.
É possível que abordagens ba-
seadas na História das Religiões de
Eliade tenham formado a corrente mais
influente no interior da Ciência da Re-
ligião nos Estados Unidos, onde é co-
nhecida por Escola de Chicago. No en-
tanto, logo na década de 1950, diversas
críticas incidiram sobre esse sistema,
visto por muitos como redutor, devido a
lançar a arquetipologia como um a priori
para a compreensão de qualquer fenô-
meno. Ocorre, assim, uma pluralização
de abordagens, tais como a Sociologia
da Religião, a Psicologia da Religião, a
História da Religião, a Geografia da Re-
ligião e a Antropologia da Religião, da
qual a maior parte dos trabalhos no pre-
sente volume se aproximam.
Além das contribuições da cor-
rente fenomenológica, também se faz
relevante mencionar a grande inuên-
cia exercida pela hermenêutica – termo
hoje em dia de impacto quase univer-
sal nas ciências humanas, mas que em
sua moderna concepção é inicialmente
empregado pelo teólogo protestante e
lósofo Scheleiermacher (1999), para
quem o logos se revela na linguagem
por meio do testemunho da experiência.
Ao se propor enquanto método compre-
ensivo, a hermenêutica se opõe ao fun-
damento explicativo da ciência natural.
Promovendo o giro linguístico, portanto,
enfatizando que o testemunho deve ser
objetivado na linguagem, e assumir sua
estrutura, tal metodologia se diferencia
de uma crítica subjetivista das tradi-
ções cartersiana ou kantiana, situando o
acesso à compreensão dos fenômenos
na esteira de uma efetiva interpretação
destes (RICOEUR, 1978).
A multiplicidade possível de in-
terpretações, claro está, permanece em
potência de acordo com as abordagens
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analíticas, as congurações contextuais
dos fenômenos e sua variabilidade tem-
poral, sempre ofertando novos campos
hermenêuticos a novos empreendimen-
tos investigativos. A isto nos debruça-
mos neste volume, apresentando traba-
lhos que, diversos, contribuem para a
recém-consolidada área de Ciências das
Religiões no Brasil, bem como a nossas
várias áreas correlatas.
Dos artigos neste volume
O primeiro texto deste dossiê, de
Fábio Gerônimo Mota Diniz, apresenta
uma comparação entre as figuras de
Medeia e Jesus Cristo. Para tanto, o
autor parte de uma constelação imagé-
tica que caracteriza a representação de
Medeia na literatura grega, a saber, fe-
minina, estrangeira e feiticeira. O autor
prossegue sua análise apontando pos-
síveis nexos de comparação entre as
personagens Medeia e Jesus a partir
da deusa Hécate, da qual Medeia é sa-
cerdotisa, e Maria, mãe de Jesus. Por
fim, o autor nos apresenta o que ele
chama de exercício simbolístico, uma
nova forma de leitura do universo artís-
tico, aplicado às duas figuras centrais
para sua análise.
Felipe Freitas de Souza nos apre-
senta, no segundo texto, uma análise do
discurso de ódio contra muçulmanos na
internet, especicamente no Twitter. Se-
gundo este autor, temos a construção de
imagens estereotipadas que justicam e
fundamentam a prática de violência tan-
to física quanto simbólica tendo como
alvo muçulmanos. O Islam é conside-
rado, nesse esquema preconceituoso,
como monolítico, estático, alheio à nos-
sa sociedade, inferior, nêmesis e ma-
nipulador, sendo justicável, portanto,
a discriminação contra seus éis. Essa
discriminação tem assumido traços cada
vez mais violentos, o que sugere, diz-
-nos o autor, muito mais uma tendência
a barbárie do que à civilização.
O terceiro texto, de Mirinalda
Alves Rodrigues dos Santos, discu-
te acerca do ensino religioso na Base
Nacional Comum Curricular apontando
como a presença do ensino religioso na
referida BNCC serve, no atual cenário,
para legitimar um discurso conserva-
dor e preconceituoso que defende uma
visão limitada do ensino religioso, que
impede os alunos de acessarem a di-
versidade religiosa.
Na sequência, temos o texto so-
bre as festas do Divino Espírito San-
to pelo Brasil, escrito por Débora B. G.
Thomsen, Rosália Maria Netto Prados e
Luci Mendes de Melo Bonini. Neste arti-
go, estudam-se as festas do divino dos
municípios de Mogi das Cruzes-SP, Al-
cântara-MA, Pirenópolis-GO, São João
Del Rei-MG e Vale do Guaporé-MT/RO,
tendo como conceitos chave do estudo
as questões do regionalismo e do patri-
mônio cultural que vão apontar para as
diferenças e variações das festas em
cada cidade. As autoras investigam se
há alguma política consistente para que
se reconheçam tais festas como patri-
mônio cultural nessas localidades.
Dentro do horizonte da midiatiza-
ção voltada para a questão religiosa te-
mos o artigo de Fernanda Lima Lopes,
MIDIATIZADA? Indagações sobre a
abordagem comunicacional da questão
religiosa na era das tecnologias digitais
em rede. Trata-se de um trabalho de
cunho teórico que pretende preparar uma
base para futuras pesquisas de cunho
empírico acerca do tema. Nesse sentido,
ele apresenta algumas denições de ter-
mos religiosos bem como um mapa das
visões teóricas acerca da midiatização.
O sexto artigo, de autoria de
Márcia Zanin Feliciani, Leandra Cohen
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Schirmer e Aline Roes Dalmolin, anali-
sa a atuação do Pastor Silas Malafaia
contra o PLC 122/2006, proposto pela
deputada Iara Bernardi com o objetivo
de criminalizar atos de violência física
e/ou simbólica referentes a sexuali-
dade e gênero. O Pastor Malafaia foi
uma das vozes mais importantes a re-
presentar os interesses conservadores
que entendem este tipo de legislação
como ofensivo à família e à liberdade
de expressão. As autoras analisaram
sua atuação tanto no Twitter quanto no
Facebook no período de discussão e
votação do projeto de lei.
O sétimo artigo, de Robson Dias,
Eliane Muniz Lacerda e Victor Márcio
Laus Reis Gomes, analisa documen-
tos da CNBB da época da ditadura. Os
autores levam em consideração cin-
co casos de religiosos acusados pelo
Estado de praticar atividades subver-
sivas, publicados nos jornais Folha de
S. Paulo, Jornal do Brasil, O Estado
de S. Paulo e O Globo. As perspecti-
vas teóricas adotadas são: Teoria da
Notícia, da abordagem da Hipótese de
Agenda-setting e do enquadramento
de notícias. Os autores nos convidam
a refletir acerca das relações entre
organizações num cenário de contro-
le como era o da ditadura civil-militar,
bem como acerca do papel da Igreja
como geradora de notícias.
Em seguida temos o artigo de Vi-
viane Bernadeth Gandra Brandão, sobre
as Festas de Agosto conforme a Ocia-
lidade Católica. Trata-se de uma análise
da percepção de líderes católicos ociais
que atuam em Montes Claros-MG, a res-
peito da dinâmica contemporânea das
Festas de Agosto que acontecem na ci-
dade. A autora investiga como a institui-
ção lida com as mudanças culturais que
repercutem nas festas, considerando a
maior autonomia do indivíduo diante da
Igreja em nosso tempo.
Por fim, concluindo brilhantemen-
te este dossiê, temos o artigo do profes-
sor Purushottama Bilimoria, The Missing
God of Karl Jaspers (and Heidegger). O
autor nos apresenta um estudo acerca
do modo como Deus é concebido nas
filosofias de Heidegger e Jaspers. De-
pois de uma análise da divindade nes-
ses dois pensadores o autor passa a
dialogar com a escola de pensamento
indiana chamada Nyaya, propondo as-
sim um profícuo diálogo entre tradições
orientais e ocidentais.
Esperamos que este dossiê
possa despertar e enriquecer o debate
sobre religiões no Brasil. Boas leituras
a todos!
Dr. José Abílio Perez Júnior (Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciência da
Religião/UFJF)
Leandro Durazzo (Doutorando – Pro-
grama de Pós-Graduação em Antropolo-
gia Social/UFRN)
Derley Menezes Alves (Doutorando –
Programa de Pós-Graduação em Ciên-
cias das Religiões/UFPB)
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Dossiê
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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O tríplice feminino: Jesus, Medeia
e a identidade do Poeta enquanto uma feiticeira sacricada
El tríplice femenino: Jesus, Medeia
y la identidad del Poeta mientras una hechicera sacricada
The triple feminine: Jesus, Medea
and the Poet’s identity as a sacricial witch
Fábio Gerônimo Mota Diniz
I
Resumo:
Construído a partir de uma comparação entre as guras da personagem
mítica grega Medeia e do salvador e lho de Deus, da mitologia cristã,
Jesus Cristo, o texto pretende apresentar uma faceta possível da
gura do Poeta que nomeamos “feiticeira sacricada”. A ideia é propor
um topos referencial simbólico a partir do qual se compreenderá o
artista, especialmente o Poeta, como uma gura feminina e dotada
de especiais poderes sobre o cosmos, cujo sacrifício a leva a uma
ascensão. Nessa ascensão se revelam uma série de símbolos e
imagens ligadas ao universo da mulher enquanto mãe, estrangeira
e feiticeira, que operam como motores fundamentais do seu fazer
poético, derivado dessa crise instaurada na identidade do eu-criador
diante de seu martírio. Assim, partindo dessa nossa análise dos dois
personagens arquetípicos, faremos a proposta de uma percepção da
feiticeira sacricada como um dos possíveis arquétipos identitários
desse Poeta posto diante do sofrimento.
Palavras chave:
Jesus
Medeia
Poesia
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Resumen:
Construido a partir de una comparación entre las guras de lo personaje
mítico griego Medea y el Salvador y el hijo de Dios, de la mitología
cristiana, Jesús Cristo, el texto tiene la intención de presentar una posible
vista de la imagen del poeta que nombramos “bruja sacricio.” La idea
es proponer un tópos referencial simbólico de que el artista, sobre todo
el poeta, será entendido como una gura femenina y dotado de poderes
especiales sobre el cosmos, cuyo sacricio conduce a una ascensión. En
esta ascensión se revelan una serie de símbolos e imágenes vinculadas
al universo de la mujer como madre, extranjero y bruja, que actúan como
fuerzas fundamentales conductor de su obra poética, derivados de esta
crisis en la identidad del creador frente a su martirio. Así, a partir de
nuestro análisis de los dos personajes arquetípicos, propondremos una
percepción de la hechicera sacricada como uno de los arquetipos de la
posible identidad de esta poeta frente al sufrimiento.
Abstract:
Built from a comparison between the gures of the Greek mythical
character Medea and the savior and son of God, from Christian
mythology, Jesus Christ, the text intends to present a possible sight of
the Poet’s image we named “sacricial witch.” The idea is to propose
a symbolic referential tópos from which the artist, especially the Poet,
will be understood as a female gure and endowed with special
powers over the cosmos, whose sacrice leads to an ascension. In
this ascension are revealed a series of symbols and images linked to
the universe of the woman as mother, foreigner and witch, who act as
fundamental driver forces of her poetic work, derived from this crisis
established in the identity of the creator in the face of her martyrdom.
Thus, starting from our analysis of the two archetypal characters, we
will propose a perception of the sacriced sorceress as one of the
possible identity archetypes of this Poet in the face of suering.
Palabras clave:
Jesus
Medeia
Poesia
Keywords:
Jesus
Medea
Poetry
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O tríplice feminino: Jesus, Medeia
e a identidade do Poeta enquanto
uma feiticeira sacricada
Introdução
Em artigo outrora publicado, par-
timos de uma comparação entre as gu-
ras do herói mítico grego Orfeu e do anjo
caído da mitologia judaico-cristã Lúcifer,
para apresentar uma faceta possível da
gura do Poeta que coincide com a do
anjo-caído, tendo em vista um tópos re-
ferencial simbólico a partir do qual se
compreende o artista, especialmente
o Poeta, como um herói que, rebela-
do contra certa instância de poder, so-
fre uma queda ocasionada por um erro
inescapável. Àquele momento propuse-
mos uma leitura incompleta, visto que
para o fechamento de um sistema sim-
bólico, surgira uma demanda pela ins-
tância dialógica complementar, ou seja,
das guras que divergiriam do sistema
proposto. A urgência de complementa-
ção surge, ainda, do notável trecho que
destacamos de poesia do brasileiro Car-
los Drummond de Andrade, ao fazer-nos
enxergar pelo famoso “Poema de sete
faces” outra faceta de Jesus Cristo:
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco
(ANDRADE, 2013, p. 11)
Apontamos a explícita referên-
cia do Poeta ao clamor de Jesus Cristo
que, diante de destino funesto destino
da crucificação, afirma no Evangelho
segundo São Marcos (15:34) e também
segundo São Mateus (Mt. 27:46)
II
:
[46] περὶ δὲ τὴν ἐνάτην ὥραν
ἐβόησεν Ἰησοῦς φωνῇ μεγάλῃ
λέγων “Ἐλωί ἐλωί λεμὰ σαβαχθανεί;”
τοῦτ᾽ ἔστιν “Θεέ μου θεέ μου, ἵνα τί
με ἐγκατέλιπες;”
Acerca da nona hora, exclamou Je-
sus em voz alta, dizendo “Eloí Eloí,
lemá sabakhthaneí?”, isto é, “Meu
Deus, meu Deus, por que me aban-
donaste?”
A referência, no texto grego, Ἐλωί
ἐλωί λεμὰ σαβαχθανεί [Eloí, Eloí lemá
sabakhthaneí] é uma transcrição do he-
braico, associada ao Salmo 22, que diz
“אלהי אלהי למא שבקתני
III
” [Eli Eli lama aza-
vtani]. Cristãos tradicionalmente identi-
cam este salmo como um prenúncio da
crucicação do messias e, de tal modo,
de seu martírio em prol da humanida-
de. Propusemos, no texto em questão,
observar uma ambiguidade construída
por Drummond no poema, pois, sendo
o poema de um gauche, este anjo tor-
to poderia igualmente ser, Lúcifer, que
fora punido por Deus justamente por
não poder ser ele mesmo Deus. De tal
modo, espelha-se tanto o lho de Deus
e salvador da humanidade quanto o anjo
caído,movimento que, como observa-
mos, por último, encontra lugar no pró-
prio Apocalipse, quando Cristo se equi-
para à Estrela da Manhã (KELLY, 2008,
p.9), símbolo luciferiano por excelência.
A despeito de possíveis outras
interpretações, tínhamos como objeti-
vo a leitura simbólica imagética do du-
plo Lúcifer-Orfeu como sendo um íco-
ne para a imagem do Poeta enquanto
essa figura caída, que de sua queda
faz a arte. E, de tal modo, abre-se o
mesmo caminho da duplicidade judai-
co-cristã-helênica em relação ao apro-
veitamento da contraparte imagética
de Orfeu: a feiticeira Medeia
IV
.
Para implementar essa leitura,
assumiremos uma perspectiva similar à
assumida no outro texto, fazendo uma
analogia entre as figuras a partir de
suas constelações simbólicas, ou seja,
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dos elementos imagéticos que dialo-
gam entre si. Como observa Gilbert
Durand, “os símbolos constelam por-
que são desenvolvidos de um mesmo
tema arquetipal, porque são variações
sobre um arquétipo (DURAND, 2012, p.
43)”. No caso, propusemos naquele tex-
to um arquétipo, o do Poeta enquanto
anjo/herói caído, e concluímos que “a
poesia como ato de desobediência que
revela, ao mesmo tempo, uma angús-
tia existencial”. A partir dessa premissa,
a reflexão que dialoga Medeia e Jesus
deve, da mesma forma, desenhar uma
relação analógica/alegórica entre sím-
bolos que constelem em favor de um
tópos. Assumimos, de início, as carac-
terísticas de Medeia que convergem
na sua representação dentro da litera-
tura grega: o feminino, o estrangeiro e
o feiticeiro
V
. Nesse sentido, precisamos
analisar essas três premissas para en-
tender se há a possibilidade do con-
traponto ao binômio Orfeu-Lúcifer em
Medeia-Jesus. Como o título do artigo
propõe, a natureza mágica será o pon-
to chave, mas não abandonaremos as
outras perspectivas pois, de fato, toda
a construção dessas personagens pode
ser encarada como um diálogo simbóli-
co religioso-poético e, ademais, confi-
gurar um novo tópos.
Feminina
A imagem que temos de Jesus
Cristo – homem caucasiano, geralmen-
te louro e de olhos claros, com cabelos
longos e lisos e barba –, consagrada
pela iconografia tradicional, vem sendo
muito questionada em tempos recentes-
VI
. Porém, em geral, há pouco a se ques-
tionar no que diz respeito à percepção
de seu gênero, masculino. A despeito
de questionamentos sobre sua relação
com mulheres – essencialmente Maria
Madalena – popularizada seja por teó-
ricos conspiratórios, seja pela literatura
popular. E é claro que não parece haver
motivos para se questionar sua repre-
sentação enquanto homem.
Em 2015, a atriz Viviany Belebo-
ni causou polêmica durante a 19ª Pa-
rada do Orgulho LGBT, em São Paulo,
ao aparecer crucicada, encenando o
martírio de Jesus Cristo que é o pilar da
religião cristã. A polêmica deriva, essen-
cialmente, do fato de Viviany ser tran-
sexual, e de sua encenação ser um ato
de protesto contra a violência constante
contra grupos LGBT. Utilizando-se da
iconograa associada à gura símbolo
do cristianismo, ela pretendia, em suas
palavras, usar “as marcas de Jesus, que
foi humilhado, agredido e morto. Justa-
mente o que tem acontecido com mui-
ta gente no meio GLS, mas com isso
ninguém se choca (DANTAS, 2015) ”.
A cena apresentada por Viviany dialoga
particularmente com a peça O Evange-
lho segundo Jesus, rainha do céu, de Jo
Cliord, na qual a autora propõe a ideia
de um Jesus que volta ao mundo como
transexual. Assim como o protesto de Vi-
viany, a peça de Cliord foi alvo de seve-
ras críticas já na sua primeira apresenta-
ção, em 2009, e não foi diferente quando
apresentada, em 2016 e 2017, sob a di-
reção de Natalia Mallo. Por m, podemos
ainda mencionar entrevista feita com a
primeira pastora transexual da America
Latina, Alexya Salvador, que questiona o
gênero de Jesus para defender sua po-
sição enquanto sacerdotisa, armando
que “Jesus Cristo foi o primeiro homem
trans (DECLERCQ, 2017)”. Ela parte da
trindade, o Pai, o Filho e o Espírito San-
to, para apontar que, se Deus enviou
seu lho para a terra ele, Jesus, “tinha
o gênero divino, correto? Então, quando
ele desceu para a terra ele passou a ter
o gênero humano”. Nessa proposição,
Jesus, Deus e toda divindade seria, em
suma, agênera, ou ao menos a noção do
que é gênero para as divindades seria
algo distante de nossa noção de gênero.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Claro que pode soar, ao leitor in-
teressado em um texto acadêmico, que
nossas interlocutoras não serviriam de
fundamento para propor uma visão di-
versa do gênero do filho de Deus. E, de
fato, não é o que esse artigo propõe,
em si, mas sobre o foco do texto nos
debruçaremos depois. O que propor-
mos, aqui, é uma justificativa para se
pensar além da iconografia e, claro, não
ignorar a implicação política dessa pro-
posta. Não obstante, o interesse maior
de todas as interlocutoras listadas aci-
ma é defender a presença do corpo po-
lítico da trans, renegada que é ao es-
paço do “anormal”, e para tanto usar a
figura sacra de modo blasfêmico serve
ao propósito provocativo. O que une
Beleboni, Clifford e Salvador é a disputa
política pela participação de seus cor-
pos no contexto de uma sociedade que
ainda mata as transexuais apenas por
serem. E nisso, claro, este texto provo-
ca, também, ao se iniciar com tais dis-
cursos – as mencionando, defendemos
suas presenças e nos alinhamos politi-
camente a elas. No entanto, é apenas
essa a perspectiva possível quando se
fala do gênero de Jesus?
Não é, e uma leitura distante tem-
poralmente, mas talvez próxima contex-
tualmente, é a de Juliana de Norwitch,
anacoreta e mística inglesa que viveu
no século XIV. Partindo de trecho do li-
vro de Isaías, 49: 15, em que o profe-
ta compara o amor de Deus ao de uma
mãe pelo seu filho, Juliana apresenta,
em seus escritos, uma imagem de Je-
sus que o aproxima de uma mãe, e a re-
lação mística real que se pode ter com
ele seria a mesma entre um filho e sua
mãe.E, segundo Bynum, essa não seria
a única leitura que aproxima as figuras
divinas da figura da mãe; ela apresen-
ta ao menos oito autores cristãos, to-
dos homens, do século XII. Para ela, a
comparação tem fundamento em dois
aspectos fundamentais:
Em primeiro lugar, as imagens assu-
mem certos estereótipos sexuais -
isto é, elas mostram que, para esses
escritores religiosos, certas caracte-
rísticas de personalidade foram vis-
tas como femininas, e outras carac-
terísticas como masculinas. Ao longo
desses textos, gentileza, compaixão,
ternura, emoção e amor, nutrição e
segurança são rotuladas como femi-
ninas (ou “maternas”); autoridade,
julgamento, comando, rigor e disci-
plina são rotulados como masculinas
(ou “paternas”); instrução, fertilidade
e criatividade estão associadas a
ambos os sexos (seja como gera-
ção ou como concepção). [...] Um
segundo padrão une essas imagens
o que é tão óbvio quanto o primei-
ro. Tanto em referências a guras de
autoridade terrenas quanto em re-
ferência a Deus, a imagem materna
é uma imagem de dependência, ou
união ou incorporação. Os seios e a
nutrição são imagens mais frequen-
tes nesta literatura do que a concep-
ção e o parto. E onde o nascimento
e o útero são imagens dominantes,
a mãe é geralmente descrita como
a que concebe e carrega a criança
no seu ventre, não como aquela que
expulsa a criança no mundo, sofren-
do dor e possivelmente a morte para
dar vida. Concepção e parto, como
a amamentação, são, portanto, ima-
gens principalmente de fertilidade,
retorno ou união, segurança, prote-
ção, dependência ou incorporação,
não imagens de alienação, sacrifício
ou emergência no sentido da sepa-
ração. As referências a Deus como
mãe geralmente ocorrem, não no
contexto de castigo dos pecadores
ou elaboração do abismo entre hu-
mano e divino, mas sim como par-
te de uma imagem geral do crente
como criança ou iniciante, totalmen-
te dependente de um Deus amável
e amoroso (BYNUM, 1977, p. 269
VII
).
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O que Bynum aponta é fundamen-
tal para que compreendamos a natureza
ambígua, mesmo para esses antigos es-
critores cristãos, da divindade. Seja en-
quanto Deus, seja no corpo de Cristo, en-
contramos a presença de características
que apontam para uma forte presença do
feminino em mais de uma dimensão, mes-
mo se dispensadas as percepções estere-
otipadas e misóginas desses escritores.
Acrescentamos, ainda, o destino
de Cristo, que é entregar seu corpo em
sacrifício. Antes mesmo de ser deniti-
vamente sacricado, Cristo se oferece a
seus apóstolos (todos homens) em ban-
quete do qual todos se alimentam de seu
corpo e sangue. Essa narrativa, que funda
o evangelismo, apresenta a imagem de
um sacrifício alimentar em que o sacri-
cado é um ser que, mesmo não sendo um
animal, possui uma natureza diversa da
humana, mesmo que a um humano se as-
semelhe. A comunhão do corpo de Cristo
se dá enquanto alimento e, não por aca-
so, temos matéria sólida e líquida: como
a mãe que é, Cristo se doa a seus lhos e
os alimenta. É pela nutrição que acontece
a união, a comunhão, e como aponta By-
num essa comunhão recupera a imagem
desse Deus amoroso e maternal da qual
Cristo é o símbolo mais caro.
E é o aspecto maternal um dos mais
marcantes do feminino no mito de Medeia.
Segundo a fonte tradicional, a tragédia de
Eurípedes, quando traída por Jasão, Me-
deia decide vingar-se assassinando seus
próprios lhos. O ato choca, obviamente,
pelo peso que existe em uma mãe vitimar
sua própria prole, e pela natureza da deci-
são estar atrelada à vingança, o que pode-
ria supostamente transformar o crime em
um ato praticado por motivo torpe. Nesse
sentido, cabe retomar as palavras de Me-
deia na obra do tragediógrafo grego:
Redireciono a fala neste ponto – 790
pranteio o fato a ser perfeito: mato
meus lhos... e ai de quem car na frente!
Arraso o alcácer de Jasão e sumo,
pela senha fatal contra os meninos
que mais amo no mundo, sob o crime 795
que mais que nenhum outro agride o pio:
o riso do inimigo fere o íntimo.
A vida avulta? Avilta, se há vacância
de lar, pátria, refúgio contra os sujos.
Que erro crasso deixar o paço pátrio, 800
cair na logorreia de um helênico,
o qual, se deus quiser, será punido!
Não mais sorri aos jogos dos meninos,
nem cria outra linhagem com sua ninfa:
meus fármacos fatais hão de matar 805
terrivelmente a terribilíssima.
Não queiram ver em mim um ser eumático
ou ébil. Tenho outro perl. Amor
ao amigo, rigor contra o inimigo;
eis o que sobreglorica a vida! 810
(EURÍPIDES, vv. 790-810
VIII
)
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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De certo modo, mesmo que a ati-
tude seja fruto de ciúmes e uma vin-
gança contra a traição, esta não está
restrita ao fato de Jasão se casar com
outra mulher, mas à promessa feita a
Medeia. Sua postura diante do ato de-
pende muito mais do seu status como
estrangeira que confiara ao herói seu
futuro e, por ele, abandonara tudo que
lhe era sagrado, que de ciúmes pro-
priamente dito. Antes, porém, de par-
tirmos para a análise desse aspecto,
ainda precisamos abordar, de modo
comparativo, a natureza feminina de
Jesus e Medeia.
Medeia, assim como Cristo, é
mãe, como observamos. No entanto, ao
invés de sacricar a si em prol de seus
lhos, ela sacrica os lhos em prol de
sua honra manchada, em um ato con-
denável. Porém, claro, trata-se de um
sacrifício se considerarmos o status do
amor materno como algo inalienável e,
nesse sentido, ambas, Jesus e Medeia,
são mães que sofrem a dor de se sa-
cricarem, quaisquer os motivos. Além
disso, tendo em vista que Jesus é, ao
mesmo tempo, lha e o próprio Deus, po-
demos considerar sua premeditada en-
trega como um sacrifício da mãe-Deus,
e é sob essa ótica que muitas vezes é
feita a lamentação religiosa que conduz
à compreensão da comunhão como um
ato de remissão dos pecados. Deus en-
tregou sua lha, Jesus, para ser morta
em prol da humanidade – que, por seus
atos funestos, já havia sido condenada
antes, pelo dilúvio –, e esse seria um ato
benevolente, de amor. De certo modo,
mesmo que condenável, o ato de Medeia
também é o ato amoroso, mesmo que
seja do abandono do amor – “Amor/ao
amigo, rigor contra o inimigo;/eis o que
sobreglorica a vida!”. Se eles não têm
consciência do crime da mãe, os lhos
de Medeia, como Jesus, não possuem
livre-arbítrio para negarem seu destino.
Além disso, o ato de assassinato
dos lhos, considerados como extensão
do corpo feminino, também é um ato de
sacrifício. Medeia entrega parte de si,
seu próprio sangue, à morte:
Está traçado, amigas: mato os lhos
e apresso a fuga. Não existe um ser
– um ser somente! – que suporte ver
o braço bruto sobre os seus. Não tardo:
o m dos dois se impõe e a mãe os mata, 1.240
se é isso o que há de ser. Ó coração-
-hoplita, descumprir esse ato horrível,
se ananke, o imperativo, o dita? Empunha,
mórbida mão, o gládio, e mira o triste
umbral de tânatos! Deslembra o amor 1.245
de mãe, não te apequenes! Na jornada
brevíssima de um dia, não te atenhas
ao fato de que deles és a origem,
posterga tuas lágrimas! Amaste
quem dizimas. Funesta a moira mesta. 1.250
(EURÍPIDES, vv. 790-810)
24
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Ao dizer, em Eurípedes, “amaste
quem dizimas”, Medeia entrega seus lhos
à morte, como Deus à sua lha Jesus. E não
se questiona seu amor, pois a própria Me-
deia arma categoricamente que “Não exis-
te um ser/– um ser somente! – que suporte
ver/o braço bruto sobre os seus”. A despeito
de Deus ser questionado por Jesus acerca
de seu abandono, sabemos que ela conhe-
ce essa dor e a valoriza por outro evento:
quando pede a Abraão que sacrique seu
lho, Isaque, por ela. Porém, mãe, ela envia
o anjo para que interrompa o ato, visto que
percebera no pai a disposição para consu-
má-lo. A morte do lho, em resumo, é um
ato sagrado, de entrega e amor.
Podemos, ainda, destacar a traição
como movimento fundamental nas duas
narrativas. Medeia e Jesus caminham
para seus sacrifícios por serem traídas,
ambas, por um homem (Jasão/Judas). A
traição de Jesus possui traços de uma re-
lação mais íntima, podemos acrescentar,
com o famoso beijo narrado nos evange-
lhos. Esse beijo,καταφιλέω/kataphiléo, ou
seja, um beijo terno e amoroso, é o sinal
de Judas aos soldados de que aquela
pessoa era Cristo. Porém, mesmo que o
beijo seja um sinal, o evangelho de Ma-
teus chamá-lo de kataphiléo intensica o
ato, dando ares de um amor terno entre os
dois, de carinho, e não de dissimulação.
De fato, se destilarmos a imagem, temos
um domínio da relação amor-traição, tanto
em Medeia como e Jesus.
E, ainda, é impossível esquecer
que um dos dados marcantes e funda-
mentais da gura de Cristo é justamente
o seu nascimento de uma virgem, Maria, a
gura central do culto feminino dentro do
cristianismo. A virgindade associada à pu-
reza é um dos traços denidores de várias
culturas ocidentais, e não é forçoso pen-
sá-la sob a ótica da dominação masculina
sobre a mulher, sendo a consumação do
matrimônio um ato celebrado como a pos-
se denitiva da mulher por seu esposo.
Em que valha, ainda, a iconograa asso-
ciada ao ato – o sangramento, a entrega,
a união – queremos, contudo, destacar a
aproximação que Tereza Virgínia Ribeiro
Barbosa faz entre Maria e Medeia:
É tempo agora de abordar a gura de
pensamento que nos dirige, o parado-
xo que ca claro a partir da antítese
que escolhemos no título. Medeia e
a Virgem-Mãe Maria. Dois absurdos:
aquela, que com sua face sombria e to-
talitária advinda de uma antiga divinda-
de feminina, gera para matar e aquela
outra que, sendo gente comum, mulher
virgem, é também mãe de uma divin-
dade. Ela própria, outro absurdo, não
chega a ser deusa-mãe, mas é tão-so-
mente mãe da divindade.
Medeia, constituída a partir do poder,
se coloca na disputa, na repressão,
na neutralização do outro e é por isso
mesmo essencialmente autocentrada;
a virgem-mãe se coloca num lugar de
fronteira ou numa espécie de fusão
de condições opostas, de incorpora-
ções de diferenças, lugar onde se en-
contram o dominador e o subjugado
(BARBOSA, 2013, p. 6-7).
Escolhida para carregar a lha da
divindade, Maria é desprovida de vontade
própria – motivação, é bom que se diga, da
natureza misógina e opressora de muitos
cultos cristãos na lida com as mulheres –
e seu ato é um “absurdo”, como observa
Barbosa, posto que não poderia conceber
enquanto virgem. Ao ser violada por Deus
– aí sim, em sua natureza masculina, repre-
sentada pelo anjo –, Maria se aproxima das
tantas jovens donzelas estupradas por Zeus
na mitologia grega. Porém, desde que rece-
be a sua “tarefa”, ela sabe que seu destino
é apenas do de receptáculo da rebenta que
irá, sacricada, redimir a humanidade. Ape-
sar de completamente diferentes em seus
objetivos nais, destaca-se a determinação
de ambas em cumprirem seus papéis, em
se entregarem – e a seus lhos.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Estrangeira
A que se deve a fúria de Medeia?
Flávio Ribeiro de Oliveira, na introdução
de sua tradução da Medeia, observa que a
origem do sentimento de Medeia não está
restrita ao ciúme, como comentamos aci-
ma, mas está diretamente relacionada ao
conceito grego de timḗ, “honra”, que as-
sume nesse contexto o sentido de “valor
atribuído a alguém por seus iguais”. Assim
ele apresenta a motivação do ódio de Me-
deia pelos atos de Jasão:
[...] Medeia, neta do deus Sol e lha do
rei da Cólquida, fora honrada e respei-
tada em sua comunidade. Mas fugiu
com Jasão, depois de trair seu pai e
sua pátria; na fuga, matou seu irmão
e cometeu uma série de crimes hor-
rendos – tudo isso por amor de Jasão,
para ajudá-lo e para honrá-lo. Ao trair
seu país e sua família, perdera irre-
mediavelmente a timé de que fruía na
Cólquida. Para ela, não havia possibi-
lidade de retorno, seus atos tornaram
inviáveis a volta para casa e a reassun-
ção daquela timé. Medeia sacricou
denitivamente tudo o que tinha por Ja-
são; de sua perspectiva, Jasão deve-
ria, em troca, atribuir alto valor, deveria
honrá-la e fazê-la honrada em Corinto,
cidade em que se refugiaram: é um
princípio de reciprocidade. Mas ela é
frustrada justamente nessa timé a que
teria direito: Jasão, em vez de honrá-la,
a troca pela lha de Creonte, rei de Co-
rinto (OLIVEIRA, 2007, p. 13).
A reação violenta de Medeia, de tal
modo, tem origem na traição de Jasão à
sua honra e a seu juramento. É uma rela-
ção de troca entre estrangeiros mediada
por uma relação amorosa que se sustenta
a ação de Medeia. Nesse sentido é inevi-
tável e substancial o fato de que a hospita-
lidade oferecida a um estrangeiro e a sub-
sequente viagem para longe de sua casa
selam o destino de Medeia.
A iconograa do nascimento de Cris-
to, celebrada anualmente, é amplamente co-
nhecida e dispensa pormenores. A despeito
disso, como no caso de Medeia, sobressa-
em as tópicas da hospitalidade e da viagem:
Maria concebe Jesus fora de sua cidade
natal, em Belém, em uma manjedoura pois
não encontra hospedagem. Ambas, Medeia
e Jesus, são estrangeiras quando atingem
sua vida adulta e vivem seus sacrifícios e,
mesmo que para a segunda a natividade
seja menos problemática, seu nascimento
é fundamental como elemento de congre-
gação. Além de seus pais, viajam em busca
da anunciação do messias os famosos três
reis magos, guras alegóricas representan-
tes do Oriente e que cumprem uma profecia
anunciada nos Salmos, 71:11, “E o adorarão
todos os reis e todas as nações o servirão
IX
”.
Além disso, a criança é visitada por outros
pastores e admirada pelos próprios animais,
o que, podemos considerar, demonstraria
que nela residiria a comunhão entre todos
os seres e todas as nações.
Porém podemos alargar o campo
semântico da noção de “estrangeiro”, para
abarcar outro evento: a ascensão. Medeia,
após seus atos trágicos, é levada no carro
do sol para os céus; Jesus ressuscita, ao ter-
ceiro dia após sua morte, e vai viver ao lado
de Deus – ou voltar à sua essência enquanto
Deus, se considerarmos que ela é a própria
divindade. Nos dois casos, a ascensão tem
um papel fundamental se considerarmos sua
dimensão imagética. Como aponta Durazzo:
Na esteira de Bachelard, Gilbert Du-
rand aponta as diferentes valorizações
que as imagens ascensionais podem
apresentar. Se, por um lado, elas in-
dicam o impulso rumo ao sagrado, o
caminho que liga chão a céu é capaz
de assumir diversas posturas éticas.
Daí que, além da direção do sagrado, a
verticalidade também se liga à direiteza
moral, à hierarquia – política monárqui-
ca, litúrgica ou militar –, ao monoteísmo
e às práticas de elevação que entrela-
26
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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çam pureza, castidade, moral e santi-
dade (DURAZZO, 2013, p. 55).
Assim, a ascensão de Medeia/Je-
sus traz um reencontro da divindade em
carne com sua essência divina, ou seja,
religa o humano ao divino. É ritualístico
esse movimento, com certeza, e impreg-
nado de sagrado – como o é a catábase
de Orfeu/Lúcifer. E, se os efeitos dessa
ascensão não são os mesmos, são ao me-
nos aproximáveis: Cristo retorna para os
céus, ao lado de sua mãe Deus para ser
rainha e divindade, enquanto a ascensão
traz a redenção de Medeia, que após seu
ato de sacrifício não teria mais lugar nesse
mundo. De certo modo, em analogia com
o aspecto estrangeiro de ambas guras,
Medeia e Jesus são ambas estranhas em
relação aos mundos de que fazem parte,
seja por serem guras desaadoras da or-
dem, seja por serem ambas detentoras de
poderes que extrapolam a naturalidade.
Se considerarmos o caráter de es-
trangeira, portanto, Medeia e Jesus são con-
sideravelmente diferentes, mesmo que com-
partilhem certas dimensões imagéticas e
simbólicas. Há que se considerar, no entan-
to, que ambas são descendentes de divinda-
des e sua relação com essas potências – e
com outras guras que podem assumir pa-
pel similar, ao menos alegoricamente – en-
caminha denitivamente nossa análise para
o aspecto poético da nossa comparação.
Feiticeira
Ao agir enquanto sacerdotisa da deu-
sa Hécate, Medeia utiliza-se de phármakon,
ou seja, de preparados mágicos e poções,
motivo pelo qual no poema Argonáutica, de
Apolônio de Rodes, poema épico do séc. III
a.C., será chamada de polyphármakon (III,
v. 27; IV, v. 1677) “a de muitos fármacos”.
É por meio desses fármacos que Medeia
irá garantir que o herói Jasão conquiste o
poder de subjugar terríveis desaos e con-
quiste o velocino dourado, seu objetivo na
viagem ao lado dos Argonautas. E é com os
mesmos fármacos que ela conduzirá à mor-
te Pélias, tio do herói e usurpador do trono
de Iolco, do qual Jasão seria príncipe, por
direito. Por m, será pela sua habilidade de
feiticeira que ela assassinará também o rei
Creonte e sua lha Creúsa, futura esposa
de Jasão, usando de uma túnica impregna-
da de seus fármacos.
Jesus pode ser, para todos os efeitos
e em larga medida, uma feiticeira. Suas prá-
ticas, chamada de milagres, envolvem cura,
exorcismo, multiplicação de itens, ressurrei-
ção e outros eventos fantásticos. No entan-
to, Jesus não se vale de phármaka para tal,
mas de seus dons derivados de sua descen-
dência divina, o que poderia afastá-lo, em
nossa comparação, de Medeia. Podemos
manter a comparação, ainda, pois Medeia
é lha de Eetes, senhor da Cólquida, e com
isso descendente direta do deus sol, Hé-
lio. Essa descendência é evidenciada mais
de uma vez ao longo das representações
clássicas de Medeia, especialmente com o
destaque dado a seu olhar. Em Apolônio, o
poder do olhar de Medeia recebe destaque
em III, vv. 886-7, quando é dito que as pes-
soas se afastavam para evitar olhar direta-
mente para seus olhos; em IV, vv. 727-29,
quando Circe, irmã de Eetes e lha de Hélio,
portanto, busca identicar seu parentesco
com a sobrinha pelo brilho no olhar; e, por
m, quando ela derrota o gigante de bron-
ze Talos, no Canto IV, que a própria Medeia
apresenta como um feito individual, de seus
poderes apenas (IV, vv. 1654-68).
Por outro lado, Jesus não intera-
ge, em nenhum momento, com intenções
destrutivas. Enquanto o phármakon no
contexto tradicional da feitiçaria de Medeia
seria, ao mesmo tempo, remédio e vene-
no, Jesus utiliza seu dom apenas para a
cura, nunca para provocar qualquer tipo de
dano mesmo a seus maiores inimigos. É de
sua natureza, visto que é a lha de Deus
e herda seu amor innito e incondicional,
27
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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resumido pelo seu mandamento de amar
a todos e dar a outra face a um inimigo.
Nesse sentido, mesmo que considerásse-
mos como phármaka as atitudes de Jesus,
ela não pode ser como tal admitida por não
ter essa dupla função, sendo restrita em
sua atuação enquanto feiticeira unicamen-
te voltada para o bem, para a cura. Além
disso, no capítulo nono do livro do Apoca-
lipse, os feiticeiros, phármakos, são conde-
nados duas vezes, sendo colocados entre
aqueles atingidos por uma segunda morte,
a condenação eterna da alma, por não se
arrependerem de seus pecados.
Assim, por um lado, tanto Medeia
como Jesus podem ser observadas en-
quanto feiticeiras que se valem de sua as-
cendência divina (Hélio/Deus) para realizar
seus milagres/magias. Como feiticeiras,
elas desaam a ordem e fazem uso de
suas habilidades para contrariar instâncias
de poder (Eetes/Jasão de um lado, Roma
do outro), e por isso são condenadas – Me-
deia, punida com o abandono de Jasão, se
torna uma assassina; Jesus, com o destino
de sofrer em prol da humanidade, é morta
de forma horrenda. E, como um acréscimo
fundamental, lembramos ambas ascendem
após o sacrifício realizado, igualando-as
em sua natureza divina. Porém, por outro
lado, o que Jesus faz na bíblia não pode
ser considerado phármakon, pois não ape-
nas ele não se vale de itens e combinações
de produtos para realizar seus milagres,
como estes são condenados pela própria
escritura, indicando que se há similaridade
aparente, esta se dá tão somente no nível
analógico, não diretamente.
A Hécate e as Três Marias
Mas há uma segunda dimensão
da interação com o mundo sobrenatural,
muito importante para a compreensão da
gura de Medeia, que é sua dedicação ao
sacerdócio de Hécate. Essa divindade,
como observa Prado, possui uma série
de elementos simbólicos aos quais iremos
nos direcionar para reetir sobre a perso-
na poética que converge Medeia e Jesus:
Devido à sua identicação com Ártemis,
Hécate tomou de empréstimo, num pri-
meiro momento, algumas das funções
daquela deusa, por isso, às vezes Héca-
te era considerada uma divindade lunar
e ctônica, o que lhe conferiu, ao mesmo
tempo, um poder sobre a vegetação
e sobre o mundo subterrâneo (em seu
aspecto ctoniano) e sobre as águas do
mar (em seu aspecto lunar). Seu culto irá
reetir sua dupla natureza, pois, por um
lado, ela tomava parte em cerimônias
mágicas, por outro, também nos ritos o-
ciais e familiares. [...]Hécate tinha duas
iconograas: a primeira representava-a
apenas em uma forma feminina simples
e sem atributos particulares; a segunda,
sob uma forma tríplice, isto é, possuindo
três corpos e três cabeças mescladas
entre si, ou apenas um corpo com três
cabeças, constituindo uma representa-
ção das três fases visíveis da Lua: cres-
cente, cheia e minguante (cf. LAVEDAN,
1931: 496-498; e Ramous, in: TIBULO,
1988: 238) (PRADO, 2011, p. 14, n. 5).
Esta representação de Hécate de
três faces, talvez a mais famosa, traz uma
série de simbologias que podemos asso-
ciar diretamente ao feminino, como a re-
lação com a terra, com as plantas e com
a lua e suas fases. Atributos associados
ao imaginário que circunda a Deusa Mãe,
podemos pensá-los em uma chave muito
interessante, se nos atermos ao séquito
feminino de Cristo.
Maria, a mãe de Jesus, possui
em sua simbologia estreita relação com
as divindades pagãs que formam o ar-
quétipo da Grande mãe, como observa
Flávia Marquetti:
Maria apresenta, enquanto mãe divina,
em sua iconograa, os mesmos sím-
28
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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bolos que as deusas pagãs: a maçã,
o marmelo, a romã, ou o trigo/cereal,
símbolos da fertilidade e fecundidade
da terra; a lua crescente, que ao mes-
mo tempo se liga ao chifre do touro, seu
consorte, bem como à foice que o emas-
cula nos rituais de fertilidade e indica o
tempo cíclico da colheita; a(s) estrela(s)
que caracteriza(m) o solstício de verão
e a coroa, geralmente de estrelas, sím-
bolo de sua “realeza”, mas também de
Ariadne, esposa de Dioniso; a serpen-
te, epifania da grande Deusa Mãe; as
rosas brancas de Ártemis e/ou as ver-
melhas de Afrodite, bem como os lírios
consagrados às deusas ctônicas, como
Perséfone e Deméter, a Afrodite Negra,
ou ainda à Ártemis-Hécate. [...] Mas,
dentre todos esses elementos, o seio
nu,símbolo primordial da Deusa Mãe,
enquanto geradora e nutriz, e omenino,
fruto desse poder gerador, são os emble-
mas da Virgem Mãe,quer seja ela cristã
ou pagã (MARQUETTI, 2013, p. 248).
Assim como Medeia, portanto, Jesus
é relacionada diretamente a uma gura que
representa a divindade do feminino mater-
no. Como observamos, Jesus é também
mãe, simbolicamente, e nisso se relaciona
com Medeia, cuja maternidade é fundamen-
tal ao cumprimento do mito trágico. Há que
se salientar, ainda, que Maria compartilha
segundo Marquetti uma relação com Ariad-
ne, esposa de Dioniso; enquanto divindade
dúbia, trans ou bissexuada, Jesus possui
íntima relação com o Deus grego em sua
iconograa – o vinho, o duplo nascimento –
que conguram uma constelação simbólica
que Durand (2012, p. 300) analisa, a simbo-
logia do Filho que justica sua androginia:
O símbolo do Filho seria uma tradução
antiga do androginato primitivo das di-
vindades lunares. O Filho manifesta
assim caráter ambíguo, participa da
bissexualidade e desempenhará sem-
pre o papel de mediador. Que desça
do céu à terra ou da terra aos infernos
para mostrar o caminho da salvação,
participa de duas naturezas: masculi-
na e feminina, divina e humana.
De tal modo, a androginia e a dupla
natureza sacro-terrena andam juntas pois
a gura de Jesus é a própria ambiguida-
de, o que explica pois porque, enquanto
Filha, Jesus é ao mesmo tempo Mãe. Por
um lado, Jesus é a Mãe que nutre e guia,
e a Filha, que se sacrica e salva. Por ou-
tro Medeia, em mesma chave, é ao mesmo
tempo a lha deserdada motivo de seu
sofrimento – e Mãe que deserda. Se Jesus
é uma conjugação de símbolos femininos
de acolhimento, Medeia é a tragédia mater-
na da rejeição. E, nesse sentido, dialogam
com as suas deusas-mãe Hécate/Maria.
Outra chave fundamental analógica
é a tríplice natureza. Jesus é parte de uma
trindade (Pai, Filho e Espirito Santo), que re-
presenta a natureza tríplice do Deus cristão.
Porém, ao analisarmos Jesus mulher, pende-
mos para uma confusão da divindade Mãe
com a mãe terrena, Maria, ela também uma
divindade
X
, e nesse sentido buscamos a con-
uência da natureza tríplice não apenas na
Trindade, mas na gura materna de Maria.
Aludiremos, para compreensão des-
sa dimensão tríplice, aos eventos ligados
a Jesus. Os evangelhos citam tanto a pre-
sença de três mulheres na crucicação de
Jesus, quanto a visita de três mulheres ao
túmulo de Jesus, mesmo que não delimitem
de modo claro quem seriam essas três. Es-
ses grupos são chamados de Três Marias, e
dizem respeito em geral, dentre outras pos-
sibilidades, à própria mãe de Jesus, a Maria
Madalena e a Maria de Clopas ou Cleófas
XI
.
Se considerarmos a relação entre Maria e
Hécate, podemos enxergar a mesma divi-
são de uma imagem divina feminina em três
faces, relacionadas à lha-sacerdotisa.
Se Jesus é, portanto, em sua face-
ta masculina, lho da Deusa, falta-lhe ainda
uma característica, como aponta Marquetti
29
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
(2013, p. 284), que seria “fecundar a mãe”.
O lho é consorte, ao mesmo tempo, no rito
pagão, porém é esperado que, no conceito
cristão de relações entre os seres, o papel do
sexo enquanto elemento fundamental de cul-
to seja consideravelmente minimizado – por
associação ao pecado original. No entanto,
Marquetti observa que haveria a possibilida-
de de uma exceção pois, se considerarmos
o ambiente dos textos apócrifos, nos quais
Jesus (masculino) é consorte de outra mu-
lher, Maria Madalena, temos um fechamento
da razão tríplice. Marquetti aponta, assim, “o
casamento de Jesus com Maria Madalena,
a prostituta sagrada, imagem da nova Koré
que substituiria Maria, a Deusa Mãe”. Assim,
tendo em vista a tripla face da Deusa, Mada-
lena representa o traço sexual que desperta
o oposto masculino da sacerdotisa. Jesus é
uma gura que tem sua comunhão sexual
negada pela tradição em prol de uma comu-
nhão fraterna, ligada a imagem dos após-
tolos e da humanidade, e se isso de certo
modo via apagar traços do pecado de ordem
sexual, por outro, reforça o traço feminino de
Jesus, conrmando sua ambiguidade.
Sistemas binomiais e triádicos:
pequeno exercício Simbolístico
XII
Interessante acrescentar à di-
mensão analógico-simbólica da imagem
de Cristo que, tanto em seu nascimento
quanto em sua morte, Jesus possui um
trio de espectadores: Três magos/Três
Marias. É mais um elemento na linha de
simbologias ligadas ao número três as-
sociadas a Cristo: a Trindade Pai/Filho/
Espírito e sua versão feminina, os Três
Reis Magos, as Três Marias e assim por
diante. Nossa comparação com a trípli-
ce Hécate para, de tal modo, aproximar
Medeia e Cristo, nos conduz ao momento
nal deste ensaio: a compreensão da di-
mensão poética que representam essas
personagens, no que diz respeito ao -
pos oposto/complementar, do herói/anjo
caído Orfeu-Lúcifer.
Quando apresentamos esse tópos,
o resumimos em uma tabela, que apre-
sentava a dinâmica da arquetipologia dos
mythos do herói/anjo caído:
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Há que se considerar que, se pro-
pomos um espelho dessa dinâmica, de-
vemos encontrar um espelho do esque-
ma e de suas principais constituições,
iniciando pelos mitemas pois, quando
propomos a dimensão poética dos -
poi, os propomos enquanto mythos, ou
seja, narrativas. Nesse sentido, iremos
introduzir uma dinâmica metodológica
ainda aberta, dos sistemas binomiais
e triádicos.
Em resumo, trabalhamos em mo-
delos baseados em dois personagens
que se opõem/completam, e cujo movi-
mento em relação a outros dois perso-
nagens formam uma dinâmica criativa.
Em primeiro lugar, há uma hierarquia,
que é o binômio que identificamos ori-
ginalmente, Orfeu-Medeia, e que é uni-
do por uma tríade de elementos cons-
titutivos, a saber, suas características
identitárias de sacerdote, mago/feiticei-
ra e Poeta. A partir daí, delimitamos o
binômio que iria dialogar com aquele,
no contexto da tradição ocidental de
constituição de um modelo poético,
Jesus-Lúcifer. Então, o sistema bino-
mial dinâmico se constrói com a dupla
representação do topos arquetipal po-
ético, na constituição de um modelo
de Poeta: Orfeu-Lúcifer/Medeia-Jesus.
A título de organização, definiremos
esses dois binômios respectivamen-
te como catabático e ascensional,
pela dimensão que os movimentos de
queda/ascensão representam em sua
constituição. Deles extrairemos, pelas
narrativas (mythos), as possibilidades
mitemáticas de composição de um ide-
al de Poeta. Foi o que fizemos, no outro
texto, com Orfeu-Lúcifer.
O primeiro grande problema que
surge na constituição do mythos para
formulação do binômio ascensional
é a falta de equivalência direta pois,
considerando que Jesus é marcada
fundamentalmente pela narrativa do
nascimento-milagres-morte-ressurrei-
ção, e que o mythos de Medeia é via-
gem-traição/vingança-ascensão, não
temos, para Medeia, narrativa equiva-
lente ao nascimento. No caso do bi-
nômio catabático, o mythos é dividido
em dois mitemas, Heroísmo (a) e Que-
da (b), e este último se subdivide em
uma relação de causa (Ação) e Con-
sequência (Movimento); essas duas,
ainda, estão divididas em duas dinâ-
micas cada: desejo (i) e erro (ii) para
Ação, ascensão (i’) e queda(ii’) para
Movimento. Precisamos, assim, refle-
tir se há possibilidade de estabelecer
uma relação produtiva entre as duas
personagens em, pelo mythos e seus
mitemas, avaliar se seus elementos
equivaleriam, para além dos já anali-
sados campos simbólicos-alegóricos
que as igualam enquanto mulher-es-
trangeira-feiticeira.
Assim, se nossa proposta é rea-
lizar uma equivalência elemento a ele-
mento entre o mythos de cada figura
referencial, podemos pensar na Iden-
tidade (a) como sendo o primeiro mi-
tema, já que dela depende a relação
entre ambas, além da Ascensão (b), o
segundo mitema. Aqui criamos nosso
mythos, para compreensão da relação
entre Medeia e Jesus, a partir de dois
mitemas:
• Mitema a: o mitema da Identida-
de, baseado nas características de gê-
nero (i), origem (ii) e poder (iii);
Mitema b: o mitema da Ascen-
são, baseado nos movimentos de trai-
ção (i) sacrifício (ii) e renascimento (iii).
Assim, temos o desenvolvimen-
to do mythos que caracteriza o tópos
da feiticeira sacrificada, que esque-
matizamos abaixo:
31
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Fica claro, numa primeira leitura,
que existe uma oposição/complementa-
ção entre um ambiente mitemático es-
tático (a) e outro que representa uma
série de movimentos (b). Se considerar-
mos uma dinâmica espelhada entre os
dois binômios, deveríamos considerar
reelaborar a proposta feita para o siste-
ma anterior, do binômio catabático. E aí
já caímos em outra dinâmica metodoló-
gica transversal, em que temos um des-
dobro de dimensões que não aplicamos
objetivamente a Orfeu-Lúcifer: de iden-
tidade. No caso do binômio catabático,
propomos, impõem-se sobre eles três
identidades, também: homem-herói-re-
belde. Porém, no caso do binômio as-
censional, o ambiente identitário serve
ao mythos como traço definidor muito
mais marcante que a natureza heroica/
angelical. São os movimentos que de-
terminam a lógica do topos do herói ca-
ído, pois a queda é parte fundamental
da sua constituição, enquanto que a fei-
ticeira é definida por categorias, diga-
mos, mais estáticas, que envolvem sua
identidade e um único movimento, de
ascensão. Poderíamos, ainda, conside-
rar o sacrifício como um movimento de
queda, no qual ainda as feiticeiras se
veem como seres abandonados à pró-
pria sorte e sofrem, mas não é, como no
caso do binômio catabático, algo con-
sequente de um erro. Os atos de de-
sobediência têm papel fundamental na
rebeldia como fator constituinte da per-
sona no binômio catabático, enquanto
que no caso do par Medeia-Jesus não
temos o mesmo peso
XIII
. Mesmo assim,
assumimos o risco de reinterpretar o
sistema, renomeando o Mitema b do
binômio catabático como “Catábase”, e
mantendo a dinâmica “ação x movimen-
to” do primeiro modelo, mas mudando o
segundo elemento para “reação”, para
criar um efeito simbólico. Inserimos no
tópos a mesma coluna “identidade” do
binômio ascensional, e consideramos
a construção do Mitema a da mesma
forma: gênero, origem e poder, como
correspondentes alegóricos de homem-
-herói-rebelde.
32
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Assim, por fim, o que encontra-
mos são dois tópoi exemplificados em
binômios arquetípicos – obviamente
esses tópoi remetem a arquétipos – e
organizados em sistemas dinâmicos
que funcionam a partir de mythos. Cada
parte do binômio, as personas fazem
parte de um sintagma nominal, a saber,
um substantivo (Heróis/Feiticeiras) e
um adjetivo (caído/sacrificado) cujo de-
senvolvimento se dá em dois mitemas
que se subdividem de maneira razoa-
velmente espelhada.
Considerações nais
Sem querer correr o risco de
tornar nossa metodologia mecanicis-
ta, delineamos os esquemas anterio-
res para a apreensão mais sistemática
das reflexões. Não significa, no entan-
to, que fechamos as possibilidades de
análise à mera aplicabilidade do mo-
delo que desenhamos. Não considera-
mos aqui poesia religiosa ou de tema
associado aos tópoi como forma exclu-
siva para a análise, masuma aplicabili-
dade hermenêutica ampla da reflexão.
Os sujeitos Medeia-Jesus – bem como
o par Orfeu-Lúcifer –, enquanto perso-
nificações de um tópos, são o ponto
de partida para a amplitude infinita de
símbolos que se materializam verbal-
mente enquanto sintagmas em diver-
sas obras, e apontam para a natureza
arquetípica da relação poesia-magia-
-religião e, em certa medida, ao fluir do
imaginário poético pagão para dentro
do cristianismo.
É claro que, de tal modo, se não
queremos connar os sistemas a uma
chave dicotômica masculino/feminino,
deveríamos realizar o cruzamento das
guras, buscando o mesmo tipo de leitu-
33
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ra comparativa simbólica para os pares
Jesus-Orfeu, Medeia-Lúcifer, Medeia-
-Orfeu e, por m Jesus-Lúcifer. Como o
texto apresentado faz parte de um traba-
lho maior, desenvolvido durante estágio
de pós-doutoramento, que propõe uma
perspectiva de análise que intitulamos
Simbolística, e não passa de uma ex-
periência alegórico-exegética de poe-
sia, restringimos por ora a análise aos
binômios propostos, mas não fechamos
a reexão. Pelo contrário: abrimos aqui
espaço para uma innita meditação
acerca das imagens que coligimos, sem
o receio de que pareçamos ter circula-
do o assunto de maneira pouco objetiva
em verdade, se o zemos, obtivemos
sucesso. No mais, em uma era de vio-
lência e incompreensão cada vez maio-
res no que diz respeito às dinâmicas de
gênero dentro e fora da arte, preferimos
encerrar este texto com o fechamento de
O evangelho segundo Jesus, Rainha do
Céu, de Jo Cliord:
Não nos deixeis,
não nos deixeis jamais esquecer,
que ele é ela
e ela é ele
e nós somos eles
e eles somos nós
e assim será
para sempre
para todo
todo
o sempre
Amém.
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perseus.org/citations/urn:cts:greekLit:tlg0031.
tlg001.perseus-grc1:27.46. Último acesso 29 de
julho de 2017.
Recebido em 08/08/2017
Aprovado em 06/09/2017
I Fábio Gerônimo Mota Diniz. Doutor em Estudos Lite-
rários pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mes-
quita / UNESP (SP, Brasil).
II Fontes consultadas observam que há uma dife-
rença entre o texto de Marcos e Matheus, espe-
cialmente na transcrição de Ἐλωί/Eloí, que seria
a forma encontrada em Marcos, em contraponto à
encontrada em Mateus, Ἠλί/Elí. Como nossa refe-
rência para esse texto foi a versão presente na pla-
taforma Perseus – que inclui os textos em latim a
partir da Vulgata de São Jerônimo e a edição em
grego recolhida por Westcott e Hort (1885) –, e nes-
ta não é notada a diferença, mantivemos como se
encontra no texto do Evangelho segundo São Ma-
theus da plataforma. Ademais, a diferença não in-
terfere semanticamente no trecho.
III Usamos para o texto hebraico a Biblia Hebraica
Stuttgartensis, referência disponibilizada online pela
German Bible Society. Cf. Referências.
IV A comparação que opõe Medeia e Orfeu deriva de
nossa análise do poema épico helenístico Argonáutica,
realizada em DINIZ, 2015.
V Como observamos em DINIZ, 2016.
VI Durazzo (2012, p. 149-150) comenta sobre
essa percepção iconográfica de Cristo, em com-
paração com Orfeu, percebendo igualmente sua
androginia.
VII “First of all, the images assume certain sexual
stereotypes-that is, they show that, to these reli-
gious writers, certain personality characteristics
were seen as female and certain characteristics as
male. Throughout these texts, gentleness, compas-
sion, tenderness, emotionality and love, nurturing,
and security are labeled female (or “maternal”); au-
thority, judgment, command, strictness, and disci-
pline are labeled male (or “paternal”); instruction,
fertility, and creativity are associated with both se-
xes (either as begetting or as conceiving). [...] Bre-
asts and nurturing are more frequent images in this
literature conceiving and giving birth. And where
birth and the womb dominant images, the mother is
usually described as one who and carries the child
in her womb, not as one who ejects the child world,
suffering pain and possibly death in order to give
life. Conceiving and giving birth, like suckling, are
thus images primarily of return or union, security,
protection, dependence or incorporation, images of
alienation, sacrifice, or emergence in the sense of
separation. References to God as mother usually
occur, not in the context castigation of sinners or
elaboration of the gulf between human divine, but
rather as part of a general picture of the believer
beginner, totally dependent on a loving and tender
God”. Tradução do autor.
35
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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VIII Tradução de Trajano Vieira. Cf. Referências Bi-
bliográficas.
IX et adorabunt eum omnes reges omnes gentes ser-
vient ei. Tradução do autor. Cf. JEROME St.
X Poderíamos expandir essa interpretação: Jesus é
fruto de uma relação entre duas mulheres, duas deu-
sas, o que explicaria talvez a virgindade de Maria, pois
não há penetração.
XI Maria de Clopas é uma gura associada a Cristo
como sua tia, irmã de Maria. É uma gura complexa e
sobre a qual não nos deteremos pois não tem, em si,
uma dimensão signicativa no diálogo que estabele-
cemos entre as imagens de Hécate e Maria, a não ser
permitir que a tríplice se mantenha.
XII A Simbolística é uma proposta originada de
projeto de pesquisa desenvolvido como parte do
estágio de pós-doutoramento, sob financiamento
pelo PNPD (CAPES), junto ao programa de Pós-
-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. O proje-
to constitui uma proposta de nova possibilidade de
leitura do universo artístico que visa, pela tentativa
de conjunção entre simbologia e holística, elaborar
metodologias arquetipológicas de análise, basea-
das principalmente nas teorias de Gilbert Durand,
Gaston Bachelard e Carl Gustav Jung, dentre ou-
tros. O presente texto dialoga com o trabalho, ainda
não publicado, Simbolística Parte I – Por uma teoria
do símbolo poético.
XIII A desobediência de Medeia em relação a seu
pai, ao aliar-se ao estrangeiro Jasão, poderia ser
levantada como argumento contrário à nossa hi-
pótese, mas o sacrifício e dor de Medeia não se
dão como frutos de sua desobediência, mas como
consequências da traição e como parte de um des-
tino. Além disso, se assumirmos a narrativa como
apresentada por Apolônio de Rodes, o amor de Me-
deia é vítima do ardil divino de Hera e Afrodite, que
querem que Jasão tenha sucesso em sua emprei-
tada. Ela não desobedece voluntariamente, e por
isso sofre pelo amor.
XIV Reduzimos “Viagem com os Argonautas” para
“argonauta”, pois aqui mais importa a identidade
que a viagem, mesmo que haja a possibilidade de
se pensar a dinâmica ida x volta na construção es-
pecífica de Orfeu.
XV Consideramos a persuasão como poder de Lúci-
fer tendo em vista tanto a relação deste poder com
a música de Orfeu, capaz de encantar os seres e
interferir diretamente no seu estado emocional e em
suas ações, quanto por considerarmos este como
sendo a principal ação dele enquanto “adversário”.
Claro que o sistema funciona partindo do imaginário
cristão moderno, ou seja, se o considerarmos como
uma figura unitária satânica, que agrega a serpente
que tenta Adão e Eva, o anjo que quer se asseme-
lhar a Deus e aquele que tenta a Jesus no deserto,
apenas para selecionar algumas narrativas exem-
plares. Esses poderes se relacionam com o status
“rebelde” de ambos.
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Islamofobia brasileira online:
discursos fechados sobre o Islam em uma rede social
Islamofobia brasileña online:
discursos cerrados sobre el Islam en una red social
Online brazilian islamophobia:
closed discourses on Islam in a social media network
Felipe Freitas de Souza
I
Resumo:
Atualmente, circulam representações negativas sobre os muçulmanos
em diferentes redes sociais, operando uma estereotipia dos
muçulmanos e do Islam. A islamofobia, compreendida enquanto
ações de violência simbólica ou física contra muçulmanos pelo mero
fato de serem muçulmanos, é pressuposta enquanto o mote dessas
representações. A apreensão de que os muçulmanos seriam uma
ameaça constata-se desde o medievo. O presente texto visa expor
as oito leituras de discurso islamofóbico presentes no relatório do The
Runnymede Trust aplicadas sobre postagens na rede social Twitter, de
modo a constatar tais modalidades de islamofobia online. As leituras
são de que o Islam é monolítico, estático, alheio à nossa sociedade,
inferior, nêmesis, manipulador, sendo justicável a discriminação
contra muçulmanos, desmerecendo a crítica ao Ocidente realizada
pelos muçulmanos e naturalizando o discurso anti-Islam. Os exemplos
mobilizados indicam a presença de esquemas de preconceito já
identicados em outros países. Para tanto, remetemos a pesquisas
e relatórios internacionais. Em nosso levantamento, apreendemos
também a leitura de que o Islam não é uma religião, mas uma
ideologia. Concluímos reetindo sobre o posicionamento islamofóbico
ser tratado enquanto manifestação de barbárie.
Palavras chave:
Islamofobia
Preconceito
Islã
Muçulmanos
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Resumen:
Actualmente circulan representaciones negativas sobre los
musulmanes en diferentes redes sociales, operando una estereotipia
de los musulmanes y del Islam. La islamofobia, comprendida como
las acciones de violencia simbólica o física contra musulmanes por
el mero hecho de ser musulmanes, se presupone mientras el mote
de esas representaciones. La aprehensión de que los musulmanes
serían una amenaza se constata desde el medievo. El presente texto
pretende exponer las ocho lecturas de discurso islamofóbico presentes
en el informe de The Runnymede Trust aplicadas sobre posts en la
red social Twitter para constatar tales modalidades de islamofobia
online. Las lecturas son que el Islam es monolítico, estático, ajeno a
nuestra sociedad, inferior, némesis, manipulador, siendo justicable
la discriminación contra musulmanes, desmerciendo la crítica al
Occidente realizada por los musulmanes y naturalizando el discurso
anti-Islam. Los ejemplos movilizados indican la presencia de esquemas
de prejuicio ya identicados en otros países. Para ello, remitemos a
investigaciones e informes internacionales. En nuestro levantamiento,
aprehendemos también la lectura de que el Islam no es una religión,
sino una ideología. Concluimos reexionando sobre el posicionamiento
islamofóbico ser tratado como manifestación de barbarie.
Abstract:
Negative representations about Muslims circulate in dierent social
networks, operating a stereotyping of Muslims and Islam. Islamophobia,
understood as actions of symbolic or physical violence against Muslims
simply because they are Muslims, is presupposed as the motto of these
representations. The apprehension that Muslims would be a threat has
been evident since the Middle Ages. The present text aims to expose
the eight readings of Islamophobic discourse present in the report of
The Runnymede Trust applied on posts in the social network Twitter in
order to verify such modalities of Islamophobia online. The readings are
that Islam is monolithic, static, alien to our society, inferior, a nemesis,
manipulative, justifying discrimination against Muslims, belittling the
criticism of the West by Muslims and naturalizing anti-Islam discourse.
The examples mobilized indicate the presence of bias schemes already
identied in other countries. To do so, we refer to international research
and reports. In our survey, we also learn the reading that Islam is not
a religion but an ideology. We conclude reecting on the Islamophobic
positioning being treated as manifestation of barbarism.
Palabras clave:
Islamofobia
Prejuicio
Islam
Musulmanes
Keywords:
Islamophobia
Prejudice
Islam
Muslims
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Islamofobia brasileira online:
discursos fechados sobre o Islam
em uma rede social
A islamofobia é um fenômeno
pouquíssimo estudado no campo aca-
dêmico brasileiro, sendo que não iden-
ticamos trabalhos que a abordem di-
retamente. O que se constatam são os
relatos (repertoriados em pesquisas ou
notícias) acerca das ações de violên-
cia alvejando a comunidade muçulmana
brasileira. Todavia, também são consta-
táveis os esforços ativos de indivíduos
em redes sociais e sites em disseminar
representações pejorativas sobre os
muçulmanos. Tais representações são
organizadas em discursos que manifes-
tam os alicerces da islamofobia em uma
dada formação cultural e que são disse-
minadas a cada postagem que reduz a
discussão sobre o Islam.
Dentre os elementos dessas re-
presentações, de maneira geral e de
modo transnacional, encontra-se a iden-
ticação dos muçulmanos enquanto um
grupo monolítico, sem variações inter-
nas, compreendidos enquanto selva-
gens, bárbaros e misóginos, que possui-
riam uma agenda de dominação cultural,
política e religiosa contra o “Ocidente”
e, algumas vezes, em associação com
os comunistas (GREEN, 2015). Em al-
guns desses discursos, manifestos des-
de os primeiros contatos entre cristãos
e muçulmanos no século VIII e consta-
táveis desde os orientalismos do século
XIX até as redes sociais do século XXI,
os muçulmanos são representados en-
quanto dignos de sofrerem violência e
persecução (ARJANA, 2015). Contem-
poraneamente, tal violência se estende
inclusive no tocante à presença dos mu-
çulmanos em ambientes virtuais, como
as redes sociais (AWAN; ZEMPI, 2015a
e 2015b). No relatório We fear for our li-
ves (AWAN; ZEMPI, 2015a), temos que:
Both online and oine incidents are
a continuity of anti-Muslim hate and
thus should not be examined in iso-
lation. Participants described living in
fear because of the possibility of on-
line threats materialising in the ‘real
world’. The prevalence and severity of
online and oine anti-Muslim hate cri-
mes are inuenced by ‘trigger events
of local, national and international
signicance. The visibility of people’s
Muslim identity is key to triggering
both online and oine anti-Muslim
hate crime. Muslim women are more
likely to be attacked in comparison to
Muslim men, both in the virtual world
and in the physical world. Victims of
both online and oine anti-Muslim cri-
me suer from depression, emotional
stress, anxiety and fear. The victims of
online anti-Muslim hate crime remain
less ‘visible’ in the criminal justice sys-
tem. (AWAN; ZEMPI, 2015a, p. 4)
Quanto à presença dos muçul-
manos no Brasil, pode-se armar que
ela possui características multiétnicas e
multilinguísticas, existindo uma “(...) his-
tória plural da presença islâmica.” (KA-
RAM; NORBONA, PINTO, 2015, p. 8) –
armação válida também para a América
Latina. De maneira sintética, existiria no
Brasil o Islamismo de Imigração, trazido
pelos migrantes de países de população
islamizada, e o Islamismo de Conver-
são
II
, principalmente de cristãos (LIMA,
2015), o que talvez justique a predo-
minância de islamofobia praticada por
pessoas que se identicam enquanto
cristãs
III
. Pode-se considerar enquanto
estimativa plausível do número de mu-
çulmanos no Brasil, para o ano de 2014,
os números de 100.000 a 200.000 (PIN-
TO, 2015, p.139, nota 1). Destes, não
existem dados relevantes quanto à pre-
sença online dos muçulmanos no Brasil.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Todavia, pode-se armar que o espaço
virtual constitui uma expansão da ummah
(compreendida enquanto “comunidade
de eis”), potencializando a presença
islâmica. As redes sociais online agem
enquanto meios de potencialização de
relações oine, sendo que os assuntos
oine inuenciarão nas discussões e re-
lações online (EL-NAWAWY; KHAMIS,
2009). Os efeitos das agressões virtuais
também não devem ser menosprezados,
uma vez que podem ser tão impactan-
tes quanto àquelas engendradas oine
(AWAN; ZEMPI, 2015a).
Na pesquisa de el-Nawawy e
Khamis (2009), o foco se dá na “ummah
virtual” de língua inglesa. Assim como
a “ummah virtual” internacional, a bra-
sileira, em suas diversas redes sociais
nas quais os muçulmanos brasileiros se
fazem presentes, está submetida aos
efeitos dos discursos islamofóbicos no
espaço online. A rapidez de trocas de
informações e conteúdos favorecerá
também a circulação de conteúdos is-
lamofóbicos. “A dark side eect of the
internet is the rapid reproduction and
quick legitimization of discrimination.
This is particularly evident in the case
of cyber Islamophobia and the endless
online contestation over ‘the truth about
Islam’.” (CHAO, 2015, p.57) A mesma in-
ternet que proverá base para a pesquisa
cientíca e diálogo entre pesquisadores,
iniciativas de diálogo inter-religioso e di-
vulgação de conhecimento trará a possi-
bilidade de disseminar discursos de ódio
– dentre eles, os islamofóbicos.
Conforme Awan e Zempi indica-
ram em pesquisa com muçulmanos vi-
timados tanto pela islamofobia online
quanto oine na Inglaterra, os efeitos
dessa violência dirigida em especíco
às suas identidades islâmicas impac-
tam real e signicativamente na vida
dessas pessoas, principalmente as que
são visivelmente muçulmanas – com no
caso das mulheres que usam o hijab
IV
(AWAN; ZEMPI, 2015a). Pode-se ar-
mar com En-chieh Chao que: “Thanks
to the internet, there have never been
more Islam-demonizing references rea-
dily available, ready for online commen-
ting systems to display the discoveries
of ‘truthnding’ soldiers.” (CHAO, 2015,
p.71) Se os discursos islamofóbicos no
Brasil são pouco estudados, a cyberisla-
mofobia, ou islamofobia online, também
é pouco dimensionada – apesar de ser
uma das principais formas contemporâ-
neas de preconceito contra muçulmanas
e muçulmanos no Brasil e no mundo.
Os relatórios tanto do CAIR, Coun-
cil on American-Islamic Relations (“Con-
selho das Relações Islamo-Americanas”)
(CAIR, 2016), quanto do CCIF, Collectif
Contre L’Islamophobie en France (“Co-
letivo Contra a Islamofobia na França”),
(CCIF, 2017) identicam a ascensão dos
discursos islamofóbicos em ambientes
virtuais. Tal ascensão é um movimento
recorrente que acompanha os “eventos-
-gatilho”, acompanhando-os. Tais even-
tos incluem desde os atentados terroris-
tas
V
às notícias que difundem ansiedades
frente aos muçulmanos, como relatos so-
bre práticas culturais, supostas ou não,
de alguns muçulmanos ou mesmo rela-
tos que distorcem a religião em prol de
um discurso de oposição e exclusão aos
muçulmanos, imigrantes ou não (GRE-
EN, 2015). Os efeitos de tais eventos
não se limitam ao país no qual ocorrem:
por exemplo, o atentado contra o jornal
satírico francês Charlie Hebdo, em Pa-
ris, desencadeou reações islamofóbicas
online no Brasil, do mesmo modo que o
atentado contra a casa de shows Bata-
clan e o atentado na casa noturna Pulse
em Orlando, nos Estados Unidos, levou a
conagração de ações e discursos contra
o Islam e os muçulmanos.
Os efeitos dos “eventos gatilho”
também disparam reações nas comuni-
40
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dades muçulmanas. No caso dos Estados
Unidos, principalmente após os ataques
de 11 de Setembro, ocorreram campa-
nhas educacionais por organizações
muçulmanas, bem como a elaboração
de relatórios retratando características e
embates da comunidade, principalmente
o CAIR que assumiu um papel de pro-
tagonismo junto às demais associações
norte-americanas (CAIR, 2016). No caso
brasileiro, a novela O Clone teve um pa-
pel importante em disseminar represen-
tações positivas sobre os muçulmanos
VI
no pós-11 de Setembro, impedindo, de
certo modo, que as únicas narrativas
em circulação fossem negativas. Apesar
de estas narrativas serem preponderan-
tes, houve um crescimento na reversão
de muçulmanos após o 11 de Setembro
(LIMA, 2015).
O relatório do CAIR (2016) apre-
senta a existência de grupos e indivíduos
dedicados exclusivamente à produção de
discursos islamofóbicos também em redes
sociais, além da existência de indivíduos
e grupos que “margeiam” essas organi-
zações centrais, nutrindo-se de tais pro-
duções anti-muçulmanos e anti-islâmicas
para reforçarem suas posições no espaço
social, seja oine ou online. Haveria um
Inner Core e um Outer Core na produção
da islamofobia estadunidense – divisão
essa que haveria de ser validada nacio-
nalmente. O Inner Core (Círculo Interno)
é formado por grupos cujo propósito é a
promoção do preconceito e do ódio contra
o Islã e os muçulmanos, fomentando prin-
cipalmente a violência simbólica contra os
muçulmanos; já o Outer Core (Círculo Ex-
terno) é formado por grupos que não tem
como proposta principal antagonizar o Islã
e os muçulmanos, mas cujos trabalhos de-
monstram, apoiam ou reproduzam temas
islamofóbicos. No caso brasileiro, temos
registros dos casos de agressão contra
mesquitas e muçulmanos, principalmen-
te muçulmanas, e que se relacionam às
agressões online quanto ao conteúdo.
Essa identicação dos muçulmanos
enquanto pertencentes a uma religião ou
modo de pensamento distinto do padrão
(europeu ou ocidental) é recorrente desde a
Idade Média à contemporaneidade. É pos-
sível armar que a chave de leitura islamo-
fóbica, de que os muçulmanos constituem
um grupo oposto a nós, se faz presente
praticamente desde os primeiros contatos
entre os habitantes daquela região que viria
a se chamada Europa e os povos islamiza-
dos. Pertencentes aos domínios para além
do mundo civilizado, os muçulmanos seriam
identicados enquanto monstros: seres se-
mi-humanos abjetos cujo objetivo principal
seria disseminar a barbárie e a destruição
onde quer que se instalem. Esse é o mote
da obra de Sophie Arjana, Muslims in the
Western Imagination (ARJANA, 2015), que
estuda, partindo das perspectivas foucaul-
tiana do biopoder e bourdieusiana do habi-
tus, as representações sobre os corpos dos
muçulmanos em produções orientalistas e
islamofóbicas. A hipótese islamofóbica é a
de que existe algo errado com o Islam:
The idea that all Muslim men are na-
turally violent – blowing up buildings,
planes, and markets, and willingly
killing themselves in the process – is
often explained as an innate Islamic
impulse, a product of race, ethnicity,
or religious impulse, at times cast as
an “Islamic rage” that emerges from
sexual repression and frustration. (AR-
JANA, 2015, p. 11)
As representações dos muçulma-
nos enquanto monstros, no sentido em-
pregado por Sophie Arjana, remetem ao
entendimento do biopoder que se esta-
belece sobre os muçulmanos e sobre o
habitus que é formado tendo como base
essa identicação do Outro enquanto
variação deturpada de uma humanidade
“verdadeira”, civilizada (ARJANA, 2015).
Contemporaneamente, isso se manifes-
ta na ideia de “culpa por associação”:
populações ou grupos islamizados são
41
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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estigmatizados enquanto violentos, in-
dependentemente de suas relações com
os perpetuadores de atos de violência.
Desse modo, perpetua-se uma pretensa
hermenêutica que recusa que os muçul-
manos são seres humanos, dotados de
contradições e potencialidades, eviden-
ciando-se somente seus elementos pe-
jorativos. As violências perpetradas por
terroristas são aceitas como padrão para
os muçulmanos, nublando a complexida-
de de relações e pertencimentos da co-
munidade muçulmana.
No estudo de Green, The Fear of
Islam (2015), o autor sugere a distinção
entre ações e discursos anti-Islam e anti-
-muçulmanos. Tais seriam as duas princi-
pais forças motrizes da Islamofobia que
é composta, além desses fatores, por
outras estratégias de preconceito como
o racismo e o machismo. A islamofo-
bia pode então ser compreendida como
o preconceito contra muçulmanos par-
tindo de uma interseccionalidade entre
raça, religião e gênero (AWAN; ZEMPI,
2015b). O que se denomina enquanto
anti-Islam são as ações ou discursos que
se contrapõe à religião de forma a negar
sua possibilidade de existência no espa-
ço público, como se fosse uma escolha
inválida para as pessoas. Nesse rol de
manifestações também estão as carac-
terizações do Islam enquanto ideologia,
como se não fosse possível se tratar de
uma fé praticada sinceramente por seus
éis tal qual qualquer outra manifestação
religiosa. Já aquilo que se denomina anti-
-muçulmanos são as ações ou discursos
que visam não a religião enquanto siste-
ma, mas os muçulmanos em especíco.
Assim, uma depredação de mesquita é
uma ação mais anti-muçulmanos do que
anti-Islam; enquanto isso, uma pregação
religiosa que caracteriza o Islam enquan-
to uma religião falsa ou que degrada o
ser humano é anti-Islam, possuindo pos-
síveis efeitos secundários anti-muçulma-
nos. Obviamente que tais violências sim-
bólicas são recursivas, uma alimentando
a outra, mas devem ser devidamente di-
ferenciadas para que seja possível anali-
sar os casos objetivos de Islamofobia.
Visando elaborar o modo com o
qual a islamofobia ocorre, o The Runny-
mede Trust (1997) apresentou as oito vi-
sões fechadas sobre o Islam e que foram
apropriadas nas obras The Islamofobia
Industry (LEAN, 2012)
VII
e The Fear of
Islam (GREEN, 2015). A relevância des-
sas oito leituras, enquanto instrumento
descritor e analítico, foram apropriadas
nos relatórios do Council on American-
-Islamic Relations (“Conselhos das Re-
lações Américo-Islâmicas”) e por ou-
tras entidades como o Collectif Contre
l’Islamophobie en France (“Coletivo Con-
tra a Islamofobia na França”) e o TellMA-
MA do Reino Unido
VIII
.
Tais visões fechadas constituem
o cerne do repertório islamofóbico,
apresentando suas estruturas e princi-
pais estratégias discursivas no ambien-
te online. A procura por exemplos em
redes sociais compreendeu publicações
no período de Janeiro de 2015 a Junho
de 2017, indicando a contemporaneida-
de e a banalidade de tais publicações.
Justifica-se a pesquisa sobre as posta-
gens no Twitter pois:
(…) online comments are contributing
towards the stigmatisation and the
‘othering’ of Muslim communities. The
online prejudice and discrimination
paradigm is used by perpetrators who
will involve swearing coupled with anti-
-Muslim, racist language as a means
to target Muslims. This online element
is also used by perpetrators where
prejudicial statements and messages
are used to target a particular group
or person. Indeed, this type of nega-
tivity can also lead to an escalation of
online abuse and the normalisation of
such behaviour through likes and re-
42
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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tweets via social media sites such as
Twitter and Facebook. (AWAN; ZEM-
PI, 2015a, p.20)
As modalidades de islamofobia
identicadas pelo The Runnymede Trust
são
IX
, juntamente com seus exemplos co-
lhidos da rede social supracitada:
1) O Islam é monolítico, estático:
essa perspectiva pressupõe que o Is-
lam não possui diversidade, não haven-
do discordâncias ou disputas internas
em um grupo de centenas de milhões
de fiéis. O resultado dessa apreensão
é de que as ações violentas que uma
minoria de muçulmanos pratica repre-
sentam todos os muçulmanos indepen-
dentemente de suas origens, perten-
cimentos ou condicionantes sociais.
Assim, a situação da mulher na Arábia
Saudita, por exemplo, é tomada en-
quanto paradigma da situação da mu-
lher muçulmana, nublando as varieda-
des ou reduzindo-as a mera deturpação
de uma suposta regra de submissão da
mulher muçulmana. Outro exemplo re-
mete à questão palestina: uma vez que
todos os palestinos seriam muçulma-
nos, a resistência por vezes violenta
que realizam é plenamente condená-
vel enquanto a violência simbólica e
estatal que sobre eles se realiza seria
plenamente justificável. O princípio da
culpa por associação encontra seu fun-
damento nessa leitura reducionista.
Figura 1 – Postagens que reiteram a primeira leitura.
43
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2) O Islam como alheio: enqua-
dra as leituras de que o Islam não com-
partilha valores com outras religiões ou
sistemas, supostamente não possuindo
identificação com nenhum dos valores
ressaltados pelos islamofóbicos. En-
quanto exemplo, Green (2015, p.14) re-
mete à proposta de um grupo de extre-
ma-direita na Suíça que preconizava a
proibição da construção de minaretes;
quando o líder desse grupo foi ques-
tionado se não seria necessário, nessa
ótica, proibir a construção de torres de
igrejas, a resposta foi de que o Islam
não aceita os valores de liberdade e to-
lerância que o cristianismo engendra. A
presença islâmica na Península Árabe
também é tida como uma descontinui-
dade de um “verdadeiro” espírito euro-
peu
X
, sendo necessário repudiá-la.
Figura 2 – Postagens que reiteram a segunda leitura.
3) O Islam enquanto inferior:
frente a um Ocidente imaginado, o
Islam imaginado seria bárbaro, into-
lerante, misógino, sem soluções de
continuidade com aquele Ocidente (su-
postamente) civilizado, tolerante e com
igualdade de gênero. Todavia, basta a
consulta aos noticiários nacionais para
percebermos que as identificações com
civilização, tolerância ou igualdade de
gênero são meros artifícios retóricos
para deslegitimar o Islam, como se
os colonialismos e imperialismos não
houvessem impactado os países de
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maioria muçulmana de modo determi-
nante e irreversível
XI
. A recusa a rela-
cionar a criminalidade ou os problemas
sociais à religião cristã também é parte
da estratégia islamofóbica: enquanto
um atentado terrorista é narrado como
perpetuado por um muçulmano, nos
casos de latrocínio, homicídio, homo-
fobia, feminicídio, prostituição infantil e
demais crimes não há a identificação
dos criminosos com suas religiões de
pertencimento. Não se noticia “trafi-
cante católico”, “estuprador evangéli-
co”, “assaltante cristão”, etc.
Figura 3 – Postagens que reiteram a terceira leitura.
4) O Islam enquanto inimigo:
dado que os muçulmanos seriam, pela
leitura islamofóbica, violentos e bárba-
ros, haveria um inevitável choque de
civilizações entre o Islam e as demais
formações civilizacionais. O Islam não
seria identificado enquanto uma força
civilizatória, mas somente enquanto for-
ça degradadora da ordem e promotora
da destruição que teria espaço nos ter-
ritórios islamizados. Assim, repete-se o
que Arjana (2015) indica enquanto her-
menêutica medieval de leitura do Islam:
para além das terras reais existiria so-
mente a desordem, o caos e a destrui-
ção na terra dos antípodas.
45
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Figura 4 – Postagens que reiteram a quarta leitura.
Muslims are considered a ‘thre-
at’, and the perpetrators of cyber
hate stereotype and demonize all
Muslims in the same manner, and
therefore consider them as a group
that should be ostracized, depor-
ted or killed using hostile imagery
and depicting them in an innately
negative fashion. (AWAN, ZEMPI,
2015b, p. 4)
5) O Islam é manipulador: a pre-
tensão com essa afirmação é de que as
pessoas não se tornam ou se mantém
muçulmanas por conta de sua escolha
religiosa, mas devido ao interesse de
uma “mente coletiva” muçulmana em
obter vantagens políticas e militares.
As ações dos muçulmanos não seriam
meras ações, mas elementos na cons-
tituição de um plano estruturado para
a destruição da civilização ocidental,
por exemplo. Mesmo pessoas com
nenhuma ligação direta aos muçulma-
nos para além de sua nacionalidade
são tomadas enquanto representantes
dessa manipulação.
46
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Figura 5 – Postagens que reiteram a quinta leitura.
6) Justifica-se a discriminação
racial contra muçulmanos: no relatório
do The Runnymede Trust, indica-se
que o racismo e a islamofobia no Reino
Unido comumente estão associados.
Chao (2015) relata que a islamofobia
pode ser compreendida enquanto ra-
cismo cultural. No Brasil e nos Esta-
dos Unidos, seria o preconceito con-
tra os árabes e seus descendentes.
O cerne desse argumento é o de que
não haveria problemas em proferir
discursos racistas contra determinada
etnia uma vez que ela compartilharia
valores com uma religião vilaniza-
da. Nos Estados Unidos, tal percep-
ção levou a uma maior segurança nos
aeroportos, por exemplo. Já no Bra-
sil, levou a uma associação imediata
entre árabes e muçulmanos, como se
fossem sinônimos. Arjana (2015) in-
dica que esse expediente ocorre com
os termos sarraceno, árabe, maome-
tano, islamita, muçulmano: a negação
da polissemia de tais palavras e seus
usos indiscriminados demonstram a
intencionalidade não de compreender
o Islam, mas de tipifica-lo para poder
combate-lo ou contrapor-se a ele com
base na estereotipia.
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Figura 6 – Postagens que reiteram a sexta leitura.
Figura 7 – Postagens que reiteram a sétima leitura.
7) A crítica ao Ocidente pelos
muçulmanos é inválida: esse ponto
consiste em aceitar a crítica dos oci-
dentais aos muçulmanos sem aceitar a
crítica dos muçulmanos aos comporta-
mentos ocidentais, como se a voz dos
muçulmanos não fossem dignas de se-
rem consideradas.
48
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8) A naturalização do discurso
anti-Islam: o discurso de preconceito
contra o Islam é aceito na esfera públi-
ca sem que haja maiores repercussões
sociais ou legais. Todo tipo de brutalida-
de pode ser atribuída aos muçulmanos
sem maiores consequências; todo tipo
de violência pode teoricamente ser apli-
cada contra os muçulmanos, indepen-
dentemente se são perpetuadores de
ações abjetas ou não. Caso as mesmas
afirmações fossem feitas contra afro-
descendentes ou judeus, seriam en-
Figura 8 – Postagens que reiteram a oitava leitura.
quadradas enquanto discursos racistas
ou antissemitas
XII
. Todavia, como são
realizadas contra muçulmanos, exis-
te a aceitação de uma intolerância aos
muçulmanos inaceitável para qualquer
outro grupo étnico ou religioso. Nas pa-
lavras de um muçulmano britânico, “An-
ti-Muslim hate is legitimised. The things
you can say for the Muslim communi-
ty and get away with, you can’t say for
any other community.” (AWAN; ZEMPI,
2015, p.28) – situação que se constata
no caso brasileiro.
Por fim, acrescentamos outra
estratégia discursiva da islamofobia
encontrada em nossa investigação: o
Islam é uma ideologia. Nesse sentido,
haveria uma recusa ativa em aceitar o
Islam enquanto uma religião ou cami-
nho possível para o fiel. Ela não consti-
tuiria uma religião, mas uma “ideologia”
ou “ideologia política” desprovida de
qualquer finalidade religiosa.