Desterritorialización, cultura internacional-popular
e identidad en el cine: El caso del western chileno “Sal”
Deterritorialization, international-popular culture, and identity
on cinema: The case of the Chilean western ‘Sal’
PABLO MATUS
A errância no cinema de Walter Salles
The wandering in the lm by Walter Salles
CRISTIANE PIMENTEL NEDER
Chora não coleguinha: uma análise da inuência
da formação discursiva do movimento feminista
em músicas da dupla Simone & Simaria
Chora não coleguinha:
an analyzes of the discursive formation’s inuence in
the feminist movement in the Simone & Simaria duo’s songs
CRISTIANO MAX PEREIRA PINHEIRO, ROSANA VAZ SILVEIRA,
DANIELE PELETTI DE SOUZA, e ESTER QUARESMA DA SILVA
Extrañamiento y desencanto.
La mirada de documentalistas alemanes sobre
a transición democrática argentina
Estrangement and disenchantment. The perspective of German
documentary lmmakers on Argentina’s democratic transition
PAOLA MARGULIS
Um “ofício de cartógrafo mestiço”:
a proposta metodológica de Jesús Martín-Barbero
como base para um estudo de caso
da telenovela mexicana Rubi
A “mestizo cartographer’s craft”:
the methodological proposal of Jesús Martín-Barbero
as the basis for a case study of the Mexican telenovela Rubi
ANA LUCIA ENNE, OHANA BOY OLIVEIRA, e JOANA D’ARC DE NANTES
Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus:
testemunho de uma existência condenada
Quarto de Despejo of Carolina Maria de Jesus:
testimony of a doomed existence
GUSTAVO ALVARENGA OLIVEIRA SANTOS
Pornô Cultural: da concepção pornográca como
Indústria Cultural ao movimento Feminista Pornô
Porn Cultural: from pornographic conception like
Cultural Industry to the Feminist Porn movement
FLÁVIA LAGES DE CASTRO e JULIANA CRESPO
Ano VIII nº 15 - abr/2018 a set/2018
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano VIII nº 15 - abr/2018 a set/2018
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Isabel Babo - Universidade Lusófona do Porto, Portugal
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano VIII nº 15, (ABR/2018 a SET/2018). – Niterói, RJ: [s. N.], 2018.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário / Summary
EDITORIAL / EDITORIAL 06
ARTIGOS / ARTICLES 08
Desterritorialización, cultura internacional-popular
e identidad en el cine: El caso del western chileno “Sal”
Deterritorialization, international-popular culture,
and identity on cinema: The case of the Chilean western ‘Sal’
PABLO MATUS 09
A errância no cinema de Walter Salles
The wandering in the lm by Walter Salles
CRISTIANE PIMENTEL NEDER 24
Extrañamiento y desencanto.
La mirada de documentalistas alemanes
sobre la transición democrática argentina
Estrangement and disenchantment.
The perspective of German documentary lmmakers
on Argentina’s democratic transition
PAOLA MARGULIS 35
Chora não coleguinha: uma análise da inuência
da formação discursiva do movimento feminista
em músicas da dupla Simone & Simaria
Chora não coleguinha: an analyzes of
the discursive formation’s inuence in the feminist movement
in the Simone & Simaria duo’s songs
CRISTIANO MAX PEREIRA PINHEIRO, ROSANA VAZ SILVEIRA,
DANIELE PELETTI DE SOUZA, e ESTER QUARESMA DA SILVA 48
Um “ofício de cartógrafo mestiço”:
a proposta metodológica de Jesús Martín-Barbero
como base para um estudo de caso da telenovela mexicana Rubi
A “mestizo cartographer’s craft”:
the methodological proposal of Jesús Martín-Barbero
as the basis for a case study of the Mexican telenovela Rubi
ANA LUCIA ENNE, OHANA BOY OLIVEIRA, e JOANA D’ARC DE NANTES 62
Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus:
testemunho de uma existência condenada
Quarto de Despejo of Carolina Maria de Jesus:
testimony of a doomed existence
GUSTAVO ALVARENGA OLIVEIRA SANTOS 77
Pornô Cultural: da concepção pornográca
como Indústria Cultural ao movimento Feminista Pornô
Porn Cultural: from pornographic conception
like Cultural Industry to the Feminist Porn movement
FLÁVIA LAGES DE CASTRO, e JULIANA CRESPO 90
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Editorial
7
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Para esta edição – a décima quinta
– não abrimos nenhum Dossiê. Nossa pro-
posta foi publicar os artigos de uxo contínuo
que havíamos recebido, garantindo assim
que não cassem mais tempo na espera.
Mesmo a temática de nossa revista sendo
ampla e interdisciplinar, os seis artigos aqui
editados transitam no campo das artes e da
comunicação, indo do cinema à literatura,
passando pela música e pela telenovela.
Trazemos então neste Editorial mais
um brevíssimo resumo dos artigos.
O artigo Desterritorialización, cultura
internacional-popular e identidad en el cine: El
caso del western chileno “Sal”, do chileno Pablo
Matus, propõe um diálogo com a tradição de
estudos culturais aplicados à produção de bens
simbólicos, particularmente sobre as formas de
representação da identidade latino-americana
em objetos de mídia de distribuição globaliza-
da, neste caso, o lme chileno “Sal” (2012).
Cristiane Pimentel Neder, propõe em
“A errância no cinema de Walter Salles” uma
análise da obra cinematográca de Walter
Salles, especialmente com foco no lme
Terra Estrangeira, buscando mostrar que as
escolhas do diretor inuenciam no processo
criativo, ou são parte dele, e que todo lme é
um “lho” com o DNA do diretor, que traz na
sua genética, tanto a sua formação acadêmi-
ca, artística, quanto as suas subjetividades,
seu estilo e sua identidade.
Extrañamiento y desencanto. La mira-
da de documentalistas alemanes sobre la tran-
sición democrática argentina”, de Paola Mar-
gulis, analisa o olhar de dois cineastas alemães
sobre o processo de transição democrática na
Argentina através da análise de dois documen-
tários, mostrando que estes lmes denunciam
distintos aspectos do passado traumático ar-
gentino, marcando as diculdades que o Es-
tado ia encontrando ao chegar na década de
oitenta e no começo dos anos noventa para
condenar os crimes de lesa humanidade co-
metidos durante a última ditadura militar.
Em “Chora não coleguinha: uma aná-
lise da inuência da formação discursiva do
movimento feminista em músicas da dupla
Simone & Simaria”, os autores analisam o
discurso das letras de músicas da dupla ser-
taneja e sua associação com o movimento
feminista, conforme divulgado pelas canto-
ras em suas entrevistas na mídia.
No artigo “Um “ofício de cartógrafo
mestiço”: a proposta metodológica de Jesús
Martín-Barbero como base para um estudo
de caso da telenovela mexicana Rubi” suas
autoras tomam por base as propostas teóri-
cas e metodológicas de Jesús Martín-Barbe-
ro, em seus livros Ofício de cartógrafo - Tra-
vessias latino-americanas da comunicação
na cultura e Dos meios às mediações: co-
municação, cultura e hegemonia, para dis-
cutir a cartograa como inspiração metodo-
lógica para se analisar objetos televisivos e
suas narrativas na contemporaneidade.
Gustavo Oliveira Santos, em “Quar-
to de Despejo de Carolina Maria de Jesus:
testemunho de uma existência condenada”,
busca demonstrar que esta obra é um tes-
temunho de uma existência condenada. Em
um primeiro momento explica-se o que vem
a ser a existência condenada a partir de
uma crítica decolonial à ontologia fenome-
nológico-existencial de Heidegger e Sartre.
Em um segundo momento, demonstra-se a
articulação da narrativa de Carolina Maria
de Jesus com a noção trabalhada na ses-
são anterior.
Em “Pornô Cultural: da concepção
pornográca como Indústria Cultural ao mo-
vimento Feminista Pornô”, Flávia Lages de
Castro e Juliana Crespo discutem a sexuali-
dade como campo e suas disputas, abordan-
do a categoria pornograa para entendimento
de sua conguração como fenômeno social.
Boa leitura!
Os editores.
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Artigos
9
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Desterritorialización, cultura internacional-popular e identidad
en el cine: El caso del western chileno “Sal”
Deterritorialization, international-popular culture, and identity on
cinema: The case of the Chilean western ‘Sal’
Deterritorialização, cultura internacional-popular e identidade no
cinema: o caso da western chileno “Sal”
Pablo Matus
I
Resumen:
El presente artículo dialoga con la tradición de estudio cultural asociado
a la producción de bienes simbólicos, particularmente respecto de
las formas de representación de la identidad local latinoamericana
presentes en objetos mediales de distribución globalizada. En este
caso se tomará como pieza de análisis el lme chileno “Sal” (2012),
que se declara como perteneciente al género del western y posee
un argumento acorde con el canon reconocible al mismo, pero fue
dirigida por un argentino (Diego Rougier), protagonizada por un
español (Fele Martínez) y chilenos (Patricio Contreras y Javiera
Contador, entre otros), y cuenta con locaciones en España y Chile.
Para enfrentar el análisis se emplean principalmente conceptos del
sociólogo brasileño Renato Ortiz respecto de la globalización y la
mundialización, así como de lo que lo que él llama desterritorialización
y cultura internacional-popular.
Palabras clave:
Globalización
Desterritorialización
Cultura
Identidad
Cine
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Abstract:
This paper propose a dialogue with the tradition of cultural studies
applied to the production of symbolic goods, particularly about the
forms of representation of Latin American identity on media objects
of globalized distribution. In this case the Chilean lm “Sal” (2012) will
be taken as a piece of analysis, which is declared as belonging to the
western genre and has an argument according to the recognizable
canon,but was directed by an Argentine (Diego Rougier), starring a
Spanish (Fele Martínez) and Chileans (Patricio Contreras and Javiera
Contador, among others),and has locations in Spain and Chile. For the
analysis, concepts of the Brazilian sociologist Renato Ortiz regarding
globalization are used, as well as what he calls deterritorialization and
international-popular culture.
Resumo:
Este artigo propõe um diálogo com a tradição de estudos culturais
aplicados à produção de bens simbólicos, particularmente sobre as
formas de representação da identidade latino-americana em objetos
de mídia de distribuição globalizada. Neste caso, o lme chileno
“Sal” (2012) será tomado como uma análise, que é declarado como
pertencente ao gênero western e tem um argumento de acordo
com o cânon reconhecível, mas foi dirigido por um argentino (Diego
Rougier), estrelado por um espanhol (Fele Martínez) e chilenos
(Patricio Contreras e Javiera Contador, entre outros), e tem locações
na Espanha e no Chile. Para a análise, são utilizados conceitos do
sociólogo brasileiro Renato Ortiz sobre globalização, bem como o que
ele chama de desterritorialização e cultura internacional-popular.
Keywords:
Globalization
Deterritorialization
Culture
Identity
Cinema
Palavras chave:
Globalização
Desterritorialização
Cultura
Identidade
Cinema
11
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Desterritorialización, cultura
internacional-popular e identidad en el
cine: El caso del western chileno “Sal”
1. Introducción
En las últimas décadas el concep-
to de globalización se ha impuesto como
uno de los tópicos principales en el debate
académico y profesional de diversos cam-
pos, como la sociología (p.e. BAUMAN,
2010; LUHMANN, 1997; RITZER, 2007),
la politología (p.e. CASTLES; DAVIDSON,
2000; INGLEHART, 2000; OUGAARD,
2004), la administración (p.e. JENSEN;
SANDSTRÖM, 2011) e incluso las cien-
cias ambientales (KÜTTING, 2004), solo
por mencionar algunos. Aunque parece
un asunto nuevo, de hecho el fenómeno
ha sido representado mediante metáfo-
ras desde hace tiempo, como ocurrió con
las nociones de aldea global (MCLUHAN;
POWERS, 1995 [1989]) y sociedad de la
información (CASTELLS, 1999).
A partir de la mayoría de estas lec-
turas es posible advertir que el desarrollo
tecnológico ha sido considerado general-
mente como la variable clave, desde la
masicación de medios como la radio y
la televisión, a principios del siglo pasa-
do, hasta el auge contemporáneo de in-
ternet, los medios sociales (p.e. YouTube,
Twitter) y los aparatos portátiles para la
interconexión (p.e. teléfonos móviles). En
consecuencia, la tecnología ha sido vista
casi siempre como responsable de este
cambio en la sociedad, particularmente en
las formas de relación, de producción y de
trabajo (CHAREONWONGSAK, 2002).
Pese a esto, los efectos de la globa-
lización no se reducen a los económicos y
tecnológicos. Se ha estudiado también su
impacto en la cultura misma a través de
la producción y distribución global de bie-
nes simbólicos (LIZARDO, 2008), es decir,
productos intangibles de consumo y efec-
to esencialmente cultural, como los imagi-
narios producidos y difundidos por los me-
dios masivos (DEMONT-HEINRICH, 2011;
KRAIDY, 2002). Todo esto se advierte por
ejemplo en los ahora clásicos estudios cul-
turales británicos, cuando se pensó en los
efectos de la televisión (WILLIAMS, 1974)
y el cine (HALL, 1989) y su vínculo con la
generación de nuevas identidades (HALL;
JEFFERSON, 1993).
Esa tradición de estudio cultural
asociado a la producción y distribución de
bienes simbólicos motiva el presente artí-
culo, que busca indagar en las formas de
representación de la identidad local lati-
noamericana, como conjunto o como ex-
presiones de nacionalidad, presentes en
objetos mediales de producción y distribu-
ción globalizada, sobre todo cuando dicho
producto pertenece a un género que a su
vez se identica con patrones culturales
tradicionalmente distintos de lo latinoame-
ricano.
En este caso se tomará como pie-
za de análisis el lme chileno “Sal” (2012),
que se declara como perteneciente al gé-
nero del western y posee un argumento
acorde con el canon reconocible al mismo
(p.e. locación en exteriores desérticos y
conictos que se resuelven mediante el
uso de armas de fuego), pero fue dirigida
por un argentino (Diego Rougier), protago-
nizada por un español (Fele Martínez) y
chilenos (Patricio Contreras, Javiera Con-
tador y Sergio Hernández, entre otros), y
cuenta con locaciones en España y Chile.
Para enfrentar el análisis desde
una perspectiva latinoamericana se em-
plearán principalmente conceptos del so-
ciólogo brasileño Renato Ortiz respecto
de la globalización y la mundialización, así
como de lo que lo que él llama desterrito-
rialización y cultura internacional-popular.
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
2. Marco teórico
2.1. Globalización desde
América Latina
Entre las lecturas que desde América
Latina se han hecho de la globalización hay
dos que destacan por su pertinencia al tema
de este artículo: la del argentino Néstor Gar-
cía Canclini y la del brasileño Renato Ortiz.
Uno de los principales aportes de Gar-
cía Canclini al estudio de la globalización
II
es la
idea de hibridación, que remite a procesos so-
cioculturales en los que estructuras o prácticas
discretas, que existían en forma separada, se
combinan para generar nuevas estructuras,
objetos y prácticas (GARCÍA CANCLINI, 2001
[1990], p. 15). Para él, la globalización puede
caracterizarse, especialmente en la realidad
latinoamericana, por el fomento de nuevas
prácticas y estructuras que no necesariamente
dan cuenta de nuevas identidades autónomas
sino más bien de realidades heterogéneas,
que desde este punto de vista constituyen hi-
bridaciones interculturales (p. 17).
Dicho de otro modo, la globaliza-
ción no sería un fenómeno exclusivamente
contemporáneo, fruto del avance tecnoló-
gico digital, sino que las culturas híbridas
podrían reconocerse en América Latina por
aspectos como el mestizaje o el sincretis-
mo religioso, hechos sociales muy anterio-
res pero no por eso menos vigentes.
Esta mirada puede llevarse a la in-
terpretación de productos culturales mediáti-
cos actuales. Por ejemplo, en el rock & roll y
el heavy metal, estilos musicales nacidos en
Estados Unidos pero que han tenido casos
notables de producción y difusión latinoameri-
cana, como el movimiento de la Nueva Ola en
Chile y bandas como Rata Blanca en Argenti-
na, respectivamente. Más allá de sus conno-
taciones de homenaje (p.e. muchos cantantes
de la Nueva Ola usaron seudónimos e incluso
cantaron en inglés; el sonido y la voz de Rata
Blanca fácilmente tributan a bandas anglo-
sajonas como Iron Maiden), estas expresiones
culturales populares, más que imitaciones,
dan cuenta de una hibridación de identidades
que se advierte por ejemplo en la validación de
ambas en sus respectivos mercados locales.
Pero ¿qué elementos conguran
esta hibridación? ¿Qué aspectos pueden
reconocerse como de una y otra cultura?
En este punto la lectura de Renato Ortiz
parece más útil para el análisis.
La premisa de Ortiz (2004 [1994]) es
la existencia de procesos globales que tras-
cienden los grupos, las clases sociales y las
naciones, en el marco de una sociedad glo-
bal. Para él, con el cambio de milenio se hizo
evidente que los seres humanos se encuen-
tran “interligados, independientemente de
sus voluntades” (p. 17), es decir, que somos
ciudadanos del mundo pero no en el signi-
cado cosmopolita del viajero sino en uno cul-
tural, más amplio y a la vez complejo, pues
ha sido el mundo el que ha llegado hasta las
personas, penetrando en su cotidiano.
La hipótesis es que “la mundialización
dela cultura se revela a través de lo cotidiano”
(ORTIZ, 2004, p. 18): la alimentación estanda-
rizada (p.e. McDonald’s) o que comparte pa-
trones cuasi-ideológicos (p.e. el veganismo) o
de aspiración identitaria (p.e. el auge de la die-
ta mediterránea) y la vestimenta regida por cá-
nones internacionales explícitos (p.e. la indus-
tria medial en torno a la moda) e implícitos(p.e.
la oferta de los centros comerciales, limitada a
los dictámenes de la moda), son casos.
Ortiz (2004, pp. 31-33) critica los
enfoques globalizadores tradicionales por
su foco en los aspectos de la globalización
económica y la suposición de que las de-
más esferas de la vida humana, incluyendo
la cultura, están supeditadas a ella, y por
la preeminencia de enfoques sistémicos
estructuralistas, que dejan de lado al sujeto
humano, agente cultural por excelencia (pp.
33-35). A partir de esta distinción construye
su propia lectura: el término global(ización)
13
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
lo usa para referirse a procesos económicos
y tecnológicos, reservando mundial(ización)
para los procesos culturales (p. 37).
La categoría mundo, entonces, in-
cluye a lo global pero se expande al sumar
la visión de mundo, el universo simbólico de
la civilización: “Por eso preero decir que el
inglés es una lengua mundial. Su transver-
salidad revela y expresa la globalización de
la vida moderna; su mundialidad preserva
a los otros idiomas en el interior de este es-
pacio transglósico” (ORTIZ, 2004, p. 38).
Para Ortiz el mundo no es realmen-
te sistémico
III
pues no es posible explicar
su diversidad de fenómenos aplicando es-
quemas de distinción
IV
, sino que más bien
es un proceso y totalidad, es decir, algo que
se reproduce y se deshace incesantemen-
te “en el contexto de las disputas y de las
aspiraciones divididas de los actores socia-
les, pero que se reviste [...] de una dimen-
sión abarcadora, englobando otras formas
de organización social: comunidades, et-
nias y naciones” (ORTIZ, 2004, p. 38).
Esta lógica de totalidad no signica
que exista una cultura-mundo en el sentido
estructuralista, pues eso implicaría tanto di-
cotomía como jerarquía (frente a otras cultu-
ras menores); la clave es que la mundializa-
ción impregna el conjunto de los fenómenos
culturales, pues “una cultura mundializada
corresponde a una civilización cuya territo-
rialidad se globalizó” (ORTIZ, 2004, p. 39).
En este marco, el concepto de cultu-
ra-mundo no signica homogeneización cul-
tural; para Ortiz este es un prejuicio adoptado
desde la formulación de la sociedad de ma-
sas y retomado luego por la globalización del
consumo —del cual McDonald’s y el llama-
do Índice Big Mac pueden ser un ejemplo—,
aunque él reconoce que la estandarización
derivada del industrialismo ha penetrado
ámbitos de la vida cultural (p.e. los modos de
producción y de consumo), afectando nues-
tra percepción del fenómeno globalizador.
A esto se vincula la distinción entre
patrón (o pattern, llamado por Ortiz patroni-
zación) y estándar (standard): el primero es
un modo común de desarrollo que de todas
formas admite diferencias entre casos, como
una herencia, mientras que el segundo hace
hincapié en la equivalencia de los casos, en
su estatus de igualdad. En ese sentido, “una
civilización promueve un patrón cultural sin
con eso implicar la uniformización de todos.
Una cultura mundializada segrega también
un pattern, que yo calicaría de moderni-
dad-mundo” (ORTIZ, 2004, pp. 41-42). En
consecuencia, la modernidad-mundo apun-
ta al conjunto de referentes generados por
la mundialización de la cultura moderna.
Para ejemplicar los efectos de la
mundialización en la interpretación de la rea-
lidad social Ortiz se sirve del caso de un ciu-
dadano alemán que se siente perdido en la
zona interior de China pero en casa estando
en Hong Kong, en el entendido de que esta
ciudad es más occidental. A este efecto le lla-
ma desterritorialización (ORTIZ, 2004, p. 113),
pues corresponde a un espacio vacío de con-
tenidos particulares, lo que también podría vi-
sualizarse en las ciudades-resort y las tiendas
comerciales de los aeropuertos, que “parecen
constituir una especie de no-lugares, locales
anónimos, serializados, capaces de acoger a
cualquier transeúnte, independientemente de
su idiosincrasia” (p. 113).
Ahora bien, Ortiz advierte que estos
no-lugares pueden llevar a pensar que es
cada vez más difícil encontrarse, recono-
cerse en la identidad del lugar, pero eso no
sería tan cierto si se considera que la mun-
dialización de la cultura apunta precisa-
mente a la existencia de referentes comu-
nes. En otras palabras, la ecacia del resort
como no-lugar se basa no en una pérdida
de identidad sino en la sumatoria de identi-
dades, pues busca ser un cualquier-lugar.
La desterritorialización no puede con-
cebirse solo como abstracto, pues el espa-
cio en sí es un concepto social, que adquiere
14
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
sentido en el marco de la sociedad. Por eso
busca localizarse llenando espacios median-
te objetos mundializados (p.e. Coca Cola,
McDonald’s, Sony, etc.) que pueden encon-
trarse en todas las grandes urbes. Esto sig-
nica que “la mundialización no se sustenta
sólo en el avance tecnológico, sino que hay
un universo habitado por objetos comparti-
dos a gran escala. Son ellos los que consti-
tuyen nuestro paisaje, amueblando nuestro
medio ambiente” (ORTIZ, 2004, p. 114).
Asimismo, la desterritorialización se
maniesta por ejemplo en los modos de pro-
ducción global: un auto alemán que se en-
sambla en Corea del Sur se vende en Chi-
le; un lme estadounidense nanciado por
japoneses muestra locaciones de todo el
mundo y se proyecta en todas partes. Esta
deslocalización de la producción no solo tie-
ne implicancias económicas (p.e. nancie-
ras y laborales) sino también sociales: no
hay cómo denir el origen de las cosas
V
, y
entonces los procesos de creación son se-
lectivos, eligen partes de todo el mundo para
construirse (ORTIZ, 2004, p.117). Aquí está
la base de lo que él llama cultura internacio-
nal-popular (p. 118), que se maniesta por
ejemplo en la desterritorialización de la pu-
blicidad o del cine.
El propio Ortiz ofrece un ejemplo de
la desterritorialización y cultura internacio-
nal-popular en las industrias mediales: el
género fílmico del western. Surgido como
representación de la colonización del terri-
torio meridional y occidental estadouniden-
se, incluyendo aspectos culturales propios
del ser americano (p.e. la idea de una colo-
nización nanciada con recursos privados),
su composición visual
VI
pudo ser captada y
adoptada exitosamente por otras industrias
fílmicas como la italiana, lo que en primera
instancia se nota en las locaciones(desierto,
montaña) pero además en el argumento
(colonización, presencia del héroe solitario,
enfrentamiento bien/mal), lo que desterrito-
rializa el género. Ahora bien, esa extensión
del western no solo se da en el cine: hay
también expresiones en la moda (p.e. los
jeans, llamados coloquialmente vaqueros),
la televisión (p.e. Bonanza) y los imagina-
rios asociados a marcas de productos de
consumo (p.e. Marlboro).
Ortiz (2004, p. 123) reconoce que
este enfoque parece opuesto a la existencia
de culturas nacionales, sobre todo porque
existen estructuras sociales e instituciones
cuya nalidad es la preservación y socia-
lización de aspectos de cultura nacional,
como el idioma, las tradiciones y los sím-
bolos. Sin embargo, plantea que la idea de
nación es algo reciente y que la formación
de la identidad en las personas no depende
de factores exclusivamente nacionales, no
al menos en el mundo globalizado, al cual
incluso los estados desean integrarse.
Otro ejemplo: la modernización in-
dustrial y la sociedad de consumo surgida
desde mediados del siglo XX no respe-
tó fronteras nacionales (ORTIZ, 2004, p.
130) y tuvo impactos notables en la cultura
nacional (p.e. al aumentar los índices de
educación para acceder al mundo urbano
y laboral). Y en esto luego inuyeron los
medios y géneros masivos como la pu-
blicidad y el cine, que conguraron una
memoria internacional-popular (p. 132),
creando los referentes actuales para la
modernidad-mundo.
Aquí hace referencia al concepto
de Peter Berger de los universos simbó-
licos, que ordenan la historia localizando
los eventos en una secuencia que incluye
el pasado, el presente y el futuro: “En re-
lación con el pasado establecen una me-
moria, compartida por los componentes
de una colectividad; con respecto al futu-
ro, denen un conjunto de proyecciones,
modelos para las acciones individuales”
(ORTIZ, 2004, p. 137). En resumen, el
principal efecto de la cultura internacional-
popular es la generación de una memoria
colectiva que reexivamente valida y sus-
tenta los patrones de su autoproducción.
15
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
2.2. Patronización del western
Como se ha visto, para Ortiz las
civilizaciones promueven patrones cultu-
rales sin necesariamente implicar homo-
geneización, pues la cultura opera más
bien como un conjunto de referentes ge-
nerados por la mundialización. En ese
contexto explica la inuencia de los bienes
simbólicos producidos por las industrias
culturales que, como en el caso de wes-
tern, tendrían efectos en diversos ámbitos
de la vida social, como el consumo y las
relaciones sociales. Pero ¿qué patrones
denen al western como género?
Grant (2007, p. 1) dene al cine de
género como aquellos lmes de factura co-
mercial que, a través de la repetición y la
variación de elementos, cuentan historias re-
currentes sobre personajes reconocibles en
contextos familiares. Esto puede observarse
en tres niveles: uno de sistema general, en el
cual diversos géneros se distinguen entre sí
(p.e. western versus terror); otro de ámbito in-
dividual, en el que se analizan las caracterís-
ticas propias del género (p.e. la convención
temporal clásica del western como situado
entre mediados y nes del siglo XIX), y otro
del lme como producto individual (p. 2).
Para Grant (2007, p. 10) diversos ele-
mentos conguran un género. Por ejemplo,
la existencia de convenciones estilísticas y
narrativas, tanto del medio en que se pro-
duce el texto como del género mismo. Un
caso en el cine es el punto de vista de la cá-
mara, que equivale a un cuarto muro, y por
eso los actores, salvo excepciones humo-
rísticas o usos de cámara subjetiva, nunca
miran ni hablan a la cámara. En el caso del
western, las convenciones estilísticas inclu-
yen por ejemplo el uso de una determinada
tipografía (Wild West Font) en los créditos
iniciales, así como el rodaje en exteriores.
Otro elemento congurador de los géneros
es la iconografía, entendida como el empleo
de símbolos de uso general que son resig-
nicados en el marco del relato de género
(GRANT, 2007, pp. 11-12), principalmente
por la repetición. En el western serían por
ejemplo el caballo, la diligencia, el revólver y
las puertas batientes de las cantinas.
Un tercer elemento es el escenario
(setting) o conjunto de atributos tempora-
les y espaciales que dan vida al relato de
género, en algunos casos además carac-
terizándolo (GRANT, 2007, p. 14). Esta va-
riabilidad se aprecia al comparar géneros:
la comedia romántica, por ejemplo, puede
desarrollarse en casi cualquier momento
y lugar, mientras que en el western el es-
cenario canónico es el período del salvaje
oeste (1865 a 1890) y el territorio conoci-
do como la frontera americana (entre el río
Mississippi y la costa del Pacíco).
Las historias y temas son también
denitorias del cine de género (GRANT,
2007, pp. 15-16), sobre todo en los casos
donde el relato de acción o cambio de esta-
do concluye con un enfrentamiento, como
sucede en el western clásico o en los l-
mes de terror. Dichas situaciones pueden
asociarse con los aspectos de escenario;
en el western, la pelea nal suele ocurrir en
la calle principal del pueblo, que entonces
además adquiere valor iconográco.
La denición de personajes es otro
elemento (GRANT, 2007, pp. 17-18): no
solo siguiendo estructuras actanciales (p.e.
GREIMAS, 1987) o mitológicas (CAM-
PBELL, 1959), en el cine de género es re-
lativamente más fácil reconocer a los agen-
tes principales mediante caracterizaciones
(p.e. en el western, sombreros blancos o
negros según si el personaje es bueno o
malo) y conductas estereotipadas (p.e. el
machismo del gangster italoamericano).
Barry Langford (2005, p. 53), en tan-
to, valora al western como el primero de los
cuatro grandes géneros clásicos del cine
hollywoodense, junto al musical, al bélico y
al de gangsters. Para él, el western puede
ser considerado clave para la interpretación
16
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de la identidad estadounidense, por ejem-
plo respecto de mitos propios de la fronte-
ra americana que podrían replicarse en la
relación de Estados Unidos con el mundo,
como sucede con el uso de la violencia ri-
tualizada y justicada (pp. 54-55).
En este punto, Langford (2005, p.
63) sigue al historiador Frederick Jackson
Turner al sostener que el imaginario de la
frontera que se advierte en el cine western
no la muestra como un límite físico estático
sino como un espacio móvil e indenido de
territorios por colonizar, es decir, una fron-
tera móvil; el esfuerzo real, y a veces casi
mitológico, por la pacicación de la frontera
habría generado un carácter nacional es-
tadounidense, menos identicado con los
conictos urbanos propios de la Europa
industrializada y más propenso al choque
entre la civilización y la naturaleza salvaje.
Asimismo, la conquista del Oeste habría
reducido las presiones sociales de aque-
llos grupos en situación de riesgo (p.e. los
pobres o los inmigrantes), que en muchos
casos se lanzaron a la aventura coloniza-
dora por la promesa de forjar su propio des-
tino, algo que también podría interpretarse
como un reejo del imaginario sobre la de-
mocracia estadounidense (p. 63).
Finalmente, McMahon y Csaki (2010,
pp. 3-4) postulan que así como la soledad y
la propensión a la aventura y la acción pue-
den ser consideradas las principales carac-
terísticas del héroe canónico del western,
al mismo tiempo dichas condiciones darían
cuenta del auge del liberalismo y el pragma-
tismo durante el siglo XIX, encarnados en
un ideal de masculinidad que se asocia a la
propiedad de tierras o de dinero (p. 5), más
que a la pertenencia a una comunidad.
3. Caso de estudio: “Sal” (2012)
Como se ha visto, el género wes-
tern fue considerado por el propio Ortiz
como referencia para explicar algunas for-
mas de la cultura internacional-popular y
la desterritorialización. En ese marco, un
lme de este tipo producido en América
Latina (véaseTabla 1) bien puede servir
como caso de estudio.
Tabela 1 – Ficha técnica del lme “Sal”
Fuente: http://www.cinechile.cl/pelicula-1382
17
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
“Sal” muestra la historia de un
cineasta español llamado Sergio (Fele
Martínez), fanático del género western
que no consigue nanciamiento para
realizar su proyecto, ambientado en el
Desierto de Atacama, en Chile. Las pri-
meras secuencias lo muestran en Barce-
lona, en diversas reuniones con produc-
tores y amigos cuyas críticas al guion
se centran en la carencia de conictos
atractivos y la falta de denición de los
personajes, así como en la ausencia de
motivos para lmar en el Desierto de
Atacama (una verdadera obsesión de
Sergio, que siempre justica con luga-
res comunes, como la idea de que es “el
desierto más árido del mundo”), lo que
haría que el rodaje fuese más caro y me-
nos atractivo para la industria española.
Frustrado por los rechazos, Sergio deci-
de viajar a Chile para elegir locaciones
y encontrar la inspiración que necesita
para acabar con su guion.
Al llegar a un pueblo (nunca identi-
cado, pero por las locaciones se advier-
te que es Pica, en la Región de Tarapa-
cá) en el Desierto de Atacama, Sergio es
confundido por diversas personas con un
tal Diego. De hecho, una anciana, cre-
yendo que es Diego, le dice que no hay
problema en que haya vuelto al pueblo
porque “a Víctor le está yendo muy bien,
así que ni se aparece por estos lados”.
Sergio no entiende nada, pero de todos
modos la anciana lo invita a una esta
que dará esa noche en su casa. Cuan-
do ya es de tarde, ya gobiado por su blo-
queo para continuar con la reescritura de
su guion, Sergio decide ir a la esta para
conocer algo de la realidad local, pero en
el lugar todos vuelven a llamar lo Diego y
lo felicitan por haber regresado.
De pronto uno de los invitados,
llamado Pascua l (Luis Dubó), al darse
cuenta de que es (o sería) Diego, lo mira
con un gesto amenazante. Tras regresar
a la pensión donde alojaba, Sergio es
secuestrado por un grupo de hombres
liderado por Pascual, quienes lo suben
a una camioneta y lo llevan a un des-
poblado, donde conoce a Víctor (Patricio
Contreras), líder del grupo, que también
lo confunde con Diego. Luego de unas
amenazas, Sergio le pide a Víctor acla-
rar la confusión, ante lo cual éste le pasa
un revólver a Pascual y le ordena ma-
tarlo. Sin embargo el arma estaba des-
cargada y todo fue un ardid para torturar
a Sergio. Entonces Víctor les ordena a
sus hombres llevar a Sergio a la casa
del Viejo Vizcacha. Al amanecer, Sergio
y sus secuestradores llegan a un rancho
pobre en pleno desierto. Allí se lo entre-
gan al Viejo Vizcacha (Sergio Hernán-
dez), un sujeto solitario que aparente-
mente forma parte de la red delictual de
los secuestradores.
En los días siguientes Sergio esta-
blece una relación primero distante pero
luego de complicidad con el Viejo Vizca-
cha, quien lo obliga a trabajar para poder
comer. En sus conversaciones Sergio se
entera de que Vizcacha también es una
suerte de prisionero de Víctor, y que no
huye del lugar porque allí están sepulta-
dos su esposa e hijo.
Una mañana los hombres de Víc-
tor llegan al rancho a avisarle a Sergio
(siempre confundido con Diego) que al
día siguiente lo llevarían a la frontera
con Bolivia para que participara en una
internación ilegal de droga, con unos
contactos de Pascual. Esa noche, mien-
tras Sergio y el Viejo Vizcacha cenaban
frente a una fogata, llega a la granja Ma-
ría (Javiera Contador), quien sin mediar
explicaciones toma a Sergio, lo lleva a
la casucha de Vizcacha y tiene un en-
cuentro sexual con él. María también lo
confunde con Diego y le pregunta si vol-
vió para llevársela, tal como había pro-
metido antes; entonces Sergio se entera
de que ella es la esposa de Víctor, quien
no solo lidera una banda de delincuentes
18
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
sino que también es el hombre más po-
deroso del lugar, pues entre otras cosas
soborna a la policía.
Al volver María a su jeep, el Viejo
Vizcacha la mira de reojo y le dice “Puta”,
a lo que ella responde “Sí, pero no tuya”.
La escena siguiente muestra a María lle-
gando a su casa y a Víctor oculto en la
oscuridad, observándola.
Al día siguiente Sergio ensilla un
caballo y parte a encontrarse con Ma-
ría en una antigua instalación minera en
el desierto. Intentan escapar en el jeep
de ella, pero en pleno desierto son in-
terceptados por vehículos de la banda
de Víctor. La escena siguiente muestra
a Sergio colgado de un pozo, atado con
una cadena, y a Víctor diciéndole que
no puede conar en una mujer, menos si
es su mujer. Entonces les ordena a sus
hombres soltar a Sergio, pero es solo
para que ellos lo sometan: Víctor le cor-
ta el meñique de la mano izquierda. Tras
eso Pascual y Héctor (Gonzalo Valen-
zuela), uno de los principales matones
de Víctor, llevan a Sergio en una camio-
neta a un lugar en medio del desierto, lo
golpean y lo dejan para que muera. Pas-
cual le explica que “este es el desierto
más árido del mundo; aquí no hay nada,
solo sal y soledad”, luego de lo cual le
indica el camino para cruzar el salar…
si es que puede. Tras golpearlo nueva-
mente, Héctor le quita las botas a Sergio
y lo deja tirado.
Sergio camina por el desierto, san-
grando por los golpes y las heridas en
sus pies, mientras recuerda las críticas
que productores y amigos le hicieron a
su guion, sobre todo respecto de la falta
de conicto y de verosimilitud de su re-
lato; luego alucina con Barcelona y con
escenas de su película. Finalmente llega
a una cabaña pobre y se desploma, ex-
tenuado; lo recoge una familia que había
conocido la noche de la esta.
En su delirio, Sergio se imagina
vestido de vaquero, disparándoles a los
productores que rechazaron su proyecto.
De pronto despierta en la casa del Viejo
Vizcacha, quien le recomienda que deje
de quejarse y decida vengarse.
Un par de días después Héctor va
en su camioneta a buscar a Sergio y a
Vizcacha. Mientras Sergio se sube a la
camioneta, el Viejo se queda en su ca-
sucha, por lo que Héctor le dispara va-
rias veces. Tras un tiroteo, Vizcacha logra
matar a Héctor. Sergio y Vizcacha llevan
el cuerpo de Héctor en su camioneta al
desierto, donde lo abandonan. A la maña-
na siguiente, Vizcacha le enseña a Ser-
gio a disparar. En el intertanto, Víctor y su
banda encuentran el cadáver de Héctor,
tras lo cual van al rancho de Vizcacha a
preguntar qué pasó. Pascual amenaza a
Sergio diciéndole que al día siguiente pa-
sarían a buscarlo, y que aquel sería su
viaje de despedida.
Esa noche, Sergio y el Viejo Viz-
cacha discuten qué hacer. Finalmente el
anciano le dice a Sergio que debe en-
frentarlos, empezando por Pascual. Ser-
gio va a la casa de Julio (Jaime Ome-
ñaca), donde Pascual usualmente cena
porque está interesado en su hija ado-
lescente. Tras un tiroteo en que Sergio
hiere a Pascual, este muere asesinado
por Julio. Al día siguiente los hombres de
Víctor van a buscar a Sergio y lo llevan
a la frontera, para la internación de dro-
ga desde Bolivia. Durante el viaje, Ser-
gio golpea al conductor de la camioneta,
que se desbarranca; solo él sobrevive.
Al mismo tiempo Víctor y sus hombres
van al rancho del Viejo Vizcacha. Al atar-
decer, Sergio logra regresar al rancho y
encuentra a Vizcacha muerto; lo sepulta
al lado de su esposa e hijo.
Al día siguiente Sergio va arma-
do a la hacienda de Víctor. Tras matar
a todos sus hombres, discute con él y
19
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
lo enfrenta en un duelo con revólveres.
Al verlo, Víctor le dice: “Ese revólver ya
quiso matarme una vez, pero no pudo”.
“Lo sé”, responde Sergio, “por eso es-
toy aquí”. Al llegar el momento de batir-
se, Víctor dispara primero pero su arma
no tenía balas; Sergio tiene tiempo para
apuntar y dispararle en el estómago. “Yo
sabía que íbamos a terminar así, de esta
manera”, le dice Víctor. “¿Ha valido la
pena?”, pregunta Sergio. “Sí, claro que
sí”, responde Víctor.
Cuando Sergio se va, Víctor le pide
que no lo deje así, abandonado en el piso,
y que le “regale” una bala, implicando que
se suicidaría. Sin embargo, cuando Sergio
se alejaba, Víctor intentó dispararle por la
espalda. Se oye un disparo, pero no hiere
a Sergio: Víctor había muerto. Tras esto
Sergio toma su caballo y pretende irse,
pero María lo detiene y le pide que se que-
de con ella¸ a lo que él responde que ya
tiene una historia para contar. Mientras él
se va, ella le grita que no puede irse, que
habían acordado estar juntos. Él la ignora
y sigue su marcha.
La secuencia nal muestra a Ser-
gio caminando junto a una ruta en pleno
desierto, con su guion en la mano. Ser-
gio recuerda al Viejo Vizcacha diciéndole
“La sal lo come todo. La sal protege, pero
también destruye. Corrompe todo lo que
se le cruza en el camino. Y nosotros es-
tamos en medio de un salar”. De pronto
pasa un camión y Sergio le pide un aven-
tón, pero el vehículo sigue de largo. Él
se queda mirándolo, y se oye un dispa-
ro. Sergio advierte que está sangrando:
María le había disparado por la espalda.
“Pensaste que podías volver a dejarme”,
le dice ella. Él se desploma y el viento se
lleva las hojas de su guion.
La toma siguiente muestra al teléfo-
no de su departamento en Barcelona so-
nando; al activarse el buzón de voz, uno
de sus amigos le cuenta que le ha conse-
guido una cita con productores extranje-
ros. Al morir, Sergio se imagina la escena
nal de su película, con los antagonistas
(él mismo y Víctor) riendo. María se aleja
en su caballo, hacia el atardecer.
4. Análisis: desterritorialización y iden-
tidades
Es posible advertir en “Sal” diver-
sas referencias explícitas al género wes-
tern, de acuerdo a los patrones descritos
anteriormente. La historia misma es un
relato sobre la producción de un lme
de este género. Los créditos iniciales
emplean una tipografía WildWest. El es-
cenario de desarrollo de la historia, con
matices propios dados por el Desierto
de Atacama (p.e. parajes altiplánicos),
muestra una zona fronteriza donde la
institucionalidad jurídica y la policía no
existen o son simplemente sobrepasadas
por fuerzas fácticas; esta condición sal-
vaje le otorga al territorio representado
un aspecto de frontera móvil con efecto
cultural, representado por ejemplo en la
actitud del Viejo Vizcacha frente al abuso
de Víctor y sus hombres: hay que vengar-
se, hay que matarlos.
El filme aprovecha también cierta
iconografía canónica del género, como
el uso de revólveres (si bien se emplean
otras armas, el duelo final entre Sergio
y Víctor es con estetipo), caballos (solo
en el protagonista, pues los antagonis-
tas se movilizan en camionetas), botas
y sombreros vaqueros (presentes en
casi todos, pero con significado espe-
cial para Sergio, pues operan primero
como un simple disfraz pero luego como
un activador de su nueva identidad de
vaquero-justiciero). El duelo final entre
Sergio y Víctor, aunque no se produce
en la calle principal del pueblo, ocurre en
un largo sendero interior de una hacien-
da, lo que les permite colocarse frente a
frente y, por cierto, le permitió al director
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
emplear tiros de cámara propios de las
películas del género (p.e. planos ameri-
canos, contraplanos, planos de detalle
al revólver y primeros planos cerrados
de los duelistas).
En este sentido, la composición
visual —o formato imagético, como di-
ría Ortiz—del filme tributa en diversas
oportunidades al canon del western:
grandes planos generales del desierto
y los protagonistas en movimiento (p.e.
cuando Sergio cabalga para encontrar-
se con María; cuando ambos intentan
huir en su jeep; cuando María camina
hacia el atardecer, tras matar a Sergio);
montaje cromático que privilegia los to-
nos cálidos del desierto y el atardecer
(p.e. en la larga caminata de Sergio,
tras ser abandonado por Pascual y Héc-
tor; la toma final, de María cabalgando
hacia el atardecer).
Finalmente, el protagonista es, no
solo en su aventura por el desierto sino
también en su vida en Barcelona, un tipo
solitario: aunque en España lleva una vida
aparentemente sin problemas, no se le co-
noce pareja ni familia; si bien su relación
con María no es realmente amorosa, el
hecho de que Sergio la deje al nal de la
película sin dudar e intente seguir su ca-
mino es también una referencia explícita
al héroe clásico del género.
También se advierten referencias
implícitas, como por ejemplo la musicali-
zación del lme, encabezada por el tema
central (“Ese revólver”, compuesta e inter-
pretada por Camilo Salinas), cuyas trom-
petas recuerdan la orquestación de Ennio
Morricone para “Il buono, il brutto, il cattivo”
(“El bueno, el malo y el feo”, 1966, Sergio
Leone) y, por extensión, a la de Dalparan
y Jang Yeong-gyu para 좋좋좋, 좋좋좋, 좋좋좋
좋 (“El bueno, el malo y el raro”, 2008, Kim
Jee-woon),otro caso de desterritorializa-
ción y cultura internacional-popular. Esta
referencia al lme clásico de Leone se
replica en el menú de la edición en DVD,
donde la selección de escenas permite ver
secuencias de los personajes principales,
identicados con títulos como “El bueno”
(Sergio), “El malo” (Víctor), “El feo” (Pas-
cual), “La mujer” (María), “El lindo”(Héctor)
y “El mentor” (Vizcacha).
¿Alcanzan estas características a
constituir un producto cultural desterrito-
rializado, de acuerdo con la conceptuali-
zación de Ortiz? En cierto modo sí, pues
“Sal”, no solo en su trama sino también
en sus elementos estilísticos, busca lo-
calizarse mediante objetos mundializa-
dos. Sus permanentes referencias ex-
plícitas e implícitas al western son una
manera de construirse como represen-
tante fiel del género. Incluso la referen-
cia directa al Desierto de Atacama, po-
tencialmente asociable solo a Chile, es
siempre desde el argumento de su valo-
ración internacional (que sería “el más
árido del mundo”).
Es decir, incluso la localidad del si-
tio de rodaje (p.e. Pica) consigue desterri-
torializarse, ya que nalmente las tomas
del desierto operan casi como un no-lu-
gar, algo que también podría decirse del
Desierto de Tabernas (Almería, España),
empleado por Sergio Leone para simular
el territorio meridional de Estados Unidos,
o por la zona occidental de China, elegida
por Kim para simular el desierto de Man-
churia. Con todo, el pueblo mismo no es
retratado en su propia especicidad: nun-
ca se dice que sea Pica, y solo algunas
locaciones remiten a dicha localidad, por
lo que perfectamente podría haberse ro-
dado en más de un pueblo.
¿Qué identidades se presentan,
entonces, en un lme desterritorializado
como “Sal”?El protagonista, un español
burgués que además es un artista inge-
nuo (p.e. porque desea vivir en un wes-
tern pero nunca ha usado un arma ni co-
noce las locaciones con que sueña),opera
21
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
como reejo de la ácida lectura que Rou-
gier entrega sobre Europa y su enso-
ñación delo latinoamericano como algo
ajeno pero exótico y, por tanto, atractivo
(incluso la obsesión de Sergio con el De-
sierto de Atacama podría explicarse por
este motivo: Chile como el n del mundo,
la verdadera frontera).
Sergio es un hombre en principio
unidimensional, sin historia ni entorno
social salvo los productores y amigos
(nunca se dice que lo sean; simplemen-
te lo tratan con cercanía, pero eso puede
ser frecuente en el mundo de la produc-
ción audiovisual) que critican su guion,
pero durante su aventura adquiere mati-
ces y motivos diferentes, como la super-
vivencia y la venganza, tanto por el daño
sufrido como por la muerte de su único
aliado (Vizcacha).
El antagonista, Víctor, se asume
que es de la zona (chileno) pero su acen-
to tiene rasgos argentinos (probable-
mente una decisión de casting, pues es
un sello de Patricio Contreras); su pasa-
do solo se sugiere en relación al pasado
de Diego, un sujeto que aparentemente
lo habría traicionado, no solo al tener un
amorío con su esposa sino también al
violar ciertos códigos de lealtad masculi-
na (no se dice, pero tal vez fue parte de
su banda e incluso fue su amigo); su ac-
titud ante el engaño de su mujer es vio-
lenta y vengativa, tanto con María como
con Diego (Sergio), lo que da cuenta del
machismo latinoamericano en general,
sobre todo porque Víctor no tiene otra(s)
mujer(es). Es decir, la ama y no está dis-
puesto a aceptar que ella lo deje ni que
sus hombres (ni la comunidad local) se
rían de él por ser un “cornudo” (de he-
cho, cuando Vizcacha se lo dice motiva
que Víctor lo mate).
En consecuencia, las representa-
ciones de identidad en “Sal” dan cuenta
de una desterritorialización a-la-Ortiz, es
decir, de la presencia de marcas de iden-
tidad no local sino global, lo que diculta
la denición identitaria del propio lme,
convirtiéndolo en un objeto mundializa-
do, un producto de la cultura internacio-
nal-popular. No por nada su estreno fue
en un festival de cine y sus principales
reconocimientos se han producido en el
extranjero. Más que una película chile-
na, “Sal” exhibe una chilenización de lo
internacional mediante guiños sutiles a
lo local en un marco visual y argumental
propio del western canónico.
5. Discusión
Este artículo presenta reexiones
en torno a la globalización en el ámbi-
to cultural, a partir del análisis crítico de
un lme que representa la hibridación de
producciones simbólicas-mediáticas. El
hecho de que la película pueda identi-
carse tan claramente con un género ci-
nematográco asociado a una identidad
no-latinoamericana, pero que al mismo
tiempo dé cuenta de ciertos aspectos
identitarios de esta cultura, convierte a
“Sal” en un caso de estudio válido. Pero
existen muchos otros: las telenovelas y
los reality shows (véase p.e. MAYER,
2003; TURNER, 2005),el romanticismo
asociado a los vampiros y la gura ya
universal de Drácula en la cultura popu-
lar (véase p.e. LIGHT, 2007; TAYLOR,
2014), o la transnacionalidad del hip-
hop (véase p.e. ALIM; IBRAHIM; PEN-
NYCOOK, 2009; TICKNER, 2008), por
mencionar algunos.
La lógica de la desterritorializa-
ción, que a su vez es una re-territoriali-
zación en la medida en que una pieza, un
corpus o un imaginario se instalan en otra
unidad de sentido —o son adoptados por
ella, más bien—, es probablemente uno
de los efectos culturales más evidentes
de la globalización. La clave metodológi-
ca está, por tanto, en el reconocimiento
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de los patrones que permitan reconocer
el género o el interdiscurso al cual dicha
pieza o narrativa se acoplan.
Esa es, al mismo tiempo, la di-
cultad. En un contexto de hibridación,
el reconocimiento de patrones, y sobre
todo de géneros, es no solo complejo
(multivariable) sino a veces inviable. Tal
vez esa sea otro de los desafíos que nos
impone la globalización.
Bibliografía
ALIM, H. Sami; IBRAHIM, Awad; PENNYCOOK,
Alastair (eds.). Global linguistic ows: Hip-hop cul-
tures, youth identities, and the politics of language.
Nueva York: Routledge, 2009.
BAUMAN, Zygmunt. La globalización. Consecuen-
cias humanas. Ciudad de México: Fondo de Cultu-
ra Económica, 2010.
CAMPBELL, Joseph. El héroe de las mil caras.
Psicoanálisis del mito. Ciudad de México: Fondo
de Cultura Económica, 1959.
CASTELLS, Manuel. La era de la información.
Economía, sociedad y cultura. (Vol. 1, La sociedad
red). Ciudad de México: Siglo XXI, 1999.
CASTLES, Stephen; DAVIDSON, Alastair. Citizen-
ship and migration. Globalization and the politics of
belonging. Londres: Macmillan, 2000.
CHAREONWONGSAK, Kriengsak. Globalization
and technology: How will they change society? Te-
chnology in Society, ano 24, n. 3, 2002.
DEMONT-HEINRICH, Christof. Cultural impe-
rialism versus globalization of culture: Riding the
structure-agency dialectic in global communication
and media studies. Sociology Compass, ano 5, n.
8, 2011.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas.
Buenos Aires: Paidós, 2001.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Lectores, espectado-
res e internautas. Barcelona: Gedisa, 2007.
GRANT, Barry Keith. Film genre. From iconogra-
phy to ideology. Londres: Wallower, 2007.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semántica estructural.
Investigación metodológica. Madrid: Gredos, 1987.
HALL, Stuart. Cultural identity and cinematic repre-
sentation. Framework, n. 36, 1989.
HALL, Stuart; JEFFERSON Tony (eds.). Resistan-
ce through rituals. Youth subcultures in postwar
Britain. Londres: Routledge, 1993.
INGLEHART, Ronald. Globalization and postmodern
values. The Washington Quarterly, ano 23, n. 1, 2000.
JENSEN, Tommy; SANDSTRÖM, Johan. Stake-
holder theory and globalization: The challenges
of power and responsibility. Organization Studies,
ano 32, n. 4, 2011.
KRAIDY, Marwan. Globalization of culture
through the media. In: SCHEMENT, Jorge Reina
(ed.), Encyclopedia of communication and infor-
mation, Vol. 2. Nueva York: Macmillan Referen-
ce, 2002, P. 359-363.
KÜTTING, Gabriela. Globalization and the environ-
ment. Greening global political economy. Albany:
State University of New York, 2004.
LANGFORD, Barry. Film genre. Hollywood and be-
yond. Edimburgo: Edinburgh University, 2005.
LIGHT, Duncan. Dracula tourism in Romania: Cul-
tural identity and the state. Annals of Tourism Re-
search, ano 34, n. 3, 2007.
LIZARDO, Omar. Understanding the ow of sym-
bolic goods in the global cultural economy. Inter-
national Journal of Contemporary Sociology, ano
45, n. 1, 2008.
LUHMANN, Niklas. Ecological communication.
Chicago: University of Chicago, 1989.
LUHMANN, Niklas. Globalization or world society:
How to conceive of modern society? International
Review of Sociology, ano 7, n. 1,1997.
MAYER, Vicki. Living telenovelas/telenovelizing
life: Mexican American girls’ identities and transna-
tional telenovelas. Journal of Communication, ano
53, n. 3, 2003.
MCLUHAN, Marshall; POWERS, Bruce R. La al-
dea global. Barcelona: Gedisa, 1995.
23
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
MCMAHON, Jennifer; CSAKI, Steve. Introduc-
tion: Philosophy and the western. IN:MCMAHON,
Jennifer; CSAKI, Steve (ds.), The philosophy of
the western. Lexington: University of Kentucky,
2010, P. 1-10.
ORTIZ, Renato. Mundialización y cultura. Bogotá:
Convenio Andrés Bello, 2004.
OUGAARD, Morten. Political globalization: State,
power, and social forces. Nueva York: Palgrave
Macmillan, 2004.
PARSONS, Talcott. The social system. Nueva York:
The Free Press of Glencoe, 1959.
RITZER, George (Ed.). The Blackwell companion
to globalization. Malden: Blackwell, 2007.
TAYLOR, Jessica. Romance and the female gaze
obscuring gendered violence in the Twilight Saga.
Feminist Media Studies, ano 14, n. 3, 2014.
TICKNER, Arlene. Aquí en el ghetto: Hip-hop in
Colombia, Cuba, and Mexico. Latin American Poli-
tics and Society, ano 50, n. 3, 2008.
TURNER, Graeme. Cultural identity, soap narrati-
ve, and reality TV. Television & New Media, ano 6,
n. 4, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Television: Technology and
cultural form. Londres: Collins, 1974.
Recebido em 15/09/2017
Aprovado em 27/08/2018
I Pablo Matus Lobos. Chile. Doutor em Ciencias de la
Comunicación. Faculdad de Comunicaciones, Ponticia
Universidad Católica de Chile. Contato: pmatus@uc.cl
II Al menos en sus primeros acercamientos al tema,
pues en sus últimas obras se muestra escéptico de la
vigencia misma del concepto (García Canclini, 2007, pp.
9-11).
III A la usanza de las interpretaciones estructurales-
funcionalistas, como la de Talcott Parsons, o las directa-
mente funcionalistas, como la de Niklas Luhmann.
IV Por ejemplo la identicación de prerrequisitos fun-
cionales en Parsons (1959, pp. 26-35) y la codicación
binaria de informaciones en Luhmann (1989, pp. 36-43).
V Ni potencialmente, de las ideas: por eso Ortiz se des-
territorializa como analista.
VI Que Ortiz (2004, p. 121) llama formato imagético.
24
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A errância no cinema de Walter Salles
El deambular en la película de Walter Salles
The wandering in the lm by Walter Salles
Cristiane Pimentel Neder
I
Resumo:
Este artigo busca mostrar, a partir da análise da obra cinematográca
de Walter Salles, especialmente com foco no lme Terra Estrangeira,
que as escolhas do diretor inuenciam no processo criativo, ou são
parte dele, e que todo lme é um “lho” com o DNA do diretor, que traz
na sua genética, tanto a sua formação acadêmica, artística, quanto as
suas subjetividades, seu estilo e sua identidade.
Palavras chave:
Cinema
Criação
Processo Criativo
Walter Salles
25
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo pretende mostrar, a partir del análisis de la película
de Walter Salles, sobre todo centrándose en Terra Estrangeira, que
las opciones del director inuyen en el proceso creativo, o parte de
ella, y que cada película es un «hijo» con la DNA del director y que
lleva en su genética, tanto su formación académica, artística, sus
subjetividades, su estilo y su identidad.
Abstract:
This article seeks to show, from the analysis of the cinematographic
work of Walter Salles, especially with a focus on the lm Terra
Estrangeira, that the choices of director inuence in the creative
process, or are part of it, and that the whole lm is a “son” with the DNA
of the director, that back in your genetics both their academic, artistic
and their subjectivities, your style and your identity.
Palabras clave:
Cine
Creación
Processo creativo
Walter Salles
Keywords:
Cinema
Creation
Creative Process
Walter Salles
26
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A errância no cinema de Walter Salles
1. Processo Criativo
Criar é descobrir, elaborar algo di-Criar é descobrir, elaborar algo di-
ferente ou novo, ou ainda fazer uma re-
leitura do já criado com um novo forma-
to. É descobrir novas possibilidades de
conjugar elementos estéticos, teóricos e
artísticos. A criação é impulsionada por
uma ideia que surge por meio do resgate
das coisas armazenadas no consciente
e inconsciente da nossa mente. O cine-
ma é uma arte audiovisual que nos exige
uma percepção para traduzir em imagens
e sons uma ideia, mas não apenas uma
ideia, muitas vezes uma metáfora que
nos passa inúmeros sentidos, inúmeras
aberturas de canais de sensibilidade e
reexões. Um exemplo é o navio enca-
lhado na praia que surge no lme Terra
Estrangeira (1996), de Walter Salles, sim-
bolizando o exílio.
De acordo com o artigo Possibili-
dades do Processo Criativo, publicado
no site da Associação dos Roteiristas,
com base nas obras o Espírito Criativo
II
,
de Daniel Coleman, e Criatividade, des-
cobrindo e encorajando
III
, de Solange
Muglia Wechsler, as fases do processo
criativo são: preparação, incubação, de-
vaneio e iluminação.
Podemos pensar as fases assim:
inicialmente temos a preparação, que é
quando mergulhamos no problema ou
no assunto e pesquisamos tudo o que
possa ser relevante; na segunda fase te-
mos a incubação, que é quando camos
pensando em tudo o que descobrimos
e “cozinhamos em fogo brando” aquilo
tudo, até crermos que esteja no ponto de
maturidade, no ponto de ser revelado, é
quando “dormimos” com aquilo que pes-
quisamos e deixamos nosso inconscien-
te buscar possibilidades de semeadura;
na terceira fase há o devaneio, que é
como sonharmos com os olhos abertos,
é quando deixamos o nosso inconscien-
te nos abrir portas ou mostrar o caminho
delas, ou seja, podemos descobrir algo
novo ou olhar para algo já conhecido por
novos ângulos, por novas perspectivas e
relendo o mundo atravessando esferas
ainda virgens, é quando tiramos o véu
do nosso olhar a cada novo despertar;
na quarta fase há a iluminação, que na
verdade não é uma iluminação, é apenas
o momento em que encontramos o re-
ceptor para acender a luz, é o momento
em que saímos da escuridão, das ideias
cruas, e então damos formato a elas ar-
tisticamente, é quando esculpimos o pen-
samento em obra de arte, é o momento
de se divorciar do devaneio para mostrar
que aquilo que foi um devaneio tornou-
-se algo palpável, realizável, que tomou
sentido e forma, o momento em que as
ideias foram tecidas e que juntas formam
uma unidade, um corpo de dimensões ili-
mitadas ao encontrar-se com o receptor
que pode reelaborar sentidos por meio
da sua imaginação.
A obra de arte nunca tem um ponto
nal, porque mesmo depois que o artista
a naliza, o espectador a leva na mente,
e daí para frente pode pensar sobre ela
de inúmeras maneiras, abrindo um leque
de possibilidades de leitura e de percep-
ção. Por isso que uma obra pode inspirar
o processo criativo de outra, e o processo
criativo de outro alguém pode realizar ou-
tra obra também.
O lme Terra Estrangeira nasce de
uma imagem fotográca encontrada na
capa de um livro, em que se via um casal
à deriva, encalhado em uma praia deser-
ta, como um navio emborcado na areia,
assim é o início da gestação do que nas-
ceria anos depois: o lme.Do mesmo
autor de Central do Brasil (1998), lme
27
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
que nasce da necessidade de ver o Bra-
sil de dentro para fora, enquanto o lme
anterior,Terra Estrangeira, queria vê-lo
de fora para dentro.
Assim como os autores encontram
inspiração para criar coisas originais, ou
semi originais, inspiradas em algo já exis-
tente, ou que dialoga com o que já foi cria-
do, depois que uma obra é criada, outras
pessoas podem absorver seus referen-
ciais artísticos e criar novas obras, inuen-
ciadas por elas ou por um conjunto delas.
No prefácio do livro Terra Estran-
geira (Salles & Thomas, 1997), um livro de
fotogramas baseado no lme, José Avellar
escreve: “Cinema não se reduz à imagem
que passa na tela: é também o que o es-
pectador inventa no imaginário, como re-
sultado da tensão entre o que viu e o que
persiste na memória”. Desse modo, per-
cebemos que o que o espectador leva em-
bora com ele pode ajudá-lo a criar outra
obra em cima da original.
2. O Processo Criativo no Cinema de
Walter Salles
Pensar e fazer cinema é dar sen-
tidos conotativos àquilo que visualizamos
e também ao som para nos levar a um
lugar ou a um estado emocional. Somos
transportados ao lugar da cena ou para
os acontecimentos ao redor dos persona-
gens e das suas atmosferas psicológicas
e emotivas por meio do lme.
Quando nós escutamos o apito de
um navio ao longe, em Terra Estrangeira,
acabamos nos envolvendo na situação
de não podermos partir, mesmo sendo
chamados, mesmo a vontade sendo a de
fugir,estamos com o corpo encalhado em
algum lugar, assim como o navio. Sal-
les não escreve frases longas nos seus
roteiros, ele deixa que as imagens e os
sons falem por si só.
Em Central do Brasil, o banheiro
de estrada masculino, sinalizado com
“Omem”, assim mesmo, faltando o “H”,
reete o Brasil deciente na educação.
Uma palavra em uma letra pode ter uma
extensão de sentidos imensa, e segun-
dos da cena podem representar um labi-
rinto para várias reexões. Salles deixa
lacunas abertas para que o espectador
possa reetir. Ele faz um cinema de estra-
da, em que pegamos a estrada com ele e
não chegamos nunca à casa, ou quando
chegamos, como em Central do Brasil, a
casa não tem mais a gura paterna, a
casa não é aquela que sonhávamos, não
é mais onde os nossos sonhos moram.
Terra Estrangeira é um lme que termi-
na sem terminar, que segue uma estrada
sem m e a imagem vai-se embora, mas
a estrada continua lá.
Há uma atração pela estrada em
toda a obra de Walter Salles e, embora
ele não queira relacionar seu processo
criativo à sua biograa, mas ao seu pro-
cesso criativo em si, uma coisa de sua
biograa é importante que seja lembrada,
que o pai do cineasta foi embaixador e
que estradas que não terminam fazem
parte da sua vida interminavelmente. Um
embaixador é uma gura muito ausente
em vários sentidos, tanto do país quan-
to da família, e a busca pelo pai e pela
pátria são marcas do cinema de Walter
Salles. Além disto, Salles passa e passou
boa parte da sua vida fora do Brasil.
Sobre o lme Na Estrada (2012),
adaptação do livro On the Road (1957),
de Jack Kerouac, o cineasta deu uma
entrevista ao jornal Zero Hora, em 7 de
julho 2012, e falou sobre o processo de
lmagem. Ao jornalista na matéria, Salles
falou da sua fascinação sobre lmes de
estrada. Salles cita Wim Wenders: “O ci-
neasta Wim Wenders diz que, à medida
que você se distancia do seu ponto de
origem, ganha perspectiva e pode enten-
der melhor de onde vem e, por extensão,
28
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
quem é. Os relatos de estrada são, por
denição, relatos de transformação de
personagens que não estão confortáveis
em seus lugares. A errância possibilita
que isso aconteça”. Salles, na maioria
dos seus lmes, faz com que seus per-
sonagens se distanciem do seu ponto de
origem para entenderem quem são. Ele
faz os seus personagens se perderem,
não para depois se “encontrarem”, mas
para talvez se reconhecerem.
O jornalista fala ao cineasta que a
busca pelo pai é uma constância em seus
lmes, e acerca disso fala do persona-
gem Dean de Na Estrada: “Na minha l-
mograa, a busca pelo pai também é uma
busca pelo país. Você vê isso em Terra
Estrangeira, Central do Brasil e mesmo
em Linha de Passe (2008). Dean também
busca o pai, mas ele mesmo não está
preparado para ser um pai. Esse tema
está muito mais no manuscrito do que no
livro publicado.”
A ausência do pai e a ausência da
pátria estão sempre presentes nas obras
de Salles, ele gira em volta deste mesmo
ponto em várias de suas criações. Há as-
suntos que incomodam os diretores e eles
têm necessidade de mexer na ferida. Per-
cebe-se que o processo de criação pas-
sa por uma necessidade de urgência, de
o artista colocar para fora tudo aquilo que
ele não consegue se desfazer, a não ser
transformando em arte.
A linguagem de Salles, na maioria
de suas obras, é uma cção, mas com
vertente documental. Terra Estrangeira é
uma cção, mas partindo do fato real do
consco do dinheiro da poupança reali-
zada no Governo Collor no Brasil. Salles
busca fatos da realidade para começar
uma estória de cção, por isso também
Salles é considerado um dos cineastas do
movimento chamado no Brasil de Novo Ci-
nema Novo, assim denominado por ser o
cinema da retomada de produções, um pe-
ríodo de novo fôlego após a fase nebulosa
do governo de Fernando Collor de Mello,
que prejudicou o cinema nacional. O Novo
Cinema Novo leva este nome inspirado no
Cinema Novo e, assim como ele, grande
parte de suas obras está preocupada com
a verossimilhança, com a verdade e a rea-
lidade. Senão partindo de fatos da realida-
de, como em Terra Estrangeira, ao menos
não romanceando os fatos, devorando-os
com casca e tudo.
Salles, nos lmes A Grande Arte
(1991), Terra Estrangeira (1995), Central
do Brasil (1998), O Primeiro Dia (1998) e
Abril Despedaçado (2001), mostra as coi-
sas como elas são, mas sempre de um
modo poético, sem agressão. Há cenas
de violência, mas a violência de Salles não
é uma violência explícita, é uma violência
que poderíamos talvez denominar “rena-
da”, se é que violência possa ser renada,
mas a chamamos desse modo porque o
diretor cria cenas em que a dor não atin-
ge o espectador, não no sentido de não
emocionar ou sensibilizar, mas no sentido
de ele não sentir aição com aquilo que é
mostrado. É uma violência com amortece-
dor. Por exemplo, no lme O Primeiro Dia,
há uma cena de um tiro, momento em que
escurece a tela e só ouvimos o barulho do
tiro e nada mais. Não se vê o morto, não
se vê a ferida. É do estilo de Salles ser
intenso, mas sem ser visceral. Ele conse-
gue nos mostrar o sofrimento e a dor, mas
sem causar mal-estar. É uma dor e um so-
frimento na vitrina, participamos estando
do lado de fora.
Percebe-se que há aspectos no ci-
nema de Walter Salles que muito se apro-
ximam do cinema feito por Wim Wenders.
De alguma maneira, Wenders o inuencia
e,em algumas entrevistas, Salles sem-
pre recorre a reexões do cineasta ale-
mão. Um dos focos do cinema dos dois
é a busca pela identidade. Wim Wenders,
em seu lme O Céu de Lisboa (título no
Brasil), mundialmente conhecido como
29
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Lisbon Story (1994), busca a identidade
de uma Europa unicada pela Comunida-
de, mas separada por suas subjetividades
e processo histórico de cada região que
compõe a unidade. A obstinação de am-
bos os cineastas pela estrada é recorrente
em suas obras, e nós viajamos junto por
meio dessas obras. Eles nos levam a re-
etirmos sobre a identidade coletiva e in-
dividual e nos provocam a sermos de um
lugar, sem estarmos, e estarmos em um
lugar, sem sermos.
O Cinema Novo também é refe-
rência para irmos atrás desta identidade
que Walter Salles tem interesse, porque
o movimento pensou o Brasil penetrando
nas suas entranhas, na sua gente, na sua
origem, questionando os seus problemas
políticos e sociais. Um cinema que gritou
para o brasileiro escutar a sua própria
voz. O cinema de Salles é a reverberação
desta voz, que ele faz sem consciência
de fazer, mas que, a partir do momento
em que ele lma, ele começa a fazer,
pois, buscando as nossas identidades,
ele cava um buraco que volta ao Cinema
Novo, mas que é diferente, porque já faz
parte de um mundo globalizado, onde as
nossas feridas são também compartilha-
das com outras vidas de qualquer lugar. A
busca do pai e da pátria são buscas cada
vez mais contemporâneas nesse de mun-
do de refugiados e de nacionalistas. O ci-
nema de Salles fala hoje de um problema
nacional, mas também de um problema
mundial. Ele, em seu processo de cria-
ção, parte do todo para os fragmentos e
dos fragmentos para o todo.
Diretor também de Diários de Mo-
tocicleta (2004), lme em que ele relata
as viagens do líder revolucionário cuba-
no Che Guevara e do seu amigo Alberto
Granado, novamente o diretor vai “cair” na
estrada. Ele gosta de estórias que correm
no asfalto, no chão batido de terra, nos Mi-
nhocões da vida (viaduto ao lado do qual
o personagem Paco mora, no lme Terra
Estrangeira, local onde passam carros
noite e dia sem parar, onde o barulho de
ir e vir não nos deixa dormir). A estrada, o
caminho, a pista são elementos de ges-
tação nas obras do cineasta. Seus lmes
têm movimento a quase todo momento.
Seus pensamentos seguem uma estrada
para poder realizar um lme.
Salles sempre quer nos levar para
algum lugar junto com ele. Os leitores
podem pensar que todo cineasta quer
nos levar a algum lugar, mas não trata-
mos aqui do lugar reexivo que todos os
artistas nos levam de uma maneira ou
de outra, mas tratamos do lugar para o
qual é necessário deslocamo-nos para
chegarmos. Em Terra Estrangeira, o
personagem Paco precisa chegar a San
Sebastian, na Espanha, para ver pelos
olhos dele os sonhos da mãe, e assim
completar o desejo que ela não concreti-
zou antes de morrer, e nós acompanha-
mos Paco nessa trajetória durante todo
o lme. Sofremos as desilusões dele,
herdamos o sonho da sua mãe e parti-
mos para um exílio escolhido. Salles nos
faz sentir os medos do viajante, a soli-
dão que o acompanha, nos faz sermos
viajantes em uma experiência completa:
de ser porque se desloca e de ser por-
que está em busca de si próprio.
Na sua participação em um dos
momentos que integram Paris, Te Amo
(2006), um lme formado por um mosaico
de lmes curtos, de autores de diversos
países que escrevem sobre a capital da
França, ele conta a estória de uma babá
latina na Europa, que deixa a sua lha
para cuidar da lha dos outros. O lme
curto que ele realiza para integrar um dos
pedaços da obra geral não tratada bele-
za da cidade, do que é ser parisiense ou
de como Paris é uma cidade encantadora,
ele mostra uma pessoa que, embora este-
ja em Paris, não participa de Paris, porque
ela está sempre na casa dos outros, seja
a casa física ou a casa pátria.
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Uma das preocupações centrais de
Salles nas suas obras é mostrar como é
sentir-se um estrangeiro, não apenas o
estrangeiro que sai do seu país para ou-
tro, mas do estrangeiro em qualquer cir-
cunstância. Estrangeiro porque é excluído
dentro do seu próprio país, estrangeiro
porque vive à margem de tudo ou num lu-
gar que não é lugar nenhum, mas, ape-
nas, ponto de passagem para vários lu-
gares, como Paco e seu apartamento do
lado do Minhocão. Estrangeiro porque não
se percebe daquele lugar ou porque não
consegue achar o seu espaço naquele lu-
gar. Estrangeiro porque se estranha ou é
estranhado de alguma forma, seja física,
afetiva, social ou por qualquer circunstân-
cia em que não consegue se encaixar ou
se adaptar em relação a algo ou alguma
coisa. O processo criativo de Salles passa
por essa angústia de buscar a identidade
não só de pátria, mas da “alma”, daquilo
que mora no coração ou de onde o cora-
ção mora e não apenas onde habitamos.
Seu processo de criação passa
pela busca constante da identidade do
espaço territorial, social e afetivo do úte-
ro enquanto espaço de abrigo e não ape-
nas de gestação. Em Paris, Eu Te Amo, a
personagem do seu curta, chamada Louin
Du, levanta bem cedo, com a cidade ainda
escura, e leva seu bebê para uma creche.
Ela deixa o lho ou lha (não ca explí-
cito se é um menino ou uma menina) na
creche, pega o trem lotado e vai trabalhar,
olhando a cidade através da janela do va-
gão e, pelo seu olhar vago, percebemos
que ela olha a cidade, mas está longe,
pensativa. No vagão lotado, ela se mexe
para deixar os passageiros saírem nas es-
tações e olha no relógio no pulso, preo-
cupada com seu horário de trabalho. Ela
sai do vagão com pressa de chegar logo,
no ritmo acelerado da cidade grande, que
faz termos uma vida automática, sem ver
por onde passamos e as pessoas que
cruzamos. Na sequência, o curta mostra
a personagem pegando mais de um trem,
fazendo baldeação, como se ela morasse
na periferia de Paris e trabalhasse em um
bairro mais central. Ela chega a um prédio,
aperta o interfone com ansiedade e olha
no relógio novamente, entra correndo.
A personagem do seu curta em Pa-
ris, Eu Te Amo olha Paris pela janela e à
sua frente há um prédio alto que esconde
a paisagem. O cineasta, em seu processo
de criação, está sempre nos mostrando o
mundo, não pela visão de cartões postais,
mas por outros caminhos periféricos e
fazendo-nos enxergar por outros ângulos
o mundo que grande parte das pessoas
excluídas vê, um mundo visto pela janela,
pequeno, estreito sem que elas possam
participar dele.
Em seu lme O Primeiro Dia, a
visão de mundo de quase todos os per-
sonagens é pela janela: da janela da ca-
deia, de onde se vê o metrô passar ao
lado; da casa, que dá vista para a favela,
cena mostrada ao nal do lme, após um
nal de ano, uma representação de que
nada mudou, embora um novo ano te-
nha começado.
Sempre existe um trem, um metrô,
um ônibus, uma carta, um avião, um na-
vio ou uma moto em destaque em seus
roteiros, passando pela vida dos persona-
gens, transportando-os para os sonhos ou
transportando os seus sonhos por meio
deles.Há sempre uma circulação, um mo-
vimento de gente indo e voltando em seus
lmes; há também alguém observando ou
partindo, com o olhar, o pensamento, ou
ainda sicamente. O diretor mostra como
é viver em uma cidade grande e não per-
ceber nada, a personagem até dorme de
cansaço no vagão, sua única preocupa-
ção é sobreviver, é ir e voltar, da casa para
o trabalho e do trabalho para casa. Na
maioria dos lmes de Salles, os persona-
gens estão sempre em trânsito, em movi-
mento, e mora dentro deles uma angústia
de chegar a algum lugar sempre, mesmo
31
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
que seja um lugar utópico. É recorrente
também o abandono de algo do persona-
gem no meio do caminho, nem que seja o
abandono da sua identidade.
Uma característica dos seus rotei-
ros é a colocar as pessoas sempre pro-
curando uma fuga: psicológica, social,
econômica ou de si mesmo. Seu curta no
lme Paris, Eu Te Amo mostra que a per-
sonagem não é de lá, mesmo não sendo
caracterizada a sua nacionalidade, sabe-
mos que ela é estrangeira, pois o patrão
fala com ela e ela faz cara de quem enten-
de pouco, concordando com tudo.
O que é importante observar no
processo de criação de Salles é que os
personagens, na maioria das vezes, são
estrangeiros ou retirantes e, também na
maioria das vezes, estão em fuga. Estão
fugindo de uma vingança, de um acerto de
contas, da morte, do desequilíbrio físico e
mental, da miséria, do medo, do abandono
dos pais ou da pátria.Estão em fuga qua-
se sempre, não conseguem parar de fugir,
seja correndo na rua, no trem, no ônibus,
na moto, no carro ou via qualquer meio
de locomoção. Suas estórias geralmente
não são paradas, não são monólogos, têm
poucas cenas internas. Ele é um diretor do
ambiente externo, do exterior das pessoas
e do exterior dos lugares. Ele acompanha
com a câmera a fuga dos seus persona-
gens, ele os persegue com a câmera e
leva-nos junto. Em Terra Estrangeira, as
pessoas pisam em diamantes em uma es-
tação de metrô e nem se dão conta disso.
Além da fuga, Salles gosta de sa-
lientar, de modos muito sutis, os incômo-
dos culturais que um estrangeiro sente,
como em Terra Estrangeira,quando a
personagem de Fernanda Torres fala que
quanto mais ela tem consciência do seu
sotaque, mais ela se sente estrangeira.
Os problemas dos imigrantes e emigran-
tes são tão repetitivos na obra de Salles
porque ele é um diretor que trava um diá-
logo com diretores e obras internacionais
e nacionais, ele consegue pensar o global
regionalmente e pensar o regional global-
mente. Ele consegue sentir as dores de
quem se desloca, porque ele se coloca no
lugar deles, ele os observa antes de dirigir
e escrever. Considero o Salles, não ape-
nas um diretor brasileiro, mas um diretor
do mundo, porque ele é um dos poucos
diretores que tem amizades com diretores
de várias nacionalidades, que faz um cine-
ma híbrido nacional e estrangeiro ao mes-
mo tempo, como são suas obras e seus
personagens. Ele pensa o cinema além
das nossas fronteiras.
Algumas imagens são viciantes no
processo criativo de Salles.Em grande
parte dos lmes dele, por exemplo, a ja-
nela do ônibus e do caminhão, como em
Central do Brasil, são objetos usados para
que o olhar subjetivo dos personagens se
projete para o lado de fora, mas estando,
na verdade, o olhar subjetivo projetado
para dentro, para muito longe dali, não
apenas na distância em relação ao pon-
to de partida, mas na distância do pensa-
mento. Propositalmente os personagens
pensam, sonham, reetem e saem do cor-
po para visitar a alma. Em todo lme dele
a janela é o lugar de pensar na vida, no
mundo, olhar por onde se passa, estando
presencialmente em um local, mas espiri-
tualmente em outro.
Nos lmes de Salles os persona-
gens viajam sem deixar suas origens, e
vemos muito bem isso em suas estórias. A
mãe de Paco, em Terra Estrangeira, vive
no Brasil, mas nunca abandonou San Se-
bastian. As janelas dos diversos meios de
transporte e os vidros e retrovisores dos
carros e motos são objetos que ele usa
para deslocar o pensamento do persona-
gem de lugar. Quanto mais o personagem
vai chegando próximo ao seu destino de
viagem, ou se xa, na verdade mais
próximo ele volta ao seu destino de origem
nas obras de Salles. A viagem, na contra-
32
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mão do que se busca e do que se encon-
tra, é uma constância em sua obra, além
dos contrastes, que fazem parte dos seus
lmes. Contrastes do tipo: quanto mais
abandonamos o nosso país, mais ele está
presente dentro de nós, mais o ressuscita-
mos quanto mais o perdemos de vista.
Filmar em preto e branco Terra Es-
trangeira foi uma decisão que tornou a
obra mais poética ainda, com a intencio-
nalidade de mostrar que o lme trataria de
tempos sombrios no Brasil, de um tempo
sem cor, mas ao mesmo tempo do exílio,
que é sempre período de tristeza, seja
esse exílio forçado ou não. Terra Estran-
geira tem a cor do exílio, que é a ausên-
cia de pátria, a ausência de pai e de mãe
em vários sentidos, a palavra paternidade
passa a ser representada, inclusive, como
orfandade de país e de futuro.
A ideia do preto e branco nasce
inspirada em observações da fotograa
de Robert Frank (fotografo suíço que fez
carreira nos EUA na famosa Beat Gene-
ration). Salles, ao pesquisar sobre a inten-
cionalidade do preto e branco nas obras
de Frank, descobriu que, para o fotógrafo,
essas eram as cores da esperança e de-
sesperança. A escolha do preto e branco
no lme simboliza também o vazio da au-
sência, da saudade, da perda e do aban-
dono da vida antiga.
Mesmo quando seus lmes não são
em preto e branco, eles têm um colorido
diferente para simbolizar estados e situa-
ções diferenciadas, como por exemplo, na
primeira parte do lme Central do Brasil,
em que o Centro da cidade do Rio de Ja-
neiro tem uma cor que transmite a sensa-
ção de claustrofobia, que é recorrente em
outras obras dele em cidades grandes. A
sensação de claustrofobia é reforçada no
vagão do trem e do corredor do prédio da
personagem Dora. Não há horizonte, é o
concreto urbano cinza, sem o azul do céu.
Nessas cenas, a lente é mais fechada,
como o horizonte, e a visão de mundo dos
personagens é como se eles estivessem
espremidos pelo progresso e pela falta de
perspectiva de mudança e de saída para
outra vida. A partir do momento em que os
personagens entram na estrada, as lentes
vão se abrindo e as cores ganham novos
tons cromáticos, fugindo do cinza do con-
creto do início do lme.
A cor cinza predominante no início,
como em Central do Brasil, é justicável.
É como se a estação de trem do Rio fosse
monocromática e que, embora estivesse
sempre em movimento, não mudava de
cor a realidade dura das pessoas, sua cor
estática é sinal de que os vagões de trem
saem do lugar, mas não transformam a
vida das pessoas transportadas nele, que
aquela rotina estressante e exaustiva não
tem espaço para tons mais coloridos e vi-
vos, mais vibrantes e menos asxiantes.
Cor é sinal também de uma atmosfera ale-
gre, algo que não há na Central do Brasil,
e o diretor captou isto no ar. Walter Salles
tem uma leitura das atmosferas dos luga-
res em seus lmes e ele demonstra isso
na troca das lentes na hora de lmar e na
mudança de focos e tons.
Quando os personagens dele em
Central do Brasil entram na estrada, não
apenas eles acabam espairecendo e to-
mando um ar novo em suas vidas e rumos,
mas também é como se a imagem respi-
rasse, percebesse as cores ao redor de
si. A travessia da fronteira entre a cidade
grande do Rio de Janeiro rumo ao interior
do Nordeste é sentida no olhar, pelo tom
ocre da terra seca. O lme também ca
com cores mais vivas e intensas quando
a personagem Dora deixa de ser egoísta
e começa a se preocupar com outro ser. É
como se a partir desse momento sua vida
ganhasse um novo colorido, como se ela
tivesse se divorciado de uma nuvem es-
cura em cima de si, como se sua visão de
mundo tivesse se aberto a partir do instan-
te que não pensa apenas em si, mas se
33
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
preocupa com o outro. Propositalmente,
o diretor nos mostra que a visão de Dora
mudou a partir do momento em que ela se
doa e pensa no outro. É um mundo novo
que se abre à frente dela e nós, espec-
tadores no cinema, também participamos
dessa nova vida.
A personagem Dora também tem
poder sobre a vida dos outros, poder que
se dá quando ela resolve mandar ou não
as cartas que ela escreve para os anal-
fabetos.Ao enviar as cartas, ela acaba
transformando a vida de alguém efetiva-
mente e, por isso, seu mundo muda de
cor. O processo de criação do Salles tem
quase sempre escolhas de paisagens fo-
tográcas e sonoras contrastantes para
cada mudança de rumo, de realidade,
de comportamento e de visão de mundo
dos personagens.
Em Central do Brasil, na casa de
Jessé, no meio do nada, o silêncio é en-
surdecedor, cortado apenas pelo ruído
do vento. Em quase todas as suas obras
os sons e as cores se abrem ou se fe-
cham, conforme a intenção do diretor no
roteiro. As cores podem se abrir quando
o personagem se aproxima da sua iden-
tidade, e podem se fechar quando ele
perde sua capacidade de olhar além de
si, e por aí em diante. Salles aproxima
e afasta cores e sons conforme os per-
sonagens cam mais próximos dos seus
destinos, dos seus objetivos, ou sofrem
uma transformação.
Salles também trabalha com anta-
gonismos em suas obras, sempre com pa-
res complementares e diferentes, do tipo:
nacional – estrangeiro; Brasil – exterior;
cidade grande – sertão; centro – perife-
ria; favela – miolo da cidade. É como se
ele sempre falasse de um apartheid entre
mundos opostos, entre realidades opos-
tas, entre culturas opostas. Seu proces-
so de criação passa pela observação dos
contrastes entre uma coisa e outra.
Alguns cineastas inuenciaram no
seu processo criativo diretamente, como
Antonioni, em Abril Despedaçado, lme
em que o sertão árido é espelhado na
personalidade dos personagens. A seca
é um estado emocional e não apenas cli-
mático. A paisagem fala com o espectador
enquanto o lme é exibido. A paisagem
torna-se um personagem.
Considerações nais
Falar de Walter Salles e do seu
processo criativo é falar da busca da
identidade e da perca. É falar de na-
cionalidade não como um lugar de nas-
cimento, mas de sentimento. É falar de
seu processo de criação em conjunto
com a observação da alteridade entre
coisas, realidades e pessoas distantes, e
ao mesmo tempo próximas, distantes pe-
los contrastes, próximas pelas anidades
de sonhos ou de buscas. Seu processo
de criação é uma permanente busca da
compreensão do outro estranho, estran-
geiro, passageiro, nômade. Do outro que
não tem lugar xo a não ser na história.
Seu processo de criação passa sempre
pela estrada da vida e da cção.
Bibliograa
ASSOCIAÇÃO DOS ROTEIRISTAS. Possibilida-
des do Processo Criativo. 27/02/2012. Disponível
em: http://www.artv.art.br/index.php/estudos/118-
-possibilidades-do-processo-criativo-. Acesso em:
8 ago. 2016.
CHIODETTO, Eder. Lançamento da Relume Du-
mará reúne fotogramas do lme ‘Terra Estrangei-
ra’, o livro, serve de memória da retina. Folha de
São Paulo [online], Folha de São Paulo Ilustrada,
27/09/1997. Disponível em: http://www1.folha.
uol.com.br/fsp/ilustrad/fq270916.htm. Acesso
em: 8 ago. 2016.
34
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
LERINA, Roger. (2012). O diretor Walter Salles
fala sobre o processo de lmagem de “Na Estra-
da”. Jornal Zero Hora, 07/07/2012. Disponível
em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/
noticia/2012/07/o-diretor-walter-salles-fala-
-sobre-o-processo-de-filmagem-de-na-estra-
da-3814144.html. Acesso em: 8 ago. 2016.
SALLES, Walter; THOMAS, Daniela. Desejo de ci-
nema. Terra Estrangeira. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1997.
Filmograa
A grande arte (1991), de Walter Moreira Salles
Júnior.
Abril despedaçado (2001), de Walter Moreira Sal-
les Júnior.
Central do Brasil. (1998), de Walter Moreira Salles
Júnior.
Diários de motocicleta (2004), de Walter Moreira
Salles Júnior.
Linha de Passe (2008), de Walter Moreira Salles
Júnior e Daniela Thomas.
Lisbon Story (O céu de Lisboa) (1994), de Win
Wenders.
O primeiro dia (1998), de Walter Moreira Salles Jú-
nior e Daniela Thomas.
Paris, Je T’Aime (Paris, eu te amo) (2006), de
Alexander Payne, Alfonso Cuarón, Bruno Po-
dalydès, Christopher Doyle, Daniela Thomas,
Emmanuel Benbihy, Ethan Coen, Gérard Depar-
dieu, Gurinder Chadha, Gus Van Sant, Isabel
Coixet, Joel Coen, Nobuhiro Suwa, Oliver Sch-
mitz, Olivier Assayas, Richard La Gravenese,
Sylvain Chomet, Tom Tykwer, Vincenzo Natali,
Walter Salles, Wes Craven.
Terra estrangeira (1995),de Walter Moreira Salles
Júnior e Daniela Thomas.
Recebido em 10/11/2017
Aprovado em 27/08/2018
I Brasil. Cristiane Pimentel Neder. Mestrado e Doutora-
do pela Escola de Comunicações e Artes da USP - Uni-
versidade de São Paulo; Pós-Doutorado pela Universi-
dade Federal de Santa Catarina - UFSC. Professora no
curso de Comunicação Social na UEMG - Universidade
do Estado de Minas Gerais. Cidade: Frutal - Minas Ge-
rais. Contato: nederescritora@hotmail.com.
II GOLEMAN, Daniel. Espírito criativo. 3. ed. São Paulo:
Cultrix, 1999.
III WECHSLER, Solange Muglia. Criatividade: des-
cobrindo e encorajando. 3. ed. Campinas, SP: Livro-
pleno, 2002.
35
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Extrañamiento y desencanto. La mirada de documentalistas alemanes
sobre la transición democrática argentina
Estrangement and disenchantment.The perspective of German
documentary lmmakers on Argentina’s democratic transition
Estranhamento e desencanto. O olhar de documentaristas alemães
sobre a transição democrática argentina
Paola Margulis
I
Resumen:
El presente artículo analiza la mirada de dos cineastas alemanes
sobre el proceso de transición democrática en Argentina a través
del análisis de dos documentales: Del’Argentine / De la Argentina
(Werner Schroeter, 1983-1985) y Kreuzzuggegen die Subversion /
Panteón militar (Wolfgang Landgraeber, 1991). Estos lms denuncian
distintos aspectos del pasado traumático argentino, deteniéndose
en las dicultades que encontraba hacia la década del ochenta y
comienzos de la del noventa el Estado argentino para condenar los
crímenes de lesa humanidad cometidos durante la última dictadura
militar. El abordaje de estos documentales tendrá como objeto
principal el estudio del tratamiento fílmico del “desencanto” que fue
profundizándose en amplios sectores de la sociedad a partir de las
leyes de prescripción de causas militares.
Palabras clave:
Cine
Documental
Argentina
Dictadura
Transición democrática
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Abstract:
The present article examines the perspective of two German
lmmakers on the process of democratic transition in Argentina
through an analysis of two documentaries: De l’Argentine / De la
Argentina/ For example Argentina (Werner Schroeter, 1983-1985)
and Kreuzzuggegen die Subversion / Panteónmilitar (Wolfgang
Landgraeber, 1991). These lms denounce different aspects of
Argentina’s traumatic past, focusing on the difculties that, during
the 1980s and beginning of the 1990s, the Argentinean State was
encountering to condemn crimes against humanity committed during
the last military dictatorship. The approach to these documentaries
will have as its main objective a study of the cinematographic take
on the “disenchantment” that deepened among wide sectors of the
society after the statutes of limitation on military trials.
Resumo:
O presente artigo analisa o olhar de dois cineastas alemães sobre o
processo de transição democrática na Argentina através da análise de
dois documentários: De l’Argentine / De La Argentina [Da Argentina]
(Werner Schroeter, 1983-1985) e Kreuzzuggegen die Subversion/
Panteón militar [Panteão militar] (Wolfgang Landgraeber, 1991).
Estes lmes denunciam distintos aspectos do passado traumático
argentino,marcando as diculdades que o Estado ia encontrando ao
chegar na década de oitenta e no começo dos anos noventa para
condenar os crimes de lesa humanidade cometidos durante a última
ditadura militar. A abordagem destes documentários terá como objeto
principal o estudo do tratamento fílmico do “desencanto” que foi se
aprofundando em amplos setores da sociedade a partir das leis de
prescrição de causas militares.
Keywords:
Cinema
Documentary
Argentina
Dictatorship
Transition to democracy
Palavras chave:
Cinema
Documentário
Argentina
Ditadura
Transição democrática
37
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Extrañamiento y desencanto.
La mirada de documentalistas
alemanes sobre la transición
democrática argentina
La denuncia y la revisión del pasado
dictatorial argentino (1976-1983) son algu-
nas de las marcas centrales del cine docu-
mental político de la transición democrática
realizado por cineastas exiliados o que resi-
dían en el exterior de su país durante aque-
llos años, desde perspectivas que recuperan
las narrativas humanitarias (MARKARIAN,
2004; CRENZEL, 2008; CAMPO, 2017).
Estas obras tienen el mérito de ser las pri-
meras voces cinematográcas en denunciar
el terrorismo de Estado, informar sobre los
desaparecidos, brindar testimonio sobre la
violencia y la tortura, y ubicar como un actor
central –silenciado por aquel entonces en
otros medios hegemónicos- a las Madres de
Plaza de Mayo. Financiados generalmen-
te por instituciones extranjeras –canales
de TV, escuelas de cine, ONG- estos lms
tuvieron una circulación sumamente res-
tringida en Argentina, hasta ser rastreados
y recuperados como parte del acervo cul-
tural nacional varias décadas más tarde. Si
el conocimiento y circulación de estos lms
de por sí resultó marginal y escalonada, mu-
chos menos conocida resulta la producción
de cineastas extranjeros sobre la dictadura
argentina. En general, estas películas per-
manecieron dispersas por el mundo, extra-
viadas, o simplemente desconocidas para el
público sudamericano, en un tiempo en que
los formatos de lmación y conservación no
facilitaban el intercambio de materiales au-
diovisuales a nivel global.
En pocos años, instituciones alema-
nas produjeron o co-produjeron varios lms
documentales y ccionales de directores ar-
gentinos y extranjeros que abordan, directa
o indirectamente, el tema de la última dicta-
dura argentina, entre ellos: Blauäugig / Ojos
azules (Reinhard Hauff, 1989), Die Freun-
din / La amiga (Jeanine Meerapfel, 1988),
Exilund Rükkerhr / Cuarentena. Exilio y re-
greso (Carlos Echeverría, 1984), Angelelli,
con un oído en el pueblo y otro en el evange-
lio (Mario Bomheker, 1986), Juan, Alswäreri-
chtsgeschehen / Juan, como si nada hubie-
ra sucedido (Carlos Echeverría, 1987), Es
gibtkein Vergessen/ Desembarcos (un taller
de cine en Buenos Aires) (Jeanine Meera-
pfel, 1989), y Kreuzzuggegen die Suversion
/ Panteón militar (Wolfgang Landgraeber,
1991). Los vínculos entre Argentina y Ale-
mania, junto con el paralelo que es posible
trazar entre la Alemania nazi y la Argentina
bajo el régimen militar, son probablemente
los elementos que justican el interés por
parte de instituciones alemanas –principal-
mente canales de televisión- en producir pe-
lículas que abordan la historia reciente del
país sudamericano; como sugirieron algu-
nos cineastas argentinos que asistieron al
encuentro “Medios del Norte. Imágenes del
Sur. Primer encuentro argentino-alemán so-
bre producción, distribución, y coproducción
y fomento del cine documental” realizado
en el Goethe Institut Buenos Aires en 1989
(MASSUH; GUARINI, 1990). Dichos aspec-
tos fueron señalados como parte de un plan-
teo destinado a destacar el modo en que el
nanciamiento europeo condiciona la mira-
da que impera en los lms producidos desde
el norte, orientando el tratamiento de estos
temas hacia el espectador europeo
II
. El lm
del realizador alemán Werner Schroeter, De
l’Argentine/ De la Argentina (1983-85) nan-
ciado mayormente con capitales franceses,
se sale de la circunscripción estrictamente
alemana; sin embargo, la nacionalidad e
identidad de su realizador permea su visión
de mundo, manteniéndose de todos modos
la hegemonía del eje de la mirada norte-sur.
Dentro de dicha serie, el presente ar-
tículo se concentrará en los dos documen-
tales realizados por cineastas extranjeros
que abordan aspectos traumáticos del pa-
sado reciente argentino: De l’Argentine / De
38
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
la Argentina (Werner Schroeter, 1983-1985)
y Kreuzzuggegen die Subversion / Panteón
militar (Wolfgang Landgraeber, 1991). Se
trata en el primer caso de un lm reciente-
mente encontrado que ha tenido una circu-
lación sumamente restringida en América
Latina, y en el segundo, de un documental
prácticamente desconocido para el público
argentino. El abordaje de estos lms tendrá
como objeto principal el estudio del trata-
miento fílmico del “desencanto”, propio de
la crisis de expectativas que fue tomando
forma años después del retorno democrá-
tico. La noción de “desencanto” remite a un
concepto “ubicuo, disputado, concreto para
unos e inexistente para otros”, una caracte-
rización cuyo éxito pareciera residir, precisa-
mente, en la dicultad para anclarlo y en la
falta de referente preciso (EGEA, 2004, p.
81). Su asociación al proceso de transición
democrática, viene dado por el precedente
que marcó en España el documental de Jai-
me Chávarri, El desencanto (1976), el cual
sirvió para titular y caracterizar a posteriori
dicho período cultural (Egea, 2004, p. 81).
En el caso argentino, la crisis de expecta-
tivas se puso de maniesto por la dicultad
para dar cumplimiento a la “promesa demo-
crática”, planteada como uno de los ejes
principales de la campaña del luego electo
presidente Raúl Alfonsín, ligada a “…la po-
tencia de la justicia sobre los crímenes de
lesa humanidad y el terrorismo de Estado”
(CANELO, 2006, p. 86). Desde ese lugar,
sostiene Alfredo Pucciarelli, “…la promesa
incumplida se traduce en desilusión y des-
encanto frente a una democracia incapaz
de resolver los grandes problemas que ella
misma ha enunciado…” (PUCCIARELLI,
2006, p. 146). Algunos hechos puntuales
contribuyeron a generar dicha atmósfera
social, como las cuatro rebeliones militares
que tuvieron lugar durante la segunda parte
de la década del ochenta, y ligadas a ellas,
la promulgación de las Leyes de Punto Fi-
nal
III
(1986) y Obediencia Debida
IV
(1987),
que colocaron límites a los juicios a distintos
miembros de las fuerzas armadas durante
el gobierno de Raúl Alfonsín. Estas leyes
son incorporadas en un momento en el que
el compromiso era alto, porque el juicio a las
juntas militares en 1985 había constituido un
proceso judicial sobre el que no había pre-
cedentes, sosteniendo las esperanzas de
que la institución democrática pudiese dar
curso a las reivindicaciones de verdad y jus-
ticia sostenidas por los organismos de dere-
chos humanos. Con posterioridad, los indul-
tos decretados entre 1989 y 1990 durante la
administración de Carlos Saúl Menem, con-
tribuyeron a clausurar dicho sistema de ex-
pectativas y a generar un sentimiento epocal
de decepción en grandes sectores de la so-
ciedad. Sin embargo, tal como señalan Car-
los Acuña y Catalina Smulovitz, a pesar de
las limitaciones de los alcances de la política
de sanciones, el indulto y la liberación de los
condenados, la distribución de costos y be-
necios políticos que resultó de los juicios
no pudo ser totalmente revertida: “Una vez
que la lógica jurídica transformó a los datos
de la historia en pruebas, ni el indulto ni la
amnistía pudieron retrotraer la cuestión de
los derechos humanos a situaciones en las
que una ley de olvido o una amnistía antici-
pada evitan toda investigación y juzgamien-
to” (ACUÑA; SMULOVITZ, 1995, p. 22). En
esas circunstancias, aquellos que se bene-
ciaron con estas leyes, debieron admitir que
los hechos por los cuales se los eximía de
castigo, eran delitos (ACUÑA; SMULOVITZ,
1995, p. 65)
V
.
En el marco de este trabajo, argu-
mentaremos que junto con la desilusión
por las leyes de prescripción de causas
–también conocidas como leyes del olvi-
do- y en general las políticas regresivas en
materia de derechos humanos, el desen-
canto también está dado por la dimensión
económica, a partir de miradas críticas so-
bre un modelo de sociedad en el que se
acentúan las desigualdades sociales. Con
ese objetivo en miras, nos concentramos
en el modo en que De la Argentina y Pan-
teón militar retratan la sociedad argentina,
y en especial, el seguimiento de la pro-
blemática de los derechos humanos y las
39
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
leyes de prescripción de causas militares.
Más allá de las diferencias que establece
el eje temporal en el tratamiento de este
tema, se destaca en estos dos documen-
tales la exaltación de los opuestos a través
de la comparación en general y del monta-
je alternado en particular, el cual “…abre la
puerta a todos los ‘simbolismos’” (METZ,
1974, p. 149). En estoslms, la exaltación
de opuestos tiende a enfatizar las tensio-
nes y conictos irresueltos durante la tran-
sición, y las dicultades en la instancia de
“consolidación democrática”.
VI
El desencanto anunciado: De la Argentina
Antes, incluso, de la promulgación
de las leyes de prescripción de causas mi-
litares hacia mediados de la década del
ochenta, algunos documentales ya señalan
en tiempo presente los conictos que des-
encadenarán el desencanto de posteriores
años. Tal es el caso del lm De la Argentina
VII
(1983-1985) del realizador alemán Werner
Schroeter. Se trata de una película poco ha-
bitual en el contexto de la postdictadura ar-
gentina, que se exhibió en dicho país recién
en 2013, cuando su copia fue encontrada
en la Cinemateca francesa.
VIII
De la Argen-
tina observa el contexto argentino postd-
ictadura a partir de la mirada extrañada y
foránea de su realizador, caracterizada por
un estilo irreverente y provocador que inclu-
ye escenicaciones, e irónicas apariciones
del mismo Schroeter frente a cámara. Este
lm-ensayo de carácter documental aborda
los horrores vividos durante el terrorismo
de Estado contrastando las declaraciones
ociales del régimen con el testimonio de
miembros de organismos de derechos hu-
manos, víctimas y familiares de desapareci-
dos. A su vez, la película también promueve
una agenda propia que incluye temas de
género, libertades sexuales, y crítica a la so-
ciedad patriarcal. Estos ejes – que eviden-
temente constituyen intereses e inquietudes
personales de Schroeter - posiblemente re-
sultaran habituales en el contexto de la Ale-
mania de la década del ochenta, pero eran
mucho menos frecuentes en el documental
argentino postdictadura.
Uno de los puntos nodales del lm
De la Argentina, apunta precisamente a las
dicultades que hacia mediados de la -
cada del ochenta encontraba el gobierno
de Raúl Alfonsín para dar curso a los jui-
cios por los crímenes de lesa humanidad
cometidos durante la última dictadura mili-
tar. En uno de los tramos más signicativos
a este respecto, mediante la contraposición
de discursos antagónicos, se contrasta la
posición asumida por el gobierno de Raúl
Alfonsín y los argumentos sostenidos por
distintos miembros de organismos de de-
rechos humanos respecto de cómo opera-
tivizar las acciones de justicia, para darle
curso legal a las condenas de los militares.
Más allá de esta primera contrastación, el
documental no pasa por alto las diferencias
que sobre este tema sostienen integran-
tes de diferentes organismos de derechos
humanos, deteniéndose especialmente en
las disidencias entre Madres y Abuelas de
Plaza de Mayo en torno de la creación de la
Comisión Nacional sobre la Desaparición
de Personas (CONADEP).
IX
En un contexto en el que desde el
poder se alentaba a minimizar el conicto
con el objeto de “no desestabilizar” al nue-
vo gobierno, la mirada foránea de Schroeter
exalta precisamente estas problemáticas
que pretendían ser aminoradas. Así, me-
diante el montaje alternado, el lm con-
trapone los discursos públicos de Raúl Al-
fonsín durante la marcha “en apoyo de la
democracia” por él mismo convocada para
el 26 de abril de 1986; y la palabra de Hebe
de Bonani, la cual se solapa con imágenes
de distintas intervenciones de Madres de
Plaza de Mayo, destacándose entre ellas, la
“marcha de las manos” realizada en 1985.
Para dicho evento el espacio aéreo de Ave-
nida y Plaza de Mayo fue cubierto por un
millón de contornos de manos rmadas en
su interior por distintas personalidades na-
40
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cionales e internacionales, avalando la con-
signa “No a la amnistía. Juicio y castigo a
los culpables”. Por momentos, el audio de
ambos discursos se superpone, e inclu-
so, la voz de Bonani es articulada con las
imágenes de las masas convocadas por el
presidente. Mientras que la gura de Alfon-
sín está fuertemente presente en pantalla,
fundiéndose incluso con los muchos que le
brindan apoyo, la imagen de Bonani no es
mostrada visualmente. Su corporalidad se
hace presente únicamente a partir del regis-
tro sonoro de su voz, el cual cobra mayor
intensidad durante la lectura del poema de
Pablo Neruda Los Enemigos, que dio cierre
a su intervención. De ese modo, el mon-
taje alternado contrapone los argumentos
de Alfonsín, tendientes a relativizar la res-
ponsabilidad de las Fuerzas Armadas en el
ejercicio del terrorismo de Estado, junto con
la fuerza emocional de la voz de Bonani al
reiterar la frase “pido castigo”, que funciona
como leitmotiv del poema de Neruda.
En el contexto de un gobierno que
tocaba “…los límites que le opusieron la
agudización de la crisis económica y las
movilizaciones corporativas de las principa-
les organizaciones del capital y del trabajo”
(NUN, 1987, p. 48), los discursos de Alfon-
sín que aparecen en el lm de Schroeter,
no son ya los que promovían la promesa
de la democracia (la célebre fase “con la
democracia se come, con la democracia se
educa, con la democracia se cura” pronun-
ciada en su discurso inaugural); sino aque-
llos otros que — anticipando el desencanto
de posteriores años — darían cuenta de
la fragilidad de la conquista democrática,
la necesidad de defenderla, y las presio-
nes de distintos sectores, principalmente
del ejército, para evitar llevar adelante los
juicios. Según explica Roberto Gargarella
(2010, pp. 35-36) el discurso de Alfonsín
habría generado una fuerte desilusión en
los asistentes a la marcha:
aquejado por una grave crisis económi-
ca, y enfrentando los primeros rumores
de inestabilidad… (…) La expectativa
era que Alfonsín hablara del golpe en
ciernes; sin embargo, frente a la mul-
titud, el Presidente no se rerió a la
amenaza del golpe, sino que hizo re-
ferencia a la llegada de una “economía
de guerra” (la necesidad de una política
de riguroso ajuste económico), invoca-
ción frente a la cual la ciudadanía —de
fortísimas simpatías alfonsinistas— no
pudo sentir sino decepción.
X
Gabriel
El factor económico del desencanto
es constantemente señalado en el lm de
Schroeter por medio del testimonio de dis-
tintos entrevistados, pero también, y funda-
mentalmente, por la presencia destacada de
un niño de sectores humildes llamado Ga-
briel. Su pertenencia de clase y su rol social
no son explicitados por el lm en forma con-
textual, puesto que nunca se muestra a sus
padres o se alude al marco situacional en
el que vive y se desenvuelve normalmente.
Por el contrario, Gabriel aparece arrancado
de su cotidianeidad y de sus lazos socia-
les, interactuando con adultos en espacios
y situaciones articiales en los que se des-
taca el control sobre la puesta en escena.
Por momentos, el niño entra en diálogo con
Schroeter o con algún miembro del equipo
de lmación, mientras que en otros, forma
parte de acciones abiertamente planicadas
o coreograadas en las que interactúa con
actores o cantores.
El lugar alegórico que ocupa Ga-
briel en el lm está dado precisamente por
su corta edad y su extracción social. Se
trata de un niño que no conoció otra Ar-
gentina que la de la dictadura -a partir de
una posición socio-económica marginal-,
y que atraviesa un presente en el que a
sus ojos, el porvenir se muestra desencan-
tado, sin sueños ni esperanzas a futuro.
Ante las preguntas que le dirigen sus en-
trevistadores, inquiriendo qué entiende por
41
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
conceptos complejos como “libertad”, “de-
mocracia”, etc., Gabriel va rotando sus res-
puestas (puesto que las preguntas muchas
veces se reiteran), sosteniendo que dichos
conceptos no son “nada”, o por ejemplo,
que “la libertad, [signica] que estamos li-
bres, podemos ir a robá (sic)”. Más allá del
agudo control sobre la puesta en escena
–y posiblemente sobre algunos diálogos-,
la mirada resignada y desesperanzada de
quien estuvo siempre fuera del sistema, se-
ñala continuidades entre el régimen militar
y el civil que no se extinguen con el retorno
democrático, y que por eso mismo, difícil-
mente puedan idealizar a este último.
A este respecto, uno de los momen-
tos más llamativos del lm, involucra la gu-
ra de Gabriel junto con la de la emblemática
actriz Libertad Leblanc, ícono sexual de las
décadas del sesenta y setenta, quien per-
sonica a Eva Perón, la “abanderada de los
humildes”, luciendo lujosos vestidos que al-
guna vez pertenecieron a la esposa de Juan
Domingo Perón. Más allá de los obvios con-
trastes entre las imágenes de Eva y Leblanc
luciendo el mismo atuendo, estos pasajes
también destacan con ironía las contradic-
ciones entre la ostentación y las políticas
sociales que le dieron identidad al peronis-
mo. Así, mientras la cámara se detiene en
las réplicas de las joyas de Eva, la voz su-
perpuesta de Enrique Pinti -correspondiente
a uno de sus monólogos en Salsa Criolla-,
alude a las vacaciones pagas, al aguinaldo,
la compra de electrodomésticos, y otras rei-
vindicaciones que los trabajadores obtuvie-
ron durante el primer peronismo. Con poste-
rioridad, Gabriel, arrodillado a los pies de la
sensual Leblanc le pregunta: “Evita, ¿cómo
te sentís ahora que no estás con nosotros?”.
A diferencia de otras personicaciones de
Eva que aparecen en el documental, la de
Libertad Leblanc interactuando con Gabriel
parecería constituir un simulacro, en el mis-
mo sentido en que lo postula el cuento de
Jorge Luis Borges (1974, p. 789) que lleva
el mismo nombre. En el cuento, el simula-
cro del velatorio de Eva –representada por
una muñeca rubia en un cajón junto a un
hombre que personica al General- es com-
pletado por la congregación de seguidores
que se acercan a darle el pésame a Perón y
despedirse de los restos de su esposa. Por
su parte, en el lm de Schroeter, la escena
simulada se completa con Gabriel, niño de
orígenes humildes que bien podría ser desti-
natario de las políticas encaradas por la fun-
dación Eva Perón. Al igual que en la cción
de Borges, la simulación de Schroeter se
completa con la realidad corporal del pueblo
seguidor de Eva y la pasión manifestada ha-
cia sus líderes. Por otra parte, al incorporar
estos pasajes en los que se conjugan la os-
tentación y la fuerte vinculación con los sec-
tores populares, Schroeter dirige una aguda
mirada sobre algunas de las contradiccio-
nes que caracterizaron al primer peronismo,
en un momento histórico de crisis, luego de
la primera derrota de este movimiento polí-
tico en elecciones democráticas. En dichas
circunstancias, la representación de los sec-
tores carenciados identicados histórica-
mente con los íconos del peronismo- consti-
tuye un área en disputa.
El desencanto como clima de época:
Panteón militar
Si en términos generales en el docu-
mental de los ochenta el desencanto apa-
rece principalmente ligado a la promulga-
ción de la Ley de Punto Final; traspasando
el umbral de la década del noventa -luego
de las rebeliones militares y de los indultos-
la desilusión se convertirá en un clima epo-
cal de desesperanza generalizada, fuerte-
mente ligado al giro neoliberal y a la pátina
de corrupción e impunidad atribuidas al
menemismo. En dicho contexto, Panteón
militar (Wolfgang Landgraeber, 1991) pro-
pone un escenario fuertemente polarizado
en el que se destacan la impunidad y las
contradicciones entre ideas, clases y sec-
tores sociales. El lm de Landgraeber ana-
liza la matriz ideológica que caracteriza a la
institución militar argentina, sus referentes,
42
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
y algunas consecuencias de su accionar
luego de la última dictadura militar. El docu-
mental va siguiendo las vinculaciones entre
los ejércitos alemán y argentino, a partir de
la posición de referencia que establece el
cuerpo militar europeo sobre el sudameri-
cano, pero también, y fundamentalmente,
a partir de su rol como proveedor de arma-
mento a la Argentina desde principios del
siglo XX, deteniéndose especícamente
en el período de la última dictadura militar
(1976-1983). De ese modo, la mirada so-
bre el terrorismo de Estado está mediada,
ya desde el comienzo, por la dimensión
económica. En el inicio del lm unos intertí-
tulos en alemán –leídos en español por una
voz over- organizan un prólogo contextual
en el que se articula el accionar coercitivo
de las fuerzas armadas durante la dictadu-
ra –por medio de la práctica de desapari-
ción de personas-, junto con la compra de
armas a Alemania como uno de los des-
encadenantes del incremento de la deuda
externa argentina, destacando también las
cuatro rebeliones militares que precipita-
rían luego la amnistía. A su vez, a lo largo
de su desarrollo, el lm aborda algunas de
las consecuencias de la política neolibe-
ral del gobierno menemista, en particular,
el impacto del compromiso de pago de la
abultada deuda externa sobre algunos de
los sectores más vulnerables de la socie-
dad argentina, como los jubilados y grupos
de bajos recursos económicos.
En el lm, la gura de Osvaldo Ba-
yer –intelectual de ascendencia alemana
que debió exiliarse en Berlín durante los
años de represión- actúa como nexo entre
ambos países, compartiendo a través de
un intercambio epistolar ccionalizado di-
rigido a un amigo, distintos parámetros de
la situación contextual, junto con aspectos
de su historia y experiencia personales du-
rante la dictadura y transición democrática.
La perspectiva de Bayer es también com-
plementada con entrevistas a militares y
ex militares defensores y detractores del
rol y los valores de las Fuerzas Armadas
argentinas, en especial en lo que respec-
ta a su papel durante la última dictadura.
La vinculación de Bayer con esta historia
se da a partir de la publicación de una de
sus obras más destacadas, La Patagonia
rebelde
XI
–libro que inspiró un lm con el
mismo nombre dirigido por Héctor Olivera
(1974), en el cual el historiador participó
como guionista-, y también por sus investi-
gaciones sobre el militarismo y la inuencia
de lo prusiano en los militares argentinos.
La labor de Wolfgang Landgraeber
como documentalista y productor, ha estado
vinculada con el periodismo de investigación
en la televisión pública alemana (WDR),
y ha mostrado a lo largo de su carrera, un
sostenido interés por temas vinculados con
el militarismo y la exportación de armas. En
el caso de Panteón miliar, la mirada foránea
de Landgraeber se traslada principalmen-
te a la ironía y el extrañamiento – aspectos
que también comparte con De la Argentina.
La ironía se advierte, principalmente, en la
editorialización a través del uso de la banda
sonora, rompiendo el clima ceremonial de
protocolos de distintos eventos, ridiculizan-
do desles militares, e incluyendo, incluso,
un inusual versionado del himno nacional
argentino hacia el nal del lm, mientras se
exhibe en pantalla la imagen del panteón
militar. La mirada extranjera se percibe tam-
bién en el afán irónico por ubicar reiterada-
mente en lugar de centralidad la admiración
que sienten ciertos militares argentinos por
los valores del ejército prusiano –considera-
dos en muchos casos anacrónicos por los
propios alemanes-, y su orgullo por la utili-
zación de armamento del país nórdico. Pero
independientemente de la mirada externa de
Landgraeber, el lm también incluye la par-
ticipación de un realizador argentino, Carlos
Echeverría, quien decidió no participar de la
edición nal ni gurar en los créditos como
co-autor, debido a desavenencias con el
director alemán. Más allá de esta decisión
nal, Echeverría habría dedicado alrededor
de ocho años de investigación a la prepro-
ducción de Panteón militar, lm cuya temáti-
43
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ca se encuentra muy cercana a algunos de
sus trabajos previos realizados en Alemania
y Argentina para cine y televisión.
XII
Alejado temporalmente de la mayor
parte del cine documental humanitario “del
retorno” propio de la década del ochenta,
Panteón militar surge cuando los indultos
ya habían clausurado por completo toda
esperanza de justicia transicional. En di-
cho contexto, el documental alude a la am-
nistía como hecho consumado, a través
de las percepciones que Osvaldo Bayer le
transmite a un amigo, en un intercambio
epistolar ccionalizado:
Si bien los verdugos uniformados fue-
ron castigados por la justicia por sus
crímenes, los políticos oportunistas
proclamaron muy pronto su amnistía.
Hoy se puede ver a los asesinos ca-
minar tranquilos por las mismas calles
donde secuestraron a sus víctimas.
En un sentido similar, el historiador
también cuestiona la base ética que sos-
tiene las Ley de Obediencia Debida:
Todos los ociales, desde Subteniente
a General, sabían muy bien los mé-
todos que se aplicaban, pero todos,
absolutamente todos, se ampararon
en la Obediencia Debida. Ni un solo
ocial argentino para demostrar su
inocencia y defender su honor recha-
la clemencia ocial y exigió que se
le hiciera un juicio para demostrar su
inocencia. ¿Dónde quedó el honor de
los últimos prusianos, como gustan en
llamarse los militares argentinos?
La comparación
Al igual que en De la Argentina parte
de la mirada crítica aparece en el lm de
Landgraeber a partir de la exaltación de
opuestos. En Panteón militar, los opuestos
son construidos y destacados en forma es-
quemática por la comparación, la cual es
en algunos casos vehiculizada por la re-
exión de Bayer, mientras que en otros es
generada por medio del montaje alternado.
Una de estas comparaciones, explica pre-
cisamente el título del lm. En ella, la voz de
Osvaldo Bayer contrapone un monumento
situado en el cementerio de Generales pru-
sianos, cerca del aeropuerto berlinés de
Tempelhof, y el Panteón militar argentino.
El primero, señala el historiador, ha queda-
do arrinconado, “un cementerio olvidado y
molesto”, un sitio anacrónico que
no es solo una población de muertos,
sino también un lugar sin vida. Pare-
ciera ser un gigantesco monumento
a la obediencia y la agresión, las dos
características fundamentales de la
vida de un militar. En mi país, Argenti-
na, se cree todavía en todo eso, como
si nos hubiéramos detenido efectiva-
mente en el tiempo.
Las imágenes de una clase de ins-
trucción en el Colegio Militar argentino,
articuladas con la reexión de Bayer, per-
miten constatar cómo los cuadros militares
argentinos son formados tomando como
referente imágenes del ejército prusiano
proyectadas en un televisor, precisamente
aquella fuerza que el intelectual descalica
como decadente dentro del propio imagina-
rio alemán. Como parte de este patrón cul-
tural argentino extemporáneo, Bayer nota:
En Argentina, los ociales muertos
son depositados en el Panteón Mili-
tar, al compás de bronces, tambores y
discursos. Se les dedica monumentos
de cuerpo entero sobre los que no se
posa ningún pájaro. Se creen inmorta-
les y mueren ya antes de morir.
Las imágenes que acompañan esta
reexión presentan a Bayer en el cementerio
de los militares prusianos de Berlín, contem-
plando un monumento de gran magnitud.
Dicha perspectiva se compone por planos
44
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
amplios, que buscan abarcar la inmensidad
de la estatua, recorriendo verticalmente los
rasgos de un militar que se encuentra de
pie, junto a la gura de un ataúd que deja
entrever, por debajo del capote que cubre
el cuerpo, los puños cerrados del cadáver
que asoman, como dando batalla desde la
muerte. El detalle de los puños cerrados
del monumento, conecta a través del mon-
taje con un gesto similar que adoptan las
manos de un joven que toma clases en la
institución militar argentina. Las palabras de
Bayer, aludiendo a la decadencia de lo pru-
siano, permiten en el caso argentino invertir
el concepto: si el monumento muestra a un
militar alemán que sigue dando batalla aún
desde la muerte; la imagen del puño cerrado
del estudiante argentino muestra la repro-
ducción viva del ejército argentino a partir de
doctrinas que ya han fenecido. El lugar de
la mirada, emplazada desde la perspectiva
de un realizador alemán y mediada por la
ironía, resalta el lugar de subalternidad de
la posición argentina, que sigue consumien-
do con orgullo ciertos arquetipos en desuso,
mientras Alemania sigue generando divi-
dendos por el prestigio prusiano.
El hambre y la comida
Otro de los momentos que sinteti-
zan el desencanto por el endeudamiento y
las políticas económicas durante la década
del noventa, remite a una contraposición
que mediante el montaje alternado con-
trasta la situación de lujo de ciertos even-
tos protocolares militares, y la precariedad
que atraviesan las personas de la tercera
edad. Por medio de esta comparación po-
demos ver una olla popular organizada por
jubilados como medida de lucha frente al
empeoramiento de sus condiciones de
vida. Los vemos en la calle, preparando
la comida en grandes cacerolas, y luego
sentados en bancos, para ingerir los ali-
mentos. El montaje del lm alterna estas
vistas de los ancianos, con otras imágenes
que exhiben eventos militares en los que
se destacan las armas y la comida. Una de
estas series – en la que nos concentrare-
mos - muestra una sosticada ceremonia
protocolar en la embajada de Alemania, la
cual tiene por objeto condecorar a dos mili-
tares argentinos que se han especializado
en el uso de equipamiento militar alemán,
gracias a la cooperación entre las fuerzas
armadas de uno y otro país. La simbología
de “el hambre y la comida” es construida,
obviamente, al intercalar imágenes de los
jubilados repartiéndose trozos de pan en la
olla popular, con el metraje correspondien-
te al sosticado cóctel en la embajada, en
el que continuamente circulan elegantes
bandejas para agasajar a los uniformados
de alto rango. Luego, la cámara que has-
ta el momento no se había salido del pro-
tocolo de lmación institucional propia de
dichos eventos sociales –atendiendo a los
protagonistas del acto y paneando hacia
los costados para registrar la presencia de
los invitados- comienza a tomar un rol más
incisivo a partir de la focalización en ciertos
grupos de asistentes y el registro de sus
conversaciones. El lm se interesa en es-
pecial por un círculo de individuos, algunos
militares y otros ciudadanos civiles, que
mantienen una conversación mientras dis-
frutan del cóctel. La lente se detiene inicial-
mente en sus rostros – que se recortan iró-
nicamente sobre el fondo de una bandera
argentina colgada detrás de ellos- mientras
uno de ellos se reere a lo hermética que
encuentran la situación en dicho momento,
optando luego el montaje por sostener la
continuidad sonora del diálogo – mientras
este adquiere un matiz más compromete-
dor- para concentrarse en algunos detalles
de las espaldas, insignias, y las manos de
los asistentes. Esta operación tiende re-
forzar el protagonismo del plano sonoro,
mientras uno de ellos arma: “…no debe
olvidarse que el Cordobazo empieza a tra-
vés de un pequeño problema en un come-
dor universitario, ¿se acuerda? Así empezó
el derrocamiento de… o sea la caída de un
gobierno…”. Este fragmento forma parte
de un intercambio que no estaba destinado
45
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
a hacerse público. Se trata de una conver-
sación informal, posiblemente trivial en el
universo de las personas que la sostienen,
que al ser integrada a la mirada crítica y ex-
trañada del lm, genera cierta distancia en
el espectador. Sus participantes se mues-
tran conscientes de la presencia de la cá-
mara, pero no parecen prestar mucha aten-
ción al resguardo de sus conversaciones,
dado que como es habitual en este tipo de
eventos, el audio suele descartarse por re-
sultar irrelevante y/o por estar viciado por el
sonido ambiente. Como es de esperarse, la
planicación del lm se sale de la formula
de registro habitual en este tipo de acon-
tecimientos y opta por conservar la banda
de sonido ahogada por el bullicio, dejando
de lado la imagen de los participantes –
que parecería estar tomada con nitidez-. Al
igual que en otros momentos del lm, estas
acciones le permiten a Landgraeber ironi-
zar sobre las características del protocolo
militar y diplomático.
Si bien las palabras de este peque-
ño grupo de asistentes constituyen un lugar
común en el patrón de pensamiento militar
que ayuda a reconstruir el lm –en el que
fácilmente tienen lugar la legitimación de un
régimen dictatorial y la desligitimación de un
movimiento popular-, este fragmento, sin
embargo, extracta la preocupación por la
coyuntura política de la Argentina, y en es-
pecial, la intranquilidad que cualquier mani-
festación de disconformidad podría generar.
Pero a diferencia de nes de la década del
sesenta, cuando tuvo lugar el Cordobazo,
en el presente del lm no son los estudiantes
los que están en las calles, sino los ancianos
–como describe el montaje alternado- cuya
vulnerabilidad pasa, entre otras cosas, por
no constituir un grupo de presión frente a las
políticas de ajuste que estaba poniendo en
marcha el gobierno. De este modo, estas
palabras se vuelven una cáscara discursi-
va hueca, un simple lugar común dentro del
repertorio conservador, que pareciera decir
más de quién lo dice que de la coyuntura
argentina de dicho momento.
A modo de conclusión
Luego de este recorrido, nota-
mos que la diferente inscripción tempo-
ral de Panteón militar y De la Argentina
-el transcurrir de los años ochenta hasta
comienzos de los noventa-, resulta un
factor determinante en lo que reere a
la organización de ejes de conictos y
alusión al marco contextual. Si en De la
Argentina los problemas de la transición
remiten a grupos acotados y especícos
de la sociedad –como los organismos de
derechos humanos, el gobierno, el ejér-
cito-; en Panteón militar el desencanto
aparece como un clima de época gene-
ralizado. Sin embargo, y más allá de las
diferencias contextuales, tanto en uno
como en otro lm la desilusión alude tan-
to a las políticas regresivas en materia
de derechos humanos, como a la política
económica. En términos generales, las
presiones que el gobierno de Raúl Alfon-
sín sufría por parte del ejército y otros
sectores, no suelen aparecer problema-
tizas en estos lms, y cuando se insi-
núan algunas vetas de estos conictos,
son en general leídos como marcas de la
continuidad entre dictadura y democra-
cia, destacando la deuda pendiente que
el nuevo gobierno debía saldar en mate-
ria de derechos humanos.
Si en el lm de Schroeter el fac-
tor económico aparece más que nada en
forma alegórica, en el de Landgraeber
este eje asume formas concretas, a par-
tir de la política de corte neoliberal que
incluye el ajuste, la exibilización laboral
y el compromiso de pago de la deuda ex-
terna (contraída en gran parte durante la
última dictadura militar). En ambos lms
tiene mucho peso la exaltación de opues-
tos y la comparación, vehiculizada a par-
tir de los simbolismos que construye el
montaje alternado, en los que se destaca
el lugar de los sectores más vulnerables
de la sociedad: los niños en un caso, los
ancianos en el otro.
46
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Tanto uno como otro lm observan las
continuidades entre dictadura y democracia,
pero lo hacen desde lugares contrapuestos:
De la Argentina ubica el peso de su mirada
en los organismos de derechos humanos,
mientras que Panteón militar sigue de cerca
la institución castrense. Ambas perspecti-
vas, no obstante, resaltan las continuidades
entre dictadura y democracia, la forma en
que la primera sobrevive en la segunda y el
modo en que la democracia lleva intrínseca
el germen de la violencia militar. Estas cir-
cunstancias vuelven especialmente relevan-
te la reexión de Silvia Schwarzböck, quien
al respecto sostiene que “…la postdictadura
es lo que queda de la dictadura, de 1984
hasta hoy, después de su victoria disfraza-
da de derrota” (SCHWARZBÖCK, 2016, p.
23),
XIII
y por lo tanto, “[l]o que en democracia
no se puede concebir de la dictadura, por
más que se padezcan sus efectos, es aque-
llo de ella que se vuelve representable como
postdictadura: la victoria de su proyecto eco-
nómico / la derrota sin guerra de las organi-
zaciones revolucionarias / y la rehabilitación
de la vida de derecha como la única vida
posible” (SCHWARZBÖCK, 2016, p. 23; el
resaltado corresponde al original). Las mira-
das distanciadas de estos cineastas alema-
nes, y su ironía, en denitiva, acaso estén
haciendo visible la presencia de ese resto.
Bibliografía
ACUÑA, Carlos; SMULOVITZ, Catalina. Militares
en la transición argentina: del gobierno a la subor-
dinación constitucional. In: VVAA. Juicio, castigos
y memorias. Derechos humanos y justicia en la po-
lítica argentina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1995.
p. 21-99.
BORGES, Jorge Luis. El simulacro. In: Obras com-
pletas. Buenos Aires: Emecé, 1974. p. 789.
CAMPO, Javier. Revolución y democracia. El cine
documental argentino del exilio (1976-1984). Bue-
nos Aires: Ciccus, 2017.
CANELO, Paula. La descomposición del poder mi-
litar en la Argentina. Las Fuerzas Armadas duran-
te las presidencias de Galtieri, Bignone y Alfonsín
(1981-1987). In: PUCCIARELLI, Alfredo (coord.).
Los años de Alfonsín: ¿El poder de la democra-
cia o la democracia del poder? Buenos Aires: Siglo
Veintiuno Editores, 2006. p. 65-114.
CRENZEL, Emilio. La historia política del Nunca
Más: La memoria de las desapariciones en la Ar-
gentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2008.
EGEA, Juan. El desencanto: La mirada del padre
y las lecturas de la transición. Symposium: A Quar-
terlyJournal in Modern Literatures, vol. 58, Issue 2,
2004. p. 79-92.
GARGARELLA, Roberto. Democracia y derechos
en los años de Raúl Alfonsín. In: GARGARELLA,
Roberto; MURILLO, María Victoria; PECHENY,
Mario (comps.). Discutir Alfonsín. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno, 2010. p. 23-40.
MARKARIAN, Vania. De la lógica revolucionaria a
las razones humanitarias: la izquierda uruguaya en
el exilio y las redes transnacionales de derechos
humanos (1972-1976). Cuadernos del Claeh, n°
89, año 27, 2004. p. 85-108.
MASSUH, Gabriela; GUARINI, Carmen. Medios
del Norte. Imágenes del sur. Primer encuentro ar-
gentino-alemán sobre producción, distribución, co-
producción y fomento del cine documental. Buenos
Aires: Goethe Institut Buenos Aires, 1990.
METZ, Christian. La gran sintagmática del lm
narrativo. In: VVAA. Análisis estructural del rela-
to. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1974.
p. 147-153.
NUN, José. La teoría política y la transición de-
mocrática. In: NUN, José; PORTANTIERO, Juan
Carlos (eds.). Ensayos sobre la transición demo-
crática en la Argentina. Buenos Aires: Punto Sur,
1987. p. 15-56.
PORTANTIERO, Juan Carlos. La transición entre
la confrontación y el acuerdo. In: NUN, José; POR-
TANTIERO, Juan Carlos (eds.). Ensayos sobre la
transición democrática en la Argentina. Buenos Ai-
res: Punto Sur, 1987. p. 257-293.
PUCCIARELLI, Alfredo. La República no tiene
Ejército. El poder gubernamental y la movilización
popular durante el levantamiento militar de Sema-
na Santa. In: PUCCIARELLI, Alfredo (coord.). Los
años de Alfonsín: ¿El poder de la democracia o la
47
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
democracia del poder? Buenos Aires: Siglo Vein-
tiuno Editores, 2006. p.115-151.
SCHWARZBÖCK, Silvia. Los espantos. Estética y
postdictadura. Buenos Aires: Cuarenta Ríos, 2016.
Recebido em 03/07/2018
Aprovado em 27/08/2018
I Argentina. Paola Margulis. Doutora em Ciências So-
ciais pela Universidad de Buenos Aires. Conicet. Uni-
versidad de Buenos Aires, Instituto de Investigaciones
Gino Germani, Faculdad de Ciencias Sociales. Contato:
paomargulis@yahoo.com
II Al respecto, ver las intervenciones de Humberto Ríos
y Carlos Echeverría en los debates que formaron parte
del encuentro “Medios del Norte. Imágenes del Sur. Pri-
mer encuentro argentino-alemán sobre producción, dis-
tribución, coproducción y fomento del cine documental”
(MASSUH; GUARINI, 1990).
III La Ley de Punto Final N° 23.492 estableció la caduci-
dad de la acción penal contra los imputados como auto-
res de haber cometido el delito de desaparición forzada
de personas durante la dictadura militar que no hubieran
sido llamados a declarar antes de los sesenta días co-
rridos a partir de la fecha de promulgación de dicha ley.
IV La Ley de Obediencia debida N° 23.521estableció
una presunción (que no admitía prueba en contrario) de
que los delitos cometidos por los miembros de las Fuer-
zas Armadas (cuyo grado fuera menor al de coronel)
durante el terrorismo de estado y la dictadura militar no
eran punibles, por haber actuado en virtud de la “obe-
diencia debida”.
V En agosto de 2003, se promulgó la ley 25.779, que
anula las leyes de Punto Final y de Obediencia Debida.
Junto con ello, un fallo de la Corte Suprema de Justicia,
que declara la invalidez e inconstitucionalidad de ambas
leyes, habilitó el avance de las causas judiciales por los
delitos cometidos durante la dictadura militar.
VI Entendemos la “consolidación democrática” como
una de las instancias involucradas en el proceso de tran-
sición. Según la periodización que establece Juan Carlos
Portantiero (1987, pp. 262-264), el proceso de transición
democrática estaría compuesto por tres momentos: en
primer lugar la “crisis del autoritarismo”, seguida luego
por un segundo momento de “instalación democrática”,
para dar lugar por último a la “consolidación” de dicho ré-
gimen. El éxito de ésta última etapa es alcanzable recién
en el momento en que se logre una regulación estable
de las formas de la democracia política y de la presencia
de los intereses del Estado.
VII Agradezco al Goethe Institut de Buenos Aires el ac-
ceso al lm.
VIII El documental fue exhibido como parte de una
retrospectiva de Werner Schroeter titulada “Werner
Schroeter. Superar la insoportable realidad”, co-organi-
zada por el Goethe Institut de Buenos Aires y la Fun-
dación Cinemateca Argentina y tuvo lugar en la Sala
Leopoldo Lugones del Complejo Teatral de Buenos Aires
entre el 17 de agosto y el 1de septiembre de 2013.
IX La asociación Madres de Plaza de Mayo ha sido uno
de los organismos de derechos humanos que se mos-
tró más crítico ante la creación de la Comisión Nacional
sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) —orga-
nismo destinado a recabar información sobre las perso-
nas desaparecidas durante la dictadura. Su rechazo a
esa iniciativa se debió a su carácter extraparlamentario
y por carecer de facultades coercitivas para obligar a los
militares a declarar (Crenzel, 2008). Sobre este tema
véase también Acuña y Smulovitz, 1995.
X Roberto Gargarella, “Democracia y derechos en los
años de Raúl Alfonsín”, en Discutir Alfonsín, Ed. Rober-
to Gargarella, María Victoria Murillo, y Mario Pecheny
(Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2010), 35-36.
XI La Patagonia rebelde narra los hechos vinculados
al fusilamiento de alrededor de 1500 peones luego de
una huelga rural que tuvo lugar en el sur argentino ha-
cia 1921.
XII Entrevista personal concedida por Carlos Echeve-
rría, 18-03-2009.
XIII Silvia Schwarzböck, Los espantos. Estética y postd-
ictadura (Buenos Aires: Cuarenta Ríos, 2016), 23.
48
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Chora não coleguinha: uma análise da inuência da formação discursiva
do movimento feminista em músicas da dupla Simone & Simaria
Chora não coleguinha: un análisis de la inuencia de la formación discursiva
del movimiento feminista en canciones del doble Simone & Simaria
Chora não coleguinha: an analyzes of the discursive formation’s
inuence in the feminist movement in the Simone & Simaria duo’s songs
Cristiano Max Pereira Pinheiro
I
Rosana Vaz Silveira
II
Daniele Peletti de Souza
III
Ester Quaresma da Silva
IV
Resumo:
O presente artigo analisa o discurso das letras de músicas da dupla
sertaneja Simone & Simaria. A importância do tema se dá na medida
em que há uma crescente participação de mulheres no meio musical,
como o sertanejo, abordando assuntos envolvendo discursos ditos
feministas. O objetivo geral é analisar a formação discursiva das letras
e sua associação com o movimento feminista, conforme divulgado
pelas cantoras em suas entrevistas na mídia. A base teórica compõe-
se de autores que expressam sobre o Feminismo, sobre o gênero
musical do sertanejo e a análise do discurso. O estudo apoia-se no
método qualitativo por meio de pesquisa bibliográca e Análise do
Discurso nas letras de músicas. A análise consiste na associação da
música Chora Boy de Simone & Simaria com o discurso feminista,
em meio aos trabalhos da dupla. Com isso, foi possível perceber que
apesar da música Chora Boy contar com aspectos discursivos da
formação discursiva do Feminismo, ela possui trechos que reforçam
a submissão feminina.
Palavras chave:
Feminismo
Sertanejo feminino
Comunicação
Análise do Discurso
49
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El presente artículo analiza el discurso de las letras de canciones de la
dupla sertaneja Simone & Simaria. La importancia del tema se da en la
medida en que hay una creciente participación de mujeres en el medio
musical, como el sertanejo, abordando asuntos envolviendo discursos
dichos feministas. El objetivo general es analizar la formación discursiva
de las letras y su asociación con el movimiento feminista, según lo
divulgado por las cantantes en sus entrevistas en los medios. La base
teórica se compone de autores que expresan sobre el feminismo, sobre
el género musical del sertanejo y el análisis del discurso. El estudio se
apoya en el método cualitativo por medio de investigación bibliográca
y Análisis del Discurso en las letras de canciones. El análisis consiste
en la asociación de la música Chora Boy de Simone & Simaria con
el discurso feminista, en medio de los trabajos de la pareja. Con eso,
fue posible percibir que a pesar de la música Chora Boy contar con
aspectos discursivos de la formación discursiva del Feminismo, ella
posee fragmentos que refuerzan la sumisión femenina.
Abstract:
The present article analyzes the lyrics discourse of Simone & Simaria
songs. The theme importance is acknowledged by the crescent
women participation in music area, like Sertanejo, approaching
subjects connected to feminist discourse. The main goal is analyzing
the lyrics discursive formation. The theoretical foundation is based
by authors that express about feminism, about musical gender
of sernatejo and discourse analyzes. The study is supported by
qualitative method by bibliography research and Discourse Analyzes
in songs lyrics. The analyzes consists in the association in the song
Chora Boy of Simone & Simaria as feminist discourse, between the
pairs work. The matter of the topic is presented in the music Chora
Boy as discursive aspects to the feminist discursive formation, parts
of it reinforce the feminine submission.
Palabras clave:
Feminismo
Sertanejo femenino
Comunicación
Análisis del Discurso
Keywords:
Feminism
Female country music
Communication
Discourse Analysis
50
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Chora não coleguinha: uma análise da
inuência da formação discursiva do
movimento feminista em músicas da
dupla Simone & Simaria
1. Introdução
E Partindo da ascensão dos movi-
mentos sociais com a internet, o Feminis-
mo se destacou como uma das principais
lutas, presente em diversos meios. Esse
aumento da visibilidade faz com que a
luta feminista esteja atingindo fortemente
o cenário musical e o gênero do sertane-
jo, como o feminejo (sertanejo feminino).
É muito atrativo e interessante o modo
como alguns ideais do movimento são
abordados em músicas, como a supera-
ção, independência e empoderamento fe-
minino e a partir dessa visão foi escolhido
o tema deste artigo.
A nalidade deste artigo é analisar
a formação discursiva do Feminismo na
construção de músicas da dupla de femi-
nejo Simone & Simaria. Para a realiza-
ção da pesquisa foi usado o conceito da
Análise do Discurso (AD), mostrando o
discurso feminista na música Chora Boy
da dupla Simone & Simaria. O trabalho
possui como básica a questão: Como a
formação discursiva do movimento femi-
nista é manifestada na letra da música
Chora Boy da dupla sertaneja Simone &
Simaria? Com a análise será visto como
o Feminismo é descrito na música da du-
pla, em uma primeira suposição, apenas
para m comercial ou se realmente pre-
zam o que enunciam.
Dessa maneira, o estudo foi reali-
zado através da visão de diversos ângu-
los, coletando informações pertinentes e
explorando o assunto, buscando o má-
ximo de referências para exemplicar a
delimitação do que está sendo pesquisa-
do, assim denindo e delineando a análi-
se. Neste artigo foi utilizado o estudo de
caso para o desenvolvimento, diagnosti-
cando o problema e indicando medidas
de solução, a partir da coleta e análise
de informações.
Buscando contextualizar os as-
suntos acerca do trabalho, o segundo
capítulo destaca a trajetória do Feminis-
mo e os objetivos de sua luta. O tercei-
ro capítulo aborda o sertanejo, expondo
suas características e história, destacan-
do o feminejo e a dupla Simone & Sima-
ria, objeto de estudo do artigo. O capítulo
seguinte visa contextualizar a AD base-
ado nos conceitos de Dominique Main-
gueneau (1997, 2004, 2008a, 2008b) e
Eni Orlandi (2015, 2008), apresentando
o conceito de formação discursiva como
uma alternativa relevante da AD. Em se-
guida, no quinto capítulo, é apresentada
a análise sob o corpus, visando sintetizar
certos pontos que envolvem o Feminis-
mo e a música da dupla, assim reetindo
sobre o objetivo do presente estudo, re-
lacionando a base teórica com o objeto
de estudo. Para nalizar, o último capítu-
lo apresenta as considerações nais e os
apontamentos sobre como o Feminismo
é abordado de forma equivocada na mú-
sica de Simone & Simaria.
2. Movimento feminista e seus
objetivos de luta
O movimento feminista reivindica a
igualdade entre os gêneros, o m do ma-
chismo e de qualquer forma de opressão
contra a mulher. Para Pinto (2003), a luta
é dividida em dois momentos: o primeiro
referente ao século XIX até 1932 e o se-
gundo iniciado na década de 60. Alguns
historiadores dizem que há um terceiro
período, iniciado em 1990. Segundo Can-
cian (2008) o primeiro momento inicia na
Revolução Francesa (séc. XIX), e o foco
51
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
era o direito ao voto. Porém, levou muito
tempo até as mulheres apoiarem a luta su-
fragista feminina.
No Brasil, o Feminismo começou a
ser discutido em 1920, com Bertha Lutz.
Lima (2011) a descreve como a principal
responsável pelo ingresso das mulheres
na educação e vitoriosa nas lutas pelo
acesso feminino ao voto. Marodin (2001)
reconhece que, após o início da discus-
são sobre a importância da mulher na
sociedade, ocorreram mudanças que as
prejudicaram e beneciaram os homens.
Beauvoir (1970: 18) fala sobre o concei-
to da verdadeira mulher pelo patriarcado:
“frívola, pueril, irresponsável, submetida
ao homem”. Além de aspectos de caráter,
deveriam cuidar as roupas que vestiam e
usar maquiagem.
No segundo período, iniciado em
1960, a questão da opressão e indepen-
dência da mulher foi bastante discutida.
Essa fase foi marcada pela heterogenei-
dade de mulheres no movimento, com
posições contra a dominação masculi-
na, a qual Pinto (2003) chama de uma
fase “malcomportada”. Além disso, eram
abordados temas como o divórcio e a
sexualidade.
A terceira onda se iniciou em 1990
com os mesmos fundamentos anteriores,
porém com foco na feminilidade. Essa
fase passou a ser tida como pós-estrutu-
ralista/pós-feminismo. Com novas discus-
sões sobre gênero e sexualidade sendo
levantadas, o Feminismo se aproximou do
pós-modernismo. A partir de 2000, com a
ascensão da tecnologia e o crescimento
do meio digital, o Feminismo tomou uma
nova vertente na web: o web-feminismo;
com isso houve aumento na visibilida-
de do movimento e a luta descobriu uma
oportunidade de engajamento.
O termo “empoderamento femini-
no” é recente entre as mulheres e de-
ne o poder sobre si e o acreditar no seu
potencial. Beauvoir (1971: 16) diz que a
mulher é tratada como o Outro, que ela
chama de “o mito da mulher”, devido à
subordinação e à inferioridade a que as
mulheres são submetidas. O Outro re-
trata o “segundo sexo”, onde o homem
exerce a função de dominador e a mu-
lher de subordinada. Valek (2014) diz
que nenhum gênero deve permitir que
o outro sofra qualquer violência, discri-
minação ou tenha seus direitos diminuí-
dos. Nesse sentido, o Feminismo busca
a igualdade entre os gêneros, e não a
superioridade das mulheres.
Em diversos momentos a mulher
é tratada como um ser inferior. Álvares e
Pinheiros (2015) armam que foram cria-
dos mitos negativos em torno da mulher,
descrevendo-a como um ser submisso,
traidor e malicioso, isto criou uma imagem
para o homem e a humanidade em geral,
fazendo com que a enxerguem como um
ser inferior. Entre os mitos, Friedan (1971)
fala sobre a visão das mulheres como “be-
las adormecidas”, que tem como objetivo
encontrar um “príncipe” ou “um homem
que irá salvá-la das agruras da vida”. Esta
autora diz que a coletividade e a própria
mulher o devem descontruir e perceber
que a vida não se baseia nisso.
Além disso, sempre que se fala so-
bre o feminismo, há uma discussão sobre
a feminilidade das mulheres da luta (ou
da causa). Para Prá (2000: 147, grifo do
autor), o feminino não existe realmente,
pois trata-se de uma invenção da socie-
dade dominada pelos homens: “A noção
de ‘feminilidade’ é vista como uma cção,
que é criada pelo homem e assumida por
mulheres não acostumadas ao pensa-
mento lógico ou conscientes das vanta-
gens que podem obter ao dar seu aval
às fantasias masculinas.” Assim, possi-
velmente há equívocos na construção
do discurso advindo de mulheres que se
consolidam no campo prossional nor-
52
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
malmente dominado por homens, como é
o caso da música sertaneja.
3. O sertanejo no Brasil e a dupla
Simone & Simaria
Como um dos gêneros musicais mais
antigos do Brasil, hoje o Sertanejo é consi-
derado o mais popular. Para Nepomuceno
(1999) a história do sertanejo é dividida em
quatro eras e em três segmentos: “Caipira”
ou “Sertanejo Raiz”, “Sertanejo Romântico”
e “Sertanejo Universitário”. Com o tempo, a
música caipira foi se afastando do sertane-
jo. Esse distanciamento foi mais intenso a
partir do sertanejo universitário. Rodrigues
(2006) arma que assim é chamado devido
à maioria dos músicos serem jovens, com
composições que misturam ritmos e instru-
mentos, e, sobretudo, por terem conquista-
do um público universitário.
Com a onda do sertanejo universi-
tário, músicas sobre bebidas e baladas to-
maram conta do gênero. Com a ascensão
dos movimentos sociais divulgados nas
redes sociais, o feminismo se projetou no
sentido crítico. Músicas preconceituosas
ou abusivas estão sendo expostas. Um
exemplo de música considerada machis-
ta é a Ciumento Eu do Henrique & Diego:
tem uma câmera no canto do seu quarto /
Um gravador de som dentro do seu carro.
No site BuzzFeed, Cristalli (2017, grifo do
autor) fala que a música “conta em tom de
piada que o cara colocou uma câmera no
quarto da namorada e que ‘ninguém en-
tende o meu descontrole’. Mas, se pensar
bem, rapaz, não é para entender mesmo,
é para tratar isso com terapia”.
Apesar do destaque em músicas
de cantores do gênero masculino, atual-
mente as mulheres estão revolucionando
o cenário musical e o próprio sertanejo
com o feminejo. Cantoras como Simone &
Simaria, Maiara & Maraisa e Naiara Aze-
vedo estão atraindo a atenção do público.
O feminejo apareceu para modicar o ce-
nário do gênero e do meio musical. O es-
paço das músicas do feminejo despontou
como uma oportunidade para as mulheres
relatarem os comportamentos abusivos
de seus companheiros. Porém, o discur-
so dito “feminista” nessas músicas inverte
o discurso machista para o feminino, no
sentido de igualdade de ações, como: trai-
ção, agressão, alcoolização, reforçando a
prática de tais atos como permitido para
“todos e todas”. Assim, aparentemente, o
discurso do feminejo é enfatizado como
uma “valorização” ou “empoderamento”
feminino, distorcendo negativamente o
discurso do movimento Feminista.
Para analisar o discurso dessas le-
tras de músicas, escolheu-se como estu-
do de caso, a dupla de cantoras Simone
& Simaria, composição formada por duas
irmãs nascidas em Uibaí/BA. Cantoras e
compositoras, são reconhecidas no mer-
cado da música sertaneja, desde que ini-
ciaram a carreira solo em 2012. Quando
começaram a aparição na mídia, procu-
raram se projetar como “mulheres fortes”,
“duronas”, porém, alegres, engraçadas e
muito sinceras.
Em reportagem cedida para o “Pro-
ssão Repórter” (2017) da TV Globo, a
dupla admite o apoio ao Feminismo. Si-
mone ao ser questionada sobre serem
feministas responde: “Nós estamos aqui
para apoiar a mulherada, nós estamos
aqui para dizer que se a mulher quiser be-
ber ela vai beber, se ela quiser dançar ela
vai dançar, que se o sem vergonha estiver
errado com ela e ela quiser trair, ela vai
trair também, temos direitos iguais”. A du-
pla tem um bordão o qual divulgam como
uma identidade de marca que é: “chora,
não, coleguinha!”. Como as cantoras sem-
pre armam que são iguais aos homens
e o bordão remete ao apoio das cantoras
para seu público feminino, ou seja, para
que elas não chorem por conta das atitu-
des de um homem, seja qual for o motivo.
53
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
4. Comunicação e discurso
A comunicação possui diversos sig-
nicados e um deles é o ato de transmitir
mensagens e informações através de um
código e de símbolos como suporte. Cha-
mada de comunicação humana, ela existe
a partir da participação de mais de uma
pessoa no processo. Esse processo acon-
tece a partir de um emissor que transmi-
te uma mensagem (enunciado) através
de um canal (não é obrigatório) e a emite
para um receptor, que apenas a recebe
se tiver conhecimento do mesmo código
e da mesma língua do enunciador. Esse
enunciado deve ter um sentido para que o
emissor entenda e envie um retorno para
aquele que a emitiu (ORLANDI, 2015).
Orlandi (2015, p. 21) diz que não
há uma separação entre receptor e emis-
sor, ambos realizam, ao mesmo tempo, um
processo de signicação, não apenas com
a transmissão de um enunciado, mas “um
complexo processo de constituição de sujei-
tos e produções de sentidos”. Nesse proces-
so, o enunciado deve ter um contexto para
que seja compreendido pelo destinatário.
Maingueneau (2004) dene o ato de enun-
ciação como assimétrico, pois o indivíduo
que interpreta o enunciado pode fazer uma
nova construção do sentido a partir do pró-
prio enunciado, mas não é garantido que seja
retransmitido no mesmo sentido do emissor.
Segundo Maingueneau (2004) há
regras a serem seguidas em um processo
de comunicação verbal. Estas regras são
as leis de discurso e se originam do prin-
cípio chamado cooperação, que necessita
da participação de ambas as partes, com
enunciador e receptor cooperando entre
eles, reconhecendo quais são os seus di-
reitos e quais são do outro.
As leis do discurso são essenciais
para o processo de compreensão dos
enunciados e permitem o compartilha-
mento de mensagens, sejam implícitas
ou explícitas. Para Maingueneau (2004),
há dois tipos de enunciados implícitos: o
subentendido e pressuposto. O enuncia-
do subentendido contém mensagens não
tão expressivas que dependerão da capa-
cidade de interpretação do receptor. Já o
pressuposto, o receptor não pode deduzir,
mas presume o seu signicado.
Todas essas denições não tratam
de língua e linguagem, mas sim de dis-
curso. Podem ser considerados discurso:
enunciados públicos, falas ideológicas ou o
uso restrito da língua como, por exemplo, o
“discurso cristão”, o “discurso publicitário”,
entre outros. Dentre esses tipos de discur-
so, há diversos inseridos no meio artístico,
seja na pintura, na literatura romântica ou
em obras musicais. Maingueneau (2008b)
trata essas produções discursivas como
algo não verbal, uma prática que ultrapassa
as margens dos objetos linguísticos, além
das palavras, superando formas intuitivas
por meio do recurso à noção de prática
discursiva. A principal denição de discur-
so envolve a comunicação dentro do ato
de enunciação, que abrange quem, para
quem e o que se comunica. Para Maingue-
neau (1997), discurso é um conjunto de
pensamentos instigado por uma ideologia
em uma instituição social ou grupo, a qual
justica os interesses dessas pessoas. Or-
landi (2015: 14) descreve discurso “como
palavras em movimento, uma prática de
linguagem: com o estudo do discurso ob-
serva-se o homem falando”. Ele é orientado
com a nalidade de chegar a algum lugar.
4.1. Formação discursiva
O discurso busca entender a lín-
gua enquanto sentido, como componente
do ser humano e sua história, já a Análi-
se do Discurso (AD) idealiza a linguagem
como mediação entre o ser e a realidade
natural e social. O discurso como media-
ção, acaba sendo responsável pela con-
tinuidade e a transformação do homem e
da realidade em que vive.
54
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A AD busca analisar e criticar as Ci-
ências Sociais e a Linguística, a m de re-
etir sobre a forma como a linguagem está
concretizada na ideologia e a ideologia se
concretiza na língua. Para Orlandi (2008:
17) a ideologia está no discurso como um
grupo de pensamentos ligados às ações
sociais, econômicas e/ou políticas e seu
trabalho é a produção de evidências, pon-
do o homem na “relação imaginária com
suas condições materiais de existência”.
Esta análise teoriza a interpretação,
colocando-a em questão. Segundo Orlan-
di (2015) a AD visa entender como objetos
simbólicos produzem sentidos, analisando
as próprias expressões de interpretação
que ela considera como atos simbólicos,
pois eles intervêm no sentido. Pode-se di-
zer que não existe em si o sentido, mas ele
é denido conforme as posições ideológi-
cas colocadas em meio ao processo social-
-histórico em que as palavras são feitas.
A formação discursiva (FD) tem
como noção básica a análise do discurso,
pois concebe o entendimento do processo
de produção dos sentidos, tendo relação
com a ideologia e cabe ao analista do dis-
curso estabelecer um compasso no funcio-
namento do discurso. A partir da denição
de formação discursiva, deve-se entender
sobre dois pontos que a inuenciam. O
primeiro se trata do discurso como cons-
tituição de seus sentidos a partir daquilo
que o sujeito diz, o qual se insere em uma
formação discursiva. É perceptível que as
palavras não possuem um sentido nelas
mesmas, elas derivam seus sentidos de
formações discursivas em que se inserem,
podendo ser vistas como regionalizações
do interdiscurso, que se tratam de
congurações especícas dos discursos
em suas relações. O interdiscurso dispo-
nibiliza dizeres, determinando, pelo já-
-dito, aquilo que constitui uma formação
discursiva em relação a outra. Dizer que
a palavra signica em relação a outras,
é armar essa articulação de formações
discursivas em sua objetividade material
contraditória (ORLANDI, 2015, p. 41).
O segundo ponto se trata da forma-
ção discursiva como referência na com-
preensão, dos diferentes sentidos, como
as palavras que são iguais e tem diversos
signicados. O uso dessas palavras acon-
tece em condições de criação distintas e
podem vir de diferentes formações dis-
cursivas. O analista do discurso deve ver
as condições dessa criação e observar o
funcionamento da memória, remetendo o
dizer a uma formação discursiva para en-
tender o sentido do que é dito.
Das condições de produção envol-
vendo o conjunto de textos a uma região
estabelecida da sociedade, de comunida-
des que envolvem enunciação e formação
discursiva, Maingueneau (1997) arma
que a FD aparece como uma zona onde
se manifestam com alguma perturbação
as aspirações da classe que seria seu su-
porte. Trata-se, então, de denir uma re-
lação entre o “eu” implícito desta classe e
os lugares de enunciação previstos pelo
discurso. A comunidade daqueles que pro-
duzem acaba apagada, mesmo sendo a
responsável pela circulação do discurso.
Essa comunidade é denominada comu-
nidade discursiva e é inserida na prática
discursiva que se refere aos aparelhos e
aos aspectos enunciativos. Esse conceito
designa o processo de reversão entre as
faces social e textual de um discurso, inte-
grando por um lado a formação discursiva
e por outro a comunidade discursiva.
Pensando ainda nas condições
de produção de um discurso e a inuên-
cia da formação discursiva, Maingueneau
(1997) comenta que por muito tempo a
AD ignorou os atos de enunciação, des-
considerando os cenários e a “imagem” de
enunciação. Chamada por Maingueneau
(1997) de cena de enunciação, ela funcio-
na como um “quadro social” de produção
55
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
e circulação do já dito e a sua legitimação,
validando aquilo que produz ou circula.
Essa cena de enunciação se compõe
de três cenas, que Maingueneau (2008a)
dene como: cena englobante, que concede
ao discurso uma forma pragmática (insepa-
rável de uma instituição), integrando-o a um
tipo: administrativo, sociológico, publicitário;
cena genérica, e a do contrato – imagina-
-se que os indivíduos participantes de um
mesmo conjunto de práticas sociais estejam
aptos a entrar em acordo em relação às re-
presentações de linguagem – relacionado
a um gênero ou subgênero de discurso: o
guia turístico, o jornal, etc. Estas duas cenas
compõem o quadro cênico que “dene o es-
paço estável no interior do qual o enunciado
adquire sentido” (MAINGUENEAU, 2004, p.
87); e cenograa não é um ambiente ou ima-
gem como se o discurso acontecesse em
um espaço já constituído e sem relação ao
discurso, mas é aquilo que a enunciação es-
tabelece como seu próprio aparelho de fala.
A AD só pode integrar o ethos retó-
rico com um deslocamento duplo: no pri-
meiro o enunciador realizaria o papel de
sua escolha em função dos efeitos que
pretende produzir sobre seu auditório e
esses efeitos não são coagidos pelo pró-
prio sujeito, mas pela formação discursi-
va. Em um segundo momento, a AD deve
partir do ponto de vista do ethos que seja
transversal à oposição entre a escrita e
o oral. A retórica leva em conta a palavra
viva junto ao aspecto físico daquele que
fala, seja sua entonação e seus gestos.
Para Maingueneau (2008b), a AD
também apresenta o ethos discursivo
como o sujeito associado a uma determi-
nada voz (tom). O autor arma que esse
tom está necessariamente associado a um
caráter e uma corporalidade: um ador. O
caráter é caracterizado como um conjunto
de traços “psicológicos” que o leitor/ouvinte
atribui espontaneamente à gura do enun-
ciador, em função de seu modo de dizer. Já
a corporalidade remete a imagem do corpo
do enunciador da formação discursiva.
Ou seja, o ethos não retoma ape-
nas a dimensão verbal, mas também o
conjunto de determinações físicas e psí-
quicas ligados ao ador por representa-
ções estereotipadas. Maingueneau (2008,
p. 65) descreve que a partir dessas repre-
sentações, a personagem adora “implica
um mundo ético, do qual o ador é parte
pregnante e ao qual ele dá acesso”.
Se os componentes do ethos estive-
rem interligados à discursividade, esta será
vista de um modo diferente, na qual o discur-
so acaba se tornando inseparável da forma
que “toma corpo”. Aqui chegamos à denição
de incorporação, que Maingueneau (1997)
dene como uma mistura entre uma forma-
ção discursiva e o ethos que ocorre através
do processo enunciativo. O autor (2004)
complementa que a formação discursiva in-
serida no discurso inuencia a corporalidade
do enunciador e da visão do coenunciador.
5. Ethos: discurso feminista na música
Chora Boy da dupla Simone & Simaria
A AD é essencial para entendermos
o porquê da construção de certo enunciado
e qual foi a base para a sua criação. Apoia-
do nisso e considerando que o cenário
musical se adapta ao quadro social, nes-
se trabalho será realizada uma Análise do
Discurso da música Chora Boy de Simone
& Simaria, percebendo o contexto do movi-
mento feminista relacionado à música.
O enunciado como um produto de
uma enunciação provoca uma cena e pro-
cede de um “enunciador encarnado” como
sujeito situado além do texto. Com essa
percepção de Maingueneau (2004), essa
seção apontará determinados aspectos re-
lacionados à voz e ao corpo daquele que
enuncia, a partir do conceito de ethos, rela-
cionando-o com a formação discursiva.
56
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Iniciando com a percepção de
Maingueneau (2008), que determina
como ador a gura que dá identidade
ao mundo que ele próprio cria por meio
da enunciação, na música é perceptível
que as cantoras, como corpos enuncian-
tes, atestam o que é dito ao decorrer da
enunciação. Maingueneau (2008) também
arma que, além do texto, deve-se levar
em conta o imaginário do corpo, dando um
aspecto “físico” ao sentido enunciativo. O
enunciador (a dupla) representa certo jeito
de ser, em conjunto a um corpo percebido
pelo ouvinte ou coenunciador. Esse corpo
é considerado o ethos da enunciação. A
dupla expressa certas características par-
ticulares, sejam elas psicológicas ou rela-
cionadas ao corpo do enunciado, que in-
uenciam na construção da percepção do
discurso presente na enunciação, fazen-
do o ouvinte ou coenunciador construir o
ethos ao decorrer da música.
Simone & Simaria não impuseram
a enunciação por si mesma, mas, em
decorrência de uma formação discursi-
va, provocam determinado efeito em seu
público, reforçando o que é dito a partir
do tom utilizado na enunciação. Ao todo,
pode se perceber certa direção de enun-
ciação envolvendo princípios do Feminis-
mo. Relacionando a formação discursiva
do movimento à enunciação, certas ca-
racterísticas marcantes são incorporadas
pelas cantoras: a força, a determinação e
independência feminina, inuenciando im-
plicitamente no tom da enunciação e indo
contra a visão da sociedade que Beauvoir
(1970) descreve, onde o homem é visto
como amável e a mulher como o “segundo
sexo”: fútil, fraca e submissa a ele.
Essa constituição da enunciação
vai ao encontro do que Maingueneau
(1997) conceitua de caráter e corporalida-
de, que resgata o ethos em conjunto ao
tom da enunciação, como um núcleo de
legitimação do enunciado. Nessa enuncia-
ção são visto aspectos acerca do caráter
ligado à gura de enunciadoras: mulheres
fortes, independentes e não subordinadas
ao poder e à força masculina. Já a corpo-
ralidade, como se trata de um meio sono-
ro, o ouvinte pode associar as enunciado-
ras a um corpo fantasma, relacionado ao
caráter e construindo um personagem, a
partir da formação discursiva apresentada
na música, no caso do Feminismo.
Segundo Maingueneau (2004),
como o discurso é interativo, com a intera-
ção de duas pessoas, cada uma coordena
as mensagens e pode perceber os efeitos
de formas diferentes. Ainda no âmbito do
caráter e corporalidade, o ouvinte pode
vê-los por um ângulo diferente a partir de
estereótipos inseridos culturalmente na
sociedade que ele associa a certos com-
portamentos presentes na enunciação. Os
indivíduos que não concordam com a im-
posição de mulheres por seus direitos ou
não aceitam os homens como opressores
podem remeter aos enunciados da dupla
certas características, até mesmo relacio-
nando com o que eles não acham femini-
no. Isso vai ao encontro de que Friedan
(1971) comenta que a mulher só poderia
ser realmente reconhecida como feminina
se não lutasse pela sua independência.
O discurso presente na enunciação
evidencia o ethos dentro de uma cenograa,
fazendo com que o enunciado na música se
signique durante a sua reprodução. Como
a cenograa toma conta desse enunciado,
a cena englobante (mulheres na música) e
cena genérica (sertanejo) são deslocadas
para segundo plano. Como Maingueneau
(2008) descreve, a cenograa provoca um
processo de enlaçamento, onde o enuncia-
do vai construindo o ethos e validando-se
na própria enunciação, ou seja, ao decorrer
da música o ethos vai sendo construído ou
descontruido, depende da visão e baga-
gem intelectual do ouvinte. Considerando a
cena de enunciação genérica, o estilo de
música cantado é o sertanejo, que já tem
um tipo de discurso linear: músicas com
57
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
narração de casos próprios, no qual é usa-
do muito o eu como sujeito. Nessa enun-
ciação acontece o mesmo, com termos sin-
táticos como mim, me, meu e eu.
Outro fator visto no enunciado en-
volve o que Zan (2008) arma sobre a
nova fase do sertanejo, a qual as músicas
são sobre bebedeira, traição e superação
e pode relacionar-se essa enunciação às
descrições da superação de uma relação.
Voltando ao discurso presente na enun-
ciação, conforme Maingueneau (2004), o
enunciado é encarnado, com a voz enun-
ciativa incorporada na gura das cantoras
Simone e Simaria e relacionadas ao serta-
nejo, que possui aspectos enfáticos sobre
fatos da vida, como a questão da supera-
ção. Pode-se relacionar ao outro conceito
de Maingueneau (1997) sobre a cenograa
e o “eu” implícito da classe da FD, envol-
ventes aos lugares da enunciação, como a
enunciação na 1ª pessoa do singular, que
proporciona a participação do ouvinte e das
mulheres que se sentem representadas.
A música Chora Boy conta com uma
letra descontraída e aspectos semânticos
leves. Logo ao lermos o nome da música,
percebemos que é voltada para um ho-
mem, pois tratam-se de cantoras cantando
para um “boy”. Ou seja, embora inicialmen-
te a letra não evidencie o gênero a quem
se refere, pode se julgar que se trata de um
homem pelo uso de “boy” no nome.
Logo no início o ouvinte escuta:
pra nascer alguém que manda em mim /
Que possa me impedir de ser feliz. A -
sica se inicia com frases implícitas, dei-
xando subentendido o motivo da fala e a
quem está se direcionando. Como Main-
gueneau (2004) diz, o subentendido com
mensagens não tão expressivas, a inter-
pretação vai do ouvinte. Não ca explícito
o gênero do enunciador, mas ca enten-
dido que se trata de uma mulher falando
de um homem, pois Simone e Simaria são
as enunciadoras. Nesse trecho já se inicia
a construção do ethos pelo ouvinte, pois
através do texto são percebidos certos tra-
ços de uma mulher independente.
Em seguida são apresentadas as
seguintes frases: Tá pra nascer e não vai
ser você / Sou vacinada e mando em meu
nariz. Implicitamente sabe-se que o você
que é citado se refere a um homem, pois
como já dito, o nome da música remete
isso. Além de que o enunciado é de uma
mulher falando sobre alguém que tentou
“mandar” nela. Seguindo a percepção
de Orlandi (2015), por trás desse discur-
so encontra-se um interdiscurso, no qual
o ouvinte inconscientemente relaciona a
enunciação com a questão institucional do
homem como ser dominador e que tende
a comandar os atos de sua parceira, por
isso o “você” está relacionado ao homem.
Com a primeira estrofe da música,
o porquê dessa enunciação ca implícito.
Associando ao que Maingueneau (2004)
diz sobre pressuposição, que a enunciação
pressupõe que o enunciador se envolveu
ou conheceu alguém que tentava lhe dar
ordens e a impedia de fazer certas coisas.
A partir disso ela o deixa, por ser uma mu-
lher independente, que não aceita alguém
a impedindo de ser feliz. Pode-se vincular
ao que Valek (2014) descreve que a mu-
lher não é propriedade de um homem, e
sim dela mesma. Na enunciação, isso ca
evidente com a mulher mostrando que “é
vacinada e manda em seu nariz”. O “vaci-
nada” claramente remete a que em outros
momentos a cantora viveu essas experiên-
cias. Sendo assim, novamente é visto um
interdiscurso inserido na enunciação.
Com o conceito de Orlandi (2015),
a partir de discursos implícitos na enun-
ciação, o ouvinte já associa a imagem do
enunciador como uma mulher questiona-
dora e independente, indo contra o fato do
homem enquanto ser prepotente e domi-
nante. Esse ouvinte pode associar deter-
minados aspectos enunciativos a questões
58
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ideológicas discutidas pelas mulheres, en-
volvendo a independência e a submissão
feminina. Isso envolve o que Álvares e Pi-
nheiros (2015) dizem sobre os mitos cria-
dos em torno da mulher como ser inferior,
submisso e traidor. A imagem de uma mu-
lher indo contra quem queria lhe mandar e
não deixando de fazer as coisas devido a
imposições do homem, formaliza o ethos
de uma mulher forte e independente. E
como as intérpretes possuem uma perso-
nalidade forte, acaba ocasionando a incor-
poração do ethos pelo ouvinte.
Na segunda parte é conrmado que
ela teve uma relação amorosa com alguém
e como a conduta que esse tinha sobre
ela destruiu a união e apenas após o tér-
mino esse alguém sentiu o peso de perdê-
-la: Você teve sua chance e jogou fora / Só
deu valor quando me viu ir embora / Da sua
vida fui. Essa parte, em junção com a estro-
fe anterior, caracteriza princípios de inde-
pendência e sentidos contra a submissão e
poder do homem sobre a companheira.
Nas frases: Não preciso de muito di-
nheiro / Só de um salto alto, uma escova
no cabelo / E um vestidinho para lhe deixar
louquinho por mim. É visto uma mulher que
quer provocar seu ex-parceiro, de modo que
ele perceba “o que perdeu”. Ao mostrar que
não precisa de dinheiro, apenas se produzir
e provocá-lo, percebemos que ela necessi-
ta mostrar a ele que está melhor e superou
o término. Aqui pode ser visto um exemplo
de empoderamento feminino, com a mulher
demonstrando ser feliz colocando a roupa
que quer e sentindo-se bem consigo.
Por outro lado, vem a questão: para
se sentir bem e empoderada ela necessita
de um salto alto, uma escova no cabelo e
um vestido para deixá-lo louco por ela? É
visto o interdiscurso caracterizado por Or-
landi (2015), com um discurso implícito por
trás dessa estrofe. Isto está presente na mú-
sica, pois pode-se relacionar esse discurso
ao estereótipo da mulher como aquela que
deve sempre estar arrumada e maquiada,
para assim conquistar um homem. A ques-
tão remete ao conceito de feminilidade de
Prá (2001) e como a mulher deve se portar
diante de um homem para conquistá-lo. A
autora comenta que essa feminilidade é uma
criação da sociedade, um aspecto ccional
criado pelo homem para benefício próprio.
Ainda referente à vestimenta da
mulher, envolvendo o que Maingueneau
(2004) arma a respeito da apropriação do
ethos por parte do destinatário com o pro-
cedimento enunciativo. A expressão ves-
tidinho pode ser enxergada como vulgar
pelo ouvinte, já que institucionalmente uma
mulher não pode usar roupas curtas e deve
parecer recatada. Nessa percepção, a in-
corporação do ouvinte implica em um mun-
do ético que Maingueneau (2008) caracte-
riza, em que o destinatário se baseia em
representações sociais e estereótipos que
a enunciação pode mudar/reforçar. Com a
corporalidade ligada ao ador, o destinatá-
rio associa uma união de esquemas cor-
respondentes ao jeito de relacionar-se com
o seu corpo e o mundo. Contudo, o ouvinte
pode tirar conclusões estereotipadas e ver
a enunciadora de forma pejorativa.
A dupla se diz feminista, por isso
pode haver ligação com a personalidade
delas e a música. Chora Boy caracteriza
o perl de uma mulher independente que
deixou uma relação abusiva para viver
como queria. Com todo o estereótipo cria-
do por quem é contrário à luta, o ouvinte
pode associar a enunciação com a imagem
criada por estas pessoas. Friedan (1971)
comenta que as pessoas que vão contra
a luta feminista enxergam as participantes
como destruidoras de lares e que buscam
a escravidão do homem. Esta visão pode
inuenciar na construção do ethos. Como
Maingueneau (2004) arma, a formação
discursiva inserida na enunciação inuen-
cia na corporalidade do enunciador e na
percepção do ouvinte quanto a ele. Então,
dependendo da interpretação do ouvinte,
59
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ele pode ver a mulher do enunciado como
indecente, que não é feminina nem digna
de “ser” mulher. Em conjunto ao fato de
que ela largou um homem por não o dei-
xar mandar nela, seria tido como desafo-
ro, que pode se associar ao que Beauvoir
(1970) diz sobre a verdadeira mulher: frá-
gil, submissa e dependente.
Maingueneau (2004) descreve o
discurso como contribuinte da denição
do contexto da enunciação e que ele pode
modicar-se de acordo com o andar da
enunciação. Pode-se relacionar isso ao
comparar a primeira estrofe com a segun-
da. Diferente da primeira, que remete à in-
dependência feminina e à própria formação
discursiva do Feminismo, nesta estrofe im-
plicitamente é visto o contrário, uma contra-
posição ao que foi expresso anteriormente.
Na segunda estrofe é exibido um caso de
superioridade, além de uma contradição, se
for considerado o que Valek (2014) expõe
sobre o Feminismo, uma luta que busca
igualdade, e não a superioridade das mu-
lheres. Essa contradição pode ser vista ao
comparar duas frases entre as estrofes: vou
ir embora da sua vida fui, que deixa entendi-
do que a mulher se afastou dele e está bem
com isso; lhe deixar louquinho por mim que
parece mostrar que a mulher quer seduzir.
Essa contradição pode parecer que ela está
apenas mostrando que está melhor que seu
ex-companheiro. Mas por outro lado, parece
caracterizar um jogo psicológico e sedutor.
A conduta vista neste trecho mostra
certo o rebaixamento de um gênero pelo
outro, um tipo de jogo que envolve os sen-
timentos do outro. O que foi exposto nessa
estrofe vai contra a formação discursiva do
Feminismo que busca extinguir o controle e
o jogo psicológico sobre outro gênero. A-
nal, a luta feminista é contra qualquer tipo
de poder do homem sobre a mulher, porém,
nesse trecho, é percebido um deslocamen-
to do poder da mulher sob o homem. Com
toda a questão do homem como aquele que
possui o poder de fazer tudo, em conjunto
com a discussão sobre os direitos iguais,
muitas mulheres enxergam a possibilidade
de se igualar ao homem nesse sentido, po-
rém não percebem o quão isso é se igualar
àquilo que elas buscam extinguir.
As últimas estrofes da música, Vou
rebolar na sua frente / Pra você car sem
voz / Chora boy! Chora boy! Se toca que cê
me perdeu / Que já não existe nós / Cho-
ra boy! Chora boy, rearmam ainda mais a
contradição entrando no âmbito da vingança
contra seu ex-parceiro. Nas duas primeiras
frases é exposta a provocação ao ex-com-
panheiro, já na segunda parte se entende
que não há mais uma relação. Mas por que
primeiro ela o atiça para depois deixar cla-
ro que não existe mais nada entre eles?
Novamente é reforçada uma contradição
presente na enunciação, pois mesmo ar-
mando não haver mais um relacionamento
ela quer rebolar na frente dele com intenção
de vingança. Por outro lado, pode parecer
uma busca egocêntrica de aparência para
remeter que ela superou e aceitou o m da
união. Esses trechos da enunciação deixam
pressupostos o que Maingueneau (2004)
caracteriza como hipóteses e suposições,
que dependem da interpretação do ouvinte
para determinar a sua signicação.
Das suposições presentes nas últi-
mas duas estrofes, também pode relacio-
ná-las a questão da rima musical, que cer-
tos elementos sintáticos estão ali presentes
como uma forma estética da música e não
apenas com um signicado ideológico por
trás. Na primeira estrofe com a frase Vou
rebolar na sua frente / pra você car sem
voz pode relacioná-la ao que Valek (2014)
comenta sobre a mulher ter o direito de fa-
zer o que bem entender como rebolar se
quiser. Novamente, pode haver uma rela-
ção do ouvinte com a questão do pudor fe-
minino e que mulheres com esse compor-
tamento são consideradas vulgares.
Portanto, o discurso contribui para
dar contexto ao enunciado, ele pode modi-
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
car ao longo da enunciação (MAINGUENE-
AU, 2014). Relacionando a esse conceito,
são perceptíveis determinados aspectos do
movimento feminista até certo momento,
pelo enunciado mostrar o relato de uma mu-
lher que não quer ser mandada e se livrou
de um relacionamento abusivo. No decorrer
do enunciado, ela demonstra ter superado o
m da relação, porém, no m, ela quer que
ele se arrependa por seu comportamento a
partir de certas atitudes dela, nas quais ela
joga com o psicológico do ex-parceiro.
6. Considerações nais
Este artigo foi elaborado visando
analisar como a formação discursiva do
movimento social Feminismo se caracteri-
za nas músicas da dupla sertaneja Simone
& Simaria. O tema foi escolhido a partir da
visibilidade que as artistas estavam tendo
com suas músicas, carregadas de mensa-
gens de empoderamento, ainda mais em
um gênero como o sertanejo, onde a maio-
ria dos artistas são homens que cantam
para homens. Em uma superfície rasa, a
música possui alguns signicados associa-
dos à igualdade de gênero e envolve ideais
do Feminismo, mas ao observá-la em sua
complexidade, é visto que há discursos que
devem ser desconstruídos e reformulados.
Ao realizar a análise foi percebido
que embora Chora Boy possua aspectos
discursivos relacionados à formação dis-
cursiva do Feminismo, a música conta com
trechos especícos que apresentam men-
sagens reforçando a submissão e a depen-
dência feminina. Além disso, ao vermos
quem compôs a música, a relação com o
Feminismo compromete no sentido de ter
sido idealizada por um indivíduo do gênero
masculino. Isso deve ser evidenciado, pois
é um pensamento advindo da visão mascu-
lina e do seu imaginário diante da mulher.
Embora o Feminismo esteja em
evidência e inserido em diversos lugares,
percebe-se que o discurso de submissão
feminina está tão entrosado na socieda-
de que muitos que apoiam o movimento
não veem que, com certas atitudes estão
indo contra os princípios da luta. Como é
o caso da dupla, que se reconhece femi-
nista, mas canta músicas que remetem
a submissão feminina, relatando o típico
caso da cultura machista introjetada. Com
isso percebe-se a fragilidade no movimen-
to feminejo que opta por um prossional
masculino para tratar de um assunto que
cabe às mulheres reetirem.
Fica evidente que esse aumento de
mulheres no cenário musical e no sertanejo
é um pontapé inicial para mostrar que as
mulheres têm o poder de estarem inseridas
em um meio tão machista como o sertane-
jo. Apesar da forma equivocada com que
certas temáticas femininas são levantadas
na música do gênero, é muito inspirador ver
as mulheres tendo seu espaço e cantando
músicas sobre superação, independência
e outros tantos temas pertinentes.
Bibliograa
ÁLVARES, Maria Luzia Miranda; PINHEIRO, Ivo-
nete. Mitos: Pilares que sustentam o patriarcado,
na perspectiva de Simone de Beauvoir. 18º Redor
– Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos
e Pesquisas sobre a Mulher e Relações Gênero,
2015: p. 1357-1369. Disponível em: <http://www.
ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/18redor/18redor/
paper/viewFile/630/714>; Acesso em: 04 jun. 2017
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e
mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
CANCIAN, Renato. Feminismo: movimento surgiu
na Revolução Francesa. UOL Educação, publica-
do em 07/08/2008. Disponível em: <https://educa-
cao.uol.com.br/disciplinas/sociologia/feminismo-
-movimento-surgiu-na-revolucao-francesa.htm>;
Acesso em: 27 maio 2017.
61
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Rio de Janeiro:
Vozes Limitada, 1971.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de
comunicação. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da Enuncia-
ção. [Organização de Sírio Possenti, Maria Cecília
Perez de Souza e Silva] São Paulo: Parábola Edi-
torial, 2008a.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discur-
sos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em
análise do discurso. Campinas, SP: Pontes: Editora
da Universidade Estadual de Campinas, 1997.
MARODIN, Marilene. As relações entre o homem
e a mulher na atualidade. In. STREY, Marlene Ne-
ves. Mulher: estudos de gênero. São Leopoldo,
RS: Editora Unisinos, 2001
NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao
rodeio. São Paulo: Editora 34, 1999.
O SUCESSO DAS MULHERES NO MERCADO
SERTANEJO. Prossão Repórter, Emissora Glo-
bo, exibido e publicado dia 30/05/17. Disponível
em: <http://g1.globo.com/prossao-reporter/edico-
es/2017/05/30.html>; Acesso em: 02 jun. 2017.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e
procedimentos. São Paulo: Pontes, 2015.
ORLANDI, Eni P. Discurso e texto: formulação e
circulação dos sentidos. São Paulo: Pontes, 2008.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do fe-
minismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2003.
PRÁ, Jussara Reis. Gênero e feminismo: uma lei-
tura política. In. STREY, Marlene Neves; MATTOS,
Flora B.; FENSTERSEIFER, Gilda; WERBA, Gra-
ziela C (orgs.). Construções e perspectivas em gê-
nero. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2000.
PRÁ, Jussara Reis. O feminismo como teoria e como
prática política. In. STREY, Marlene Neves. Mulher: es-
tudos de gênero. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2001.
RODRIGUES, Hedmilton. Como surgiu o sertane-
jo universitário. Movimento Country, publicado em
06/09/2016. Disponível em: <http://www.movimen-
tocountry.com/como-surgiu-o-sertanejo-universita-
rio/>; Acesso em: 24 maio 2017.
SIMONE & SIMARIA. Wikipédia, última edição em
04/06/2017. Disponível em: <https://pt.wikipedia.
org/wiki/Simone_%26_Simaria>; Acesso em: 23
maio 2017.
VALEK, Aline. O que as feministas defendem. Carta
Capital, publicado em 16/07/2014. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-
-feminista/o-que-as-feministas-defendem-3986.
html>; Acesso em: 29 maio 2017.
ZAN, José Roberto. (Des)territorialização e no-
vos hibridismos na música sertaneja. Revista
Sonora, 2008. Disponível em: <http://www.pu-
blionline.iar.unicamp.br/index.php/sonora/article/
view/625/598>; Acesso em: 24 maio 2017.
Recebido em 09/08/2018
Aprovado em 27/08/2018
I Brasil. Cristiano Max Pereira Pinheiro. Doutor em
Comunicação Social; professor e vice-coordenador do
Mestrado em Indústria Criativa da Universidade Feeva-
le, Novo Hamburgo,RS. Contato: maxrs@feevale.br
II Brasil. Rosana Vaz Silveira. Doutoranda em Proces-
sos e Manifestações Culturais pela Universidade Fee-
vale/RS; mestre em Design pela Universidade Anhem-
bi Morumbi - São Paulo/SP e professora dos cursos e
Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Moda. Contato:
rosanavaz@fevale.br
III Brasil. Daniele Peletti de Souza. Graduada em Publi-
cidade e Propaganda da Universidade Feevale.
IV Brasil. Ester Quaresma da Silva. Graduada em Pu-
blicidade e Propaganda da Universidade Feevale. Novo
Hamburgo,RS. Contato: esterqdsilva@gmail.com
62
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Um “ofício de cartógrafo mestiço”: a proposta metodológica de Jesús Martín-
Barbero como base para um estudo de caso da telenovela mexicana Rubi
Un “ocio de cartógrafo mestizo”: la propuesta metodológica de Jesús Martín-
Barbero como base para um estudio de caso de la telenovela mexicana Rubi
A “mestizo cartographers craft”: the methodological proposal of Jesús
Martín-Barbero as the basis for a case study of the Mexican telenovela Rubi
Bruno do Vale Novais
I
Ohana Boy Oliveira
II
Joana d’Arc de Nantes
III
Resumo:
Tomando por base as propostas teóricas e metodológicas de Jesús
Martín-Barbero, em seus livros Ofício de cartógrafo - Travessias latino-
americanas da comunicação na cultura e Dos meios às mediações:
comunicação, cultura e hegemonia, o presente artigo busca discutir
a cartograa como inspiração metodológica para se analisar objetos
televisivos e suas narrativas na contemporaneidade. A partir desse
aporte, pretende-se ilustrar o mapa das mediações a partir das
telenovelas mexicanas reprisadas pelo Sistema Brasileiro de Televisão
(SBT), com ênfase na produção Rubi, exibida pela quarta vez em
2017. Os itinerários desse estudo se guiam pelas complexas relações
entre comunicação, cultura e política, que ocupam um lugar central no
mapa das mediações, principalmente no eixo diacrônico entre matrizes
culturais e formatos industriais. Dessa forma, inspirada pelos estudos
culturais e com uma perspectiva interdisciplinar, a investigação proposta
se desenvolve considerando as complexidades da cultura popular
segundo a concepção de Stuart Hall e os processos de mediação que
a mesma proporciona, exemplicada em alguns produtos midiáticos.
Palavras chave:
Cartograa
Mapa das mediações
Metodologia
Telenovela mexicana
Cultura
63
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
En base a las propuestas teóricas y metodológicas de Jesús Martín-
Barbero, en sus libros Ocio de cartógrafo - Travesías latinoamericanas
de la comunicación en la cultura y De los medios a las mediaciones:
comunicación, cultura y hegemonía, el presente artículo busca discutir
la cartografía como inspiración metodológica para analizar objetos
televisivos y sus narrativas en la contemporaneidad. A partir de ese
aporte, se pretende ilustrar el mapa de las mediaciones a partir de
las telenovelas mexicanas reprisadas por el Sistema Brasileño de
Televisión (SBT), con énfasis en la producción Rubí, exhibida por
cuarta vez en 2017. Los itinerarios de ese estudio se guían por las
complejas relaciones entre comunicación, cultura y política, que
ocupan un lugar central en el mapa de las mediaciones, principalmente
en el eje diacrónico entre matrices culturales y formatos industriales.
De esta forma, inspirada por los estudios culturales y con una
perspectiva interdisciplinaria, la investigación propuesta se desarrolla
considerando las complejidades de la cultura popular según la
concepción de Stuart Hall y los procesos de mediación que la misma
proporciona, ejemplicada en algunos productos mediáticos.
Abstract:
Based on the theoretical and methodological proposals of Jesús
Martín-Barbero, in his books Cartographer’s Ofce - Latin American
Crossings of Communication in Culture and From Media to Mediations:
Communication, Culture and Hegemony, this article seeks to discuss
cartography as a methodological inspiration to analyze television
objects and their narratives in contemporary times. From this
contribution, we intend to illustrate the map of the mediations from
the Mexican telenovelas reprinted by the Brazilian Television System
(SBT), with an emphasis on Rubi production, exhibited for the fourth
time in 2017. The itineraries of this study are guided by the complex
relations between communication, culture and politics, which occupy
a central place in the map of mediations, mainly in the diachronic axis
between cultural matrices and industrial formats. In this way, inspired
by cultural studies and with an interdisciplinary perspective, the
proposed research develops considering the complexities of popular
culture according to the conception of Stuart Hall and the mediation
processes that it provides, exemplied in some media products.
Palabras clave:
Cartograa
Mapa de las mediaciones
Metodologia
Telenovela mexicana
Cultura
Keywords:
Cartography
Map of mediations
Methodology
Mexican telenovela
Culture
64
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Um “ofício de cartógrafo mestiço”:
a proposta metodológica de Jesús
Martín-Barbero como base para
um estudo de caso da telenovela
mexicana Rubi
1. Considerações iniciais
Nos países do Sul o ofício de cartó-
grafo se desdobra: além de mapas
que desenham a terra descoberta se
necessita de cartas de mar, ou seja,
de navegação por mundos ainda igno-
rados. No campo intelectual – incluin-
do nele o acadêmico –, essa tarefa en-
contra uma de suas guras-chave no
ofício de leitor, o de um leitor que, sem
menosprezar o prazer da leitura, apos-
ta numa leitura-trabalho de reconheci-
mento cultural (MARTÍN-BARBERO,
2004, p. 383).
Por que Jesús Martín-Barbero
como nossa inspiração metodológica? O
pesquisador espanhol, que se estabele-
ceu academicamente na Colômbia, con-
jugando em sua formação eixos como a
semiologia, a losoa, a antropologia e os
estudos culturais, se auto referia como um
“cartógrafo mestiço”
IV
. E essa experiên-
cia híbrida de mundo se coaduna com a
proposta reexiva que apresenta em mui-
tos de seus trabalhos, em especial Dos
meios às mediações e Ofício de cartógra-
fo, suas obras mais conhecidas no Brasil:
a construção da metodologia do “mapa
das mediações”, ferramenta importante
para a análise de diversas narrativas mi-
diáticas, dentre as quais destacamos as
televisivas, a partir de categorias-chave,
como mediação, mestiçagem, hibridismo,
competências e reconhecimento, dentre
outras.
V
Sua contribuição é, portanto, uma
referência fundamental no campo dos es-
tudos culturais latino-americanos, permi-
tindo olhares mais complexicadores e
menos maniqueístas sobre a indústria cul-
tural e seus produtos.
Neste artigo, inspiração e também
homenagem, buscamos utilizar suas con-
siderações, tão importantes para os estu-
dos culturais latino-americanos, no senti-
do de entender suas cartograas acerca
da comunicação contemporânea, toman-
do como estudo de caso a telenovela me-
xicana Rubi, reprisada no Brasil pela quar-
ta vez em 2017, no Sistema Brasileiro de
Televisão (SBT), o que faremos na última
parte deste texto.
Outro expoente dos estudos cul-
turais latino-americanos, Nestor García
Canclini (ele também um “cartógrafo mes-
tiço”, um híbrido em sua trajetória e forma-
ção teórica), deniu Dos meios às media-
ções: comunicação, cultura e hegemonia
(publicado originalmente na Espanha em
1987 e, no Brasil, em 1997) como um livro
“escrito para confundir os bibliotecários”,
VI
porque não está situado exclusivamente
em uma disciplina especíca, seja sociolo-
gia, antropologia, comunicação, mas ser-
vindo a todas elas, trazendo contribuições
importantes para cada campo de pesquisa
mencionado. Nesse sentido, um dos pri-
meiros pontos que gostaríamos de des-
tacar diz respeito à transdisciplinaridade
de suas obras no estudo da comunicação
(hibridizando também sua mestiçagem
enquanto pensador com a metodologia
proposta):
[...] que de modo algum signica a
dissolução dos problemas-objeto do
campo da comunicação nos de outras
disciplinas sociais, mas a construção
das articulações e intertextualidades
que fazem possível pensar as mí-
dias e as demais indústrias culturais
como matrizes de desorganização e
reorganização da experiência social
e da nova trama de atores e estraté-
gias de poder (MARTÍN-BARBERO,
2004, p. 249).
65
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Essa perspectiva faz parte, de certa
maneira, de certa “tradição” dos estudos
culturais, ao reunir diversas disciplinas
para pensar a relação entre cultura, po-
der e sociedade e suas variáveis políticas
e econômicas, considerando os embates,
as disputas, as negociações e as resistên-
cias envolvidas.
VII
Ao pensar os caminhos
da comunicação nas últimas décadas,
Martín-Barbero traz importantes pistas
epistemológicas para reetir sobre o pas-
sado, o presente e o futuro deste campo,
procurando “deslocar as fronteiras erigi-
das por disciplinas, cânones e hierarquias
dos saberes, racionalidades políticas ou
evidências tecnológicas” (MARTÍN-BAR-
BERO, 2004, pp. 241-242).
Desde os mosteiros medievais até as
escolas de hoje o saber, que foi sem-
pre fonte de poder, tem conservado
esse duplo caráter de ser por sua vez
centralizado territorialmente e asso-
ciado a determinados suportes e gu-
ras sociais. Daí que as transformações
nos modos como circula o saber cons-
titua uma das mais profundas muta-
ções que uma sociedade pode sofrer
(MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 340).
Martín-Barbero dedicou-se, em
seus trabalhos, dentre outros temas, aos
estudos de telenovela, que o zeram ser
uma referência não só nesta área, mas
também nos estudos culturais latino-ame-
ricanos de maneira geral, já que o autor
vem complexicando o debate sobre tele-
visão, problematizando a questão de gos-
to acerca dessas narrativas audiovisuais,
criticando com embasamento a indústria
cultural e valorizando a cultura popular
e suas subjetividades. Sobre tal ponto, o
autor arma que o que lhe interessa não
é o sucesso de determinado programa de
televisão,
mas o des-centramento do olhar que
nos possibilita indagar o que, na co-
municação, há do mundo da gente
comum: tanto do lado dos produto-
res, negociando entre as lógicas do
sistema comercial – estandardização
e rentabilidade – e as dinâmicas da
heterogeneidade cultural dos países
e das regiões, como do lado dos es-
pectadores e seus parentescos de
leitura congurando comunidades her-
menêuticas a partir das diversas com-
petências culturais que atravessam os
haveres e saberes, os imaginários e
as memórias de classe, de etnia, de
gênero, de idade (MARTÍN-BARBE-
RO, 2004, p. 26).
A partir desses postulados epis-
temológicos e políticos, que enfatizam
o mestiço, o híbrido, as negociações e
competências culturais, Martín-Barbero
desenvolveu suas bases metodológicas,
dentre as quais destacam-se o circuito
das mediações e a proposta da cartogra-
a, esta última apresentada em especial
no livro Ofício de cartógrafo: Travessias
latino-americanas da comunicação na cul-
tura (publicado originalmente em 2002, na
Espanha, e posteriormente no Brasil em
2004), sobre as quais falaremos mais de-
talhadamente a seguir.
2. Mediação e cartograa como
inspiração metodológica
As contribuições de Martín-Barbero
têm grande signicação para os estudos
de recepção na América Latina (JACKS;
MENEZES, 2007, p. 9). Em 1987, na obra
De los medios a las mediaciones, Martín-
-Barbero propôs uma mudança no enfo-
que das reexões sobre comunicação, em
que as pesquisas não se concentrariam a
“partir da análise das lógicas de produção
e recepção, para depois procurar suas re-
lações de imbricação ou enfrentamento”
(MARTÍN-BARBERO, 2009b, p. 294). A
proposta seria de que o debate se move-
ria dos meios para as mediações, ou seja,
“para as articulações entre práticas de co-
66
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
municação e movimentos sociais, para as
diferentes temporalidades e para a plura-
lidade das matrizes culturais” (MARTÍN-
-BARBERO, 2009b, p. 261). Portanto, su-
gerindo direcionar o olhar para além dos
meios ou receptores, buscando observar
onde os sentidos são produzidos e aten-
tar para as “mediações”. Martín-Barbero
acrescentou que as mediações são o “lu-
gar” que permite compreender a interação
entre o espaço da produção e o da recep-
ção. Trata-se, portanto, do lugar de onde
“provêm as construções que delimitam e
conguram a materialidade social e a ex-
pressividade cultural da televisão” (MAR-
TÍN-BARBERO, 2009b, p. 294). Assim,
sem perder de vista as estruturas, com o
conceito de mediações o autor nos convo-
ca a pensar também o mundo do receptor,
suas leituras e práticas, suas competên-
cias e “modos de fazer com” (no sentido
proposto por Michel de Certeau), suas
reconversões (termo fundamental na pro-
posta teórica-metodológica de Canclini, a
quem já nos referimos neste artigo), suas
apropriações (também conceito-chave
para alguns nomes fundantes de campos
de estudo da cultura, como Roger Char-
tier, Peter Burke, Robert Darnton, dentre
outros). Evitando as dicotomias e binaris-
mos, a atenção em relação aos lugares de
mediação não esvazia a crítica aos meios
de comunicação hegemônicos nem perde
de vista as estratégias ideológicas e de do-
minação política e econômica em torno da
indústria cultural na América Latina, mas
amplia essa abordagem, permitindo per-
ceber as matrizes culturais que alimentam
tais produções, as múltiplas congurações
possíveis e o mundo da recepção, em que
se estabelecem outros usos e mediações,
para além dos pretendidos.
Sob essa perspectiva, Martín-Bar-
bero sugere três lugares de mediação. O
primeiro é a cotidianidade familiar, ambien-
te em que ocorrem conitos e tensões, en-
tendido pelo autor como um lugar social
fundamental para abordagem dos setores
populares (MARTÍN-BARBERO, 2009b, p.
295). O autor destaca, contudo, que essa
mediação não se restringe à esfera da re-
cepção, uma vez que se inscreve também
no discurso televisivo. Já o segundo lugar
de mediação corresponde à temporalida-
de social, que se refere à aproximação do
tempo de programação da televisão com o
tempo cotidiano, ambos regidos por uma
lógica de repetição e fragmentos. Isto é,
esse lugar de mediação indica como a te-
levisão se aproxima da rotina dos recep-
tores para gerar lucro. O terceiro lugar
de mediação proposto é a competência
cultural, que “diz respeito a toda vivência
cultural que o indivíduo adquire ao longo
da vida, não apenas através da educação
formal, mas por meio das experiências ad-
quiridas em seu cotidiano” (WOTTRICH;
SILVA; ROSSINI, 2009, p. 9), de tal modo
que a mesma pode também ser acionada
quando se assiste à televisão.
Três anos após a publicação do li-
vro De los medios a las mediacones, em
1990, Martín-Barbero apresenta uma atua-
lização da reexão acerca das mediações
no artigo “De los medios a las praticas”,
em que propõe transformar os lugares de
mediação em dimensões, sendo elas: a
sociabilidade (ou socialidade), a ritualida-
de e a tecnicidade.
A sociabilidade refere-se à interação
social permeada pelas constantes ne-
gociações do indivíduo com o poder e
com as instituições. A ritualidade rela-
ciona-se com as rotinas do trabalho
imbricadas com a produção cultural.
Já a tecnicidade refere-se às caracte-
rísticas do próprio meio (WOTTRICH;
SILVA; ROSSINI, 2009, p. 4).
Embora essas dimensões sejam
subsequentes temporalmente aos luga-
res de mediação elaborados em 1987,
Martín-Barbero não estabeleceu uma re-
lação direta entre os termos (RONSINI,
2010, p. 6).
67
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Ainda na década de 1990, em “Pis-
tas para entre-ver meios e mediações”
([1998] 2009),
VIII
o pesquisador deu con-
tinuidade a essas reexões e apresentou
um novo mapa das mediações, que anos
mais tarde foi consolidado na obra Ofício
do Cartógrafo. Construído a partir de uma
necessidade de se pensar um mapa que
conseguisse abranger a “complexidade
nas relações constitutivas da comunicação
na cultura” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.
229), tendo em vista que “as mídias pas-
saram a constituir um espaço-chave de
condensação e intersecção da produção
e do consumo cultural, ao mesmo tempo
em que catalisam hoje algumas das mais
intensas redes de poder” (MARTÍN-BAR-
BERO, 2004, p. 229), o autor propôs sua
metodologia complexicadora, como deta-
lharemos a seguir.
O novo esquema (Figura 1) acres-
centa às três mediações – a sociabilidade
(ou socialidade), a ritualidade e a tecnici-
dade – uma quarta: a institucionalidade,
imbricada de interesses e poderes contra-
postos que afetam continuamente a regu-
lação de discursos (MARTÍN-BARBERO,
[1997] 2009b, p. 17). Segundo Martín-
-Barbero, a comunicação “vista a partir
da institucionalidade [...] se converte em
questão de meios, isto é, de produção de
discursos públicos cuja hegemonia se en-
contra hoje paradoxalmente do lado dos
interesses privados” (MARTÍN-BARBE-
RO, [1997] 2009b, p. 18).
As novas mediações, então, são
dispostas em meio a um mapa (Figura 1),
congurado a partir de dois eixos: o dia-
crônico ou histórico de longa duração, que
é tensionado pelas relações entre as Ma-
trizes Culturais e os Formatos Industriais;
e o sincrônico, que é tensionado pelas re-
lações entre as Lógicas de Produção e as
Competências de Recepção ou Consumo.
Figura 1 – Mapa das mediações comunicativas da cultura
Fonte: MARTÍN BARBERO, 2009a; p.16, versão de desenho elaborado pelas autoras
68
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Levando em consideração tais
postulados teóricos e a trajetória acadê-
mica desse “cidadão latino-americano
nascido na Espanha” em 1937,
IX
pode-
mos armar que a proposta de cartogra-
a segue então diversos aspectos, dentre
eles: os contextos local e global;
X
suas
experiências pessoais diversas com al-
guns territórios através dos deslocamen-
tos entre vários países e universidades;
sua visão de mundo, ou seja, o lugar de
onde está falando, de onde parte seu
discurso e pensamento, além dos atra-
vessamentos aos quais está suscetível.
Dessa maneira, o autor arma:
Minha extraviada aventura pelos ca-
minhos da comunicação não estaria
completa sem traçar as móveis linhas
de outro mapa: o de minhas sucessi-
vas des-territorializações, não intelec-
tuais ou virtuais, mas corporais [...].
E o que esse périplo marca não são
meras etapas de uma viagem mas
verdadeiras des-territorializações e
re-colocações, tanto da experiência
como do lugar desde onde se pensa,
se fala, se escreve (MARTÍN-BARBE-
RO, 2004, p. 28).
Nesta citação, explicita-se de
forma clara porque é preciso ser um
cartógrafo para compreender os pro-
cessos culturais em torno da indústria
cultural: porque estamos diante de uma
questão espacial, de território, de lugar.
Os processos híbridos envolvem des-
locamentos, trânsito, passagens entre
territórios, movimentos contínuos de
territoralizações, des-territorializações
e re-territorializações, implicando em
entender de maneira complexa como
se formam e são ocupados os luga-
res, inclusive os de fala. Para dar con-
ta dessa dimensão espacial, é preciso
saber esquadrinhar, compreender, ma-
pear esses territórios e lugares, daí a
necessidade de uma cartografia como
aporte metodológico.
Porém, como o autor detalhará,
não estamos diante de contextos claros,
exatos, de inspiração da cartograa he-
gemônica, capaz de fornecer mapas exa-
tos, planos, coerentes. Estamos diante
de complexos jogos de construção cultu-
ral, mestiços e híbridos, que exigem que
o ofício de cartógrafo implique em pers-
pectivas transdisciplinares e translocais,
um desao constante de construir mapas
noturnos, não iluminados pelo dado, mas
tateados, experimentados, sentidos. É
preciso, diz Martín-Barbero, “avançar ta-
teando, sem mapa ou tendo apenas um
mapa noturno. Um mapa que sirva para
questionar as mesmas coisas – domina-
ção, produção e trabalho – mas a partir
do outro lado: as brechas, o consumo e
o prazer” (1997, p. 288, grifo do autor). A
dimensão do sensível, do tátil, do corpo,
do sensório, também precisa ser acio-
nada. Neste sentido, podemos aproxi-
mar a metodologia proposta por Martín-
-Barbero da tradição de estudos culturais
de Mikhail Bakhtin, em que o corpo, as
ambivalências, as circularidades entre os
elementos, o hibridismo, são categorias
fundamentais para a compreensão das
práticas culturais sem que se caia na fá-
cil e reducionista armadilha das leituras
binárias, que inclusive separam as aná-
lises racionais e isentas dos fenômenos
midiáticos das práticas diárias e sensó-
rias da vida comum. Ambos os autores de
inspiração marxista, tanto Bakhtin quanto
Martín-Barbero recusam as análises que
desprezam as experiências e as apro-
priações, introduzindo como fundamental
a compreensão dos gêneros discursivos
e matrizes culturais na produção midiá-
tica e as mediações exercidas tanto no
mundo dos emissores quanto dos recep-
tores. Assim, seria preciso
desenhar um novo mapa de problemas
em que caiba a questão dos sujeitos e
das temporalidades sociais, isto é, a
trama da modernidade, descontinui-
dades e transformações do sensorium
69
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
que gravitam em torno dos processos
de constituição dos discursos e dos
gêneros nos quais se faz a comuni-
cação coletiva (MARTÍN-BARBERO,
2004, p.212, grifos do autor).
Assim, pensar a cartograa como
inspiração metodológica signica par-
tir das propostas dos mapas criados por
Martín-Barbero para discutir os caminhos
de análise a serem seguidos e comple-
xicados, começando por “movimentar a
análise das relações entre comunicação e
cultura das mídias em direção à questão e
ao âmbito das mediações” (MARTÍN-BAR-
BERO, 2004, p. 316).
Pois, ainda que confundida com as
mídias - tecnologias, circuitos, canais
e códigos -, a comunicação remete
hoje, como o fez ao longo da histó-
ria, aos diversos modos e espaços de
reconhecimento social. E é por rela-
ção a esses modos e espaços que se
fazem compreensíveis as transforma-
ções sofridas pelas próprias mídias
e seus usos (MARTÍN-BARBERO,
2004, p. 316).
Para contextualizar nosso campo
de pesquisa, que está relacionado à te-
levisão, precisamos discutir o conceito
de cultura popular
XI
, tomando com ponto
de partida as colocações de Stuart Hall,
que pensa a cultura como arena de dis-
putas, ou seja, um misto entre“conter e
resistir”, na qual operam resistências,
enfrentamentos, mas também negocia-
ções e apropriações. Nas palavras de
Martín-Barbero, estamos diante de um
processo complexo de “sedução e ne-
gação”. Assim, levando em conta que a
cultura popular é “o terreno sobre o qual
as transformações são operadas” (HALL,
2009, p. 232), ao estudar esse campo,
precisamos considerar seu duplo interes-
se, “o duplo movimento de conter e resis-
tir, que inevitavelmente se situa em seu
interior” (HALL, 2009, p. 233).
Dessa forma, “não existe uma ‘cul-
tura popular íntegra, autêntica e autôno-
ma, situada fora do campo de força das
relações de poder e de dominação cultu-
rais” (HALL, 2009, p. 238), pois a dialéti-
ca da luta cultural
é contínua e ocorre nas linhas com-
plexas da resistência e da aceitação,
da recusa e da capitulação, que trans-
formam o campo da cultura em uma
espécie de campo de batalha perma-
nente, onde não se obtêm vitórias de-
nitivas, mas onde há sempre posições
estratégicas a serem conquistadas ou
perdidas (HALL, 2009, p. 239).
Portanto, enquanto “arena do con-
sentimento e da resistência” (HALL, 2009,
p. 246), a cultura popular continua sendo
um importante campo a ser analisado. Se-
gundo Omar Rincón (2015, p. 24, tradução
nossa), “esta ambiguidade e multiplicida-
de de signicados da cultura popular apa-
rece porque ela dá conta de muitas práti-
cas, processos e experiências diversas”
XII
,
ou seja, tentar simplicar seus diversos
sentidos em determinados moldes não dá
conta de suas complexidades.
Omar Rincón, ao considerar as
culturas populares como “bastardas”,
aciona a ideia de culturas híbridas de
Nestor García Canclini, as mediações
no popular de Jesús Martín-Barbero e
a perspectiva intersticial de entre-lugar
de Homi K. Bhabha. Após analisar bre-
vemente tais concepções, o teórico con-
sidera que tais pesquisadores seriam os
três “pais” dessas concepções acerca
das“culturas bastardas”, pois, ao pro-
blematizaremeste campo de produção
do conhecimento, estes pensadores
abandonaram o pensamento dualista
e essencialista, assumindo os espaços
intermediários e de mistura, consideran-
do suas ambiguidades e problemáticas.
Após esta explanação teórica, adentra-
mos no estudo de caso da telenovela
70
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mexicana Rubi, exibida pela quarta vez
no SBT, em 2017.
3. Estudo de caso da telenovela
mexicana Rubi
Para o desenvolvimento da aná-
lise proposta, buscamos reetir, a par-
tir da telenovela Rubi, os aspectos das
lógicas de produção, das matrizes cul-
turais e dos formatos industriais, bem
como as mediações que atravessam es-
sas esferas (a institucionalidade e a tec-
nicidade).
XIII
É fundamental acrescentar
que não desenvolvemos o nosso estudo
buscando separar de maneira cristaliza-
da cada um desses pontos, pelo contrá-
rio, acreditamos que todos os aspectos
se entrecruzam e se ligam, tal como
mostram os eixos que cruzam o mapa de
Martín-Barbero. Dessa forma, utilizamos
o mapa como um guia cartográco para
construção desta análise.
A telenovela analisada, Rubi,
foi exibida originalmente em 2004 na
rede de televisão Televisa, no México.
No Brasil, a primeira transmissão ocor-
reu em 2005 no SBT, que reprisou a
trama nos anos 2006, 2013 e 2017. A
trama tem como protagonista uma vilã,
de nome Rubi, uma mulher de origem
popular, mas muito “ambiciosa” e que
deseja aumentar seu padrão de vida e
não mede esforços para alcançar seu
objetivo. Ela é bolsista em uma Univer-
sidade particular e finge, por interesse,
ser amiga de uma jovem rica chamada
Maribel. No decorrer da trama, Rubi se
apaixona pelo melhor amigo do noivo
de Maribel, que é um médico recém
formado. Ela acha que ele é rico e fica
muito feliz por ter encontrado o amor e
a riqueza. Porém, ele também é pobre
e, quando Rubi descobre, abre mão de
ficar com ele, rouba o noivo da amiga
(que é rico) e assim se desenvolve a
trama principal.
Rubi é construída a partir da ma-
triz cultural do melodrama clássico. Mar-
tín-Barbero (1997) descreve esse melo-
drama, que começa a surgir na Europa
no século XVIII, como um “grande es-
petáculo popular”. Ele explica que nes-
se período o gênero condiz mais com
apresentações de feiras, e seus temas
se aproximam mais das narrativas da
literatura oral, especialmente dos con-
tos e relatos de medo, terror e mistério
(MARTÍN-BARBERO, [1997] 2009b, p.
157-158). Neste sentido, o melodrama
atua como matriz cultural, mediando a
recepção ao acionar elementos de co-
nhecimento discursivo para reconheci-
mento cultural na recepção.
Há, nesse contexto, outra parti-
cularidade que reete nas encenações
melodramáticas. Trata-se das medidas
governamentais na França e Inglaterra
que proibiram a existência de teatros po-
pulares, visando conter o alvoroço e pre-
servar o “verdadeiro” teatro. Assim, os
teatros ociais eram exclusividade das
classes econômicas altas e ao povo res-
tavam representações sem falas e nem
mesmo cantos. Fato este que perdurou
até 1806 (MARTÍN-BARBERO, [1997]
2009b, p. 158). Dessa forma, segundo
Silva (2012), isso proporcionou que o
“[...] gênero desenvolvesse os artifícios
visuais e sonoros em detrimento da lin-
guagem falada, o que facilitou, portanto,
sua posterior adaptação para o cinema e
a televisão” (SILVA, 2012, p. 161).
Apesar de ser considerado um gê-
nero teatral popular, não eram apenas as
classes populares que apreciavam o me-
lodrama. De acordo com Thomasseau,
no contexto de pós Revolução Francesa,
“a ética melodramática realiza [...] os de-
sejos de todas as classes da população”
(THOMASSEAU, 2012, p. 14). Ele relata
que a classe popular se reconhece no gê-
nero, na medida em que a vítima triunfa
contra o opressor; a burguesia estima o
71
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
culto aos valores tradicionais e à honra
presentes nas obras; e a aristocracia ad-
mirava as apresentações que conserva-
vam a hierarquia e armavam a existên-
cia de um poder estabelecido.
Salientamos, ainda, que, devido à
Revolução Francesa, a população viven-
ciou muitas experiências assustadoras
e intensas, que acenderam a imagina-
ção e a sensibilidade de certos grupos.
O surgimento do melodrama, então,
possibilitou que essas emoções fossem
representadas através do triunfo da ví-
tima sobre o traidor. Conforme ressalta
Martín-Barbero, nessas circunstâncias,
o melodrama manifesta-se, então, como
“o espelho de uma consciência coletiva”
(1997, p. 158).
Retomando as reexões sobre a
telenovela pesquisada, destacamos na
mesma essa presença de um opressor
e um oprimido. Há, portanto, a existên-
cia de uma dimensão maniqueísta, com
a divisão das guras do “bom” versus o
“mau”, notória através das guras de Rubi
(a vilã) versus Maribel (a mocinha). Além
disso, tal qual sua matriz cultural fundan-
te, há um caráter pedagógico, no qual os
personagens bons – como a Maribel –
não mudam suas virtudes e suas ações e
falas reforçam a importância dos valores
tradicionais. Enquanto os personagens
maus, que traem a virtude, a honra e a
moralidade – como Rubi – serão castiga-
dos, demonstrando que não servem de
exemplo para o público.
Associado a essas questões mo-
rais imbricadas na trama, acreditamos
que é fundamental uma reexão sobre
as implicações imersas nas lógicas de
produção e nos formatos industriais.
Nesse sentido, acreditamos que é im-
portante analisar a emissora de origem
(Televisa), bem como o formato difun-
dido por ela, e a emissora no Brasil
(SBT). Sobre essa primeira rede de TV,
é necessário pontuar que ela apresenta
como uma das características de suas
produções o conservadorismo. A pesqui-
sadora Nora Mazziotti (2006) aponta que
o modelo mexicano, em especial aquele
desenvolvido pela Televisa, apresenta
ainda características fundamentais, tais
como: 1) a moralidade católica como um
ponto determinante – as expressões de
religiosidade estão sempre presentes
e só se alcança a redenção através do
sofrimento; 2) os valores morais estabe-
lecidos são respeitados e com isso as
transgressões são castigadas e não há
espaço para novos pontos de vista; 3) as
histórias têm alto nível de obviedades,
que podem torná-las tanto engraçadas
quanto comoventes; 4) não há lugar para
erotismo nas tramas, – a sensualidade é
associada ao vilão e deve ser vista como
algo negativo; 5) os personagens nor-
malmente são arquetípicos (entre eles,
são comuns a mãe, a vilã, a inocente,
o ambicioso, entre outros) e apresentam
caracteres imutáveis os quais são reve-
lados não só através da atuação mas
também da maquiagem e do gurino.
Atualmente, pode-se armar que
algumas produções mexicanas estão
apresentando modernizações. Nota-se
a inclusão de personagens híbridos, ou
seja, não são inteiramente bons ou ruins.
Há também a apresentação de situações
relacionadas com fatos reais e em voga
na sociedade mexicana. O gênero mis-
tura-se com outros, gerando novos tipos
de telenovela. Contudo, salienta-se que
embora atualmente estejam sendo apre-
sentados tipos mais diversicados de tra-
mas mexicanas, o modelo clássico ainda
é predominante e, em todas as tramas,
mesmo as modernas, se mantém a estru-
tura básica do melodrama.
Relacionado ao aspecto de mo-
dernizações das tramas mexicanas, é
importante destacar o contexto socio-
cultural em que essas produções são
72
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
feitas. O México é um país que pos-
sui uma relevante parcela da popula-
ção religiosa (catolicismo apostólico
romano) e conservadora. Nesse sen-
tido, determinados temas causam in-
satisfação nessa parte do público. Um
exemplo foi o caso ocorrido em outubro
de 2017, quando a Televisa transmitiu
Papá a toda madre (2017), uma trama
que trazia como personagens um casal
homossexual casado legalmente e que
desejava constituir família e se tornar
pais. Nessa mesma trama, a rede de
TV mexicana exibiu o primeiro beijo gay
em uma telenovela de horário nobre. A
contestação sobre o plot do casal gay
gerou um abaixo assinado com mais de
37 mil assinaturas
XIV
para que a teleno-
vela parasse de ser exibida. Essa resis-
tência à diversidade sexual pode refletir
em futuras produções e esses temas
podem ser polidos ou até mesmo deixa-
rem de ser abordados, tendo em vista
que as telenovelas são tramas abertas
e, em alguma medida, os anseios dos
telespectadores são levados em consi-
deração pelos autores, o que constitui,
na proposta cartográfica de Jesús Mar-
tín-Barbero, não um efeito da produção,
mas parte constitutiva do processo, já
que os receptores também mediam, em
instâncias múltiplas, o produto.
No caso de Rubi, muito embora
contasse com a presença de um perso-
nagem homossexual, a ele cabia apenas
o caráter cômico. Como “braço direito”
de Rubi, o personagem não tinha um par
romântico, apenas acompanhava a vilã e
falava em momentos de tensões frases
que “suavizavam” o clima da cena, con-
gurando o arquétipo do “bobo”, elemento
fundamental na construção do melodra-
ma, como explica Martín-Barbero. O que
se pode associar a esse aspecto é o perí-
odo em que foi produzida essa narrativa,
treze anos antes do primeiro beijo gay em
horário nobre. Um momento em que não
havia ocorrido a legalização do casamen-
to entre pessoas do mesmo sexo e, pos-
sivelmente, uma fase em que o conserva-
dorismo dos telespectadores no México
era ainda maior.
Perpassando o olhar para o SBT,
a emissora brasileira em que Rubi foi
exibida, pontuamos a construção de sua
identidade como uma emissora de al-
cance de setores “populares” do público
(MIRA, 1995), desenvolvida há mais de
35 anos, através de uma grade de pro-
gramação composta, por exemplo, por
programas de auditório – que são grava-
dos como se fossem ao vivo, com pou-
cas edições e incorporam a participação
da plateia, bem como do público de casa
através do posicionamento de câmera e
fala do apresentador –, telejornais “po-
pulares” – nos quais os jornalistas têm
uma postura e demonstram indignação
com problemas enfrentados pela popu-
lação – e telenovelas mexicanas. Sobre
esta última atração, acreditamos que ao
priorizar por uma narrativa baseada no
melodrama clássico, a rede de TV refor-
ça o caráter “popular” presente desde
sua fundação.
Assim, é possível perceber, tan-
to no produto escolhido, a telenovela
“Rubi”, quanto na emissora brasileira na
qual ele é veiculado, a relação da indús-
tria cultural com matrizes fundantes das
culturas populares, em contextos ori-
ginais nos quais as relações dialéticas
entre “conter e resistir” se zeram muito
presentes. Tais matrizes serão reelabo-
radas na produção industrial midiática,
a partir de lógicas de produção, resul-
tando em formatos industriais, veicula-
dos dentro de um sistema capitalista de
mídia, no qual os objetivos ideológicos,
políticos e econômicos estão colocados.
Mas, a partir da proposta cartográca de
Martín-Barbero, dentre outras possíveis
que também aqui citamos, é possível
perceber esse processo sem reduzi-lo a
uma simplicação do tipo “produto fabri-
73
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cado de cima para baixo visando alienar
o consumidor”, nem tampouco a uma
gloricação do tipo “a cultura de massa
oferece a cultura que o povo gosta”, re-
sumindo de forma simplista dois lugares
analíticos históricos, que foram consa-
grados por Umberto Eco como “apoca-
lípticos” e “integrados” e que perduram
até os dias atuais, a despeito dos inten-
sos e renovadores debates teóricos e
metodológicos que foram travados.
O que os estudos culturais propu-
seram, e é nesta tradição que encontra-
-se o mapa das mediações de Martín-
-Barbero, para escapar desse binarismo
reducionista e pouco explicativo, é que
se considere de forma mais densa o
processo, indo das matrizes aos recep-
tores, para depois retornar às matrizes,
em um círculo hermenêutico como pro-
posto, por exemplo, pela teoria da trípli-
ce mimese de Paul Ricoeur. Em que a
conguração, no caso analisado, a no-
vela “Rubi”, seja compreendida a partir
dos elementos que a preguraram, suas
matrizes culturais, mediadoras dessa
tessitura, que, no entanto, para chegar
ao seu formato industrial, também passa
por mediações da lógica de produção,
se congurando como produto híbrido,
que se realizara na re-guração, no
mundo do receptor/leitor/ouvinte/espec-
tador, que, por sua vez, também mediará
esse processo, através de competências
culturais diversas.
Exatamente por isso, a lógica da
produção, tentando controlar os efeitos
de sentido, deverá levar em conta essas
competências, dialogando com as matri-
zes antecedentes e buscando antecipar
os discursos que se sucedem, em pro-
cessos dialógicos e polifônicos, como
descreve Bakhtin. No entanto, não há ga-
rantias de que tais efeitos de sentido irão
se consolidar em práticas, porque como
sujeitos no mundo também os recepto-
res irão mediar aquela tessitura narrativa
e recongurá-la, constituindo categorias
que se embrenharão, através das prá-
ticas culturais nas arenas de disputas,
com as matrizes culturais fornecidas. As-
sim, o circuito se completa, embora sem-
pre aberto e em processo.
Dessa forma, para darmos conta
do mapa das mediações em sua plenitu-
de, como proposto por Martín-Barbero,
precisaríamos bem mais do que os limi-
tes possíveis desse artigo, buscando as
mediações receptoras e suas interlocu-
ções com as matrizes culturais. Como
isso não seria possível, percorremos
parte do processo, buscando perceber
as hibridizações e mestiçagens entre as
matrizes culturais e os produtos midiáti-
cos industrializados, tomando como re-
ferência a novela mexicana Rubi. Mas,
mesmo não completando o circuito me-
todológico, acreditamos ter trazido aqui
as reexões do autor até um ponto pos-
sível, não deixando de pontuar, em ter-
mos teóricos, como o processo deveria
ser realizado.
4. Considerações nais
Diante do exposto nesta investi-
gação, a tentativa foi seguir os caminhos
cartográcos de Martín-Barbero para
pensar um objeto de pesquisa de matri-
zes melodramáticas, inserido na indústria
cultural latino-americana. Para tanto, uma
das formas foi trilhar o caminho interdis-
ciplinar para entender as complexidades
dos objetos televisivos.
Tão decisiva quanto a assunção ex-
plícita do “tema” das mídias e das
indústrias culturais pelas disciplinas
sociais é a consciência crescente do
estatuto transdisciplinar do campo,
tornado evidente pela multidimen-
sionalidade dos processos comuni-
cativos e sua gravitação a cada dia
mais forte em torno dos movimentos
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de desterritorialização e hibridações
que a modernidade latino-americana
produz (CANCLINI apud MARTÍN-
-BARBERO, 2004, p. 219).
Outro ponto relevante a ser desta-
cado está relacionado ao fato de pesqui-
sarmos produtos midiáticos da televisão
para discutir questões sociais contempo-
râneas, entendendo os embates que se
dão entre a grande estrutura das emis-
soras no Brasil, com seu grande alcance
de público, tanto na televisão quanto na
internet,
XV
Pois sabemos que a luta através das
mediações culturais não dá resulta-
dos imediatos e espetaculares, mas é
a única garantia de que passemos do
simulacro da hegemonia ao simulacro
da democracia: evitar que uma domi-
nação derrotada possa ressurgir nos
hábitos cúmplices que a hegemonia
instalou em nosso modo de pensar e
nos relacionar (CANCLINI apud MAR-
TÍN-BARBERO, 2004, p. 212).
Fugindo da dualidade nas análises
das narrativas televisivas, buscamos tra-
zer para o debate as ambivalências de tais
produções e mostrar a complexidade dos
processos culturais na contemporaneida-
de. Concordamos que tais processos en-
volvem a comunicação, a cultura e a polí-
tica, segundo Martín-Barbero,
porque a mídia não se limita a veicular
ou traduzir as representações existen-
tes, nem pode tampouco substituí-las,
senão que tem entrado para constituir
uma cena fundamental na vida públi-
ca. Nas mídias se faz, e não somente
se fala, a política” (MARTÍN-BARBE-
RO, 2004, p. 321).
Ressaltando esses atravessamen-
tos, ao discorrer sobre o contexto de glo-
balização na América Latina, Martín-Bar-
bero traz uma reexão que continua atual:
[...] a cultura emerge como o espaço
estratégico das tensões que desgar-
ram e recompõem o “estar juntos”,
os novos sentidos que adquirem o
laço social, e também como lugar de
ajuntamento e hibridação de todas as
suas manifestações: religiosas, étni-
cas, estéticas, políticas, sexuais. Daí
que seja desde a diversidade cultu-
ral das histórias e dos territórios, das
experiências e das memórias, que
se resiste, e se negocia e interatua
com a globalização, e desde onde se
acabará por transformá-la (MARTÍN-
-BARBERO, 2004, p. 365-366).
Desta maneira, inspiradas pelos
estudos culturais, nos guiamos pelos ca-
minhos epistemológicos de Jesús Martín-
-Barbero para pensar a cultura em diálogo
com a comunicação e a política, entenden-
do que a necessária análise de produtos/
objetos midiáticos, para se reetir sobre
a sociedade contemporânea, no nosso
caso, a latino-americana, precisa ser cada
vez mais complexicada, discutindo assim
novos modos de ser sul através das terri-
torialidades, afetos e poderes.
Bibliograa
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Mé-
dia e no Renascimento: o contexto de François Ra-
belais. São Paulo: Hucitec ; Brasília: Universidade
de Brasília, 1987.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998.
BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moder-
na. Europa – 1500-1800. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
75
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo:
Edusp, 1998.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano.
Petrópolis: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre prá-
ticas e representações. Lisboa: Difel/Bertrando
Brasil, 1990.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e me-
diações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009.
JACKS, Nilda; MENEZES, Daiane Boelhouwer.
Estudos de recepção na América Latina: con-
tribuição para atualizar o panorama. E-Compós
(Brasília), v. 1, p. 1-12, 2007. Disponível em:
<http://ltc-ead.nutes.ufrj.br/constructore/obje-
tos/Estudos%20de%20Recep%e7%e3o%20
na%20Am%e9rica%20Latina.pdf>. Acesso em:
10 nov. 2017.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. As formas mestiças
da mídia. Entrevista a Mariluce Moura, Revista
Pesquisa FAPESP, p. 10-15, 2009a. Disponível
em <http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/
uploads/2009/09/010-015_entrevista_163.pdf>.
Acesso em: 10 nov. 2017.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Media-
ções: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, [1997] 2009b.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de cartógrafo:
Travessias latino-americanas da comunicação na
cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
MARTINS, Rafael Barbosa Fialho. Resgate Histó-
rico das Vinhetas do SBT: A Busca por um “Estilo
SBTista”. Revista Eletrônica CoMtempo, São Pau-
lo, v. 6, n 2, p. 1-16, 2014.
MIRA, Maria Celeste. Circo eletrônico: Silvio San-
tos e o SBT. São Paulo: Loyola, 1995.
MAZZIOTTI, Nora. Telenovela: Industria y Prácti-
cas Sociales. Buenos Aires: Grupo Editoral Nor-
ma, 2006.
NANTES, Joana d’Arc de. Audiência da telenovela
mexicana no Brasil: o caso de A Usurpadora. (Gra-
duação em Estudos de Mídia). Universidade Fede-
ral Fluminense, 2016.
OLIVEIRA, Ohana. “O que o mundo separa, o Es-
quenta! junta?”: como representações e media-
ções ambivalentes conguram múltiplos territórios.
(Mestrado em Cultura e Territorialidades). Universi-
dade Federal Fluminense, 2015.
RICOEUR, Paul. A tríplice mimese. In: Tempo e
Narrativa. Campinas: Papirus, 1984
RINCÓN, OMAR. Lo popular en la comunicación:
culturas bastardas + ciudadanías celebrities. In: La
comunicación en mutación [Remix de discursos].
Bogotá: FES, 2015.
RONSINI, Veneza Mayora. A perspectiva das me-
diações de Jesús Martín-Barbero (ou como sujar as
mãos na cozinha da pesquisa empírica de recep-
ção). In: 19º Encontro Anual da COMPÓS, 2010,
Rio de Janeiro. Anais do 19º Encontro Anual da
Compós. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. p. 1-15.
SILVA, Renata Maldonado. Percursos históricos da
produção do gênero telenovela no Brasil: continui-
dade, rupturas e inovações. Conexão (UCS), v. 11,
p. 151-172, 2012.
THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. Tra-
dução e notas Claudia Braga e Jacqueline Penjon.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2012.
WOTRICH, Laura, SILVA, Renata C. da; RONSI-
NI, Veneza M. A perspectiva das mediações de
Jesús Martín Barbero no estudo de recepção da
telenovela. In: XXXII Congresso Brasileiro de Ci-
ências da Comunicação, 2009, Curitiba, PR. Anais
eletrônicos XXXII Intercom. Curitiba: Universidade
Positivo, 2009.
Recebido em 14/08/2018
Aprovado em 27/08/2018
76
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Brasil. Ana Lúcia da Silva Enne. Doutora em An-
tropologia pelo PPGAS/MN/UFRJ, professora do
curso de Estudos de Mídia e do Programa de Pós-
-Graduação em Cultura e Territorialidades da Uni-
versidade Federal Fluminense, Niterói, RJ. Contato:
anaenne@gmail.com
II Brasil. Ohana Boy Oliveira. Doutoranda em Comuni-
cação, Mestra em Cultura e Territorialidades e Bacharel
em Produção Cultural pela Universidade Federal Flumi-
nense. Contato: ohanaboy@gmail.com
III Brasil. Joana D’Arc de Nantes. Doutoranda em Co-
municação, Mestre em Comunicação e Bacharel em
Produção Cultural e Estudos de Mídia pela Universidade
Federal Fluminense. Contato: joanadarc@id.uff.br
IV Metáfora utilizada por Jesús Martín-Barbero para de-
nir sua trajetória no campo da comunicação.
V Vale ressaltar que, além da tradição de autores
relacionados ao campo dos estudos culturais, existem
diversas autoras que também trabalham com a pers-
pectiva interdisciplinar e contra hegemônica, reconhe-
cendo o perigo da história única e seguindo pelo ca-
minho da descolonização do pensamento, dentre elas
Gloria Anzaldúa, Grada Kilomba, Chimamanda Ngozi
Adichie etc. Não vamos evocá-las nesse texto porque
buscamos compreender a inserção de Martín-Barbero
em uma tradição especíca dos Estudos Culturais,
como demonstraremos nesse artigo, mas considera-
mos importante nomeá-las.
VI Citação disponível na contracapa do livro em sua
edição brasileira.
VII Importante ressaltar que muitos desses pesquisa-
dores também têm uma trajetória interdisciplinar em
sua formação, transitando pela losoa, antropologia
e comunicação, por exemplo, o que acaba atraves-
sando seus trabalhos.
VIII O texto foi publicado no prefácio da 5ª edição es-
panhola do livro De los medios a las mediaciones. Co-
municacíon, cultura y hegemonía e está presente na 13ª
edição brasileira, utilizada neste estudo.
IX A pesquisadora Maria Immacolata Vassalo Lopes se
referiu à Jesús Martín-Barbero dessa forma em evento
realizado em São Paulo em 2009. Disponível em: <http://
revistapesquisa.fapesp.br/2009/09/01/as-formas-mesti-
cas-da-midia/>. Acesso em: 10 out. 2017.
X Neste ponto percebemos mais uma alusão aos estu-
dos de Nestor García Canclini, que apresenta certa a-
nidade teórica com Jesús Martín-Barbero, podendo ser
considerado, ao nosso ver, um par acadêmico, como já
indicamos anteriormente.
XI Não entraremos no âmbito da representação da
cultura popular por não ser o escopo deste artigo, mas
entendemos as inúmeras disputas que são constituti-
vas deste campo.
XII Texto original: “Y esta ambigüedad o pluri-signica-
ción de lo popular aparece porque esta da cuenta de
muchas prácticas, procesos y experiencias diversas”.
XIII Não foi possível no escopo deste trabalho desen-
volver uma pesquisa que adentrasse nas competên-
cias de recepção e as mediações associadas a elas,
no entanto, acreditamos que os aspectos da audiência
e recepção transpassam nossas percepções e contri-
buições neste trabalho.
XIV Dados coletados em 20 nov. 2017. Disponível em:
<http://www.citizengo.org/es/107372-dejen-emitir-papa-
-toda-madre>. Acesso em: 20 nov. 2017.
XV O SBT é muito ativo nas mídias sociais. Em 2010,
foi a primeira emissora brasileira a ganhar o selo de
autenticidade na página do Facebook (MARTINS,
2014, p. 3) e, em 2017, se tornou o maior canal de
TV do mundo no YouTube, alcançando a marca de 4
milhões de inscritos. Disponível em: <http://www.sbt.
com.br/sbtnaweb/quepordentro/97244/SBT-se-torna-
-o-maior-canal-de-TV-do-mundo-no-Youtube.html>.
Acesso em: 10 nov. 2017.
77
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus:
testemunho de uma existência condenada
Quarto de Despejo de Carolina María de Jesús:
testimonio de una existencia condenada
Quarto de Despejo of Carolina Maria de Jesus:
testimony of a doomed existence
Gustavo Alvarenga Oliveira Santos
I
Resumo:
Esse artigo tem como objetivo demonstrar que a obra Quarto de
Despejo é um testemunho de uma existência condenada. Em um
primeiro momento explica-se o que vem a ser a existência condenada a
partir de uma crítica decolonial à ontologia fenomenológico-existencial
de Heidegger e Sartre. Para tanto, recorre-se a autores do chamado
pensamento decolonial latino-americano que adotam uma perspectiva
de análise ontológica, mas ao mesmo tempo crítica ao eurocentrismo
tradicional. Em um segundo momento, demonstra-se a articulação da
narrativa de Carolina Maria de Jesus na obra Quarto de Despejo e a
existência condenada conforme trabalhado na sessão anterior. Conclui-
se que a fenomenologia-existencial, desde que descolonizada, pode
contribuir para um melhor entendimento do mundo popular e subalterno
latinoamericano que tem como traço característico e distinto à Europa
a vivência da opressão pela via étnico-racial.
Palavras chave:
Quarto de Despejo
Fenomenologia-
Existencial
Pensamento Decolonial
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo demostrar que la obra Quarto de
Despejo es un testimonio de una existencia condenada. Para eso en un
primer momento se explica lo que viene a ser la existencia condenada a
partir de una crítica decolonial a la ontología fenomenológico-existencial
de Heidegger y Sartre. Para ello, se recurre a autores del llamado
pensamiento decolonial latinoamericano que adoptan una perspectiva
de análisis ontológico, pero al mismo tiempo crítica al eurocentrismo
tradicional. En un segundo momento, se muestra la articulación de la
narrativa de Carolina María de Jesús en la obra Cuarto de Despojo y
la existencia condenada conforme trabajado en la sesión anterior. Se
concluye que la fenomenología-existencial, desde que descolonizada,
puede contribuir a un mejor entendimiento del mundo popular y subalterno
latinoamericano que tiene como rasgo característico y distinto a Europa
la vivencia de la opresión por la vía étnico-racial.
Abstract:
This article aims to demonstrate that the book Quarto de Despejo is a
testimony to a condemned existence. At rst it explained what comes
to the existence ordered from a colonialist critique of existential-
phenomenological ontology of Heidegger and Sartre. Therefore,
recourse to the authors called decolonial Latin American thought
that adopt a perspective of ontological analysis, but at the same time
critical to the traditional Eurocentrism. In a second step, it shows the
articulation of Carolina Maria de Jesus narrative in Quarto de Despejo
and the existence condemned as working in the previous session.
We conclude that phenomenology existential, since decolonized, can
contribute to a better understanding of popular and subaltern Latin
American world whose characteristic and distinctive trait to Europe the
experience of oppression by ethnic-racial way.
Palabras clave:
Quarto de Despejo
Fenomenología-
Existencial
Pensamiento Decolonial
Keywords:
Quarto de Despejo
Phenomenology-
Existential
Thought decolonial
79
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Quarto de Despejo de Carolina
Maria de Jesus: testemunho de uma
existência condenada
“não há coisa pior na vida que a pró-
pria vida” CMJ
1. Introdução
O centenário de nascimento de
Carolina Maria de Jesus em 2014 possi-
bilitou um interesse maior pela sua obra
por parte de estudiosos de diversas áre-
as em diferentes partes do Globo, anal
sua obra Quarto de Despejo, publicada
em 1960 foi traduzida para 13 idiomas.
O mundo ocidental, sobretudo o movi-
mento negro dos EUA a acolheu valori-
zando nela a voz de uma mulher negra
que sofria as contradições sociais de um
Brasil que se dizia aliado com o progres-
so e desenvolvimento nos tempos de JK
(Juscelino Kubitschek).
A obra Quarto de Despejo conti-
nua sendo importante para os tempos de
hoje, em que, pese aos avanços sociais
políticos e econômicos das últimas dé-
cadas, a desigualdade social e o abismo
cultural entre as classes médias e baixas
continuam bastante acentuados. Esse
fato, inegável em todo o continente lati-
no-americano, pode ser interpretado por
inúmeros vieses teóricos e losócos,
para o que nos interessa nesse artigo,
compreendemos esse como uma forma
de colonialidade que se dá desde o pon-
to de vista econômico ao sociocultural,
que não permite que as nações do sul
desenvolvam-se a ponto de incluir com
cidadania seu contingente populacional,
sobretudo os descendentes dos antigos
povos escravizados ou originários do
continente. A ética de uma leitura que
leva em conta a colonialidade deve ser a
decolonial qual seja; revisar e denunciar
a visão eurocêntrica presente nas teorias
e visões de mundo que trazem implícita
a naturalização da opressão sobre os po-
vos colonizados e mesmo o esquecimen-
to de sua alteridade, como demonstrare-
mos na próxima sessão.
A colonialidade inaugurou uma
categoria nova de opressão e anulação
do Outro, a étnico-racial que marca um
modo de exclusão para além da relação
clássica marxista trabalhador-capitalista,
ou a da clássica divisão senhor-escravo.
A exclusão étnico-racial é mais profunda,
pois historicamente nega ao Outro sua
possibilidade de humanidade e se radica,
segundo Dussel (2011) no projeto epis-
temológico da modernidade inaugurado
por Descartes, já que anterior ao Cogi-
to: Eu Penso Logo Existo, foi necessário
que a Europa vivesse a armação de si
enquanto racional que possibilitaria a co-
lonização de outros povos, assim, Ego
Conquiro, Eu conquisto, logo penso, logo
existo, pois outros povos não pensam e
não existem. Ora, se a exclusão étnico-
-racial está no bojo do projeto epistêmi-
co e no espírito da modernidade, isso só
ocorre porque não há modernidade sem
colonialidade, ou seja, sem a anulação
de vozes e rostos de outras cores que
não as europeias.
É nesse sentido que Quarto de
Despejo é tão importante pois anuncia à
“sala de visitas”, metáfora dos espaços
abastados da cidade, nos dizeres de Ca-
rolina, sua existência e emergência en-
quanto humanos que pensam e reetem
sobre sua condição e reivindicam sua li-
berdade. Portanto enquanto a estrutura
colonial persiste em nossos países, haja
vista a diferença social brutal entre negros
e brancos, a voz de Carolina é atual.
O que esse artigo propõe é, to-
mando como ponto de partida o pensa-
mento fenomenológico-existencial, de-
monstrar que a obra Quarto de Despejo,
80
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
do ponto de vista ontológico, testemu-
nha um modo de Ser que descoloniza
o pensamento hegemônico europeu e
revela uma ontologia própria, subalter-
na. Para isso, utilizaremos a leitura de
Maldonado-Torres sobre a perspectiva
ontológica do Dasein, proposta por Hei-
degger, na qual o autor propõe que do
ponto de vista do colonizado algumas
acepções da ontologia heideggeriana
com pretensão universal, precisam ser
revistas. Nesse sentido ele propõe que
é necessário descrever o colonizado
como um ente que, diferentemente do
Dasein, não tem a liberdade como um
a-priori, mas sim uma certa condenação
à subjugação, sendo chamado pelo au-
tor de Damné, o condenado. Assim, nas
duas próximas sessões procuraremos
demonstrar a ontologia do condenado
e como ela é testemunhada na obra de
Carolina Maria de Jesus.
2. A ontologia do condenado/colonizado
A existência não é um atributo ina-
to ao humano, mas parte de uma condi-
ção que tem a liberdade como a dimen-
são central, já que, ontologicamente, a
consciência não pode ser o que se é, mas
aquilo que não é, sendo então um fazer-
-ser contínuo. Existência é um conceito
que revela que o humano só pode ser
aquilo que se faz, portanto é livre e não
essencial. O limite à liberdade existencial
é não poder deixar de ser livre, sendo
que seríamos todos condenados a ela.
Essa concepção retirada da on-
tologia sartreana pode ser considerada
o apogeu da doutrina da liberdade exis-
tencial e só foi possível ser formulada
a partir da obra Ser e Tempo de Martim
Heidegger. Heidegger partindo da feno-
menologia de Husserl e vindo de uma
tradição intelectual tomista, herdada dos
seminários católicos que frequentava,
dedicou-se à fenomenologia do Ser. O
que faz que com que esse pensador seja
considerado um dos principais lósofos
do século XX se deve ao fato de que ele
reinaugura a questão do sentido do ser
que havia, segundo ele, sido esquecida
pelo pensamento ocidental. O sentido do
ser seria redescoberto apenas se inda-
gássemos o ente privilegiado através do
qual a pergunta sobre o ser é possível,
esse ente é o único cujo ser não é de-
nido senão por ele mesmo, Heidegger
o denomina Dasein, ser-aí, poderíamos
traduzi-lo como existente, e uma análi-
se sobre ele uma analítica que pode irá
recuperar o sentido do ser pela análise
da cotidianidade (taen doxa) esquecida
pela losoa metafísica que pressupu-
nha o Ser como Idea.
O Dasein se dá no meio dos de-
mais entes como uma clareira de liberda-
de, um espaço no qual ele constitui o ser
dos entes à sua volta e se autoconstitui,
temporalizando e espacializando inau-
gurando o mundo (welt). Suas exões,
dobras, se dão sob a sua condição de
ser-para-a morte, sendo nito, tem um
horizonte espacial nito e uma tempora-
lidade correspondente a essa nitude.
De todo modo, na tradição fenomenoló-
gico-existencial o êxtase temporal privi-
legiado do ser-humano, seja ele conce-
bido ou não como Dasein, é o futuro. O
humano enquanto não é igual aos entes,
mas se faz, é um ser do porvir, que se
lança em projeto para Ser, sendo essa a
característica essencial em termos tem-
porais tanto do Dasein heideggeriano,
quanto do Para-si sartreano, que dene
o ser do homem.
Maldonado-Torres em um texto
publicado em 2007 tece uma severa crí-
tica à estreiteza da ontologia heidegge-
riana, pois nela se daria o esquecimento
do Outro. O lósofo porto-riquenho recu-
pera o pensamento de um ex-aluno de
Heidegger, o lósofo judeu Levinas, que
critica a totalização ontológica promovi-
81
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
da pelo lósofo alemão ao submergir a
questão do Outro dentro da totalidade
do Dasein, fazendo com que dessa ma-
neira esse perdesse sua exterioridade,
condição sine qua non para a alteridade.
O ser-com é uma das exões do Dasein,
de modo que se totaliza como parte do
mesmo ente e não como um Outro, pro-
priamente. Portanto dentro de uma visão
existencial, nega-se a existência de um
Outro também livre, um difícil problema
pouco enfrentado por Heidegger, mas
central na losoa de Levinas.
Já Sartre em o Ser e o Nada tra-
tou das relações concretas com o Ou-
tro também de uma forma limitada, pois
o humano nessa relação teria duas posi-
ções a de submetimento pela Indiferen-
ça, o Desejo, o Ódio ou o Sadismo ou a
de domínio através do Amor, da Lingua-
gem e o Masoquismo. A estreiteza de sua
compreensão foi revista em sua segunda
obra Crítica da Razão Dialética, na qual
a liberdade se dava também no campo
social e político. Na dialética entre práxis
e prática-inerte, a liberdade já não é mais
um atributo ontológico especial, mas um
campo de disputa no qual estão envolvi-
dos os mecanismos de poder.
Franz Fanon, psiquiatra martini-
cano, radicado na França, dedicou-se a,
sob certo olhar fenomenológico, descre-
ver o mundo vivido do negro colonizado,
tanto na Argélia, onde trabalhou como
psiquiatra e serviu à Frente de Liberta-
ção Nacional que lutava pela indepen-
dência daquele país, como na Martinica
e na vivencia do martinicano na França,
descrevendo suas próprias experiên-
cias. Seu olhar de forte acento sartrea-
no, explicito em sua obra Condenados
pela Terra contribuiu para que Maldona-
do-Torres tomasse emprestado de sua
obra o termo Damnés, como um contra-
ponto à pretensão de universalidade do
Dasein heideggeriano. Para Maldonado-
-Torres (2007):
El colonizado no es un Dasein cual-
quiera, y el encuentro con la posibi-
lidad de la muerte no tiene el mismo
impacto o resultados que para alguien
alienado o despersonalizado por virtud
del “uno”. El encuentro con la murte
siempre viene de alguna forma muy
tarde, ya que la muerte está siempre a
su lado como amenaza continua. Por
esta razón la descolonización, la des-
-racialización y a la des-gener-acción,
en n, la des-colonialidad, emerge, no
tanto a partir de un encuentro con la
propia muerte, sino a partir de un de-
seo por evadir la muerte (no solo la
de uno, sino más todavía la de otros),
como rasgo constitutivo de su expe-
riencia vivida. Heidegger, sin embar-
go, pierde vista la condición particular
de sujetos en el lado más oscuro de
la línea de color, y el signicado de su
experiencia vivida para la teorización
del ser y para la comprensión de las
patologías de la modernidad. Ironica-
mente, Heidegger reconoce la existen-
cia de lo que llama el Dasein primitivo,
pero no logra conectar con el Dasein
colonizado. En vez de hacer esto,
toma el Hombre europeo como mode-
lo de Dasein, y olvida las relaciones de
poder que operan en la misma deni-
ción de ser primitivo. (MALDONADO-
-TORRES, 2007, p. 143)
Por m, o autor ainda agrega que
Heidegger ignora o fato de que na Moder-
nidade não há modelo singular de Huma-
no, mas relações de poder que perpetuam
a relação Homem e Escravo. Essas rela-
ções inauguram uma subontologia na qual
a morte e a nitude, longe de ser algo tipi-
camente posto no horizonte do Dasein em
direção a que ele vai ao encontro, assom-
bra e se torna ordinária na experiência dos
colonizados. Desse modo segundo Soa
(2015) pode se perguntar se é possível fa-
lar de Dasein “quando se trata de seres
humanos que foram expropriados da pos-
sibilidade de ser próprio”. (p. 85).
82
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Esse giro proposto por Maldona-
do Torres, também inspirado pelo lóso-
fo argentino Enrique Dussel, reivindica
a experiência do colonizado, esquecido
pela ontologia europeia e que segundo
Dussel (1973) está na base e essência
do projeto de modernidade do pensa-
mento europeu, de tal modo que não se
poderia, a rigor, pensar em modernidade
sem a colonialidade. A negação do Outro
colonizado, operada pelo eurocentris-
mo traz junto o esquecimento do rosto,
entendido como liberdade do Outro, do
mestiço, indígena, criolo, campesino,
negro, enm, dos que, no processo de
constituição da modernidade serviram
apenas como mão de obra escrava ou
foram exterminados quando estavam
contra os interesses do colonizador. Ao
negar a existência livre desses outros,
o pensamento eurocêntrico justica de
modo tácito sua exclusão e escravidão.
A experiência latinoamericana é
uma experiência Outra, pois não é te-
matizada como livre e autônoma, nem
pelos próprios latinoamericanos que se
propõem a pensá-la, e que para Dussel
(2011) terminam por rearmar o euro-
centrismo tornando-se “sucursaleros”
do pensamento do norte. O que se pro-
põe na Filosoa da Libertação do autor
argentino é que esse rosto se mostre e
reivindique seu lugar singular na histó-
ria, enquanto rosto humano e não como
máscara a serviço do sistema colonial
que persiste na América Latina sob o
modo da colonialidade.
A colonialidade é a forma com
que, segundo Quijano (2007) a coloniza-
ção persiste na forma de Poder, do Ser
e do Saber, mesmo após a “independên-
cia” das antigas colônias. Na primeira
evidenciada pelo domínio militar, políti-
co e econômico das potências do norte,
na segunda vemos a ontologia europeia
como a dominante e pretensamente uni-
versal, como demonstramos no caso
do Dasein e em relação ao Saber o
domínio epistemológico das matrizes
do pensamento europeu que inferioriza
os demais. De todos esses modos, po-
rém, interessa-nos nesse texto a forma
como a colonialidade apaga o Rosto e
a liberdade do Outro, negando-lhe uma
existência própria, impondo-lhe uma
sub-ontologia chamada por Maldonado-
-Torres de Damnés.
Para Dussel (2011) o rosto do
colonizado é transformado em másca-
ra, máscara essa que marca ontologi-
camente o Outro enquanto um serviçal
do poder, sem identidade, história ou
subjetividade. São os restos humanos
que circulam pelas paisagens urbanas
e rurais da América Latina que, oprimi-
dos em sua liberdade, são condenados
a não existir e quando o ousam, tendem
a ser reprimidos. A base unívoca do pen-
samento e modo de ser europeu nega a
distinção desse Outro, que não se ade-
qua aos padrões culturais do ocidente,
relegando-o a, no máximo, participar do
sistema de forma subjugada pelo traba-
lho braçal, exaustivo e repetitivo ou rele-
gando-o à mais absoluta marginalidade
em convivência com a fome, a morte e a
guerra ordinária e normalizada nos paí-
ses latinoamericanos.
Essa massa homogeneizada de
excluídos ora ou outra se mostra e ten-
de a cada vez mais se mostrar, como
antecipa o próprio Dussel (2011) quando
arma sobre o potencial das periferias na
transformação das civilizações ao longo
da história. Pensamentos e culturas an-
tes periféricas somaram-se às do centro
e o transformaram, derrubaram e inau-
guraram novas eras históricas, tal como
ocorreu com os povos semitas em rela-
ção aos romanos e os antigos germâni-
cos em relação aos latinos. Para o autor,
os rostos livres dos povos latinoamerica-
nos precisam aparecer para reivindicar
seu lugar no sistema-mundo planetário
83
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
e assim propor-se como um distinto que
coloque o sistema em movimento.
Dessas vozes das margens e das
periferias do sistema-mundo, típica de um
excluído sem rosto, na periferia da cidade
grande, ou segundo sua própria voz, do
quarto de despejo, surge a escrita de Ca-
rolina Maria Jesus que em seu diário pu-
blicado sob o título de Quarto do Despejo
nos dá um testemunho de uma existência
condenada apontando suas distinções no
tempo-espaço da cidade, um outro mundo
que o centro apaga e esquece.
O mundo de Carolina Maria de
Jesus escrito em seus diários é de uma
temporalidade e espacialidade distinta
ao Ser “ocial” do Dasein ao mesmo tem-
po que provoca a centralidade do Ser eu-
ropeu ao reivindicar sua distinção e alte-
ridade. O testemunho da vida condenada
da autora nos provoca a meditar sobre a
fenomenologia do vivido do Damné, ilus-
trando suas distinções.
3. O testemunho da Vida Condenada de
Carolina Maria de Jesus
A obra Quarto de Despejo de Ca-
rolina Maria de Jesus emerge de um ter-
ritório condenado, favela do Canindé na
década de 50, às margens do rio Tietê,
na cidade de São Paulo. Foi descoberta
por acaso pelo jornalista Audálio Dantas
que, ao fazer uma reportagem sobre as
condições de vida na favela, escuta em
uma briga de vizinhos uma mulher ame-
açando outra a “contar tudo no seu livro”.
Curioso, o repórter procura saber mais
sobre essa ameaça e entra em conta-
to com Carolina que, com algum receio,
apresenta-lhe seus escritos em papéis
encardidos, recolhidos na rua onde tra-
balhava diariamente como coletora de
materiais recicláveis. O jornalista se dis-
põe a publicar o material, a autora o titula
como Quarto de Despejo, uma metáfora
ao lugar que ocupa a favela na cidade de
São Paulo. Segundo Jesus (1961/2016):
Quando estou na cidade tenho a im-
pressão que estou na sala de visi-
ta com seus lustres de cristais, seus
tapetes de viludos, almofadas de si-
tim. E quando estou na favela tenho
a impressão que sou um objeto fora
de uso, digno de estar num quarto de
despejo. (JESUS, 2016, p.33).
Sua escrita, em forma de diário,
faz referência ao cotidiano vivido por
ela como moradora do quarto de des-
pejo e que frequenta diariamente a sala
de visita recolhendo o que sobra para
vender. Cada fragmento escrito é titula-
do com uma data e traz um relato de um
dia na vida de Carolina, a primeira data
é 15 de julho de 1955 e a última, pri-
meiro de janeiro de 1960, entre essas
datas há alguns saltos de dias e meses.
Segundo Gonçalves (2014) “Sua escri-
ta é cotidiana, segue o ritmo dos dias
que coincide com a própria construção
e elaboração de uma história de seu so-
frimento no cenário da favela.” (p.24).
Na verdade, excetuando a história de
contada de um caso amoroso, narrado
nas últimas páginas, a narrativa não se-
gue um fluxo temporal, pois cada bloco
de sentido se basta em um mesmo dia.
Em cada data ela narra sua lida diária
em busca de alimento, seu trabalho, as
relações com os vizinhos e a difícil ta-
refa de cuidar e educar filhos. Também
aparecem reflexões sobre questões po-
líticas, sociais e cosmológicas, como
demonstraremos a seguir.
Os dias narrados por Carolina
começam ao despertar, segundo (Je-
sus, 1961/2016): “16 de julho: Levan-
tei. Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar
água, Fiz o café.” (p. 12); “18 de julho:
Levantei as 7 horas. Alegre e contente.
Depois que veio os aborrecimentos.” (p.
15); “19 de julho: Despertei as 7 horas
84
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
com a conversa dos meus lhos” (p. 17);
“20 de julho: Deixei o leito as 4 horas
para escrever.” (p. 21). Ao despertar, Ca-
rolina precisa se haver com o tempo e
a temperatura, pois ele pode determinar
seu dia de trabalho e consequentemen-
te o quanto poderá comer nesse mesmo
dia, segundo Jesus (1961/2016): “23 de
maio: levantei de manhã triste porque
estava chovendo” (p. 42); “28 de maio:
Amanheceu chovendo. Tenho só treis
cruzeiros porque emprestei 5 para Leila
ir buscar a lha no hospital. Estou de-
sorientada, sem saber o que iniciar.” (p.
45); “31 de maio: Sabado – o dia que
quase co louca porque preciso arranjar
o que comer para sabado e domingo.”
(p. 47); “14 de junho... Está chovendo.
Eu não posso ir catar papel. O dia que
chove eu sou mendiga.” (p. 61).
A fome interfere no humor e no
dia, e é descrita como uma tontura; Je-
sus (1961/2016): “A tontura da fome é
pior do que a do álcool. A tontura do
álcool nos impele a cantar. Mas a da
fome nos faz tremer. Percebi que é hor-
rível ter só ar dentro do estomago.” (p.
44), a fome também causa a ira; Jesus
(1961/2016): “9 de agosto: Deixei o lei-
to furiosa. Com vontade de quebrar e
destruir tudo. Depois eu tinha só feijão e
sal. E amanhã é domingo.”(p. 108) Afeta
o espírito e o humor; Jesus (1961/2016):
“Sempre ouvi dizer que o rico não tem
tranquilidade de espírito. Mas o pobre
também não tem, porque luta para ar-
ranjar dinheiro para comer.” (p. 163); a
fome tem uma coloração; segundo Je-
sus (1961/2016): “Eu que antes de co-
mer via o céu, as arvores, as aves tudo
amarelo, depois que comi, tudo norma-
lizou-se aos meus olhos” (p. 44); e faz
pensar em suicídio: “24 de julho: Como
é horrível levantar de manhã e não ter
nada para comer. Pensei até em suici-
dar. Eu suicidando-me é por deficiência
de alimentação no estômago.” (p. 99);
“16 de junho... Hoje não temos nada
para comer. Queria convidar os filhos
para suicidar-nos. Desisti.” (p. 174).
Por outro lado a mínima nutrição
traz junto o sentimento de ser alguém,
segundo Jesus (1961/2016): “Quando
eu faço quatro pratos penso que sou al-
guém. Quando vejo meus lhos comendo
arroz e feijão, o alimento que não está ao
alcance do favelado, co sorrindo atoa.”
(p. 49). A nutrição acompanha o humor e
a luminosidade do mundo de Carolina e
se sintoniza com a abertura do céu que
é também abertura para a vida, já que
do céu aberto depende seu trabalho e
alimento; para Jesus (1961/2016): “...O
céu é belo, digno de contemplar porque
as nuvens vagueiam e formam paisagens
deslumbrantes. As brisas suaves perpas-
sam conduzindo os perfumes das ores.
E o astro rei sempre pontual para des-
pontar-se e recluir-se.” (p. 43).
À descrição cotidiana, visceral
e imediata de Carolina se somam suas
reexões “losócas” sobre a fome com
os seus determinantes sócio-históricos e
cósmicos. A fome é para a autora uma
forma de escravidão contemporânea,
Jesus (1961/2016): “ E assim no dia
13 de maio de 1958 eu lutava contra
a escravatura atual – a fome!” (p. 32);
a fome também coloca os homens em
uma posição inferior à dos animais, Je-
sus (1961/2016): “Mas os animais quem
lhes alimenta é a Natureza porque se os
animais fossem alimentados igual aos
homens, havia de sofrer muito. Eu penso
isto, porque quando eu não tenho nada
para comer, invejo os animais.” (p. 61);
“Fiquei com inveja dos peixes que não
trabalham e passam bem” (p. 60). Em
termos políticos o comunismo pode ser
uma saída para toda a sociedade, Jesus
(1961/2016): “Antigamente era os ope-
rários que queriam o comunismo. Ago-
ra, são os patrões. O custo de vida faz
o operário perder a simpatia pela demo-
cracia.” (p. 112). Da mesma forma Ca-
85
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
rolina reete sobre sua condição étnico-
-histórica no diário do dia da abolição
da escravatura, Jesus (1961/2016): “...
Nas prisões os negros eram os bodes
espiatorios. Mas os brancos agora são
mais cultos. E não nos trata com despre-
so. Que Deus ilumine os brancos que os
pretos sejam feliz” (p. 30), no entanto em
outra parte de sua obra reconhece que o
racismo não acabou; Jesus (1961/2016):
“Fico pensando: os norte-americanos
são considerados os mais civilisados do
mundo e ainda convenceram que preterir
o preto é o mesmo que preterir o sol. O
homem não pode lutar com os produtos
da Natureza. Deus criou todas as raças
na mesma época.” (p. 122)
Outro tema abordado por Caro-
lina é sua condição de gênero; Jesus
(1961/2016): “...Quando eu era menina
o meu sonho era ser homem para defen-
der o Brasil porque eu lia a Historia do
Brasil e cava sabendo que existia guer-
ra. Só lia os nomes masculinos como de-
fendor da pátria. Então eu dizia para a
minha mãe: - Porque a senhora não faz
eu virar homem?” (p. 54). As mulheres
são descritas como falantes, escandalo-
sas enquanto homens menos ruidosos e
mais educados; Jesus (1961/2016): “A
língua das mulheres é um pavio. Fica in-
cendiando.” (p. 148). No entanto ela não
quer a companhia dos homens, a úni-
ca relação signicativa descrita em seu
diário termina mal, pois percebe que o
Cigano mantinha uma relação com uma
adolescente, razão pela qual quase o
denuncia às autoridades.
A morte não é, para Carolina, em
consonância com a proposta de com-
preensão do ser colonizado de Maldo-
nado-Torres (2007), algo distante que
está no fundo do horizonte existencial,
mas sempre presente na possibilidade
do suicídio. Nesse sentido demonstra-
-se que nessa forma de ser, a existência
não se mostra como uma abertura ao
futuro e não tem como se projetar, mas
é algo a se suportar, Jesus (1961/2016):
“Hoje em dia quem nasce e suporta a
vida até a morte deve ser considerado
herói.” (p. 102). A existência do favelado
é condenada a não ter possibilidades e
liberdade; Jesus (1961/2016): “Cheguei
a conclusão que quem não tem de ir
pro céu, não adianta olhar para cima.
É igual a nós que não gostamos da fa-
vela, mas somos obrigados a residir na
favela.” (p. 43).
No entanto, a escrita é seu “canto”
de liberdade; Jesus (1961/2016): “Quan-
do co nervosa não gosto de discutir.
Prero escrever. Todos os dias eu escre-
vo. Sento no quintal e escrevo.” (p. 22).
Sua escrita é também uma defesa con-
tra um mundo que ela sente como hostil
e condenado, nesse sentido ela se dife-
rencia dos outros favelados e se eleva,
ao contrário deles que usam comumen-
te da força bruta; Jesus (1961/2016):
“Não tenho força física, mas as minhas
palavras ferem mais do que espada. E
as feridas são incicatrisaveis.” (p. 48).
Propomos que análogo ao que Heideg-
ger chamaria de liberdade, a condição
de estar-no-mundo do Dasein, na exis-
tência condenada, Damné, sugerida por
Maldonado-Torres dá-se um canto de
liberdade que na cansada e difícil exis-
tência de Carolina, deu-se pela via da
escrita. Através do que escreve, a autora
se comunica com um mundo livre, teste-
munhando a situação da vida na favela
para a sala de visitas da cidade que não
a conhece. Consciente de sua invisibili-
dade enquanto rosto, muitas vezes mal
tratada, chamada de nega fedida, prete-
rida no comércio, ela reivindica seu ser
e sua história pela via literária, tornan-
do-se, querendo ou não, porta-voz dos
mesmos favelados de quem se defendia
e por quem se sentia atacada.
Dussel (2011) entende que na
medida em que o sistema-mundo permi-
86
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
tir ao colonizado mostrar seu rosto, tanto
o sistema quanto o rosto se modicam
permitindo a participação desse Outro,
antes ignorado. Para Dussel (1994) o
processo de colonização na América La-
tina gerou alguns tipos culturais próprios
como o mestiço, o criolo, e, no caso
como entendemos o de Carolina, o mar-
ginal, que vive em um mundo à margem
do centro dominante de poder. A escrita
de Carolina dessa forma testemunha o
Ser da margem, demonstrando suas pe-
culiaridades têmporo-espaciais.
O êxtase temporal privilegiado no
testemunho de Carolina é o presente, a
urgência em comer faz com que cada dia
seja vivido de forma intensa tanto no seu
gozo ou no seu sofrer: comer é uma ale-
gria, não comer um sacrilégio, por isso,
mais uma vez recorrendo à condição
subontológica do Damné, a morte está
sempre à espreita, pois a fome frequen-
temente evoca pensamentos suicidas.
Os únicos conjuntos de relatos,
dias, que apresentam algum porvir são
referentes a sua breve paixão com o Ci-
gano, com quem chega a vislumbrar um
futuro do qual logo desiste. Ademais al-
guns relatos também dão conta do pro-
cesso de publicação de seu livro. Esse
último fato, possibilita um novo modo
têmporo-espacial, quase que libertando
o Damné de sua condenação. O espa-
ço de quarto do despejo será substituído
pelo da Casa de Alvenaria, título de outra
obra que foi escrita pela autora quando,
graças ao sucesso de venda de Quarto
de Despejo, pode comprar uma casa em
um bairro de classe média de São Paulo.
A temporalidade futura vislumbra-se no
projeto de ser escritora, agora mais ree-
xiva, meditativa, não tão apressada pela
fome. No entanto, o sucesso de vendas
alcançado por sua primeira obra não se
repete, apesar dela se dedicar à escrita
de um livro de poemas e composições
de músicas, além disso gasta suas eco-
nomias na publicação dessas obras, as
quais nenhuma editora queria bancar, as-
sim Carolina volta a amargar a pobreza
e a miséria. Escolhe, contudo, viver em
um sítio na região metropolitana de São
Paulo em Palhereiros. Ali recordou sua
infância e os tempos de quando trabalha-
va no campo, no interior de Minas Gerais
na cidade de Sacramento, onde nasceu,
escrevendo a obra Diários de Bibita, a
autora morre no ano de 1977.
O esquecimento da obra de Ca-
rolina Maria de Jesus que protagonizou
a voz da favela coincide com o governo
após o Golpe Militar de 64 que esvazia
as representações e vozes populares.
Se Carolina logra de início desvelar o
rosto da pobreza e dos condenados, a
crítica literária que questionava o verda-
deiro valor de seus escritos, somado ao
retrocesso cultural do país nos anos da
ditadura militar, terminam por expulsar
Carolina do lugar em que havia ocupado
por um breve período de tempo, a sala
de visitas, fazendo-a retornar ao quarto
de despejo, de onde, segundo alguns,
não deveria ter saído.
Dussel (2011) propõe que a inclu-
são do Outro periférico no centro deve-
ria se dar de forma analética, termo que
reúne um processo analógico, no qual o
Outro é reconhecido como Humano aná-
logo aos do centro junto a um processo
dialético, em que a aparição do rosto do
Outro possibilitaria uma mudança no sis-
tema de modo a incluí-lo. Se nos momen-
tos que antecederam o Golpe Militar de
64 a sociedade brasileira vivia um clima
propício à inclusão dos marginalizados,
o silenciamento e o mascaramento do
Outro se acentuou no regime militar, des-
mobilizando e desempoderando as ten-
tativas de construção de uma sociedade
mais inclusiva e plural.
Carolina era o rosto dos descen-
dentes dos povos escravizados que de-
87
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
nunciava as condições sub-humanas de
miséria e fome a que estavam subme-
tidos alertando que a escravidão não
havia acabado, mas mudado de estraté-
gia, agora se escravizava pela fome. Do
mesmo modo, seus escritos sublinha-
vam a potencialidade e possibilidades
que os marginalizados podem ter quan-
do se unem; Jesus (1961/2016): “Se o
custo de vida continuar subindo até 1960
vamos ter revolução!” (p. 130). O fato é
que a revolução não ocorreu naquele
tempo e várias Carolinas de Jesus conti-
nuaram existindo desde então à margem
das condições dignas de humanidade.
A colonialidade persistente nos países
latinoamericanos naturaliza a pobreza
e a exclusão, criando bolsões de con-
denados que vivem a morte como algo
ordinário em uma temporalidade que se
basta no dia a dia, sem futuro. Aterrori-
zar-se com a morte, valorizar a vida e
projetar-se no futuro, é, segundo Dussel
(2011) o caminho que liberta a existên-
cia de sua condenação, se hoje a fome
não vitima tanto quanto antes, a guerra
ordinária vivida nas periferias dos países
latinoamericanos em função da disputa
por pontos de narcotrácos, tem servido
para a subalternização da existência do
condenado. O Brasil, nesse caso, ocupa
uma posição pouco privilegiada já que,
segundo levantamento feito pela ONG
Segurança, Justiça e Paz da cidade do
México, entre as 50 cidades mais violen-
tas do mundo, 21 são brasileiras e em
número absoluto o país ostenta a des-
confortável posição de ser o primeiro do
ranking em número de homicídios.
Desde o nosso ponto de vista isso
evidencia que se não houver uma mu-
dança na estrutura colonizante à qual
estamos submetidos, com políticas de
inclusão étnico-raciais fazendo justiça
aos descendentes dos povos coloniza-
dos, o condenado será sempre aquele
que sofrerá a opressão do lugar mar-
ginal que lhe reserva o sistema-mundo
colonizador, e determinado projeto de
modernidade-colonialidade. Sendo uma
questão que se radica na epistemologia
moderna, a luta pela inclusão desse Ou-
tro marginalizado, não deveria resumir-
-se apenas em uma militância política ou
social, mas a um posicionamento ético
obrigatório para todos os latinoamerica-
nos, sobretudo a classe intelectual que
deve, segundo o que propõem os auto-
res do pensamento decolonial, desco-
lonizar o pensamento. A perpetuação e
naturalização da desigualdade estrutu-
rante e colonializante é algo que vitima
vidas humanas que, por princípio, são
análogas a quaisquer outras, como bem
demonstra o testemunho desde o quarto
de despejo de Carolina Maria de Jesus.
Enquanto isso não ocorre a polis seguirá
sendo para os condenados o que escre-
veu a autora; Jesus (1961/2016): “A ci-
dade é um morcego que chupa o nosso
sangue” (p. 182).
Considerações Finais
As ciências sociais, bem como
a psicoterapia e o serviço social, care-
cem de bases adequadas para um en-
tendimento do mundo do subalterno. A
fenomenologia-existencial traz um valor
inestimável que é o do entendimento do
vivido cotidiano da forma como ele se
apresenta, prescindindo de mediadores
teóricos ou metodológicos. Esse enten-
dimento trouxe para a psicopatologia,
por exemplo, uma possibilidade de leitu-
ra mais abrangente a respeito do mundo
dos enfermos mentais, oferecendo sub-
sídios para a compreensão dos modos
de espacializar e temporalizar típicos de
algumas patologias. Isso propiciou um
ponto de vista mais humanizador no tra-
tamento dos que padecem mentalmente,
pois oferece subsídios mais compreen-
sivos do que interpretativos que tendem
a reicar as patologias e naturalizar a
doença. Da mesma forma, tanto na psi-
88
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
coterapia como na prática do serviço so-
cial, a fenomenologia oferece uma visão
compreensiva do vivido dos sujeitos tal
como se dão, buscando suspender os
prejuízos e preconceitos que porventura
possam advir das ferramentas teóricas
ou metodológicas.
Sem embargo, o sentido europei-
zante da fenomenologia-existencial no
modo como universaliza certa ontologia,
possibilitou, segundo a leitura de Martin-
-Santos (2004 ) sua ascensão nos seto-
res conservadores da sociedade. A pre-
tensão de universalidade das vivencias e
de certo modo de Ser, já pretendida por
Husserl, termina por normalizar e natura-
lizar um modo de colonialidade sutil, no
qual algumas ontologias, cosmovisões
e formas de ser-no-mundo, subalternas
ou simplesmente distintas às europeias,
como o são as cosmovisões ameríndias
e africanas, passam ao largo. Não por
isso, mas pela tendência dos fenome-
nólogos a recuar no debate que foge à
totalização das vivências, como são as
contradições sociais, desenvolveu-se
uma ssura entre teoria crítica e feno-
menologia em algumas áreas do conhe-
cimento, sobretudo no serviço social e
na psicologia social.
Por outro lado, essa oposição, no
nosso entender, não permite que a for-
ma como a fenomenologia-existencial
contribuiu para humanizar o atendimen-
to à loucura, por exemplo, não possa ser
aproveitada quando lidamos com popu-
lações em situações de vulnerabilidade
social ou subalternizadas. O entendi-
mento de certos modos de ser e de uma
forma distinta de estar no mundo acaba
sendo esquecido, em prol de uma visão,
também estreita, que entende o Outro
somente como um sujeito do polo dia-
lético dominante-dominado desprezan-
do o analógico, ou seja, o que faz desse
mesmo Outro um ser-humano distinto,
mas ao mesmo tempo semelhante aos
demais, aporte melhor oferecido pela
fenomenologia-existencial.
Nesse sentido, os biógrafos de
Carolina Maria de Jesus apontam as di-
culdades que ela teve ao lidar com a
chamada elite letrada, que lhe atribuiu
traços de personalidade que não con-
vinham com a sociabilidade burguesa.
Do mesmo modo, a convivência com a
vizinhança no bairro de classe média
não foi fácil, sendo ela mesma, vítima
de várias reclamações e queixas. Es-
ses exemplos na vida da autora ilustram
que, para além da garantia de direitos e
visibilidade, o entendimento do encontro
do mundo do Outro subalternizado com
o mundo hegemônico é importante para
que possa se dar o movimento analético
tal como proposto por Dussel.
A fenomenologia-existencial, as-
sim como iluminou alguns aspectos dis-
tintos do mundo dos chamados enfermos
mentais, facilitando, entre outras coisas,
o movimento desmanicomial na Europa e
na América Latina, pode também permitir
o entendimento mais justo e humano dos
mundos subalternos, facilitando encon-
trar suas distinções e semelhanças, des-
de que compreenda esse mundo a partir
de uma ontologia que não universalize o
mundo europeu, como aponta Maldona-
do-Torres. Nesse sentido, o testemunho
de Carolina é importante e demonstra
que um dos caminhos possíveis para a
descolonização passa por facilitar o devir
das classes populares enquanto rosto e
liberdade para que se tornem existências
em vias de se libertar de sua condenação
social, descolonizando-se.
89
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Bibliograa
DUSSEL, Enrique. 1492 El encubrimiento del Otro:
hacia el origen del mito de la modernidad. Confe-
rencias de Frankfurt. La Paz: Plural Editores, 1994.
DUSSEL, Enrique. Filosofía de la Liberación. Mexi-
co: Fondo de Cultura Económica, 2011.
DUSSEL, Enrique. Para una ética de la liberación
latinoamericana I. Buenos Aires: Ediciones Siglo
XXI, 1973.
FANON, Franz. Los Condenados de La Tierra.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2015.
FANON, Franz. Pele negra máscaras brancas.
Salvador: EDUFBA, 2008.
HEIDEGGER, Martim. Ser y Tiempo. México: Fon-
do de Cultura Económica, 1986.
JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diario
de uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 2016.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colo-
nialidad del Ser: contribuciones al desarrollo de un
concepto. In: CASTRO-GOMÉS, Santiago; GROS-
FOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reexiones
para una diversidad epistémica más allá del capi-
talismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores,
2007. p. 127-167.
MARTÍN-SANTOS, Luis. El análisis existencial. En-
sayos (ed. José Lázaro). Madrid: Tricastela, 2004.
QUIJANO, Alberto. Colonialidad del Poder, Euro-
centrismo y America Latina. In: LANDER, Edgardo.
La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias
sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Bue-
nos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales, 2000. p. 78-145.
SARTRE, Jean Paul. Crítica da Razão Dialética.
Tomo I. Trad. Guilherme João de Freitas Ferreira.
Rio de Janeiro: Ed. DP&A, 2002.
SARTRE, Jean Paul. El Ser y La Nada. Tradu-
cão de Valdemar, Juan. Buenos Aires: Ed. Lo-
sada, 2006.
SORIA, Soa. Sujeto y alteridad. In: BISET, Emma-
nuel et. al. Sujeto: una categoría en disputa. Adro-
gué: Ediciones La Cebra, 2015. p. 65-97.
Recebido em 30/01/2018
Aprovado em 27/08/2018
I Brasil. Gustavo Alvarenga Oliveira Santos. Doutor em
Psicologia pela Universidad de Buenos Aires. Professor
Adjunto da Universidade Federal do Triângulo Mineiro/
UFTM, Uberaba, Minas Gerais. Contato: gustalvaren-
ga@hotmail.com
90
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Pornô Cultural: da concepção pornográca como Indústria Cultural
ao movimento Feminista Pornô
Porno Cultural: de la concepción pornográca como Industria Cultural
al movimiento Feminista Porno
Porn Cultural: from pornographic conception like Cultural Industry
to the Feminist Porn movement
Flávia Lages de Castro
I
Juliana Crespo
II
Resumo:
Este artigo pretende discutir a sexualidade como campo e suas
disputas, abordando a categoria pornograa para entendimento
de sua conguração como fenômeno social. Perpassando pela
construção epistêmica de seu termo ao longo dos séculos através
do olhar da sociedade Ocidental. Além disso, pretende destrinchar,
principalmente, suas especicidades ao decorrer das décadas do
século XX, quando se atrela à Indústria Cultural e seus desvios,
sobretudo, com a pulsão do movimento feminista pornô nas artes na
primeira década do século XXI, que de certa forma redimensionam o
caráter comercial da pornograa e atuam como manifestação política
de empoderamento e emancipação da mulher.
Palavras chave:
Pornograa
Indústria Cultural
Mainstream
Pornô-feminista
Contra-hegemonia
91
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo pretende discutir la sexualidad como campo y sus
disputas, a la categoría de pornografía para comprender su
conguración como un fenómeno social. Evitando la construcción
epistémica de su término largo de los siglos a través de los ojos de
la sociedad occidental. Además, quiere molestar, principalmente, sus
características especícas en el curso de las décadas del siglo XX,
cuando se conecta a la industria Cultural y sus desviaciones estándar,
en particular, con el impulso del movimiento feminista pornográco
en la primera década del siglo XXI, que de alguna manera cambiar
el carácter comercial de la pornografía y actuar como manifestación
política de la potenciación y emancipación de la mujer.
Abstract:
This article intends to discuss sexuality as a dispute eld, approaching
the category pornography to understand its as a social phenomenon.
Going through the epistemic construction of its term through the
centuries through the eyes of Western society. In addition, it seeks to
unravel, mainly, its specicities during the decades of the twentieth
century, when it is tied to the Cultural Industry and its deviations, mainly,
with the drive of the feminist pornographic movement in the arts in
the rst decade of the 21st century, that in a certain way reshape the
commercial character of pornography and act as a political manifestation
of women’s empowerment and emancipation.
Palabras clave:
Cultura popular
Políticas Culturales
Edictos
Profesionalización
artística
Bongar
Keywords:
Pornography
Cultural Industry
Mainstream
Porn-feminist
Counter-hegemony
92
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Pornô Cultural: da concepção
pornográca como Indústria Cultural
ao movimento Feminista Pornô
O campo da Sexualidade e suas disputas
O conceito de campo atribui uma
perspectiva de pensamento relacional,
desta forma o objeto ou fenômeno é
concebido em constante relação e movi-
mento. O campo também pressupõe con-
fronto, tomada de posição, luta, tensão,
poder, já que, de acordo com Bourdieu,
todo campo “é um campo de forças e um
campo de lutas para conservar ou trans-
formar esse campo de forças” (BOUR-
DIEU, 2004, p. 22-23).
Os campos são formados por
agentes, indivíduos e instituições, que
criam espaços ‘microcosmos’ dotados
de certa autonomia, ao mesmo tempo
em que submetidos ao ‘macrocosmo’, ou
seja, as leis sociais mais amplas. Para o
sociólogo francês os ‘microcosmos’ ja-
mais escapam das imposições do macro-
cosmo, cada campo dispõe com relação
a este, de uma autonomia parcial mais ou
menos acentuada.
As relações estabelecidas nesses
espaços possuem diferentes possibilida-
des de tomada de estrutura dependendo
a posição ocupada por estes agentes.
Pois, é no interior dos campos que exis-
tem disputas por controle e legitimação
dos bens produzidos, assim como tam-
bém são estabelecidas diferentes rela-
ções e assumidas variadas posturas pe-
los agentes que os compõem.
O grau de autonomia de um cam-
po aumenta à medida que este é mais
bem estruturado, e para analisá-lo é
preciso:
[...] saber qual é a natureza das pres-
sões externas, a forma sob a qual elas
se exercem, créditos, ordens, instru-
ções, contratos, e sob quais formas
se manifestam as resistências que ca-
racterizam a autonomia, isto é, quais
são os mecanismos que o microcos-
mo aciona para se libertar dessas
imposições externas e ter condições
de reconhecer apenas suas próprias
determinações internas. (BOURDIEU,
2004, p. 21).
A resistência aos fatores externos
de determinado campo depende do seu
grau de autonomia, que autor denomina
de capacidade ou poder de “refração”, que
signica a possibilidade de transgurar
as imposições externas ao ponto de “se
tornarem perfeitamente irreconhecíveis”
(BOURDIEU, 2004, p. 23). Porém, o cam-
po também pode ser ‘heterônomo’, quan-
do as pressões e os problemas externos
exercidos sobre ele são bastante inuen-
tes para sua própria conguração.
Em relação à disputa entre os agen-
tes pertencente a determinado campo es-
tão estreitamente relacionadas à posição
que estes ocupam que são nomeadas, de
acordo com Bourdieu (1983), de ‘preten-
dentes’, os novos que estão entrando no
campo buscam sua posição, ou ‘dominan-
tes’, aqueles já estabelecidos e que lutam
para manter-se na posição alcançada.
[...] em cada campo se encontrará
uma luta, da qual se deve, cada vez,
procurar as formas especícas, entre
o novo que está entrando e que tenta
forçar o direito de entrada e o domi-
nante que tenta defender o monopólio
e excluir a concorrência. (BOURDIEU,
1983, p.89)
As atitudes dentro de determina-
do campo são estabelecidas de variadas
maneiras, segundo Bourdieu, podendo
ser aceita as normas, pela boa vontade
93
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
em relação à cultura e às regras legitima-
das, e outra denominada “herética”, ou
seja, contestação das regras e posições,
porém é possível atitudes híbridas em
ambas as posturas.
Ao abordar a sexualidade como
campo, para que seja possível o enten-
dimento de sua construção como fator
sócio cultural, é possível perceber que
seu ‘microscosmo’ receberam inúmeras
influências de outros fatores macros,
como ordenamento jurídico e religioso,
e de outros campos, como da biologia,
da medicina e da psicanálise, de forma
bastante distinta ao longo de determi-
nados tempo-espaço. Neste sentido
o campo da sexualidade se configura
como um ‘heterônomo’, onde diversos
agentes constroem suas formas legiti-
madoras muitas vezes baseados em
preceitos distintos ao seu próprio cam-
po de interesse.
Heilborn (1999) apresenta que a
sexualidade deve ser percebida como es-
fera social, pois suas formas de aborda-
gens, enunciações e práticas extrapolam
o entendimento das diferenças individuais
e perpassam diferentes roteiros sociais.
Mais do que um recurso explicativo
baseado em diferenças psicológicas,
essa variação é efeito de processos
sociais que se originam no valor que
a sexualidade ocupa em determina-
dos nichos sociais e nos roteiros es-
pecícos de socialização com que as
pessoas se deparam. (HEILBORN,
1999, p.40).
Entende-se sexo como a denomi-
nação do aparato biológico, anatômico,
que se diferencia entre homens e mulhe-
res, além das práticas e comportamentos
vinculados à relação sexual, resultantes
das concepções existentes a respeito.
Tais diferenças são organizadas desde a
concepção, porém os signos associados
a este são construídos histórico-social-
mente, principalmente, no que concerne a
sexualidade; a qual se compõe de acordo
com as relações e identidades socialmen-
te construídas e historicamente modela-
das (MAIO, 2008, p.18).
Anthony Giddens (1993) diz que a
sexualidade é uma temática que por ser
essencialmente privada, poderia ser de
irrelevância pública e também um fator
permanente, por se tratar de um compo-
nente biológico, e como tal necessária à
continuidade das espécies. Entretanto,
observa também que as questões sexu-
ais aparecem continuamente no domínio
público, especialmente na atualidade,
cuja sexualidade está cada vez mais
atrelada a descobertas que propiciam o
desenvolvimento de estilos de vida bas-
tante variados.
Devido aos aspectos sociais, a se-
xualidade extrapola a preocupação indivi-
dual e se torna uma questão crítica e po-
lítica, tornando-se algo a ser investigado
por uma análise minuciosa das rupturas
históricas e dos aspectos sociológicos,
que envolve “rituais, fantasias, represen-
tações, símbolos, convenções... Proces-
sos profundamente culturais e plurais”
(LOURO, 2001, p.11).
É algo que cada um “tem”, ou cultiva,
não mais uma condição natural que
um indivíduo aceita como um estado
de coisas preestabelecido. De algum
modo, que tem de ser investigado, a
sexualidade funciona como um as-
pecto maleável do eu, um ponto de
conexão primário entre o corpo, a au-
to-identidade e as normas sociais (GI-
DDENS, 1993, p.25).
A crise pela busca por sentido e
formas de representação sobre gênero,
sexo e sexualidade emerge dentro do
contexto cultural atual, segundo Jefrey
Weeks, devido às signicações e a im-
94
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
portância que atribuímos esses aspec-
tos em “(...) nossas vidas e em nossos
relacionamentos, sobre a identidade e o
prazer, a obrigação e a responsabilida-
de, e sobre a liberdade de escolha” (WE-
EKS, 2001, p. 74).
Nossas denições, convenções,
crenças, identidade e comportamen-
tos sexuais não são o resultado de
uma simples evolução, como se ti-
vessem sido causados por algum
fenômeno natural: eles têm sido mo-
delados no interior de relações de-
nidas de poder. A mais óbvia dessas
relações já foi assinalada na citação
de Krafft-Ebing: as relações entre
homens e mulheres, nas quais a se-
xualidade feminina tem sido histori-
camente denida em relação à mas-
culina (WEEKS, 2001, p.48).
Desta forma, de acordo com
Maio, os escritos sobre sexualidade,
tanto a pronúncia quanto a dicção são
masculinas, formados por pessoas de
classe média, branca e basicamente
heterossexuais, seriam estes os agen-
tes ‘dominantes’ do campo que de for-
ma contundente manteve regras rígidas
sobre a sexualidade, como a heteronor-
matividade, a monogamia e a moralida-
de familiar, excluindo as concorrências,
sobretudo a feminina. Como Maio des-
creve essas regras morais que atribuem
formas vexatórias contém “verdades”
incrustadas que estabelecem modelos
da expressão e da manifestação sexual
até hoje vigentes.
Uma das “verdades” sobre a sexu-
alidade e a vergonha da nudez dos
corpos vem do entendimento sobre
o que traz a Bíblia [...]. Por conta
desse “descobrimento” dos corpos
feito na vergonha, após um pecado
(o chamado Pecado Original), pode-
mos inferir que a expressão sexual
humana não poderia ter vindo me-
nos carregada de tabus, mitos, pre-
conceitos, contradições, que foram e
vão ainda moldando as atitudes e o
comportamento sexual das pessoas
(MAIO, 2008, p.25).
Com a perda do sentido religioso,
na sociedade moderna, de forma mais
consistente e visível, a cultura passa ser
a moeda de troca para os processos idea-
lizadores, segundo Terry Eagleton (2011).
Ela tem o papel de oferecer “culto, simbo-
lismo, unidade social, identidade coletiva,
uma combinação sensível de moralidade
e prática espiritual”, ou seja, passa a es-
tabelecer esses critérios homogeinizado-
res de forma sistêmica. Eagleton aponta
que o capitalismo industrial, atrelado as
suas tendências racionalizadoras e se-
cularizantes, tem a necessidade de legi-
timar a si mesmo, e utiliza-se da cultura
como forma “alternativa lamentável” para
religião em dois aspectos:
Em seu sentido artístico mais res-
trito, ela é limitada a uma percenta-
gem insignicante da população, e
em seu sentido social mais amplo, é
exatamente o ponto em que homens
e mulheres menos estão em harmo-
nia. Cultura, neste último sentido de
religião, nacionalidade, sexualidade,
etnicidade etc., é um campo de bata-
lha feroz; de modo que, quanto mais
prática se torna a cultura, menos é
capaz de cumprir um papel concilia-
tório, e quanto mais conciliatória ela
é, mais inecaz se torna (EAGLE-
TON, 2011, p.64).
Ao se evidenciar esses fenôme-
nos de natureza moral e social Marilena
Chauí diz que as práticas de controle so-
cial, proibitivas e permissionárias em re-
lação ao sexo são bastante antigas, des-
tacando que o estudo do seu sentido, as
causas e efeitos são bastante recentes;
tendo como marco à inserção de forma
tardia da palavra sexualidade no dicio-
95
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
nário, devido a ampliação do sentido do
termo sexo, que passa a se distinguir e
diferenciar entre necessidade (física, bio-
lógica), prazer, (físico, psíquico) e dese-
jo (imaginação, simbolização)” (CHAUÍ,
1984, p. 11). Se torna bastante perceptí-
vel a falta de capacidade e poder de ‘re-
fração’ do campo da sexualidade, devido
as inúmeras imposições externas, o que
diculta e muito uma separação deste
campo dos demais fatores sociais.
Em consonância com o pensa-
mento da autora supracitada, Maria
Luiza Heilborn aponta que a cultura é
responsável pela “transformação dos
corpos em entidades sexuadas e socia-
lizadas, por intermédio de redes de sig-
nificados que abarcam categorizações
de gênero, de orientação sexual, de es-
colha de parceiros” (HEILBORN, 1999,
p. 40). Desta forma, Weeks (2001) ob-
serva que os significados que damos à
sexualidade e ao corpo por serem so-
cialmente organizados, se modificam ao
longo da história, de acordo com o tem-
po e cada sociedade.
Mesmo compreendendo que se
trata de outra matriz de pensamento dis-
tinta de Bourdieu, vale ressaltar o estu-
do feito por Michel Foucault (1926-1984)
sobre a “história da sexualidade”, pois
tem sido central para as discussões so-
bre o corpo e a sexualidade, partindo da
seguinte visão: “Não se deve concebê-la
como uma espécie de dado da natureza
que o poder tenta pôr em xeque, ou como
um domínio obscuro que o saber tentaria,
pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é
o nome que se pode dar a um dispositivo
histórico” (Foucault, 1993, p. 100).
Foucault (2008) refere-se ao fato de
que até o século XVII ainda vigorava uma
franqueza sexual, pois as práticas sexuais
não eram escondidas em segredos; eram
até estimuladas. O lósofo destaca, o que
ele congura como hipótese repressiva,
posturas evidenciadas a partir do século
XVII, que reduz o sexo a procriação, per-
mitindo somente uma única manifestação
possível: a sexualidade do casal monogâ-
mico, legítimo e procriador. Encerrando de
forma cuidadosa a própria sexualidade,
sendo conscada pela família conjugal e
manifestada dentro de casa, com a fun-
ção, inteiramente, de reprodução.
O casal, legítimo e procriador, dita a
lei. Impõe-se como modelo, faz reinar
a norma, detém a verdade, guarda o
direito de falar, reservando-se o prin-
cípio do segredo.(...) Ao que sobra só
resta encobrir-se; o decoro das atitu-
des esconde os corpos, a decência
das palavras limpa os discursos. E se
o estéril insiste, e se mostra demasia-
damente, vira anormal: receberá este
status e deverá pagar as sanções
(FOUCAULT, 1980, p. 9-10).
Foucault evidencia que em muitos
momentos houve repressão, mas pro-
põe uma análise mais minuciosa da re-
lação entre poder e sexualidade. O autor
aponta que a dinâmica a partir do século
XIX, com a inserção do discurso “médico-
-legal”, fatores entendidos por Bourdieu
como “macrocosmos” pertencente res-
pectivamente ao campo da medicina e
ao campo jurídico, tem a capacidade de
formular regramentos sociais; o que torna
esse processo de dominação algo mais
sutil (FOUCAULT, 1980, p. 30). Provoca
ainda efeitos diversos como: a vigilância,
a normatização e a constituição da se-
xualidade a partir do controle dos corpos
das pessoas, por meio da produção e da
inscrição da sexualidade, e não pela sua
negação e proibição.
O excesso do controle normativo
que gera excitação coletiva de curiosida-
de, unido a uma não proibição, segundo
Leite Junior, foi um dos fatores responsá-
veis pelo surgimento da categoria porno-
graa no campo da sexualidade, no nal
96
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
do século XIX, que tinha como principal
objetivo visar à excitação sexual de seu
público como única motivação e m em
si mesma. Entretanto, foi somente na se-
gunda metade do século XX, especica-
mente na década de 1970, que a sexu-
alidade e a pornograa passaram a ser
constante pauta na vida social, tendo em
vista que em diversos países, sobretu-
do, nos Estados Unidos obteve-se uma
legislação mais permissiva, que permitiu
a ascensão de inúmeros lmes, teatros
adultos e sex shops.
Nestas novas mercadorias, o sexo
perde sua intenção de transgressão
contra as estruturas sociais vigentes
e torna-se expressão da uniformiza-
ção dos desejos e padronização dos
prazeres (...) agora a pornograa não
é mais transgressiva e questionadora,
pois agora ela quer se armar nas atu-
ais bases econômicas e sociais (LEI-
TE JR., 2006, p. 64).
Nesse sentido é possível entender
a categoria pornograa como uma pos-
sibilidade de ‘refração’ do campo da se-
xualidade, para uma conguração mais
autônoma de suas regras. Porém, pela
necessidade de sua própria visibilidade
e inserção como mercadoria massiva,
nota-se que os macrocosmos continuam
sendo predominantes, se tratando de um
campo ainda ‘heterônomo’.
Surge assim uma indústria com
objetivo de ampliar o público consumidor
e gerar lucros, fazendo com que a porno-
graa de certa forma perca a intenção de
transgressão da ordem estabelecida. Pois,
epistemologicamente, a palavra “porno-
graa” se origina do termo grego porno-
graphos, ou seja, escrita sobre prostitutas.
Na sua concepção original, o termo se re-
fere aos costumes, à descrição da vida e
dos hábitos das prostitutas e de sua rela-
ção com os clientes (MORAES; LAPEIZ,
1984, p. 109).
Porém, para ser atribuída a legali-
dade deste gênero como indústria, os ele-
mentos deste material pornográco eram
conduzidos por padrões sexuais aceitos
na contemporaneidade, tendo em vista
que estes estão relacionados ao sistema
de gênero dominante, que Leite Júnior
chamará de “gozo legítimo”, ou seja, a
pornograa legal comercial mainstream,
que corresponde a imagens de casais he-
terossexuais, mas também de gays e tra-
vestis todos dentro dos padrões de beleza
aceitos pela sociedade (DIAZ-BENITEZ,
2009). Leite destaca também que “mais
do que liberar a fruição dos prazeres, a
pornograa legaliza da explicita uma pa-
dronização dos desejos e uma domestica-
ção dos corpos talvez nunca encontrados
antes” (LEITE JR, 2006, p.15).
De acordo com Preciado (2008)
a pornograa é um dispositivo virtual,
tendo como principal objetivo a prática
masturbatória, ou seja, a capacidade
de estimulação que o sistema produz
independentemente da vontade própria
e dos mecanismos responsáveis pela
produção do próprio prazer, concluindo
que a “representação da sexualidade
aspira a controlar a resposta sexual do
observador” (PRECIADO, 2010, p. 141).
Esses novos mecanismos de imagem
que impulsionaram a indústria pornô,
desde o século XX demarcam, segundo
Preciado (2010) e Leite Júnior (2006), a
própria composição do sujeito sexuado,
apresentando-se por um processo públi-
co e virtual, por isso, segundo os auto-
res, não há como pensar sexualidade na
contemporaneidade ocidental sem levar
em conta as mudanças tecnológicas.
Victa de Carvalho (2006) atenta
que os dispositivos eletrônicos e as ex-
periências proporcionadas pelas Novas
Mídias tornam-se um desafio para os
mecanismos perceptivos e “indicam a
necessidade de uma análise que privile-
gie o caráter processual da experiência
97
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
que se dá na inter-relação entre sujeito
e dispositivo” (CARVALHO, 2006, p. 77).
Ao citar Félix Guattari, a autora supraci-
tada, identifica que esses “dispositivos
de imersão” provocam alterações na
concepção de subjetividade que de cer-
ta forma extrapola a “oposição clássica
entre sujeito e sociedade” (GUATTARI
apud CARVALHO, 2006, p. 78). Des-
ta forma, esses dispositivos se tornam
não somente um equipamento técnico,
mas sim um “regime de fazer ver e fazer
falar” (FOUCAULT apud CARVALHO,
2006, p. 79).
Essa necessidade de visibilidade
resulta, na década de 1990, o que Annie
Sprinkle chamará de pós-pornô, se inti-
tulando precursora do movimento, atri-
buindo o mesmo nome em seu próprio li-
vro “Post-Porn Modernist” que tem como
objetivo incluir a performance sexual:
ironia, política e feminismo, pois, essa
conguração subverteria a passividade
da mulher, apresentando-a como uma
sexualidade forte e agressiva. De acordo
com Nancy Prada (2012), o movimento
feminista pornô ou pós-pornô traz como
ideal o rompimento com a pornograa
mainstream e promove a aceitação dos
prazeres pelo público feminino, colocan-
do como uma possível ferramenta para
emancipação das mulheres.
O movimento em questão seria a
tentativa de diversos agentes, sobretudo,
mulheres para se inserir no campo de for-
ma ‘herética’, ou seja, contestando como
‘pretendestes’ o que foi estabelecido du-
rante séculos pelos ‘dominantes’. Deste
modo, Preciado (2011) acrescenta que
o movimento possibilita que o corpo seja
pensado como se fosse composto por pró-
teses para se desvincular cada vez mais
das próteses naturalizadas, que perdura-
ram como “verdades” únicas e absolutas,
durante séculos. Essas próteses como a
vagina, o peito e o pênis são “tecnologias
de gênero”, construídas socialmente. Tal
concepção provoca uma possibilidade
mais abrangente e múltipla de subjetivida-
des, identicando diferentes possibilida-
des de prazeres, remetendo um resgate
de uma estética da existência como se re-
fere Denilson Lopes ao citar Foucault:
[...] aproxima-se mais do desejo do
resgate de Foucault de uma estéti-
ca da existência que associa ética
e estética à medida que “o estilo é
autoformação ou criação equivalen-
te ao que chamamos uma obra de
arte” [...], na busca não tanto de uma
“identidade gay, lésbica ou queer
mas de identificações momentâneas
ou duráveis” [...], apontando para a
morte do homem, da mulher [...] mas
também da homossexualidade [...].
O andrógino, para Echavarren, é um
mutante marcado pelo devir do esti-
lo [...], abre uma outra possibilidade
distinta e provocadora [...] (LOPES,
2016, p. 7).
Tal lógica vai ao encontro do pen-
samento da associação Orbita Diver-
sa
III
, uma das militantes do feminismo
pornô, que destaca que o movimento
tem como principal pressuposto não
evidenciar um único espectador do sexo
feminino, mas reconhece a variedade
de espectadorxs
IV
com vários gostos e
preferências, questionando através das
imagens as representações dominantes
de “gênero, orientação sexual, raça, et-
nia, posição social e outros elementos
determinantes da identidade de cada
um”, “com objetivo de derrubar a desi-
gualdade, papéis de gênero, heteronor-
matividade e homonormatividade”; pro-
movendo diferentes possibilidades de
“expressão de identidade” e “partilha de
poderes” (BOLLOSAPIENS, 2013, tra-
dução livre).
Esses ‘pretendentes’ do campo
da sexualidade pontuados aqui não pre-
tendem transformar o campo da sexuali-
98
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
dade como algo independente, mas sim
utilizá-lo como ferramenta política, social
e econômica para discutir e modicar as
normas, regras e moralidades sociais, ou
seja, utilizar do microcosmo, fazendo uso
da categoria pornograa para afetar os
macrocosmos.
Tal formulação de pensamento ga-
nhou força devido a teorias pós-coloniais
e teorias queer, que servem para pensar
o movimento, segundo Beatriz Preciado
(2011) em seu texto “Multidões Queer”,
pois são um grito na porta dos movimen-
tos sociais anteriores, dizendo que agora
somos muitos, somos multidões, somos
uma multidão sem rosto. De uma multipli-
cidade innita com identidades transcul-
turais e transitórias:
O locus da construção da subjetivi-
dade política parece ter se deslocado
das tradicionais categorias de classe,
trabalho e divisão sexual do trabalho
a outras constelações transversais
como podem ser o corpo, a sexualida-
de, a raça; mas também a nacionali-
dade, a língua, o estilo ou, inclusive,
a imagem. (PRECIADO apud CAR-
RILLO, 2010, p. 54).
Logo, ao se fazer referência aos
modelos de controle de Foucault (2008),
que também pode-se entendido pela óti-
ca dos macrocosmos de Bourdieu, pode-
-se observar o feminismo pornô como
resistência ao “discurso disciplinar da
construção dos corpos gênero e dese-
jos”, que segundo o autor vem se mul-
tiplicando há três séculos (FOUCAULT,
2008, p. 55); proporcionando um distan-
ciamento a ideia de uma pornograa li-
gada à origem epistemológica de seu ter-
mo, além de desvincular cada vez mais
a hipótese atribuída pelo senso comum
de que pornograa se limita ao público
masculino, o que contrasta com a pes-
quisa realizada pelo site Homegrouwn
Vídeo, em 2013, que vericou que 56,9%
dos vídeos amadores são postados por
usuários mulheres
V
. Reforçando assim, a
tentativa de luta no campo da sexualida-
de, cujos novos pretendentes de forma
“herética” tentam se inserir e modicar as
regras, pois a sociedade está demandan-
do cada vez mais diferentes possibilida-
des de fala e produção para a categoria
pornograa como forma, sobretudo, de
emancipação feminina.
A pornograa mainstream
e a Indústria Cultural
Como foi visto o campo da sexuali-
dade se trata de um campo ‘heterônomo’
e a construção da categoria pornograa
pode ser entendida como forma de ‘refra-
ção’, porém ainda baseada nos pressu-
postos mais amplos sociais. Sendo assim,
a categoria por ter sido pensada original-
mente para um público masculino se re-
laciona as formas como os macrocosmos
posicionavam as relações de divisão dos
sexos, principalmente, a forma que o cam-
po da biomedicina-social moldou o enten-
dimento do prazer sexual.
Thomas Laqueur (2001) descre-
ve em sua obra ‘Inventando o Sexo’, a
aventura de um médico do século XVIII
que possui obsessão em distinguir morte
real de morte aparente. A história conta
que ele se depara com uma jovem aris-
tocrata considerada muito bonita que foi
dada como morta, sua família pediu para
que um monge a velasse durante a noi-
te, já que seu enterro ocorreria somen-
te no dia seguinte. O monge admirado
por tamanha beleza e indignado com o
corpo que apresentava feições bastante
vivas deixou de lado seus votos e tomou
liberdade com a morta que somente o
matrimônio teria permitido; envergonha-
do com o acontecido o monge partiu na
manhã seguinte sem aguardar o sepul-
tamento. Na hora do enterro quando a
tumba estava sendo abaixada sentiram
99
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
movimentos no interior do caixão e des-
cobriram que a moça ainda estava viva
e se tratava por tanto de uma morte apa-
rente. Tempo depois a moça descobriu
que estava grávida.
Tal história fez com que o famo-
so cirurgião Antoine Louis chegasse à
conclusão que o orgasmo feminino era
irrelevante para a concepção, em 1752,
modicando todo o pensamento até en-
tão sobre a concepção que antes previa
“quando a semente frutica no ato da ge-
ração (do homem e da mulher) dá-se ao
mesmo tempo uma extraordinária exci-
tação e deleite em todos os membros do
corpo”. Transformando toda uma esfera
de pensamentos, e colocando essa re-
cém “descoberta” como verdade, o que
abriu a “possibilidade da passividade e
falta de paixão da mulher”. A psicologia-
-contemporânea, que apontava que “o
homem deseja o sexo e a mulher de-
seja relacionamentos” é a inversão das
noções do pré-iluminismo que, desde a
Antiguidade, ligava a amizade aos ho-
mens e a sensualidade às mulheres (LA-
QUEUR, 2001, p. 15).
As mulheres, cujos desejos não co-
nheciam fronteiras no antigo esquema
e cuja razão oferecia pouca resistên-
cia à paixão, tornaram-se, em alguns
relatos, criaturas com uma vida repro-
dutiva anestesiada dos prazeres car-
nais. Quando, no nal do século XVIII,
passou-se a pensar que “a maioria
das mulheres não se preocupava com
sentimentos sexuais”, a presença ou
ausência do orgasmo tornou-se um
marco biológico da diferença sexual
(LAQUEUR, 2001, p. 15-16).
Unido a essa ideia veio à constru-
ção das diferenças dos sexos masculino
e feminino, entre o homem e a mulher,
em distinções biológicas, mas também
distinções em todo aspecto concebível
“do corpo e da alma, em todo aspecto fí-
sico e moral”, “uma série de oposições
e contrastes”, também transformando
o pensamento que prevaleceu durante
séculos, cujo os escritos de Aristóteles
e Herólo deram forças para o enten-
dimento da existência de único sexo,
sendo a “vagina como um pênis interno,
os lábios como prepúcio, o útero como
o escroto e os ovários como os testícu-
los”, mantendo somente a visão de que
o corpo da mulher, faltava o que os ló-
sofos chamavam de “ falta de calor vital
– de perfeição”, pois somente o homem
tinham as estruturas visíveis na parte ex-
terna (LAQUEUR, 2001, p. 16-17).
No século XIX tais diferenças fo-
ram amplicadas para distinções a -
veis microscópicos, no qual a psicaná-
lise reforçava a biologia e a medicina
congurando o corpo feminino como
algo mais “passivo, conservador, indo-
lente e variável” (LAQUEUR, 2001, p.
18). O que reforçava e legitimava a justi-
cativa dos respectivos papéis culturais
do homem e da mulher. Esse processo
de diferenciação anatômica e siológi-
ca, entre o homem e a mulher, surge,
segundo o autor, pois essas diferenças
se tornaram politicamente importante.
“A política, amplamente compreendida
como competição de poder, criou novas
formas de constituir o sujeito e as reali-
dades sociais dentro das quais o homem
vivia” (LAQUEUR, 2001, p. 18).
Falar sobre sexualidade é falar
sobre a ordem social que ela represen-
tava e a legitimava. Para as feministas,
como Catharine Mackinnon, a divisão
de gênero entre homens e mulheres é
causado pelas exigências sociais de
heterossexualidade, que institucionali-
zam a dominação sexual masculina e
a submissão feminina, o sexo são rela-
ções sociais que servem para a mesma
coisa, ou seja, é organizada para que o
homem possa dominar e a mulher sub-
meter-se a ele.
100
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apesar das diferenças epistêmi-
cas, o corpo masculino sempre foi dado
como um padrão, onde somente o cor-
po feminino é mutável de entendimento,
cuja sócio-biologia construiu uma con-
siderável e frequente tendência misógi-
na em grande parte das pesquisas so-
bre as mulheres, e a história trabalhou
claramente para racionalizar e legitimar
as distinções, não só de sexo mas tam-
bém de raça e classe, com desvantagem
para os destituídos de poder. Desta for-
ma, não é possível escrever a história do
corpo do homem e seus prazeres porque
o registro histórico foi criado em uma tra-
dição cultural onde essa história não é
necessária. Mas, a construção da distin-
ção de dois sexos se baseia claramente
no processo de heteronormatividade, o
que reforça os papéis sociais de ambos
os sexos, sobretudo, em relação à sexu-
alidade e o prazer.
O discurso dos conteúdos porno-
grácos midiatizados reforçava esses
entendimentos de distinção dos sexos e
seus papéis sociais, apontando a gura
feminina no sentido de subserviência do
prazer masculino que se tornara o ápice
da temática. O gozo masculino eviden-
ciado na narrativa como potência, poder
e desfecho da trama. Já o orgasmo femi-
nino, muito pouco evidenciado e quando
apresentado em sua maioria das vezes de
forma falseada, era modelado de forma fe-
tichizada que promovesse a virilidade do
homem. Os roteiros na verdade reprodu-
ziam as convencionalidades dos saberes
e valores inscritos.
Não à toa esse conteúdo se ex-
pandiu em meados do século XX, onde o
pós-guerra faz com que as experiências
tornam-se mais individualizadas, as tec-
nologias de imagem tomam proporções
maiores e se instaura um consumo de
cultura de massa devido à ‘democratiza-
ção’ de um tempo livre, que antes era
privilégio das classes dominantes, que
atribui um tempo muito especíco não
para o repouso, mas um tempo para o
consumo. A pornograa se instala como
dispositivo virtual (literário, audiovisual,
cibernético), como representação públi-
ca, e ao se tornar “pública” implica direta
ou indiretamente comercializável “ade-
rindo todas as características da indús-
tria cultural: virtuosidade, possibilidade
de reprodução técnica [...]” (PRECIADO,
2008, p. 170-171, tradução livre).
A Indústria Cultural, termo cunha-
do por Theodor Adorno e Max Horkhei-
mer, designa a situação da arte na
sociedade capitalista industrial, que
transforma a cultura em produto a ser
consumido e por consequência apaga e
neutraliza a arte erudita e arte popular,
esvaziando os valores críticos e neutra-
lizando a participação cultural, pois de-
sencoraja o esforço pessoal de questio-
namento do mundo pela posse de uma
experiência estética e espetacularizada,
fazendo com que o público se torne uma
massa homogênea, que procure apenas
o conhecido, o experimentado. A porno-
graa mainstream reforça não somente
as ideias que normatizam o mundo mo-
derno, seja pela relação de poder e por
pura estética, como também pelo fato
que independente do seu modelo de dis-
seminação, seja ele: audiovisual, fono-
gráco, fotográco ou performático, sur-
ge para tornar a experiência sexual em
algo rentável e consumido como um pro-
duto de lazer que tem a excitação como
único m em si mesma.
A pornograa na sua inserção
vendável pela Indústria Cultural trans-
forma a sexualidade, o sexo, o prazer,
o gozo em formas discursivas, espec-
tacularizadas e consumíveis, de forma
homogeneizadora que atendam os inte-
resses hegemônicos da construção da
masculinidade e da feminilidade, a m
de manter de forma sistêmica um pro-
cesso de dominação e controle.
101
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Esses discursos historicizados que
fazem compreender o processo e a cons-
trução social seriam os vencedores, os le-
gitimados. Ou seja, aqueles que são cons-
truídos de forma dinâmica, como campo
de luta do signicar social, atrelada a cor-
relação de forças dadas pelos agentes so-
ciais no contexto em que vivem.
Porém, como propõe Raymond
Williams (2011) esses processos estão
em constante transformação e por mais
hegemônico que seja determinada visão
de mundo, cabe aqui destacar a misógi-
na e o machismo, nunca consegue abar-
car sua totalidade. As brechas permane-
cem advindas de elementos “residuais” de
posições anteriormente hegemônicas ou
pelo menos posições que não são con-
templados pela visão predominantemente
de parcelas sociais insatisfeitas com atu-
al quadro de forças, que não se sentem
representadas e que se propõem a fazer
valer seu papel como agentes/sujeitos
no jogo de forças dentro do processo de
atribuição e circulação de signicados
sociais, destaque aqui para as diferentes
correntes feministas.
Desta forma, a corrente feminis-
ta pornô se apresenta como um agente
“emergente” no campo da sexualidade,
que surge para questionar e propor alter-
nativas, confrontando não somente o mo-
delo de pornograa mainstream, mas os
diversos saberes e poderes hegemônicos
que prevaleceram ao longo dos séculos.
Nesse campo de lutas, entre confrontos e
negociação a cultura se faz e refaz, pro-
cessual e dinamicamente.
Pornograa Feminista e o olhar
sobre o Corpo da mulher
Lato sensu a pornograa é reali-
zada para ser vista e o ato de ver produz
efeitos sobre sujeitos e produz relações
de poder na medida que
por seu caráter ativo, a visão é, de
todos os sentidos, talvez aquele que
mais expresse a presença e ecácia
do poder. Muitas das operações pró-
prias do poder se realizam e se efe-
tivam no olhar, por meio do olhar. É
pelo olhar que o homem transforma a
mulher em objeto: imobilizada e dis-
ponível para seu desfrute e consumo.
(SILVA, 1999, p. 89)
Pode-se questionar, entretanto, se
há uma outra forma de “ver este olhar”,
se o modo pelo qual este tem sido reali-
zado é a única maneira de existência do
mesmo o que redundaria em uma impos-
sibilidade total de haver, como exemplo e
por ser o mote deste artigo, uma porno-
graa não objeticadora da mulher.
É possível postular a mutualidade, a
horizontalidade, do olhar? É possível
reivindicar o poder subversivo, rebel-
de, do olhar desaante, irreverente?
Será inevitável ao olhar servir de me-
diador apenas de relações de poder e
saber que objeticam, que inferiorizam
o outro? Seremos obrigados, se qui-
sermos compensar, de alguma forma,
sua tendência verticalizante, a recor-
rer a um sentido sabida mente mais in-
clinado à simetria e à horizontalidade,
como o ouvir e o escutar? Perguntas
similares podem ser feitas a respeito
da representação. Será possível sepa-
rar, de alguma forma, a representação
de sua cumplicidade com o poder?
(SILVA, 1999, p. 62)
Arma Foucault (1999. p. 88) que
o poder não é uma “invencível unidade”,
é móvel, o que redundaria numa impossi-
bilidade de pensar na pornograa como
sendo única e possível do ponto de vista
do poder de quem olha a partir da obje-
ticação da mulher. Como de resto toda
a expressão artística, inclusive agregada
à indústria cultural, a pornograa é um
campo em disputa, de multiplicidades
102
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de discursos que, se tem tido mais eco e
volume um viés do mesmo isso não sig-
nica que o torne imune a resistências,
deslocamentos.
Dentro do movimento feminista, a
pornograa, desde a década de 1970, pro-
voca acaloradas discussões visíveis até
os dias atuais. De um lado a corrente das
aliadas ao feminismo radical, que empre-
gam à pornograa uma violência contra a
mulher, pois a reduzem como mercadoria.
De outro as feministas pró-sexo que acre-
ditam na liberdade sexual como um dos
instrumentos mais básicos para a emanci-
pação feminina, porém esta corrente não
nega que as produções deste gênero são
pouco atrativas para o público feminino, e
alegam que para a pornograa se tornar
libertadora seria necessário produzir con-
teúdos com o olhar feminista.
A pornograa é, em geral, um fazer
que tem por principal consumidor homens
urbanos o que acaba por dar a este mate-
rial uma narrativa voltada à apreciação do
público a que se destina. Este estado de
coisas gerou um debate em torno do as-
sunto que, nas décadas de 70 e 80 do sé-
culo XX nos EUA teve como principal “de-
batedoras” feministas pró sexo e feministas
anti- pornograa. As primeiras salientavam
que o problema estava no uso que se faz
da pornograa não dela em si, as segun-
das consideravam ser a pornograa uma
violência contra as mulheres. A anti- porno-
graa partia do seguinte pressuposto:
A sexualidade é para o feminismo o
que o trabalho é para o marxismo: o
que é mais próprio de cada um e o que
mais se tira de cada um... A sexuali-
dade é este processo social que cria,
organiza, expressa e direciona o de-
sejo, criando os seres sociais que co-
nhecemos como homens e mulheres,
do mesmo modo como suas relações
criam a sociedade... Assim como a ex-
propriação organizada do trabalho de
alguns para o benefício de outros de-
ne uma classe – a dos trabalhadores
– a expropriação organizada da sexu-
alidade de alguns para o uso de outros
dene o sexo, mulher” (MACKINNON
apud HARAWAY, 2004)
Passados quarenta anos do boom
do mercado pornográco, devido a maior
inserção da mulher em diversos campos
sociais, aliado ao surgimento das novas
tecnologias e sua popularização, que
proporcionaram um menor custo às pro-
duções de conteúdo informacional, na pri-
meira década da virada do século emergiu
um movimento categorizado como “femi-
nist porn” ou “pós-porno”, que possui um
campo bastante amplo de propostas inclu-
sas na categoria. Sendo assim, a discus-
são ganha nova importância com a popu-
larização do gênero, recongurando não
apenas o mercado, mas principalmente,
os discursos pornográcos e suas con-
sequentes representações. Isso pode ser
atribuído à desnaturalização da relação
sexualidade/reprodução, da quebra de
atribuições sociais e características psico-
lógicas atreladas aos dois sexos se fazem
importantes por considerar que “repensar
as relações entre os sexos [...] é repensar
as relações de dominação de um sexo so-
bre outro e toda a estrutura de relações
sociais” (LOYOLA, 1999, p.34).
A pornograa feminista tem uma
gama enorme de formas de representar,
justamente para fugir das práticas homo-
geneizante de normatização dos corpos,
tendo como principal objetivo fugir do bi-
narismo e da construção de um gozo ou
uma prática legitima. Utiliza-se de diferen-
tes formas de artes para construir novas
formas de signicação do mundo, con-
frontando os macrocosmos estabelecidos
e historicamente legitimados.
De acordo com Terry Eagleton a
cultura como “sinal, imagem, signica-
do, valor, identidade, solidariedade e au-
103
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
toexpressão” é utilizada como forma de
combate político, pois segundo eles es-
ses pontos dentro da cultura política são
ligados a ideia de subjetividade. Portan-
do, para o autor, cultura signica o domí-
nio da subjetividade social (EAGLETON,
2011, p. 61-62).
Considerações Finais
A arte talvez seja, de forma parado-
xal, a tradução mais simples e, ao mesmo
tempo, renada da singularidade do olhar
(in)consciente de um tempo, de um lugar,
de uma cultura. Uma observação mais
atenta à obra de arte nos suscita o desa-
o de reetir sobre a forma com que os
indivíduos e suas sociedades medeiam e
representam o conito entre seus mundos
interno e externo. Por isso, “o prazer que
extraímos da representação deve-se não
apenas à beleza de que pode estar reves-
tido, mas também à sua qualidade essen-
cial de presente.” (BAUDELAIRE, 2010, p.
14). Assim, não há dúvida quanto à dupla
importância do papel da arte enquanto re-
presentação. De um lado, memória (indi-
vidual e coletiva) da consciência subjetiva
de um ser que se diferencia justamente
pela forma com que exprime seus níveis
de consciência, e de outro, a sua capaci-
dade de comunicar valores.
Sendo assim, se torna evidente o
motivo pelo qual o movimento feminista
pornô, como “emergente” no campo da
sexualidade, faz uso da arte, da cultura,
como forma de luta simbólica e política
para criar novas possibilidades de subje-
tividades mais democráticas, inclusivas e
libertadoras. O movimento se aproveita
da categoria por se tratar de um campo
heterônomo para alcançar outros campos
e de forma herética, confronta e questiona
o status quo, fazendo emergir diferentes
alternativas de saberes, valores e formas
de pertencimento, fazendo da estética a
construção de uma ética.
Bibliograa
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São
Paulo: Martin Claret, 2010.
BENJAMIN, Walter (1984). Origem do drama bar-
roco alemão. Trad. Rubens R. Torres Filho. São
Paulo: Brasiliense.
BOLLOSAPIENS. ¿Qué es el porno feminista?
(2013) In: Orbita Diversa. Disponível em: < http://
orbitadiversa.wordpress.com/2013/06/19/porno-
-feminista/>. Último acesso em jun. 2016.
BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades dos
campos. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de socio-
logia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 89-94.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência:
por uma sociologia clínica do campo cientíco. São
Paulo: UNESP, 2004.
BRAGA, Eliane Rose Maio. “Palavrões” ou pala-
vras: um estudo com educadoras/es sobre sinôni-
mos usados na denominação de temas relaciona-
dos ao sexo. São Paulo: UNESP, 2008.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminis-
mo e subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira, 2010.
CARRILLO, J. Entrevista com Beatriz Preciado.
Revista Poiésis, n. 15, p. 47-71, jul. de 2010.
CARVALHO, Victa. Dispositivos em evidência: a
imagem como experiência em ambientes imersi-
vos In: Limiares da Imagem: tecnologia e estética
na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad
Editora Ltda., 2006, p. 77-90.
CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: Essa nossa
(des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DÍAZ-BENITEZ, María Elvira. Nas redes do sexo
os bastidores do pornô brasileiro. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010.
DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio. Métodos e
Técnicas de Pesquisa em Comunicação. São Pau-
lo: Editora Atlas, 2005.
EAGLETON, Terry. Cultura em crise. In: A ideia de
cultura. São Paulo: UNESP, 2011. p. 51 a 77
FLUSSER, Vilém. Natural: mente: vários acessos
ao signicado de natureza. São Paulo: Duas Ci-
dades, 1979.
104
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: A
vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimida-
de: Sexualidade, amor, e erotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: Editora da Universidade Es-
tadual Paulista, 1993.
HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicio-
nário marxista: a política sexual de uma pala-
vra. Cad. Pagu, Campinas, n. 22, p. 201-246,
June 2004. Disponível em <http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
-83332004000100009&lng=en&nrm=iso>. Aces-
so em 12 janeiro 2017.
HEILBORN, Maria Luiza. Construção de si, gênero
e sexualidade. In: Sexualidade: o olhar das ciên-
cias sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p.40-58.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. A
indústria cultural: o iluminismo como mistifica-
ção de massas. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria
da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra,
2002. p. 169-214.
LAQUEUR, Thomas. “Da linguagem e da carne”.
In: Inventando o Sexo. Rio de Janeiro: Relume Du-
mará, 2001.
LEITE JR, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexu-
ais: a pornograa “bizarra” como entretenimento.
São Paulo: Ed. Annablume, 2006.
LOPES, Denilson. Afetos. Estudos Queer e Artifí-
cio na América Latina. E-Compós, Brasília, v. 19,
p. 1-16, 2016.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexuali-
dade. In: O Corpo Educado: pedagogias da sexua-
lidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.9-32.
LOYOLA, Maria Andréa (org.). A Sexualidade nas
Ciências Humanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
MORAES, Eliane Robert; LAPEIZ, Sandra. O que
é pornograa. São Paulo: Brasiliense, 1984.
PRADA, Nancy. Todas las caperucitas rojas se
vuelven lobos en la práctica pospornográca. Cad.
Paguno, Campinas, n. 38, jan./jun. 2012.
PRECIADO, B. Maniesto contrasexual. Barcelo-
na: Anagrama, 2011.
PRECIADO, B. Pornotopía: arquitectura y sexuali-
dad en “Playboy” durante la guerra fría. Barcelona:
Anagrama, 2010.
PRECIADO, B. Testo Yonqui. Madrid: Editora Es-
pasa Calpe, 2008.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche:
a poética e a política do texto curricular. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 1999.
WEEKS, Jefrey. O corpo e a sexualidade. In: LOU-
RO, Guacira Lopes. O Corpo Educado: pedago-
gias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
2001. p. 34-82.
WILLIAMS, Linda. Hard Core: power, pleasure and
frenzy of the visible. California: University of Cali-
fornia Press, 1986.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São
Paulo: Editora Unesp, 2011.
Recebido em 20/08/2018
Aprovado em 27/08/2018
I Flávia Lages de Castro. Brasil. Doutora em Sociologia
e Direito. Professora do Programa de Pós Graduação
em Cultura e Territorialidades - Universidade Federal
Fluminense. Contato: avialages@id.uff.br
II Juliana Crespo. Brasil. Mestranda do Curso de Cultu-
ra e Territorialidades da UFF, Contato: juliana247@msn.
com
III Coletivo formado por 50 pessoas com diferentes gra-
duações, formando um grupo multidisciplinar internacio-
nal, que coordena ações, militâncias e artigos sobre a
temática feminista. Outras informações em https://orbi-
tadiversa.wordpress.com/nosotrxs/ . Última visualização
agosto de 2018.
IV Atualmente faz-se uso do “x”, principalmente nos
meios tecnológicos para desconstruir os binarismos de
gênero.
V Informações disponíveis em: <http://www.pop.com.
br/mundopop/mulher-ht/-Sabe-quem-mais-lma-e-faz-
-upload-de-porno-caseiro-nos-EUA--1053106.html>. Úl-
timo acesso em junho de 2016