DOSSIÊ “REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA
DOSSIER “REPRESENTATIONS OF VIOLENCE IN LITERATURE”
editores: ELOÍSA PORTO C. A. BRAEM e PAULO CÉSAR S. OLIVEIRA
Representações da violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
Representations of violence in literature: notes towards a possible presentation
ELOÍSA PORTO C. ALLEVATO BRAEM
PAULO CESAR S. OLIVEIRA
Da telenovela à realidade: violência contra mulher latina em “Woman hollering creek” de Sandra Cisneros
From soap-operas to reality: violence against Latin-American woman in Sandra Cisnero’s “Woman hollering creek
HELENO ÁLVARES BEZERRA JÚNIOR
O retrato da violência no romance Piedras Encantadas (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética
The portrayal of violence on Rodrigo Rey Rosa's Piedras Encantadas (2001): an aesthetics construction
RODRIGO DE FREITAS FAQUERI
Mal-estar, violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de Queirós
Discontent, violence and others palinodies of conscience in the novel The Maias, of Eça de Queirós
SILVIO CESAR DOS SANTOS ALVES
ALAN DIOGO CAPELARI
Os crimes de verdade: as memórias de Camilo
Crimes of truth: Camilo's memories
ANDREIA ALVES MONTEIRO DE CASTRO
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:violência, cotidiano e experiência urbana em Contos de Pedro e Passageiro do fim do dia, de
Rubens Figueiredo
The several “Pedros” who inhabit the cities: violence, everyday life and urban experience in Rubens Figueiredo’s Contos de Pedro e Passageiro do fim do
dia
CAROLINA MONTEBELO BARCELOS
Violência e crime em Luiz Alfredo Garcia-Roza: um misto de policial e psicanálise
Violence and Crime in Garcia-Roza: psychoanalytical detective story
FERNANDA MARA DE ALMEIDA AZEVEDO
Representações da violência institucional em Infância dos mortos, de José Louzeiro
Representations of institutional violence in Infância dos mortos, by José Louzeiro
ELOÍSA PORTO C. ALLEVATO BRAEM
SARON DO AMARAL GOMES
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado distópico
Ground Zero: from the crisis to the founding violence of the dystopian state
PEDRO SASSE
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em Vidas secas
Body and soul under violence: from pain to silence, in Vidas secas
PAULO CESAR SILVA DE OLIVEIRA
ISABELA CRISTINA RODRIGUES AZEVEDO
Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
Reports and crossings by Eliana Alves Cruz
MARIA CRISTINA BATALHA
Ninguém ouviu um soluçar de dor: violência racial na narrativa literária de Nei Lopes
No one heard a sob of pain: racial violence in Nei Lopes' literary narrative
CLÁUDIO DO CARMO
Memórias da violência em “Amuleto” de Roberto Bolaño
Memories of violence in Roberto Bolaño's “Amulet
NORMA SUELI DE ARAÚJO MENEZES
JÚLIA MORENA SILVA DA COSTA
Couro ruim é que chama ferrão de ponta: a respeito da violência em Grande sertão: veredas
Tough hides call for a sharp goad: on violence in The Devil to Pay in the Backlands
JÚLIO FRANÇA
JOÃO PEDRO LIMA BELLAS
RESENHA / REVIEW: FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro: 7 letras, 2017.
JONATHAN KAEFER GOMES DA COSTA
ISSN 2237
-
1508
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
P r a g M AT I Z E S
Ano
EDITORES EXECUTIVOS
Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Arte, Brasil
Luiz Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense
de Arte, Brasil
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte,
Brasil
CONSELHO EDITORIAL
Adair Rocha, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro / Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Ahtziri Molina Roldán, Universidad Veracruizana, México
Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em In
genieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará, Brasil
Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Espanha
Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Cristina Am
élia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Brasil
Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Argentina
Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Durval Muniz de Albuquerque Jr., Universidade Estadual
Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Edwin Juno-
Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, França
Fábio Fonseca de Castro, Universidade Federal do Pará, Brasil
Fernando Arias, Observatorio de Indus
trias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Brasil
George Yúdice, Universidae de Miami, Estados Unidos da América
Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Guilherme Werlang,
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
Idemburgo Pereira Frazão, Unigranrio, Brasil
Isabel Babo, Universidade Lusófona do Porto, Portugal
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
José Luís
Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, México
José Márcio Barros, Universidade Estadual de Minas Gerais / PUC Minas,
Brasil
Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Espanha
Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Lívia de Tommasi, Universidade Federal do ABC, Brasil
Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Luís Edmundo de Souza Moraes, Universidade
Federal Rural do Rio de
Janeiro, Brasil
REALIZAÇÃO:
PARCEIROS e INDEXADORES:
P r a g M AT I Z E S
Revista Latino
-
Americana de Estudos em Cultura
Ano
10 nº 18 - out/2019 a mar/2020
Departamento de Arte, Brasil
Luiz Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense
, Departamento
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte,
Estado do Rio de Janeiro / Pontifícia
Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Ahtziri Molina Roldán, Universidad Veracruizana, México
genieria Cultural / Director
Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará, Brasil
Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Brasil
élia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Argentina
Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Durval Muniz de Albuquerque Jr., Universidade Estadual
da Paraíba, Brasil
Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Fábio Fonseca de Castro, Universidade Federal do Pará, Brasil
trias Creativas de la Ciudad de
George Yúdice, Universidae de Miami, Estados Unidos da América
Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Universidade Federal Fluminense, Brasil
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, México
José Márcio Barros, Universidade Estadual de Minas Gerais / PUC Minas,
Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Lívia de Tommasi, Universidade Federal do ABC, Brasil
Federal Rural do Rio de
Luiz Augusto F.
ernandes Rodrigues, Universidade Federal Fluminense,
Brasil
Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Marcela A. País Andrade, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Portugal
Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Mário Pragmácio Telles,
Faculdades Integradas Hélio Alonso
Mari
sa Schincariol de Mello, Universidade Cândido Mendes, Brasil
Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia
Colombia
Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes, Argentina
Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Argent
Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil
Patricio Rivas, Universidad de Chile, Chile
Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Paulo Miguez,
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Renata Rocha, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Ricardo Gomes Lima, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Simonne Teixeira, Universidade Est
adual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro, Brasil
Stefano Cristante, Università del Salento, Italia
Tamara Quírico, Universiade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Cuba
Tunico Amâncio, Universidade Federal
Fluminense, Brasil
Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, Brasil
Vladimir Sibylla Pires, Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Peru
Zandra Pedraza Gomez, Univers
idad de Los Andes, Colômbia
CONSELHO EDITORIAL ASSOCIADO JUNIOR:
Deborah Rebello Lima, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Priscilla Oliveira Xavier, doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo
IPPUR-UFRJ, Brasil
CONSELHO DE ÉTICA
Luiz
Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
EQUIPE DE SUPORTE:
Ubirajara Leal, suporte técnico -
IACS/UFF
Dulce Maria Terra Guimarães, Revisão
-
P r a g M AT I Z E S
Americana de Estudos em Cultura
ernandes Rodrigues, Universidade Federal Fluminense,
Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Marcela A. País Andrade, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Portugal
Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Faculdades Integradas Hélio Alonso
, Brasil
sa Schincariol de Mello, Universidade Cândido Mendes, Brasil
Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia
– sede Medellín,
Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes, Argentina
Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Argent
ina
Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Patricio Rivas, Universidad de Chile, Chile
Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Renata Rocha, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Ricardo Gomes Lima, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
adual do Norte Fluminense Darcy
Stefano Cristante, Università del Salento, Italia
Tamara Quírico, Universiade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Cuba
Fluminense, Brasil
Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, Brasil
Vladimir Sibylla Pires, Universidade Federal do Estado do Rio de
Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Peru
idad de Los Andes, Colômbia
CONSELHO EDITORIAL ASSOCIADO JUNIOR:
Deborah Rebello Lima, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Priscilla Oliveira Xavier, doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo
Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
IACS/UFF
-
IACS/UFF
PragMATIZES participa do
compromisso de
São Francisco
(Pacto de DORA)
PragMATIZES – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura.
Ano X nº 18, (OUT/2019 a MAR/2020). – Niterói, RJ: [s. N.], 2020.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC e Programa de Pós-Graduação em Cultura e
Territorialidades - PPCULT)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e
expressões artísticas. I. Título.
CDD 306
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades - PPCULT
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Sumário / Summary
EDIORIAL / EDITORIAL
COLABORADORES DA EDIÇÃO / ISSUE'S CONTRIBUTORS
DOSSIÊ / DOSSIER
REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA
Representações da violência na literatura: apontamentos para
uma possível apresentação
Representations of violence in literature: notes towards a possible presentation
ELOÍSA PORTO ALLEVATO BRAEM
PAULO CESAR S. OLIVEIRA
Da telenovela à realidade: violência contra mulher latina em
“Woman hollering creek” de Sandra Cisneros
From soap-
operas to reality: violence
Cisnero’s “Woman hollering creek
HELENO ÁLVARES BEZERRA JÚNIOR
O retrato da violência no romance
de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética
The portrayal of violence on Rodrigo Rey Rosa's
an aesthetics construction
RODRIGO DE FREITAS FAQUERI
Mal-
estar, violência e outras palinódias da consciência n'
de Eça de Queirós
.....................................................................
Discontent, violence and others palinodies of conscience in the novel
The Maias
, of Eça de Queirós
SILVIO CESAR DOS SANTOS ALVES
ALAN DIOGO CAPELARI
Os
crimes de verdade: as memórias de Camilo
Crimes of truth: Camilo's memories
ANDREIA ALVES MONTEIRO DE CASTRO
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:violência, cotidiano e
experiência urbana em
Contos de Pedro
de Rubens Figueiredo
........................................................................
The several “Pedros” who inhabit the cities: violence, everyday life and urban
experience in Ru
bens Figueiredo’s
CAROLINA MONTEBELO BARCELOS
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Sumário / Summary
COLABORADORES DA EDIÇÃO / ISSUE'S CONTRIBUTORS
REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA
Representações da violência na literatura: apontamentos para
uma possível apresentação
....................................
..............................
Representations of violence in literature: notes towards a possible presentation
ELOÍSA PORTO ALLEVATO BRAEM
PAULO CESAR S. OLIVEIRA
Da telenovela à realidade: violência contra mulher latina em
“Woman hollering creek” de Sandra Cisneros
....................
..............................
operas to reality: violence
against Latin-
American woman in Sandra
Cisnero’s “Woman hollering creek
HELENO ÁLVARES BEZERRA JÚNIOR
O retrato da violência no romance
Piedras Encantadas (2001),
de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética
.......
..............................
The portrayal of violence on Rodrigo Rey Rosa's
Piedras Encantadas
RODRIGO DE FREITAS FAQUERI
estar, violência e outras palinódias da consciência n'
Os maias
.....................................................................
................
Discontent, violence and others palinodies of conscience in the novel
, of Eça de Queirós
SILVIO CESAR DOS SANTOS ALVES
crimes de verdade: as memórias de Camilo
.........
............................
Crimes of truth: Camilo's memories
ANDREIA ALVES MONTEIRO DE CASTRO
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:violência, cotidiano e
Contos de Pedro
e
Passageiro do fim do dia
........................................................................
The several “Pedros” who inhabit the cities: violence, everyday life and urban
bens Figueiredo’s
Contos de Pedro e
Passageiro do fim do dia
CAROLINA MONTEBELO BARCELOS
COLABORADORES DA EDIÇÃO / ISSUE'S CONTRIBUTORS
..............................
................ 18
Representations of violence in literature: notes towards a possible presentation
..............................
34
American woman in Sandra
..............................
.......... 66
Piedras Encantadas
(2001):
Os maias
,
................
........... 89
Discontent, violence and others palinodies of conscience in the novel
............................
......... 113
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:violência, cotidiano e
Passageiro do fim do dia
,
........................................................................
................ 140
The several “Pedros” who inhabit the cities: violence, everyday life and urban
Passageiro do fim do dia
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Violência e crime em Luiz Alfredo Garcia
policial e psicanálise
....................................................
Violence and Crime in Garcia
FERNANDA MARA DE ALMEIDA AZEVEDO
Representações da violência institucional em
de José Louzeiro
...........................................................
Representations of institutional violence in
by José Louzeiro
ELOÍSA PORTO C. ALLEVATO BRAEM
SARON DO AMARAL GOMES
Marco Zero: da
crise à violência fundadora do estado distópico
Ground Zero
: from the crisis to the founding violence of the dystopian state
PEDRO SASSE
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em
Body and soul under violence: from pain to silence, in
PAULO CESAR SILVA DE OLIVEIRA
ISABELA CRISTINA RODRIGUES AZEVEDO
Relatos e travessias em
Eliana
Reports and crossings by
Eliana
MARIA CRISTINA
BATALHA
Ninguém ouviu um soluçar de dor: violência racial na narrativa
literária de Nei Lopes
.........................................
No one heard a sob of pain:
CLÁUDIO DO CARMO
Memórias da violência em “
Memories of violence in
Roberto Bolaño's “
NORMA SUELI DE ARAÚJO MENEZES
JÚLIA MORENA SILVA
DA COSTA
Couro ruim é que chama ferrão de ponta: a respeito da violência
em
Grande sertão: veredas
Tough hides call for a sharp goad: on violence in
JÚLIO FRANÇA
JOÃO PEDRO LIMA BELLAS
RESENHA / REVIEW
RESENHA: FIGUEIREDO, Eurídice.
brasileira
. Rio de Janeiro: 7 letras, 2017.
JONATHAN KAEFER GOMES DA COSTA
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Violência e crime em Luiz Alfredo Garcia
-Roza: um misto de
....................................................
............................
Violence and Crime in Garcia
-
Roza: psychoanalytical detective story
FERNANDA MARA DE ALMEIDA AZEVEDO
Representações da violência institucional em
Infância dos mortos
...........................................................
...........................
Representations of institutional violence in
Infância dos mortos,
ELOÍSA PORTO C. ALLEVATO BRAEM
SARON DO AMARAL GOMES
crise à violência fundadora do estado distópico
: from the crisis to the founding violence of the dystopian state
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em
Vidas secas
Body and soul under violence: from pain to silence, in
Vidas secas
PAULO CESAR SILVA DE OLIVEIRA
ISABELA CRISTINA RODRIGUES AZEVEDO
Eliana
Alves Cruz ..........
...........................
Eliana
Alves Cruz
BATALHA
Ninguém ouviu um soluçar de dor: violência racial na narrativa
.........................................
............................
....................
No one heard a sob of pain:
racial violence in Nei Lopes' literary narrative
Memórias da violência em “
Amuleto” de Roberto Bolaño
..................
Roberto Bolaño's “
Amulet
NORMA SUELI DE ARAÚJO MENEZES
DA COSTA
Couro ruim é que chama ferrão de ponta: a respeito da violência
Grande sertão: veredas
.....................................
...........................
Tough hides call for a sharp goad: on violence in
The Devil to Pay in
JOÃO PEDRO LIMA BELLAS
RESENHA: FIGUEIREDO, Eurídice.
A literatura como arquivo da ditadura
. Rio de Janeiro: 7 letras, 2017.
...........................
...........................
JONATHAN KAEFER GOMES DA COSTA
............................
.......... 155
Roza: psychoanalytical detective story
Infância dos mortos
,
...........................
.......... 182
crise à violência fundadora do estado distópico
................. 198
: from the crisis to the founding violence of the dystopian state
Vidas secas
............. 225
...........................
................ 246
....................
266
racial violence in Nei Lopes' literary narrative
..................
........... 278
Couro ruim é que chama ferrão de ponta: a respeito da violência
...........................
............... 296
The Devil to Pay in
the Backlands
A literatura como arquivo da ditadura
...........................
..... 308
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
EDITORIAL
PragMATIZES -
Revista Latino
edição, o dossiê
REPRESENTAÇÕES
editoria de dois
professores da Universidade do Estado do Rio de
Eloisa Porto C. A. Braem e Paulo César S. Oliveira
publicamente.
Como apontado na chamada para o dossiê:
apresentado como um tema recorrente em pesquisas de estudiosos das literaturas.
Em virtude dis
so, o dossiê “Representações da Violência na Literatura”objetiva reunir
e divulgar pesquisas acadêmicas sobre diferentes modalidades da violência
refletidas em obras literárias de variadas épocas e nacionalidades, a partir de
diversificados enfoques teóric
A partir da presente edição, mudamos um pouco o
como passamos a indicar as referências do artigo no cabeçalho.
Niterói/RJ, Verão de 2020
Os editores
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Revista Latino
-
Americana de Estudos em Cultura
REPRESENTAÇÕES
D
A VIOLÊNCIA NA LITERATURA
professores da Universidade do Estado do Rio de
Eloisa Porto C. A. Braem e Paulo César S. Oliveira
-
a quem agradecemos
Como apontado na chamada para o dossiê:
"A violência tem se
apresentado como um tema recorrente em pesquisas de estudiosos das literaturas.
so, o dossiê “Representações da Violência na Literatura”objetiva reunir
e divulgar pesquisas acadêmicas sobre diferentes modalidades da violência
refletidas em obras literárias de variadas épocas e nacionalidades, a partir de
diversificados enfoques teóric
o-metodológicos".
A partir da presente edição, mudamos um pouco o
lay-out
como passamos a indicar as referências do artigo no cabeçalho.
Niterói/RJ, Verão de 2020
Americana de Estudos em Cultura
traz, nesta
A VIOLÊNCIA NA LITERATURA
, que tem
professores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro / UERJ:
a quem agradecemos
"A violência tem se
apresentado como um tema recorrente em pesquisas de estudiosos das literaturas.
so, o dossiê “Representações da Violência na Literatura”objetiva reunir
e divulgar pesquisas acadêmicas sobre diferentes modalidades da violência
refletidas em obras literárias de variadas épocas e nacionalidades, a partir de
da revista, assim
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
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Colaboradores da edição
Issue's contributors
Alan Diogo Capelari:
Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL).
Possui graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana
(2016). Atualmente cursa Letras Vernáculas, com conclusão prevista para 2019.
Realiza pesquisas na área de Escri
participou do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, no período
de 2016 a 2017; realizou pesquisa sobre a manifestação de masculinidades na
Literatura Brasileira, através de contos de Marce
2018, tendo sido contemplado com bolsa de incentivo à pesquisa. Desde 2018
pesquisa a formação da paisagem na literatura, com ênfase em Literatura Brasile
mais especificamente na poesia de Manoel de Barros e nos contos
Fagundes Telles, ambas as pesquisas foram contempladas com bolsas
em 2018 e 2019, respectivamente.
https://orcid.org/0000-0002
-
Andreia Alves Monteiro de Castro:
de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Instituto de Letras da UERJ
(2019). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade
Janeiro (2017). Mestra em Literatura Portuguesa pela Un
de Janeiro (2010). Graduada em Letras
Portuguesa -
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Licenciada em
Letras pela Universidade Cândido Mendes (2009). Membro do Polo de Pesquisa d
Relações Luso-
Brasileiras do Real Gabinete Português de Leitura. Membro
associado ao Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa. E-mail
: andreiaacastro@gmail.com
2586-6789
Carolina
Montebelo Barcelos
Teoria do Teatro na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) em
2004. Pós-
graduação lato sensu em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo
na CCE/PUC
Rio entre 2007 e 2
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
Possui graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana
(2016). Atualmente cursa Letras Vernáculas, com conclusão prevista para 2019.
Realiza pesquisas na área de Escri
ta Criativa, desde 2016 até o presente momento;
participou do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, no período
de 2016 a 2017; realizou pesquisa sobre a manifestação de masculinidades na
Literatura Brasileira, através de contos de Marce
lino Freire, no período de 2017 a
2018, tendo sido contemplado com bolsa de incentivo à pesquisa. Desde 2018
pesquisa a formação da paisagem na literatura, com ênfase em Literatura Brasile
mais especificamente na poesia de Manoel de Barros e nos contos
Fagundes Telles, ambas as pesquisas foram contempladas com bolsas
em 2018 e 2019, respectivamente.
E-mail
: alandc@hotmail.com
-
0068-396X
Andreia Alves Monteiro de Castro:
Professora Adjunta de Literatura Portuguesa e
de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Instituto de Letras da UERJ
(2019). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade
do
Estad
Janeiro (2017). Mestra em Literatura Portuguesa pela Un
iversidade Estadual do Rio
de Janeiro (2010). Graduada em Letras
-
Português e Literaturas de Língua
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Licenciada em
Letras pela Universidade Cândido Mendes (2009). Membro do Polo de Pesquisa d
Brasileiras do Real Gabinete Português de Leitura. Membro
associado ao Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade
: andreiaacastro@gmail.com
- ORCID
: http://orcid.org/0000
Montebelo Barcelos
: Graduação em Artes Cênicas com habilitação em
Teoria do Teatro na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) em
graduação lato sensu em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo
Rio entre 2007 e 2
008. Mestre em Letras (Estudos de Literatura
Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
Possui graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana
(2016). Atualmente cursa Letras Vernáculas, com conclusão prevista para 2019.
ta Criativa, desde 2016 até o presente momento;
participou do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, no período
de 2016 a 2017; realizou pesquisa sobre a manifestação de masculinidades na
lino Freire, no período de 2017 a
2018, tendo sido contemplado com bolsa de incentivo à pesquisa. Desde 2018
pesquisa a formação da paisagem na literatura, com ênfase em Literatura Brasile
ira,
mais especificamente na poesia de Manoel de Barros e nos contos
de Lygia
Fagundes Telles, ambas as pesquisas foram contempladas com bolsas
do CNPq,
: alandc@hotmail.com
- ORCID:
Professora Adjunta de Literatura Portuguesa e
de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Instituto de Letras da UERJ
Estad
o do Rio de
iversidade Estadual do Rio
Português e Literaturas de Língua
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Licenciada em
Letras pela Universidade Cândido Mendes (2009). Membro do Polo de Pesquisa d
e
Brasileiras do Real Gabinete Português de Leitura. Membro
associado ao Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade
: http://orcid.org/0000
-0002-
: Graduação em Artes Cênicas com habilitação em
Teoria do Teatro na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) em
graduação lato sensu em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo
008. Mestre em Letras (Estudos de Literatura
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Brasileira), pela PUC
Rio, em 2012 e Doutora em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade, pela PUC
2016 realizou estágio de Doutorado no departamento de Theatre
Performance Studies da Brown University com Bolsa Sanduíche da CAPES. Atua
como professora e pesquisadora de teatro. Áreas de pesquisa: teatro brasileiro,
literatura comparada, teatro colaborativo, teatro contemporâneo e performance.
mail: carol
inambarcelos@hotmail.com
0704
Claudio do Carmo Gonçalves
africanas e afro-
brasileira, bem como atua no Programa de Pós
Letras / PROGEL da Universidade
Doutorado em Estudos Comparados pela Universidade de Lisboa / Portugal, 2011;
Doutor em Ciência da Literatura / Poética, pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro / UFRJ (2001); Mestre em Ciência da Literatura/ Po
Federal do Rio de Janeiro / UFRJ; (1996); Graduação em LETRAS pela UERJ /
UniverCidade ; Graduação em MUSEOLOGIA pela Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro / UNI-
RIO; Graduação em DIREITO pela Faculdade Metodista
Bennett
; Consultor ad hoc Capes. Coordena o Grupo de pesquisa interinstitucional
"Literatura e Políticas" (UEFS/UERJ/ PADOVA
acadêmica e pesquisas com ênfase nas áreas de Teorias da memória; Literatura e
política; Novas subjetivida
des; Representações de cidade; Literatura negra e Afro
brasileira; Estudos autorais das obras ensaísticas e ficcionais dos escritores Nei
Lopes e Luis Bernardo Honwana.
http:/orcid.org/0000-0003-
3359483X
Eloísa Porto Corrêa
Allevato Braem
Portuguesa da UERJ-
FFP, Faculdade de Formação de Professores da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, instituição onde concluiu o Pós
Literatura Comparada em 2014. Atualmente, cursa a segunda graduação
Direito, pela UERJ, no campus Maracanã. Leciona nos Mestrados PROFLETRAS e
PPLIN UERJ e na Graduação em Letras, na UERJ FFP. É líder do Grupo de
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Rio, em 2012 e Doutora em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade, pela PUC
-
Rio, em 2016. Entre agosto de 2015 e fevereiro de
2016 realizou estágio de Doutorado no departamento de Theatre
Performance Studies da Brown University com Bolsa Sanduíche da CAPES. Atua
como professora e pesquisadora de teatro. Áreas de pesquisa: teatro brasileiro,
literatura comparada, teatro colaborativo, teatro contemporâneo e performance.
inambarcelos@hotmail.com
- ORCID
: http://orcid.org/0000
Claudio do Carmo Gonçalves
:
Professor Titular UNEB . Docente de Literaturas
brasileira, bem como atua no Programa de Pós
Letras / PROGEL da Universidade
Estadual de Feira de Santana / UEFS
Doutorado em Estudos Comparados pela Universidade de Lisboa / Portugal, 2011;
Doutor em Ciência da Literatura / Poética, pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro / UFRJ (2001); Mestre em Ciência da Literatura/ Po
ética, pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro / UFRJ; (1996); Graduação em LETRAS pela UERJ /
UniverCidade ; Graduação em MUSEOLOGIA pela Universidade Federal do Estado
RIO; Graduação em DIREITO pela Faculdade Metodista
; Consultor ad hoc Capes. Coordena o Grupo de pesquisa interinstitucional
"Literatura e Políticas" (UEFS/UERJ/ PADOVA
- Itália -
DGP/CNPq). Produção
acadêmica e pesquisas com ênfase nas áreas de Teorias da memória; Literatura e
des; Representações de cidade; Literatura negra e Afro
brasileira; Estudos autorais das obras ensaísticas e ficcionais dos escritores Nei
Lopes e Luis Bernardo Honwana.
E-mail:
claudiodocarmog@gmail.com
3359483X
Allevato Braem
:
Professora Adjunta 40h de Literatura
FFP, Faculdade de Formação de Professores da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, instituição onde concluiu o Pós
Literatura Comparada em 2014. Atualmente, cursa a segunda graduação
Direito, pela UERJ, no campus Maracanã. Leciona nos Mestrados PROFLETRAS e
PPLIN UERJ e na Graduação em Letras, na UERJ FFP. É líder do Grupo de
Rio, em 2012 e Doutora em Literatura, Cultura e
Rio, em 2016. Entre agosto de 2015 e fevereiro de
2016 realizou estágio de Doutorado no departamento de Theatre
Arts and
Performance Studies da Brown University com Bolsa Sanduíche da CAPES. Atua
como professora e pesquisadora de teatro. Áreas de pesquisa: teatro brasileiro,
literatura comparada, teatro colaborativo, teatro contemporâneo e performance.
E-
: http://orcid.org/0000
-0002-2644-
Professor Titular UNEB . Docente de Literaturas
brasileira, bem como atua no Programa de Pós
-Graduação em
Estadual de Feira de Santana / UEFS
. Pós-
Doutorado em Estudos Comparados pela Universidade de Lisboa / Portugal, 2011;
Doutor em Ciência da Literatura / Poética, pela Universidade Federal do Rio de
ética, pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro / UFRJ; (1996); Graduação em LETRAS pela UERJ /
UniverCidade ; Graduação em MUSEOLOGIA pela Universidade Federal do Estado
RIO; Graduação em DIREITO pela Faculdade Metodista
; Consultor ad hoc Capes. Coordena o Grupo de pesquisa interinstitucional
DGP/CNPq). Produção
acadêmica e pesquisas com ênfase nas áreas de Teorias da memória; Literatura e
des; Representações de cidade; Literatura negra e Afro
-
brasileira; Estudos autorais das obras ensaísticas e ficcionais dos escritores Nei
claudiodocarmog@gmail.com
- ORCID:
Professora Adjunta 40h de Literatura
FFP, Faculdade de Formação de Professores da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, instituição onde concluiu o Pós
-Doutorado em
Literatura Comparada em 2014. Atualmente, cursa a segunda graduação
, em
Direito, pela UERJ, no campus Maracanã. Leciona nos Mestrados PROFLETRAS e
PPLIN UERJ e na Graduação em Letras, na UERJ FFP. É líder do Grupo de
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Pesquisa (UERJ/CNPq) Literaturas, Artes Visuais e Formação de Professores.
Orienta monografias, dissertaçõ
IC, ID, EIC, extensão e monitoria. Concluiu o Doutorado em Letras Vernáculas
(Literatura Portuguesa) em 2008, na UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
onde cursou também o Mestrado na mesma área, en
FAPERJ NOTA 10. Possui Especialização em Educação Artística pelo CEN/CECAP
e em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pela UFF/CEDERJ. Atuou no
Governo do Estado do Rio de Janeiro de 2003 até 2014 e ainda atua na Educação
B
ásica na FME, Município de Niterói. Entre 2014 e 2017, foi coordenadora Adjunta
do Programa de Mestrado em Letras PPLIN UERJ. De 2014 a 2015, foi subchefe do
DEL, Departamento de Letras da UERJ FFP. Entre 2008 e 2014, foi coordenadora
do Curso de Graduação
em Letras da USS, Universidade Severino Sombra, onde
atuou como Professora Adjunta em cursos de graduação e pós
grupos de pesquisa e orientou bolsistas de PIBIC e monografias de graduação e
pós-
graduação. É membro do corpo editorial das
(UERJ) e Pensares em Revista (UERJ). Além disso, atualmente, coordena o projeto
de Extensão: Cia de Teatro e Cinema UERJ
LABAC, o Memorial Roberto Silveira e a FME
Niterói. Tem experiência nas áreas de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa
e Comparada, áreas dentro das quais publicou inúmeros artigos.
eloisaporto@gmail.com -
ORCID
Fernanda Mara de
Almeida Azevedo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Professora do curso de Graduação da Universidade de Vassouras, Campus
Maricá.
Trabalhou como professor assistente
ano de 2007 até 2012; atua como professor I da Escola municipal Leda Vargas e
professor I -
Colégio Estadual Dr. João Gomes de Mattos Sobrinho. Tem experiência
na área de Letras e Pedagogia, com ênfase em Literatura B
Literatura, Língua Portuguesa, Produção textual, Metodologia da Língua Portuguesa,
Língua Latina, História da Língua Portuguesa e TCC
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Pesquisa (UERJ/CNPq) Literaturas, Artes Visuais e Formação de Professores.
Orienta monografias, dissertaçõ
es de mestrado e trabalhos de bolsistas de PIBIC,
IC, ID, EIC, extensão e monitoria. Concluiu o Doutorado em Letras Vernáculas
(Literatura Portuguesa) em 2008, na UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
onde cursou também o Mestrado na mesma área, en
tre 2003 e 2005, com bolsa da
FAPERJ NOTA 10. Possui Especialização em Educação Artística pelo CEN/CECAP
e em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pela UFF/CEDERJ. Atuou no
Governo do Estado do Rio de Janeiro de 2003 até 2014 e ainda atua na Educação
ásica na FME, Município de Niterói. Entre 2014 e 2017, foi coordenadora Adjunta
do Programa de Mestrado em Letras PPLIN UERJ. De 2014 a 2015, foi subchefe do
DEL, Departamento de Letras da UERJ FFP. Entre 2008 e 2014, foi coordenadora
em Letras da USS, Universidade Severino Sombra, onde
atuou como Professora Adjunta em cursos de graduação e pós
-
graduação; liderou
grupos de pesquisa e orientou bolsistas de PIBIC e monografias de graduação e
graduação. É membro do corpo editorial das
revistas Seminal (UERJ), Soletras
(UERJ) e Pensares em Revista (UERJ). Além disso, atualmente, coordena o projeto
de Extensão: Cia de Teatro e Cinema UERJ
-
FFP em Cena, em parceria com a UFF
LABAC, o Memorial Roberto Silveira e a FME
-
Fundação Municipal d
Niterói. Tem experiência nas áreas de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa
e Comparada, áreas dentro das quais publicou inúmeros artigos.
ORCID
: https://orcid.org/0000-0001-5356
-
Almeida Azevedo
:
Doutora em Literatura Comparada
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Mestre em Literatura Bra
(UERJ), Professora do curso de Graduação da Universidade de Vassouras, Campus
Trabalhou como professor assistente
II da Universidade Severino Sombra do
ano de 2007 até 2012; atua como professor I da Escola municipal Leda Vargas e
Colégio Estadual Dr. João Gomes de Mattos Sobrinho. Tem experiência
na área de Letras e Pedagogia, com ênfase em Literatura B
rasileira, Teoria da
Literatura, Língua Portuguesa, Produção textual, Metodologia da Língua Portuguesa,
Língua Latina, História da Língua Portuguesa e TCC
-
orientação de trabalhos
Pesquisa (UERJ/CNPq) Literaturas, Artes Visuais e Formação de Professores.
es de mestrado e trabalhos de bolsistas de PIBIC,
IC, ID, EIC, extensão e monitoria. Concluiu o Doutorado em Letras Vernáculas
(Literatura Portuguesa) em 2008, na UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
tre 2003 e 2005, com bolsa da
FAPERJ NOTA 10. Possui Especialização em Educação Artística pelo CEN/CECAP
e em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pela UFF/CEDERJ. Atuou no
Governo do Estado do Rio de Janeiro de 2003 até 2014 e ainda atua na Educação
ásica na FME, Município de Niterói. Entre 2014 e 2017, foi coordenadora Adjunta
do Programa de Mestrado em Letras PPLIN UERJ. De 2014 a 2015, foi subchefe do
DEL, Departamento de Letras da UERJ FFP. Entre 2008 e 2014, foi coordenadora
em Letras da USS, Universidade Severino Sombra, onde
graduação; liderou
grupos de pesquisa e orientou bolsistas de PIBIC e monografias de graduação e
revistas Seminal (UERJ), Soletras
(UERJ) e Pensares em Revista (UERJ). Além disso, atualmente, coordena o projeto
FFP em Cena, em parceria com a UFF
-
Fundação Municipal d
e Educação de
Niterói. Tem experiência nas áreas de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa
e Comparada, áreas dentro das quais publicou inúmeros artigos.
E-mail:
-
3059
Doutora em Literatura Comparada
pela
(UERJ), Mestre em Literatura Bra
sileira
(UERJ), Professora do curso de Graduação da Universidade de Vassouras, Campus
II da Universidade Severino Sombra do
ano de 2007 até 2012; atua como professor I da Escola municipal Leda Vargas e
Colégio Estadual Dr. João Gomes de Mattos Sobrinho. Tem experiência
rasileira, Teoria da
Literatura, Língua Portuguesa, Produção textual, Metodologia da Língua Portuguesa,
orientação de trabalhos
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
acadêmicos e participação em bancas como orientadora ou examinadora.
nandaspar@yahoo.com.br
Heleno Álvares Bezerra Júnior
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Inglesa (UERJ), Áreas de Pesquisa: Literatura e Multiculturalismos, Literatura e
Memória, Literatura e História Cultural, Música e Literatura, Pós
Construções de Identidades Contemporâneas, Feminismos
Queer Professor do Mestrado ProfEPT, IFRJ
Professor do Língua Inglesa, Educação para Diversidade e Educação e Direitos
Humanos no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
heleno.junior@ifrj.edu.br -
ORCID
Isabela Cristina
Rodrigues
Universidade Federal
Fluminense
Graduação em Letras e
Linguística
(UERJ-PPLIN), na Linha
Estudos Literários. Em
âmbito
ascendidas entre os
séculos
brasileiros do
Regionalismo
Experiência em pré-
vestibulares
para auxílio aos
discentes
icrazevedo@gmail.com
João Pedro Lima Bellas
: D
Federal Fluminense. Possui mestrado em Literatura Brasileira e Teoria da Literatura,
e graduação em Filosofia pela mesma universidade. É membro do grupo de
pesquisa Estudos do Gótico, coordenado pelo Prof. Dr. Júl
desenvolve, com apoio da CAPES e sob orientação do Prof. Dr. And Cardoso,
uma pesquisa sobre
a crise do sublime nos séculos XX e XXI
questões relativas à Estética e Filosofia da Arte, à Filosofia da Literatura e à
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
acadêmicos e participação em bancas como orientadora ou examinadora.
Heleno Álvares Bezerra Júnior
:
Doutor em Literatura Comparada
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Mestre em Literaturas de Língua
Inglesa (UERJ), Áreas de Pesquisa: Literatura e Multiculturalismos, Literatura e
Memória, Literatura e História Cultural, Música e Literatura, Pós
Construções de Identidades Contemporâneas, Feminismos
, Negritudes e Estudos
Queer Professor do Mestrado ProfEPT, IFRJ
(Instituto Federal do Rio de Janeiro).
Professor do Língua Inglesa, Educação para Diversidade e Educação e Direitos
Humanos no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
ORCID
: https://orcid.org/0000-0003-
0275
Rodrigues
Azevedo: Graduada em
Letras
Fluminense
(UFF). Mestranda do
Programa
Linguística
da Universidade do Estado
do
de Pesquisa Literatura, Teoria e
História,
âmbito
de pesquisa, interesse pelas teorias
de
séculos
XIX e XX, para propor aplicação
nos
Regionalismo
de 30, em especial à narrativa de
Graciliano
vestibulares
do setor privado e público e em
setor
discentes
em língua portuguesa, literatura e
: D
outorando
em Literatura Comparada pela Universidade
Federal Fluminense. Possui mestrado em Literatura Brasileira e Teoria da Literatura,
e graduação em Filosofia pela mesma universidade. É membro do grupo de
pesquisa Estudos do Gótico, coordenado pelo Prof. Dr. Júl
io França. Atualmente,
desenvolve, com apoio da CAPES e sob orientação do Prof. Dr. And Cardoso,
a crise do sublime nos séculos XX e XXI
.
questões relativas à Estética e Filosofia da Arte, à Filosofia da Literatura e à
acadêmicos e participação em bancas como orientadora ou examinadora.
E-mail:
Doutor em Literatura Comparada
pela
(UERJ), Mestre em Literaturas de Língua
Inglesa (UERJ), Áreas de Pesquisa: Literatura e Multiculturalismos, Literatura e
Memória, Literatura e História Cultural, Música e Literatura, Pós
-Colonialismos,
, Negritudes e Estudos
(Instituto Federal do Rio de Janeiro).
Professor do Língua Inglesa, Educação para Diversidade e Educação e Direitos
Humanos no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
E-mail:
0275
-1994
Letras
-Lietaruras pela
Programa
de s-
do
Rio de Janeiro
História,
da área de
de
estudo cultural
nos
textos literários
Graciliano
Ramos.
setor
de monitoria
redação. E-mail:
em Literatura Comparada pela Universidade
Federal Fluminense. Possui mestrado em Literatura Brasileira e Teoria da Literatura,
e graduação em Filosofia pela mesma universidade. É membro do grupo de
io França. Atualmente,
desenvolve, com apoio da CAPES e sob orientação do Prof. Dr. And Cardoso,
Interessa-se por
questões relativas à Estética e Filosofia da Arte, à Filosofia da Literatura e à
Teoria
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Literária E-mail:
joaolbellas@gmail.com
6661
Jonathan Kaefer Gomes da Costa
PPGCI/UFMG
, Universidade Federal de Minas Gerais.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, CEFET/MG,
monografia "
Fronteiras Impalpáveis: a desterritorialização no Poema Sujo, de
Ferreira Gullar
" desenvolvida sob orientação de
Conselho Nacional de De
senvolvimento Científico e Tecnológico, CNP
grupo de pesquisa: TECNOPOÉTICAS: Grupo de Pesquisa em Poéticas
Telemáticas, Cibernéticas e Impressas, Discurso, Cultura e Poesia do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Possui t
literatura e edição. Ganhou o XVI Concurso Nacional PoeArt de literatura 2016
(PoeArt Editora). E
-
https://orcid.org/0000-0002
-
Júlia Morena Silva da Costa
Federal de Minas Gerais (2006), mestrado em Letras pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2009) e Doutorado pelo programa de Literatura e Cultura da UFBA
(20
15). Realizou estágio doutoral na Universidad de Chile, no Centro de Estudios
Culturales de Latinoamericanos
Universidade Federal da Bahia, atuando na graduação em Letras e na pós
graduação no programa de Literat
equipe de Língua Estrangeira Moderna (Inglês e Espanhol) do Programa Nacional
do Livro Didático 2017 (PNLD2017). Pesquisa principalmente os seguintes temas:
Literaturas hispânicas, estudos latino
literatura e cinema, espanhol como língua estrangeira e ensino.
juliamorenacosta@gmail.com
Júlio França
(Júlio César França Pereira):
Instituto
de Letras e do Programa de Pós
Estado do Rio de Janeiro. Tem doutorado em Literatura Comparada pela
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
joaolbellas@gmail.com
- ORCID:
https://orcid.org/0000
Jonathan Kaefer Gomes da Costa
: M
estrando em Ciências da Informação do
, Universidade Federal de Minas Gerais.
Graduado em Letras.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, CEFET/MG,
Fronteiras Impalpáveis: a desterritorialização no Poema Sujo, de
" desenvolvida sob orientação de
Claudia Cristina Maia
senvolvimento Científico e Tecnológico, CNP
grupo de pesquisa: TECNOPOÉTICAS: Grupo de Pesquisa em Poéticas
Telemáticas, Cibernéticas e Impressas, Discurso, Cultura e Poesia do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Possui t
rabalhos nos campos de
literatura e edição. Ganhou o XVI Concurso Nacional PoeArt de literatura 2016
-
mail:
jonathankaefer@yahoo.com.br
-
6550-0175
Júlia Morena Silva da Costa
: Possui graduação em Letras pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2006), mestrado em Letras pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2009) e Doutorado pelo programa de Literatura e Cultura da UFBA
15). Realizou estágio doutoral na Universidad de Chile, no Centro de Estudios
Culturales de Latinoamericanos
-
CECLA. Atualmente é Professora Adjunto da
Universidade Federal da Bahia, atuando na graduação em Letras e na pós
graduação no programa de Literat
ura e Cultura (UFBA). Coordenou em 2015
equipe de Língua Estrangeira Moderna (Inglês e Espanhol) do Programa Nacional
do Livro Didático 2017 (PNLD2017). Pesquisa principalmente os seguintes temas:
Literaturas hispânicas, estudos latino
-americanos, l
iteratura e outras artes, teatro,
literatura e cinema, espanhol como língua estrangeira e ensino.
juliamorenacosta@gmail.com
- ORCID: https://orcid.org/0000-
0002
(Júlio César França Pereira):
P
rofessor de Teoria da Literatura do
de Letras e do Programa de Pós
-G
raduação em Letras da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Tem doutorado em Literatura Comparada pela
https://orcid.org/0000
-0002-2982-
estrando em Ciências da Informação do
Graduado em Letras.
pelo
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, CEFET/MG,
com a
Fronteiras Impalpáveis: a desterritorialização no Poema Sujo, de
Claudia Cristina Maia
, com bolsa do
senvolvimento Científico e Tecnológico, CNP
q. Participa do
grupo de pesquisa: TECNOPOÉTICAS: Grupo de Pesquisa em Poéticas
Telemáticas, Cibernéticas e Impressas, Discurso, Cultura e Poesia do Centro
rabalhos nos campos de
literatura e edição. Ganhou o XVI Concurso Nacional PoeArt de literatura 2016
jonathankaefer@yahoo.com.br
- ORCID:
: Possui graduação em Letras pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2006), mestrado em Letras pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2009) e Doutorado pelo programa de Literatura e Cultura da UFBA
15). Realizou estágio doutoral na Universidad de Chile, no Centro de Estudios
CECLA. Atualmente é Professora Adjunto da
Universidade Federal da Bahia, atuando na graduação em Letras e na pós
-
ura e Cultura (UFBA). Coordenou em 2015
-2016 a
equipe de Língua Estrangeira Moderna (Inglês e Espanhol) do Programa Nacional
do Livro Didático 2017 (PNLD2017). Pesquisa principalmente os seguintes temas:
iteratura e outras artes, teatro,
literatura e cinema, espanhol como língua estrangeira e ensino.
E-mail:
0002
-2272-9893
rofessor de Teoria da Literatura do
raduação em Letras da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Tem doutorado em Literatura Comparada pela
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Universidade Federal Fluminense (2006), com pós
(2014-
2015). Bolsista do programa Prociência (UERJ/FAPERJ), seus últimos livros
publicados são
Poéticas do Mal: a literatura do medo no Brasil
Perversas: narrativas brasileiras esquecidas
Seminais (2
018). É coordenador do grupo de pesquisa Estudos do Gótico (CNPq),
vice coordenador do GT Vertentes do Insólito ficcional (ANPOLL) e editor do
periódico acadêmico
Abusões
afins. Website
:https://juliofranca.academia.edu
ORCID
: https:// orcid.org/0000
Maria Cristina Batalha
: Professora titular do Instituto de Letras da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, onde atua na Graduação e Pós
de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2003) e Pós
Doutorado pela Universidade Paris III
Produ
tividade em Pesquisa do CNPq e do programa Prociência da UERJ/FAPERJ
desde 2003. Atualmente desenvolve o projeto "Cânones: literatura maior, literatura
menor", certificado pela UERJ, onde pesquisa a literatura fantástica, o romantismo e
ultra-romantismo no
s contextos brasileiro, português e francês. Sua pesquisa
contempla também a manifestação do insólito nas literaturas lusófonas e
francófonas. É membro do GT da ANPOLL "Vertentes do insólito ficcional", do Grupo
de Pesquisa do CNPq "Nós do insólito: verten
UERJ, e do Grupo de Pesquisa "Vertentes do fantástico na literatura", da UNESP.
Em ambos os grupos, a pesquisa está vinculada à Linha de pesquisa: Literatura:
teoria, crítica e história, cujo objetivo é a análise d
estudos literários, tendo em vista suas diversas configurações históricas,
implementando o estudo das dimensões históricas da literatura, considerada em
seus aspectos textuais, sociais e institucionais. É membro associado do
(Centre de Recherche sur les Pays Lusophones), vinculado à Universidade de Paris
III-
Sorbonne Nouvelle. Tem livros, capítulos de livros, artigos e ensaios publicados
em periódicos nacionais e internacionais.
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Universidade Federal Fluminense (2006), com pós
-
doutorado na Brown Univ
2015). Bolsista do programa Prociência (UERJ/FAPERJ), seus últimos livros
Poéticas do Mal: a literatura do medo no Brasil
Perversas: narrativas brasileiras esquecidas
(2017), e
As Artes do Mal: Textos
018). É coordenador do grupo de pesquisa Estudos do Gótico (CNPq),
vice coordenador do GT Vertentes do Insólito ficcional (ANPOLL) e editor do
Abusões
, dedicado exclusivamente à literatura fantástica e
:https://juliofranca.academia.edu
- E-mail:
julfranca@gmail.com
: https:// orcid.org/0000
-0002-6293-8235
: Professora titular do Instituto de Letras da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, onde atua na Graduação e Pós
-Gra
duação. Tem o título
de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC
-
RJ (1992), Doutorado em
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2003) e Pós
Doutorado pela Universidade Paris III
- Sorbonne-
Nouvelle (2007). è Bolsista de
tividade em Pesquisa do CNPq e do programa Prociência da UERJ/FAPERJ
desde 2003. Atualmente desenvolve o projeto "Cânones: literatura maior, literatura
menor", certificado pela UERJ, onde pesquisa a literatura fantástica, o romantismo e
s contextos brasileiro, português e francês. Sua pesquisa
contempla também a manifestação do insólito nas literaturas lusófonas e
francófonas. É membro do GT da ANPOLL "Vertentes do insólito ficcional", do Grupo
de Pesquisa do CNPq "Nós do insólito: verten
tes da ficção,da teoria e da crítica", da
UERJ, e do Grupo de Pesquisa "Vertentes do fantástico na literatura", da UNESP.
Em ambos os grupos, a pesquisa está vinculada à Linha de pesquisa: Literatura:
teoria, crítica e história, cujo objetivo é a análise d
os fundamentos conceituais dos
estudos literários, tendo em vista suas diversas configurações históricas,
implementando o estudo das dimensões históricas da literatura, considerada em
seus aspectos textuais, sociais e institucionais. É membro associado do
(Centre de Recherche sur les Pays Lusophones), vinculado à Universidade de Paris
Sorbonne Nouvelle. Tem livros, capítulos de livros, artigos e ensaios publicados
em periódicos nacionais e internacionais.
E-mail:
cbatalh@gmail.com
doutorado na Brown Univ
ersity
2015). Bolsista do programa Prociência (UERJ/FAPERJ), seus últimos livros
Poéticas do Mal: a literatura do medo no Brasil
(2017), Páginas
As Artes do Mal: Textos
018). É coordenador do grupo de pesquisa Estudos do Gótico (CNPq),
vice coordenador do GT Vertentes do Insólito ficcional (ANPOLL) e editor do
, dedicado exclusivamente à literatura fantástica e
julfranca@gmail.com
-
: Professora titular do Instituto de Letras da Universidade do
duação. Tem o título
RJ (1992), Doutorado em
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2003) e Pós
-
Nouvelle (2007). è Bolsista de
tividade em Pesquisa do CNPq e do programa Prociência da UERJ/FAPERJ
desde 2003. Atualmente desenvolve o projeto "Cânones: literatura maior, literatura
menor", certificado pela UERJ, onde pesquisa a literatura fantástica, o romantismo e
s contextos brasileiro, português e francês. Sua pesquisa
contempla também a manifestação do insólito nas literaturas lusófonas e
francófonas. É membro do GT da ANPOLL "Vertentes do insólito ficcional", do Grupo
tes da ficção,da teoria e da crítica", da
UERJ, e do Grupo de Pesquisa "Vertentes do fantástico na literatura", da UNESP.
Em ambos os grupos, a pesquisa está vinculada à Linha de pesquisa: Literatura:
os fundamentos conceituais dos
estudos literários, tendo em vista suas diversas configurações históricas,
implementando o estudo das dimensões históricas da literatura, considerada em
seus aspectos textuais, sociais e institucionais. É membro associado do
CREPAL
(Centre de Recherche sur les Pays Lusophones), vinculado à Universidade de Paris
Sorbonne Nouvelle. Tem livros, capítulos de livros, artigos e ensaios publicados
cbatalh@gmail.com
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Norma Sueli de Araújo
Menezes
mestranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia.
norma_815@hotmail.com
-
Paulo César Silva de Oliveira
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), onde também concluiu o mestrado
(1993) e o doutorado (2001) em Poética (Ciência da Literatura). É pós
na Universidade Federal Fluminense, sob a
Helena. Foi professor titular da Universidade Iguaçu (2003
2010 a 2014. Foi professor Substituto na Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (abril-
agosto de 2009). Atualmente é professor a
Letras -
Teoria Literária da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, desde 02 de
agosto de 2010, onde coordenou, no biênio 2015
Estudos Literários da FFP/UERJ (coordenador
ainda, desde 2011 como professor permanente deste programa. É professor
permanente do Mestrado Profissional em Letras da FFP/UERJ desde 2014.
Coordena o Mestrado em Estudos Literários do Programa de Pós
Letras e Linguística da FFP/UERJ (PPLIN)
coordenador adjunto do PPLIN, para o biênio 2018
de Letras, com ênfase em Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literaturas de
Língua Inglesa, atuando principalmente nos seguintes te
literárias; correntes críticas contemporâneas; literatura brasileira contemporânea;
literatura americana e inglesa; Estudos Culturais; Estudos Pós
entre história, ficção e literatura; e entre literatura e sociedade
de Pesquisa CNPq "Nação e Narração", liderado pela prof. doutora Lucia Helena
(UFF) e líder do Grupo de Pesquisa CNPq ?Poéticas do contemporâneo: estudos de
sociedade, história e literatura" (UESC/ UERJ/ Uniabeu), com o professor do
Cláudio do Carmo Gonçalves (Universidade Estadual da Bahia). Pesquisador
integrante do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da
Uniabeu, fomentado pela FAPERJ. Autor de "Poéticas da distensão", (Manaus:
Edições Muiraquitã; Pr
efeitura de Manaus, 2010
Ensaio 2010); "Leituras na Contemporaneidade", em parceria com a doutora Maria
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Menezes
:
Licenciada e Bacharel em Letras/Espanhol e
mestranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia.
-
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7320
Paulo César Silva de Oliveira
:
Possui graduação em Letras (Português
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), onde também concluiu o mestrado
(1993) e o doutorado (2001) em Poética (Ciência da Literatura). É pós
na Universidade Federal Fluminense, sob a
supervisão da Professora Doutora Lucia
Helena. Foi professor titular da Universidade Iguaçu (2003
-
2010), e da Uniabeu, de
2010 a 2014. Foi professor Substituto na Universidade Federal Rural do Rio de
agosto de 2009). Atualmente é professor a
djunto da graduação em
Teoria Literária da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, desde 02 de
agosto de 2010, onde coordenou, no biênio 2015
-
2016, a Especialização em
Estudos Literários da FFP/UERJ (coordenador
-
adjunto, de 2011 a 2014), atuando
ainda, desde 2011 como professor permanente deste programa. É professor
permanente do Mestrado Profissional em Letras da FFP/UERJ desde 2014.
Coordena o Mestrado em Estudos Literários do Programa de Pós
Letras e Linguística da FFP/UERJ (PPLIN)
, no biênio 2016-
2017 e atualmente é
coordenador adjunto do PPLIN, para o biênio 2018
-
2020. Possui experiência na área
de Letras, com ênfase em Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literaturas de
Língua Inglesa, atuando principalmente nos seguintes te
mas: teoria e crítica
literárias; correntes críticas contemporâneas; literatura brasileira contemporânea;
literatura americana e inglesa; Estudos Culturais; Estudos Pós
-
coloniais; relações
entre história, ficção e literatura; e entre literatura e sociedade
. É vice
de Pesquisa CNPq "Nação e Narração", liderado pela prof. doutora Lucia Helena
(UFF) e líder do Grupo de Pesquisa CNPq ?Poéticas do contemporâneo: estudos de
sociedade, história e literatura" (UESC/ UERJ/ Uniabeu), com o professor do
Cláudio do Carmo Gonçalves (Universidade Estadual da Bahia). Pesquisador
integrante do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da
Uniabeu, fomentado pela FAPERJ. Autor de "Poéticas da distensão", (Manaus:
efeitura de Manaus, 2010
-
Prêmio Luís Ruas de Melhor
Ensaio 2010); "Leituras na Contemporaneidade", em parceria com a doutora Maria
Licenciada e Bacharel em Letras/Espanhol e
mestranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia.
E-mail:
7320
-8935
Possui graduação em Letras (Português
-Inglês) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), onde também concluiu o mestrado
(1993) e o doutorado (2001) em Poética (Ciência da Literatura). É pós
-doutor (2016)
supervisão da Professora Doutora Lucia
2010), e da Uniabeu, de
2010 a 2014. Foi professor Substituto na Universidade Federal Rural do Rio de
djunto da graduação em
Teoria Literária da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, desde 02 de
2016, a Especialização em
adjunto, de 2011 a 2014), atuando
ainda, desde 2011 como professor permanente deste programa. É professor
permanente do Mestrado Profissional em Letras da FFP/UERJ desde 2014.
Coordena o Mestrado em Estudos Literários do Programa de Pós
-Graduação em
2017 e atualmente é
2020. Possui experiência na área
de Letras, com ênfase em Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literaturas de
mas: teoria e crítica
literárias; correntes críticas contemporâneas; literatura brasileira contemporânea;
coloniais; relações
. É vice
-líder do Grupo
de Pesquisa CNPq "Nação e Narração", liderado pela prof. doutora Lucia Helena
(UFF) e líder do Grupo de Pesquisa CNPq ?Poéticas do contemporâneo: estudos de
sociedade, história e literatura" (UESC/ UERJ/ Uniabeu), com o professor do
utor
Cláudio do Carmo Gonçalves (Universidade Estadual da Bahia). Pesquisador
integrante do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da
Uniabeu, fomentado pela FAPERJ. Autor de "Poéticas da distensão", (Manaus:
Prêmio Luís Ruas de Melhor
Ensaio 2010); "Leituras na Contemporaneidade", em parceria com a doutora Maria
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
Cristina Cardoso Ribas (Belém: LiteraCidade, 2013). É autor/organizador (em
parceria com da Dra Shirley Carreira) de Memóri
Branco, 2012); Diásporas e deslocamentos: travessias críticas (Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas; FAPERJ, 2014) e Poéticas do contemporâneo (Jundiaí,
SP: Paco Editorial, 2014). Autor/organizador, com a Dra Lucia Helena (U
"Escritores, críticos e leitores fora do lugar" (Rio de Janeiro: Caetés, 2016). Também
com Lucia Helena (UFF) é autor do livro Uma literatura inquieta (Rio de Janeiro:
Caetés, 2017) Publicou artigos em livros e revistas nacionais e internacio
bolsista Pró-
Cientista da UERJ/FAPERJ, desde agosto de 2014. Bolsista de
Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNPq, desde março de 2019.
https://orcid.org/0000-0002
-
Pedro Sasse
(Pedro Puro Sasse da Silva)
Universidade Federal Fluminense na área de Literatura, História e Cultura,
coordenador do Grupo de Estudos "Escritos Suspeitos" (UFF) e membro do g
de pesquisas "Estudos do Gótico" (CNPq). É professor convidado do Programa de
Pós-
Graduação em Estudos de Literatura da UFF. Trabalha a temática da violência
e do medo na literatura gótica, criminal e distópica.
pedro_sasse@hotmail.com
Rodrigo de Freitas Faquer
guatemalteca pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, tendo como tema central
a estética da violência na obra de Rodrigo Rey Rosa. Participou do PDSE ofertado
pela CAPES na Universidad Nacional de Costa
Universidade Presbiteriana Mackenzie com ênfase nas literaturas brasileira e
argentina, tendo como temas principais os estudos em Mito, Reatualização tica,
Dialogismo e Hipertextualidade (2013). Graduado em Licenciatura
Habilitação Português/Espanhol pela mesma instituição em 2008. Atualmente é
professor EBTT do IFSP/ Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
São Paulo -
Campus Itaquaquecetuba. Participou da elaboração do Dicionário Digital
do Insólito Ficcional (e-
DDIF), coordenado pelo prof. Dr. Flavio García, financiado
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
Cristina Cardoso Ribas (Belém: LiteraCidade, 2013). É autor/organizador (em
parceria com da Dra Shirley Carreira) de Memóri
a e Identidade (Edições Galo
Branco, 2012); Diásporas e deslocamentos: travessias críticas (Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas; FAPERJ, 2014) e Poéticas do contemporâneo (Jundiaí,
SP: Paco Editorial, 2014). Autor/organizador, com a Dra Lucia Helena (U
"Escritores, críticos e leitores fora do lugar" (Rio de Janeiro: Caetés, 2016). Também
com Lucia Helena (UFF) é autor do livro Uma literatura inquieta (Rio de Janeiro:
Caetés, 2017) Publicou artigos em livros e revistas nacionais e internacio
Cientista da UERJ/FAPERJ, desde agosto de 2014. Bolsista de
Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNPq, desde março de 2019.
E-mail
: paulo.centrorio@uol.com.br
-
3710-4722
(Pedro Puro Sasse da Silva)
: D
outor em Estudos de Literatura pela
Universidade Federal Fluminense na área de Literatura, História e Cultura,
coordenador do Grupo de Estudos "Escritos Suspeitos" (UFF) e membro do g
de pesquisas "Estudos do Gótico" (CNPq). É professor convidado do Programa de
Graduação em Estudos de Literatura da UFF. Trabalha a temática da violência
e do medo na literatura gótica, criminal e distópica.
pedro_sasse@hotmail.com
- ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7441
Rodrigo de Freitas Faquer
i
: Doutor em Letras (2018) com ênfase em literatura
guatemalteca pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, tendo como tema central
a estética da violência na obra de Rodrigo Rey Rosa. Participou do PDSE ofertado
pela CAPES na Universidad Nacional de Costa
Rica. Mestre em Letras também pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie com ênfase nas literaturas brasileira e
argentina, tendo como temas principais os estudos em Mito, Reatualização tica,
Dialogismo e Hipertextualidade (2013). Graduado em Licenciatura
Habilitação Português/Espanhol pela mesma instituição em 2008. Atualmente é
professor EBTT do IFSP/ Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Campus Itaquaquecetuba. Participou da elaboração do Dicionário Digital
DDIF), coordenado pelo prof. Dr. Flavio García, financiado
Cristina Cardoso Ribas (Belém: LiteraCidade, 2013). É autor/organizador (em
a e Identidade (Edições Galo
Branco, 2012); Diásporas e deslocamentos: travessias críticas (Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas; FAPERJ, 2014) e Poéticas do contemporâneo (Jundiaí,
SP: Paco Editorial, 2014). Autor/organizador, com a Dra Lucia Helena (U
FF), do livro
"Escritores, críticos e leitores fora do lugar" (Rio de Janeiro: Caetés, 2016). Também
com Lucia Helena (UFF) é autor do livro Uma literatura inquieta (Rio de Janeiro:
Caetés, 2017) Publicou artigos em livros e revistas nacionais e internacio
nais. É
Cientista da UERJ/FAPERJ, desde agosto de 2014. Bolsista de
Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
-
: paulo.centrorio@uol.com.br
- ORCID:
outor em Estudos de Literatura pela
Universidade Federal Fluminense na área de Literatura, História e Cultura,
coordenador do Grupo de Estudos "Escritos Suspeitos" (UFF) e membro do g
rupo
de pesquisas "Estudos do Gótico" (CNPq). É professor convidado do Programa de
Graduação em Estudos de Literatura da UFF. Trabalha a temática da violência
e do medo na literatura gótica, criminal e distópica.
E-mail:
7441
-7122
: Doutor em Letras (2018) com ênfase em literatura
guatemalteca pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, tendo como tema central
a estética da violência na obra de Rodrigo Rey Rosa. Participou do PDSE ofertado
Rica. Mestre em Letras também pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie com ênfase nas literaturas brasileira e
argentina, tendo como temas principais os estudos em Mito, Reatualização tica,
Dialogismo e Hipertextualidade (2013). Graduado em Licenciatura
em Letras
Habilitação Português/Espanhol pela mesma instituição em 2008. Atualmente é
professor EBTT do IFSP/ Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Campus Itaquaquecetuba. Participou da elaboração do Dicionário Digital
DDIF), coordenado pelo prof. Dr. Flavio García, financiado
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
pela UERJ. Participa, desde 2014, do projeto de pesquisa “Encontros Interculturais
na EaD: Narrativas de Vidas dos Diferentes Brasis”, coordenado pela Profª. Drª.
Cielo Griselda F
estino e financiado pela CAPES. Possui experiência em estudos da
área de Letras, com ênfase em literaturas brasileira e hispano
como em Estudos Culturais.
https://orcid.org/0000-0002
-
Sa
ron do Amaral Gomes
Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ-
FFP). Atuou como bolsista do projeto de Estágio Interno
Complementar (EIC) intitulado
entre 2017 e 2018. Atualmente, contribui com projeto de pesquisa "O Direito na
Literatura e no Cinema" como bolsista de Iniciação Científica, através do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
colaborador, desde 2016, do projeto de incentivo à produção e apreciação artística
"Cesta Poética", no Colégio Estadual Doutor Adino Xavier
saron.do.valle@gmail.com
Silvio Cesar dos Santos Alves
Literatura Comparada (2013) e Mestrado em Literatura Portuguesa (2008), pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); e Licenciatura Plena em Letras
Português/Literatu
ra (2003), pela Universidade Iguaçu (UNIG). Desde 2015, é
Professor Adjunto de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Londrina
(UEL). De 2010 a 2011, foi Professor Auxiliar de Literatura Portuguesa e Teoria
Literária na Faculdade de Formação de
Graduação, tem experiência em Literatura Portuguesa, das origens à
contemporaneidade; e em Teoria Literária, Teoria da Literatura ou Teoria do Texto
Literário (com ênfase nos estudos sobre os gêneros literários). No
Graduação, tem experiência em Literatura Portuguesa Comparada, com ênfase nos
autores Antero de Quental, Eça de Queirós, Gomes Leal, Guilherme de Azevedo,
Guerra Junqueiro e Cesário Verde, em suas relações com a radical crise dos valores
tra
dicionais resultante dos desdobramentos do "Niilismo Europeu" na segunda
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
pela UERJ. Participa, desde 2014, do projeto de pesquisa “Encontros Interculturais
na EaD: Narrativas de Vidas dos Diferentes Brasis”, coordenado pela Profª. Drª.
estino e financiado pela CAPES. Possui experiência em estudos da
área de Letras, com ênfase em literaturas brasileira e hispano
-
como em Estudos Culturais.
E-mail
: rodrigofaqueri@hotmail.com
-
9292-3536
ron do Amaral Gomes
: Graduado em Letras (Português
-
Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de
FFP). Atuou como bolsista do projeto de Estágio Interno
Complementar (EIC) intitulado
"Cenas
finisseculares: dossiê, curso e recursos
entre 2017 e 2018. Atualmente, contribui com projeto de pesquisa "O Direito na
Literatura e no Cinema" como bolsista de Iniciação Científica, através do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
- P
IBIC. Poeta, compositor e
colaborador, desde 2016, do projeto de incentivo à produção e apreciação artística
"Cesta Poética", no Colégio Estadual Doutor Adino Xavier
-
CEDAX.
- ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
5710
Silvio Cesar dos Santos Alves
: Pós-Doutor em Letras (2017),
com
Literatura Comparada (2013) e Mestrado em Literatura Portuguesa (2008), pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); e Licenciatura Plena em Letras
ra (2003), pela Universidade Iguaçu (UNIG). Desde 2015, é
Professor Adjunto de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Londrina
(UEL). De 2010 a 2011, foi Professor Auxiliar de Literatura Portuguesa e Teoria
Literária na Faculdade de Formação de
Professores (FFP), da UERJ. No Ensino de
Graduação, tem experiência em Literatura Portuguesa, das origens à
contemporaneidade; e em Teoria Literária, Teoria da Literatura ou Teoria do Texto
Literário (com ênfase nos estudos sobre os gêneros literários). No
Graduação, tem experiência em Literatura Portuguesa Comparada, com ênfase nos
autores Antero de Quental, Eça de Queirós, Gomes Leal, Guilherme de Azevedo,
Guerra Junqueiro e Cesário Verde, em suas relações com a radical crise dos valores
dicionais resultante dos desdobramentos do "Niilismo Europeu" na segunda
pela UERJ. Participa, desde 2014, do projeto de pesquisa “Encontros Interculturais
na EaD: Narrativas de Vidas dos Diferentes Brasis”, coordenado pela Profª. Drª.
estino e financiado pela CAPES. Possui experiência em estudos da
-
americana assim
: rodrigofaqueri@hotmail.com
- ORCID:
-
Literatura) pela
Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de
FFP). Atuou como bolsista do projeto de Estágio Interno
finisseculares: dossiê, curso e recursos
",
entre 2017 e 2018. Atualmente, contribui com projeto de pesquisa "O Direito na
Literatura e no Cinema" como bolsista de Iniciação Científica, através do Programa
IBIC. Poeta, compositor e
colaborador, desde 2016, do projeto de incentivo à produção e apreciação artística
CEDAX.
E-mail:
5710
-8309
com
Doutorado em
Literatura Comparada (2013) e Mestrado em Literatura Portuguesa (2008), pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); e Licenciatura Plena em Letras
ra (2003), pela Universidade Iguaçu (UNIG). Desde 2015, é
Professor Adjunto de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Londrina
(UEL). De 2010 a 2011, foi Professor Auxiliar de Literatura Portuguesa e Teoria
Professores (FFP), da UERJ. No Ensino de
Graduação, tem experiência em Literatura Portuguesa, das origens à
contemporaneidade; e em Teoria Literária, Teoria da Literatura ou Teoria do Texto
Literário (com ênfase nos estudos sobre os gêneros literários). No
Ensino de Pós-
Graduação, tem experiência em Literatura Portuguesa Comparada, com ênfase nos
autores Antero de Quental, Eça de Queirós, Gomes Leal, Guilherme de Azevedo,
Guerra Junqueiro e Cesário Verde, em suas relações com a radical crise dos valores
dicionais resultante dos desdobramentos do "Niilismo Europeu" na segunda
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, out. 2019 a mar 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
metade do século XIX. Coorde
ficção queirosiana". Lid
era o Grupo de Pesquisa CNPq
afluxos da Geração de 70
"
UEL. É pesquisador do "
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP;
Luso-Brasileiras"
, Grupo de Pesquisa CNPq vinculado à Faculdade de Letras da
UFRJ. E-mail
: silvioalves78@gmail.com; silvioalves@uel.br
https://orcid.org/0000-0002
-
Americana de Estudos em Cultura
- ISSN 2237-1508
metade do século XIX. Coorde
na o Projeto de Pesquisa UEL
era o Grupo de Pesquisa CNPq
"
Cenáculo: Fluxos e
"
, vincul
ado ao Centro de Letras e Ciências Hu
UEL. É pesquisador do "
Grupo Eça"
, Grupo de Pesquisa CNPq vinculado ao
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP;
e do "
Pólo de Pesquisas
, Grupo de Pesquisa CNPq vinculado à Faculdade de Letras da
: silvioalves78@gmail.com; silvioalves@uel.br
-
2429-8468
"
O ceticismo na
Cenáculo: Fluxos e
ado ao Centro de Letras e Ciências Hu
manas da
, Grupo de Pesquisa CNPq vinculado ao
Pólo de Pesquisas
, Grupo de Pesquisa CNPq vinculado à Faculdade de Letras da
: silvioalves78@gmail.com; silvioalves@uel.br
- ORCID:
Dossiê
Representações da
violência na
literatura
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
Representações da violência na literatura: apontamentos para uma possível
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40564
Resumo
: A violência tem se apresentado como um tema recorrente em pesquisas de estudiosos das
literaturas, até porque obras de imaginação sempre se mostraram como um
estudo de diferentes temas ligados ao humano e às suas sociedades. Em
“Representações da Violência na Literatura” reúne e divulga pesquisas acadêmicas sobre diferentes
modalidades da violência refletidas em obras literárias de variadas épocas e nacionalidades, a partir
de diversificados enfoques teóri
co
Antígona, de Sófocles, até
Vidas secas,
Louzeiro, dentre muitas outras. Servem de ancoragem para os estudos obras como as de Walter
Benja
min (2011), Jacques Derrida
Nietzsche (1998).
Palavras-chave
: Violência; literatura; sociedade.
Representaciones de la violencia en la literatura: notas para una posible presentación.
Resumen:
La violencia ha sido presentada como un tema recurrente en la investigación por parte de
académicos literarios, sobre todo porque las obras de imaginación siempre se han mostrado como un
lugar privilegiado para el estudio de diferentes temas relac
sociedades. Como resultado, el dossier “Representaciones de la violencia en la literatura” reúne y
difunde investigaciones académicas sobre diferentes modalidades de violencia reflejadas en obras
literarias de diferentes época
s y nacionalidades, basadas en diversos enfoques teóricos y
metodológicos. Se citan obras como
Graciliano Ramos, e
Infância dos mortos
Walter Ben
jamin (2011), Jacques Derrida (1997), Michel Foucault (1987, 2013), Freud (2010),
Friedrich Nietzsche (1998) sirven como ancla para los estudios.
Palabras clave
: Violencia; literatura; sociedad.
1
Eloísa Porto Corrêa
Allevato Braem.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, p
Janeiro, Brasil. E-
mail: eloisaporto@gmail.com
2
Paulo Cesar Silva de Oliveira. Doutor em Letras pela UF
da FFP/UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Bolsista do Programa Prociência da
FAPERJ, Brasil.
Email: paulo.centrorio@uol.com.br
Texto recebido em 20/01/2020
e aceito para publicação em
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Representações da violência na literatura: apontamentos para uma possível
apresentação
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40564
Eloísa Porto Allevato Braem
Paulo Cesar S. Oliveira
: A violência tem se apresentado como um tema recorrente em pesquisas de estudiosos das
literaturas, até porque obras de imaginação sempre se mostraram como um
locus
estudo de diferentes temas ligados ao humano e às suas sociedades. Em
virtude disso, o dossiê
“Representações da Violência na Literatura” reúne e divulga pesquisas acadêmicas sobre diferentes
modalidades da violência refletidas em obras literárias de variadas épocas e nacionalidades, a partir
co
-
metodológicos. São cotejadas obras desde as
Vidas secas,
de Graciliano Ramos, e
Infância dos mortos
Louzeiro, dentre muitas outras. Servem de ancoragem para os estudos obras como as de Walter
min (2011), Jacques Derrida
(1997), Michel Foucault (1987, 2013),
Freud (2010), Friedrich
: Violência; literatura; sociedade.
Representaciones de la violencia en la literatura: notas para una posible presentación.
La violencia ha sido presentada como un tema recurrente en la investigación por parte de
académicos literarios, sobre todo porque las obras de imaginación siempre se han mostrado como un
lugar privilegiado para el estudio de diferentes temas relac
ionados con los humanos y sus
sociedades. Como resultado, el dossier “Representaciones de la violencia en la literatura” reúne y
difunde investigaciones académicas sobre diferentes modalidades de violencia reflejadas en obras
s y nacionalidades, basadas en diversos enfoques teóricos y
metodológicos. Se citan obras como
Édipo Rei
y Antígona, de Sophocles, a
Infância dos mortos
, de José Louzeiro, entre muchas otras. Obras como las de
jamin (2011), Jacques Derrida (1997), Michel Foucault (1987, 2013), Freud (2010),
Friedrich Nietzsche (1998) sirven como ancla para los estudios.
: Violencia; literatura; sociedad.
Allevato Braem.
Doutora em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, p
rofessora Adjunta na Universidade do Estado do Rio de
mail: eloisaporto@gmail.com
– https://orcid.org/0000-0001-
5356
Paulo Cesar Silva de Oliveira. Doutor em Letras pela UF
RJ e Professor Adjunto de Teoria Literária
da FFP/UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Bolsista do Programa Prociência da
Email: paulo.centrorio@uol.com.br
- https://orcid.org/0000-0002
-
e aceito para publicação em
31/01/2020.
18
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Representações da violência na literatura: apontamentos para uma possível
Eloísa Porto Allevato Braem
1
Paulo Cesar S. Oliveira
2
: A violência tem se apresentado como um tema recorrente em pesquisas de estudiosos das
locus
privilegiado para o
virtude disso, o dossiê
“Representações da Violência na Literatura” reúne e divulga pesquisas acadêmicas sobre diferentes
modalidades da violência refletidas em obras literárias de variadas épocas e nacionalidades, a partir
metodológicos. São cotejadas obras desde as
tebanas Édipo Rei e
Infância dos mortos
, de José
Louzeiro, dentre muitas outras. Servem de ancoragem para os estudos obras como as de Walter
Freud (2010), Friedrich
Representaciones de la violencia en la literatura: notas para una posible presentación.
La violencia ha sido presentada como un tema recurrente en la investigación por parte de
académicos literarios, sobre todo porque las obras de imaginación siempre se han mostrado como un
ionados con los humanos y sus
sociedades. Como resultado, el dossier “Representaciones de la violencia en la literatura” reúne y
difunde investigaciones académicas sobre diferentes modalidades de violencia reflejadas en obras
s y nacionalidades, basadas en diversos enfoques teóricos y
y Antígona, de Sophocles, a
Vidas secas, de
, de José Louzeiro, entre muchas otras. Obras como las de
jamin (2011), Jacques Derrida (1997), Michel Foucault (1987, 2013), Freud (2010),
Portuguesa) pela
5356
-3059
RJ e Professor Adjunto de Teoria Literária
da FFP/UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Bolsista do Programa Prociência da
-
3710-4722
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
Representations of violence in literature: notes towards a
Abstract
: Violence has been presented as a recurring theme in research by literary scholars, as
works of imagination have always shown themselves to be a privileged
themes related to humans and their societies. As a result, the dossier “Representations of violence in
literature” gathers and disseminates academic research on different modalities of violence reflected in
literary works of dif
ferent times and nationalities, from different theoretical and methodological
approaches. Therefore, works as
novel Vidas secas
, by Graciliano Ramos, and
others. Others writers from different areas like Walter Benjamin (2011), Jacques Derrida (1997),
Michel Foucault (1987, 2013), Freud (2010) and Friedrich Nietzsche (1998) serve as an anchor for the
studies here published.
Keywords: Violence;
literature; society.
Representações da violência na literatura: apontamentos para uma possível
Literatura e violência estão de
tal forma ligados que podemos afirmar
que esta relação é capaz mesmo de
estabelecer um modo de entrada na
compreensão das obras de
imaginação. Seja
partindo dos textos
religiosos fundadores ou das
produções artísticas as mais variadas,
de ontem e de hoje, qualquer olhar
sobre o tema da violência encontrará
na literatura um locus
Considerando o texto bíblico, por
exemplo, as múltiplas relações entre
poder, religião, política e violência
estão ali contempladas, como um
princípio inaugurador. Isso porque a
violência traduz os impulsos humanos
que se conectam aos proces
transformação, transmissão cultural e
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Representations of violence in literature: notes towards a
possible presentation
: Violence has been presented as a recurring theme in research by literary scholars, as
works of imagination have always shown themselves to be a privileged
locus
for the study of different
themes related to humans and their societies. As a result, the dossier “Representations of violence in
literature” gathers and disseminates academic research on different modalities of violence reflected in
ferent times and nationalities, from different theoretical and methodological
approaches. Therefore, works as
Édipo Rei and Antígona
, by Sophocles, dialogue with the Brazilian
, by Graciliano Ramos, and
Infância dos mortos
, by José Louzeir
others. Others writers from different areas like Walter Benjamin (2011), Jacques Derrida (1997),
Michel Foucault (1987, 2013), Freud (2010) and Friedrich Nietzsche (1998) serve as an anchor for the
literature; society.
Representações da violência na literatura: apontamentos para uma possível
apresentação
Literatura e violência estão de
tal forma ligados que podemos afirmar
que esta relação é capaz mesmo de
estabelecer um modo de entrada na
compreensão das obras de
partindo dos textos
religiosos fundadores ou das
produções artísticas as mais variadas,
de ontem e de hoje, qualquer olhar
sobre o tema da violência encontrará
privilegiado.
Considerando o texto bíblico, por
exemplo, as múltiplas relações entre
poder, religião, política e violência
estão ali contempladas, como um
princípio inaugurador. Isso porque a
violência traduz os impulsos humanos
que se conectam aos proces
sos de
transformação, transmissão cultural e
organização societal. Já em Aristóteles
verifica-
se, especialmente em sua
leitura do Édipo Rei
, de Sófocles, uma
relação produtiva e problemática entre
a representação social e as estruturas
estético-dramáticas,
de tal forma que a
peça passou a ser um exemplo de
espécie literária que extrapola os
limites do texto e passa a dialogar com
os mais diversos elementos
extrínsecos ao literário. Neste sentido,
o arcabouço formal da obra de
Sófocles dialogava perfeitam
com as estruturas e os dispositivos
sociais que faziam girar a roda da vida
grega ao longo do século V. a. C.
Édipo Rei
foi representada pela
primeira vez em 430 a. C., conforme
Mário da Gama Kury (1990). A
19
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
possible presentation
: Violence has been presented as a recurring theme in research by literary scholars, as
for the study of different
themes related to humans and their societies. As a result, the dossier “Representations of violence in
literature” gathers and disseminates academic research on different modalities of violence reflected in
ferent times and nationalities, from different theoretical and methodological
, by Sophocles, dialogue with the Brazilian
, by José Louzeir
o, among many
others. Others writers from different areas like Walter Benjamin (2011), Jacques Derrida (1997),
Michel Foucault (1987, 2013), Freud (2010) and Friedrich Nietzsche (1998) serve as an anchor for the
Representações da violência na literatura: apontamentos para uma possível
organização societal. Já em Aristóteles
se, especialmente em sua
, de Sófocles, uma
relação produtiva e problemática entre
a representação social e as estruturas
de tal forma que a
peça passou a ser um exemplo de
espécie literária que extrapola os
limites do texto e passa a dialogar com
os mais diversos elementos
extrínsecos ao literário. Neste sentido,
o arcabouço formal da obra de
Sófocles dialogava perfeitam
ente
com as estruturas e os dispositivos
sociais que faziam girar a roda da vida
grega ao longo do século V. a. C.
foi representada pela
primeira vez em 430 a. C., conforme
Mário da Gama Kury (1990). A
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
violência
religiosa, política, social e
psíquica –
permeia a obra, exemplo de
um dos mais completos e complexos
textos dramáticos da Antiguidade
Clássica.
Mesmo antes de nascer,
Édipo carregava uma maldição,
consequência da paixão mórbida de
seu pai Laio, na juventude, pelo jovem
Crísipo. À mal
dição lançada a Laio
pelo pai de Crísipo, Pêlops, em virtude
do rapto do filho
a de morrer sem
descendentes
acresce a profecia do
oráculo, de que,como castigo pelos
amores antinaturais de Laio, caso
tivesse um filho com Jocasta, este o
mataria. Para es
capar do vaticínio do
oráculo, Laio entrega a um pastoro
recém-
nascido Édipo, dependurado
por ganchos pelos pés, a fim de que
fosse deixado no monte Citéron, para
morrer abandonado à sorte. Tomado
pela piedade, o pastor entrega a
criança a um companheiro q
Pôlibo, rei de Corinto, que o adota e
cria como se fosse seu filho. Adulto,
Édipo toma conhecimento da maldição
que recai sobre ele e, para evitar a
morte do pai e a união incestuosa com
a mãe, foge daqueles que ele
acreditava serem seus pais nat
chegando a Tebas onde, em uma
briga numa encruzilhada, acaba
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
religiosa, política, social e
permeia a obra, exemplo de
um dos mais completos e complexos
textos dramáticos da Antiguidade
Mesmo antes de nascer,
Édipo carregava uma maldição,
consequência da paixão mórbida de
seu pai Laio, na juventude, pelo jovem
dição lançada a Laio
pelo pai de Crísipo, Pêlops, em virtude
a de morrer sem
acresce a profecia do
oráculo, de que,como castigo pelos
amores antinaturais de Laio, caso
tivesse um filho com Jocasta, este o
capar do vaticínio do
oráculo, Laio entrega a um pastoro
nascido Édipo, dependurado
por ganchos pelos pés, a fim de que
fosse deixado no monte Citéron, para
morrer abandonado à sorte. Tomado
pela piedade, o pastor entrega a
criança a um companheiro q
ue servia
Pôlibo, rei de Corinto, que o adota e
cria como se fosse seu filho. Adulto,
Édipo toma conhecimento da maldição
que recai sobre ele e, para evitar a
morte do pai e a união incestuosa com
a mãe, foge daqueles que ele
acreditava serem seus pais nat
urais,
chegando a Tebas onde, em uma
briga numa encruzilhada, acaba
assassinando seu verdadeiro pai, Laio.
Em seguida, Édipo cruza com a
Esfinge, criatura monstruosa que
aterrorizava Tebas, devorando aqueles
que o decifrassem o enigma
lançado por ela. Ao
enigma colocado, Édipo livra a cidade
do mal e, com isso, é
casamento Jocasta, sua e.
Cumprem-
se, deste modo, as diversas
profecias.
Como se
vê, a discussão ampla
promovida por Sófocles se manifesta
através da representação
formas de violência
maldições, punições, homicídio,
automutilação, suicídio etc.
compõem o mosaico de atos de
brutalidade: violência religiosa
(restauração da ordem moral e da
expiação da culpa através da cena
sacrificial); vio
lência política (exílio);
violência legal e para
legal,preconizada pelo direito positivo
ou pelo
direito natural (punição pelo
assassinato, pelo incesto); violência
subjetiva (os impulsos de morte, a
violência homicida) e outras
possibilidades de leitura.
obras que compõem a tragediografia
grega que chegou até nós,
talvez seja o mais importante modelo
20
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
assassinando seu verdadeiro pai, Laio.
Em seguida, Édipo cruza com a
Esfinge, criatura monstruosa que
aterrorizava Tebas, devorando aqueles
que o decifrassem o enigma
lançado por ela. Ao
desvendar o
enigma colocado, Édipo livra a cidade
do mal e, com isso, é
-lhe oferecida em
casamento Jocasta, sua e.
se, deste modo, as diversas
vê, a discussão ampla
promovida por Sófocles se manifesta
através da representação
de múltiplas
formas de violência
raptos,
maldições, punições, homicídio,
automutilação, suicídio etc.
que
compõem o mosaico de atos de
brutalidade: violência religiosa
(restauração da ordem moral e da
expiação da culpa através da cena
lência política (exílio);
violência legal e para
-
legal,preconizada pelo direito positivo
direito natural (punição pelo
assassinato, pelo incesto); violência
subjetiva (os impulsos de morte, a
violência homicida) e outras
possibilidades de leitura.
Dentre as
obras que compõem a tragediografia
grega que chegou até nós,
Édipo rei
talvez seja o mais importante modelo
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
de reflexão acerca das formas de
violência históricas, que abarcam
ainda as modalidades psíquicas,
familiares e filosóficas que
ficcionali
zam os atos de força.
Tratar destes temas com foco
na produção literária, de ontem e de
hoje, é o objetivo desta reunião de
textos, que compõem um panorama
diversificado dos vários modos de
representação da violência no e pelo
discurso literário. O problem
violência, como discutiremos,
relaciona-
se intrinsecamente ao da lei.
Em “Para uma crítica da violência”,
texto da juventude de Walter Benjamin
(2011, p. 121-
156), o filósofo dirá que:
A
tarefa de uma crítica da violência
pode se circunscrever à
apres
entação de suas relações com
o direito e com a justiça. Pois
qualquer que seja o modo como atua
uma causa, ela só se transforma em
violência, no sentido pregnante da
palavra, quando interfere em
relações éticas.
Os conceitos de direito e justiça
permeiam
tais relações, o que leva
Benjamin a perguntar se a violência,
enquanto princípio, seria ética, pois se
o que importa são os meios com que
ela se materializa, vale
caso a caso, como se manifestam a
justiça e a injustiça, bem como seus
fins. Ben
jamin (2011, p. 123) entende
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
de reflexão acerca das formas de
violência históricas, que abarcam
ainda as modalidades psíquicas,
familiares e filosóficas que
zam os atos de força.
Tratar destes temas com foco
na produção literária, de ontem e de
hoje, é o objetivo desta reunião de
textos, que compõem um panorama
diversificado dos vários modos de
representação da violência no e pelo
discurso literário. O problem
a da
violência, como discutiremos,
se intrinsecamente ao da lei.
Em “Para uma crítica da violência”,
texto da juventude de Walter Benjamin
156), o filósofo dirá que:
tarefa de uma crítica da violência
pode se circunscrever à
entação de suas relações com
o direito e com a justiça. Pois
qualquer que seja o modo como atua
uma causa, ela só se transforma em
violência, no sentido pregnante da
palavra, quando interfere em
Os conceitos de direito e justiça
tais relações, o que leva
Benjamin a perguntar se a violência,
enquanto princípio, seria ética, pois se
o que importa são os meios com que
questionar,
caso a caso, como se manifestam a
justiça e a injustiça, bem como seus
jamin (2011, p. 123) entende
que o direito natural vê na “aplicação
de meios violentos para fins justos
tampouco um problema como o
homem encontra um problema no
“direito” de locomover seu corpo até
um fim desejado”. A abertura de
Benjamin para o sujeito e
deslocamento antecipa a questão da
mobilidade e da clausura que permeia
as discussões de ontem e nos chegam
ao presente, sobre o que fazer com o
corpo e como este corpo pode ou
consegue se deslocar no espaço
tempo da pós-
modernidade. Benjamin
antecipa Mi
chel Foucault (2013, p. 7),
que
entende o corpo utópico na dupla
acepção da mobilidade e da clausura:
podemos movê-
lo, removê
de localização, mas não podemos
deslocar sem ele. Impõe
articulação entre a
topia
a “desp
rezível concha da minha
cabeça”, grade pela qual será preciso
falar, olhar, ser olhado, deteriorar
(FOUCAULT, 2013, p. 7
seria o lugar de um corpo sem corpo,
mas também a utopia feita para
apagar os corpos (o lugar dos mortos,
a morte). Par
a explicar esta triste
topologia dos corpos, foi criado o mito
da alma, nos diz Foucault. Aquilo que
carregamos em nosso corpo e
21
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
que o direito natural vê na “aplicação
de meios violentos para fins justos
tampouco um problema como o
homem encontra um problema no
“direito” de locomover seu corpo até
um fim desejado”. A abertura de
Benjamin para o sujeito e
m
deslocamento antecipa a questão da
mobilidade e da clausura que permeia
as discussões de ontem e nos chegam
ao presente, sobre o que fazer com o
corpo e como este corpo pode ou
consegue se deslocar no espaço
-
modernidade. Benjamin
chel Foucault (2013, p. 7),
entende o corpo utópico na dupla
acepção da mobilidade e da clausura:
lo, removê
-lo, mudá-lo
de localização, mas não podemos
nos
deslocar sem ele. Impõe
-se uma
topia
implacável” e
rezível concha da minha
cabeça”, grade pela qual será preciso
falar, olhar, ser olhado, deteriorar
(FOUCAULT, 2013, p. 7
-8). A utopia
seria o lugar de um corpo sem corpo,
mas também a utopia feita para
apagar os corpos (o lugar dos mortos,
a explicar esta triste
topologia dos corpos, foi criado o mito
da alma, nos diz Foucault. Aquilo que
carregamos em nosso corpo e
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
levamos por onde quer que vamos,
nossa alma, é também aquilo que será
exposto à violência de um mundo
ordenado, cujas estrutura
classificar de justiça, lei, constituição
ou, simplesmente, violência fundadora.
Neste sentido, a crítica de
Jacques Derrida (1997) às tendências
heideggeriano-
metafísicas de Walter
Benjamin
no artigo aqui aludido
procura estabelecer o princípio
violência como correlato à consecução
da justiça, a partir daquilo que se
transforma inevitavelmente em
“experiência da aporia”:
Una experiencia, como su
indica, es una travesía, pasa a través
y viaja hacia un destino para el
pasaje. La experienc
ia
passaje, es posible. Ahora
este sentido, no puede
experiencia plena de la aporia, es
decir, experiencia de aquello que no
permite el passaje.
Aporía
camino. La justícia
sería, desde este
punto de vista, la experienci
aquello de lo que no se puede
experiencia. A continuación vamos a
encontra más de una aporía, sin que
podamos atravesarlas (DERRIDA,
1997, p. 38).
3
3
Uma experiência, como seu nome indica, é
uma travessia, passa através e viaja até um
destino para uma passagem. A experiência
encontra sua passagem, é possível. Contudo,
neste sentido, não pode haver a experiên
plena da aporia, quer dizer, a experiência
daquilo que não permite a passagem.
um não-
caminho. A justiça seria, deste ponto
de vista, a experiência daquilo de que não se
pode ter experiência. Em seguida,
encontraremos mais de uma aporia, sem q
possamos atravessá-
las. (Nossa tradução).
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
levamos por onde quer que vamos,
nossa alma, é também aquilo que será
exposto à violência de um mundo
ordenado, cujas estrutura
s podemos
classificar de justiça, lei, constituição
ou, simplesmente, violência fundadora.
Neste sentido, a crítica de
Jacques Derrida (1997) às tendências
metafísicas de Walter
no artigo aqui aludido
procura estabelecer o princípio
da
violência como correlato à consecução
da justiça, a partir daquilo que se
transforma inevitavelmente em
Una experiencia, como su
nombre
indica, es una travesía, pasa a través
y viaja hacia un destino para el
ia
encuentra su
passaje, es posible. Ahora
bien, en
este sentido, no puede
haber
experiencia plena de la aporia, es
decir, experiencia de aquello que no
Aporía
es um no-
sería, desde este
punto de vista, la experienci
a de
aquello de lo que no se puede
tener
experiencia. A continuación vamos a
encontra más de una aporía, sin que
podamos atravesarlas (DERRIDA,
Uma experiência, como seu nome indica, é
uma travessia, passa através e viaja até um
destino para uma passagem. A experiência
encontra sua passagem, é possível. Contudo,
neste sentido, não pode haver a experiên
cia
plena da aporia, quer dizer, a experiência
daquilo que não permite a passagem.
Aporia é
caminho. A justiça seria, deste ponto
de vista, a experiência daquilo de que não se
pode ter experiência. Em seguida,
encontraremos mais de uma aporia, sem q
ue
las. (Nossa tradução).
Derrida crê não haver justiça
sem a experiência da aporia e isto se
deve ao fato de que ele
justiça como experiência do
impossível. Para o filósofo, o direito é
sempre uma força autorizada, que se
justifica e é justificada pela sua própria
aplicação (DERRIDA, 1997, p. 15).
Lembrando Emmanuel Kant, Derrida
afirma que não direito sem f
força é o aspecto da violência implícita
no próprio conceito de justiça como
direito. Qual seria a diferença entre
uma força justa, legítima
direito –
e uma violência que se mostra
quase sempre injusta? No Brasil de
2020, no momento e
escrevemos, qual o sentido dese
pensar o estado democrático de direito
em uma época na qual a democracia
enfrenta uma crise, o direito do estado
quer se sobrepor aos direitos dos
corpos, à sua mobilidade e liberdade
utópicas, quando pretende implanta
um corpo de leis que em seu núcleo
realiza o que Derrida classifica como
aporia.
A oposição a um estado injusto
que quer instituir a injustiça pela lei
seria um ato ilegítimo, “fora
esta oposição é na verdade uma
resistência legítima à lei in
violência que se faz legítima ao
22
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Derrida crê não haver justiça
sem a experiência da aporia e isto se
deve ao fato de que ele
entende a
justiça como experiência do
impossível. Para o filósofo, o direito é
sempre uma força autorizada, que se
justifica e é justificada pela sua própria
aplicação (DERRIDA, 1997, p. 15).
Lembrando Emmanuel Kant, Derrida
afirma que não direito sem f
orça: a
força é o aspecto da violência implícita
no próprio conceito de justiça como
direito. Qual seria a diferença entre
uma força justa, legítima
– essência do
e uma violência que se mostra
quase sempre injusta? No Brasil de
2020, no momento e
m que
escrevemos, qual o sentido dese
pensar o estado democrático de direito
em uma época na qual a democracia
enfrenta uma crise, o direito do estado
quer se sobrepor aos direitos dos
corpos, à sua mobilidade e liberdade
utópicas, quando pretende implanta
r
um corpo de leis que em seu núcleo
realiza o que Derrida classifica como
A oposição a um estado injusto
que quer instituir a injustiça pela lei
seria um ato ilegítimo, “fora
-da-lei”? Ou
esta oposição é na verdade uma
resistência legítima à lei in
justa, uma
violência que se faz legítima ao
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
insurgir-
se contra a lei injusta
instituída? Os “fora-da-
lei” seriam,
portanto, guardiões da justiça, no caso
de sua desobediência e luta contra leis
injustas? Então, poderemos pensar a
justiça fora do não-caminh
o da aporia?
E a violência pensada fora do
binarismo não acaba opondo a
verdadeira aplicação da justiça àquilo
que preconizam os ordenamentos
jurídicos? Não seria, ao final, o
estatuto do corpo em mobilidade e em
sua possibilidade utópica de trânsito
por u
m caminho de livre passagem,
conforme pensado por Foucault, a
grande fronteira a se problematizar?
Quanto a isso, a liberdade e a
mobilidade do discurso literário têm
muito a dizer.
Por exemplo, os corpos
moventes de Vidas secas
, analisados
por Paulo Cesar
S. Oliveira e Isabela
Cristina Rodrigues Azevedo neste
dossiê, são expostos a violências
linguística, social, política, econômica,
psicológica
as mais diversas, que
vão desde uma relação aporética entre
explorados e exploradores até uma
ambígua conviv
ência entre oprimidos e
opressores. O personagem Fabiano
que é oprimido pelo fazendeiro,o qual
lhe explora a mão de obra, e pelo
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
se contra a lei injusta
lei” seriam,
portanto, guardiões da justiça, no caso
de sua desobediência e luta contra leis
injustas? Então, poderemos pensar a
o da aporia?
E a violência pensada fora do
binarismo não acaba opondo a
verdadeira aplicação da justiça àquilo
que preconizam os ordenamentos
jurídicos? Não seria, ao final, o
estatuto do corpo em mobilidade e em
sua possibilidade utópica de trânsito
m caminho de livre passagem,
conforme pensado por Foucault, a
grande fronteira a se problematizar?
Quanto a isso, a liberdade e a
mobilidade do discurso literário têm
Por exemplo, os corpos
, analisados
S. Oliveira e Isabela
Cristina Rodrigues Azevedo neste
dossiê, são expostos a violências
linguística, social, política, econômica,
as mais diversas, que
vão desde uma relação aporética entre
explorados e exploradores até uma
ência entre oprimidos e
opressores. O personagem Fabiano
que é oprimido pelo fazendeiro,o qual
lhe explora a mão de obra, e pelo
soldado amarelo, que o submete a
humilhações e torturas
que oprime seus filhos e a esposa:
Fabiano exerce o “dire
provedor da família que, por essa
condição, paira acima dos demais
membros da casa. O poder e a prática
da violência possuem camadas, níveis
de aplicação, neste caso. Embora
Graciliano Ramos não trate
diretamente de religião, neste
romance
, devemos concordar com
Jacques Derrida (1997, p. 133),
quando afirma que “toda la
decidibilidad se encuentra concentrada
del lado de la violência divina en
tradición judaica, eso
confirmar y dar sentido al espetáculo
que da la historia del
de
Mais além, Derrida mostra que
a história está do lado da violência
divina, em oposição ao mito. Impõe
pensar, portanto, a tensão entre o
direito natural e o direito positivo, como
ocorre em
Édipo rei
especificamente, na
Antígona
de Sófocles. Nesta segunda obra, que
sequência aos efeitos da tragédia
de Édipo, Antígona, sua filha, enterra
seu irmão Polinices, estabelecendo um
4
toda a decidibilidade está concentrada no
lado da violência divina na tradição judaica,
que confirmaria e traria sentido ao espetáculo
que dá a história do direito. (Nossa tradução).
23
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
soldado amarelo, que o submete a
humilhações e torturas
é o mesmo
que oprime seus filhos e a esposa:
Fabiano exerce o “dire
ito paterno”, de
provedor da família que, por essa
condição, paira acima dos demais
membros da casa. O poder e a prática
da violência possuem camadas, níveis
de aplicação, neste caso. Embora
Graciliano Ramos não trate
diretamente de religião, neste
, devemos concordar com
Jacques Derrida (1997, p. 133),
quando afirma que “toda la
decidibilidad se encuentra concentrada
del lado de la violência divina en
la
tradición judaica, eso
vendría a
confirmar y dar sentido al espetáculo
de
recho”
4
.
Mais além, Derrida mostra que
a história está do lado da violência
-se
pensar, portanto, a tensão entre o
direito natural e o direito positivo, como
Édipo rei
ou, mais
Antígona
, também
de Sófocles. Nesta segunda obra, que
sequência aos efeitos da tragédia
de Édipo, Antígona, sua filha, enterra
seu irmão Polinices, estabelecendo um
toda a decidibilidade está concentrada no
lado da violência divina na tradição judaica,
que confirmaria e traria sentido ao espetáculo
que dá a história do direito. (Nossa tradução).
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
choque entre o direito natural,
defendido pela heroína e o direito
positivo, representado pelo édito de
Creonte. A conceder honras públicas a
Polinices, Antígona recorre ao direito
natural, de enterrar apropriadamente
seu parente, mas contraria a lei
estabelecida por Creonte, que proibira
o ato. O embate travado discute a
validade das formas de aplicação do
direito natural e do positivo?
Do mesmo modo, a luta pela
sobrevivência em
Vidas secas
estabelece questões que suplantam a
dicotomia e lançam o leitor no universo
das aporias inevitáveis,que subjazem
em um corpo de leis injusto. Lutar e
rebelar-se contra
a fome parece algo
natural, mas as formas de luta
afrontam o ordenamento jurídico que
ratifica a violência da lei, a qual
permite a senhores de terra exercerem
direito não somente sobre a
propriedade, mas também em relação
aos corpos avassalados. No Brasi
rural da primeira metade do século XX,
Graciliano Ramos recria o debate
sobre a mobilidade e a liberdade de
corpos e mentes, ao denunciar as
estruturas, os dispositivos de força que
permeiam relações socia
tornadas justas por força de lei,
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
choque entre o direito natural,
defendido pela heroína e o direito
positivo, representado pelo édito de
Creonte. A conceder honras públicas a
Polinices, Antígona recorre ao direito
natural, de enterrar apropriadamente
seu parente, mas contraria a lei
estabelecida por Creonte, que proibira
o ato. O embate travado discute a
validade das formas de aplicação do
direito natural e do positivo?
Do mesmo modo, a luta pela
Vidas secas
estabelece questões que suplantam a
dicotomia e lançam o leitor no universo
das aporias inevitáveis,que subjazem
em um corpo de leis injusto. Lutar e
a fome parece algo
natural, mas as formas de luta
afrontam o ordenamento jurídico que
ratifica a violência da lei, a qual
permite a senhores de terra exercerem
direito o somente sobre a
propriedade, mas também em relação
aos corpos avassalados. No Brasi
l
rural da primeira metade do século XX,
Graciliano Ramos recria o debate
sobre a mobilidade e a liberdade de
corpos e mentes, ao denunciar as
estruturas, os dispositivos de força que
permeiam relações socia
is injustas
tornadas justas por força de lei,
con
forme mostram Oliveira e Azevedo
(2020).
Grande sertão: veredas
de Guimarães Rosa, apresenta o
sertão brasileiro (veredas tortas, miolo
mal do sertão) como metáfora de um
mundo impregnado pelo mal (
horribilis
) e representa algumas formas
de v
iolência experimentadas
Riobaldo, como meios de o
protagonista superar medos. A partir
de estudos sobre as “poéticas do mal”,
João Pedro Bellas e Júlio França
(2020) defendem que o contato com
personagens monstruosas, os crimes,
pactos com o diabo e
transgressões da jagunçagem são
percebidas pelo protagonista não
apenas como modos de se colocar à
prova mas também como indícios de
que o mal é inevitável e de que se
combate o mal com outro mal,
inclusive os males metafísicos. Mesmo
demonstrando
contraditórios a respeito de sua
atividade como jagunço, Riobaldo vê
como parte natural do sertão e do
mundo a violência, único meio capaz
de ordenar o espaço, eliminando
caos, o que não impede sua
repugnância ética pelo sadismo de seu
nêmesis
Hermógenes, tido como
24
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
forme mostram Oliveira e Azevedo
Grande sertão: veredas
(1956),
de Guimarães Rosa, apresenta o
sertão brasileiro (veredas tortas, miolo
mal do sertão) como metáfora de um
mundo impregnado pelo mal (
locus
) e representa algumas formas
iolência experimentadas
por
Riobaldo, como meios de o
protagonista superar medos. A partir
de estudos sobre as “poéticas do mal”,
João Pedro Bellas e Júlio França
(2020) defendem que o contato com
personagens monstruosas, os crimes,
pactos com o diabo e
rias
transgressões da jagunçagem são
percebidas pelo protagonista não
apenas como modos de se colocar à
prova mas também como indícios de
que o mal é inevitável e de que se
combate o mal com outro mal,
inclusive os males metafísicos. Mesmo
sentimentos
contraditórios a respeito de sua
atividade como jagunço, Riobaldo vê
como parte natural do sertão e do
mundo a violência, único meio capaz
de ordenar o espaço, eliminando
-lhe o
caos, o que não impede sua
repugnância ética pelo sadismo de seu
Hermógenes, tido como
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
encarnação do mal ou pactuado com o
diabo (BELLAS; FRANÇA, 2020). Por
outro lado, o narrador (velho Riobaldo)
apresenta um misto de curiosidade e
repulsa pela violência sertaneja que
narra, perturbadora por revelar nele
seu ímpe
to violento.Mas, se a
intimidação e a prática da violência
aparecem como remédios contra o
medo e prova de valentia na obra,
também surgem como provas de
valentia e coragem a capacidade de
praticar a bondade e a justiça,
defendidas por Diadorim, personagem
admirada por Riobaldo. Com isso, as
vivências e opiniões de Riobaldo e de
outros sertanejos sobre bem e mal,
coragem e medo, violência e justiça
mostram-
se ambíguas, mas em todo
caso convictas de que a violência, o
mal e o ódio são naturais, inevitáveis
n
o sertão/mundo e anecessários no
combate ao medo e no fomento da
coragem.
O debate se estende
rigorosamente atualizado, sob formas
diversas, é claro,
passando de
situações de violência no sertão
brasileiro
do século XX, ao cenário
mais urbano e suburbano (em
crescimento desordenado) no sudeste
brasileiro da segunda metade do
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
encarnação do mal ou pactuado com o
diabo (BELLAS; FRANÇA, 2020). Por
outro lado, o narrador (velho Riobaldo)
apresenta um misto de curiosidade e
repulsa pela violência sertaneja que
narra, perturbadora por revelar nele
to violento.Mas, se a
intimidação e a prática da violência
aparecem como remédios contra o
medo e prova de valentia na obra,
também surgem como provas de
valentia e coragem a capacidade de
praticar a bondade e a justiça,
defendidas por Diadorim, personagem
admirada por Riobaldo. Com isso, as
vivências e opiniões de Riobaldo e de
outros sertanejos sobre bem e mal,
coragem e medo, violência e justiça
se ambíguas, mas em todo
caso convictas de que a violência, o
mal e o ódio são naturais, inevitáveis
o sertão/mundo e anecessários no
combate ao medo e no fomento da
O debate se estende
rigorosamente atualizado, sob formas
passando de
situações de violência no sertão
do século XX, ao cenário
mais urbano e suburbano (em
crescimento desordenado) no sudeste
brasileiro da segunda metade do
século XX,
no romance
Infância dos mortos
por Eloísa
Porto C. Allevato
Saron do Amaral Gomes (2020
prisma da violência institucional
durante a ditadura militar, que se
desdobra em várias formas de
violência.
A partir da narrativa de Louzeiro
(1977)
, os pesquisadores (BRAEM;
GOMES, 2020) apresentam um
flagrante confronto entre os (direitos
funda
mentais de) jovens em situação
de rua e a ação de instituições
ocupadas em punir, impedir roubos e
furtos ou quaisquer violações
patrimoniais, usando métodos legais,
para-
legais e a ilegais, antes da
Constituição de 1988. Aos jovens em
situação de rua no
reportagem, muitas vezes levados
pelas circunstâncias ao conflito com a
lei, vemos direitos naturais (alguns
positivados) os mais variados serem
negados, inclusive a inimputáveis aos
quais autoridades, famílias e
sociedade em geral deveriam dir
cuidados especiais. No entanto, a
muitos desses jovens, não se garante
o direito nem de saciar suas
necessidades mais básicas, alimentar
se e cuidar da saúde física e mental,
25
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
no romance
-reportagem
(1977), analisado
Porto C. Allevato
Braem e
Saron do Amaral Gomes (2020
), sob o
prisma da violência institucional
durante a ditadura militar, que se
desdobra em várias formas de
A partir da narrativa de Louzeiro
, os pesquisadores (BRAEM;
GOMES, 2020) apresentam um
flagrante confronto entre os (direitos
mentais de) jovens em situação
de rua e a ação de instituições
ocupadas em punir, impedir roubos e
furtos ou quaisquer violações
patrimoniais, usando métodos legais,
legais e a ilegais, antes da
Constituição de 1988. Aos jovens em
situação de rua no
romance-
reportagem, muitas vezes levados
pelas circunstâncias ao conflito com a
lei, vemos direitos naturais (alguns
positivados) os mais variados serem
negados, inclusive a inimputáveis aos
quais autoridades, famílias e
sociedade em geral deveriam dir
igir
cuidados especiais. No entanto, a
muitos desses jovens, não se garante
o direito nem de saciar suas
necessidades mais básicas, alimentar
-
se e cuidar da saúde física e mental,
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
vestir-
se dignamente e abrigar
intempéries, socializar-
se de forma
sa
udável, trocar afetos familiares e
participar de um processo ensino
aprendizagem adequado, ir e vir com
segurança, entre tantos outros na
ocasião elencados na Declaração
Universal dos Direitos Humanos
(1948).
Para defender a propriedade e
os interesses
de grupos no poder
(militares, empresariais e outros),
culturas institucionais de várias
organizações
como delegacias,
hospitais, instituições de educação,
estabelecimentos de ressocialização e
amparo social etc.
cultivam rotinas de
violência e, por vez
es, praticam graves
violações aos direitos dos jovens, que
vão desde apreensões ou prisões
arbitrárias, torturas, privações
variadas, até o extermínio.
contexto, o artigo debate dilemas e
limites entre direito e a aporética
justiça, seus meios e fins;
cidadão fora-dessa-
lei, violência e
ética, uso da força e ordenamento
jurídico, mobilidade e clausura;
processo de apagamento de corpos
descartados pela sociedade, tão
abordados por estudiosos como
Benjamin (2011), Foucault (2013) e
Derrida (1997).
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
se dignamente e abrigar
-se das
se de forma
udável, trocar afetos familiares e
participar de um processo ensino
-
aprendizagem adequado, ir e vir com
segurança, entre tantos outros na
ocasião elencados na Declaração
Universal dos Direitos Humanos
Para defender a propriedade e
de grupos no poder
(militares, empresariais e outros),
culturas institucionais de várias
como delegacias,
hospitais, instituições de educação,
estabelecimentos de ressocialização e
cultivam rotinas de
es, praticam graves
violações aos direitos dos jovens, que
vão desde apreensões ou prisões
arbitrárias, torturas, privações
variadas, até o extermínio.
Nesse
contexto, o artigo debate dilemas e
limites entre direito e a aporética
lei injusta e
lei, violência e
ética, uso da força e ordenamento
jurídico, mobilidade e clausura;
processo de apagamento de corpos
descartados pela sociedade, tão
abordados por estudiosos como
Benjamin (2011), Foucault (2013) e
É nesta década de 1970
também que Ignácio de Loyola
Brandão lança um de seus mais
importantes romances,
alvo da violência da censura em 1976,
no regime militar implantado em 1964
e consolidado pela ferocidade do Ato
Institucional N
º 5 de 1968. A partir
dessa obra, Pedro Sasse (2020)
apresenta Brandão como um dos
importantes nomes brasileiros
ficção distópica, espécie literária que
teve em George Orwell seu pioneiro e
mais influente escritor. Publicada nos
anos mais duros da ditad
que permaneceria inédita no Brasil
fornece a Sasse os elementos que
relacionam um estudo histórico
sociológico à forma revolucionária de
Zero
. Neste romance de invenção e de
estrutura radical, o como se a
literatura abraça o momento
exceção.
A leitura do romance
empreendida por Sasse revela a
gerações o período que se instaurou
no país após 1968, mas o autor
avança, trazendo as questões
levantadas sobre a ditadura militar ao
presente, como por exemplo,
relacionando as disc
narrativa à questão da globalização e
26
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
É nesta década de 1970
também que Ignácio de Loyola
Brandão lança um de seus mais
importantes romances,
Zero (1975),
alvo da violência da censura em 1976,
no regime militar implantado em 1964
e consolidado pela ferocidade do Ato
º 5 de 1968. A partir
dessa obra, Pedro Sasse (2020)
apresenta Brandão como um dos
importantes nomes brasileiros
da
ficção distópica, espécie literária que
teve em George Orwell seu pioneiro e
mais influente escritor. Publicada nos
anos mais duros da ditad
ura, esta obra
que permaneceria inédita no Brasil
fornece a Sasse os elementos que
relacionam um estudo histórico
-
sociológico à forma revolucionária de
. Neste romance de invenção e de
estrutura radical, o como se a
literatura abraça o momento
político de
A leitura do romance
empreendida por Sasse revela a
gerações o período que se instaurou
no país após 1968, mas o autor
avança, trazendo as questões
levantadas sobre a ditadura militar ao
presente, como por exemplo,
relacionando as disc
ussões desta
narrativa à questão da globalização e
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
à violência de Estado que ameaça
retornar sob novas máscaras.
Continuando no cenário
brasileiro mais urbano ou em suas
periferias,
em obras como os
de Pedro (2006) e
Passageiro do fim
do dia (2010),
Rubens Figueiredo em
uma espécie de “pedagogia da
realidade”enfoca
a violência cotidiana,
a opressão, a
injustiça e a exclusão
social
enfrentadas por membros de
classes sociais menos abastadas ou
trabalhadoras
, como mostra
Montebelo Barcelos (202
0). A esses
jovens e adultos, mulheres e homens
também o negados direitos
fundamentais os mais variados, entre
eles condições dignas de educação e
desenvolvimento intelectual, moradia e
transporte,
trabalho e sobrevivência,
causando solidão, exclusão, de
revolta, traumas, cicatrizes em seus
corpos, entre tantas outras mazelas.
As formas de violência cotidiana
sofridas por esses membros de
classes menos abastadas geram
inúmeras outras violências e marcas,
que são como assinaturas
(BARCELOS, 2020) d
a violência nos
corpos ou
lembretes da morte na
espreita e da dureza cotidiana na luta
diária pela sobrevivência. São
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
à violência de Estado que ameaça
retornar sob novas máscaras.
Continuando no cenário
brasileiro mais urbano ou em suas
em obras como os
Contos
Passageiro do fim
Rubens Figueiredo em
uma espécie de “pedagogia da
a violência cotidiana,
injustiça e a exclusão
enfrentadas por membros de
classes sociais menos abastadas ou
, como mostra
Carolina
0). A esses
jovens e adultos, mulheres e homens
também o negados direitos
fundamentais os mais variados, entre
eles condições dignas de educação e
desenvolvimento intelectual, moradia e
trabalho e sobrevivência,
causando solidão, exclusão, de
silusão,
revolta, traumas, cicatrizes em seus
corpos, entre tantas outras mazelas.
As formas de violência cotidiana
sofridas por esses membros de
classes menos abastadas geram
inúmeras outras violências e marcas,
que são como assinaturas
a violência nos
lembretes da morte na
espreita e da dureza cotidiana na luta
diária pela sobrevivência. São
confrontos entre policiais e
ambulantes, atropelamentos, balas
perdidas, acidentes de trabalho a gerar
amputações, aposentadorias por
inva
lidez, desemprego, projéteis
alojados em órgãos desses corpos,
perdas de memória, agressões a
animais, idosos e crianças, incluindo
pedofilia. Além disso, são abordadas
manifestações da violência mais
citadinas
e contemporâneas, como a
superpopulação e a
em favelas, o tráfico de drogas
sua indústria de criminalidade e
assassinatos,
a correria moderna e a
produção acelerada de lixo nas áreas
urbanas, o isolamento, o
individualismo
e a solidão
contemporâneos. Enfim, é a análise da
experiên
cia contemporânea pelo
prisma das variadas violências
vivenciadas nas cidades.
No final do século XX e início do
século XXI, também em ambientes
urbanos, em narrativas que misturam
policial e psicanálise, Luiz Alfredo
Garcia-
Roza aborda a violência
criminal, o medo e
alguns sintomas de
um mal-
estar cultural que tornam
personagens (e suas subjetividades)
metáforas do indivíduo contemporâneo
e de uma sociedade culturalmente
27
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
confrontos entre policiais e
ambulantes, atropelamentos, balas
perdidas, acidentes de trabalho a gerar
amputações, aposentadorias por
lidez, desemprego, projéteis
alojados em órgãos desses corpos,
perdas de memória, agressões a
animais, idosos e crianças, incluindo
pedofilia. Além disso, são abordadas
manifestações da violência mais
e contemporâneas, como a
superpopulação e a
marginalização
em favelas, o tráfico de drogas
com
sua indústria de criminalidade e
a correria moderna e a
produção acelerada de lixo nas áreas
urbanas, o isolamento, o
e a solidão
contemporâneos. Enfim, é a análise da
cia contemporânea pelo
prisma das variadas violências
vivenciadas nas cidades.
No final do século XX e início do
século XXI, também em ambientes
urbanos, em narrativas que misturam
policial e psicanálise, Luiz Alfredo
Roza aborda a violência
alguns sintomas de
estar cultural que tornam
personagens (e suas subjetividades)
metáforas do indivíduo contemporâneo
e de uma sociedade culturalmente
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
‘esquizofrênica’. É o que demonstra
Fernanda Mara de Almeida Azevedo
(2020), em sua an
álise dos romances
O silêncio da chuva
(1996) e
sem saída
(2006), nos quais o solitário
e pessimista protagonista Espinosa, ao
não encontrar respostas para seus
questionamentos, desconstrói a
imagem clássica de infalibilidade do
investigador e se
constitui como uma
das subjetividades literárias perdidas
nas urbes. Geografia da cidade e
psiquê, espaço exterior e intimidade de
personagens geram medo,
insegurança e assombro, desafios e
equívocos ao psicanalista e ao
detetive da obra. Crimes
subjetividades
ambos relacionados
com traumas, desordens sociais,
impulsos, elementos inconscientes e
tantos outros fatores
como labirintos ou enigmas
impenetráveis nessa obra, pois o
buscas de reunir fragmentos e
estilhaços aparentemente desconexo
A descrença na reconstituição de
crimes
e de subjetividades revela
também descrenças na lógica, na
verdade,
na razão e na objetividade
“Relatos e travessias em Eliana
Alves Cruz”, de Maria Cristina Batalha
(2020), de início propõe tratar de
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
‘esquizofrênica’. É o que demonstra
Fernanda Mara de Almeida Azevedo
álise dos romances
(1996) e
Espinosa
(2006), nos quais o solitário
e pessimista protagonista Espinosa, ao
não encontrar respostas para seus
questionamentos, desconstrói a
imagem clássica de infalibilidade do
constitui como uma
das subjetividades literárias perdidas
nas urbes. Geografia da cidade e
psiquê, espaço exterior e intimidade de
personagens geram medo,
insegurança e assombro, desafios e
equívocos ao psicanalista e ao
detetive da obra. Crimes
e
ambos relacionados
com traumas, desordens sociais,
impulsos, elementos inconscientes e
mostram-se
como labirintos ou enigmas
impenetráveis nessa obra, pois o
buscas de reunir fragmentos e
estilhaços aparentemente desconexo
s.
A descrença na reconstituição de
e de subjetividades revela
também descrenças na lógica, na
na razão e na objetividade
.
“Relatos e travessias em Eliana
Alves Cruz”, de Maria Cristina Batalha
(2020), de início propõe tratar de
escritoras negras dos últimos anos,
no Brasil”, que “tomam a palavra para
revisitar a sua história, denunciar a
violência perpetrada pelo tráfico de
pessoas de um continente a outro e se
dedicam a contar a história da
escravidão e da resistência”. Para
Bat
alha, “este percurso de humilhação,
de sofrimento e luta torna
contrário, um motivo de orgulho, de
resgate de uma dívida social e de
retomada de seu lugar na História e na
sociedade brasileira”. Com esse mote,
o problema de quem não somente
escreveu
, mas também viveu na pele a
violência física e psicológica do
racismo, a escritora retoma questões
urgentes de nossa conteporaneidade,
quando a intolerância recrudesce e o
país aflorar com força pensamentos
que julgávamos inoculados.
do cais do
Valongo
romance de Eliane Cruz com que
Batalha (2020) dialoga, de forma a
bem apontar, na conclusão, que:
Ao exibir os traumas da escravidão
que ainda permeiam as relações
raciais e sociais no Brasil e, ao
alertar para os riscos da
naturalizaçã
o dessas relações de
desigualdade, autoras como Eliana
Alves Cruz procuram suscitar uma
reflexão sobre as origens da
discriminação e conscientizar o leitor
para os desafios e os problemas que
essas desigualdades engendram.
28
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
escritoras negras dos últimos anos,
no Brasil”, que “tomam a palavra para
revisitar a sua história, denunciar a
violência perpetrada pelo tráfico de
pessoas de um continente a outro e se
dedicam a contar a história da
escravidão e da resistência”. Para
alha, “este percurso de humilhação,
de sofrimento e luta torna
-se, ao
contrário, um motivo de orgulho, de
resgate de uma dívida social e de
retomada de seu lugar na História e na
sociedade brasileira”. Com esse mote,
o problema de quem não somente
, mas também viveu na pele a
violência física e psicológica do
racismo, a escritora retoma questões
urgentes de nossa conteporaneidade,
quando a intolerância recrudesce e o
país aflorar com força pensamentos
que julgávamos inoculados.
O crime
Valongo
(2018) é o
romance de Eliane Cruz com que
Batalha (2020) dialoga, de forma a
bem apontar, na conclusão, que:
Ao exibir os traumas da escravidão
que ainda permeiam as relações
raciais e sociais no Brasil e, ao
alertar para os riscos da
o dessas relações de
desigualdade, autoras como Eliana
Alves Cruz procuram suscitar uma
reflexão sobre as origens da
discriminação e conscientizar o leitor
para os desafios e os problemas que
essas desigualdades engendram.
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
Ainda sobre relações raciais,
sociais e também
pessoais,em diálogo
com a História, o estudioso Cláudio do
Carmo (2020) demonstra como tais
relações são assentadas no
dogmatismo de poder na ficção
narrativa de Rio Negro 50
carioca Nei Lopes. Ao abordar o
cotidiano das relaçõe
s, a obra literária
desconstrói o senso comum,
destacando a invisibilidade negra e a
violência simbólica presente no
imaginário brasileiro, além de outros
problemas do cotidiano carioca, como
a
falta d’água, a crescente especulão
imobilria, os trens qu
e são como
navios negreiros, o racismo etc
Carmo (2020) enfatiza como
Negro 50
resiste ao discurso dominante
que secundariza o negro, de modo que
a meria dos anos 1950 se atualiza e
acusa
uma violência secular contra o
negro, a qual justifica
a resisncia.
Saindo de cenários brasileiros
dos culos XX e XXI para cenários
europeus do culo XIX, mais
especificamente portugueses,
encontramos no romance
de Eça de Queirós, métodos
civilizatórios e imagens de sujeitos
ditos civilizados
que remetem mais à
barbárie, revelando uma relação
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Ainda sobre relações raciais,
pessoais,em diálogo
com a História, o estudioso Cláudio do
Carmo (2020) demonstra como tais
relações são assentadas no
dogmatismo de poder na ficção
, do escritor
carioca Nei Lopes. Ao abordar o
s, a obra literária
desconstrói o senso comum,
destacando a invisibilidade negra e a
violência simbólica presente no
imaginário brasileiro, além de outros
problemas do cotidiano carioca, como
falta d’água, a crescente especulão
e são como
navios negreiros, o racismo etc
. Enfim,
Carmo (2020) enfatiza como
Rio
resiste ao discurso dominante
que secundariza o negro, de modo que
a meria dos anos 1950 se atualiza e
uma violência secular contra o
a resisncia.
Saindo de cenários brasileiros
dos culos XX e XXI para cenários
europeus do culo XIX, mais
especificamente portugueses,
encontramos no romance
Os Maias,
de Eça de Queirós, métodos
civilizatórios e imagens de sujeitos
que remetem mais à
barbárie, revelando uma relação
paradoxal com as ideias de civilização
e civilidade, segundo Silvio Cesar dos
Santos Alves e Alan Diogo Capelari
(2020). Exemplos disso são os
frequentes duelos para resolver
contendas na obra, o desejo de
para se vingar de inimigos e calar
ofensas
crueldades comuns até o
século XIX e também prazerosas para
aqueles homens, segundo Nietz
(1998, p. 37)
ou os meios ardilosos
usados por Carlos para lidar com sua
relação incestuosa e com a descoberta
de uma nova herdeira para a fortuna
do avô, fatos que geram mal
partes envolvidas: Carlos, Maria
Eduarda, Dom Afonso, Ega etc. Além
dessas formas de violência, o
machismo e a hipocrisia em uma
sociedade com dificuldades para
reconhecer direitos à
coloca em situações de maior
vulnerabilidade, mas de modo que até
o homem pode sentir como violência
contra si a concessão de um direito à
mulher. É o caso
do direito de Maria
Eduarda (tratada como pária) passar a
partilhar com Carlos a heran
nome do aDom Afonso, que geram
mal-
estar, crises nos relacionamentos
entre as partes,um ressentimento
mútuo e aquela sensação de agressão
29
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
paradoxal com as ideias de civilização
e civilidade, segundo Silvio Cesar dos
Santos Alves e Alan Diogo Capelari
(2020). Exemplos disso são os
frequentes duelos para resolver
contendas na obra, o desejo de
matar
para se vingar de inimigos e calar
crueldades comuns até o
século XIX e também prazerosas para
aqueles homens, segundo Nietz
sche
ou os meios ardilosos
usados por Carlos para lidar com sua
relação incestuosa e com a descoberta
de uma nova herdeira para a fortuna
do avô, fatos que geram mal
-estar às
partes envolvidas: Carlos, Maria
Eduarda, Dom Afonso, Ega etc. Além
dessas formas de violência, o
machismo e a hipocrisia em uma
sociedade com dificuldades para
reconhecer direitos à
s mulheres as
coloca em situações de maior
vulnerabilidade, mas de modo que até
o homem pode sentir como violência
contra si a concessão de um direito à
do direito de Maria
Eduarda (tratada como pária) passar a
partilhar com Carlos a heran
ça e o
nome do aDom Afonso, que geram
estar, crises nos relacionamentos
entre as partes,um ressentimento
mútuo e aquela sensação de agressão
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
da consciência moral (FREUD, 2010,
p. 154), como demonstram Alves e
Capelari (2020).
Andreia Alves Montei
Castro (2020) mostra como
Castelo Branco
coteja crimes de
verdade e criminosos verídicos nas
obras
Maria, não me mates que sou
tua mãe (1848) e
Memórias do
Cárcere
(1862), nas quais
formas de violência são
praticadas por
aqueles que deveriam proteger os
cidadãos e em que vemos cadeias
habitadas majoritariamente por pobres,
reprimidos e disciplinados
cotidianamente na clausura. É o que
ocorre com José do Telhado,
prisioneiro depois bastante estudado e
ficcion
alizado após o relato de
Camilo.Nas obras, vemos
criminalizada a pobreza,
marginalizados e reprimidos os
pobres, muitas vezes desviados e
disciplinados a se manterem em áreas
periféricas
por serem incompatíveis
com os ideais civilizacionais burgueses
por
um lado, mas por outro também
indispensáveis como mão
quando/como convinha. O papel da
polícia, da cadeia e até dos hospitais
ganha destaque e truculência nesses
contextos, com vistas a conter
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
da consciência moral (FREUD, 2010,
p. 154), como demonstram Alves e
Andreia Alves Montei
ro de
Castro (2020) mostra como
Camilo
coteja crimes de
verdade e criminosos verídicos nas
Maria, não me mates que sou
Memórias do
(1862), nas quais
variadas
praticadas por
aqueles que deveriam proteger os
cidadãos e em que vemos cadeias
habitadas majoritariamente por pobres,
reprimidos e disciplinados
cotidianamente na clausura. É o que
ocorre com José do Telhado,
prisioneiro depois bastante estudado e
alizado após o relato de
Camilo.Nas obras, vemos
criminalizada a pobreza,
marginalizados e reprimidos os
pobres, muitas vezes desviados e
disciplinados a se manterem em áreas
por serem incompatíveis
com os ideais civilizacionais burgueses
um lado, mas por outro também
indispensáveis como mão
-de-obra
quando/como convinha. O papel da
polícia, da cadeia e até dos hospitais
ganha destaque e truculência nesses
contextos, com vistas a conter
revoltas, manter a propriedade e a
desigualdade social
ocultar, encarcerar e disciplinar ou
eliminar desvios e figuras desviantes.
Os sistemas jurídicos, políticos
científicos dividem o papel de
legitimar, organizar, diagnosticar e
disciplinar esses processos de
submissão, evitando os perigos
suplícios públicos espetaculares ou
martírios potencialmente engajadores
de massas descontentes, nos antigos
regimes, como mostra Foucault
(1987). Nesse contexto, até os meios
de comunicação desempenham seus
papeis na divulgação, legitimação
desses sist
emas de normas ao corpo
social e, consequentemente, na
disciplina e docilização
Saindo de cenários europeus
para uma
comunidade chicana no
Texas,
a partir d
penosas da protagonista latina sem
acesso à língua inglesa em “Woman
Hollering
Creek”, de Sandra Cisneros,
o pesquisador Heleno Álvares Bezerra
Júnior (2020) aborda a violência
doméstica contra a mulher e o
feminicídio na América Latina, mais
especificamente no México e no Brasil.
Cotejando a mítica figura de A
Chorona e o pape
l da telenovela como
30
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
revoltas, manter a propriedade e a
desigualdade social
; criminalizar,
ocultar, encarcerar e disciplinar ou
eliminar desvios e figuras desviantes.
Os sistemas jurídicos, políticos
e
científicos dividem o papel de
legitimar, organizar, diagnosticar e
disciplinar esses processos de
submissão, evitando os perigos
os
suplícios públicos espetaculares ou
martírios potencialmente engajadores
de massas descontentes, nos antigos
regimes, como mostra Foucault
(1987). Nesse contexto, até os meios
de comunicação desempenham seus
papeis na divulgação, legitimação
emas de normas ao corpo
social e, consequentemente, na
disciplina e docilização
dos corpos.
Saindo de cenários europeus
comunidade chicana no
a partir d
as experiências
penosas da protagonista latina sem
acesso à língua inglesa em “Woman
Creek”, de Sandra Cisneros,
o pesquisador Heleno Álvares Bezerra
Júnior (2020) aborda a violência
doméstica contra a mulher e o
feminicídio na América Latina, mais
especificamente no México e no Brasil.
Cotejando a mítica figura de A
l da telenovela como
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
elemento midiático propulsor para a
idealização do amor e o sonho de
prosperidade nos EUA (American
Dream),o estudioso demonstra como
busca do amor e de uma família
heteronormativa
domesticam
confinam a mulher, afastando
exper
iência profissional e acadêmica.
A partir de teorias feministas
coloniais, estuda outras formas de
violência sofridas pela mulher latina,
como a diáspora (que dificilmente
soluciona sua baixa qualidade de
vida), a marginalização de sua
identidade em
trânsito, a
intraduzibilidade linguístico
as dificuldades de
resistência cultural e
da
interculturalidade. Por outro lado,o
realismo mágico, o gótico pós
e a figura folclórica da chorona no
México podem funcionar ora como
ícone de resis
tência ora de
subserviência e sofrimento do corpo
feminino perpetuando estruturas de
sociedades patriarcais na América.
Dirigindo o olhar para cenários
centro-
americanos contemporâneos,
em
O Retrato da Violência no
Romance
Piedras Encantadas
de
Rodrigo Rey Rosa: Uma
Construção Estética”, Rodrigo de
Freitas Faqueri
(2020) aborda a
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
elemento midiático propulsor para a
idealização do amor e o sonho de
prosperidade nos EUA (American
Dream),o estudioso demonstra como
a
busca do amor e de uma família
domesticam
e
confinam a mulher, afastando
-a da
iência profissional e acadêmica.
A partir de teorias feministas
e pós-
coloniais, estuda outras formas de
violência sofridas pela mulher latina,
como a diáspora (que dificilmente
soluciona sua baixa qualidade de
vida), a marginalização de sua
trânsito, a
intraduzibilidade linguístico
-cultural e
resistência cultural e
interculturalidade. Por outro lado,o
realismo mágico, o gótico pós
-colonial
e a figura folclórica da chorona no
México podem funcionar ora como
tência ora de
subserviência e sofrimento do corpo
feminino perpetuando estruturas de
sociedades patriarcais na América.
Dirigindo o olhar para cenários
americanos contemporâneos,
O Retrato da Violência no
Piedras Encantadas
(2001),
Rodrigo Rey Rosa: Uma
Construção Estética”, Rodrigo de
(2020) aborda a
construção ficcional de uma
Guatemala como
terribilis
alicerçado na violência, que
assola todas as classes sociais, dos
lares abastados às ruas onde crianças
carentes
sofrem com a fome, o
abandono, as perseguições policiais e
a atuação de gangues. Presente em
vários elementos textuais e ficcionais,
a violência transparece em escolhas
lexicais, descrições de cenas e de
personagens, representações e
episódios histórico
s eleitos para o
diálogo, compondo um exemplar da
estética da violência, expressão de
uma cultura da violência, em que
imperam a
impunidade, o autoritarismo
e a militarização, gerando violência
institucional, um judiciário inoperante,
uma cultura do silênc
forense ineficiente,um poder executivo
repressor e a naturalização da
barbárie. Trata-
se de uma literatura
pós-
guerra produzida e lida
predominantemente por membros da
sociedade retratada, voltada para as
acusações sociais e a conscientizaçã
dos leitores sobre a violência estrutural
e cotidiana no país, mas que adota
uma estética avessa à obra puramente
testemunhal, com grande
experimentalismo estético.
31
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
construção ficcional de uma
Guatemala como
locus
alicerçado na violência, que
assola todas as classes sociais, dos
lares abastados às ruas onde crianças
sofrem com a fome, o
abandono, as perseguições policiais e
a atuação de gangues. Presente em
vários elementos textuais e ficcionais,
a violência transparece em escolhas
lexicais, descrições de cenas e de
personagens, representações e
s eleitos para o
diálogo, compondo um exemplar da
estética da violência, expressão de
uma cultura da violência, em que
impunidade, o autoritarismo
e a militarização, gerando violência
institucional, um judiciário inoperante,
uma cultura do silênc
io, um sistema
forense ineficiente,um poder executivo
repressor e a naturalização da
se de uma literatura
guerra produzida e lida
predominantemente por membros da
sociedade retratada, voltada para as
acusações sociais e a conscientizaçã
o
dos leitores sobre a violência estrutural
e cotidiana no país, mas que adota
uma estética avessa à obra puramente
testemunhal, com grande
experimentalismo estético.
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
Passando ao
Chile do
década de 1970
, a partir do livro
Amuleto”
de Roberto Bol
pesquisadoras
Norma Sueli de Araújo
Menezes e
Júlia Morena Silva da
Costa
(2020) analisam as memórias
sobre
o início da ditadura militar
empresarial no Chile e
tensões políticas na América Latina,
com destaque para os contextos
chileno e mexicano.
As estudiosas
demonstram como a narradora
autointitulada mãe da poesia mexicana
e dos poetas mexicanos ou,
metonimicamente, latino-
americanos
usa a trajetória de poetas na década
de 1970 para reiteradamente defender
a poesia e a preserva
memórias políticas
traumáticas latino
americanas, com destaque para o
Massacre de Tlatelolco
golpe militar chileno (1973). A
narradora e esses jovens poetas
defendem a liberdade, inclusive de
expressão e de criação poética; e
combatem a
opressão, inclusive de
modelos acadêmicos e discursos
históricos. Por isso desafiam o
discurso oficial, subvertem os cânones
e reescrevem os anais da História,
fixando memórias de barbaridades,
dando destaque a personagens
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Chile do
início da
, a partir do livro
de Roberto Bol
año, as
Norma Sueli de Araújo
Júlia Morena Silva da
(2020) analisam as memórias
o início da ditadura militar
-
empresarial no Chile e
sobre as
tensões políticas na América Latina,
com destaque para os contextos
As estudiosas
demonstram como a narradora
– poeta
autointitulada mãe da poesia mexicana
e dos poetas mexicanos ou,
americanos
usa a trajetória de poetas na década
de 1970 para reiteradamente defender
a poesia e a preserva
ção das
traumáticas latino
-
americanas, com destaque para o
(1968) e o
golpe militar chileno (1973). A
narradora e esses jovens poetas
defendem a liberdade, inclusive de
expressão e de criação poética; e
opressão, inclusive de
modelos acadêmicos e discursos
históricos. Por isso desafiam o
discurso oficial, subvertem os cânones
e reescrevem os anais da História,
fixando memórias de barbaridades,
dando destaque a personagens
marginalizados e visibilidade a
d
iscursos silenciados pela história ou
por regimes opressores, até para
tentar evitar que tais experiências se
repitam.
Tais eventos latino
americanos traumáticos que
reaparecem em discursos políticos
atuais, muitas vezes distorcidos,
demonstram que
as memó
esse período nem sempre fixaram as
atrocidades cometidas
militares por décadas.
Assim, o
debate sobre a
violência, seus mecanismos e
desdobramentos, finalidades e
consequências é imprescindível para
qualquer sociedade em qualquer
contexto histórico
julgamos ser especialmente relevante
na atual conjuntura brasileira, um
momento em que algumas
autoridades, ligadas a diferentes
poderes, vêm declarando admiração a
torturadores e ditadores, fazendo
apologia de aparatos rep
menosprezando mecanismos
democráticos de tomada de decisão e
convivência social.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Para uma crítica
da violência. In:
Escritos sobre mito e
32
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
marginalizados e visibilidade a
iscursos silenciados pela história ou
por regimes opressores, até para
tentar evitar que tais experiências se
Tais eventos latino
-
americanos traumáticos que
reaparecem em discursos políticos
atuais, muitas vezes distorcidos,
as memó
rias sobre
esse período nem sempre fixaram as
atrocidades cometidas
pelos governos
militares por décadas.
debate sobre a
violência, seus mecanismos e
desdobramentos, finalidades e
consequências é imprescindível para
qualquer sociedade em qualquer
-cultural, mas
julgamos ser especialmente relevante
na atual conjuntura brasileira, um
momento em que algumas
autoridades, ligadas a diferentes
poderes, vêm declarando admiração a
torturadores e ditadores, fazendo
apologia de aparatos rep
ressores e
menosprezando mecanismos
democráticos de tomada de decisão e
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Para uma crítica
Escritos sobre mito e
BRAEM, Eloisa P. C. A.;
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 18-33
, out. 2019 a março 2020.
linguagem
. São Paulo: Duas Cidades;
Editora 34, 2011. p. 121-
156.
DERRIDA, Jacques.
Fuerza de ley
“fundamento místico de la autoridade”.
Madrid: Editorial Tecnos, 1997.
FOUCAULT, Michel.
O corpo utópico;
As heterotopias
. São Paulo: n
Edições, 2013.
FOUCAULT, Michel.
Vigiar e Punir:
nascimento da prisão.
Petrópolis, RJ:
Vozes, 1987.
FREUD, Sigmund.
O mal
cultura
. Porto Alegre: L&PM, 2010.
KURY, Mário da Gama. Introdução. In:
SÓFOCLES.
A trilogia tebana
Rei, Édipo em Colono,
Antígona
de Janeiro: Zahar, 1990. p. 7
NIETZSCHE, Friedrich.
Genealogia da
moral
: uma polêmica. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
SÓFOCLES.
A trilogia tebana
Rei, Édipo em Colono,
Antígona
de Janeiro: Zahar, 1990.
OLIVEIRA, Paulo Cesar S. Representações da
violência na literatura: apontamentos para uma possível apresentação
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
. São Paulo: Duas Cidades;
156.
Fuerza de ley
: el
“fundamento místico de la autoridade”.
Madrid: Editorial Tecnos, 1997.
O corpo utópico;
. São Paulo: n
-1
Vigiar e Punir:
o
Petrópolis, RJ:
O mal
-estar na
. Porto Alegre: L&PM, 2010.
KURY, Mário da Gama. Introdução. In:
A trilogia tebana
: Édipo
Antígona
. Rio
de Janeiro: Zahar, 1990. p. 7
-16.
Genealogia da
: uma polêmica. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
A trilogia tebana
: Édipo
Antígona
. Rio
33
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
Da telenovela à realidade: violência contra mulher latina em “Woman hollering
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40246
Resumo:
Este artigo utiliza experiências penosas da protagonista de “Woman
mulher latina sem acesso à língua inglesa, vítima de violência doméstica em uma comunidade
chicana no Texas, literariamente comparada à mítica figura
reflexão sobre feminicídio na América Latina, mais especificamente no México e no Brasil. Assim
sendo, a leitura ressalta o papel da telenovela como elemento midiático propulsor para a idealização
do amor e o sonho de pros
peridade nos EUA (
amor e da família heteronormativa, relegam a mulher à domesticidade, afastando
intelectuais e do mercado de trabalho. Intensificando o olhar feminista sobre as peculiaridades da
mulher latina, o texto se volta para tópicos pertinentes à Teoria Pós
Feminismo Pós-
colonial, com destaque para a identidade marginalizada e em trânsito, resistência
cultural e interculturalidade, a intraduzibilidade linguístico
vistas para melhor qualidade de vida. Considerando que a representação do inverossímil também se
encontra no limiar do anglicismo e da hispanidade, o texto mostrará como leituras sobre o Fantástico,
o Realismo Mágic
o e o Gótico Pós
México como ícone de resistência, subserviência e sofrimento relegados
estruturas de sociedades patriarcais na América Latina.
Palavras-chave: Femi
nicídio; América Latina; Identidade em trânsito; Resistência cultural
colonialismo.
De la telenovela a la realidad: violencia contra la mujer latina en “El arroyo de la llorona
Sandra Cisneros
Resumen:
Este artículo utiliza experiencias dolorosas de la protagonista de “El Arroyo de La Llorona”
(una mujer latina sin acceso a la lengua inglesa, víctima de violencia doméstica en una comunidad
chicana de Texas y la cual es comparada literariamente a la mític
elucidación y punto de partida para una discusión sobre el feminicidio en Latinoamérica,
específicamente, en México y en Brasil.
1
Heleno Álvares Bezerra Júnior.
Rio de Janeiro.
Professor no Mestrado ProfEPT
Mesquita. E-
mail: heleno.junior@ifrj.edu.br
2
O conto foi traduzido para o espanhol, não para o português. Por isso, o título em língua portuguesa
permanece no original “Woman hollering creek”, enquanto a tradução p
tradução da obra como “El a
rroyo de La Llorona”.
Texto recebido em 30/12/20
19 e aceito para publicação em 09
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Da telenovela à realidade: violência contra mulher latina em “Woman hollering
creek” de Sandra Cisneros
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40246
Heleno Álvares Bezerra
Este artigo utiliza experiências penosas da protagonista de “Woman
hollering
mulher latina sem acesso à língua inglesa, vítima de violência doméstica em uma comunidade
chicana no Texas, literariamente comparada à mítica figura
de
A Chorona) como tropo para uma
reflexão sobre feminicídio na América Latina, mais especificamente no México e no Brasil. Assim
sendo, a leitura ressalta o papel da telenovela como elemento midiático propulsor para a idealização
peridade nos EUA (
American Dream
); valores estes que, em nome do
amor e da família heteronormativa, relegam a mulher à domesticidade, afastando
intelectuais e do mercado de trabalho. Intensificando o olhar feminista sobre as peculiaridades da
mulher latina, o texto se volta para tópicos pertinentes à Teoria Pós
-
colonial, e até mesmo o
colonial, com destaque para a identidade marginalizada e em trânsito, resistência
cultural e interculturalidade, a intraduzibilidade linguístico
-cu
ltural bem como a prática diaspórica com
vistas para melhor qualidade de vida. Considerando que a representação do inverossímil também se
encontra no limiar do anglicismo e da hispanidade, o texto mostrará como leituras sobre o Fantástico,
o e o Gótico Pós
-
colonial reforçam a adoção da figura folclórica da chorona no
México como ícone de resistência, subserviência e sofrimento relegados
ao corpo feminino graças às
estruturas de sociedades patriarcais na América Latina.
nicídio; América Latina; Identidade em trânsito; Resistência cultural
De la telenovela a la realidad: violencia contra la mujer latina en “El arroyo de la llorona
Este artículo utiliza experiencias dolorosas de la protagonista de “El Arroyo de La Llorona”
(una mujer latina sin acceso a la lengua inglesa, víctima de violencia doméstica en una comunidad
chicana de Texas y la cual es comparada literariamente a la mític
a figura de
elucidación y punto de partida para una discusión sobre el feminicidio en Latinoamérica,
específicamente, en México y en Brasil.
Así, la lectura resalta
el papel de la telenovela como el
Heleno Álvares Bezerra Júnior.
Doutor em Literatura Comparada pela
Universid
Professor no Mestrado ProfEPT
do
Instituto Federal do Rio de Janeiro,
mail: heleno.junior@ifrj.edu.br
- https://orcid.org/0000-0003-0275-
1994
O conto foi traduzido para o espanhol, não para o português. Por isso, o título em língua portuguesa
permanece no original “Woman hollering creek”, enquanto a tradução p
ara o espanhol faz jus a
rroyo de La Llorona”.
19 e aceito para publicação em 09
/01/2020.
34
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Da telenovela à realidade: violência contra mulher latina em “Woman hollering
Heleno Álvares Bezerra
Júnior
1
hollering
creek” (uma
mulher latina sem acesso à língua inglesa, vítima de violência doméstica em uma comunidade
A Chorona) como tropo para uma
reflexão sobre feminicídio na América Latina, mais especificamente no México e no Brasil. Assim
sendo, a leitura ressalta o papel da telenovela como elemento midiático propulsor para a idealização
); valores estes que, em nome do
amor e da família heteronormativa, relegam a mulher à domesticidade, afastando
-a de práticas
intelectuais e do mercado de trabalho. Intensificando o olhar feminista sobre as peculiaridades da
colonial, e até mesmo o
colonial, com destaque para a identidade marginalizada e em trânsito, resistência
ltural bem como a prática diaspórica com
vistas para melhor qualidade de vida. Considerando que a representação do inverossímil também se
encontra no limiar do anglicismo e da hispanidade, o texto mostrará como leituras sobre o Fantástico,
colonial reforçam a adoção da figura folclórica da chorona no
ao corpo feminino graças às
nicídio; América Latina; Identidade em trânsito; Resistência cultural
; Pós-
De la telenovela a la realidad: violencia contra la mujer latina en “El arroyo de la llorona
2
” de
Este artículo utiliza experiencias dolorosas de la protagonista de “El Arroyo de La Llorona”
(una mujer latina sin acceso a la lengua inglesa, víctima de violencia doméstica en una comunidad
a figura de
La Llorona) como
elucidación y punto de partida para una discusión sobre el feminicidio en Latinoamérica,
el papel de la telenovela como el
Universid
ade do Estado do
Instituto Federal do Rio de Janeiro,
Campus
1994
O conto foi traduzido para o espanhol, não para o português. Por isso, o título em língua portuguesa
ara o espanhol faz jus a
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
elemento mediático propagador de la
(American Dream
); valores que, en
a la
domesticidad, privándole de actividades
intensificar la mirada feminista sobre las especificidades de la
inherentes a la Teoría
Poscolonial, y también al Feminismo Poscolonial, en
identidad marginalizada y en
lingüístico-
cultural tan como la
Considerando que la
representación de lo inverosímil está también
anglicismo y la
hispanidad, el texto demostrará como las
Realismo Mágico y al Gótico Poscolonial
México, como icono de resistencia, la
debido a las
estructuras de las sociedades patriarcales de Latinoamérica.
Palabras clave
: Feminicidio; Latinoamérica; Identidad
Poscolonialismo.
From soap-
operas to reality: violence
“Woman hollering creek
Abstract:
In order to illustrate and prompt a discussion on feminicide in Latin America (highlighting
Mexico and Brazil), this article makes use of hideous events
“Woman hollering creek”’: a Latin American woman, ignorant of English language and victim of
domestic violence in a Texan Chicana Community,
Being so, the text highlights the role of Latin
concepts like “idealized love” and prosperity in the USA (
heteronormative family paradigm.
confined to
domesticity, being secluded from intellectual enterprises and from participating in the
marketplace. By intensifying the feminist perspective
peculiar to the Post-
colonial Theory, and Post
identities, cultural resistance, interculturality, linguistic and cultural untranslatability as well as the
diasporic practice for the sake of a better life will be stressed. Likewise, given that uneventful
representations of blurre
d borders between Englishness and Hispanicity are also at stake in the short
story, this analysis will show how strongly
colonial Gothicism point to a multicultural portrayal of the Latin
resistance, subservience and suffering thanks to Latin American patriarchal structures.
Keywords
: Feminicide; Latin America; Misplaced identit
Da telenovela à realidade: violência
O presente artigo objetiva
pontuar questões de violência contra a
mulher na América Latina, usando,
para tanto, nações como México e
Brasil como referências de análise.O
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
elemento mediático propagador de la
idealización del amor y de la
ilusión de prosperidad
); valores que, en
nombre del amor y de la familia hetero-
normativa,
domesticidad, privándole de actividades
intelectuales y apartándole
del mercado de
intensificar la mirada feminista sobre las especificidades de la
mujer latina, el texto converge tópicos
Poscolonial, y también al Feminismo Poscolonial, en
tránsito, resis
tencia cultural e interculturalidad, la
cultural tan como la
práctica
migratoria relacionada a una mejor
representación de lo inverosímil está también
ubicado
en
hispanidad, el texto demostrará como las
lecturas relacionadas al Fantástico, al
Realismo Mágico y al Gótico Poscolonial
enfatizan la adopción
del símbolo folclórico de la Llorona en
México, como icono de resistencia, la
sumisión y del padecimien
to sometidos al cuerpo
estructuras de las sociedades patriarcales de Latinoamérica.
: Feminicidio; Latinoamérica; Identidad
en
tránsito; Resistencia c
operas to reality: violence
against Latin-
American woman in Sandra Cisnero’s
In order to illustrate and prompt a discussion on feminicide in Latin America (highlighting
Mexico and Brazil), this article makes use of hideous events
experienced by the
“Woman hollering creek”’: a Latin American woman, ignorant of English language and victim of
domestic violence in a Texan Chicana Community,
who is literally compared to the mythic
Being so, the text highlights the role of Latin
-American soap-operas
of disseminating and perpetuating
concepts like “idealized love” and prosperity in the USA (
American Dream
heteronormative family paradigm.
Devoted to the ideal of perfect happy family, the Latin woman is
domesticity, being secluded from intellectual enterprises and from participating in the
marketplace. By intensifying the feminist perspective
on the Latin woman’s idiosyncrasies, topics
colonial Theory, and Post
-colonial Feminism like
misplaced and marginal
identities, cultural resistance, interculturality, linguistic and cultural untranslatability as well as the
diasporic practice for the sake of a better life will be stressed. Likewise, given that uneventful
d borders between Englishness and Hispanicity are also at stake in the short
story, this analysis will show how strongly
readings about
the Fantastic, Magic Realism
colonial Gothicism point to a multicultural portrayal of the Latin
-American holler
ing woman,
resistance, subservience and suffering thanks to Latin American patriarchal structures.
: Feminicide; Latin America; Misplaced identit
ies; Cultural resistance; Post
Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em “Woman hollering
creek” de Sandra Cisneros
O presente artigo objetiva
pontuar questões de violência contra a
mulher na América Latina, usando,
para tanto, nações como México e
Brasil como referências de análise.O
destaque para tais países se pelo
fato de ser México o país da
protagonista aqui an
embora parte da trama se passe nos
EUA, a narrativa abre em um vilarejo
35
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ilusión de prosperidad
en E.E.U.U.
normativa,
relega la mujer
del mercado de
trabajo. Por
mujer latina, el texto converge tópicos
Poscolonial, y también al Feminismo Poscolonial, en
el cual destaca la
tencia cultural e interculturalidad, la
intraducibilidad
migratoria relacionada a una mejor
calidad de vida.
en
la frontera entre el
lecturas relacionadas al Fantástico, al
del símbolo folclórico de la Llorona en
to sometidos al cuerpo
femenino,
tránsito; Resistencia c
ultural;
American woman in Sandra Cisnero’s
In order to illustrate and prompt a discussion on feminicide in Latin America (highlighting
experienced by the
protagonist of
“Woman hollering creek”’: a Latin American woman, ignorant of English language and victim of
who is literally compared to the mythic
La Llorona.
of disseminating and perpetuating
)
for the sake of a
Devoted to the ideal of perfect happy family, the Latin woman is
domesticity, being secluded from intellectual enterprises and from participating in the
on the Latin woman’s idiosyncrasies, topics
misplaced and marginal
identities, cultural resistance, interculturality, linguistic and cultural untranslatability as well as the
diasporic practice for the sake of a better life will be stressed. Likewise, given that uneventful
d borders between Englishness and Hispanicity are also at stake in the short
-
the Fantastic, Magic Realism
and Post-
ing woman,
an icon of
resistance, subservience and suffering thanks to Latin American patriarchal structures.
ies; Cultural resistance; Post
-Colonialism.
contra mulher latina em “Woman hollering
destaque para tais países se pelo
fato de ser México o país da
protagonista aqui an
alisada. Afinal
embora parte da trama se passe nos
EUA, a narrativa abre em um vilarejo
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
mexicano anônimo, e encerra com a
personagem a caminho do mesmo.
Além disso, estando nos EUA, a
personagem não teve contato com
universo anglófono, resistindo até
mesmo
os hábitos dos chicanos
a ênfase ao México. Quanto ao Brasil,
o mesmo foi escolhido por duas
razões: é nesse país que a presente
discussão está sendo gerada e,
infelizmente um lugar em que o
feminicídio cresce assustadoramente
devido à impunidade. P
ortanto, nada
mais pertinente que associar a tropo
literário
às realidades mexicana e
brasileira. E, ao entrelaçar cultura e
literatura, recorreremos ao conto
Woman hollering
creek” (1992),
também traduzido como “El Arroyo de
La Llorona” (1996) da escrito
chicana Sandra Cisneros, ao abordar
experiências de uma personagem
mexicana que, ludibriada pelos ideais
de amor romântico das telenovelas,
deixa sua terra para se casar com um
o chicano Juan Pedro, que a leva para
morar em sua comunidade ribeirinha
em
Seguín, Texas, estranhamente
3
Entende-
se por chicano(a) o(a)
estadunidense filho(a) de hispânico(a)s; sendo
hispânico(a) pessoa natural de países latino
americanos de língua espanhola (CÁLIZ
MONTORO, 2000, p 3).
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
mexicano anônimo, e encerra com a
personagem a caminho do mesmo.
Além disso, estando nos EUA, a
personagem não teve contato com
universo anglófono, resistindo até
os hábitos dos chicanos
3
. Daí
a ênfase ao México. Quanto ao Brasil,
o mesmo foi escolhido por duas
razões: é nesse país que a presente
discussão está sendo gerada e,
infelizmente um lugar em que o
feminicídio cresce assustadoramente
ortanto, nada
mais pertinente que associar a tropo
às realidades mexicana e
brasileira. E, ao entrelaçar cultura e
literatura, recorreremos ao conto
creek” (1992),
também traduzido como “El Arroyo de
La Llorona” (1996) da escrito
ra
chicana Sandra Cisneros, ao abordar
experiências de uma personagem
mexicana que, ludibriada pelos ideais
de amor romântico das telenovelas,
deixa sua terra para se casar com um
o chicano Juan Pedro, que a leva para
morar em sua comunidade ribeirinha
Seguín, Texas, estranhamente
se por chicano(a) o(a)
estadunidense filho(a) de hispânico(a)s; sendo
hispânico(a) pessoa natural de países latino
-
americanos de língua espanhola (CÁLIZ
-
conhecida como Woman
Creek. Deparando-
se coma frustrante
realidade mui aquém do
Dream
, Cleófilas, a protagonista torna
se uma identidade marginal, mesmo
habitando um local de hibridismo
cultural: espaço front
hispanidade e o anglicismo. Assim, ela
se mantém como uma identidade da
diferença, resistindo aos hábitos dos
chicanos no Texas. Posto que uma
série de questões alegóricas
justapõem Cleófilas a
La Gritona
), figura mítica bem
c
onhecida no folclore mexicano,
discutiremos uma série de conceitos
ligados a questões pós
diaspóricas a fim de compreendermos
quais os fatores e condições sociais
prendem a protagonista a um marido
que a agride fisicamente
mel. Em
última instância, o texto
retomará aspectos teóricos
apresentados nas páginas
introdutórias, mostrando o esforço de
instituições internacionais para
erradicar a cultura do feminicídio, e um
descumprimento legislativo
internacional no que tange à
preservaçã
o da integridade física da
mulher.
36
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
conhecida como Woman
Hollering
se coma frustrante
realidade mui aquém do
American
, Cleófilas, a protagonista torna
-
se uma identidade marginal, mesmo
habitando um local de hibridismo
cultural: espaço front
eiriço entre a
hispanidade e o anglicismo. Assim, ela
se mantém como uma identidade da
diferença, resistindo aos hábitos dos
chicanos no Texas. Posto que uma
série de questões alegóricas
justapõem Cleófilas a
La Llorona (ou
), figura mítica bem
-
onhecida no folclore mexicano,
discutiremos uma série de conceitos
ligados a questões pós
-coloniais e
diaspóricas a fim de compreendermos
quais os fatores e condições sociais
prendem a protagonista a um marido
que a agride fisicamente
na lua-de-
última instância, o texto
retomará aspectos teóricos
apresentados nas páginas
introdutórias, mostrando o esforço de
instituições internacionais para
erradicar a cultura do feminicídio, e um
descumprimento legislativo
internacional no que tange à
o da integridade física da
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
Notoriamente, a telenovela é
uma obra ficcional folhetinesca que,
atravessando o século XX, continua
firme como programação televisiva
latino-americana e
euroasiática. de
se considerar que, no circuito
internacional, são
famosas
brasileiras, mexicanas, argentinas,
portuguesas, turcas etc. Embora
algumas produções mais recentes no
Brasil e Argentina venham rompendo
com valores convencionais oriundos
de um senso-comum
baseado no
cristianismo e na construção da
tradicional família heterossexual
(ALMEIDA, 2007), grosso modo, a
trama
tradicional que agrada a grande
massa no Brasil e no México, por
exemplo, é pautada na preservação de
um etos cristalizado e naturalizado
na América Latina, presente em
valores cris
talizados expressos em
máximas que apregoam o amor
vitalício, monogâmico e
heteronormativo: padrão da família
tradicional
supracitada (CALAZANS,
2003). Espera-
se que o amor
moldes
conduza a mulher a um conto
de fadas, caso viva resignada às
imposições patriarcais
(MARQUES
RIBEIRO, 2014). Afinal, a mocinha
uma senhorita virtuosa, provada pelo
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Notoriamente, a telenovela é
uma obra ficcional folhetinesca que,
atravessando o século XX, continua
firme como programação televisiva
euroasiática. de
se considerar que, no circuito
famosas
novelas
brasileiras, mexicanas, argentinas,
portuguesas, turcas etc. Embora
algumas produções mais recentes no
Brasil e Argentina venham rompendo
com valores convencionais oriundos
baseado no
cristianismo e na construção da
tradicional família heterossexual
(ALMEIDA, 2007), grosso modo, a
tradicional que agrada a grande
massa no Brasil e no México, por
exemplo, é pautada na preservação de
um etos cristalizado e naturalizado
na América Latina, presente em
talizados expressos em
máximas que apregoam o amor
vitalício, monogâmico e
heteronormativo: padrão da família
supracitada (CALAZANS,
se que o amor
nestes
conduza a mulher a um conto
de fadas, caso viva resignada às
(MARQUES
;
RIBEIRO, 2014). Afinal, a mocinha
é
uma senhorita virtuosa, provada pelo
mal por permissão de forças divinas,
até que vença os desafios e nos
lembre de que o bem sem prevalece.
Até lá, ela passa por um rio de
lágrimas, mantendo-
se
incondicional ao herói com base na fé:
motivação e fórmula infalível
alcançar uma felicidade no porvir nos
braços de
homem rico galante,
romântico,protetor, porto seguro
emocional e financeiro da heroína.
perseguindo a lógica da r
materialista para a ‘boa menina’, é
possível afirmar, segundo Heloísa
Almeida (2007), que a telenovela
transforma “espectadores em
consumidores”
(p. 179). Com isso, o
herói bem-
sucedido não somente
vencerá terríveis obstáculos para
desposar a don
zela amada, mas
também a mimará com presentes
caríssimos, como prova de um grande
amor duradouro e insubstituível.
se no conto, Cleófilas, quando
solteira, sonhava com um amor
idealizado,
cantado em verso e prosa,
enfatizado nas telenovelas: “[That
of books and songs and
describe when one finds, finally, the
great love of one’s life and does
whatever once can, must do, at
whatever the cost.
o Nadie
37
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mal por permissão de forças divinas,
até que vença os desafios e nos
lembre de que o bem sem prevalece.
Até lá, ela passa por um rio de
se
devota ao amor
incondicional ao herói com base na fé:
motivação e fórmula infalível
para se
alcançar uma felicidade no porvir nos
homem rico galante,
romântico,protetor, porto seguro
emocional e financeiro da heroína.
E,
perseguindo a lógica da r
ecompensa
materialista para a ‘boa menina’, é
possível afirmar, segundo Heloísa
Almeida (2007), que a telenovela
transforma “espectadores em
(p. 179). Com isso, o
sucedido não somente
vencerá terríveis obstáculos para
zela amada, mas
também a mimará com presentes
caríssimos, como prova de um grande
amor duradouro e insubstituível.
Como
se no conto, Cleófilas, quando
solteira, sonhava com um amor
cantado em verso e prosa,
enfatizado nas telenovelas: “[That
] kind
of books and songs and
telenovelas
describe when one finds, finally, the
great love of one’s life and does
whatever once can, must do, at
o Nadie
. ‘Youor
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
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Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
No One
4
’”
(CISNEROS, 1992, p. 44).
No conto, o amor associado ao
consumismo e à aquisição de bens é
ainda evidente, quando a protagonista,
ao exibir o anel de noivado para
amiga,deseja que o objeto de
ostentação
provoque inveja nas jovens
do bairro: “Seguín,
Tejas
sterlingring
to it. The tinkle
She would get to
wear outfits like the
women on
the tele, like Lúcia Méndez.
And
wouldn’t Chela be
(CISNEROS, 1992, p. 45). Em outro
trecho, o pai de Cleófilas se gaba da
posição social de Juan Pedro: “He has
a very
important position in Seguín
with a beer company. Or
is it tires?” [...]
4
“[Esse] tipo de livros, músicas e novelas
descrevem que, quando finalm
encontra o grande amor da vida, você deve
esforçar-
se ao máximo e fazer o que estiver ao
a seu alcance a qualquer preço. ‘Você ou
ninguém’ –
título da atual novela predileta”.
Devido à constante mistura entre as línguas
inglesa e espanhola no cont
o, as citações
serão apresentadas na versão original com
tradução para o português em nota de rodapé.
Os demais cotejos teóricos em língua
estrangei
ra serão automaticamente vertidos
para o português também com tradução de
nossa autoria. Todos os grifos em
longo do artigo são originais.
5
“Seguín, Texas. Um belo anel de prata para
a ocasião. O tilintar do dinheiro. Ela usaria
roupas e adereços como as mulheres da
novela, como Lúcia Méndez. E Chela não
ficaria enciumada?” [tradução nossa; grifos
originais]
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
(CISNEROS, 1992, p. 44).
No conto, o amor associado ao
consumismo e à aquisição de bens é
ainda evidente, quando a protagonista,
ao exibir o anel de noivado para
amiga,deseja que o objeto de
provoque inveja nas jovens
Tejas
. A nice
to it. The tinkle
of Money.
wear outfits like the
the tele, like Lúcia Méndez.
jealous?
5
(CISNEROS, 1992, p. 45). Em outro
trecho, o pai de Cleófilas se gaba da
posição social de Juan Pedro: “He has
important position in Seguín
is it tires?” [...]
“[Esse] tipo de livros, músicas e novelas
descrevem que, quando finalm
ente se
encontra o grande amor da vida, você deve
se ao máximo e fazer o que estiver ao
a seu alcance a qualquer preço. ‘Você ou
título da atual novela predileta”.
Devido à constante mistura entre as línguas
o, as citações
serão apresentadas na versão original com
tradução para o português em nota de rodapé.
Os demais cotejos teóricos em língua
ra serão automaticamente vertidos
para o português também com tradução de
nossa autoria. Todos os grifos em
citações ao
“Seguín, Texas. Um belo anel de prata para
a ocasião. O tilintar do dinheiro. Ela usaria
roupas e adereços como as mulheres da
novela, como Lúcia Méndez. E Chela não
ficaria enciumada?” [tradução nossa; grifos
So they will get
married in spring. […]
Youk now new
lyweds. New paint
new furniture.
Why not?
it”
6
(CISNEROS, 1992, p. 45).
Segundo Janaína Calazans
(2003, p. 4
), “a incorporação de temas
e
personagens de contos de fadas em
novelas
é bastante evidente
especialmente pela incorporação de
arquétipos e pela seleção de tópicos
discursivos semelhantes”
o perfil de homem latino
embevecido de masculinidade tóxica,
algo
inerente ao etos de culturas
neolatinas, segundo o qual
autoridade
patriarcal e misógina
legitima a punição do corpo feminino.
Daí, a perpetuação de estruturas de
poder calçadas em uma
violência doméstica
que, com base no
controle e penalidad
(FOUCAULT, 1987, p. 43), torna
responsável pelo alarmante índice de
feminicídio.
No conto,logo após o
casamento, Juan Pedro passa a exibir
uma imagem opressora para com a
esposa que o descreve da seguinte
6
Ele tem um cargo muito importante em
Seguín em uma empresa de cerveja. Ou seria
de pneus? ”[...] Então, vão se casar na
primavera. [...] Você sabe como são recém
casados. Pintura nova e móveis novos. Por
que não? Ele pode bancar tudo isso ”
38
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
married in spring. […]
lyweds. New paint
and
Why not?
He can afford
(CISNEROS, 1992, p. 45).
Segundo Janaína Calazans
), “a incorporação de temas
personagens de contos de fadas em
é bastante evidente
[...],
especialmente pela incorporação de
arquétipos e pela seleção de tópicos
discursivos semelhantes”
. Entretanto,
o perfil de homem latino
-americano é
embevecido de masculinidade tóxica,
inerente ao etos de culturas
neolatinas, segundo o qual
a
patriarcal e misógina
legitima a punição do corpo feminino.
Daí, a perpetuação de estruturas de
poder calçadas em uma
cultura de
que, com base no
controle e penalidad
e do corpo
-se
responsável pelo alarmante índice de
No conto,logo após o
casamento, Juan Pedro passa a exibir
uma imagem opressora para com a
esposa que o descreve da seguinte
Ele tem um cargo muito importante em
Seguín em uma empresa de cerveja. Ou seria
de pneus? ”[...] Então, vão se casar na
primavera. [...] Você sabe como são recém
-
casados. Pintura nova e móveis novos. Por
que não? Ele pode bancar tudo isso ”
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
modo: “this man, this
father, this ri
this keeper, this
lord, this master, this
husband till
kingdom come
(CISNEROS, 1992, p. 49).
nas primeiras linhas do
conto, a narradora, ironicamente,
descreve a cena em que o pai de
Cleófilas, tal como um rei, dá a mão da
filha em casamento ao
superestimado
Juan Pedro como se o
príncipe encantado
fosse arrancar a
princesa de terras empoeiradas,
conduzindo-
a a um reino próspero com
estradas pavimentadas: “The day Don
Serafin
gave Juan Pedro Martinez
Sánchez permission
to take Cleófilas
Enriqueta De
León Hernández as his
bride […] several miles of
dirt
several miles of paved
[one], over one
border and beyond to
a town
lado
8
(CISNEROS, 1992, p. 43).
outro trecho, Cleófilas também é
descrita como uma princesa: “she
adm
itted she had been brought up a
7
“esse homem, esse pai, esse inimigo, esse
provedor, esse senhor, esse mestre, esse
marido até o fim dos tempos.
8
“O dia em que Don Serafin deu a Juan Pedro
Martinez Sánchez permissão para tomar
Cleófilas Enriqueta De
León Hernández como
esposa[…] e a faz
er atravessar vários
quilômetros de estrada de terra e vários
quilômetros de asfalto após a fronteira para
além de uma cidade do outro lado”
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
father, this ri
val,
lord, this master, this
kingdom come
7
nas primeiras linhas do
conto, a narradora, ironicamente,
descreve a cena em que o pai de
Cleófilas, tal como um rei, dá a mão da
superestimado
Juan Pedro como se o
suposto
fosse arrancar a
princesa de terras empoeiradas,
a a um reino próspero com
estradas pavimentadas: “The day Don
gave Juan Pedro Martinez
to take Cleófilas
León Hernández as his
dirt
road and
[one], over one
a town
en el otro
(CISNEROS, 1992, p. 43).
Em
outro trecho, Cleófilas também é
descrita como uma princesa: “she
itted she had been brought up a
“esse homem, esse pai, esse inimigo, esse
provedor, esse senhor, esse mestre, esse
“O dia em que Don Serafin deu a Juan Pedro
Martinez Sánchez permissão para tomar
León Hernández como
er atravessar vários
quilômetros de estrada de terra e vários
quilômetros de asfalto após a fronteira para
além de uma cidade do outro lado”
little leniently as an only daughter
consentida
, the
(CISNEROS, 1992, p. 47
mais tarde, Cleófilas é transportada
para uma terra idealizada em um carro
moderno, como se, partindo na
carruagem da
Cinderela, deixasse,
para trás, a pobreza: “They will marry
in spring when he
can take off work,
and then they
will drive off in his new
pick-up, did you
see it
1992, p. 45). Mal sabia ela que o
sonho de enriquecer nos EUA seria
uma cilada qu
e a manteria como ‘gata
borralheira’.Isso porque, em Seguín,
ela sequer teria um aparelho de
televisão. O marido-
que ela tivesse contato com o mundo
externo, lançando fora até mesmo os
livros de ficção romântica.
príncipe
encantado
transformou em
sapo:
always been husky, […] farts and
belches and snores as well as laughs
and kisses and holds me
9
“ela admitiu ter sido criada um pouco
desregrada como filha única
princesa”
10
“Eles se casarão na primavera, quando ele
puder tirar recesso no trabalho, e então
viajarão na nova camionete dele, você viu?”
11
“Ele não é muito alto, não se parece com os
homens nas novelas. Seu rosto ainda tinha
39
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
little leniently as an only daughter
la
, the
princess
9
(CISNEROS, 1992, p. 47
-8). Meses
mais tarde, Cleófilas é transportada
para uma terra idealizada em um carro
moderno, como se, partindo na
Cinderela, deixasse,
para trás, a pobreza: “They will marry
can take off work,
will drive off in his new
see it
10
?” (CISNEROS,
1992, p. 45). Mal sabia ela que o
sonho de enriquecer nos EUA seria
e a manteria como ‘gata
borralheira’.Isso porque, em Seguín,
ela sequer teria um aparelho de
dono não queria
que ela tivesse contato com o mundo
externo, lançando fora até mesmo os
livros de ficção romântica.
Assim, o
encantado
logo se
sapo:
Well, he’s
always been husky, […] farts and
belches and snores as well as laughs
and kisses and holds me
11
“ela admitiu ter sido criada um pouco
desregrada como filha única
a mimada, a
“Eles se casarão na primavera, quando ele
puder tirar recesso no trabalho, e então
viajarão na nova camionete dele, você viu?”
“Ele não é muito alto, não se parece com os
homens nas novelas. Seu rosto ainda tinha
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
(CISNEROS, 1992, p. 49). Pior
Juan Pedro
não é romântico: “[he]
doesn’t care at all for music and
telenovelas o
r romance or roses or the
moon floating pearly over the arroyo,
or by the bedroom window
(CISNEROS, 1992, p. 49).
American Dream
e o conto de fadas
logo desmoronaram.
financeiro Fact Tank
, com dados
estatísticos de Pew
Reserch Center
publicou em 11 de setembro de 2018
que os latinos, principalmente os
hispânicos são os que mais acreditam
no American Dream
(p. 1
contrapartida, a Gazeta digital
publicou,aos 19 de dezembro de 2019,
que 50% das prisões de brasileiros
nos Estados U
nidos estão associadas
à imigração ilegal (p. 1).
Em muitas famílias mexicanas e
brasileiras, sobretudo, de classes
menos favorecidas,
o homem
provedor e esposa,
do lar. E, pela
dependência econômica, inúmeras
cicatrizes de acne. Ele tem um pouco de
barriga [...]. Bem, sempre foi parrudo. Este
homem que peida, arrota e ronca, além de rir,
beijar e me abraçar”.
12
“[ele] não liga para música e telenovelas,
romance ou rosas ou a lua flutuando em tom
de pérola sobre o ribeiro, ou pela janela do
quarto”
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
(CISNEROS, 1992, p. 49). Pior
ainda,
não é romântico: “[he]
doesn’t care at all for music and
r romance or roses or the
moon floating pearly over the arroyo,
or by the bedroom window
12
Com isso, o
e o conto de fadas
O jornal
, com dados
Reserch Center
,
publicou em 11 de setembro de 2018
que os latinos, principalmente os
hispânicos são os que mais acreditam
(p. 1
-2). Em
contrapartida, a Gazeta digital
publicou,aos 19 de dezembro de 2019,
que 50% das prisões de brasileiros
nidos estão associadas
Em muitas famílias mexicanas e
brasileiras, sobretudo, de classes
o homem
é o
do lar. E, pela
dependência econômica, inúmeras
cicatrizes de acne. Ele tem um pouco de
barriga [...]. Bem, sempre foi parrudo. Este
homem que peida, arrota e ronca, além de rir,
“[ele] não liga para música e telenovelas,
romance ou rosas ou a lua flutuando em tom
de pérola sobre o ribeiro, ou pela janela do
mulheres se submetem a maus tratos,
especi
almente sendo mães. O ideal da
telenovela bem como discursos
religiosos fazem com que várias
dessas mulheres acreditam na
transformação de seus respectivos
companheiros por intermédio do amor.
Em nome da fé, esperam que um
milagre divino liberte os homens
instinto violento. Quanto a isso, o
Pastor
Renato Vargens (2017) admite
que, infelizmente, igrejas evangélicas
estão repletas de mulheres que
apanham dos maridos
90% de vítimas de violência familiar
que recorrem
a ONGs
(p. 1).
Com isso,muitas delas se
deixam dominar, vindo, às vezes, a
óbito, por não prestarem queixa contra
os agressores. Em função da
impunidade, o problema cresce
assustadoramente em países onde
práticas misóginas são naturalizadas.
No conto, Cleófilas, mesmo ch
tenta relevar os abusos por do
marido.Supostamente, seria uma
fase a ser vencida com amor. Até que,
com o passar do tempo, a situação
agrava-
se cada vez mais:
[W]hen it happened the first time,
when they were barely man and wife,
she had been so stunned, it left her
speechless, motionless, numb. She
had done nothing but reach up to the
40
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mulheres se submetem a maus tratos,
almente sendo mães. O ideal da
telenovela bem como discursos
religiosos fazem com que várias
dessas mulheres acreditam na
transformação de seus respectivos
companheiros por intermédio do amor.
Em nome da fé, esperam que um
milagre divino liberte os homens
do
instinto violento. Quanto a isso, o
Renato Vargens (2017) admite
que, infelizmente, igrejas evangélicas
estão repletas de mulheres que
apanham dos maridos
assim como
90% de vítimas de violência familiar
a ONGs
são religiosas
Com isso,muitas delas se
deixam dominar, vindo, às vezes, a
óbito, por não prestarem queixa contra
os agressores. Em função da
impunidade, o problema cresce
assustadoramente em países onde
práticas misóginas são naturalizadas.
No conto, Cleófilas, mesmo ch
ocada,
tenta relevar os abusos por do
marido.Supostamente, seria uma
fase a ser vencida com amor. Até que,
com o passar do tempo, a situação
se cada vez mais:
[W]hen it happened the first time,
when they were barely man and wife,
she had been so stunned, it left her
speechless, motionless, numb. She
had done nothing but reach up to the
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
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, out. 2019 a março 20
heat on her mouth and stare at the
blood on her hand, as if even then
she did
n’t understand.[…] The first
time she had been so surprised she
didn’t cry out or try to defend herself.
She had always said she would strike
back if a man, any man, were to
strike her. But when the moment
came, he slapped her once, and then
again, and aga
in; until the lip split
and bled an orchid of blood, she
didn’t fight back, she didn’t break into
tears, she
didn’t run away as she
imagined she might when she saw
such things in the
telenovelas
She could think of nothing to say,
said nothing”. Just stroked the dark
curls of the man who wept and would
weep like a child, his tears of
repentance and shame, this time and
each
13
(CISNEROS, 1992, p. 48
Em alusão a este trecho do
conto, Rafael Pérez-
Torres (2006)
afirma que “Cléófilas é convocada a
perpetrar o papel de mãe consoladora
e perdoadora para o marido” (PÉREZ
TORRES, 2006, p. 74), já que Juan
13
“[Quando] aconteceu pela primeira vez,
quando mal se tornaram marido e mulher, ela
ficou tão aturdida que ficou sem fala, imóvel,
dormente. Ela não fez nada além de elevar os
dedos até o canto quente da boca e encarar o
sangue na mão, como se, mesmo ass
entendesse. [...] Na primeira vez, ficou tão
surpresa que não chorou ou tentou se
defender. Ela sempre dizia que revidaria se
um homem, qualquer homem, a atacasse. Mas
quando chegou o momento, ele lhe deu um
tapa uma vez e depois outra e outra vez;
que o lábio se partiu e sangrou uma orquídea
de sangue, ela o revidou, não chorou, não
fugiu como imaginara, quando vira essas
coisas nas novelas [...] Não teve nada a dizer,
não disse nada . Apenas acariciou os cachos
escuros do homem que chorava e
como uma criança, suas lágrimas de
arrependimento e vergonha naquela ocasião e
em todas as demais”
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
heat on her mouth and stare at the
blood on her hand, as if even then
n’t understand.[…] The first
time she had been so surprised she
didn’t cry out or try to defend herself.
She had always said she would strike
back if a man, any man, were to
strike her. But when the moment
came, he slapped her once, and then
in; until the lip split
and bled an orchid of blood, she
didn’t fight back, she didn’t break into
didn’t run away as she
imagined she might when she saw
telenovelas
[…]
She could think of nothing to say,
said nothing”. Just stroked the dark
curls of the man who wept and would
weep like a child, his tears of
repentance and shame, this time and
(CISNEROS, 1992, p. 48
-9).
Em alusão a este trecho do
Torres (2006)
afirma que “Cléófilas é convocada a
perpetrar o papel de mãe consoladora
e perdoadora para o marido” (PÉREZ
-
TORRES, 2006, p. 74), já que Juan
“[Quando] aconteceu pela primeira vez,
quando mal se tornaram marido e mulher, ela
ficou tão aturdida que ficou sem fala, imóvel,
dormente. Ela não fez nada além de elevar os
dedos até o canto quente da boca e encarar o
sangue na mão, como se, mesmo ass
im,não
entendesse. [...] Na primeira vez, ficou tão
surpresa que não chorou ou tentou se
defender. Ela sempre dizia que revidaria se
um homem, qualquer homem, a atacasse. Mas
quando chegou o momento, ele lhe deu um
tapa uma vez e depois outra e outra vez;
até
que o lábio se partiu e sangrou uma orquídea
de sangue, ela o revidou, não chorou, não
fugiu como imaginara, quando vira essas
coisas nas novelas [...] Não teve nada a dizer,
não disse nada . Apenas acariciou os cachos
escuros do homem que chorava e
chorava
como uma criança, suas lágrimas de
arrependimento e vergonha naquela ocasião e
Pedro revertia a vitimização,
comportando-
se, nessas horas, como
um menino chorão.
casamento piorou: “Cleófilas
thought her life
would
that, like a
telenovela
episodes got sadder
there were
no commercials
for comic relief.
And no happy
insight
14
(CISNEROS, 1992, p. 52
Essa insistente projeção do cotidiano
na telenovela, segundo Samira
Campedelli (1985), justifica
“capacidade que a televisão tem de
absorver o real” (p.49). Afinal, a ficção
televisiva “faz que o telespectador
coexista c
om o acontecimento à
maneira do sonho” (CAMPEDELLI,
1992, p. 49). Com isso, o que se na
televisão “tende a ser percebido como
real
porque gera formas de
expressão que trabalham o sonho,
provocando inversão de valores,
acentuando outros, deformando ou
estabelecendo uma lógica possível na
realidade” (CAMPEDELLI, 1992, p. 49
50). Para Cleófilas, a projeção da vida
real na telenovela lhe trouxe
14
“Cleófilas imaginou que sua vida teria que
ser assim, como uma telenovela, que agora
os episódios ficaram cada vez mais tristes. E
não havia co
merciais entre eles para alívio
cômico. E nenhum final feliz à vista”.
41
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)
Pedro revertia a vitimização,
se, nessas horas, como
um menino chorão.
Com isso, o
casamento piorou: “Cleófilas
would
have to be like
telenovela
, only now the
and sadder. And
no commercials
in between
And no happy
ending
(CISNEROS, 1992, p. 52
-53).
Essa insistente projeção do cotidiano
na telenovela, segundo Samira
Campedelli (1985), justifica
-se pela
“capacidade que a televisão tem de
absorver o real” (p.49). Afinal, a ficção
televisiva “faz que o telespectador
om o acontecimento à
maneira do sonho” (CAMPEDELLI,
1992, p. 49). Com isso, o que se na
televisão “tende a ser percebido como
porque gera formas de
expressão que trabalham o sonho,
provocando inversão de valores,
acentuando outros, deformando ou
estabelecendo uma lógica possível na
realidade” (CAMPEDELLI, 1992, p. 49
-
50). Para Cleófilas, a projeção da vida
real na telenovela lhe trouxe
“Cleófilas imaginou que sua vida teria que
ser assim, como uma telenovela, que agora
os episódios ficaram cada vez mais tristes. E
merciais entre eles para alívio
cômico. E nenhum final feliz à vista”.
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
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, out. 2019 a março 20
frustrações;transformando-
paulatinamente em
La Llorona, à
medida que a violência transborda a
questão física
, toca em questões
emocionais, afetando a autoestima e o
senso de dignidade. É, em virtude do
desrespeito e rejeição do marido,
incompreensão e escárnio da
comunidade que a cerca, a
personagem é fadada à introspecção,
quase em isolamento social.E, aos
pouc
os, assume o papel da figura
folclórica que nome ao córrego:
Woman Hollering
Creek, uma tentativa
mal sucedida de dizer
La Llorona
língua inglesa de importância
metaficcional inestimável na
narrativa.Quanto ao mito, a própria
narrativa explica que o eco sibilante do
córrego na casa
faz com que Cleófilas
se atente para o fato de que
Llorona
a chama para junto de si: “The
stream [...], a thing
with a voice of its
own, all day and all night
high silver voice. Is it
La Llorona
weeping woman [...] who
drowned
own chidren?
15
(CISNEROS, 1992, p.
51). Por fim, vivendo em um vale de
15
O riacho, [...] uma coisa com voz própria,
chamando,o dia todo e a noite inteira, com sua
alta voz prateada. É La Llorona
, a mulher que
chora [...] que afogou seus próprios filhos?”
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
a
La Llorona, à
medida que a violência transborda a
, toca em questões
emocionais, afetando a autoestima e o
senso de dignidade. É, em virtude do
desrespeito e rejeição do marido,
incompreensão e escárnio da
comunidade que a cerca, a
personagem é fadada à introspecção,
quase em isolamento social.E, aos
os, assume o papel da figura
folclórica que nome ao córrego:
Creek, uma tentativa
La Llorona
em
língua inglesa de importância
metaficcional inestimável na
narrativa.Quanto ao mito, a própria
narrativa explica que o eco sibilante do
faz com que Cleófilas
se atente para o fato de que
La
a chama para junto de si: “The
with a voice of its
calling in its
La Llorona
, the
drowned
her
(CISNEROS, 1992, p.
51). Por fim, vivendo em um vale de
O riacho, [...] uma coisa com voz própria,
chamando,o dia todo e a noite inteira, com sua
, a mulher que
chora [...] que afogou seus próprios filhos?”
lágrimas entre duas vizinhas cu
nomes Dolores e Soledad tipificam
alegoricamente a dor e a solidão,
Cleófilas passa a entender
epifanicamente que o nome do
arroio,outrora incompreendido,refere
se à alma penada que mata os filhos e
a si mesma. De acordo com a lenda,
La Llorona
não era louca ou
assassina.Ela foge com os filhos da
violência de um marido truculento e,
então, quando prestes a ser alcançada
pelo algoz
na tentativa de fuga, entra
em pânico.Tomada por um impulso
protetor e irracional, lança os filhos no
rio para lhes
poupar sofrimento. No
âmago do desespero,mostra
arrependida do desatino
se joga nas águas, tanto para escapar
do feminicídio quanto para se juntar
aos filhos. Assim, de acordo com a
lenda, o fantasma materno ronda
margens de rios, rreg
lagoas, chorando e gritando, em busca
dos infantes jamais reencontrados.
Segundo Pérez-
Torres:
Na lenda, La Llorona é a mulher em
prantos que afogou seus próprios
filhos e agora se lamuria junto aos
corpos na água. [...] Neste momento,
subitame
nte percebemos que
Cleófilas, ao pensar neste script
violento, poderia estar cedendo
espaço para o desejo de matar a
prole que carrega consigo o nome do
marido. Por último, ela se recusa a
42
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
lágrimas entre duas vizinhas cu
jos
nomes Dolores e Soledad tipificam
alegoricamente a dor e a solidão,
Cleófilas passa a entender
epifanicamente que o nome do
arroio,outrora incompreendido,refere
-
se à alma penada que mata os filhos e
a si mesma. De acordo com a lenda,
não era louca ou
assassina.Ela foge com os filhos da
violência de um marido truculento e,
então, quando prestes a ser alcançada
na tentativa de fuga, entra
em pânico.Tomada por um impulso
protetor e irracional, lança os filhos no
poupar sofrimento. No
âmago do desespero,mostra
-se tão
arrependida do desatino
que, também
se joga nas águas, tanto para escapar
do feminicídio quanto para se juntar
aos filhos. Assim, de acordo com a
lenda, o fantasma materno ronda
margens de rios, rreg
os, lagos e
lagoas, chorando e gritando, em busca
dos infantes jamais reencontrados.
Torres:
Na lenda, La Llorona é a mulher em
prantos que afogou seus próprios
filhos e agora se lamuria junto aos
corpos na água. [...] Neste momento,
nte percebemos que
Cleófilas, ao pensar neste script
violento, poderia estar cedendo
espaço para o desejo de matar a
prole que carrega consigo o nome do
marido. Por último, ela se recusa a
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
encenar o papel de que
destrutivamente trai o amor materno.
Ao renu
nciar o papel prescrito
segundo a lenda, Cleófilas abre
novas searas no âmbito da
subjetividade de gênero (PÉREZ
TORRES, 2006, p. 75).
Tal renúncia ao status de
Llorona
é questionável, pois amar os
filhos não a faz deixar de sofrer, muito
menos de cho
rar calada. Por outro
lado, a identificação com a figura
lendária não afrouxa o instinto
materno. Além do mais,
tornar
Llorona
pode ser oximoricamente bom
e ruim.
Afinal, encarnar essa condição
de vítima
também significa incorporar
a figura de uma guerreira.
A dificuldade de convivência
com os chicanos afrontosos e
desprendimento afetivo em relação ao
marido fazem com que Cleófilas
resista ao hibridismo cultura entre a
hispanidade e o anglicismo, visto que,
apesar da prepotência da comunidade
local p
ara com ela, não são
suficientemente americanizados para a
sociedade mainstream
nos EUA. Com
dificuldade de adaptação,
não se adequa aos costumes do
vilarejo, visto que as mulheres a tratam
como primitiva e incivilizada. Como
afirma Homi Bhabha (
imaginário da distância social [...] dá
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
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, out. 2019 a março 20
20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
encenar o papel de que
destrutivamente trai o amor materno.
nciar o papel prescrito
segundo a lenda, Cleófilas abre
novas searas no âmbito da
subjetividade de gênero (PÉREZ
-
TORRES, 2006, p. 75).
Tal renúncia ao status de
La
é questionável, pois amar os
filhos não a faz deixar de sofrer, muito
rar calada. Por outro
lado, a identificação com a figura
lendária não afrouxa o instinto
tornar
-se La
pode ser oximoricamente bom
Afinal, encarnar essa condição
também significa incorporar
A dificuldade de convivência
com os chicanos afrontosos e
desprendimento afetivo em relação ao
marido fazem com que Cleófilas
resista ao hibridismo cultura entre a
hispanidade e o anglicismo, visto que,
apesar da prepotência da comunidade
ara com ela, não são
suficientemente americanizados para a
nos EUA. Com
dificuldade de adaptação,
Cleófilas
não se adequa aos costumes do
vilarejo, visto que as mulheres a tratam
como primitiva e incivilizada. Como
afirma Homi Bhabha (
2010), “O
imaginário da distância social [...] dá
relevo diferenças sociais, temporais,
que interrompem nossa noção
conspiratória de contemporaneidade
cultural” (p. 23). E, com o estigma de
latina rudimentar, a protagonista se
fecha ainda mais em seu casul
Neste conto de Sandra Cisneros, a
pré-
disposição a não acolher o Outro
nos EUA, faz da tradução cultural um
ato inatingível para Cleófilas, tornando
se, paradoxalmente, marca de
Alteridade. Paradoxalmente porque
esperamos que a tradução seja um
mecanis
mo transitivo, abrindo
possibilidades para que tanto o
anglicismo e a hispanidade sejam
sujeitos em diferentes contextos;
entretanto, o que se percebe no texto
é uma austera intransitividade nas
relações culturas
mexicana/estadunidense regida por
uma rela
ção de poder díspar, pesando
a favor do universo anglófono. Por fim,
se por um lado, o espaço hispânico
resiste à cultura hegemônica, por outro
lado, o
establishment
também declara repúdio aos
periféricos marginalizados. Com isso,
Cisneros cria
uma provocação,
visando a...
contestar as rei
supremacia cultural, quer sejam
compostas por nações
43
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
relevo diferenças sociais, temporais,
que interrompem nossa noção
conspiratória de contemporaneidade
cultural” (p. 23). E, com o estigma de
latina rudimentar, a protagonista se
fecha ainda mais em seu casul
o.
Neste conto de Sandra Cisneros, a
disposição a não acolher o Outro
nos EUA, faz da tradução cultural um
ato inatingível para Cleófilas, tornando
-
se, paradoxalmente, marca de
Alteridade. Paradoxalmente porque
esperamos que a tradução seja um
mo transitivo, abrindo
possibilidades para que tanto o
anglicismo e a hispanidade sejam
sujeitos em diferentes contextos;
entretanto, o que se percebe no texto
é uma austera intransitividade nas
relações culturas
mexicana/estadunidense regida por
ção de poder díspar, pesando
a favor do universo anglófono. Por fim,
se por um lado, o espaço hispânico
resiste à cultura hegemônica, por outro
establishment
anglicista
também declara repúdio aos
periféricos marginalizados. Com isso,
uma provocação,
contestar as rei
vindicações de
supremacia cultural, quer sejam
compostas por nações
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
metropolitanas pós
quer a favor de novas nações
periféricas independentes. O
marginal ou minoria não é espaço de
automarginali
zação celebratória e
utópica. É uma intervenção muito
mais substancial nas justificativas da
modernidade
homogeneidade, organicismo
cultural, o patriotismo exacerbado, o
passado distante, que racionalizam
as tendências normatizantes e
autoritá
rias em um entrelace de
culturas em nome de um interesse
nacional ou prerrogativa étnica
(BHABHA, 1995, p. 4).
Enquanto identidades em
trânsito, os chicanos procuram
engajar-
se num processo de tradução
cultural que, segundo Bhabha, pode
ser compreendida d
a seguinte
maneira:
A tradução é a natureza
performativa da comunicação cultural.
É antes a linguagem
(enunciação, posicionalidade) do que a
linguagem in situ (
énoncé
proposicionalidade). E o signo da
tradução conta, ou ‘canta’,
continuamente
os diferentes tempos e
espaços entre a autoridade cultural e
suas práticas performativas. O ‘tempo’
da tradução consiste naquele
movimento de significado, o princípio e
a prática de uma comunicação que [...]
‘põe o original em funcionamento para
descanonizá-
lo, dando
movimento de fragmentação, um
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
metropolitanas pós
-imperialistas,
quer a favor de novas nações
periféricas independentes. O
marginal ou minoria não é espaço de
zação celebratória e
utópica. É uma intervenção muito
mais substancial nas justificativas da
progresso,
homogeneidade, organicismo
cultural, o patriotismo exacerbado, o
passado distante, que racionalizam
as tendências normatizantes e
rias em um entrelace de
culturas em nome de um interesse
nacional ou prerrogativa étnica
Enquanto identidades em
trânsito, os chicanos procuram
se num processo de tradução
cultural que, segundo Bhabha, pode
a seguinte
A tradução é a natureza
performativa da comunicação cultural.
É antes a linguagem
in actu
(enunciação, posicionalidade) do que a
énoncé
, ou
proposicionalidade). E o signo da
tradução conta, ou ‘canta’,
os diferentes tempos e
espaços entre a autoridade cultural e
suas práticas performativas. O ‘tempo’
da tradução consiste naquele
movimento de significado, o princípio e
a prática de uma comunicação que [...]
‘põe o original em funcionamento para
lo, dando
-lhe o
movimento de fragmentação, um
perambular de errância, uma espécie
de exílio permanente. [...] A tradução
cultural dessacraliza as
pressuposições transparentes da
supremacia cultural e, nesse próprio
ato, exige uma especificidade
contextua
l, uma diferenciação histórica
no interior das posições minoritárias”
[ênfase original] (BHABHA, 2010, p.
313-4)
O próprio título do conto
evidencia a dificuldade da comunidade
de Seguín traduzir-
por completo. Isso porque os
habitantes do
vilarejo misturaram
sintaxe inglesa com a espanhola ao
dar nome ao riacho que banha a
aldeia. Por exemplo, no sintagma
nominal [woman
DESIGNATIVO
[creek]
NÚCLEO NOMINAL
analisarmos a posição dos elementos
internos ao aposto designativo
hollering’ [mulher chorona]
separadamente de ‘creek’, veremos
que os
componentes se encontram
invertidos em língua inglesa, que a
regra gramatical prevê que a
qualificação e a designação
antecedem o núcleo nominal
(substantivo). Por outro lado, o
‘woman
hollering’ está corretamente
posicionado em relação a ‘creek’
44
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
perambular de errância, uma espécie
de exílio permanente. [...] A tradução
cultural dessacraliza as
pressuposições transparentes da
supremacia cultural e, nesse próprio
ato, exige uma especificidade
l, uma diferenciação histórica
no interior das posições minoritárias”
[ênfase original] (BHABHA, 2010, p.
O próprio título do conto
evidencia a dificuldade da comunidade
se culturalmente
por completo. Isso porque os
vilarejo misturaram
sintaxe inglesa com a espanhola ao
dar nome ao riacho que banha a
aldeia. Por exemplo, no sintagma
hollering]
APOSTO
NÚCLEO NOMINAL
,se
analisarmos a posição dos elementos
internos ao aposto designativo
woman
hollering’ [mulher chorona]
separadamente de ‘creek’, veremos
componentes se encontram
invertidos em língua inglesa, que a
regra gramatical prevê que a
qualificação e a designação
antecedem o núcleo nominal
(substantivo). Por outro lado, o
aposto
hollering’ está corretamente
posicionado em relação a ‘creek’
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
[riacho]. Com isso, em vez de
‘Hollering Woman
Creek’, o vilarejo
passou a se chamar ‘Woman
Creek, provavelmente, por ser
Llorona
uma expressão culturalmente
relevante para os primeiros hispânicos
da região que, vivenciando um
hibridismo cultural, adotaram
vocábulos do inglês, porém
mantiveram a sintaxe espanhola em
mente. Estranho é que a geração de
hoje sequer reconhece que seus
a
ntepassados hispânicos/chicanos
nomearam o córrego ao misturar
inglês e espanhol:
La Gritona
. Such a funny
such a lovely arroyo
. But
they called the creek
that
the house. Though
no one
whether the woman
from anger or
pain, […] a name no
one from these
parts
little less
understood.
los
indios, quién sabe
the towns people
shrugged, because
it was of no concern to
this trickle of water
curious name
16
(CISNEROS, 1992,
p. 46)
16
“La Gritona. Um nome tão engraçado para
um córrego
mui adorável. Mas é assim que
eles chamavam o riacho que corria atrás da
casa. Embora ninguém pudesse dizer se a
mulher gritou de raiva ou dor, [...] um nome
que ninguém dessas partes questionou, muito
men
os compreendeu. É de uma época muito
antes dos índios, quem sabe, as pessoas da
cidade encolhiam os ombros, porque não
interessava às suas vidas como esse fio de
água recebeu esse curioso nome”.
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
[riacho]. Com isso, em vez de
Creek’, o vilarejo
passou a se chamar ‘Woman
Hollering
Creek, provavelmente, por ser
La
uma expressão culturalmente
relevante para os primeiros hispânicos
da região que, vivenciando um
hibridismo cultural, adotaram
vocábulos do inglês, porém
mantiveram a sintaxe espanhola em
mente. Estranho é que a geração de
hoje sequer reconhece que seus
ntepassados hispânicos/chicanos
nomearam o córrego ao misturar
. Such a funny
name for
. But
that’s what
that
ran behind
no one
could say
had hollered
pain, […] a name no
parts
questioned,
Pués allá de
indios, quién sabe
–whoknows,
shrugged, because
their lives how
received its
(CISNEROS, 1992,
“La Gritona. Um nome tão engraçado para
mui adorável. Mas é assim que
eles chamavam o riacho que corria atrás da
casa. Embora ninguém pudesse dizer se a
mulher gritou de raiva ou dor, [...] um nome
que ninguém dessas partes questionou, muito
os compreendeu. É de uma época muito
antes dos índios, quem sabe, as pessoas da
cidade encolhiam os ombros, porque não
interessava às suas vidas como esse fio de
água recebeu esse curioso nome”.
É claro que a expressão tem a
intenção de ser um trocadilho jocoso
em nome do hibridismo cultural;
porém, não necessariamente
compreensível para falantes de língua
inglesa em primeiro instante. Segundo
Susan Bassnett
(2005), “os trocadilhos
[...] só fazem sentido em uma certa
cultura” (p. 46); porém, no caso de
Woman hollering
creek”, o jogo de
palavras encontra-
se tanto em inglês
quanto espanhol, embora por
diferentes motivos. Sintaticamente, a
brincadeira lexical se
inglesa, mas, culturalmente, ela
acontece em língua espanhola.Aliás,
segundo Liliana Valenzuela, tradutora
do compêndio
Woman
(1996) para o espanhol, muitas
variáveis na relação inglês
em cada conto da coletânea. P
decidiu adotar o “Tex
falado no Texas, mesmo assim,
precisou considerar diferentes níveis
de anglicismo e hispanização
identificados nas narrativas:
Alguns dos contos usam o inglês
formal, outros, os modismos
estadunidenses, outros
espanhol do interior do México
vertido ao inglês, enquanto outros
inglês de fronteira generosamente
recheado de palavras e expressões
em espanhol. [...] A primeira questão
que tive de enfrentar ao traduzir era,
sim, usar o espanhol padrão, ou
45
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
É claro que a expressão tem a
intenção de ser um trocadilho jocoso
em nome do hibridismo cultural;
porém, não necessariamente
compreensível para falantes de língua
inglesa em primeiro instante. Segundo
(2005), “os trocadilhos
[...] só fazem sentido em uma certa
cultura” (p. 46); porém, no caso de
creek”, o jogo de
se tanto em inglês
quanto espanhol, embora por
diferentes motivos. Sintaticamente, a
brincadeira lexical se
na língua
inglesa, mas, culturalmente, ela
acontece em língua espanhola.Aliás,
segundo Liliana Valenzuela, tradutora
Woman
hollering creek
(1996) para o espanhol, muitas
variáveis na relação inglês
-espanhol
em cada conto da coletânea. P
or isso,
decidiu adotar o “Tex
-Mex”, espanhol
falado no Texas, mesmo assim,
precisou considerar diferentes níveis
de anglicismo e hispanização
identificados nas narrativas:
Alguns dos contos usam o inglês
formal, outros, os modismos
estadunidenses, outros
refletem o
espanhol do interior do México
vertido ao inglês, enquanto outros
inglês de fronteira generosamente
recheado de palavras e expressões
em espanhol. [...] A primeira questão
que tive de enfrentar ao traduzir era,
sim, usar o espanhol padrão, ou
o
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
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, out. 2019 a março 20
castelhano genérico, ou o espanhol
mexicano e, mais especificamente, o
Tex-
Mex, como é afetuosamente
conhecido na fronteira. o foi difícil
optar pelo último. E assim o digo
mas principalmente porque se
passam [majoritariamente] nos EUA
(VALENZUELA apud
CISNEROS, p.
187-188).
O problema da
interculturalidade é que a suposta
hibridização pode se dar a partir de
uma relação hegemônica, na qual uma
cultura se sobrepõe à outra por
questões político
-
internacionais. O maior exemplo de
hegemonia na
interculturalidade é a
prepotência do anglicismo para com
outras matrizes culturais. Nas palavras
de Sherry Simon (1996), a...
crescente voracidade do inglês de
assimilar todas as culturas, tornar
o único veículo de cosmopolitismo, é
reconhecida por certos acadêmicos
estadunidenses como uma ameaça à
diferença cultural [e] o hibridismo,
caro aos estudos culturais, uma vez
domina
do pelo anglicismo, alimenta
a devotada tradição monoglota nas
políticas de engenharia linguísticas
estadunidenses (SIMON, 1996, p.
154).
E é justamente a questão de
sentir-
se mais ‘americanizado’ o que
justifica o sentimento de superioridade
povo de Seg
uín para com Cleófilas,
criando uma tríplice estratificação
social; porque, enquanto a sociedade
anglófona estadunidense ignora
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
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20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
castelhano genérico, ou o espanhol
mexicano e, mais especificamente, o
Mex, como é afetuosamente
conhecido na fronteira. o foi difícil
optar pelo último. E assim o digo
mas principalmente porque se
passam [majoritariamente] nos EUA
CISNEROS, p.
O problema da
interculturalidade é que a suposta
hibridização pode se dar a partir de
uma relação hegemônica, na qual uma
cultura se sobrepõe à outra por
-
econômicas
internacionais. O maior exemplo de
interculturalidade é a
prepotência do anglicismo para com
outras matrizes culturais. Nas palavras
de Sherry Simon (1996), a...
crescente voracidade do inglês de
assimilar todas as culturas, tornar
-se
o único veículo de cosmopolitismo, é
reconhecida por certos acadêmicos
estadunidenses como uma ameaça à
diferença cultural [e] o hibridismo,
caro aos estudos culturais, uma vez
do pelo anglicismo, alimenta
a devotada tradição monoglota nas
políticas de engenharia linguísticas
estadunidenses (SIMON, 1996, p.
E é justamente a questão de
se mais ‘americanizado’ o que
justifica o sentimento de superioridade
uín para com Cleófilas,
criando uma tríplice estratificação
social; porque, enquanto a sociedade
anglófona estadunidense ignora
populações linguística e culturalmente
periféricas como a comunidade
chicana, esta, por sua vez,
reproduzindo o
modus operandi
opressor,
desdenha
mexicana, situada à parte do
Englishness
, ou seja, processo de
assimilação cultural anglicista
(SPIVAK, 1988, p. 77).O fato de certas
identidades, como Cleófilas, não
conseguirem desenvolver formas de
negociação cultural com n
e etos
demarca o que Homi Bhabha
denomina como intraduzibilidade
cultural:
A cultura migrante do ‘entrelugar’, a
posição minoritária, dramatiza a
atividade da intraduzibilidade da
cultura; ao fazê
questão da apropriação da cul
para além do sonho do
assimilacionista, ou do pesadelo
racista, de uma transmissão total do
conteúdo (BHABHA, 2010, p. 308).
Assim, a intraduzibilidade gera
um entrelugar, uma espécie de fissura
em comunidades culturalmente
híbrida. Isso porque, se,
comunidade chicana, por si só, já é
vista como espaço fronteiriço, o latino
americano nela inserido e uma vez
deslocado linguística e culturalmente,
passa a ocupar um espaço intersticial
de não pertencimento
[unbelongingness
], vivendo a con
46
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
populações linguística e culturalmente
periféricas como a comunidade
chicana, esta, por sua vez,
modus operandi
do
desdenha
a mulher
mexicana, situada à parte do
, ou seja, processo de
assimilação cultural anglicista
(SPIVAK, 1988, p. 77).O fato de certas
identidades, como Cleófilas, não
conseguirem desenvolver formas de
negociação cultural com n
ovos língua
demarca o que Homi Bhabha
denomina como intraduzibilidade
A cultura migrante do ‘entrelugar’, a
posição minoritária, dramatiza a
atividade da intraduzibilidade da
cultura; ao fazê
-lo, ela desloca a
questão da apropriação da cul
tura
para além do sonho do
assimilacionista, ou do pesadelo
racista, de uma transmissão total do
conteúdo (BHABHA, 2010, p. 308).
Assim, a intraduzibilidade gera
um entrelugar, uma espécie de fissura
em comunidades culturalmente
híbrida. Isso porque, se,
por um lado, a
comunidade chicana, por si só, já é
vista como espaço fronteiriço, o latino
-
americano nela inserido e uma vez
deslocado linguística e culturalmente,
passa a ocupar um espaço intersticial
de não pertencimento
], vivendo a con
dição
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contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
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de uma identidade situacional que, na
impossibilidade de tradução cultural,
encontra-
se fadada a uma
marginalização absoluta, face à
inadequação à comunidade
culturalmente e um total descompasso
para
com a sociedade do
establishment
. Ainda segundo Bh
Esses ‘entrelugares fornecem o
terreno para a elaboração de
estratégias de subjetivação
singular e coletiva
que dão início a
novos signos de identidade e postos
inovadores de colaboração e
contestação, no ato de definir a
própria ideia de socied
abrangência dos interstícios
sobreposição e o deslocamento de
domínios da diferença
experiências intersubjetivas [...] são
negociad[as] (2010, p. 20)
Mais adiante, o mesmo teórico
acrescenta:
É o que deve ser mapeado como um
novo e
spaço internacional de
realidades históricas descontínuas é,
na verdade, o problema de significar
as passagens intersticiais e os
processos de diferença cultural que
estão escritos no ‘entrelugar’, na
dissolução temporal que o texto
‘global’. É, ironicamen
te, o momento
ou mesmo movimento desintegrador
da enunciação
aquela disjunção
repentina no presente
possível a expressão do alcance
global da cultura. E, paradoxalmente,
é apenas através de uma estrutura
de cisão e deslocamento
descentra
mento fragmentado e
esquizofrênico do eu”
arquitetura do novo sujeito histórico
emerge nos próprios limites da
representação, para ‘permitir uma
representação situacional por parte
do indivíduo daquela totalidade mais
vista e irrepresentável, que
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
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20.
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de uma identidade situacional que, na
impossibilidade de tradução cultural,
se fadada a uma
marginalização absoluta, face à
inadequação à comunidade
culturalmente e um total descompasso
com a sociedade do
. Ainda segundo Bh
abha,
Esses ‘entrelugares fornecem o
terreno para a elaboração de
estratégias de subjetivação
que dão início a
novos signos de identidade e postos
inovadores de colaboração e
contestação, no ato de definir a
própria ideia de socied
ade. É na
abrangência dos interstícios
a
sobreposição e o deslocamento de
domínios da diferença
que as
experiências intersubjetivas [...] são
negociad[as] (2010, p. 20)
Mais adiante, o mesmo teórico
É o que deve ser mapeado como um
spaço internacional de
realidades históricas descontínuas é,
na verdade, o problema de significar
as passagens intersticiais e os
processos de diferença cultural que
estão escritos no ‘entrelugar’, na
dissolução temporal que o texto
te, o momento
ou mesmo movimento desintegrador
aquela disjunção
repentina no presente
que torna
possível a expressão do alcance
global da cultura. E, paradoxalmente,
é apenas através de uma estrutura
de cisão e deslocamento
‘o
mento fragmentado e
esquizofrênico do eu”
que a
arquitetura do novo sujeito histórico
emerge nos próprios limites da
representação, para ‘permitir uma
representação situacional por parte
do indivíduo daquela totalidade mais
vista e irrepresentável, que
é o
conjunto das estruturas da sociedade
como um todo (BHAHA, 2010, p.
298).
Cleófilas passa a operar em um
espaço intersticial subjacente às
fronteiras
do hibridismo a que resiste,
mostrando se inflexível ao
paradigmas político
socioeconômicos dos limiares
geográficos em que se encontra. Mais
do que isso, ao se identificar com
Llorona
, ela ativa uma estratégia de
subjetivação, constituindo uma
‘identidade da diferença’. (DERRIDA,
1995, p. 38).
Assim, Cleófilas
a alte
ridade na alteridade. E por
quê?Na condição de
La
se o‘Outro’, não pertencendo sequer
ao espaço de marginalização
vivem os chicanos em relação aos
caucasianos no Texas.Quanto a isso,
Homi Bhabha
afirma o seguinte:
O que está em ques
performativa das identidades
diferenciais: a regulação e
negociação daqueles espaços que
estão continuamente,
contingencialmente, se abrindo,
retraçando as fronteiras, expondo os
limites de qualquer alegação de um
signo singular ou autônomo
diferença
seja ele classe, gênero
ou raça. Tais atribuições de
diferenças sociais
não é nem o Um nem o Outro, mas
algo além, intervalar
sua agência em uma forma de um
futuro em que o passado não é
originário, em que o pr
simplesmente transitório. Trata
47
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
conjunto das estruturas da sociedade
como um todo (BHAHA, 2010, p.
Cleófilas passa a operar em um
espaço intersticial subjacente às
do hibridismo a que resiste,
mostrando se inflexível ao
mélange de
paradigmas político
-linguísticos e
socioeconômicos dos limiares
geográficos em que se encontra. Mais
do que isso, ao se identificar com
La
, ela ativa uma estratégia de
subjetivação, constituindo uma
‘identidade da diferença’. (DERRIDA,
Assim, Cleófilas
vivencia
ridade na alteridade. E por
La
Llonora, torna-
se o‘Outro’, não pertencendo sequer
ao espaço de marginalização
em que
vivem os chicanos em relação aos
caucasianos no Texas.Quanto a isso,
afirma o seguinte:
O que está em ques
o é a natureza
performativa das identidades
diferenciais: a regulação e
negociação daqueles espaços que
estão continuamente,
contingencialmente, se abrindo,
retraçando as fronteiras, expondo os
limites de qualquer alegação de um
signo singular ou autônomo
de
seja ele classe, gênero
ou raça. Tais atribuições de
diferenças sociais
– onde a diferença
não é nem o Um nem o Outro, mas
algo além, intervalar
encontram
sua agência em uma forma de um
futuro em que o passado não é
originário, em que o pr
esente não é
-se,
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se me permitem levar adiante o
argumento, de um futuro intersticial,
que emerge no entremeio entre as
exigências do passado e as
necessidades do presente (2010, p.
301).
Avessa à hierarquização de
estruturas linguístico-
socioculturais,
Sherry Simon apresenta, criticamente,
o anglicismo como ícone de
superioridade ocasionada por valores
defendidos pelo Neoimperialismo
estadunidense, que estipulam um
papel subalterno da mulher do terceiro
mundo, uma vez cercea
paradigmas anglófonos. Tal questão,
além de atingir, obviamente, a
comunidade chicana, afeta ainda mais
o universo latino-
americano de
Cleófilas. Avessa à questionável
supremacia estadunidense, Simon
pontua que o julgo de sistemas
anglicistas trazem
consigo o selo de
uma pretensa superioridade (1996, p.
145), gerando o que Thomas Bonnici
(1998) denomina de dupla colonização
da mulher.
No caso de Cleófilas, por
exemplo, a personagem sofre um
mecanismo de opressão patriarcal
representado pela figura d
Pedro e um segundo mecanismo de
opressão na comunidade chicana por
não estar habituada aos costumes dos
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20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
se me permitem levar adiante o
argumento, de um futuro intersticial,
que emerge no entremeio entre as
exigências do passado e as
necessidades do presente (2010, p.
Avessa à hierarquização de
socioculturais,
Sherry Simon apresenta, criticamente,
o anglicismo como ícone de
superioridade ocasionada por valores
defendidos pelo Neoimperialismo
estadunidense, que estipulam um
papel subalterno da mulher do terceiro
mundo, uma vez cercea
da por
paradigmas anglófonos. Tal questão,
além de atingir, obviamente, a
comunidade chicana, afeta ainda mais
americano de
Cleófilas. Avessa à questionável
supremacia estadunidense, Simon
pontua que o julgo de sistemas
consigo o selo de
uma pretensa superioridade (1996, p.
145), gerando o que Thomas Bonnici
(1998) denomina de dupla colonização
No caso de Cleófilas, por
exemplo, a personagem sofre um
mecanismo de opressão patriarcal
representado pela figura d
e Juan
Pedro e um segundo mecanismo de
opressão na comunidade chicana por
não estar habituada aos costumes dos
EUA. Assim sendo, para Bonnici,
Cleófilas vive uma ‘dupla
colonização’,pressionada por
patriarcado e dos reflexos da cultura
hegemônica
estadunidense nos
chicanos; d a dupla colonização
mesmo em tempos pós
Nas palavras de Bonnici,
uma estreita relação entre os
estudos pós-
coloniais e o feminismo.
Em primeiro lugar, uma analogia
entre patriarcalismo / feminismo e
metróp
ole / colônia ou colonizador /
colonizado. ‘Uma mulher da colônia
é uma metáfora da mulher como
colônia’ (Du Plessis, 1985). Em
segundo lugar, se o homem foi
colonizado, a mulher, nas
sociedades pós
duplamente colonizada. [...] Portanto,
o o
bjetivo dos discursos pós
coloniais e do feminismo é a
integração da mulher marginalizada
à sociedade. De modo semelhante
ao que aconteceu nas reflexões do
discurso pós-
colonial, no primeiro
17
Entende-
se como Teoria Pós
de Estudos Cult
urais que procura entender os
graus de dependência
culturais e financeiros
das antigas colônias
inglesas, marcado pel
o fim da era colonial
britânica em 1957
, marcada pela
independência da Índia. Nesse sentido, o
termo pós-
colonial, em primeira instância, não
diz respeito às colonizações espanholas,
portuguesas, francesas etc., porém, como as
questões teóricas se aplicam a outras
realidades, o Pós-
Colonialismo
mundial.
Ocorre que enquanto o Imperialismo
Britânico se enfraquecia, surgia uma outra
forma de imperialismo neocolonial, neoliberal
marcado pelo processo de Globalização
liderado pelos EUA.
Por isso, ao se referir à
questão patriarcal e à d
ominação cultural da
Globalização, Bonnici adota o termo dupla
colonização, referindo-
se à herança do
patriarcado e dominaç
ões
eurocêntrica
quanto estadunidense
48
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
EUA. Assim sendo, para Bonnici,
Cleófilas vive uma ‘dupla
colonização’,pressionada por
forças do
patriarcado e dos reflexos da cultura
estadunidense nos
chicanos; d a dupla colonização
mesmo em tempos pós
-coloniais
17
.
Nas palavras de Bonnici,
uma estreita relação entre os
coloniais e o feminismo.
Em primeiro lugar, uma analogia
entre patriarcalismo / feminismo e
ole / colônia ou colonizador /
colonizado. ‘Uma mulher da colônia
é uma metáfora da mulher como
colônia’ (Du Plessis, 1985). Em
segundo lugar, se o homem foi
colonizado, a mulher, nas
sociedades pós
-coloniais, foi
duplamente colonizada. [...] Portanto,
bjetivo dos discursos pós
-
coloniais e do feminismo é a
integração da mulher marginalizada
à sociedade. De modo semelhante
ao que aconteceu nas reflexões do
colonial, no primeiro
se como Teoria Pós
-colonial a área
urais que procura entender os
ou independência
das antigas colônias
o fim da era colonial
, marcada pela
independência da Índia. Nesse sentido, o
colonial, em primeira instância, não
diz respeito às colonizações espanholas,
portuguesas, francesas etc., porém, como as
questões teóricas se aplicam a outras
Colonialismo
ganhou lastro
Ocorre que enquanto o Imperialismo
Britânico se enfraquecia, surgia uma outra
forma de imperialismo neocolonial, neoliberal
marcado pelo processo de Globalização
Por isso, ao se referir à
ominação cultural da
Globalização, Bonnici adota o termo dupla
se à herança do
ões
culturais tanto
quanto estadunidense
.
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
período do discurso feminista, a
preocupação consistia na
substit
uição das estruturas de
dominação. [...] Nestes debates, o
feminismo trouxe à luz muitas
questões que o pós
havia deixado obscuras; outrossim, o
pós-
colonialismo ajudou o feminismo
a precaver-
se de pressupostos
ocidentais do discurso feminista
(BONNICI, 1998, p. 13)
O feminismo pós-
colonial nos
ajuda a perceber
que, em âmbito
internacional, casos de feminicídio são
mais recorrentes em países de terceiro
mundo. Não porque os países mais
sejam incivilizados, mas porque a
pressão internacional p
ara a resolução
de casos de violência contra mulheres,
negros e LGBTs é menor. Essa lógica
perversa sorrateiramente diminui a
dignidade do subalterno, como se a
mulher latino-
americana, por exemplo,
valesse menos que mulheres do
primeiro mundo. Além da que
racista subjacente, entra a questão do
sentimento de superioridade
econômica. A própria comunidade
chicana, sentindo-
se estadunidense,
não se importa com o sofrimento e o
silenciamento de Cleófilas, pois, além
de mulher, é latino
portanto,
inferior aos olhos dos que a
cercam, inclusive, na visão do
marido.Com isso, estabelece
dupla colonização, nos termos de
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
período do discurso feminista, a
preocupação consistia na
uição das estruturas de
dominação. [...] Nestes debates, o
feminismo trouxe à luz muitas
questões que o pós
-colonialismo
havia deixado obscuras; outrossim, o
colonialismo ajudou o feminismo
se de pressupostos
ocidentais do discurso feminista
(BONNICI, 1998, p. 13)
colonial nos
que, em âmbito
internacional, casos de feminicídio são
mais recorrentes em países de terceiro
mundo. Não porque os países mais
sejam incivilizados, mas porque a
ara a resolução
de casos de violência contra mulheres,
negros e LGBTs é menor. Essa lógica
perversa sorrateiramente diminui a
dignidade do subalterno, como se a
americana, por exemplo,
valesse menos que mulheres do
primeiro mundo. Além da que
stão
racista subjacente, entra a questão do
sentimento de superioridade
econômica. A própria comunidade
se estadunidense,
não se importa com o sofrimento e o
silenciamento de Cleófilas, pois, além
de mulher, é latino
-americana,
inferior aos olhos dos que a
cercam, inclusive, na visão do
marido.Com isso, estabelece
-se a
dupla colonização, nos termos de
Bonnici. Este aspecto do conto aponta
para o fato de que a mulher mexicana,
brasileira, por exemplo, sofre um
processo de desumani
estrangeiro. Pior ainda é pensar que,
mesmo em terra natal, esta mulher,
muitas vezes, hipersexualizada, é
usada como corpo desfrutável, porém
indigna de respeito. Na América
Latina, muitos homens espancam e
matam a mãe de seus filhos. Em caso
de
traição conjugal, o homem sente
no direito de fazê
procriador por natureza, contudo,
historicamente, a mulher latino
americana é assassinada por não se
manter casta.Em outros casos, são
mortas por desafiar os paradigmas
patriarcais. De v
olta ao universo
ficcional de Cisneros, vale ressaltar
que várias narrativas da autora
mostram a força da cultura de
feminicídio em comunidades chicanas,
como extensão das práticas latino
americanas. Nos contos e romances
da autora, os algozes se mantêm na
impunidade graças a uma dinâmica
operacionalde descumprimentos legais
protecionista de patriarcados. Com
isso, a impenitência se dá tanto em
espaços latino-
americanos, como
Brasil e México
quanto comunidades
49
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Bonnici. Este aspecto do conto aponta
para o fato de que a mulher mexicana,
brasileira, por exemplo, sofre um
processo de desumani
zação no
estrangeiro. Pior ainda é pensar que,
mesmo em terra natal, esta mulher,
muitas vezes, hipersexualizada, é
usada como corpo desfrutável, porém
indigna de respeito. Na América
Latina, muitos homens espancam e
matam a mãe de seus filhos. Em caso
traição conjugal, o homem sente
-se
no direito de fazê
-lo, julgando-se
procriador por natureza, contudo,
historicamente, a mulher latino
-
americana é assassinada por não se
manter casta.Em outros casos, são
mortas por desafiar os paradigmas
olta ao universo
ficcional de Cisneros, vale ressaltar
que várias narrativas da autora
mostram a força da cultura de
feminicídio em comunidades chicanas,
como extensão das práticas latino
-
americanas. Nos contos e romances
da autora, os algozes se mantêm na
impunidade graças a uma dinâmica
operacionalde descumprimentos legais
protecionista de patriarcados. Com
isso, a impenitência se dá tanto em
americanos, como
quanto comunidades
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
chicanas, geralmente concentradas no
Texas, Cal
ifórnia, Flórida e Chicago.
Em Woman
hollering
medida que Cleófilas toma consciência
de que ninguém a respeita em Seguín,
exceto Dolores e Soledad),
La Llorona
intenta secretamente
daquele espaço de opressão.Porém,
com uma criança
pequena, grávida de
um segundo bebê, desamparada em
uma terra remota, dependendo do
marido para sobreviver,ela não vê uma
solução para aquele tormento e,sem
apoio, perde sua voz. Aporque, em
Seguín,
“a ordem patriarcal não se
manifesta como condição id
mas se faz fisicamente presente por
meio da própria dinâmica de uma nova
cidade estranha” (PÉREZ
2006, p. 75). E por que estranha? De
acordo com a protagonista, o vilarejo
foi construído
distante de tudo para os
maridos isolarem as mulher
do mundo, sustentando a cultura do
feminicídio: “the
townshere are built
that you have to
depend
husbands
18
(CISNEROS, 1992, p. 50
51). Em outro trecho, afirma o mesmo
crítico que as “restrições econômicas e
18
“As cidades daqui são construídas para que
vocês
tenham que depender dos seu
maridos”
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
chicanas, geralmente concentradas no
ifórnia, Flórida e Chicago.
hollering
creek”, à
medida que Cleófilas toma consciência
de que ninguém a respeita em Seguín,
exceto Dolores e Soledad),
tal como
intenta secretamente
fugir
daquele espaço de opressão.Porém,
pequena, grávida de
um segundo bebê, desamparada em
uma terra remota, dependendo do
marido para sobreviver,ela não vê uma
solução para aquele tormento e,sem
apoio, perde sua voz. Aporque, em
“a ordem patriarcal não se
manifesta como condição id
eológica,
mas se faz fisicamente presente por
meio da própria dinâmica de uma nova
cidade estranha” (PÉREZ
-TORRES,
2006, p. 75). E por que estranha? De
acordo com a protagonista, o vilarejo
distante de tudo para os
maridos isolarem as mulher
es do resto
do mundo, sustentando a cultura do
townshere are built
so
depend
on your
(CISNEROS, 1992, p. 50
-
51). Em outro trecho, afirma o mesmo
crítico que as “restrições econômicas e
“As cidades daqui são construídas para que
tenham que depender dos seu
s
de gênero que lhe amarram
reforçadas pela geografia da cidade
cuja atividade social revolve em torno
de troca de bens e não de interação
humana. (PÉREZ-
TORRES, 2006, p.
75).
Contra o silenciamento do
sujeito em estruturas de opressão,
Gayatri
Spivak (1988) lança a segui
pergunta, indo de encontro ao ‘outro’,
ao não pertencente, ao sujeito
feminino sob a dupla colonização:
“pode o subalterno falar?”(p. 78) Pode
Cleófilas lutar contra o espancamento?
Pode ela escapar do feminicídio?
o silenciamento uma condição
ine
vitável para a doméstica latino
americana, financeiramente
dependente do marido, preocupada
com a provisão dos filhos e inibida por
um sistema neoimperialista cujas
condições de trabalho a mantêm
calada, principalmente por
desqualificação profissional ou p
falar inglês?
É fundamental considerar
que, além da agressão física contra a
mulher, a violência de ordem política e
socioeconômica
é o desrespeitosa
quanto o espancamento, à medida que
o sistema maltrata, aniquila e arranca
o senso de autoestima
sujeito. Como assevera Spivak,
50
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
de gênero que lhe amarram
a vida são
reforçadas pela geografia da cidade
cuja atividade social revolve em torno
de troca de bens e não de interação
TORRES, 2006, p.
Contra o silenciamento do
sujeito em estruturas de opressão,
Spivak (1988) lança a segui
nte
pergunta, indo de encontro ao ‘outro’,
ao não pertencente, ao sujeito
feminino sob a dupla colonização:
“pode o subalterno falar?”(p. 78) Pode
Cleófilas lutar contra o espancamento?
Pode ela escapar do feminicídio?
Será
o silenciamento uma condição
vitável para a doméstica latino
-
americana, financeiramente
dependente do marido, preocupada
com a provisão dos filhos e inibida por
um sistema neoimperialista cujas
condições de trabalho a mantêm
calada, principalmente por
desqualificação profissional ou p
or não
É fundamental considerar
que, além da agressão física contra a
mulher, a violência de ordem política e
é o desrespeitosa
quanto o espancamento, à medida que
o sistema maltrata, aniquila e arranca
o senso de autoestima
e dignidade do
sujeito. Como assevera Spivak,
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
“devido à violência de uma inscrição
disciplinar social, epistêmica e
imperialista em
um projeto conhecido
em termos essencialistas, a agressão
ao outro flui em uma radical prática
textual de diferenças” (SPIVA
p. 80). De acordo com Minh
No contexto da fala das mulheres, o
silêncio tem muitas faces. Tal como
o u das mulheres, pode ser
subversivo quando se liberta de um
contexto de ausência, falta e medo
voltado para o masculino
quanto territórios femininos. Por um
lado, encaramos o perigo de
inscrevermos a feminilidade como
ausência, como falta e como lacuna
ao rejeitar a importância do ato de
enunciação. Por outro lado,
compreendemos a necessidade de
posicionar as mulheres
negatividade e trabalharmos com
nuances sutis, por exemplo, em
nossa tentativa de subverter
sistemas de valores patriarcais. O
silêncio como um desejo a não ser
dito ou um desejo a ser desdito e tal
como uma língua autônoma muito
mal-explorada (MINH
-
416).
Se, por um lado, ser
significa incorporar a condição de
invisibilidade social de um fantasma;
por outro lado,
simbolicamente perigosa e atuar em
silêncio também pode configurar uma
estratégia de subversão à
colonização. Pegando o gancho da
cultura híbrida, a possibilidade de
diferentes tratamentos literários
aplicáveis à
manifestação do
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
“devido à violência de uma inscrição
disciplinar social, epistêmica e
um projeto conhecido
em termos essencialistas, a agressão
ao outro flui em uma radical prática
textual de diferenças” (SPIVA
K, 1988,
p. 80). De acordo com Minh
-Ha (1997),
No contexto da fala das mulheres, o
silêncio tem muitas faces. Tal como
o u das mulheres, pode ser
subversivo quando se liberta de um
contexto de ausência, falta e medo
voltado para o masculino
tanto
quanto territórios femininos. Por um
lado, encaramos o perigo de
inscrevermos a feminilidade como
ausência, como falta e como lacuna
ao rejeitar a importância do ato de
enunciação. Por outro lado,
compreendemos a necessidade de
posicionar as mulheres
no lado da
negatividade e trabalharmos com
nuances sutis, por exemplo, em
nossa tentativa de subverter
sistemas de valores patriarcais. O
silêncio como um desejo a não ser
dito ou um desejo a ser desdito e tal
como uma língua autônoma muito
-
HA, 1997, p.
Se, por um lado, ser
La Llorona
significa incorporar a condição de
invisibilidade social de um fantasma;
tornar-se
simbolicamente perigosa e atuar em
silêncio também pode configurar uma
estratégia de subversão à
dupla
colonização. Pegando o gancho da
cultura híbrida, a possibilidade de
diferentes tratamentos literários
manifestação do
inverossímil no conto apontam para o
fato de que La
Llorona
representação folclórica,constitui, por
si só, u
m corpus de análise
culturalmente híbrido. E por quê?
Embora o mito possua origem
hispânica, suplanta as fronteiras
nacionais que oficialmente dividem os
limites entre o espanhol e o inglês.
Tanto que, na narrativa em análise,o
córrego texano (de fato,
mundo real) chama
Hollering
Creek em decorrência
hibridismo cultural presente em
Seguín. Transcendendo a questão
toponímica discutida,
obra de Sandra Cisneros, figura como
um objeto de análise que mescla
tradições liter
árias de línguas
espanhola e inglesa com tamanha
complexidade, pois permite
detectarmos uma possível
superposição do Fantástico, do
Realismo Mágico e do Gótico Pós
colonial no tratamento da
inverossimilhança no texto, embora
tais conceitos possam ser
probl
ematizados de maneira autônoma
e autoexcludente.
Sabe-
se que o Fantástico
teoricamente discutido por Tzvetan
Todorov (1975), possui grande
51
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
inverossímil no conto apontam para o
Llorona
, enquanto
representação folclórica,constitui, por
m corpus de análise
culturalmente híbrido. E por quê?
Embora o mito possua origem
hispânica, suplanta as fronteiras
nacionais que oficialmente dividem os
limites entre o espanhol e o inglês.
Tanto que, na narrativa em análise,o
córrego texano (de fato,
existente no
mundo real) chama
-se Woman
Creek em decorrência
hibridismo cultural presente em
Seguín. Transcendendo a questão
toponímica discutida,
La Llorona, na
obra de Sandra Cisneros, figura como
um objeto de análise que mescla
árias de línguas
espanhola e inglesa com tamanha
complexidade, pois permite
detectarmos uma possível
superposição do Fantástico, do
Realismo Mágico e do Gótico Pós
-
colonial no tratamento da
inverossimilhança no texto, embora
tais conceitos possam ser
ematizados de maneira autônoma
se que o Fantástico
teoricamente discutido por Tzvetan
Todorov (1975), possui grande
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
expressividade no universo literário
hispânico, principalmente pelo fato de
o mestre do Fantástico Gabriel José
Garcia Marquez
ser mexicano. Para
Todorov, o confronto entre a
representação mimética da realidade
com a manifestação do inverossímil
constitui a base
teórica para
sobre tal subgênero literário. Segundo
Todorov, no texto fantástico,
apresenta-se “um fen
ômeno estranho
que se pode explicar de duas
maneiras, por meio de causas de tipo
natural e sobrenatural. A possibilidade
de se hesitar entre os dois criou o
efeito fantástico.” (TODOROV, 1975,
p. 31).
No conto de Cisneros, a
sugestão de que o fantasma cham
Cleófilas por meio do murmúrio das
águas pode ser lido como um traço do
fantástico na narrativa pois desafia a
lógica. Para além do Fantástico, é
possível perceber outro subgênero
literário, desta vez, presente tanto em
obras literárias hispânicas quanto
anglófonas: o Realismo Mágico.
Segundo Bill Ashcroft et alii (1998), o
universo caribenho, impregnado de
mesclagens culturais anglófonas,
francófonas e hispânicas cria o
Realismo Mágico como um tipo de
abordagem
folclórica, especificamente
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
expressividade no universo literário
hispânico, principalmente pelo fato de
o mestre do Fantástico Gabriel José
ser mexicano. Para
Todorov, o confronto entre a
representação mimética da realidade
com a manifestação do inverossímil
teórica para
estudos
sobre tal subgênero literário. Segundo
Todorov, no texto fantástico,
ômeno estranho
que se pode explicar de duas
maneiras, por meio de causas de tipo
natural e sobrenatural. A possibilidade
de se hesitar entre os dois criou o
efeito fantástico.” (TODOROV, 1975,
No conto de Cisneros, a
sugestão de que o fantasma cham
a
Cleófilas por meio do murmúrio das
águas pode ser lido como um traço do
fantástico na narrativa pois desafia a
lógica. Para além do Fantástico, é
possível perceber outro subgênero
literário, desta vez, presente tanto em
obras literárias hispânicas quanto
anglófonas: o Realismo Mágico.
Segundo Bill Ashcroft et alii (1998), o
universo caribenho, impregnado de
mesclagens culturais anglófonas,
francófonas e hispânicas cria o
Realismo Mágico como um tipo de
folclórica, especificamente
voltada para a
representação da
resistência política do colonizado
contra o colonizador.Portanto, pensar
La Llorona
como a mulher que
assombra o sistema patriarcal e
prepotência estadunidense é
potencialmente subversivo. Afinal,
como explicam Ashcroft
p. 132-133),
voltadas para a realidade peculiar do
colonizado, tradições míticas e
mágicas eram a característica
distintiva de culturas locais e
nacionais [no Caribe],
formas coletivas pelas quais o
colonizado expressava
identidade e articula
para com dominantes opressores
raciais e coloniais.
Ainda segundo Homi Bhabha, “o
Realismo Mágico, após a grande
explosão latino-
americana, torna
linguagem literária do mundo pós
colonial emergente. Em meio a estas
imagens
exorbitantes da nação
espaço em sua dimensão
transnacional” (BHABHA, 1995, p. 7).
Intensificando ainda mais esta relação
crescente entre a representação
política do inverossímil, falemos sobre
o Gótico Pós-
colonial. Multifacetada, e
apresentando variantes
expressivas desde o século XVIII, a
tradição gótica, marca preponderante
das literaturas anglófonas, vem
52
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
representação da
resistência política do colonizado
contra o colonizador.Portanto, pensar
como a mulher que
assombra o sistema patriarcal e
a
prepotência estadunidense é
potencialmente subversivo. Afinal,
como explicam Ashcroft
et alii (1988,
voltadas para a realidade peculiar do
colonizado, tradições míticas e
mágicas eram a característica
distintiva de culturas locais e
nacionais [no Caribe],
[sendo] as
formas coletivas pelas quais o
colonizado expressava
sua
identidade e articula
va sua diferença
para com dominantes opressores
raciais e coloniais.
Ainda segundo Homi Bhabha, “o
Realismo Mágico, após a grande
americana, torna
-se a
linguagem literária do mundo pós
-
colonial emergente. Em meio a estas
exorbitantes da nação
-
espaço em sua dimensão
transnacional” (BHABHA, 1995, p. 7).
Intensificando ainda mais esta relação
crescente entre a representação
política do inverossímil, falemos sobre
colonial. Multifacetada, e
apresentando variantes
bem
expressivas desde o século XVIII, a
tradição gótica, marca preponderante
das literaturas anglófonas, vem
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
passando a representar a colonização
britânica e suas consequências no
pós-
colonial como um espectro que
psicanaliticamente assombra o sujeito
colo
nizado desde o segundo meado
do culo XX.Com escopo maior, o
Gótico Pós-
colonial engloba o
Realismo Mágico em narrativas de
língua inglesa, justamente por abraçar
temáticas mais recentes, como
questões diaspóricas, a pobreza,
miséria de povos cultural e
e
conomicamente de países anglófonos
como EUA, Canadá e o Reino Unido,
sem, contudo, desprezar as questões
coloniais. Nas palavras de Julie H.
Azzam (2007),
A ficção gótica pós-
colonial surge em
resposta a certas condições sociais,
históricas ou políticas. A
colonial adapta uma forma narrativa
britânica altamente sintonizada com
a distinção e colapso entre o lar e
não o lar, o familiar e o estrangeiro.
O surgimento do gótico na ficção
pós-
colonial parece uma resposta ao
fracasso da política naciona
pelas divisões sectária, de gênero,
de classe e de casta. O gótico pós
colonial é uma maneira pela qual a
literatura pode responder às
crescentes questões problemáticas
do “terreno doméstico pós
questões relativas a origens
legítimas;
habitantes legítimos;
usurpação e ocupação; e a nostalgia
por uma política nacionalista
impossível são entendidas no gótico
pós-
colonial como perguntas
nacionais que são feitas no cotidiano
doméstico. [...] Em segundo lugar, o
gótico pós-
colonial está int
na representação do estranhamento
do lar, tanto como moradia quanto
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
passando a representar a colonização
britânica e suas consequências no
colonial como um espectro que
psicanaliticamente assombra o sujeito
nizado desde o segundo meado
do culo XX.Com escopo maior, o
colonial engloba o
Realismo Mágico em narrativas de
língua inglesa, justamente por abraçar
temáticas mais recentes, como
questões diaspóricas, a pobreza,
miséria de povos cultural e
conomicamente de países anglófonos
como EUA, Canadá e o Reino Unido,
sem, contudo, desprezar as questões
coloniais. Nas palavras de Julie H.
colonial surge em
resposta a certas condições sociais,
históricas ou políticas. A
ficção pós-
colonial adapta uma forma narrativa
britânica altamente sintonizada com
a distinção e colapso entre o lar e
não o lar, o familiar e o estrangeiro.
O surgimento do gótico na ficção
colonial parece uma resposta ao
fracasso da política naciona
l dividida
pelas divisões sectária, de gênero,
de classe e de casta. O gótico pós
-
colonial é uma maneira pela qual a
literatura pode responder às
crescentes questões problemáticas
do “terreno doméstico pós
-colonial”:
questões relativas a origens
habitantes legítimos;
usurpação e ocupação; e a nostalgia
por uma política nacionalista
impossível são entendidas no gótico
colonial como perguntas
nacionais que são feitas no cotidiano
doméstico. [...] Em segundo lugar, o
colonial está int
eressado
na representação do estranhamento
do lar, tanto como moradia quanto
como nação. Se o colonialismo criou
um espaço "lar longe de casa" e
metaforizou essa divisão espacial da
psicanálise através do
relacionamento do familiar com o
não familiar, entã
do gótico pós-
colonial está revelando
que, por trás da construção de uma
idealização do lar, existe algo
fundamentalmente desagradável. Em
terceiro plano, o gótico pós
emprega uma sensibilidade histórica
gótica, ou um senso de ‘p
no presente. Quarto, se o gótico é o
modo narrativo pelo qual a Grã
Bretanha se assustou com a
degeneração cultural, a perda de
pureza racial ou cultural, o outro
racial, a subversão sexual e a
ameaça de que a usurpação e a
violência da era colo
dia "retornar". O gótico pós
emprega o gótico como um modo de
se assustar com imagens de
mulheres transgressoras que
ameaçam expor o ventre sombrio de
seus próprios contextos históricos e
políticos (AZZAM, 2007, p. 1
E é justa
de uma mulher assustadora, resistente
a culturas de colonização que Sandra
Cisneros evoca ambiguamente em
Woman hollering
creek”; pois, se por
um lado,
originalmente,constitui um símbolo de
rebeldia ao controle patriarcal,por
ou
tro lado, ela representa as inúmeras
vítimas ceifadas pelo feminicídio na
América Latina. Para além disso, uma
vez situada nos EUA,
mostra
marginalizado, porém,
enquanto não pertencente e identidade
da diferença,
figura como símbolo
53
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
como nação. Se o colonialismo criou
um espaço "lar longe de casa" e
metaforizou essa divisão espacial da
psicanálise através do
relacionamento do familiar com o
não familiar, entã
o parte da agenda
colonial está revelando
que, por trás da construção de uma
idealização do lar, existe algo
fundamentalmente desagradável. Em
terceiro plano, o gótico pós
-colonial
emprega uma sensibilidade histórica
gótica, ou um senso de ‘p
assadismo’
no presente. Quarto, se o gótico é o
modo narrativo pelo qual a Grã
-
Bretanha se assustou com a
degeneração cultural, a perda de
pureza racial ou cultural, o outro
racial, a subversão sexual e a
ameaça de que a usurpação e a
violência da era colo
nial possam um
dia "retornar". O gótico pós
-colonial
emprega o gótico como um modo de
se assustar com imagens de
mulheres transgressoras que
ameaçam expor o ventre sombrio de
seus próprios contextos históricos e
políticos (AZZAM, 2007, p. 1
-2).
E é justa
mente a imagem
de uma mulher assustadora, resistente
a culturas de colonização que Sandra
Cisneros evoca ambiguamente em
creek”; pois, se por
La Llorona,
originalmente,constitui um símbolo de
rebeldia ao controle patriarcal,por
tro lado, ela representa as inúmeras
vítimas ceifadas pelo feminicídio na
América Latina. Para além disso, uma
vez situada nos EUA,
La Llorona se
marginalizado, porém,
enquanto não pertencente e identidade
figura como símbolo
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
resistênci
a às práticas de dominação
culturais e socioeconômicas
estadunidenses. Daí, a ambivalênc
da representação folclórica:
é a mulher que retorna para se vingar
da cultura de feminicídio, voltar para
assombrar os homens. Ela é a
representação do su
balterno, gritando
e chorando contra a violência
doméstica desencadeada por
mecanismos de opressão social.
Voltando ao impasse de
Cleófilas, em meio a tanto dissabor, de
repente, surge um facho de esperança
para a protagonista. Prestes a ser mãe
segunda ve
z, ela convence o marido a
deixá-
la ter uma consulta média e
levar o filho Juan Pedrito consigo. A
partir daí, ela se depara com outras
duas figuras alegóricas. Primeiro, com
a
médica Graciela (símbolo da graça,
riso), depois,
Felice (representação da
felicidade). No consultório
de Graciela,
Cleófilas descobre que outras
mexicanas iludidas são levadas para
Seguín para se tornarem escravas
domésticas. Ao mesmo tempo,
descobre que a médica está pronta a
ajudá-
la a regressar à família no
México. Enquanto Graci
ela conversa
com Felice ao telefone, ouvimos o
seguinte: “Felice! This
poor
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
a às práticas de dominação
culturais e socioeconômicas
estadunidenses. Daí, a ambivalênc
ia
da representação folclórica:
La Llorona
é a mulher que retorna para se vingar
da cultura de feminicídio, voltar para
assombrar os homens. Ela é a
balterno, gritando
e chorando contra a violência
doméstica desencadeada por
mecanismos de opressão social.
Voltando ao impasse de
Cleófilas, em meio a tanto dissabor, de
repente, surge um facho de esperança
para a protagonista. Prestes a ser mãe
z, ela convence o marido a
la ter uma consulta média e
levar o filho Juan Pedrito consigo. A
partir daí, ela se depara com outras
duas figuras alegóricas. Primeiro, com
médica Graciela (símbolo da graça,
Felice (representação da
de Graciela,
Cleófilas descobre que outras
mexicanas iludidas são levadas para
Seguín para se tornarem escravas
domésticas. Ao mesmo tempo,
descobre que a médica está pronta a
la a regressar à família no
ela conversa
com Felice ao telefone, ouvimos o
poor
lady’s got
black-and-
blue marks
kidding! [...] Another
brides from across
the
family’s
all in Mexico. [...] This lady
doesn’t even
speak
hasn’t been allowed to call home or
write or nothing
19
(CISNEROS, 1992,
p. 51).
E para convencer Felice a
transportar mãe e filhos até a
longínqua estação de ônibus, Graciela
acrescenta: “If we
don’t help her, who
will?
I’d drive her mys
needs to be on that bus before her
husband gets home from work
(CISNEROS, 1992, p. 51).
Compadecidas, as figuras simbólicas
que substituem a dor e a solidão se
esforçam para ajudar mãe e filhos,
que Cleófilas espera ser bem
pelo
pai. Cleófilas se surpreende com
a autonomia financeira das duas
mulheres. Principalmente Felice
chama a atenção por ter seu próprio
carro e dirigir a própria vida. Deste
19
“Felice! Esta pobre senhora tem placas
pretas e roxeadas por todo o lado. Não estou
brincando [...] Outra daquelas noivas do outro
lado da fronteira. E a família dela está no
México. [...] essa moça nem fala inglês. Ela
não tem permissão para
escrever ou nada”.
20
“Se não a ajudarmos, quem a ajudará? Eu a
levaria de carro, mas ela precisa estar naquele
ônibus antes que o marido chegue em casa do
trabalho.”
54
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
blue marks
all over. I’m not
kidding! [...] Another
one of those
the
border. And her
all in Mexico. [...] This lady
speak
English. She
hasn’t been allowed to call home or
(CISNEROS, 1992,
E para convencer Felice a
transportar mãe e filhos até a
longínqua estação de ônibus, Graciela
don’t help her, who
I’d drive her mys
elf, but she
needs to be on that bus before her
husband gets home from work
20
(CISNEROS, 1992, p. 51).
Compadecidas, as figuras simbólicas
que substituem a dor e a solidão se
esforçam para ajudar mãe e filhos,
que Cleófilas espera ser bem
-recebida
pai. Cleófilas se surpreende com
a autonomia financeira das duas
mulheres. Principalmente Felice
chama a atenção por ter seu próprio
carro e dirigir a própria vida. Deste
“Felice! Esta pobre senhora tem placas
pretas e roxeadas por todo o lado. Não estou
brincando [...] Outra daquelas noivas do outro
lado da fronteira. E a família dela está no
México. [...] essa moça nem fala inglês. Ela
não tem permissão para
ligar para casa ou
“Se não a ajudarmos, quem a ajudará? Eu a
levaria de carro, mas ela precisa estar naquele
ônibus antes que o marido chegue em casa do
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
modo, Cleófilas passa a conhecer um
novo perfil de mulheres empoderadas.
Conforme afirma Pérez-
Torres,
Graciela e Felice substituem o
sofrimento romantizado e centrado
no masculino, uma vez abraçado
pelas vizinhas de Cleófilas, por
autonomia feminina e
autorrealização. Felice encarna o self
relacional cuja única
autossuficiência, materiali
sua camionete, beneficia a
comunidade feminina de forma mais
ampla. Felice serve para encarnar a
ação coletiva de mulheres à medida
que Graciela e ela se esforçam para
libertar Cleófilas da violência
doméstica” (PÉREZ-
TORRES, 2006,
p. 76).
Assim,
as novas amigas, em
nome da sororidade, providenciam o
escape para Cleófilas.
Financeiramente independentes,
Felice e Graciela investem na
conscientização e ajuda a mulheres
necessitadas. Afinal, mesmo grávida,
Cleófilas chega ao consultório com
hematomas
. Como expõe Bell Hooks
(1997), “não pode haver movimento
feminista de massa para dar fim à
opressão sexista sem uma frente
unida
as mulheres devem tomar
iniciativa e demonstrar o poder da
solidariedade” (p. 396). Ainda nas
palavras de Pérez-
Torres, onde
havia esperança, “surge a intervenção
de mulheres trabalhando em prol da
solidariedade a fim de romper com o
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
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, out. 2019 a março 20
20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
modo, Cleófilas passa a conhecer um
novo perfil de mulheres empoderadas.
Torres,
Graciela e Felice substituem o
sofrimento romantizado e centrado
no masculino, uma vez abraçado
pelas vizinhas de Cleófilas, por
autonomia feminina e
autorrealização. Felice encarna o self
relacional cuja única
autossuficiência, materiali
zada em
sua camionete, beneficia a
comunidade feminina de forma mais
ampla. Felice serve para encarnar a
ação coletiva de mulheres à medida
que Graciela e ela se esforçam para
libertar Cleófilas da violência
TORRES, 2006,
as novas amigas, em
nome da sororidade, providenciam o
escape para Cleófilas.
Financeiramente independentes,
Felice e Graciela investem na
conscientização e ajuda a mulheres
necessitadas. Afinal, mesmo grávida,
Cleófilas chega ao consultório com
. Como expõe Bell Hooks
(1997), “não pode haver movimento
feminista de massa para dar fim à
opressão sexista sem uma frente
as mulheres devem tomar
iniciativa e demonstrar o poder da
solidariedade” (p. 396). Ainda nas
Torres, onde
não
havia esperança, “surge a intervenção
de mulheres trabalhando em prol da
solidariedade a fim de romper com o
isolamento e capacitá
articular seu próprio senso de
subjetividade empoderada” (2006, p.
76). Assim, Cleófilas passa a entrar
em contato com a agência feminista e
uma rede de apoio de e para
mulheres. Desse modo, Cleófilas,
encantada com a camionete de Felice,
admira-
se com as altas gargalhadas
da motorista, que, ao atravessar a
ponte acima do riacho de
faz questão d
e rir bem alto para
mostrar que não chora e, enquanto
mulher, é muito feliz:
Felice, uma chicana politicamente
ativa que, ao desafiar rótulos de
heterossexualidade e
homossexualidade, apregoa,em alta
voz, sua política feminista, aposta na
possibilidade de
compartilhar novas ideias com suas
‘compañeras com narrativas de
pranto no México, novas lendas com
o poder de transformar a temática do
lamento da velha Llorona em outras
tramas predominantemente
misóginas (p. 123
TORRES, 2006, p. 77).
Mantendo o tom otimista,
Jacqueline Doyle (1996) espera que
Cleófilas seja um agente de
transformação social no local de
origem. Na esperança de que a
protagonista de Cisneros ganhe
visibilidade, Doyle defende a agência
da per
sonagem da seguinte forma: “De
volta ao lar com seus filhos, pais e
55
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
isolamento e capacitá
-la [Cleófilas] e
articular seu próprio senso de
subjetividade empoderada” (2006, p.
76). Assim, Cleófilas passa a entrar
em contato com a agência feminista e
uma rede de apoio de e para
mulheres. Desse modo, Cleófilas,
encantada com a camionete de Felice,
se com as altas gargalhadas
da motorista, que, ao atravessar a
ponte acima do riacho de
La Llorona,
e rir bem alto para
mostrar que não chora e, enquanto
Felice, uma chicana politicamente
ativa que, ao desafiar rótulos de
heterossexualidade e
homossexualidade, apregoa,em alta
voz, sua política feminista, aposta na
possibilidade de
Cleófilas
compartilhar novas ideias com suas
‘compañeras com narrativas de
pranto no México, novas lendas com
o poder de transformar a temática do
lamento da velha Llorona em outras
tramas predominantemente
misóginas (p. 123
apud PÉREZ-
TORRES, 2006, p. 77).
Mantendo o tom otimista,
Jacqueline Doyle (1996) espera que
Cleófilas seja um agente de
transformação social no local de
origem. Na esperança de que a
protagonista de Cisneros ganhe
visibilidade, Doyle defende a agência
sonagem da seguinte forma: “De
volta ao lar com seus filhos, pais e
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
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, out. 2019 a março 20
irmãos, Cleófilas supera a tradição do
silêncio e advoga seu direito de falar”
(p. 64 apudREZ-
TORRES, 2006, p.
77).
Clarividentemente, o conto pauta
a questão da sororidade e
empoderame
nto feminino: exemplos
feministas a serem seguidos. Porém,
será que um breve contato com
mulheres empoderadas chegou a
transformar a protagonista? E quanto
ao pai? Como a recepcionará? da
mesma forma que o marido não
cumpriu as promessas, será que o pai
ma
nterá a seguinte promessa?
your father. I will never
abandon
(CISNEROS, 1992, p. 43).
Independente de qual seja a reação do
pai, com medo de morrer nas os do
marido, Cleófilas se fia na seguinte
hipótese: “when a man
and a woman
love each o
ther, sometimes
ours.
But a parent’s love for a child, a
child’s for its parents is another thing
entirely
22
(CISNEROS, 1992, p. 43).
Fato é que muitos pais em
comunidades patriarcais
conservadoras latino-
americanas não
21
“Sou seu pai. Nunca a abandonarei”.
22
“quando um homem e uma mulher
amam, às vezes esse amor azeda. Mas o
amor de um pai por um filho, um filho por seus
pais, é completamente diferente
"
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
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, out. 2019 a março 20
20.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
irmãos, Cleófilas supera a tradição do
silêncio e advoga seu direito de falar”
TORRES, 2006, p.
Clarividentemente, o conto pauta
a questão da sororidade e
nto feminino: exemplos
feministas a serem seguidos. Porém,
será que um breve contato com
mulheres empoderadas chegou a
transformar a protagonista? E quanto
ao pai? Como a recepcionará? da
mesma forma que o marido não
cumpriu as promessas, será que o pai
nterá a seguinte promessa?
“I am
abandon
you
21
(CISNEROS, 1992, p. 43).
Independente de qual seja a reação do
pai, com medo de morrer nas os do
marido, Cleófilas se fia na seguinte
and a woman
ther, sometimes
that loves
But a parent’s love for a child, a
child’s for its parents is another thing
(CISNEROS, 1992, p. 43).
Fato é que muitos pais em
comunidades patriarcais
americanas não
“Sou seu pai. Nunca a abandonarei”.
“quando um homem e uma mulher
se
amam, às vezes esse amor azeda. Mas o
amor de um pai por um filho, um filho por seus
"
aceitam que as filhas fuj
marido, muito menos com filhos nos
braços. Culpam a mulher pelo fracasso
do casamento, e entendem o retorno
da filha como desonra para o nome do
pai.Em função disso, dão peso maior à
opinião pública e menor atenção à
família. Na verdade, Cleó
considerou voltar ao México assim que
o sonho de viver
um conto de fadas
estadunidense esmoreceu, mas não
teve coragem em função dos rumores
do vilarejo onde se criou: “sometimes
she thinks of her
father’s
how could
she go back
disgrace. What
would
say? Coming home like that
baby on her hip and
Where’s your
husband?
p. 50). Com base neste raciocínio,
Pérez-
Torres nos lembra que o
universo da família de Cleófilas não é
“um mun
do moldado pela companhia
feminina e dificilmente uma
comunidade promissora para
empoderamento pessoal. Se o
passado em casa é algum tipo de
indício, o retorno de Cleófilas ao
23
“às vezes ela pensa na casa de seu pai.
Mas como ela poderia voltar para ? Que
desonra. O que os vizinhos diriam? Voltando
para cas
a assim com um bebê no quadril e
outro no forno. Onde está seu marido?”
56
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
aceitam que as filhas fuj
am da casa do
marido, muito menos com filhos nos
braços. Culpam a mulher pelo fracasso
do casamento, e entendem o retorno
da filha como desonra para o nome do
pai.Em função disso, dão peso maior à
opinião pública e menor atenção à
família. Na verdade, Cleó
filas
considerou voltar ao México assim que
um conto de fadas
estadunidense esmoreceu, mas não
teve coragem em função dos rumores
do vilarejo onde se criou: “sometimes
father’s
house. But
she go back
there? What a
would
the neighbors
say? Coming home like that
with one
one in the oven.
husband?
23
(CISNEROS,
p. 50). Com base neste raciocínio,
Torres nos lembra que o
universo da família de Cleófilas não é
do moldado pela companhia
feminina e dificilmente uma
comunidade promissora para
empoderamento pessoal. Se o
passado em casa é algum tipo de
indício, o retorno de Cleófilas ao
“às vezes ela pensa na casa de seu pai.
Mas como ela poderia voltar para ? Que
desonra. O que os vizinhos diriam? Voltando
a assim com um bebê no quadril e
outro no forno. Onde está seu marido?”
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
México será indubitavelmente árduo”
(PÉREZ-
TORRES, 2006, p. 78). Assim
sendo, at
é que ponto os seis irmãos,
descritos como ‘desastrados’
(CISNEROS, 1992, p. 45), apoiariam
Cleófilas?
Ela retornaria para ser a
escrava doméstica de todos os
demais, mantendo a posição inicial de
gata borralheira? Caso sim, ao menos
na antiga casa teria u
ma televisão
para assistir. Posto que o conto
termina em aberto, assim como
existem deixas de que a heroína
consiga ser feliz longe do esposo,
também indícios de que ela possa
permanecer como La Llorona.
Consideremos que o filho mais velho
seja um prenú
ncio simbólico da
permanência do patriarcado. Afinal,
ele, além de ser semente do pai, tem o
mesmo nome do progenitor. Para
Pérez-
Torres, “o nome do filho sugere
que o padrão de violência que
Cleófilas suporta não é somente
aquele que Juan Pedro repete, ma
um padrão que será passado de
geração em geração dali por diante”
(2006, p. 75).
E quanto às mulheres da
desconhecida vila mexicana? Elas
ajudarão a filha pródiga? Tudo indica
que não, porque, no texto literário, o
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
México será indubitavelmente árduo”
TORRES, 2006, p. 78). Assim
é que ponto os seis irmãos,
descritos como ‘desastrados’
(CISNEROS, 1992, p. 45), apoiariam
Ela retornaria para ser a
escrava doméstica de todos os
demais, mantendo a posição inicial de
gata borralheira? Caso sim, ao menos
ma televisão
para assistir. Posto que o conto
termina em aberto, assim como
existem deixas de que a heroína
consiga ser feliz longe do esposo,
também indícios de que ela possa
permanecer como La Llorona.
Consideremos que o filho mais velho
ncio simbólico da
permanência do patriarcado. Afinal,
ele, além de ser semente do pai, tem o
mesmo nome do progenitor. Para
Torres, “o nome do filho sugere
que o padrão de violência que
Cleófilas suporta não é somente
aquele que Juan Pedro repete, ma
s
um padrão que será passado de
geração em geração dali por diante”
E quanto às mulheres da
desconhecida vila mexicana? Elas
ajudarão a filha pródiga? Tudo indica
que não, porque, no texto literário, o
anônimo vilarejo mexicano é descrito
como “The town of
gossips. The town
of dust and
despair”
1992, p. 50). Ao que tudo indica,a
comunidade a quem Cleófilas outrora
causou inveja poderá provocar uma
retaliação. Afinal, as mulheres daquela
vila mexicana foram criadas para fazer
cu
mprir o ideal de amor prescrito nas
telenovelas, mantendo
potencial de uma cultura de
feminicídio. Por um lado, existe chance
de Cleófilas, uma vez defensora da
agência feminista, cooptar adeptas
para desafiar o sistema patriarcal,
porém, as
moradoras da antiga vila
também podem se acomodar,
temendo uma virulenta vingança dos
respectivos maridos. Obviamente,a
gargalhada de Felice pode tipificar a
chegada da felicidade para a
protagonista, mas, de igual modo,
pode somente demarcar a saída de
Se
guín. Nos EUA, para vencer o
patriarcado, a protagonista contou com
o auxílio de mulheres politizadas e
financeiramente estáveis. Se que
Cleófilas encontrará apoio idêntico no
México? Teria ela
condições de ser
24
“A cidade de fofocas. A cidade de poeira e
desespero”
57
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
anônimo vilarejo mexicano é descrito
gossips. The town
despair”
24
(CISNEROS,
1992, p. 50). Ao que tudo indica,a
comunidade a quem Cleófilas outrora
causou inveja poderá provocar uma
retaliação. Afinal, as mulheres daquela
vila mexicana foram criadas para fazer
mprir o ideal de amor prescrito nas
telenovelas, mantendo
-se vítimas em
potencial de uma cultura de
feminicídio. Por um lado, existe chance
de Cleófilas, uma vez defensora da
agência feminista, cooptar adeptas
para desafiar o sistema patriarcal,
moradoras da antiga vila
também podem se acomodar,
temendo uma virulenta vingança dos
respectivos maridos. Obviamente,a
gargalhada de Felice pode tipificar a
chegada da felicidade para a
protagonista, mas, de igual modo,
pode somente demarcar a saída de
guín. Nos EUA, para vencer o
patriarcado, a protagonista contou com
o auxílio de mulheres politizadas e
financeiramente estáveis. Se que
Cleófilas encontrará apoio idêntico no
condições de ser
“A cidade de fofocas. A cidade de poeira e
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
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uma multiplicadora de uma
feminista
sem uma rede de
sororidade? Independentemente do
que posteriormente ocorra, decide
voltar à casa paterna em vez de
aventurar-
se em outro local.Fiada na
promessa paterna, ela retornará a uma
antiga estrutura patriarcal, talvez pela
segurança dos filhos. Ao
indica, a protagonista ignora a questão
da pobreza e passa a vislumbrar para
o México com nostalgia, encanto e
admiração; mas, até que ponto não
está criando uma sublimação,
remanejando
a idealização de um
casamento nos moldes do
Dream p
ara uma segunda
agora
na forma de ‘lar acolhedor’?
Segundo Salmon Rushdie (1991), o
sujeito diaspórico idealiza a terra natal,
embora a sensação de retorno ao
lugar de origem não passe de um mito
e constitua uma cilada:
pode ser que [...] emigran
expatriados, sejam assombrados por
uma sensação de perda, de um
desejo urgente por reparação, de
olhar para trás, mesmo com o risco
de se tornarem estátuas de sal,
porque, se, de fato, retrocedermos,
também podemos fazê
de conhecimento,
o que faz emergir
profundas incertezas de que nosso
distanciamento físico [...] significa,
quase inevitavelmente, que o
seremos capazes de reivindicar
precisamente aquilo que se perdeu;
que, em suma, criaremos ficções,
não cidades ou vilas de verdade,
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
uma multiplicadora de uma
agência
sem uma rede de
sororidade? Independentemente do
que posteriormente ocorra, decide
voltar à casa paterna em vez de
se em outro local.Fiada na
promessa paterna, ela retornará a uma
antiga estrutura patriarcal, talvez pela
segurança dos filhos. Ao
que tudo
indica, a protagonista ignora a questão
da pobreza e passa a vislumbrar para
o México com nostalgia, encanto e
admiração; mas, até que ponto não
está criando uma sublimação,
a idealização de um
casamento nos moldes do
American
ara uma segunda
projeção,
na forma de ‘lar acolhedor’?
Segundo Salmon Rushdie (1991), o
sujeito diaspórico idealiza a terra natal,
embora a sensação de retorno ao
lugar de origem não passe de um mito
pode ser que [...] emigran
tes ou
expatriados, sejam assombrados por
uma sensação de perda, de um
desejo urgente por reparação, de
olhar para trás, mesmo com o risco
de se tornarem estátuas de sal,
porque, se, de fato, retrocedermos,
também podemos fazê
-lo em termos
o que faz emergir
profundas incertezas de que nosso
distanciamento físico [...] significa,
quase inevitavelmente, que o
seremos capazes de reivindicar
precisamente aquilo que se perdeu;
que, em suma, criaremos ficções,
não cidades ou vilas de verdade,
m
as lugares imaginários, terras
natais imaginárias” (
p. 10).
Ora, se voltar a um lugar
conservador
em nome de um sonho de
regresso ao ninho
pode não ser uma
decisão segura,retornar ao vilarejo
pode tanto ser um ato transgressor
para dissemi
nação de valores
feministas quanto uma grande
armadilha para a
filha pródiga do ponto
de vista ideológico, visto que a
probabilidade de rejeição ao novo no
espaço antigo é, infelizmente, maior
que a prospecção de transformação de
um local onde o apogeu do
mantém-
se estabelecido com mão de
ferro séculos. Afinal, uma família
que abre mão de conviver com a
filha/irmã para entregá
estranho pode não a receber de bom
grado. Sobretudo, agora, sendo já mãe
de dois meninos.Considerando
que,seg
undo Rushdie, a
lar
é algo potencialmente traiçoeiro,
talvez Cleófilas tenha se voltado
lembranças felizes, desconhecendo
que a memória, segundo Jacques Le
Goff (2010),
nada mais é senão a
reminiscência do
esquecimento.Conforme afirma Le
Goff, “nas
manipulações conscientes
58
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
as lugares imaginários, terras
natais imaginárias” (
RUSHDIE, 1991,
Ora, se voltar a um lugar
em nome de um sonho de
pode não ser uma
decisão segura,retornar ao vilarejo
pode tanto ser um ato transgressor
nação de valores
feministas quanto uma grande
filha pródiga do ponto
de vista ideológico, visto que a
probabilidade de rejeição ao novo no
espaço antigo é, infelizmente, maior
que a prospecção de transformação de
um local onde o apogeu do
patriarcado
se estabelecido com mão de
ferro séculos. Afinal, uma família
que abre mão de conviver com a
filha/irmã para entregá
-la a um
estranho pode não a receber de bom
grado. Sobretudo, agora, sendo já mãe
de dois meninos.Considerando
undo Rushdie, a
projeção do
é algo potencialmente traiçoeiro,
talvez Cleófilas tenha se voltado
para
lembranças felizes, desconhecendo
que a memória, segundo Jacques Le
nada mais é senão a
reminiscência do
esquecimento.Conforme afirma Le
manipulações conscientes
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
ou inconscientes, o
interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, a
censura exercem [grande influência]
sobre a memória individual (LE GOFF,
2010, p. 422). O caráter seletivo da
memória pode pontuar o que é
emocionalmen
te conveniente ao
sujeito em momentos de dor,
abandono, desatino etc. Daí o perigo
da memória pessoal, posto que a
perspectiva mnemônica do sujeito se
constrói na leitura de cenas pretéritas
que o mesmo inconscientemente
decide
recobrar. Como dito,
redi
recionar a projeção do conto de
fadas na telenovela para sonhar com o
retorno ao lar pode ser a repetição de
um padrão, um
modus operandi
mantém incapaz de enxergar os
perigos da vida. Se assim o for,
Cleófilas perpetuará o status de
hollering woman.
E, se assim o for, ou
fantasma da poderá assombrá
local de origem, uma terra onde a
prática do feminicídio é ainda uma
constante ou
ela poderá assumir a
figura de La Llorona
guerreira. Daí a forte insistência de
que Cleófilas, mesmo sem assassinar
os filhos,poderá encarnar a mítica
figura da Chorona em todo seu
potencial gótico. Enfim,o conto nos faz
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, a
censura exercem [grande influência]
sobre a memória individual (LE GOFF,
2010, p. 422). O caráter seletivo da
memória pode pontuar o que é
te conveniente ao
sujeito em momentos de dor,
abandono, desatino etc. Daí o perigo
da memória pessoal, posto que a
perspectiva mnemônica do sujeito se
constrói na leitura de cenas pretéritas
que o mesmo inconscientemente
recobrar. Como dito,
recionar a projeção do conto de
fadas na telenovela para sonhar com o
retorno ao lar pode ser a repetição de
modus operandi
que a
mantém incapaz de enxergar os
perigos da vida. Se assim o for,
Cleófilas perpetuará o status de
E, se assim o for, ou
fantasma da poderá assombrá
-la no
local de origem, uma terra onde a
prática do feminicídio é ainda uma
ela poderá assumir a
enquanto
guerreira. Daí a forte insistência de
que Cleófilas, mesmo sem assassinar
os filhos,poderá encarnar a mítica
figura da Chorona em todo seu
potencial gótico. Enfim,o conto nos faz
refletir sobre a realidade de milhares
de mulheres latino-
americana
condição subserviente diante de
estruturas patriarcais avassaladoras.
Falar sobre a cultura de feminicídio, o
que, infelizmente, ainda é uma
necessidade cabal nos dias de hoje,
em virtude do que mostram os dados
estatísticos de violência contra a
m
ulher na América Latina. Apesar
disso, em virtude da repercussão da
Declaração Universal dos Direitos
Humanos
25
(1948), seus impactos
posteriores e, sobretudo, os
crescentes manifestos feministas entre
as cadas de 1960 e 1970, a ONU e
outras instituições
internacionais mais
jovens se mobilizaram para lutar
contra a violência à mulher latino
americana.
No tocante à América Latina,
instituições contra a violência da
mulher têm se estabelecido com o
objetivo de promover justiça e
proteção judicial.
Podemos d
por exemplo, a Convenção Americana
de Direitos Humanos como ponto de
partida, assinada em San José, Costa
Rica, 1969, e em vigor em 1978
25
Disponível em https://nacoesunidas.org/wp
content/uploads/2018/10/DUDH.pdf
59
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
refletir sobre a realidade de milhares
americana
s e sua
condição subserviente diante de
estruturas patriarcais avassaladoras.
Falar sobre a cultura de feminicídio, o
que, infelizmente, ainda é uma
necessidade cabal nos dias de hoje,
em virtude do que mostram os dados
estatísticos de violência contra a
ulher na América Latina. Apesar
disso, em virtude da repercussão da
Declaração Universal dos Direitos
(1948), seus impactos
posteriores e, sobretudo, os
crescentes manifestos feministas entre
as cadas de 1960 e 1970, a ONU e
internacionais mais
jovens se mobilizaram para lutar
contra a violência à mulher latino
-
No tocante à América Latina,
instituições contra a violência da
mulher têm se estabelecido com o
objetivo de promover justiça e
Podemos d
estacar,
por exemplo, a Convenção Americana
de Direitos Humanos como ponto de
partida, assinada em San José, Costa
Rica, 1969, e em vigor em 1978
Disponível em https://nacoesunidas.org/wp
-
content/uploads/2018/10/DUDH.pdf
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
(SOUZA, 2013, p. 2).Em seguida,
criou-
se o Ano Internacional da Mulher
em 1975. Quatro anos mais tarde, a
ONU
promoveu a “Convenção da
Mulher em Nova Iorque” (SOUZA,
2013, p. 3).Outra importante conquista
foi a criação do Comitê Latino
Americano para a Defesa dos Direitos
da Mulher (CLADEM) em 1987,
também em São José, Costa Rica. O
comitê hoje tem sede em 13 país
dentre eles, o Brasil. em 1994, a
iniciativa de implementação de
serviços de atendimentos
especializados a vítimas de violência
se deu em Belém do Pa na
“Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher”. Na oc
asião, países
que se responsabilizaram por
mudanças legislativas
Argentina, Bolívia, Brasil Chile,
Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
Guatemala, Honduras, México,
Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru,
Porto Rico, Uruguai e Venezuela.
Também por iniciati
va da ONU, em
2010, criou-
se, em Nova Iorque, o
Fundo de Desenvolvimento das
Nações Unidas para a Mulher
(UNIFEM), a Divisão para o Avanço
das Mulheres (DAW), o Escritório de
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
(SOUZA, 2013, p. 2).Em seguida,
se o Ano Internacional da Mulher
em 1975. Quatro anos mais tarde, a
promoveu a “Convenção da
Mulher em Nova Iorque” (SOUZA,
2013, p. 3).Outra importante conquista
foi a criação do Comitê Latino
-
Americano para a Defesa dos Direitos
da Mulher (CLADEM) em 1987,
também em São José, Costa Rica. O
comitê hoje tem sede em 13 país
es,
dentre eles, o Brasil. em 1994, a
iniciativa de implementação de
serviços de atendimentos
especializados a vítimas de violência
se deu em Belém do Pa na
“Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
asião, países
que se responsabilizaram por
mudanças legislativas
foram
Argentina, Bolívia, Brasil Chile,
Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
Guatemala, Honduras, México,
Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru,
Porto Rico, Uruguai e Venezuela.
va da ONU, em
se, em Nova Iorque, o
Fundo de Desenvolvimento das
Nações Unidas para a Mulher
(UNIFEM), a Divisão para o Avanço
das Mulheres (DAW), o Escritório de
Assessoria Especial em Questões de
Gênero bem como o Instituto
Internacional de T
Pesquisa para a Promoção da Mulher
(INSTRAW). Por meio da UNIFEM,
finalmente foi assegurado o direito à
igualdade de gênero entre homens e
mulheres. Em 2011, organizou
Comissão do Status da Mulher com a
finalidade de implementar questões
pertinentes à igualdade entre gêneros
em questões de educação,
desenvolvimento e tecnologia. Um ano
depois, comemoraram
atuação do CLADEM (SOUZA, 2013,
p. 5).
Em 2018, o mesmo comitê
organizou o Foro Social Mundial em
Salvador,Brasil
26
.
no
ocorreu a Conferência Internacional do
Status da Mulher, Nova Iorque
Assim, percebemos o interesse e
engajamento de diferentes instituições
na luta contra a misoginia e suas
devastadoras consequências.
Como destacamos o xico,
por ser o p
aís de origem de Cleófilas,
e o Brasil, país em que vivemos,
26
Disponível em
https://cladem.org/eventos/foro
2018/
27
Disponível em
https://www.unwomen.org/en/csw/csw63
60
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Assessoria Especial em Questões de
Gênero bem como o Instituto
Internacional de T
reinamento e
Pesquisa para a Promoção da Mulher
(INSTRAW). Por meio da UNIFEM,
finalmente foi assegurado o direito à
igualdade de gênero entre homens e
mulheres. Em 2011, organizou
-se a
Comissão do Status da Mulher com a
finalidade de implementar questões
pertinentes à igualdade entre gêneros
em questões de educação,
desenvolvimento e tecnologia. Um ano
depois, comemoraram
-se 25 anos de
atuação do CLADEM (SOUZA, 2013,
Em 2018, o mesmo comitê
organizou o Foro Social Mundial em
no
ano seguinte,
ocorreu a Conferência Internacional do
Status da Mulher, Nova Iorque
27
.
Assim, percebemos o interesse e
engajamento de diferentes instituições
na luta contra a misoginia e suas
devastadoras consequências.
Como destacamos o xico,
aís de origem de Cleófilas,
e o Brasil, país em que vivemos,
https://cladem.org/eventos/foro
-social-mundial-
https://www.unwomen.org/en/csw/csw63
-2019
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
apresentaremos um breve panorama
das realidades legislativas de ambas
as nações. No que tange à legislação
do México, ressaltamos a criação da
“Ley General de Acesso de las
Mujeres a Una Vida Lib
Violencia”, promulgada em 2007. Lei
esta que vem sofrendo alterações
textuais desde então a fim de diminuir
brechas interpretativas e, assim, punir
agressores de mulheres. O trecho aqui
apresentado sofreu modificações
estruturais, tendo sua última re
em 2018. Lei esta que pretende...
estabelecer uma coordenação entre
a Federação, os estados, o Distrito
Federal e os municípios para
prevenir, punir e erradicar a violência
contra as mulheres, bem como os
princípios e modalidades para
garantir seu ac
esso a uma vida livre
de
violência que favorece o seu
desenvolvimento e bem
acordo com os princípios da
igualdade e da não
bem como garantir a democracia, um
desenvolvimento integral e
sustentável que fortaleça
e o regi
me democrático
estabelecidos na Constituição
Política dos Estados Unidos
Mexicanos (MÉXICO, 2007, p. 1)
Contudo, aos 20 de agosto de
2019, o G1
, Jornal online brasileiro
noticiou que
entre 2015 a junho de 2019 foram
cometidos no México ao
3.080 fem
inicídios. Segundo dados
oficiais do governo
índice de feminicídio por cada 100
mil mulheres
em 2015 era de 0,66%;
e em 2018, 1,19%. Isso significa
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
apresentaremos um breve panorama
das realidades legislativas de ambas
as nações. No que tange à legislação
do México, ressaltamos a criação da
“Ley General de Acesso de las
Mujeres a Una Vida Lib
re de
Violencia”, promulgada em 2007. Lei
esta que vem sofrendo alterações
textuais desde então a fim de diminuir
brechas interpretativas e, assim, punir
agressores de mulheres. O trecho aqui
apresentado sofreu modificações
estruturais, tendo sua última re
visão
em 2018. Lei esta que pretende...
estabelecer uma coordenação entre
a Federação, os estados, o Distrito
Federal e os municípios para
prevenir, punir e erradicar a violência
contra as mulheres, bem como os
princípios e modalidades para
esso a uma vida livre
violência que favorece o seu
desenvolvimento e bem
-estar, de
acordo com os princípios da
discriminação,
bem como garantir a democracia, um
desenvolvimento integral e
sustentável que fortaleça
a soberania
me democrático
estabelecidos na Constituição
Política dos Estados Unidos
Mexicanos (MÉXICO, 2007, p. 1)
Contudo, aos 20 de agosto de
, Jornal online brasileiro
entre 2015 a junho de 2019 foram
cometidos no México ao
menos
inicídios. Segundo dados
mexicano, o
índice de feminicídio por cada 100
em 2015 era de 0,66%;
e em 2018, 1,19%. Isso significa
que,em três anos, os números quase
dobraram” (p. 6).
Consta ainda na matéria do
mesmo periódico
que, a cada 6 horas,
mulheres são assassinadas por
conhecidos no México (
Foi ainda noticiado que policiais
estupraram, em agosto de 2019, a
jovem Yolanda, causando comoção e
gerando protestos naquele país (
2019, p. 3). Além do mais,
Nos primeiros 181 dias de 2019,
foram apresentadas 25,277 queixas,
ou seja, 139.6denúncias por dia, 5.8
por hora. Segundo o Instituto
Nacional de Estatística e
do México, 75% dos delitos de abuso
sexual o contra mulheres, assim
como 80% dos est
88% dos estupros com agravantes
(G1, 2019, p. 5).
Considerando a legislação
brasileira, temos a Lei nº 11.340 /2006,
popularmente conhecida como a Lei
Maria da Penha, em homenagem à
Srª. da Penha Maia
Fernandes.Tendo sobrevivido a duas
tentativas de homicídio do próprio
marido,Fernandes possui sequelas no
corpo que a
transformaram em uma
pessoa paraplégica.
gravidade, o
‘Caso Maria da Penha’
o primeiro a ser registrado como
violência doméstica na Comissão
Interamericana do
s Direitos Humanos
da Organização dos Estados
61
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
que,em três anos, os números quase
dobraram” (p. 6).
Consta ainda na matéria do
que, a cada 6 horas,
mulheres são assassinadas por
conhecidos no México (
G1, 2019, p. 3)
Foi ainda noticiado que policiais
estupraram, em agosto de 2019, a
jovem Yolanda, causando comoção e
gerando protestos naquele país (
G1,
2019, p. 3). Além do mais,
Nos primeiros 181 dias de 2019,
foram apresentadas 25,277 queixas,
ou seja, 139.6denúncias por dia, 5.8
por hora. Segundo o Instituto
Nacional de Estatística e
Geografia
do México, 75% dos delitos de abuso
sexual o contra mulheres, assim
como 80% dos est
upros simples e
88% dos estupros com agravantes
Considerando a legislação
brasileira, temos a Lei nº 11.340 /2006,
popularmente conhecida como a Lei
Maria da Penha, em homenagem à
Srª. da Penha Maia
Fernandes.Tendo sobrevivido a duas
tentativas de homicídio do próprio
marido,Fernandes possui sequelas no
transformaram em uma
pessoa paraplégica.
De tamanha
‘Caso Maria da Penha’
foi
o primeiro a ser registrado como
violência doméstica na Comissão
s Direitos Humanos
da Organização dos Estados
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
Americanos (OEA). Hoje ativista,
palestrante, Fernandes também é
Coordenadora de Estudos, Pesquisas
e Publicações da Associação de
Parentes e Amigos de Vítimas de
Violência (APAVV) no Ceará
Idêntico ao texto
do México, o Brasil
tem, em sua legislação palavras
chave, lançando o compromisso com a
Convenção Interamericana e com a
Declaração dos Direitos Humanos da
ONU. Conforme se no Artigo 1 da
Lei em voga,
Esta Lei cria mecanismos para coibir
e prevenir a vi
olência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos
do § do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de
Violência contra a Mulher, da
Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência
contra a Mulher e de outros
tratados internacionais ratificados
pela República Federativa do Brasil;
dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; e estabelece
medidas de assistência e proteção
às mulheres em situaç
violência doméstica e
familiar(BRASIL, 2006, p. 1).
Contudo, aos 19 de dezembro
de 2019, o G1
Jornal online
que dados estatísticos somente sobre
estado de São Paulo, Brasil,
mostraram que “casos de feminicídio
28
Disponível em
http://arpenpe.org/?tag=apavv
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 20
20.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Americanos (OEA). Hoje ativista,
palestrante, Fernandes também é
Coordenadora de Estudos, Pesquisas
e Publicações da Associação de
Parentes e Amigos de Vítimas de
Violência (APAVV) no Ceará
28
.
do México, o Brasil
tem, em sua legislação palavras
-
chave, lançando o compromisso com a
Convenção Interamericana e com a
Declaração dos Direitos Humanos da
ONU. Conforme se no Artigo 1 da
Esta Lei cria mecanismos para coibir
olência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos
do § do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de
Violência contra a Mulher, da
Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a
contra a Mulher e de outros
tratados internacionais ratificados
pela República Federativa do Brasil;
dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; e estabelece
medidas de assistência e proteção
às mulheres em situaç
ão de
violência doméstica e
familiar(BRASIL, 2006, p. 1).
Contudo, aos 19 de dezembro
Jornal online
publicou
que dados estatísticos somente sobre
estado de São Paulo, Brasil,
mostraram que “casos de feminicídio
aumenta[ra]m 76% no 1º trimes
2019” (p. 1): crescimento alarmante no
percurso de somente três meses.
Notem que a matéria não cobre os
demais 25 estados do país, e que as
regiões norte, nordeste e centro
onde o índice de feminicídio é
estarrecedor, não foram
contempladas.
Isso comprova que
lutar contra a cultura do feminicídio de
importância cabal no Brasil.
Em contrapartida, de acordo
com Nathalia Gherardi (2017), diretora
executiva da Equipe Latino
de Justiça e Gênero desde 2007,
avanços legais substanciais vêm
sendo feitos quanto aos direitos da
mulher na América Latina:
Na região da América Latina,
avançou-
se não somente em marcos
normativos, mas também numa
dimensão sumamente promissora de
sensibilidade social que condena a
violência extrema contra as
mulhere
s. Enquadrada numa
compreensão holística do dever da
devida diligência dos Estados, é
necessário abordar com informações
melhores e com ferramentas de
política blica mais eficazes as
outras formas de violência cotidiana
que contribuem para sustentar as
c
ondições estruturais de
discriminação das mulheres nas
quais se multiplicam os feminicídios
(GHERARDI, 2017, p. 134).
Apesar de inúmeros esforços de
organizações, convenções e comitês
internacionais, observamos que, tanto
62
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
aumenta[ra]m 76% no 1º trimes
tre de
2019” (p. 1): crescimento alarmante no
percurso de somente três meses.
Notem que a matéria não cobre os
demais 25 estados do país, e que as
regiões norte, nordeste e centro
-oeste,
onde o índice de feminicídio é
estarrecedor, não foram
Isso comprova que
lutar contra a cultura do feminicídio de
importância cabal no Brasil.
Em contrapartida, de acordo
com Nathalia Gherardi (2017), diretora
executiva da Equipe Latino
-americana
de Justiça e Gênero desde 2007,
avanços legais substanciais vêm
sendo feitos quanto aos direitos da
mulher na América Latina:
Na região da América Latina,
se não somente em marcos
normativos, mas também numa
dimensão sumamente promissora de
sensibilidade social que condena a
violência extrema contra as
s. Enquadrada numa
compreensão holística do dever da
devida diligência dos Estados, é
necessário abordar com informações
melhores e com ferramentas de
política blica mais eficazes as
outras formas de violência cotidiana
que contribuem para sustentar as
ondições estruturais de
discriminação das mulheres nas
quais se multiplicam os feminicídios
(GHERARDI, 2017, p. 134).
Apesar de inúmeros esforços de
organizações, convenções e comitês
internacionais, observamos que, tanto
BEZERRA JÚNIOR, Heleno Álvares. Da telenovela à realidade: violência
contra mulher latina em "Woman hollering creek" de Sandra Cisneros.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 34-65
, out. 2019 a março 20
no México, no Brasil e outros paí
figura sofredora de
La Llorona
e
ncarnada em inúmeras mulheres
espancadas, estupradas,
psicologicamente afrontadas e até
mesmo assassinadas. Mais que criar
leis, é preciso organizar sistemas de
divulgação e conscientização em
massa, trabalhos educa
tivos que o
somente informem as mulheres mas
que principalmente ensinem aos
meninos de hoje a serem futuros
homens que repensem e fujam da
masculinidade tóxica que assola o
Brasil, México, a América Latina como
um todo. Precisamos investir em um
mundo me
lhor não feito de
enquanto mártires, mas de Felices,
donas dos seus corpos, projetos,
altamente qualificadas, com isonomia
salarial, ativistas, livres do assédio, do
estupro e do feminicídio, não guiadas
por telenovelas, mas por teorias
feminista
s que promovam agência e
empoderamento.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
no México, no Brasil e outros paí
ses, a
La Llorona
é
ncarnada em inúmeras mulheres
espancadas, estupradas,
psicologicamente afrontadas e até
mesmo assassinadas. Mais que criar
leis, é preciso organizar sistemas de
divulgação e conscientização em
tivos que o
somente informem as mulheres mas
que principalmente ensinem aos
meninos de hoje a serem futuros
homens que repensem e fujam da
masculinidade tóxica que assola o
Brasil, México, a América Latina como
um todo. Precisamos investir em um
lhor não feito de
Lloronas,
enquanto mártires, mas de Felices,
donas dos seus corpos, projetos,
altamente qualificadas, com isonomia
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FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
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, out. 2019 a março 2020.
O
retrato da violência no
Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética
DOI: https://doi.org/
10.22409/pragmatizes
Resumo:
Este artigo traz à tona um olhar sobre a literatura centro
realizado sobre o romance,
Piedras encantadas
Rodrigo Rey Rosa. Neste romance, percebe
representativa, seja textual, seja pelos personagens que se fazem presentes nas descrições
realizadas, seja pela escolha do léxico ou pela carga histórica ali inserida, retratando uma Guatemala
construída e alicerça
da em vários âmbitos da violência.A escrita de Rey Rosa se diferencia pela
abordagem particular quanto à utilização da violência com a perspectiva de que, em seus textos, a
violência não é um elemento de discussão que faz o leitor refletir sobre ela, ma
construção da narrativa a partir de seus traços peculiares acrescidos de outros aspectos presentes na
obra. Como referencial teórico, este artigo se debruça nos estudos realizados pelo chileno Ariel
Dorfman (1972) sobre algumas dimensões
Schøllhammer (2013) sobre esse assunto.
Palavras-chave:
Violência;Espaço; Rey Rosa; Guatemala.
El retrato de la violencia en la novela
construcción estética
Resumen:
Este artigo evidencia una mirada sobre la literatura centroamericana a partir de un estudio
realizado sobre la novela,
Piedras encantadas
Rodrigo Rey Rosa. En esta novela, se nota la construcción del espacio a partir de la violencia, sea
representativa, sea textual, sea por los personajes que están presentes en las descripciones
realizadas, se
a por la elección de léxico o por la carga histórica inserida,
construida y cimentada en varios ámbitos de la violencia
abordaje particular cuanto a la utilización de la violencia con la
violencia no es solo un elemento de discusión que hace el lector reflexionar sobre ella, pero que
viabiliza la construcción de la narrativa a partir de sus rasgos peculiares acrecidos de otros aspectos
presentes en la
obra. Como referencial teórico, este artículo se inclina hacia los estudios realizados
por Ariel Dorfman (1972) sobre algunas dimensiones de la violencia en la literatura y las
explanaciones de Schøllhammer (2013) sobre dicho tema.
Palabras clave: Viole
ncia; Espacio; Rey Rosa; Guatemala.
1
Rodrigo de Freitas Faqueri. Doutor em Letras
Tecnologia de São Paulo (IFSP), Brasil.
Texto recebido em 03/12
/2019 e aceito para publicação em
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
retrato da violência no
romance
Piedras Encantadas
Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética
10.22409/pragmatizes
.v10i18.38871
Rodrigo de Freitas
Este artigo traz à tona um olhar sobre a literatura centro
-
americana a partir de um estudo
Piedras encantadas
(2001), do escritor guatemalteco contemporâneo
Rodrigo Rey Rosa. Neste romance, percebe
-se a construç
ão do espaço a partir da violência, seja
representativa, seja textual, seja pelos personagens que se fazem presentes nas descrições
realizadas, seja pela escolha do léxico ou pela carga histórica ali inserida, retratando uma Guatemala
da em vários âmbitos da violência.A escrita de Rey Rosa se diferencia pela
abordagem particular quanto à utilização da violência com a perspectiva de que, em seus textos, a
violência não é um elemento de discussão que faz o leitor refletir sobre ela, ma
construção da narrativa a partir de seus traços peculiares acrescidos de outros aspectos presentes na
obra. Como referencial teórico, este artigo se debruça nos estudos realizados pelo chileno Ariel
Dorfman (1972) sobre algumas dimensões
da violência na literatura e as explanações de
Schøllhammer (2013) sobre esse assunto.
Violência;Espaço; Rey Rosa; Guatemala.
El retrato de la violencia en la novela
Piedras Encantadas
(2001), de Rodrigo Rey Rosa: una
Este artigo evidencia una mirada sobre la literatura centroamericana a partir de un estudio
Piedras encantadas
(2001), del escritor guatemalteco contemporáneo
Rodrigo Rey Rosa. En esta novela, se nota la construcción del espacio a partir de la violencia, sea
representativa, sea textual, sea por los personajes que están presentes en las descripciones
a por la elección de léxico o por la carga histórica inserida,
retratando una Guatemala
construida y cimentada en varios ámbitos de la violencia
. La escrita de Rey Rosa se diferencia por el
abordaje particular cuanto a la utilización de la violencia con la
perspectiva de que, en sus textos, la
violencia no es solo un elemento de discusión que hace el lector reflexionar sobre ella, pero que
viabiliza la construcción de la narrativa a partir de sus rasgos peculiares acrecidos de otros aspectos
obra. Como referencial teórico, este artículo se inclina hacia los estudios realizados
por Ariel Dorfman (1972) sobre algunas dimensiones de la violencia en la literatura y las
explanaciones de Schøllhammer (2013) sobre dicho tema.
ncia; Espacio; Rey Rosa; Guatemala.
Rodrigo de Freitas Faqueri. Doutor em Letras
. Professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo (IFSP), Brasil.
E-mail: rodrigofaqueri@hotmail.com.
/2019 e aceito para publicação em
04/01/2020.
66
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Piedras Encantadas
(2001), de
Rodrigo de Freitas
Faqueri
1
americana a partir de um estudo
(2001), do escritor guatemalteco contemporâneo
ão do espaço a partir da violência, seja
representativa, seja textual, seja pelos personagens que se fazem presentes nas descrições
realizadas, seja pela escolha do léxico ou pela carga histórica ali inserida, retratando uma Guatemala
da em vários âmbitos da violência.A escrita de Rey Rosa se diferencia pela
abordagem particular quanto à utilização da violência com a perspectiva de que, em seus textos, a
violência não é um elemento de discussão que faz o leitor refletir sobre ela, ma
s que viabiliza a
construção da narrativa a partir de seus traços peculiares acrescidos de outros aspectos presentes na
obra. Como referencial teórico, este artigo se debruça nos estudos realizados pelo chileno Ariel
da violência na literatura e as explanações de
(2001), de Rodrigo Rey Rosa: una
Este artigo evidencia una mirada sobre la literatura centroamericana a partir de un estudio
(2001), del escritor guatemalteco contemporáneo
Rodrigo Rey Rosa. En esta novela, se nota la construcción del espacio a partir de la violencia, sea
representativa, sea textual, sea por los personajes que están presentes en las descripciones
retratando una Guatemala
. La escrita de Rey Rosa se diferencia por el
perspectiva de que, en sus textos, la
violencia no es solo un elemento de discusión que hace el lector reflexionar sobre ella, pero que
viabiliza la construcción de la narrativa a partir de sus rasgos peculiares acrecidos de otros aspectos
obra. Como referencial teórico, este artículo se inclina hacia los estudios realizados
por Ariel Dorfman (1972) sobre algunas dimensiones de la violencia en la literatura y las
Instituto Federal de Educação, Ciência e
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
The portrayal of violence on Rodrigo Rey Rosa's
construction
Abstract:
This article brings up a look on Central America literature, based on a study of the book
Piedras Encantadas
(2001), from the contemporary Guatemalan writer Rodrigo Rey Rosa.In this
romance, it is observed the construction of space from the perspective of violence, either
representative, textual, from the characters that are present on the descriptions
choice or by historical facts inserted in the work, portraying a Guatemala built and rooted in various
scopes of violence. The writing of Rey Rosa is singular by his particular approach on the use of
violence with the perspective that
that makes the reader reflect about it, but it also enables the construction of the narrative from its
peculiar traces bolstered by other aspects of the work. As theorical framework, thi
on studies from Chilean author Ariel Dorfman (1972) about dimensions of violence in literature and
explanations from Schøllhammer (2013) about this subject.
Keywords:
Violence; Space; Rey Rosa; Guatemala.
O retrato da violência no romance
Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética
Introdução
No começo dos anos 1990, a
chamada “pacificação” dos países
centro-
americanos teve como marco a
derrota eleitoral do governo
revolucionário sandinista na
Nicarágua, que havia destituído por
meio de luta armada o ditador
Anastasio Somoza em 1979. Ao
assumir
o poder na década de 1980 a
Frente Sandinista de Libertação
Nacional (FSLN), com Daniel Ortega
como líder, revogou a Constituição,
dissolveu o Congresso e substituiu a
Guarda Nacional pelo Exército Popular
Sandinista. Todas essas ações
geraram revolta por
parte de outros
grupos que eram contra tais medidas e
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
The portrayal of violence on Rodrigo Rey Rosa's
Piedras Encantadas
(2001): an aesthetics
This article brings up a look on Central America literature, based on a study of the book
(2001), from the contemporary Guatemalan writer Rodrigo Rey Rosa.In this
romance, it is observed the construction of space from the perspective of violence, either
representative, textual, from the characters that are present on the descriptions
choice or by historical facts inserted in the work, portraying a Guatemala built and rooted in various
scopes of violence. The writing of Rey Rosa is singular by his particular approach on the use of
violence with the perspective that
, in his writings, the violence is not only an element for discussion
that makes the reader reflect about it, but it also enables the construction of the narrative from its
peculiar traces bolstered by other aspects of the work. As theorical framework, thi
on studies from Chilean author Ariel Dorfman (1972) about dimensions of violence in literature and
explanations from Schøllhammer (2013) about this subject.
Violence; Space; Rey Rosa; Guatemala.
O retrato da violência no romance
Piedras Encantadas
Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética
No começo dos anos 1990, a
chamada “pacificação” dos países
americanos teve como marco a
derrota eleitoral do governo
revolucionário sandinista na
Nicarágua, que havia destituído por
meio de luta armada o ditador
Anastasio Somoza em 1979. Ao
o poder na década de 1980 a
Frente Sandinista de Libertação
Nacional (FSLN), com Daniel Ortega
como líder, revogou a Constituição,
dissolveu o Congresso e substituiu a
Guarda Nacional pelo Exército Popular
Sandinista. Todas essas ações
parte de outros
grupos que eram contra tais medidas e
desencadearam uma rie de conflitos
armados entre o Exército Sandinista e
os “Contras”, grupo contrário às ações
governamentais da época. Em 1988,
Ortega assina uma lei de reforma
eleitoral, prevendo
eleições amplas e
livres em 1990. Nesse ano, Violeta
Barrios de Chamorro vence as
eleições presidenciais e inicia, então, o
processo de pacificação no país.
Seguiram, cronologicamente
esse processo, a assinatura dos
Acordos de Paz em El Salvador (1992)
e
na Guatemala (1996). Neste último,
o acordo assinado põe fim à guerra
civil que durou 36 anos e deixou mais
de centenas de milhares de mortos,
dezenas de milhares de desaparecidos
67
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
(2001): an aesthetics
This article brings up a look on Central America literature, based on a study of the book
(2001), from the contemporary Guatemalan writer Rodrigo Rey Rosa.In this
romance, it is observed the construction of space from the perspective of violence, either
made, by the lexicon
choice or by historical facts inserted in the work, portraying a Guatemala built and rooted in various
scopes of violence. The writing of Rey Rosa is singular by his particular approach on the use of
, in his writings, the violence is not only an element for discussion
that makes the reader reflect about it, but it also enables the construction of the narrative from its
peculiar traces bolstered by other aspects of the work. As theorical framework, thi
s article elaborates
on studies from Chilean author Ariel Dorfman (1972) about dimensions of violence in literature and
Piedras Encantadas
(2001), de
desencadearam uma rie de conflitos
armados entre o Exército Sandinista e
os “Contras”, grupo contrário às ações
governamentais da época. Em 1988,
Ortega assina uma lei de reforma
eleições amplas e
livres em 1990. Nesse ano, Violeta
Barrios de Chamorro vence as
eleições presidenciais e inicia, então, o
processo de pacificação no país.
Seguiram, cronologicamente
esse processo, a assinatura dos
Acordos de Paz em El Salvador (1992)
na Guatemala (1996). Neste último,
o acordo assinado põe fim à guerra
civil que durou 36 anos e deixou mais
de centenas de milhares de mortos,
dezenas de milhares de desaparecidos
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
e um genocídio dos descendentes do
povo maia na década de 1980 ainda
em inv
estigação até hoje. Os anos
que seguem, trazem à tona uma
política de reconstrução da
democracia e do desenvolvimento
para esta área.
Para Ortiz Wallner
(2012, p. 31),
Esos años de transición se han
caracterizado, sin embargo, por ser
un momento matizado
cultura de la discriminación y la
violencia, así como por la
profundización de las crisis y
exclusión sociales.
2
Esses anos de transição aos
quais a autora se refere no trecho
anterior são marcados por uma escrita
que reflete o desencanto e a frustração
da população centro-
americana com
relação às revoluções acontecidas no
período anterior que trouxeram uma
promessa
de mudança para a região e
criaram uma esperança nos discursos
ali proferidos.
Na literatura, esse período de
transição do fim dos anos oitenta e
início dos anos noventa, com o fim das
guerras anteriormente citadas,
apareceram as narrativas que foram
2
Esses anos de transição foram
caracterizados, entretanto, por ser um
momento matizado por uma cultura da
discriminação e pela violência, assim como
pelo aprofundamento da crise e a exclusão
sociais. (Tradução nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
e um genocídio dos descendentes do
povo maia na década de 1980 ainda
estigação até hoje. Os anos
que seguem, trazem à tona uma
política de reconstrução da
democracia e do desenvolvimento
Para Ortiz Wallner
Esos años de transición se han
caracterizado, sin embargo, por ser
un momento matizado
por una
cultura de la discriminación y la
violencia, así como por la
profundización de las crisis y
Esses anos de transição aos
quais a autora se refere no trecho
anterior são marcados por uma escrita
que reflete o desencanto e a frustração
americana com
relação às revoluções acontecidas no
período anterior que trouxeram uma
de mudança para a região e
criaram uma esperança nos discursos
Na literatura, esse período de
transição do fim dos anos oitenta e
início dos anos noventa, com o fim das
guerras anteriormente citadas,
apareceram as narrativas que foram
Esses anos de transição foram
caracterizados, entretanto, por ser um
momento matizado por uma cultura da
discriminação e pela violência, assim como
pelo aprofundamento da crise e a exclusão
deno
minadas de literatura de pós
guerra. Os relatos e as narrativas de
testemunho produzidas durante quase
toda a segunda metade do século XX
não conseguem mais dar voz aos
sentimentos da população centro
americana e surge a necessidade de
se falar de algo
latente, visível e
assustador que se apresenta diante
dos olhos de todos. Uma realidade
pós-
guerra que emerge mais rápida
que a reconstrução anunciada e a
redemocratização pretendida.
Existe, neste ponto, uma
mudança estética nas narrativas
centro-america
nas. Sai
militância política para buscar
estética que não almeja mais o
universal, mas o individual. A
identidade centro-
americana também
segue sendo buscada e construída,
porém não mais pela ótica das
revoluções e dos conflitos armados
inicia
dos nos anos 1960 e
intensificados nas décadas de 1970 e
1980. Neste cenário, esta identidade
vai sendo percebida a partir das novas
temáticas que são abordadas: a morte,
a violência urbana, cotidiana e gratuita,
as feridas/marcas das recentes
guerras, a s
olidão, a frustação, entre
outras, que apontam para uma
68
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
minadas de literatura de pós
-
guerra. Os relatos e as narrativas de
testemunho produzidas durante quase
toda a segunda metade do século XX
não conseguem mais dar voz aos
sentimentos da população centro
-
americana e surge a necessidade de
latente, visível e
assustador que se apresenta diante
dos olhos de todos. Uma realidade
guerra que emerge mais rápida
que a reconstrução anunciada e a
redemocratização pretendida.
Existe, neste ponto, uma
mudança estética nas narrativas
nas. Sai
-se da
militância política para buscar
-se uma
estética que não almeja mais o
universal, mas o individual. A
americana também
segue sendo buscada e construída,
porém não mais pela ótica das
revoluções e dos conflitos armados
dos nos anos 1960 e
intensificados nas décadas de 1970 e
1980. Neste cenário, esta identidade
vai sendo percebida a partir das novas
temáticas que são abordadas: a morte,
a violência urbana, cotidiana e gratuita,
as feridas/marcas das recentes
olidão, a frustação, entre
outras, que apontam para uma
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
literatura de desencanto
2010).
A literatura que se elabora a
partir desse instante reage contra a
estética criada pela literatura
testemunhal. Surge uma escrita
voltada para as acusações so
mas com grande experimentalismo
estético. A literatura de pós
uma mudança em relação ao conceito
daquilo que é o nacional assim como
as propostas de solidificação do
caráter nacional, as relações
fronteiriças e os processos culturais,
que são híbridos.
O fim do século XX e o início do
XXI são marcados pelo
aprofundamento de temáticas como os
relatos de violência cotidiana, a
violência e o pânico propagado pela
formação e o crescimento das
gangues, o fluxo migratório incessante
em busca
de melhores condições de
vida e também relatos de personagens
que atravessam circunstâncias
cotidianas consideradas estranhas ou
incomuns, carregadas, em alguns
casos, de um teor fantástico.
Fato é que, também, se o
panorama histórico centro
for
analisado com maior profundidade,
não se terá uma percepção comum ou
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
(CORTEZ,
A literatura que se elabora a
partir desse instante reage contra a
estética criada pela literatura
testemunhal. Surge uma escrita
voltada para as acusações so
ciais,
mas com grande experimentalismo
estético. A literatura de pós
-guerra traz
uma mudança em relação ao conceito
daquilo que é o nacional assim como
as propostas de solidificação do
caráter nacional, as relações
fronteiriças e os processos culturais,
O fim do século XX e o início do
XXI são marcados pelo
aprofundamento de temáticas como os
relatos de violência cotidiana, a
violência e o pânico propagado pela
formação e o crescimento das
gangues, o fluxo migratório incessante
de melhores condições de
vida e também relatos de personagens
que atravessam circunstâncias
cotidianas consideradas estranhas ou
incomuns, carregadas, em alguns
casos, de um teor fantástico.
Fato é que, também, se o
panorama histórico centro
-americano
analisado com maior profundidade,
não se terá uma percepção comum ou
genérica de tudo o que aconteceu
nesses países. A literatura se encarga
de evidenciar uma
Centroamérica
se encontra à mercê dos príncipes dos
carteis do narcotráfico, das
dos Zetas -
grupos de pessoas que se
aproveitam de milhares de imigrantes
pobres que buscam atravessar a
fronteiras ilegalmente. Essas situações
do cotidiano centro-
americano não são
passageiras apesar de todas serem
incorporadas de maneira natural à vida
desses habitantes.
A literatura centro
-
estética da violência
Nesses países, a narrativa
produzida pelos autores
contemporâneos
3
se faz valer da
necessidade de reconstruir e
evidenciar o cenário de tal nação
assim como a de organizar a condiç
humana devastada e perseguida pelas
sombras de um passado tenebroso.
Escamilla
(2011, p. 19)
novo espaço cultural em que as
fronteiras se diluem e a
3
Alguns nomes desta geração contemporânea
são Róger Lindo, Jacinta Escudos e
Castellanos Moya (salvadorenhos); Franz
Galich, Otoniel Martínez, Rafael Cuevas
Molina e Danto Liano (guatemaltecos); Omar
Cabezas, Sergio Ramírez e Gioconda Belli
(nicaraguenses).
69
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
genérica de tudo o que aconteceu
nesses países. A literatura se encarga
Centroamérica
que
se encontra à mercê dos príncipes dos
carteis do narcotráfico, das
maras, ou
grupos de pessoas que se
aproveitam de milhares de imigrantes
pobres que buscam atravessar a
fronteiras ilegalmente. Essas situações
americano não são
passageiras apesar de todas serem
incorporadas de maneira natural à vida
-
americana e a
estética da violência
Nesses países, a narrativa
produzida pelos autores
se faz valer da
necessidade de reconstruir e
evidenciar o cenário de tal nação
assim como a de organizar a condiç
ão
humana devastada e perseguida pelas
sombras de um passado tenebroso.
(2011, p. 19)
aponta um
novo espaço cultural em que as
fronteiras se diluem e a
Alguns nomes desta geração contemporânea
são Róger Lindo, Jacinta Escudos e
Castellanos Moya (salvadorenhos); Franz
Galich, Otoniel Martínez, Rafael Cuevas
Molina e Danto Liano (guatemaltecos); Omar
Cabezas, Sergio Ramírez e Gioconda Belli
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
imprescindibilidade de se narrar o que
se vive em diferentes locais
simultaneamente tomam a di
narrativa centro-
americana. O autor
afirma também que cresce o a caráter
da individualidade para mostrar o
panorama social centro
contemporâneo:
De estas individualidades unas
adquieren el rostro de la violencia,
otras de la indiferencia y la desilusión
que encarnan los personajes
novelescos para retratar esos signos
que en la cotidianidad tienen nombre
y apellido.
(ESCAMILLA, 2011, p.
19)
4
Escamilla
(2011, p. 23)
também que para compreender a
literatura centro-
americana produzida
pós-
guerra é necessário entender que
esta é produção de um processo
sociocultural e que quem a produz ou
a também pertence à sociedade que
está sendo retratada
. Não é uma visão
externa ou afastada da situação que
está acontecendo, mas uma
observação in loco
das consequências
do processo histórico sofrido por toda
a região.
No início da década de 1990, como
apontado, a narrativa centro
4
Destas individualidades umas adquirem o
rosto da violência, outras da indiferença e a
desilusão que encarnam as personagens
romanescas para retratar esses signos que na
cotidianidade têm nome e sobrenome.
(Tradução nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
imprescindibilidade de se narrar o que
se vive em diferentes locais
simultaneamente tomam a di
anteira da
americana. O autor
afirma também que cresce o a caráter
da individualidade para mostrar o
panorama social centro
-americano
De estas individualidades unas
adquieren el rostro de la violencia,
otras de la indiferencia y la desilusión
que encarnan los personajes
novelescos para retratar esos signos
que en la cotidianidad tienen nombre
(ESCAMILLA, 2011, p.
(2011, p. 23)
destaca
também que para compreender a
americana produzida
guerra é necessário entender que
esta é produção de um processo
sociocultural e que quem a produz ou
a também pertence à sociedade que
. Não é uma visão
externa ou afastada da situação que
está acontecendo, mas uma
das consequências
do processo histórico sofrido por toda
No início da década de 1990, como
apontado, a narrativa centro
-americana
Destas individualidades umas adquirem o
rosto da violência, outras da indiferença e a
desilusão que encarnam as personagens
romanescas para retratar esses signos que na
cotidianidade têm nome e sobrenome.
se transforma
em um “espaço no qual a
própria literatura se mostra com
características relacionadas à violência
em diversos graus e expressões:
La narrativa centroamericana a partir
de la década de 1990 […] tiene de
relacionarse con la violencia en tanto
que dinamiza las dimensiones de las
representaciones, las reacciones y
los desplazamientos de la violencia
en sus más diversas facetas hasta
conv
ertirse en un acto de violencia.
Está claro que el corpus de esta
literatura permanece abierto, y que
incluye una gran cantidad de
autores, obras y tipos de textos,
desde sex, drugs and (no, no rock’n
roll, sino) salsa hasta la novela negra
y la novela pol
iciaca, una forma cada
vez más popular en la región, siendo
su cercanía con los medios masivos
más que evidente en cuanto a lo que
a las técnicas narrativas se refiere.
(MACKENBACH
2008, p. 10)
5
Dentro deste cenário centro
americano contra
stivo e tenso surgem
autores que pretendem mostrar um retrato
contundente de seus países e de suas
realidades, agregando um novo estilo em
sua narrativa que, por sua vez, é marcado
em algumas ocasiões pela precisão e pela
5
A narrativa centro-
americana a partir da
década de 1990 […] tem de relacionar
a violência de tal maneira que dinamiza as
dimensiones das representações, as reações
e os deslocamentos da violência em suas mais
diversas facetas até se converter em um
de violência. Está claro que o
literatura permanece aberto, e que inclui uma
grande quantidade de autores, obras e tipos
de textos, desde sex, drugs and (não, não
rock’n roll, mas sim)
salsa
negro e o romance policial, uma f
vez mais popular na região, sendo sua
aproximação com os meios massivos mais
que evidente quanto ao que às técnicas
narrativas se refere. (T
radução nossa)
70
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
em um “espaço no qual a
própria literatura se mostra com
características relacionadas à violência
em diversos graus e expressões:
La narrativa centroamericana a partir
de la década de 1990 […] tiene de
relacionarse con la violencia en tanto
que dinamiza las dimensiones de las
representaciones, las reacciones y
los desplazamientos de la violencia
en sus más diversas facetas hasta
ertirse en un acto de violencia.
Está claro que el corpus de esta
literatura permanece abierto, y que
incluye una gran cantidad de
autores, obras y tipos de textos,
desde sex, drugs and (no, no rock’n
roll, sino) salsa hasta la novela negra
iciaca, una forma cada
vez más popular en la región, siendo
su cercanía con los medios masivos
más que evidente en cuanto a lo que
a las técnicas narrativas se refiere.
(MACKENBACH
; ORTIZ WALLNER,
Dentro deste cenário centro
-
stivo e tenso surgem
autores que pretendem mostrar um retrato
contundente de seus países e de suas
realidades, agregando um novo estilo em
sua narrativa que, por sua vez, é marcado
em algumas ocasiões pela precisão e pela
americana a partir da
década de 1990 […] tem de relacionar
-se com
a violência de tal maneira que dinamiza as
dimensiones das representações, as reações
e os deslocamentos da violência em suas mais
diversas facetas até se converter em um
ato
de violência. Está claro que o
corpus desta
literatura permanece aberto, e que inclui uma
grande quantidade de autores, obras e tipos
de textos, desde sex, drugs and (não, não
salsa
até o romance
negro e o romance policial, uma f
orma cada
vez mais popular na região, sendo sua
aproximação com os meios massivos mais
que evidente quanto ao que às técnicas
radução nossa)
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
agilidade e, em outras, pela image
cidade como locus terribilis
onde todos os
pesadelos se concentram nela e se
questiona como é possível sobreviver em
um ambiente tão inóspito
(MACKENBACH;
ORTIZ WALLNER,
2008).
Confluindo com a ideia proposta
por Escamilla aponta-
se o pensamento
de Ortiz Wallner (2003
), que havia
destacado que a estética literária
centro-
americana não estaria mais
centrada em acontecimentos políticos
nem preocupada em retratar datas e
fatos históricos, mas suas
transformações começam a ser, neste
momento, atreladas
a processos
culturais complexos, provenientes de
diversos fatores. Começa
construída, então, uma mentalidade de
se mostrar a nova realidade nacional e
regional a partir de novas estratégias
de escrita que percorrem o cenário e
as indagações atuais:
[...] por un lado, la incorporación de
elementos de la cultura popular
urbana que aparece muchas veces
vinculada a la sátira, el humor y la
ironía, estrategias que apuntan a la
particular importancia que se le
otorga a la oralidad y a su
escenificación e
n los textos escritos.
Por otro lado, destaca en un amplio
corpus narrativo la presencia de
diversos elementos propios de la
novela policiaca tradicional y de la
novela negra, como el motivo del
crimen y la presencia/ausencia del
detective, que son constan
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
agilidade e, em outras, pela image
m da
onde todos os
pesadelos se concentram nela e se
questiona como é possível sobreviver em
um ambiente tão inóspito
ORTIZ WALLNER,
Confluindo com a ideia proposta
se o pensamento
), que havia
destacado que a estética literária
americana não estaria mais
centrada em acontecimentos políticos
nem preocupada em retratar datas e
fatos históricos, mas suas
transformações começam a ser, neste
a processos
culturais complexos, provenientes de
diversos fatores. Começa
-se a ser
construída, então, uma mentalidade de
se mostrar a nova realidade nacional e
regional a partir de novas estratégias
de escrita que percorrem o cenário e
[...] por un lado, la incorporación de
elementos de la cultura popular
urbana que aparece muchas veces
vinculada a la sátira, el humor y la
ironía, estrategias que apuntan a la
particular importancia que se le
otorga a la oralidad y a su
n los textos escritos.
Por otro lado, destaca en un amplio
corpus narrativo la presencia de
diversos elementos propios de la
novela policiaca tradicional y de la
novela negra, como el motivo del
crimen y la presencia/ausencia del
detective, que son constan
temente
subvertidos y parodiados. También
podemos mencionar una presencia
destacada de los
la televisión, la radio y la prensa
(especialmente la prensa amarillista).
(MACKENBACH
2008, p. 8)
6
Assim, surge a ideia da
da violência”
e a
violência”
que se propõe destacar
neste artigo. Tem-
se como definição
da expressão cultura da violência
como o legado histórico da violência e
sua consequente naturalização na
dinâmica cotidiana de um determinado
lugar ou país
. Reconhecem
impunidade generalizada, o
autoritarismo vigente e constante, a
militarização da cultura cidadã, um
sistema judiciário fraco e inoperante
que se manifesta a partir das próprias
ações do Estado e em sua relação
com a população e que gera u
“cultura do silêncio” exatamente pela
6
[...] por um lado, a incorporação de
elementos da cultura popular urbana que
aparece muit
as vezes vinculada à sátira, ao
humor e à ironia, estratégias que apontam
para a particular importância que se lhe
outorga à oralidade e à sua encenação nos
textos escritos. Por outro lado, destaca em um
amplo corpus
narrativo a presença de diversos
elemen
tos próprios do romance policial
tradicional e do romance negro, como o motivo
do crime e a presença/ausência do detetive,
que são constantemente subvertidos e
parodiados. Também podemos mencionar
uma presença destacada dos
como a televisão, o r
ádio e a imprensa
(especialmente a imprensa marrom).
(Tradução nossa)
71
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
subvertidos y parodiados. También
podemos mencionar una presencia
destacada de los
mass media como
la televisión, la radio y la prensa
(especialmente la prensa amarillista).
(MACKENBACH
; ORTIZ WALLNER,
Assim, surge a ideia da
“cultura
“estética da
que se propõe destacar
se como definição
da expressão cultura da violência
como o legado histórico da violência e
sua consequente naturalização na
dinâmica cotidiana de um determinado
. Reconhecem
-se a
impunidade generalizada, o
autoritarismo vigente e constante, a
militarização da cultura cidadã, um
sistema judiciário fraco e inoperante
que se manifesta a partir das próprias
ações do Estado e em sua relação
com a população e que gera u
ma
“cultura do silêncio” exatamente pela
[...] por um lado, a incorporação de
elementos da cultura popular urbana que
as vezes vinculada à sátira, ao
humor e à ironia, estratégias que apontam
para a particular importância que se lhe
outorga à oralidade e à sua encenação nos
textos escritos. Por outro lado, destaca em um
narrativo a presença de diversos
tos próprios do romance policial
tradicional e do romance negro, como o motivo
do crime e a presença/ausência do detetive,
que são constantemente subvertidos e
parodiados. Também podemos mencionar
uma presença destacada dos
mass media
ádio e a imprensa
(especialmente a imprensa marrom).
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
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Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
ineficiência do sistema forense, pela
violência praticada pelo poder
executivo e pela resposta negativa da
própria população a todos esses
acontecimentos (CUEVAS MOLINA,
2012, p. 147).
Nesta perspectiva
, a violência
acaba se tornando uma das maneiras
viáveis de resposta imediata aos
conflitos encontrados na sociedade.
Assim, responde-
se à violência
cotidiana a que alguém está submetido
com a própria violência sofrida para se
defender ou reagir à primeira violência
exposta. Põem-
se nos dois lados da
moeda a mesma marca e a exata
igualdade entre os signos.
Seguindo este pensamento
consegue-
se observar
narrativas centro-
americanas
sendo construídas
por meio de
diversos elementos que costumam
representar uma v
iolência estrutural
direta/indireta e que a dinâmica da
produção narrativa a partir da década
de 1990 busca interagir
profundamente com os exemplos de
manifestações da violência cotidiana
em determinadas partes
da região:
En forma directa y breve se
muestr
an múltiples elementos que
pueden ser recorridos como
constantes dentro de la producción
narrativa centroamericana que
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ineficiência do sistema forense, pela
violência praticada pelo poder
executivo e pela resposta negativa da
própria população a todos esses
acontecimentos (CUEVAS MOLINA,
, a violência
acaba se tornando uma das maneiras
viáveis de resposta imediata aos
conflitos encontrados na sociedade.
se à violência
cotidiana a que alguém está submetido
com a própria violência sofrida para se
defender ou reagir à primeira violência
se nos dois lados da
moeda a mesma marca e a exata
Seguindo este pensamento
,
que as
americanas
vêm
por meio de
diversos elementos que costumam
iolência estrutural
direta/indireta e que a dinâmica da
produção narrativa a partir da década
de 1990 busca interagir
profundamente com os exemplos de
manifestações da violência cotidiana
da região:
En forma directa y breve se
an múltiples elementos que
pueden ser recorridos como
constantes dentro de la producción
narrativa centroamericana que
emerge a partir de la década de
1990 y que pueden organizarse
dinámicamente desde la interacción
de al menos las siguientes
dimensiones:
las representaciones
de la violencia, las reacciones ante la
violencia, los desplazamientos de la
violencia y la literatura como
violencia.
(MACKENBACH
WALLNER, 2008, p. 82)
Pensando na literatura como
plataforma de manifestação possível da
violência, conforme exposto pelos autores,
dimensiona-
se o conceito da
violência
, pois a violência neste momento
não é somente mais uma temática, mas
também é parte de um
construção narrativa
presente nos textos
produzidos
em certos países da
Central
, principalmente na Guatemala e
em El Salvador,
a partir de 1990. Walter
Benjamin (1985) foi um dos primeiros a
chamar a atenção das democracias
ocidentais para o
perigo da
política”.
Para o autor, quando Hitler
encomendou filmes sobre a Alemanha e
sobre a SS, o
Führer
aspectos estéticos existentes na política e
incorporou uma nova definição ao termo
em questão.
7
De forma direta e breve são mostrados
múltiplos elementos que podem ser
observados como constantes
narrativa centro-
americana que emerge a
partir da década de 1990 e que po
organizados dinamicamente a partir da
interação de ao menos as seguintes
dimensões: as representações da violência, as
reações ante a violência, os deslocamentos da
violência e a literatura como violência.
(Tradução nossa)
72
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
emerge a partir de la década de
1990 y que pueden organizarse
dinámicamente desde la interacción
de al menos las siguientes
las representaciones
de la violencia, las reacciones ante la
violencia, los desplazamientos de la
violencia y la literatura como
(MACKENBACH
; ORTIZ
WALLNER, 2008, p. 82)
7
Pensando na literatura como
plataforma de manifestação possível da
violência, conforme exposto pelos autores,
se o conceito da
estética da
, pois a violência neste momento
não é somente mais uma temática, mas
também é parte de um
elemento da
presente nos textos
em certos países da
América
, principalmente na Guatemala e
a partir de 1990. Walter
Benjamin (1985) foi um dos primeiros a
chamar a atenção das democracias
perigo da
“estética na
Para o autor, quando Hitler
encomendou filmes sobre a Alemanha e
Führer
transformou os
aspectos estéticos existentes na política e
incorporou uma nova definição ao termo
De forma direta e breve são mostrados
múltiplos elementos que podem ser
observados como constantes
na produção
americana que emerge a
partir da década de 1990 e que po
dem ser
organizados dinamicamente a partir da
interação de ao menos as seguintes
dimensões: as representações da violência, as
reações ante a violência, os deslocamentos da
violência e a literatura como violência.
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
A mesma configuração é
en
tendida quanto à estética da violência,
pois a barbárie se tornou natural e milhões
puderam expor seus instintos selvagens
sem consciência de culpa. Atualmente, a
estética da violência sobrevive e possui
grande força. Não mais como um ritual
cruel de genoc
ídios e extermínios ao som
de canções populares, mas também
estetizados pelos media. A imprensa em
geral e a televisão mercantilizam” a
violência como um produto racionalmente
vendável, da mesma forma, sem
consciência de culpa. O horror, a
destruição, as
mutilações, etc. se
tornaram um bom prato para um público
sedento por sangue. Assim, na estética da
violência, a própria violência se desloca,
segundo Ortiz Wallner
(2003, p. 140):
hacia el espacio existencial, hacia el
uso de un lenguaje que arremete
contra el lector y a la utilización de
“estrategias escriturales” que rompen
los órdenes tradicionales en el nivel
formal. Se trata de una estética que
pretende resolverse en una
agresividad que da la impresión de
ser gratuita.
8
É importante destacar que
violência aparece na literatura
séculos como objeto de estudo e temática
8
Em direção ao espaço
existencial, ao uso de
uma linguagem que arremete contra o leitor e
à utilização de “estratégias escriturais” que
rompem as ordens tradicionais no nível formal.
Trata-
se de uma estética que pretende
resolver-
se em uma agressividade que dá a
impressão de ser gratuita. (T
radução nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
A mesma configuração é
tendida quanto à estética da violência,
pois a barbárie se tornou natural e milhões
puderam expor seus instintos selvagens
sem consciência de culpa. Atualmente, a
estética da violência sobrevive e possui
grande força. Não mais como um ritual
ídios e extermínios ao som
de canções populares, mas também
estetizados pelos media. A imprensa em
geral e a televisão mercantilizam” a
violência como um produto racionalmente
vendável, da mesma forma, sem
consciência de culpa. O horror, a
mutilações, etc. se
tornaram um bom prato para um público
sedento por sangue. Assim, na estética da
violência, a própria violência se desloca,
(2003, p. 140):
hacia el espacio existencial, hacia el
uso de un lenguaje que arremete
contra el lector y a la utilización de
“estrategias escriturales” que rompen
los órdenes tradicionales en el nivel
formal. Se trata de una estética que
pretende resolverse en una
agresividad que da la impresión de
É importante destacar que
a
violência aparece na literatura
séculos como objeto de estudo e temática
existencial, ao uso de
uma linguagem que arremete contra o leitor e
à utilização de “estratégias escriturais” que
rompem as ordens tradicionais no nível formal.
se de uma estética que pretende
se em uma agressividade que dá a
radução nossa)
recorrente e que, dentro da cosmovisão e
da estrutura social latino
violência está intrínseca como
manifestação concreta. Segundo
Schøllhammer, é uma chave para
entender a cultura e parece ser um dos
fundamentos da própria estrutural social.”
(2013, p.103). O autor ainda apresenta a
ideia da violência como um fenômeno
social marginal transgressivo dentro de
uma ordem social autoritária em um
contexto literário con
struído nas primeiras
décadas do século XX.
A partir da segunda metade do
século XX, principalmente com os textos
do chileno Ariel Dorfman
algumas dimensões da violência dentro da
literatura. Schøllhammer explana sobre
essas dimensões propo
seguinte entendimento: a primeira
dimensão se refere à violência social,
como uma matriz vertical, que possui as
faces de repressora e autoritária ou
rebelde e libertadora que vê na literatura a
abertura para ser simbolizada como um
processo de
redenção e a retomada da
honra e uma libertação dos mecanismos
opressores. Na segunda dimensão, que
estaria em uma posição horizontal, está a
violência intersubjetiva que está atrelada
ao caráter individual, beirando a solidão
ou a alienação deste indivíd
destaque. Nessa dimensão, a demanda
9
Imaginación y violencia en América Latina
(1972).
73
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
recorrente e que, dentro da cosmovisão e
da estrutura social latino
-americana, a
violência está intrínseca como
manifestação concreta. Segundo
Schøllhammer, é uma chave para
entender a cultura e parece ser um dos
fundamentos da própria estrutural social.”
(2013, p.103). O autor ainda apresenta a
ideia da violência como um fenômeno
social marginal transgressivo dentro de
uma ordem social autoritária em um
struído nas primeiras
A partir da segunda metade do
século XX, principalmente com os textos
do chileno Ariel Dorfman
9
, encontram-se
algumas dimensões da violência dentro da
literatura. Schøllhammer explana sobre
essas dimensões propo
rcionando o
seguinte entendimento: a primeira
dimensão se refere à violência social,
como uma matriz vertical, que possui as
faces de repressora e autoritária ou
rebelde e libertadora que vê na literatura a
abertura para ser simbolizada como um
redenção e a retomada da
honra e uma libertação dos mecanismos
opressores. Na segunda dimensão, que
estaria em uma posição horizontal, está a
violência intersubjetiva que está atrelada
ao caráter individual, beirando a solidão
ou a alienação deste indivíd
uo em
destaque. Nessa dimensão, a demanda
Imaginación y violencia en América Latina
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
existencial se faz presente a partir dos
modelos de honra e vingança, provocando
uma condição humana de isolamento. O
agravamento dessa segunda dimensão
seria dentro de um âmbito interior e
psicológico, atando a vi
olência à angústia
e ao desespero que não é (ou não pode
ser) externalizado. A quarta dimensão
apresenta características da violência
como representação:
Finalmente, Dorfman inclui a
violência da representação, vendo na
literatura um movimento
transgressiv
o de ruptura que possa
produzir um efeito contundente de
choque com um desenlace
semelhante à experiência catártica
de purificação das emoções por
terror e piedade. Assim, parece
haver uma presença da violência na
literatura não na representação
temátic
a de uma violência, mas
também na exploração pela escrita
de efeitos sensíveis que desloca a
fronteira do que pode ou não ser
dito. Pode-
se entender a violência da
representação nessa perspectiva
ligada à dimensão expressiva e
performática da literatura, c
mudar as fronteiras do que pode ser
representado ou não, do que pode
ser escrito ou não, abrindo assim
caminho para um reconhecimento
dinâmico através da ficção do que é
real ou não. A violência perfomativa
agencia na literatura a fronteira entre
a realidade e a ficção ao abrir a
possibilidade de reconhecer
realidades antes não
experimentadas e rompendo
certezas do que é real.
(SCHØLLHAMMER, 2013, p. 107)
É a partir desta última dimensão, e
buscando-
se ir mais além, que se propõe
uma estética que
aborda a violência não
como temática recorrente que permeia
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
existencial se faz presente a partir dos
modelos de honra e vingança, provocando
uma condição humana de isolamento. O
agravamento dessa segunda dimensão
seria dentro de um âmbito interior e
olência à angústia
e ao desespero que não é (ou não pode
ser) externalizado. A quarta dimensão
apresenta características da violência
Finalmente, Dorfman inclui a
violência da representação, vendo na
literatura um movimento
o de ruptura que possa
produzir um efeito contundente de
choque com um desenlace
semelhante à experiência catártica
de purificação das emoções por
terror e piedade. Assim, parece
haver uma presença da violência na
literatura não na representação
a de uma violência, mas
também na exploração pela escrita
de efeitos sensíveis que desloca a
fronteira do que pode ou não ser
se entender a violência da
representação nessa perspectiva
ligada à dimensão expressiva e
performática da literatura, c
apaz de
mudar as fronteiras do que pode ser
representado ou não, do que pode
ser escrito ou não, abrindo assim
caminho para um reconhecimento
dinâmico através da ficção do que é
real ou não. A violência perfomativa
agencia na literatura a fronteira entre
a realidade e a ficção ao abrir a
possibilidade de reconhecer
realidades antes não
experimentadas e rompendo
certezas do que é real.
(SCHØLLHAMMER, 2013, p. 107)
É a partir desta última dimensão, e
se ir mais além, que se propõe
aborda a violência não
como temática recorrente que permeia
as obras literárias latino
contemporâneas. A
apresenta
neste artigo
violência possui um caráter performático
representado em um estilo de escrita, nos
recurs
os e nas escolhas linguísticas feitas
por um autor. Não se trata de evidenciar a
violência pautando-
se nas outras
dimensões citadas, conferindo
posição dentro de uma categoria temática,
mas de revelá-
la a partir de um projeto
estético-linguístico-l
iterário que rompe
com ideal inicial e vai mais além,
perpetrando a violência na escrita como
forja para um novo projeto estilístico.
Trata-
se de utilizar a violência como
matéria-
prima temática e estrutural para a
literatura, conforme aponta Schøllhammer
(2013, p. 108-109):
Se a literatura privilegia a violência
como tema e matéria
porque a literatura penetra na
violência exatamente naquilo que
escapa aos outros discursos apenas
representativos, naquilo que é o
elemento produtivo e catalisador na
violência e a faz comunicar. É certo
que a violência pode ser entendida
como o limite da comunicação, o
ponto em que as palavras se rendem
ao silêncio da força bruta e em que o
diálogo de certa maneira é eclipsado
pelo poder. Por outro lado, a
violência ta
mbém pode ser o ponto
inicial de uma comunicação, uma
imposição que força relações de
poder engessadas a reformularem.
Para a literatura, e principalmente
para a narrativa ficcional, o elemento
produtivo gira em torno da
imaginação injetada pela violência
a natureza enigmática de sua
realidade íntima e cruel.
74
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
as obras literárias latino
-americanas
teoria que se
neste artigo
é de que a
violência possui um caráter performático
representado em um estilo de escrita, nos
os e nas escolhas linguísticas feitas
por um autor. Não se trata de evidenciar a
se nas outras
dimensões citadas, conferindo
-lhe uma
posição dentro de uma categoria temática,
la a partir de um projeto
iterário que rompe
com ideal inicial e vai mais além,
perpetrando a violência na escrita como
forja para um novo projeto estilístico.
se de utilizar a violência como
prima temática e estrutural para a
literatura, conforme aponta Schøllhammer
Se a literatura privilegia a violência
como tema e matéria
-prima, é
porque a literatura penetra na
violência exatamente naquilo que
escapa aos outros discursos apenas
representativos, naquilo que é o
elemento produtivo e catalisador na
violência e a faz comunicar. É certo
que a violência pode ser entendida
como o limite da comunicação, o
ponto em que as palavras se rendem
ao silêncio da força bruta e em que o
diálogo de certa maneira é eclipsado
pelo poder. Por outro lado, a
mbém pode ser o ponto
inicial de uma comunicação, uma
imposição que força relações de
poder engessadas a reformularem.
Para a literatura, e principalmente
para a narrativa ficcional, o elemento
produtivo gira em torno da
imaginação injetada pela violência
e
a natureza enigmática de sua
realidade íntima e cruel.
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
Assim, entende-
se que a literatura centro
americana contemporânea se faz valer da
estética que privilegia a escrita não da
violência, mas também, principalmente,
pela
violência. É a construção
que encontra na violência um campo de
experiência criativa que transborda os
limites literários dos discursos literários
conhecidos.
Esse novo projeto literário centro
americano contemporâneo
é contemplado
por Ortiz Wallner quando a autora afirma
que não se encontra mais uma denúncia
da opressão sofrida na região, que se
mantinha pela ideia de força na luta
armada e na violência justificada
politicamente, mas surge um modelo
estético diferente.
[...] que una gran parte de estos
textos literarios van a privilegiar una
mirada inquisidora y crítica sobre las
consecuencias
de las múltiples
relaciones de violencia en y entre los
individuos y en sus relaciones
interpersonales. Se trata de textos
lite
rarios que cuestionan las
(im)posibilidades de (sobre)vivir en
espacios de violencia, predominando
en ellos lo que Dante Liano describe
como “violencia oblicua”, es decir,
aquel espacio textual en el cual la
violencia está contenida de manera
indirecta, su
mergida, alegórica, lo
que hace que la narración sea una
donde la denuncia social directa ya
no aparece […]. Las realidades e
historias de violencia ficcionalizadas
en las narrativas centroamericanas
recientes se articulan así en una
presencia velada y sum
violencia, por ejemplo en el lenguaje
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
se que a literatura centro
-
americana contemporânea se faz valer da
estética que privilegia a escrita não da
violência, mas também, principalmente,
violência. É a construção
de um estilo
que encontra na violência um campo de
experiência criativa que transborda os
limites literários dos discursos literários
Esse novo projeto literário centro
-
é contemplado
por Ortiz Wallner quando a autora afirma
que não se encontra mais uma denúncia
da opressão sofrida na região, que se
mantinha pela ideia de força na luta
armada e na violência justificada
politicamente, mas surge um modelo
[...] que una gran parte de estos
textos literarios van a privilegiar una
mirada inquisidora y crítica sobre las
de las múltiples
relaciones de violencia en y entre los
individuos y en sus relaciones
interpersonales. Se trata de textos
rarios que cuestionan las
(im)posibilidades de (sobre)vivir en
espacios de violencia, predominando
en ellos lo que Dante Liano describe
como “violencia oblicua”, es decir,
aquel espacio textual en el cual la
violencia está contenida de manera
mergida, alegórica, lo
que hace que la narración sea una
donde la denuncia social directa ya
no aparece […]. Las realidades e
historias de violencia ficcionalizadas
en las narrativas centroamericanas
recientes se articulan así en una
presencia velada y sum
ergida de la
violencia, por ejemplo en el lenguaje
y las estructuras narrativas.
WALLNER,
2015, p. 320
É exatamente na linguagem e nas
estruturas narrativas construídas por
Rodrigo Rey Rosa que aparece esta nova
estética da violência que prio
produção escrita dentro de uma
perspectiva singular a fim de dar novos
sentidos à produção literária cernida em
uma nova escritura da violência. Sendo
um projeto literário diferente daquele
produzido nas décadas de 1960 e 1970
esta estética busca t
razer a violência de
diversas formas, como menciona a autora,
indireta, submergida, alegórica, utilizando
outras técnicas para fazer surgir um
espaço pautado
na construção imagética
da violência.
10
[...] que uma grande parte destes textos
literários vão privilegiar um olhar inquisidor e
crítico sobre as
consequências
relações de violência no e entre os indivíduos
e em suas relações
interpessoais. Tratam
de textos literários que questionam as
(im)possibilidades de (sobre)viver em espaços
de violência, predominando neles o que Dante
Liano descreve como
“violência oblíqua”, ou
seja, aquele espaço textual no qual a violência
está contida de maneira indireta, submergida,
alegórica, o que faz [com] que a narração seja
uma onde a denúncia social direta já o
aparece […]. As realidades e histórias de
violênci
a ficcionalizadas nas narrativas centro
americanas recentes se articulam assim em
uma presença velada e submergida da
violência, por exemplo na linguagem e nas
estruturas narrativas. (T
radução nossa)
75
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
y las estructuras narrativas.
(ORTIZ
2015, p. 320
-321)
10
É exatamente na linguagem e nas
estruturas narrativas construídas por
Rodrigo Rey Rosa que aparece esta nova
estética da violência que prio
riza a
produção escrita dentro de uma
perspectiva singular a fim de dar novos
sentidos à produção literária cernida em
uma nova escritura da violência. Sendo
um projeto literário diferente daquele
produzido nas décadas de 1960 e 1970
,
razer a violência de
diversas formas, como menciona a autora,
indireta, submergida, alegórica, utilizando
outras técnicas para fazer surgir um
na construção imagética
[...] que uma grande parte destes textos
literários vão privilegiar um olhar inquisidor e
consequências
das múltiplas
relações de violência no e entre os indivíduos
interpessoais. Tratam
-se
de textos literários que questionam as
(im)possibilidades de (sobre)viver em espaços
de violência, predominando neles o que Dante
“violência oblíqua”, ou
seja, aquele espaço textual no qual a violência
está contida de maneira indireta, submergida,
alegórica, o que faz [com] que a narração seja
uma onde a denúncia social direta já o
aparece […]. As realidades e histórias de
a ficcionalizadas nas narrativas centro
-
americanas recentes se articulam assim em
uma presença velada e submergida da
violência, por exemplo na linguagem e nas
radução nossa)
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
A
violência como espaço em
Piedras Encantadas
(2001)
de uma Guatemala pós
-
um jogo narrativo
Dividida em mais de vinte
capítulos,
que possuem quatro
páginas no máximo cada,
encantadas
(2001), reeditada no livro
Imitación de Guatemala
produz a partir da busca do detetive
R
astelli em desvendar o atropelamento
do filho adotivo de uma senhora de
classe média-
alta. Suspeita
atropelamento intencional que a
senhora está em pleno processo de
divórcio e o seu esposo é um homem
que ascendeu rapidamente nos
negócios. A na
rrativa, entretanto, não
se compõe linearmente como um
relato das experiências e das
descobertas desta personagem
investigadora, mas se fragmenta e
direciona o leitor para cenas
aparentemente secundárias que, ao
final, acabam por tecer juntas uma
rede de h
istórias interconectadas por
detalhes para construir o desfecho.
Desse modo,
Piedras
(2001)
é um romance muito curto, mas
que atua como ponto de condensação
da problemática guatemalteca e suas
diversas formas de violência.
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
violência como espaço em
(2001)
: retratos
-
guerra em
Dividida em mais de vinte
que possuem quatro
páginas no máximo cada,
Piedras
(2001), reeditada no livro
(2014), se
produz a partir da busca do detetive
astelli em desvendar o atropelamento
do filho adotivo de uma senhora de
alta. Suspeita
-se de um
atropelamento intencional que a
senhora está em pleno processo de
divórcio e o seu esposo é um homem
que ascendeu rapidamente nos
rrativa, entretanto, não
se compõe linearmente como um
relato das experiências e das
descobertas desta personagem
investigadora, mas se fragmenta e
direciona o leitor para cenas
aparentemente secundárias que, ao
final, acabam por tecer juntas uma
istórias interconectadas por
detalhes para construir o desfecho.
encantadas
é um romance muito curto, mas
que atua como ponto de condensação
da problemática guatemalteca e suas
diversas formas de violência.
Além disso, assim como
Material Humano
(2009)
Sordos (2012)
,
importantes do autor,
da vida urbana na capital
guatemalteca e, neste caso, uma
frustração pelos problemas latentes
desta sociedade recém
guerra civil de trinta
duração. O prefácio da narrativa
apresenta uma Guatemala repleta de
elementos desencantadores que
refletem a desesperança quanto a
possíveis mudanças em um futuro
próximo:
Guatemala, Centroamérica.
El país más hermoso, la gente
más fea.
Guatemala. La pequeña
república donde la pena de muerte
no fue abolida nunca, donde el
linchamiento ha sido la única
manifestación perdurable de
organización social.
Ciudad de Guatemala.
Doscientos kilómetros cuadrados de
asfalto y hormigón (producido y
m
onopolizado por una sola familia
durante el último siglo). Prototipo de
la ciudad dura, donde la gente rica
va en blindados y los hombres de
negocios más exitosos llevan
chalecos antibalas. […]
[…] Para subir al décimo piso de
una <<torre>>
-
privilegiado
(Pero hoy no funciona.)
Aquí (casi) nada es como
piensas. [...]
No olvides que estás en
Guatemala. […] Dicen que en una de
las casetas venden polvo de coca y
piedras de crack. Más vale no
76
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Além disso, assim como
em El
(2009)
e em Los
outras obras
importantes do autor,
tem-se o retrato
da vida urbana na capital
guatemalteca e, neste caso, uma
frustração pelos problemas latentes
desta sociedade recém
-saída de uma
e seis anos de
duração. O prefácio da narrativa
apresenta uma Guatemala repleta de
elementos desencantadores que
refletem a desesperança quanto a
possíveis mudanças em um futuro
Guatemala, Centroamérica.
El país más hermoso, la gente
Guatemala. La pequeña
república donde la pena de muerte
no fue abolida nunca, donde el
linchamiento ha sido la única
manifestación perdurable de
organización social.
Ciudad de Guatemala.
Doscientos kilómetros cuadrados de
asfalto y hormigón (producido y
onopolizado por una sola familia
durante el último siglo). Prototipo de
la ciudad dura, donde la gente rica
va en blindados y los hombres de
negocios más exitosos llevan
chalecos antibalas. […]
[…] Para subir al décimo piso de
-
estás en el sector
tomas el elevador.
(Pero hoy no funciona.)
Aquí (casi) nada es como
No olvides que estás en
Guatemala. […] Dicen que en una de
las casetas venden polvo de coca y
piedras de crack. Más vale no
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
protestar.
(REY ROSA, 2014,
210)
11
Os trechos acima retirados do
prefácio da obra são alguns exemplos
da frustração da personagem Joaquín
Casasola de voltar a viver novamente
na Guatemala depois de anos
morando na Espanha. Mais do que
isso, a citação revela um cenário
desanima
dor a partir da perspectiva de
um nativo dentro de seu próprio país.
Sendo escrito mais de dez anos
antes de Los Sordos
(2012)
de Piedras encantadas
(2001)
um ambiente que ainda estaria
presente no romance publicado uma
década mais ta
rde. A questão dos
linchamentos dentro da sociedade
guatemalteca é destacada nos dois
11
Guatemala, América Central.
O país mais lindo, a gente
mais feia.
Guatemala. A pequena república onde a pena
de morte não foi abolida nunca, onde o
linchamento tem sido a única manifestação
perdurável de organização social.
Ciudad de Guatemala. Duzentos quilômetros
quadrados de asfalto e concreto (produzido
monopolizado por uma só família durante o
último século). Protótipo da cidade difícil, onde
a gente rica vai dentro de carros blindados e
os homens de negócios mais bem
usam coletes à prova de balas. […]
[…] Para subir até o décimo andar de uma
<<torre>> -
está no setor privilegiado
pega o elevador. (Mas hoje ele não funciona.)
Aqui (quase) nada é como você pensa. [...]
Não esqueça que está na Guatemala. […]
Dizem que em uma das barracas vendem
cocaína e pedras de crack. Melhor não
protestar. (Tradução nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
(REY ROSA, 2014,
p. 209-
Os trechos acima retirados do
prefácio da obra são alguns exemplos
da frustração da personagem Joaquín
Casasola de voltar a viver novamente
na Guatemala depois de anos
morando na Espanha. Mais do que
isso, a citação revela um cenário
dor a partir da perspectiva de
um nativo dentro de seu próprio país.
Sendo escrito mais de dez anos
(2012)
, o prefácio
(2001)
constrói
um ambiente que ainda estaria
presente no romance publicado uma
rde. A questão dos
linchamentos dentro da sociedade
guatemalteca é destacada nos dois
mais feia.
Guatemala. A pequena república onde a pena
de morte não foi abolida nunca, onde o
linchamento tem sido a única manifestação
perdurável de organização social.
Ciudad de Guatemala. Duzentos quilômetros
quadrados de asfalto e concreto (produzido
e
monopolizado por uma só família durante o
último século). Protótipo da cidade difícil, onde
a gente rica vai dentro de carros blindados e
os homens de negócios mais bem
-sucedidos
usam coletes à prova de balas. […]
[…] Para subir até o décimo andar de uma
está no setor privilegiado
– você
pega o elevador. (Mas hoje ele não funciona.)
Aqui (quase) nada é como você pensa. [...]
Não esqueça que está na Guatemala. […]
Dizem que em uma das barracas vendem
cocaína e pedras de crack. Melhor não
romances e reafirmam uma prática
violenta que se mantém no cotidiano
nacional por gerações como uma
organização social bem
durável, conforme aponta o autor.
A
lém disso, mostram
leitor as instituições sociais falidas,
mas que ainda se sustentam dentro da
sociedade guatemalteca atual como
um sistema judiciário ultrapassado que
ainda tem em suas bases a
prerrogativa da pena de morte legal e
ilegalmente ou um
fracassado avanço
tecnológico no qual nem sempre os
elevadores dos prédios empresariais
ou residenciais de luxo funcionam.
Também se percebem as diferenças
entre as classes sociais e os
privilégios dos mais abastados, que
podem se proteger com coletes à
p
rova de balas e carros blindados (ou
contratando guarda-
costas, como em
Los Sordos
) e ainda podem
monopolizar o poder político por todo
um culo na capital enquanto a
população mais pobre sofre com a
violência e o descaso diretamente.
Em
Piedras encantadas
Rey Rosa introduz a questão dos
indígenas dentro da sociedade
guatemalteca e como a atual
Guatemala foi levantada às custas
77
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
romances e reafirmam uma prática
violenta que se mantém no cotidiano
nacional por gerações como uma
organização social bem
-sucedida e
durável, conforme aponta o autor.
lém disso, mostram
-se ao
leitor as instituições sociais falidas,
mas que ainda se sustentam dentro da
sociedade guatemalteca atual como
um sistema judiciário ultrapassado que
ainda tem em suas bases a
prerrogativa da pena de morte legal e
fracassado avanço
tecnológico no qual nem sempre os
elevadores dos prédios empresariais
ou residenciais de luxo funcionam.
Também se percebem as diferenças
entre as classes sociais e os
privilégios dos mais abastados, que
podem se proteger com coletes à
rova de balas e carros blindados (ou
costas, como em
) e ainda podem
monopolizar o poder político por todo
um culo na capital enquanto a
população mais pobre sofre com a
violência e o descaso diretamente.
Piedras encantadas
(2001),
Rey Rosa introduz a questão dos
indígenas dentro da sociedade
guatemalteca e como a atual
Guatemala foi levantada às custas
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
desta população escravizada por
séculos. O primeiro parágrafo do
capítulo 3 d
essa narrativa
exemplo disso:
La Reforma.
Paseo de la Reforma.
La despiadada reforma que abolió el
derecho de los indígenas
guatemaltecos a sus tierras
comunales para que fueran
convertidas en plantaciones de café,
era conmemorada por el nombre de
la ancha avenida por donde
avenida abierta, aplanada y
pavimentada por los mismos
indígenas cuyas tierras habían sido
usurpadas por aquella reforma. (REY
ROSA, 2014, p. 220)
12
A ironia e a incongruência no
trecho citado acima reforçam tanto a
temática da violência quanto u
estrutura textual pautada nesta
poética, pois, mais uma vez, a escolha
do léxico trabalha para confirmar a
ideia levantada. A avenida nomeada
para comemorar uma reforma atroz
para os indígenas é a mesma avenida
que foi construída, aberta, aplanada e
pav
imentada por trabalhadores de
origem indígena.
12
A Reforma.
Paseo de la Reforma.
A impiedosa reforma que aboliu o direito dos
indígenas guatemaltecos a suas terra
comunais para que fossem convertidas em
plantações de café, era comemorada pelo
nome da larga avenida por onde rodavam
avenida aberta, aplanada e pavimentada pelos
mesmos indígenas cujas terras haviam sido
usurpadas por aquela reforma. (Tradução
nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
desta população escravizada por
séculos. O primeiro parágrafo do
essa narrativa
é um
La despiadada reforma que abolió el
derecho de los indígenas
guatemaltecos a sus tierras
comunales para que fueran
convertidas en plantaciones de café,
era conmemorada por el nombre de
la ancha avenida por donde
rodaban
avenida abierta, aplanada y
pavimentada por los mismos
indígenas cuyas tierras habían sido
usurpadas por aquella reforma. (REY
A ironia e a incongruência no
trecho citado acima reforçam tanto a
temática da violência quanto u
ma
estrutura textual pautada nesta
poética, pois, mais uma vez, a escolha
do léxico trabalha para confirmar a
ideia levantada. A avenida nomeada
para comemorar uma reforma atroz
para os indígenas é a mesma avenida
que foi construída, aberta, aplanada e
imentada por trabalhadores de
A impiedosa reforma que aboliu o direito dos
indígenas guatemaltecos a suas terra
s
comunais para que fossem convertidas em
plantações de café, era comemorada pelo
nome da larga avenida por onde rodavam
avenida aberta, aplanada e pavimentada pelos
mesmos indígenas cujas terras haviam sido
usurpadas por aquela reforma. (Tradução
Desse modo, em
encantadas (2001)
, mais uma vez o
leitor não se pode deixar enganar pela
aparência das belezas naturais
existentes na região, mas deve
atentar-
se para os problemas que
estão incrustados
em um corpo social
totalmente atingido pela violência e
suas variantes.
Em outro início de capítulo
narrador aponta para essa mesma
quebra da normalidade, indicando a
imagem ilusória que foi construída
pelos arredores da cidade e
remontando o passado q
nas ruas e avenidas da capital da
Guatemala:
[…] Bajó por la Sexta Avenida hacia
el bulevar Liberación
(conmemorativo del derrocamiento
del primer intento de gobierno
democrático en el istmo). […] Dobló
hacia las Américas: nuestra avenida
de
las Américas, <<que no tenía
nada que envidiar a su homónima
neoyorquina>> (ja, ja). Para el
inspector, las Américas aludía
también a la famosa Escuela de las
Américas, en Carolina del Norte,
donde algunos de los militares
guatemaltecos más sanguinarios de
la historia reciente habían recibido
instrucción especial en técnicas de
penetración en la sociedad civil,
lavado de cerebros y tortura. A lo
largo de esta avenida, en aquel
bosquecillo de cipreses del Líbano
en el amplio arriate central,
aparecieron los
de víctimas de las operaciones de
limpieza político
treinta años atrás, recordaba el
inspector. Apartó la mirada; una
mujer demente, bastante joven,
78
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Desse modo, em
Piedras
, mais uma vez o
leitor não se pode deixar enganar pela
aparência das belezas naturais
existentes na região, mas deve
se para os problemas que
em um corpo social
totalmente atingido pela violência e
Em outro início de capítulo
, o
narrador aponta para essa mesma
quebra da normalidade, indicando a
imagem ilusória que foi construída
pelos arredores da cidade e
remontando o passado q
ue se reflete
nas ruas e avenidas da capital da
[…] Bajó por la Sexta Avenida hacia
el bulevar Liberación
(conmemorativo del derrocamiento
del primer intento de gobierno
democrático en el istmo). […] Dobló
hacia las Américas: nuestra avenida
las Américas, <<que no tenía
nada que envidiar a su homónima
neoyorquina>> (ja, ja). Para el
inspector, las Américas aludía
también a la famosa Escuela de las
Américas, en Carolina del Norte,
donde algunos de los militares
guatemaltecos más sanguinarios de
la historia reciente habían recibido
instrucción especial en técnicas de
penetración en la sociedad civil,
lavado de cerebros y tortura. A lo
largo de esta avenida, en aquel
bosquecillo de cipreses del Líbano
en el amplio arriate central,
primeros cadáveres
de víctimas de las operaciones de
limpieza político
-social, más de
treinta años atrás, recordaba el
inspector. Apartó la mirada; una
mujer demente, bastante joven,
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
morena y muy sucia, se había
acuclillado cerca de un viejo árbol de
yuca,
y se arremangó la falda para
mostrar las nalgas y defecar. (REY
ROSA, 2014, p. 245)
13
O excerto acima revela ao leitor
abruptamente as condições históricas
que foram tomadas como base para
erguer este estado-
nação centro
americano. As memórias que os
lugares trazem ao inspetor são de um
passado tenebroso e regido pela
violência, seja ela fr
uto da guerra civil
ou de governos autoritários anteriores
a esse acontecimento.
Assim, em Piedras
a
questão dos ataques à população
sob as vestes de limpeza social
aparece destacada nesta narrativa.
13
[…] Desceu pela Sexta Avenida em direção
ao bulevar Liberación
(comemorativo da queda
da primeira tentativa de governo democrático
no istmo). […] Virou em direção à avenida
Américas: nossa avenida das Américas, <<que
não tinha nada que invejar a sua hom
nova iorquina>> (ha, ha). Para o inspetor,
Américas
aludia também à famosa Escola das
Américas, na Carolina do Norte, onde alguns
dos militares guatemaltecos mais sanguinários
da história recente haviam recebido
treinamento especial em técnicas d
penetração na sociedade civil, lavagem
cerebral e tortura. Ao longo desta avenida,
naquele pequeno bosque de ciprestes do
Líbano no amplo canteiro central, apareceram
os primeiros cadáveres de vítimas das
operações de limpeza político-
social, mais de
tri
nta anos atrás, relembrava o inspetor.
Afastou o olhar; uma mulher demente,
bastante jovem, morena e muito suja, havia
agachado perto de uma velha árvore de
mandioca, e subiu sua saia para mostrar as
nádegas e defecar. (Tradução nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
morena y muy sucia, se había
acuclillado cerca de un viejo árbol de
y se arremangó la falda para
mostrar las nalgas y defecar. (REY
O excerto acima revela ao leitor
abruptamente as condições históricas
que foram tomadas como base para
nação centro
-
americano. As memórias que os
lugares trazem ao inspetor são de um
passado tenebroso e regido pela
uto da guerra civil
ou de governos autoritários anteriores
encantadas
,
questão dos ataques à população
sob as vestes de limpeza social
aparece destacada nesta narrativa.
[…] Desceu pela Sexta Avenida em direção
(comemorativo da queda
da primeira tentativa de governo democrático
no istmo). […] Virou em direção à avenida
Américas: nossa avenida das Américas, <<que
não tinha nada que invejar a sua hom
ônima
nova iorquina>> (ha, ha). Para o inspetor,
las
aludia também à famosa Escola das
Américas, na Carolina do Norte, onde alguns
dos militares guatemaltecos mais sanguinários
da história recente haviam recebido
treinamento especial em técnicas d
e
penetração na sociedade civil, lavagem
cerebral e tortura. Ao longo desta avenida,
naquele pequeno bosque de ciprestes do
Líbano no amplo canteiro central, apareceram
os primeiros cadáveres de vítimas das
social, mais de
nta anos atrás, relembrava o inspetor.
Afastou o olhar; uma mulher demente,
bastante jovem, morena e muito suja, havia
agachado perto de uma velha árvore de
mandioca, e subiu sua saia para mostrar as
nádegas e defecar. (Tradução nossa)
Isso demonstra o quanto tais atos
influenci
aram e ainda permanecem
fortemente ligados à estrutura social
guatemalteca. o é à toa que as
narrativas de Rey Rosa escancaram, a
partir dos retratos projetados e de suas
características estruturais, a situação
histórica, política, econômica e social
da
Guatemala. Também consegue
compreender o sentimento de
frustração em relação a propostas de
melhorias em um futuro próximo.
Apesar de o serem temáticas
novas, a maneira como são trazidas
ao leitor é que apontam para uma
estética diferente nas obras d
Rosa. A partir deste último trecho, por
exemplo, nota-
se como o narrador
redireciona o olhar de seu leitor para
aquilo que está oculto nas próprias
estruturas do texto. Não é a imagem
das avenidas que o inspetor está
percorrendo que é importante, mas
história por trás delas que se torna
relevante.
Além disso, o narrador faz
questão de terminar o fragmento com
uma cena nauseante na qual uma
mulher defeca em um lugar público
sem a menor preocupação. A
caracterização da transeunte,
juntamente com sua
prática ao ar livre,
79
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Isso demonstra o quanto tais atos
aram e ainda permanecem
fortemente ligados à estrutura social
guatemalteca. o é à toa que as
narrativas de Rey Rosa escancaram, a
partir dos retratos projetados e de suas
características estruturais, a situação
histórica, política, econômica e social
Guatemala. Também consegue
-se
compreender o sentimento de
frustração em relação a propostas de
melhorias em um futuro próximo.
Apesar de o serem temáticas
novas, a maneira como são trazidas
ao leitor é que apontam para uma
estética diferente nas obras d
e Rey
Rosa. A partir deste último trecho, por
se como o narrador
redireciona o olhar de seu leitor para
aquilo que está oculto nas próprias
estruturas do texto. Não é a imagem
das avenidas que o inspetor está
percorrendo que é importante, mas
a
história por trás delas que se torna
Além disso, o narrador faz
questão de terminar o fragmento com
uma cena nauseante na qual uma
mulher defeca em um lugar público
sem a menor preocupação. A
caracterização da transeunte,
prática ao ar livre,
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
também reforça uma desestabilização
da leitura feita naquele momento pelo
leitor, que acaba afastando seu olhar
do texto assim como o fez a
personagem, como um ato de repulsa.
Do mesmo modo, a conduta
dessa mulher pode ser entendida
co
mo um ato de violência com o leitor,
que mesmo com as imagens
anteriores se surpreende com a última
cena ao mesmo tempo em que é um
ato hostil ou de afronta contra o
próprio sistema que a violentou por
anos ao não lhe proporcionar
condições dignas de sobre
vivência.
A presença dessa mulher
demente dentro da cena narrada
aumenta a sensação de naturalidade
das ações repugnantes dentro do
sistema social guatemalteco, pois as
atrocidades históricas reveladas pelos
pensamentos do inspetor realçam
essa caracterís
tica dentro do texto e é
complementada pela prática da moça
ao final.
Pensando no contexto da
narrativa, menciona-
se que a
naturalidade em se praticar atos
violentos e inconsequentes está
atrelada ao cotidiano da cidade onde
um motorista prefere não parar
socorrer um menino atropelado por ele
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
também reforça uma desestabilização
da leitura feita naquele momento pelo
leitor, que acaba afastando seu olhar
do texto assim como o fez a
personagem, como um ato de repulsa.
Do mesmo modo, a conduta
dessa mulher pode ser entendida
mo um ato de violência com o leitor,
que mesmo com as imagens
anteriores se surpreende com a última
cena ao mesmo tempo em que é um
ato hostil ou de afronta contra o
próprio sistema que a violentou por
anos ao não lhe proporcionar
vivência.
A presença dessa mulher
demente dentro da cena narrada
aumenta a sensação de naturalidade
das ações repugnantes dentro do
sistema social guatemalteco, pois as
atrocidades históricas reveladas pelos
pensamentos do inspetor realçam
tica dentro do texto e é
complementada pela prática da moça
Pensando no contexto da
se que a
naturalidade em se praticar atos
violentos e inconsequentes está
atrelada ao cotidiano da cidade onde
um motorista prefere não parar
para
socorrer um menino atropelado por ele
próprio e na qual também a exploração
de mão de obra indígena levantou
monumentos pela cidade e construiu
suas vias ou a memória retorcida
dentro dos nomes das ruas e avenidas
mais importantes da cidade.
Assim,
a brutalidade torna
natural dentro dos cenários narrados,
pois as personagens convivem com
ela constantemente. O leitor acaba se
surpreendendo com a capacidade de
as personagens sobreviverem a essas
práticas tão concretas de violência
plena.
Neste sent
ido, não se poderia
considerar uma banalização da
violência, mas um processo de
naturalização dos elementos que
geram a violência dentro do plano
ordinário, pois a violência, que deveria
ser considerada exceção dentro do
nível cotidiano, está distribuída d
dos cenários apresentados.
Rey Rosa apresenta em seus
textos, desse modo, uma
desestabilização do plano concreto e
da realidade a partir de um jogo
narrativo que irrompe a estrutura
textual com componentes geradores
de uma instabilidade violadora da
que é esperado pelo leitor. O
guatemalteco experimenta
80
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
próprio e na qual também a exploração
de mão de obra indígena levantou
monumentos pela cidade e construiu
suas vias ou a memória retorcida
dentro dos nomes das ruas e avenidas
mais importantes da cidade.
-se
natural dentro dos cenários narrados,
pois as personagens convivem com
ela constantemente. O leitor acaba se
surpreendendo com a capacidade de
as personagens sobreviverem a essas
práticas tão concretas de violência
ido, não se poderia
considerar uma banalização da
violência, mas um processo de
naturalização dos elementos que
geram a violência dentro do plano
ordinário, pois a violência, que deveria
ser considerada exceção dentro do
nível cotidiano, está distribuída d
entro
dos cenários apresentados.
Rey Rosa apresenta em seus
textos, desse modo, uma
desestabilização do plano concreto e
da realidade a partir de um jogo
narrativo que irrompe a estrutura
textual com componentes geradores
de uma instabilidade violadora da
quilo
que é esperado pelo leitor. O
guatemalteco experimenta
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
desequilibrar a percepção no momento
da leitura com quebras abruptas da
normalidade conhecida na própria
narrativa. Assim, a naturalização de
fatos violentos dentro do panorama
narrativo supostam
ente equilibrado
causa um impacto àquele que seus
textos. O seguinte trecho presente em
Piedras encantadas
reflete esta ideia:
[…] la gente paseaba por el arriate
central; los niños de la calle que
vendían chicles o rosas o
mendigaban; los vendedores de
coca; los informantes de las
diferentes policías (nacionales,
privadas y, hoy en día, también
internacionales); las familias, que se
movían en grupo, las sirvientas en
día libre que se ocultaban tras los
árboles con sus ávidos enamorados;
los vendedores d
e globos o algodón
de azúcar, de matracas, poporopos,
perros calientes, tamales, enchiladas
y distintas clases de atol. A pocos
metros de la plaza de Colombia, el
inspector estacioel BMW y apagó
el motor.
[…] Aquella mujer que vendía
jabones podía ser c
onfidente de la 2
la temible Dirección de Inteligencia
Militar
pero no estaba seguro.
Además de informantes, había varios
guardaespaldas (que solían ser
agentes dobles) haciendo de niñeras
para los hijos de sus jefas, que
aguardaban cerca de allí en
au
tomóviles con vidrios polarizados.
(REY ROSA, 2014, p.
246)
14
[…] as pessoas pas
seavam pelo canteiro
central; os meninos de rua que vendiam
chicletes ou rosas ou mendigavam; os
vendedores de coca; os informantes das
diferentes polícias (nacionais, privadas e,
atualmente, também internacionais); as
famílias, que se movimentavam em grup
empregadas de folga que se escondiam atrás
das árvores com seus ávidos namorados; os
vendedores de balões ou algodão doce, de
matracas, pipocas, cachorros quentes,
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
desequilibrar a percepção no momento
da leitura com quebras abruptas da
normalidade conhecida na própria
narrativa. Assim, a naturalização de
fatos violentos dentro do panorama
ente equilibrado
causa um impacto àquele que seus
textos. O seguinte trecho presente em
reflete esta ideia:
[…] la gente paseaba por el arriate
central; los niños de la calle que
vendían chicles o rosas o
mendigaban; los vendedores de
coca; los informantes de las
diferentes policías (nacionales,
privadas y, hoy en día, también
internacionales); las familias, que se
movían en grupo, las sirvientas en
día libre que se ocultaban tras los
árboles con sus ávidos enamorados;
e globos o algodón
de azúcar, de matracas, poporopos,
perros calientes, tamales, enchiladas
y distintas clases de atol. A pocos
metros de la plaza de Colombia, el
inspector estacioel BMW y apagó
[…] Aquella mujer que vendía
onfidente de la 2
la temible Dirección de Inteligencia
pero no estaba seguro.
Además de informantes, había varios
guardaespaldas (que solían ser
agentes dobles) haciendo de niñeras
para los hijos de sus jefas, que
aguardaban cerca de allí en
tomóviles con vidrios polarizados.
246)
14
seavam pelo canteiro
central; os meninos de rua que vendiam
chicletes ou rosas ou mendigavam; os
vendedores de coca; os informantes das
diferentes polícias (nacionais, privadas e,
atualmente, também internacionais); as
famílias, que se movimentavam em grup
o, as
empregadas de folga que se escondiam atrás
das árvores com seus ávidos namorados; os
vendedores de balões ou algodão doce, de
matracas, pipocas, cachorros quentes,
Neste fragmento, convivem em
plena harmonia personagens da esfera
comum como famílias reunidas,
vendedores ambulantes e namorados
apaixonados, com personagens que
representam algum tipo de violê
como a miséria pela presença dos
meninos de rua que mendigavam e o
narcotráfico pela figura dos
“vendedores” de coca. Também estão
presentes os agentes policiais de
diferentes estirpes, os informantes que
trabalham para quem paga mais e, por
último, os guarda
-
papel de babás para suas chefas
enquanto estas ficam escondidas em
seus carros com vidros enegrecidos.
A cena é descrita com um
equilíbrio entre as figuras que destoam
do comum, pois se aceitam diferentes
classes de personagens, i
de índole e condutas, para compor
esse cenário. A existência em
tamales, enchiladas
e diferentes tipos de
A poucos metros da praça Colômbia, o
i
nspetor estacionou o BMW e desligou o
motor.
[…] Aquela mulher que vendia sabões podia
ser confidente da 2 –
a temível Direção de
Inteligência Militar –
mas não tinha certeza.
Além de informantes, havia vários guarda
costas (que costumavam ser agentes dupl
fazendo-
se de babás para os filhos de suas
chefes, que aguardavam próximo dali em
automóveis com vidros polarizados. (Tradução
nossa)
81
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Neste fragmento, convivem em
plena harmonia personagens da esfera
comum como famílias reunidas,
vendedores ambulantes e namorados
apaixonados, com personagens que
representam algum tipo de violê
ncia,
como a miséria pela presença dos
meninos de rua que mendigavam e o
narcotráfico pela figura dos
“vendedores” de coca. Também estão
presentes os agentes policiais de
diferentes estirpes, os informantes que
trabalham para quem paga mais e, por
-
costas fazendo
papel de babás para suas chefas
enquanto estas ficam escondidas em
seus carros com vidros enegrecidos.
A cena é descrita com um
equilíbrio entre as figuras que destoam
do comum, pois se aceitam diferentes
classes de personagens, i
ndependente
de índole e condutas, para compor
esse cenário. A existência em
e diferentes tipos de
atol.
A poucos metros da praça Colômbia, o
nspetor estacionou o BMW e desligou o
[…] Aquela mulher que vendia sabões podia
a temível Direção de
mas não tinha certeza.
Além de informantes, havia vários guarda
-
costas (que costumavam ser agentes dupl
os)
se de babás para os filhos de suas
chefes, que aguardavam próximo dali em
automóveis com vidros polarizados. (Tradução
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
equilíbrio dessas figuras causa uma
quebra na experiência de narrativa do
leitor porque a violência está alinhada
aos padrões cotidianos do que se está
sendo narrado. Dessa forma,
que no romance a violência apareça
sem o questionamento de outras
personagens, pois apenas existe a
conformidade na convivência com
elementos propulsores da brutalidade.
Todos esses elementos
sistematizadores presentes neste
cenário contribuem para a composição
de um jogo narrativo que
frequentemente testa o leitor dentro de
seus níveis de conhecimento da
narrativa e até onde ela pode chegar
com essa estrutura. O narrador
aventura-
se mostrando ao leitor que
sua teoria inicial de aparências
enganadoras é válida e não pode ser
refutada a partir dos próprios
elementos presentes em sua narrativa,
pois elabora cenários
desestabilizadores e apresenta
personagens que põem em vid
percepção e a aceitação do leitor
diante das características iniciais
propostas para criá-los.
Dessa maneira, não se trata
somente do fato de esconder
sentimentos e ações sob uma máscara
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
equilíbrio dessas figuras causa uma
quebra na experiência de narrativa do
leitor porque a violência está alinhada
aos padrões cotidianos do que se está
sendo narrado. Dessa forma,
é natural
que no romance a violência apareça
sem o questionamento de outras
personagens, pois apenas existe a
conformidade na convivência com
elementos propulsores da brutalidade.
Todos esses elementos
sistematizadores presentes neste
cenário contribuem para a composição
de um jogo narrativo que
frequentemente testa o leitor dentro de
seus níveis de conhecimento da
narrativa e até onde ela pode chegar
com essa estrutura. O narrador
se mostrando ao leitor que
sua teoria inicial de aparências
enganadoras é válida e não pode ser
refutada a partir dos próprios
elementos presentes em sua narrativa,
pois elabora cenários
desestabilizadores e apresenta
personagens que põem em vid
a a
percepção e a aceitação do leitor
diante das características iniciais
Dessa maneira, não se trata
somente do fato de esconder
sentimentos e ações sob uma máscara
superficial para o núcleo social em que
se vive e almeja benefíc
fato de evidenciar a natureza das
personagens a partir de mecanismos
que desestabilizam tanto a narrativa
quanto o leitor. Com isso, engana
leitor para que seja construída a
narrativa desejada e sem necessidade
de retratação, pois quem
tornando mais uma personagem
essencial para a narrativa: aquele que
é impactado e, consequentemente,
ludibriado pelo que está sendo
narrado.
A própria figura do menino
Silvestre é um caso particular, pois
está involucrada a diferentes teorias
que
, a princípio, não compõem
linearmente uma ideia clara e lógica.
Ao lado da imagem de um filho adotivo
estão a suspeita de um atropelamento
proposital como vingança, um suposto
envolvimento dos pais no tráfico de
crianças, uma possível presença de
membros
da família verdadeira da
criança e até a percepção de mundo
de Silvestre frente à nova vida na
Guatemala e a violência que o rodeia
desde a Bélgica até seu cotidiano na
capital guatemalteca.
Em um trecho após o
atropelamento do menino o narrador
82
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
superficial para o núcleo social em que
se vive e almeja benefíc
ios, mas do
fato de evidenciar a natureza das
personagens a partir de mecanismos
que desestabilizam tanto a narrativa
quanto o leitor. Com isso, engana
-se o
leitor para que seja construída a
narrativa desejada e sem necessidade
de retratação, pois quem
acaba se
tornando mais uma personagem
essencial para a narrativa: aquele que
é impactado e, consequentemente,
ludibriado pelo que está sendo
A própria figura do menino
Silvestre é um caso particular, pois
está involucrada a diferentes teorias
, a princípio, não compõem
linearmente uma ideia clara e lógica.
Ao lado da imagem de um filho adotivo
estão a suspeita de um atropelamento
proposital como vingança, um suposto
envolvimento dos pais no tráfico de
crianças, uma possível presença de
da família verdadeira da
criança e até a percepção de mundo
de Silvestre frente à nova vida na
Guatemala e a violência que o rodeia
desde a Bélgica até seu cotidiano na
Em um trecho após o
atropelamento do menino o narrador
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
aponta as
ações de Rastelli para
ajudar Silvestre a fugir do Hospital
Militar:
El padre adoptivo de Silvestre tenía
muchas deudas (en dinero y en
especie) que liquidar, y alguna que
otra que cobrar. Era posible que uno
de sus acreedores, o uno de sus
deudores, hubi
era intentado
secuestrar a Silvestre
simplemente hacerle daño, a modo
de aviso o venganza. O que
Barrondo, agobiado por sus
obligaciones, hubiera decidido
causar la muerte de Silvestre, parar
cobrar un seguro de vida cuyo único
beneficiario era él. (RE
2014, p.274-275)
15
É interessante destacar que
todas as resoluções pensadas por
Rastelli para o atropelamento do
garoto envolvem a violência de alguma
maneira. Também vale ressaltar que
Silvestre está colocado dentro de
outros ambientes que incitam a
violência à sua própria
figura, pois ele
pode estar envolvido com o tráfico de
crianças, além de ser uma criança
adotada e ter aparentemente sofrido
maus tratos tanto no orfanato em
Bruxelas na Bélgica quanto uma
15
O pai adotivo de Silvestre tinha muitas
dívidas (em dinheiro e em espécie) que
liquidar, e uma ou outra que cobrar.
possível que um de seus credores, ou um de
seus devedores, tivesse tentado sequestrar
Silvestre
ou simplesmente fazer
modo de aviso ou vingança. Ou que Barrondo,
sobrecarregado por suas obrigações, tivesse
decidido causar a morte de Silves
cobrar um seguro de vida cujo único
beneficiário era ele. (Tradução nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ações de Rastelli para
ajudar Silvestre a fugir do Hospital
El padre adoptivo de Silvestre tenía
muchas deudas (en dinero y en
especie) que liquidar, y alguna que
otra que cobrar. Era posible que uno
de sus acreedores, o uno de sus
era intentado
secuestrar a Silvestre
o
simplemente hacerle daño, a modo
de aviso o venganza. O que
Barrondo, agobiado por sus
obligaciones, hubiera decidido
causar la muerte de Silvestre, parar
cobrar un seguro de vida cuyo único
beneficiario era él. (RE
Y ROSA,
É interessante destacar que
todas as resoluções pensadas por
Rastelli para o atropelamento do
garoto envolvem a violência de alguma
maneira. Também vale ressaltar que
Silvestre está colocado dentro de
outros ambientes que incitam a
figura, pois ele
pode estar envolvido com o tráfico de
crianças, além de ser uma criança
adotada e ter aparentemente sofrido
maus tratos tanto no orfanato em
Bruxelas na Bélgica quanto uma
O pai adotivo de Silvestre tinha muitas
dívidas (em dinheiro e em espécie) que
liquidar, e uma ou outra que cobrar.
Era
possível que um de seus credores, ou um de
seus devedores, tivesse tentado sequestrar
ou simplesmente fazer
-lhe mal, a
modo de aviso ou vingança. Ou que Barrondo,
sobrecarregado por suas obrigações, tivesse
decidido causar a morte de Silves
tre, parar
cobrar um seguro de vida cujo único
beneficiário era ele. (Tradução nossa)
negligência por parte de seus pais
guatemaltecos, que estavam mais
preocupados com a oferta material
dada ao menino que o afeto familiar.
Acrescidos a tais ideias,
encontram-
se os pensamentos do
próprio garoto, que acredita, por
exemplo, que o guarda
motorista da família quer assassiná
e que a enfermeira do ho
ele se encontrava em recuperação era
na verdade um robô pela forma
mecânica e pouco natural de seus
gestos, o que também agrega um
caráter de desumanização quanto ao
tratamento recebido pelo garoto.
A solução encontrada por
Rastelli para sal
var o menino da
agressividade que envolve sua família
adotiva guatemalteca é também
ferramenta propagadora de outra
violência: fugir do hospital e viver com
o grupo de meninos de rua chamados
de Piedras Encantadas. A opção é
aceita por Silvestre porque ele
enxerga como um membro
pertencente à sociedade em que vive:
Silvestre experimentó un intenso
deseo de mirarse en un espejo. Era
tan distinto de todos
Ileana, de las caras que veía en la
televisión, de los niños del colegio o de
83
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
negligência por parte de seus pais
guatemaltecos, que estavam mais
preocupados com a oferta material
dada ao menino que o afeto familiar.
Acrescidos a tais ideias,
se os pensamentos do
próprio garoto, que acredita, por
exemplo, que o guarda
-costas e
motorista da família quer assassiná
-lo
e que a enfermeira do ho
spital em que
ele se encontrava em recuperação era
na verdade um robô pela forma
mecânica e pouco natural de seus
gestos, o que também agrega um
caráter de desumanização quanto ao
tratamento recebido pelo garoto.
A solução encontrada por
var o menino da
agressividade que envolve sua família
adotiva guatemalteca é também
ferramenta propagadora de outra
violência: fugir do hospital e viver com
o grupo de meninos de rua chamados
de Piedras Encantadas. A opção é
aceita por Silvestre porque ele
não se
enxerga como um membro
pertencente à sociedade em que vive:
Silvestre experimentó un intenso
deseo de mirarse en un espejo. Era
tan distinto de todos
de Faustino e
Ileana, de las caras que veía en la
televisión, de los niños del colegio o de
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
la c
alle, y de aquella enfermera […]
(REY ROSA, 2014, p. 271)
não se vendo parecido com os
meninos de rua o garoto prefere a
companhia destes que a de seus pais
abastados.
Assim, Silvestre não escapa do
universo violento que o rodeia, mas
apenas modif
ica a sua experiência de
violência, pois começa a viver nas ruas
com as outras crianças, sob os
cuidados da miséria e da fome, da
perseguição dos policiais que rondam
as praças e até mesmo dos agentes
duplos e detetives que usam essas
crianças como seus in
formantes em
certas situações, como é o caso do
próprio Rastelli. Acusados de propagar
o medo e a violência pelas praças e
ruas centrais da capital guatemalteca,
a gangue Piedras Encantadas é a que
mais sofre dentro de um sistema social
que fomenta a violê
ncia e os exclui
socialmente, deixando-
os à margem
de qualquer projeto de ascensão
social.
A narrativa aponta que é um
grupo de crianças entre cinco e dez
16
Silvestre experimentou um intenso desejo
de olhar-
se em um espelho. Era tão diferente
de todos
de Faustino e Ileana, das caras que
via na televisão, das crianças do c
rua, e daquela enfermeira […] (Tradução
nossa)
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
alle, y de aquella enfermera […]
(REY ROSA, 2014, p. 271)
16
. Mesmo
não se vendo parecido com os
meninos de rua o garoto prefere a
companhia destes que a de seus pais
Assim, Silvestre não escapa do
universo violento que o rodeia, mas
ica a sua experiência de
violência, pois começa a viver nas ruas
com as outras crianças, sob os
cuidados da miséria e da fome, da
perseguição dos policiais que rondam
as praças e até mesmo dos agentes
duplos e detetives que usam essas
formantes em
certas situações, como é o caso do
próprio Rastelli. Acusados de propagar
o medo e a violência pelas praças e
ruas centrais da capital guatemalteca,
a gangue Piedras Encantadas é a que
mais sofre dentro de um sistema social
ncia e os exclui
os à margem
de qualquer projeto de ascensão
A narrativa aponta que é um
grupo de crianças entre cinco e dez
Silvestre experimentou um intenso desejo
se em um espelho. Era tão diferente
de Faustino e Ileana, das caras que
via na televisão, das crianças do c
olégio ou da
rua, e daquela enfermeira […] (Tradução
anos, que vive nas ruas da Cidade da
Guatemala e tentam sobreviver
roubando ou servindo como
informa
ntes. Além disso, muitos nem
se conhecem entre si e aqueles que se
conhecem convivem cercados pela
violência do espaço em que se
encontram:
-
¿Y a vos qué te pasó?
preguntó el Tarántula a Silvestre.
-
Me atropellaron.
cadera desollada.
- Esos policías
levantó la camiseta para enseñar
varios moretones
oliendo a pegamento y por eso diz
que me dieron verga. Jovito,
enseñale el plomazo.
Jovito les enseñó la herida de bala
que tenía en el
pecho, y los niños se
movieron para ver la cicatriz más de
cerca.
-
Le traté de robar a un señorón.
Estaba armado, y al darse cuenta de
que quería sacarle la cartera, me
metió un tiro. (REY ROSA, 2014, p.
280)
17
O fragmento acima demonstra a
violência sofr
ida pelo grupo de
crianças reconhecido como
17
-
E o que aconteceu com você?
perguntou Tarântula a Silvestre.
- Me atropelaram.
mostrou
esfolada. – E com você?
- Esses policiais
disse Malrollo, e levantou a
camiseta p
ara mostrar vários hematomas
pegaram cheirando cola e por isso que me
deram uma surra. Jovito, mostra a sua cicatriz
de tiro.
Jovito lhes mostrou a ferida de bala que tinha
no peito, e os meninos se mexeram para ver a
cicatriz mais de perto.
- Tratei
de roubar um velhote. Estava armado,
e ao perceber que eu queria tirar sua carteira
do bolso, me deu um tiro. (Tradução nossa)
84
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
anos, que vive nas ruas da Cidade da
Guatemala e tentam sobreviver
roubando ou servindo como
ntes. Além disso, muitos nem
se conhecem entre si e aqueles que se
conhecem convivem cercados pela
violência do espaço em que se
¿Y a vos qué te pasó?
le
preguntó el Tarántula a Silvestre.
Me atropellaron.
– Les mostró la
cadera desollada.
- ¿Y a vos?
dijo el Malrollo, y se
levantó la camiseta para enseñar
varios moretones
–. Me agarraron
oliendo a pegamento y por eso diz
que me dieron verga. Jovito,
enseñale el plomazo.
Jovito les enseñó la herida de bala
pecho, y los niños se
movieron para ver la cicatriz más de
Le traté de robar a un señorón.
Estaba armado, y al darse cuenta de
que quería sacarle la cartera, me
metió un tiro. (REY ROSA, 2014, p.
O fragmento acima demonstra a
ida pelo grupo de
crianças reconhecido como
Piedras
E o que aconteceu com você?
lhe
perguntou Tarântula a Silvestre.
mostrou
-lhes a cintura
disse Malrollo, e levantou a
ara mostrar vários hematomas
–. Me
pegaram cheirando cola e por isso que me
deram uma surra. Jovito, mostra a sua cicatriz
Jovito lhes mostrou a ferida de bala que tinha
no peito, e os meninos se mexeram para ver a
de roubar um velhote. Estava armado,
e ao perceber que eu queria tirar sua carteira
do bolso, me deu um tiro. (Tradução nossa)
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
Encantadas
. Apesar de serem
considerados violentos, este trecho
retrata, na realidade, que quem é
violentado pelo sistema social
excludente são esses meninos de rua,
que reagem a essa estrutura agressiva
que lhes é apresentada da mesma
maneira em que são acometidos por
ela. É a reação em cadeia daqueles
que são desprivilegiados dentro de
uma organização social atroz com
precedentes históricos.
Silvestre é aceito no grupo não
pelo fato de ter sofrido al
de violência física, como o seu
atropelamento, mas também porque
se encaixa nos padrões de exclusão
social por ser adotado e ter um
histórico de violência em sua vida. Do
mesmo modo, as outras crianças do
bando mostradas ao leitor apresentam
traço
s da violência cotidiana praticada
pelo sistema social através de figuras
marcadas como a polícia e os civis
armados dentro da Guatemala.
Paradoxalmente, o menino belga
prefere viver dentro desta esfera
marginal que a sociedade lhe oferece
que estar em um
círculo familiar e
burguês que não lhe é amistoso nem
saudável.
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
. Apesar de serem
considerados violentos, este trecho
retrata, na realidade, que quem é
violentado pelo sistema social
excludente são esses meninos de rua,
que reagem a essa estrutura agressiva
que lhes é apresentada da mesma
maneira em que são acometidos por
ela. É a reação em cadeia daqueles
que são desprivilegiados dentro de
uma organização social atroz com
Silvestre é aceito no grupo não
pelo fato de ter sofrido al
gum tipo
de violência física, como o seu
atropelamento, mas também porque
se encaixa nos padrões de exclusão
social por ser adotado e ter um
histórico de violência em sua vida. Do
mesmo modo, as outras crianças do
bando mostradas ao leitor apresentam
s da violência cotidiana praticada
pelo sistema social através de figuras
marcadas como a polícia e os civis
armados dentro da Guatemala.
Paradoxalmente, o menino belga
prefere viver dentro desta esfera
marginal que a sociedade lhe oferece
círculo familiar e
burguês que não lhe é amistoso nem
Essa contradição apresentada
abre a possibilidade de se considerar
que a violência sofrida na infância, na
Europa assim como na Guatemala,
proporciona um sentido de linearidade
atrelada a uma
lógica absurda, traço
constante nos textos de Rey Rosa. A
localidade não importa, pois a violação
dos direitos pelo sistema social em
que o menino está inserido se faz
presente a todo momento: primeiro
como órfão; depois, como produto de
um possível tráfi
co de pessoas que
ocorre entre os dois continentes e, por
fim, como vítima de um atropelamento
com características de vingança contra
seus pais adotivos ou acerto de
contas. Não parece existir escapatória
para Silvestre da violência que lhe é
conferida.
Pa
ra poder sobreviver ou
ascender dentro da sociedade
guatemalteca, Silvestre, deverá
encaixar-
se nos moldes estabelecidos
neste cotidiano pelo âmbito da
violência em que se encontra e que lhe
é imposta pela estrutura
organizacional daquela sociedade.
Silves
tre se adapta ao rejeitar as
regalias de uma vida de classe média
alta para viver na miséria com seus
amigos de rua.
85
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Essa contradição apresentada
abre a possibilidade de se considerar
que a violência sofrida na infância, na
Europa assim como na Guatemala,
proporciona um sentido de linearidade
lógica absurda, traço
constante nos textos de Rey Rosa. A
localidade não importa, pois a violação
dos direitos pelo sistema social em
que o menino está inserido se faz
presente a todo momento: primeiro
como órfão; depois, como produto de
co de pessoas que
ocorre entre os dois continentes e, por
fim, como vítima de um atropelamento
com características de vingança contra
seus pais adotivos ou acerto de
contas. Não parece existir escapatória
para Silvestre da violência que lhe é
ra poder sobreviver ou
ascender dentro da sociedade
guatemalteca, Silvestre, deverá
se nos moldes estabelecidos
neste cotidiano pelo âmbito da
violência em que se encontra e que lhe
é imposta pela estrutura
organizacional daquela sociedade.
tre se adapta ao rejeitar as
regalias de uma vida de classe média
alta para viver na miséria com seus
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 66-88
, out. 2019 a março 2020.
É interessante destacar neste
ponto a ideia de que a violência se
compõe como uma unidade, um traço
marcante da identidade das
personagens
dos romances de Rey
Rosa como se fosse o elo que as une
nesse universo naturalmente violento.
Para que possam pertencer à esfera
ficcional apresentada, elas devem
possuir a violência como característica
que as faça fazer parte desse padrão
estabelecido.
Em um mecanismo
bem engendrado, as personagens são
as peças ligadas ao eixo central, que é
a violência
sofrida/praticada/vivenciada/compartilh
ada.
Dessa maneira, mais uma vez a
frase contida no prefácio de
Encantadas
aponta não para o
retrato da Guatemala feito pelo autor
no romance, mas evidencia as
características paradoxais das
personagens contidas nas três obras
analisadas em que a aparência inicial
é posta em xeque pelas ações e
situações apresentadas ao longo
enredos.
Considerações finais
Em
Piedras encantadas
entende-
se que as personagens se
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
É interessante destacar neste
ponto a ideia de que a violência se
compõe como uma unidade, um traço
marcante da identidade das
dos romances de Rey
Rosa como se fosse o elo que as une
nesse universo naturalmente violento.
Para que possam pertencer à esfera
ficcional apresentada, elas devem
possuir a violência como característica
que as faça fazer parte desse padrão
Em um mecanismo
bem engendrado, as personagens são
as peças ligadas ao eixo central, que é
a violência
sofrida/praticada/vivenciada/compartilh
Dessa maneira, mais uma vez a
frase contida no prefácio de
Piedras
aponta não para o
retrato da Guatemala feito pelo autor
no romance, mas evidencia as
características paradoxais das
personagens contidas nas três obras
analisadas em que a aparência inicial
é posta em xeque pelas ações e
situações apresentadas ao longo
dos
Piedras encantadas
(2001),
se que as personagens se
conectam por dois fios narrativos:
primeiro, a sua experiência com a
violência e aceitação desta em suas
vidas ou daqueles que as cercam e,
em segundo, as l
igações de seus
cotidianos com alguém que possui
alguma proximidade ou relação com o
atropelamento de Silvestre. Joaquín se
vincula ao atropelamento ao aceitar
que seu amigo pratique um ato de
violência e fuja logo em seguida;
Elena, por conhecer Joaquín e
trabalhar no jornal em que se está
investigando o atropelamento do
garoto; Rastelli, por ser contratado
para investigar o caso; Ileana e
Faustino, por serem os pais adotivos
de Silvestre; o cuidador dos cavalos,
por ter aceitado dinheiro e estar
envolvido
diretamente com o
atropelamento e as crianças de rua por
serem informantes ao mesmo tempo
em que se tornam a segunda família
do garoto.
Com isso, personagens
inicialmente aleatórios se unem para
construir a narrativa a partir de um
acontecimento pautado
atitude violenta. Em
Encantadas
(2001),
conduzido por caminhos que
evidenciam uma narrativa baseada na
86
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
conectam por dois fios narrativos:
primeiro, a sua experiência com a
violência e aceitação desta em suas
vidas ou daqueles que as cercam e,
igações de seus
cotidianos com alguém que possui
alguma proximidade ou relação com o
atropelamento de Silvestre. Joaquín se
vincula ao atropelamento ao aceitar
que seu amigo pratique um ato de
violência e fuja logo em seguida;
Elena, por conhecer Joaquín e
trabalhar no jornal em que se está
investigando o atropelamento do
garoto; Rastelli, por ser contratado
para investigar o caso; Ileana e
Faustino, por serem os pais adotivos
de Silvestre; o cuidador dos cavalos,
por ter aceitado dinheiro e estar
diretamente com o
atropelamento e as crianças de rua por
serem informantes ao mesmo tempo
em que se tornam a segunda família
Com isso, personagens
inicialmente aleatórios se unem para
construir a narrativa a partir de um
acontecimento pautado
em uma
atitude violenta. Em
Piedras
(2001),
o leitor é
conduzido por caminhos que
evidenciam uma narrativa baseada na
FAQUERI, Rodrigo de Freitas. O
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
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, out. 2019 a março 2020.
estética da violência, a partir das
imagens presentes no texto e na
própria construção do romance
proposta pelo autor guatemalt
Além disso, naturaliza
violência para que ela seja aceita
dentro do plano de construção da
própria narrativa e como forma de
desestabilização do leitor
desacostumado com um projeto de
concretude pautado nesse espaço
agressivo e violento.
As co
nstruções imagéticas da
violência no romance estudado
proporcionam ao leitor vislumbrar uma
estrutura textual pautada também no
sensorial e descritivo em que a
violência se torna um meio para se
perceber e entender muitas vezes o
retrato exposto da Guatema
Em
Piedras Encantadas
o leitor fica desprovido de um
referencial de justiça a que
teoricamente e tradicionalmente está
acostumado. Não há um herói por
quem torcer, mas personagens
repletos de falhas e defeitos para
serem discutidos e comp
dentro de seu universo.
violência e a representação de uma
realidade traumática, ocasionadas por
questões históricas, refletidas nos
retrato da violência no romance "Piedras
Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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estética da violência, a partir das
imagens presentes no texto e na
própria construção do romance
proposta pelo autor guatemalt
eco.
Além disso, naturaliza
-se a
violência para que ela seja aceita
dentro do plano de construção da
própria narrativa e como forma de
desestabilização do leitor
desacostumado com um projeto de
concretude pautado nesse espaço
nstruções imagéticas da
violência no romance estudado
proporcionam ao leitor vislumbrar uma
estrutura textual pautada também no
sensorial e descritivo em que a
violência se torna um meio para se
perceber e entender muitas vezes o
retrato exposto da Guatema
la atual.
Piedras Encantadas
(2001),
o leitor fica desprovido de um
referencial de justiça a que
teoricamente e tradicionalmente está
acostumado. Não há um herói por
quem torcer, mas personagens
repletos de falhas e defeitos para
serem discutidos e comp
reendidos
dentro de seu universo.
É uma
violência e a representação de uma
realidade traumática, ocasionadas por
questões históricas, refletidas nos
retratos da Guatemala e na denúncia
sempre presente, mas também é uma
violência cotidiana que aparece para
questionar as suas raízes dentro d
estrutura da sociedade retratada.
Referências bibliográficas
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Pasión y desencanto en la
literatura centroamericana de
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2010.
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protagonista en la novela de posguerra
centroamericana:
desterritorializado,
híbrido y fragmentado
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WALLNER, Alexandra
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Editores, 2015.
87
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
retratos da Guatemala e na denúncia
sempre presente, mas também é uma
violência cotidiana que aparece para
questionar as suas raízes dentro d
a
estrutura da sociedade retratada.
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Guatemala
: cuatro novelas breves.
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Encantadas" (2001), de Rodrigo Rey Rosa: uma construção estética.
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ORTIZ WALLNER, Alexandra.
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: violência e realismo no Brasil
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88
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
SCHØLLHAMMER, Karl Erik.
Cena do
: violência e realismo no Brasil
Rio de Janeiro: José
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
Mal-
estar, violência e outras palinódias da consciência n'
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40277
Resumo:
A metodologia utilizada neste trabalho foi o comparatismo, especialmente a sua vertente
fundada no diálogo da literatura com outros campos do saber, e, sobretudo, “o estudo da literatura em
suas intersecções com a filosofia”, que aqui é utilizada “como par
“as possibilidades oferecidas ao pensamento filosófico pela literatura” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p.
6), e “conjugando filosofia e literatura de tal modo que conteúdo filosófico e forma literária tornam
indissociáveis”
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6
da ficção criam uma porosidade entre os campos da literatura e da filosofia”
gerais, “a subversão das fronteiras tradicionalmente estabelecidas
conteúdo literário”, bem como o “escrutínio das múltiplas articulações entre literatura e filosofia, em
virtude do caráter polimorfo de seus signos” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 7). Em termos
específicos, propusemos o atrito, a
teóricos da cultura do século XIX, Friedrich Nietzsche
(1887) e Sigmund Freud
com foco em seu
do escritor português Eça de Queirós, o romance
composição, vasto repositório de temas, questionamentos e reflexões que, além de abarcarem todo o
longo século XIX, fazem com que a obra permaneça até a contempor
atenção de leitores e pesquisadores. No presente trabalho, analisaremos, de forma mais específica,
as implicações sociais presentes no desenlace da relação amorosa entre Carlos da Maia e Maria
Eduarda; os conflitos da consciência mo
proibido; e a violência resultante de tais conflitos, seja aquela direcionada contra o próprio sujeito,
seja a que se dirige contra os outros. Além disso, também será dada atenção à crítica social qu
uma marca de Eça. O que se percebe é uma sociedade astuta no trato de questões que podem
comprometer a imagem do sujeito dito civilizado. Nota
civilidade se mostra de forma complexa, e muitas vezes, nessa o
civilizadas, utilizam métodos que remetem à barbárie.
Palavras-chave: Mal-
estar; Violência; Consciência; Eça de Queirós; Os Maias.
1
Silvio Cesar dos Santos Alves. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, Brasil. E
silvioalves78@gmail
.com; silvioalves@uel.br
2
Alan Diogo Capelari. Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil. E
mail: alandc@hotmail.com -
https://orcid.org/0000
Texto recebido em 03/01/2020
e aceito para publicação em
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
estar, violência e outras palinódias da consciência n'
Os maias
, de Eça de Queirós
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40277
Silvio Cesar dos Santos Alves
Alan Diogo
A metodologia utilizada neste trabalho foi o comparatismo, especialmente a sua vertente
fundada no diálogo da literatura com outros campos do saber, e, sobretudo, “o estudo da literatura em
suas intersecções com a filosofia”, que aqui é utilizada “como par
adigma teórico”. Sem se subestimar
“as possibilidades oferecidas ao pensamento filosófico pela literatura” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p.
6), e “conjugando filosofia e literatura de tal modo que conteúdo filosófico e forma literária tornam
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6
-7)
pois a ficcionalidade da teoria e a força teórica
da ficção criam uma porosidade entre os campos da literatura e da filosofia”
, buscou
gerais, “a subversão das fronteiras tradicionalmente estabelecidas
entre conteúdo filosófico e
conteúdo literário”, bem como o “escrutínio das múltiplas articulações entre literatura e filosofia, em
virtude do caráter polimorfo de seus signos” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 7). Em termos
específicos, propusemos o atrito, a
fricção, a contaminação entre o pensamento dos dois maiores
teóricos da cultura do século XIX, Friedrich Nietzsche
tendo em vista a sua
com foco em seu
Mal-estar na Cultura (1930)
, e a obra
do escritor português Eça de Queirós, o romance
Os Maias
(1888). Esse romance possui, em sua
composição, vasto repositório de temas, questionamentos e reflexões que, além de abarcarem todo o
longo século XIX, fazem com que a obra permaneça até a contempor
aneidade como objeto de
atenção de leitores e pesquisadores. No presente trabalho, analisaremos, de forma mais específica,
as implicações sociais presentes no desenlace da relação amorosa entre Carlos da Maia e Maria
Eduarda; os conflitos da consciência mo
ral de Carlos, em meio à descoberta de que vivia um amor
proibido; e a violência resultante de tais conflitos, seja aquela direcionada contra o próprio sujeito,
seja a que se dirige contra os outros. Além disso, também será dada atenção à crítica social qu
uma marca de Eça. O que se percebe é uma sociedade astuta no trato de questões que podem
comprometer a imagem do sujeito dito civilizado. Nota
-
se, também, que a relação entre civilização e
civilidade se mostra de forma complexa, e muitas vezes, nessa o
bra, as regras de convivência, ditas
civilizadas, utilizam métodos que remetem à barbárie.
estar; Violência; Consciência; Eça de Queirós; Os Maias.
Silvio Cesar dos Santos Alves. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, Brasil. E
.com; silvioalves@uel.br
- https://orcid.org/0000-0002-2429-
8468
Alan Diogo Capelari. Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil. E
https://orcid.org/0000
-0002-0068-396X
e aceito para publicação em
13/01/2020.
89
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
, de Eça de Queirós
Silvio Cesar dos Santos Alves
1
Alan Diogo
Capelari
2
A metodologia utilizada neste trabalho foi o comparatismo, especialmente a sua vertente
fundada no diálogo da literatura com outros campos do saber, e, sobretudo, “o estudo da literatura em
adigma teórico”. Sem se subestimar
“as possibilidades oferecidas ao pensamento filosófico pela literatura” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p.
6), e “conjugando filosofia e literatura de tal modo que conteúdo filosófico e forma literária tornam
-se
pois a ficcionalidade da teoria e a força teórica
, buscou
-se, em termos
entre conteúdo filosófico e
conteúdo literário”, bem como o “escrutínio das múltiplas articulações entre literatura e filosofia, em
virtude do caráter polimorfo de seus signos” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 7). Em termos
fricção, a contaminação entre o pensamento dos dois maiores
Genealogia da moral
, e a obra
-prima ficcional
(1888). Esse romance possui, em sua
composição, vasto repositório de temas, questionamentos e reflexões que, além de abarcarem todo o
aneidade como objeto de
atenção de leitores e pesquisadores. No presente trabalho, analisaremos, de forma mais específica,
as implicações sociais presentes no desenlace da relação amorosa entre Carlos da Maia e Maria
ral de Carlos, em meio à descoberta de que vivia um amor
proibido; e a violência resultante de tais conflitos, seja aquela direcionada contra o próprio sujeito,
seja a que se dirige contra os outros. Além disso, também será dada atenção à crítica social qu
e é
uma marca de Eça. O que se percebe é uma sociedade astuta no trato de questões que podem
se, também, que a relação entre civilização e
bra, as regras de convivência, ditas
Silvio Cesar dos Santos Alves. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, Brasil. E
-mail:
8468
Alan Diogo Capelari. Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil. E
-
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
Malestar, violencia y otras palinodias de la conciencia en la novela
Queirós
Resumen:
La metodología utilizada en este trabajo fue el comparatismo, especialmente su aspecto
basado en el diálogo de la literatura con otros campos del conocimiento y, sobre todo, el estudio de
la literatura en sus intersecciones con la fil
sub estimando “las posibilidades ofrecidas al pensamiento filosófico por la literatura” (ALVES; CEI;
DIOGO; 2018, p. 6), y “conjugando filosofía y literatura de tal manera que el contenido filosófic
forma literaria se vuelvan indisociables” (ALVES; CEI ; DIOGO; 2018, p. 6
de la teoría y la fuerza teórica de la ficción crean una porosidad entre los campos de la literatura y la
filosofia” -
, se buscó, en términos gen
establecidas entre contenido filosófico y contenido literário”, así como el “escrutinio de las múltiples
articulaciones entre literatura y filosofía, debido al carácter polimórfico de sus signos” (AL
DIOGO; 2018, p. 7). En términos específicos, propusimos la fricción, la contaminación entre el
pensamiento de los dos grandes teóricos de la cultura del siglo XIX, Friedrich Nietzsche
cuenta su
La genealogía de la moral
cultura (1930)
, y la obra maestra de ficción del escritor portugués Eça de Queirós, la novela
Maia
(1888). Esta novela tiene, en su composición, un vasto depósito de temas, cuestionamientos y
reflexione
s que, además de abarcar todo el largo siglo XIX, hacen que la obra permanezca hasta la
contemporaneidad como objeto de atención para lectores y investigadores. En el presente trabajo,
vamos a analizar, específicamente, las implicaciones sociales presentes
amorosa de Carlos da Maia y Maria Eduarda; los conflictos de la conciencia moral de Carlos, en
medio del descubrimiento de que vivió un amor prohibido; y la violencia resultante de tales conflictos,
sea el dirigido contra el
sujeto en sí, sea el dirigido hacia los otros. Además, también se prestará
atención a la crítica social que es una marca de Eça. Lo que se puede notar es una sociedad astuta
cuando se trata de preguntas que pueden comprometer la imagen del sujeto civiliza
posible notar que la relación entre civilización y civilidad se muestra compleja, y muchas veces, en
esta novela, las reglas de convivência, que se dice que son civilizadas, usan métodos que se refieren
a la barbarie.
Palabras clave: Malest
ar; Violencia; Conciencia; Eça de Queirós; Los Maia.
Discontent, violence and others palinodies of conscience in the novel
Queirós
Abstract:
The methodology utilized in this paper was the comparatist, specially its strand founded on
the dialogue between literature and other fields of knowledge, mostly, “the study of literature in its
intersections to philosophy”, which here is used “as theoreti
possibilities offered to the philosophical thought by literature” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6), and
“conjugating philosophy and literature in such a way that the philosophical content e literary form
become indissoc
iable” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6
fiction theoretical strength create porosity in between the fields of literature and philosophy”
sought, in general terms, “the subversion of the borders traditionall
philosophical content and literary content”, as well as “the scrutiny of the multiple articulations between
literature and philosophy, regarding the polymorphous character of its signs” (ALVES; CEI; DIOGO;
2018, p. 7). In specific ter
ms, we proposed the attrition, the friction, the contamination between the
thought of the two greatest theorists of the XIX Century culture, Friedrich Nietzsche
his
On the Genealogy of Morality (1887)
Discontents (1930) -
, and the fictional work from the Portuguese writer Eça de Queirós, the novel
Maias
(1888). This novel has, in its composition, a vast repository of themes, questioning, and
reflections which, besides covering all
contemporaneity as an object of attention to readers and researchers. In the present work, we are
going to analyze, specifically, the social implications present in the outcome of Carlos da Maia and
Maria Ed
uarda love relationship, the conflicts of Carlos’ moral conscience amidst the discovery that he
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Malestar, violencia y otras palinodias de la conciencia en la novela
Los maIa
La metodología utilizada en este trabajo fue el comparatismo, especialmente su aspecto
basado en el diálogo de la literatura con otros campos del conocimiento y, sobre todo, el estudio de
la literatura en sus intersecciones con la fil
osofia”, que se utiliza aquí “como paradigma teórico”. No
sub estimando “las posibilidades ofrecidas al pensamiento filosófico por la literatura” (ALVES; CEI;
DIOGO; 2018, p. 6), y “conjugando filosofía y literatura de tal manera que el contenido filosófic
forma literaria se vuelvan indisociables” (ALVES; CEI ; DIOGO; 2018, p. 6
-7) -
porque “la ficcionalidad
de la teoría y la fuerza teórica de la ficción crean una porosidad entre los campos de la literatura y la
, se buscó, en términos gen
erales, “la subversión de las fronteras tradicionalmente
establecidas entre contenido filosófico y contenido literário”, así como el “escrutinio de las múltiples
articulaciones entre literatura y filosofía, debido al carácter polimórfico de sus signos” (AL
DIOGO; 2018, p. 7). En términos específicos, propusimos la fricción, la contaminación entre el
pensamiento de los dos grandes teóricos de la cultura del siglo XIX, Friedrich Nietzsche
La genealogía de la moral
(1887) y Sigmund Freud
centrándose en
, y la obra maestra de ficción del escritor portugués Eça de Queirós, la novela
(1888). Esta novela tiene, en su composición, un vasto depósito de temas, cuestionamientos y
s que, además de abarcar todo el largo siglo XIX, hacen que la obra permanezca hasta la
contemporaneidad como objeto de atención para lectores y investigadores. En el presente trabajo,
vamos a analizar, específicamente, las implicaciones sociales presentes
en el resultado de la relación
amorosa de Carlos da Maia y Maria Eduarda; los conflictos de la conciencia moral de Carlos, en
medio del descubrimiento de que vivió un amor prohibido; y la violencia resultante de tales conflictos,
sujeto en sí, sea el dirigido hacia los otros. Además, también se prestará
atención a la crítica social que es una marca de Eça. Lo que se puede notar es una sociedad astuta
cuando se trata de preguntas que pueden comprometer la imagen del sujeto civiliza
posible notar que la relación entre civilización y civilidad se muestra compleja, y muchas veces, en
esta novela, las reglas de convivência, que se dice que son civilizadas, usan métodos que se refieren
ar; Violencia; Conciencia; Eça de Queirós; Los Maia.
Discontent, violence and others palinodies of conscience in the novel
The Maias
The methodology utilized in this paper was the comparatist, specially its strand founded on
the dialogue between literature and other fields of knowledge, mostly, “the study of literature in its
intersections to philosophy”, which here is used “as theoreti
cal paradigm” Not sub estimating “the
possibilities offered to the philosophical thought by literature” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6), and
“conjugating philosophy and literature in such a way that the philosophical content e literary form
iable” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6
-7)
because “fictionality theory and the
fiction theoretical strength create porosity in between the fields of literature and philosophy”
sought, in general terms, “the subversion of the borders traditionall
y established between
philosophical content and literary content”, as well as “the scrutiny of the multiple articulations between
literature and philosophy, regarding the polymorphous character of its signs” (ALVES; CEI; DIOGO;
ms, we proposed the attrition, the friction, the contamination between the
thought of the two greatest theorists of the XIX Century culture, Friedrich Nietzsche
On the Genealogy of Morality (1887)
and Sigmund Freud
focusing on
, and the fictional work from the Portuguese writer Eça de Queirós, the novel
(1888). This novel has, in its composition, a vast repository of themes, questioning, and
reflections which, besides covering all
the long XIX Century, make the work remain until
contemporaneity as an object of attention to readers and researchers. In the present work, we are
going to analyze, specifically, the social implications present in the outcome of Carlos da Maia and
uarda love relationship, the conflicts of Carlos’ moral conscience amidst the discovery that he
90
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Los maIa
, de Eça de
La metodología utilizada en este trabajo fue el comparatismo, especialmente su aspecto
basado en el diálogo de la literatura con otros campos del conocimiento y, sobre todo, el estudio de
osofia”, que se utiliza aquí “como paradigma teórico”. No
sub estimando “las posibilidades ofrecidas al pensamiento filosófico por la literatura” (ALVES; CEI;
DIOGO; 2018, p. 6), y “conjugando filosofía y literatura de tal manera que el contenido filosófic
o y la
porque “la ficcionalidad
de la teoría y la fuerza teórica de la ficción crean una porosidad entre los campos de la literatura y la
erales, “la subversión de las fronteras tradicionalmente
establecidas entre contenido filosófico y contenido literário”, así como el “escrutinio de las múltiples
articulaciones entre literatura y filosofía, debido al carácter polimórfico de sus signos” (AL
VES; CEI;
DIOGO; 2018, p. 7). En términos específicos, propusimos la fricción, la contaminación entre el
pensamiento de los dos grandes teóricos de la cultura del siglo XIX, Friedrich Nietzsche
– teniendo en
centrándose en
El malestar em la
, y la obra maestra de ficción del escritor portugués Eça de Queirós, la novela
Los
(1888). Esta novela tiene, en su composición, un vasto depósito de temas, cuestionamientos y
s que, además de abarcar todo el largo siglo XIX, hacen que la obra permanezca hasta la
contemporaneidad como objeto de atención para lectores y investigadores. En el presente trabajo,
en el resultado de la relación
amorosa de Carlos da Maia y Maria Eduarda; los conflictos de la conciencia moral de Carlos, en
medio del descubrimiento de que vivió un amor prohibido; y la violencia resultante de tales conflictos,
sujeto en sí, sea el dirigido hacia los otros. Además, también se prestará
atención a la crítica social que es una marca de Eça. Lo que se puede notar es una sociedad astuta
cuando se trata de preguntas que pueden comprometer la imagen del sujeto civiliza
do. También es
posible notar que la relación entre civilización y civilidad se muestra compleja, y muchas veces, en
esta novela, las reglas de convivência, que se dice que son civilizadas, usan métodos que se refieren
The Maias
, of Eça de
The methodology utilized in this paper was the comparatist, specially its strand founded on
the dialogue between literature and other fields of knowledge, mostly, “the study of literature in its
cal paradigm” Not sub estimating “the
possibilities offered to the philosophical thought by literature” (ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6), and
“conjugating philosophy and literature in such a way that the philosophical content e literary form
because “fictionality theory and the
fiction theoretical strength create porosity in between the fields of literature and philosophy”
-, it was
y established between
philosophical content and literary content”, as well as “the scrutiny of the multiple articulations between
literature and philosophy, regarding the polymorphous character of its signs” (ALVES; CEI; DIOGO;
ms, we proposed the attrition, the friction, the contamination between the
thought of the two greatest theorists of the XIX Century culture, Friedrich Nietzsche
bearing in mind
focusing on
Civilization and Its
, and the fictional work from the Portuguese writer Eça de Queirós, the novel
The
(1888). This novel has, in its composition, a vast repository of themes, questioning, and
the long XIX Century, make the work remain until
contemporaneity as an object of attention to readers and researchers. In the present work, we are
going to analyze, specifically, the social implications present in the outcome of Carlos da Maia and
uarda love relationship, the conflicts of Carlos’ moral conscience amidst the discovery that he
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
lived a prohibited love, and the resulting violence of those conflicts, be the one directed against the
subject itself, or the one directed toward the others. M
social critique that is a mark of Eça’s work. What can be noticed is a society shrewd when dealing with
question that can compromise the image of the civilized subject. It’s possible to note that the
relationsh
ip between civilization and civility show itself complex, and many times, in this novel, the
acquaintanceship rules, said to be civilized, use methods which refer to barbarism.
Keywords:
Discontent; Violence; Conscience; Eça de Queirós; The Maias.
Mal-
estar, violência e outras palinódias da consciência n
“I, I live among the creatures of
the night” (Laura Branigan,
“Self Control”).
“O que o tem governo, nem
nunca terá
O que não tem juízo” (Chico
Buarque, “À
flor da pele”).
“Carlos parecia aniquilado:
Tudo isso é nojento!... No
fim talvez até se entendam
ambos. Estou como tu dizias
aqui tempos: «Caiu
alma a uma latrina, preciso um
banho por dentro!».
Ega murmurou
melancolicamente:
Essa necessidade de
banhos morais está
tornando, com efeito, tão
frequente... Devia haver na
cidade um estabelecimento
para eles” (Eça de Queirós,
Maias).
Nos últimos acontecimentos da
segunda parte do romance
(1888), de Eça de Queirós, João da
Ega é encarregado por Carlos da Maia
de levar ao conhecimento de Maria
Eduarda o fato trágico de que ele e
ela, então amantes, são, na verdade,
irmãos. Suspeitamos de que Carlos
quisesse que fosse dito mais... Ele
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
lived a prohibited love, and the resulting violence of those conflicts, be the one directed against the
subject itself, or the one directed toward the others. M
oreover, we are going to pay attention to the
social critique that is a mark of Eça’s work. What can be noticed is a society shrewd when dealing with
question that can compromise the image of the civilized subject. It’s possible to note that the
ip between civilization and civility show itself complex, and many times, in this novel, the
acquaintanceship rules, said to be civilized, use methods which refer to barbarism.
Discontent; Violence; Conscience; Eça de Queirós; The Maias.
estar, violência e outras palinódias da consciência n
'Os maias
, de Eça de Queirós
“I, I live among the creatures of
the night” (Laura Branigan,
“O que o tem governo, nem
O que não tem juízo” (Chico
flor da pele”).
“Carlos parecia aniquilado:
Tudo isso é nojento!... No
fim talvez até se entendam
ambos. Estou como tu dizias
aqui tempos: «Caiu
-me a
alma a uma latrina, preciso um
banho por dentro!».
Ega murmurou
melancolicamente:
Essa necessidade de
banhos morais está
-se
tornando, com efeito, tão
frequente... Devia haver na
cidade um estabelecimento
para eles” (Eça de Queirós,
Os
Nos últimos acontecimentos da
segunda parte do romance
Os Maias
(1888), de Eça de Queirós, João da
Ega é encarregado por Carlos da Maia
de levar ao conhecimento de Maria
Eduarda o fato trágico de que ele e
ela, então amantes, são, na verdade,
irmãos. Suspeitamos de que Carlos
quisesse que fosse dito mais... Ele
guarda
segredo recém descoberto, enquanto
matinha com ela relações sexuais. Na
madrugada em que retornava da
última dessas noites, é surpreendido
pelo avô, Dom Afonso, que sabia de
tudo e que, ao amanhecer, viria a
morrer
quem sabe se
apoplexia, também de desgosto, como
o próprio Carlos suspeitara. Na
sequência, temos o velório e o
sepultamento, tudo de um dia para o
outro. Após retornar do cemitério, Ega
encontra Carlos no quarto e recebe
dele a notícia de sua partida para
Sa
nta Olávia, e do seu projeto de
viajar pelo mundo, conhecer a América
e o Oriente, se distrair
também convida o amigo, que,
logicamente, aceita. Antes disso,
Carlos pede a Ega que à Maria
Eduarda a ciência dos fatos que ele
vinha omitindo d
a amante e irmã:
Tens dúvida em lhe ir falar, a ela?
91
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
lived a prohibited love, and the resulting violence of those conflicts, be the one directed against the
oreover, we are going to pay attention to the
social critique that is a mark of Eça’s work. What can be noticed is a society shrewd when dealing with
question that can compromise the image of the civilized subject. It’s possible to note that the
ip between civilization and civility show itself complex, and many times, in this novel, the
acquaintanceship rules, said to be civilized, use methods which refer to barbarism.
, de Eça de Queirós
va de Maria Eduarda aquele
segredo recém descoberto, enquanto
matinha com ela relações sexuais. Na
madrugada em que retornava da
última dessas noites, é surpreendido
pelo avô, Dom Afonso, que sabia de
tudo e que, ao amanhecer, viria a
quem sabe se
, além da
apoplexia, também de desgosto, como
o próprio Carlos suspeitara. Na
sequência, temos o velório e o
sepultamento, tudo de um dia para o
outro. Após retornar do cemitério, Ega
encontra Carlos no quarto e recebe
dele a notícia de sua partida para
nta Olávia, e do seu projeto de
viajar pelo mundo, conhecer a América
e o Oriente, se distrair
para o que
também convida o amigo, que,
logicamente, aceita. Antes disso,
Carlos pede a Ega que à Maria
Eduarda a ciência dos fatos que ele
a amante e irmã:
Tens dúvida em lhe ir falar, a ela?
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
Não. Para quê?... Para lhe dizer o
quê?
Tudo. (QUEIRÓS, 1888, p. 272).
Esse “tudo” pode perfeitamente
ser entendido como tudo o que Carlos
achava que Ega sabia. Ega,
provavelmente, entendeu dessa
maneira, mas também, certamente,
percebeu o espaço para a
ambiguidade. O mais correto teria sido
perguntar: tudo o quê? Ainda nos
momentos imediatamente seguintes à
morte de Dom Afonso, Carlos havia
dito a Ega, sobre o avô: “Sabia tudo,
foi isso que o matou!...” (QUEIRÓS,
1888, p. 270). Também ali Ega nada
perguntou, ficando subentendido para
Carlos, que ele sabia o que Dom
Afonso sabia. Sabia, está claro. O
próprio Carlos, na madrugada do
fatídico di
a anterior, chegando ao
Ramalhete, no terror de suas culpas,
pensava, sobre o avô, sobre o Ega,
sobre todos: “Tinha agora a certeza
que eles sabiam tudo (QUEIRÓS,
1888, p. 267). Na véspera de sua
morte, Dom Afonso diz a Ega que
Carlos havia passado suas ú
noites “com essa mulher” (QUEIRÓS,
1888, p. 266). A comunicação entre
Carlos e Ega, nesse período, ou foi
muito truncada, ou evitada por Carlos,
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Não. Para quê?... Para lhe dizer o
Tudo. (QUEIRÓS, 1888, p. 272).
Esse “tudo” pode perfeitamente
ser entendido como tudo o que Carlos
achava que Ega sabia. Ega,
provavelmente, entendeu dessa
maneira, mas também, certamente,
percebeu o espaço para a
ambiguidade. O mais correto teria sido
perguntar: tudo o quê? Ainda nos
momentos imediatamente seguintes à
morte de Dom Afonso, Carlos havia
dito a Ega, sobre o avô: “Sabia tudo,
foi isso que o matou!...” (QUEIRÓS,
1888, p. 270). Também ali Ega nada
perguntou, ficando subentendido para
Carlos, que ele sabia o que Dom
Afonso sabia. Sabia, está claro. O
próprio Carlos, na madrugada do
a anterior, chegando ao
Ramalhete, no terror de suas culpas,
pensava, sobre o avô, sobre o Ega,
sobre todos: “Tinha agora a certeza
que eles sabiam tudo (QUEIRÓS,
1888, p. 267). Na véspera de sua
morte, Dom Afonso diz a Ega que
Carlos havia passado suas ú
ltimas
noites “com essa mulher” (QUEIRÓS,
1888, p. 266). A comunicação entre
Carlos e Ega, nesse período, ou foi
muito truncada, ou evitada por Carlos,
certamente por imaginar que o amigo
suspeitasse o motivo porque ele não
vinha dormindo em casa. Mas, o q
precisamente, Carlos queria que o Ega
dissesse à Maria, quando diz “tudo”?
Apenas o que estava na caixa de
charutos, ou também que, naquelas
últimas quatro noites, ele estivera com
Maria na Rua de São Francisco “na
plena consciência da consanguinidade
que os separava” (QUEIRÓS, 1888, p.
268)? Ao receber o pedido do amigo, o
próprio Ega deve ter pensado que o
mais sensato seria não entrar nos
pormenores do que quer que tenha
acontecido lá, naquelas quatro
obscuras noites. Para Maria Eduarda,
ficara falta
ndo saber desde quando
Carlos sabia... No dia seguinte, ao
receber João da Ega em casa, ela
ouve dele, um tanto abruptamente, a
notícia de um incerto parentesco seu
com Carlos, que havia ido para Santa
Olávia e lhe enviava boa soma em
libras e notas para q
Lisboa e partisse para Paris, além de
também lhe ter deixado uma caixa de
charutos, com documentos de sua
mãe que atestariam o seu grau de
parentesco com os Maias. Antes disso,
logo ao ver o Ega, Maria lhe diz:
“Então Carlos?” (QUEIRÓS, 188
92
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
certamente por imaginar que o amigo
suspeitasse o motivo porque ele não
vinha dormindo em casa. Mas, o q
ue,
precisamente, Carlos queria que o Ega
dissesse à Maria, quando diz “tudo”?
Apenas o que estava na caixa de
charutos, ou também que, naquelas
últimas quatro noites, ele estivera com
Maria na Rua de São Francisco “na
plena consciência da consanguinidade
que os separava” (QUEIRÓS, 1888, p.
268)? Ao receber o pedido do amigo, o
próprio Ega deve ter pensado que o
mais sensato seria não entrar nos
pormenores do que quer que tenha
acontecido lá, naquelas quatro
obscuras noites. Para Maria Eduarda,
ndo saber desde quando
Carlos sabia... No dia seguinte, ao
receber João da Ega em casa, ela
ouve dele, um tanto abruptamente, a
notícia de um incerto parentesco seu
com Carlos, que havia ido para Santa
Olávia e lhe enviava boa soma em
libras e notas para q
ue ela deixasse
Lisboa e partisse para Paris, além de
também lhe ter deixado uma caixa de
charutos, com documentos de sua
mãe que atestariam o seu grau de
parentesco com os Maias. Antes disso,
logo ao ver o Ega, Maria lhe diz:
“Então Carlos?” (QUEIRÓS, 188
8, p.
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
273)... Como ele se desvia da
pergunta, ela insiste: “E Carlos?”...
Ega, então, lhe responde que Carlos
foi para Santa Olávia”, e a sequência é
tocante:
Ela apertou as mãos, numa surpresa
que a acabrunhava. Para Santa
Olávia! E sem um bilhete, sem u
palavra?... Um terror empalidecia
mais, diante daquela partida tão
arrebatada, quase parecida com um
abandono. Terminou por murmurar,
com um ar de resignação e de
confiança que não sentia:
Sim, com efeito, nestes momentos
não se pensa nos outros...
(QUEIRÓS, 1888, p. 274).
Sim, com efeito, nesses
momentos, não se pensa nos outros...
Essa afirmação, no entanto, não é
simples, e precisa ser problematizada.
Maria Eduarda fica completamente
decepcionada com o fato de Carlos,
que declarava ser ela o am
vida, ter se isolado em seu luto, sem
sequer um bilhete ou uma palavra, que
ele não tivera coragem de lhe escrever
e pedira ao Ega para fazê
posso!... Escreve-
lhe tu aí, a ela, duas
palavras. Em silêncio, Ega tomou a
pena, redigiu um bil
hete muito curto”
(QUEIRÓS, 1888, p. 270). A falta de
confiança certamente tem a ver com a
provável intuição de que algo mais
teria acontecido, algo que ela não
sabia e que justificaria a indiferença do
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
273)... Como ele se desvia da
pergunta, ela insiste: “E Carlos?”...
Ega, então, lhe responde que Carlos
foi para Santa Olávia”, e a sequência é
Ela apertou as mãos, numa surpresa
que a acabrunhava. Para Santa
Olávia! E sem um bilhete, sem u
ma
palavra?... Um terror empalidecia
-a
mais, diante daquela partida tão
arrebatada, quase parecida com um
abandono. Terminou por murmurar,
com um ar de resignação e de
confiança que não sentia:
Sim, com efeito, nestes momentos
não se pensa nos outros...
(QUEIRÓS, 1888, p. 274).
Sim, com efeito, nesses
momentos, não se pensa nos outros...
Essa afirmação, no entanto, não é
simples, e precisa ser problematizada.
Maria Eduarda fica completamente
decepcionada com o fato de Carlos,
que declarava ser ela o am
or de sua
vida, ter se isolado em seu luto, sem
sequer um bilhete ou uma palavra, que
ele não tivera coragem de lhe escrever
e pedira ao Ega para fazê
-lo: “Não
lhe tu aí, a ela, duas
palavras. Em silêncio, Ega tomou a
hete muito curto”
(QUEIRÓS, 1888, p. 270). A falta de
confiança certamente tem a ver com a
provável intuição de que algo mais
teria acontecido, algo que ela não
sabia e que justificaria a indiferença do
amante. Se ela realmente teve essa
intuição, o leitor
, a esta altura, sabe
que estava correta. A palavra faltara
porque Carlos não tinha coragem de
voltar a encará-
la depois que ela
soubesse de “tudo”. A morte abrupta
do avô foi apenas um pretexto para ele
dar um fim ao que estava findo.
Aquele amor
não existia para ele,
causava-
lhe asco, como o
personagem nos revela em seu fluxo
de consciência, na última vez em que
o casal se relaciona sexualmente:
“Era, surgindo do fundo do seu ser,
ainda ténue mas percetível, uma
saciedade, uma repugnância por
desde que a sabia do seu sangue!...
Uma repugnância material, carnal, à
flor da pele” (QUEIRÓS, 1888, p. 267).
Não apenas o fato de ambos serem
irmãos. Não apenas a incapacidade de
suportar a reação dela ante a
revelação de que ele,
conscientemente, t
sexuais com a própria irmã. Era,
principalmente, o fato de já não ser
mais capaz de vê-
la como amante, e
um nojo, uma vontade de abreviar,
mais que abreviar, de suprimir todo e
qualquer desdobramento decorrente
desse fato, ainda que, na vésp
tenha dito isto ao Ega:
93
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)
amante. Se ela realmente teve essa
, a esta altura, sabe
que estava correta. A palavra faltara
porque Carlos não tinha coragem de
la depois que ela
soubesse de “tudo”. A morte abrupta
do avô foi apenas um pretexto para ele
dar um fim ao que estava findo.
não existia para ele,
lhe asco, como o
personagem nos revela em seu fluxo
de consciência, na última vez em que
o casal se relaciona sexualmente:
“Era, surgindo do fundo do seu ser,
ainda ténue mas percetível, uma
saciedade, uma repugnância por
ela,
desde que a sabia do seu sangue!...
Uma repugnância material, carnal, à
flor da pele” (QUEIRÓS, 1888, p. 267).
Não apenas o fato de ambos serem
irmãos. Não apenas a incapacidade de
suportar a reação dela ante a
revelação de que ele,
conscientemente, t
ivera relações
sexuais com a própria irmã. Era,
principalmente, o fato de já não ser
la como amante, e
um nojo, uma vontade de abreviar,
mais que abreviar, de suprimir todo e
qualquer desdobramento decorrente
desse fato, ainda que, na vésp
era,
tenha dito isto ao Ega:
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
Pois tu imaginas que por me virem
provar que ela é minha irmã, eu
gosto menos dela do que gostava
ontem, ou gosto de um modo
diferente? Está claro que não! O meu
amor não se vai de uma hora para a
outra acomodar a novas
circuns
tâncias, e transformar
amizade... Nunca! Nem eu quero!
(QUEIRÓS, 1888, p. 260).
Se Carlos defendeu para o
amigo a legitimidade de seus
sentimentos e cogitou manter a
relação com Maria independentemente
do que sabia, nada nos impede de
supor que M
aria Eduarda pudesse
fazer o mesmo, e, caso tivesse a
chance, quem sabe não agisse como
ele, indo também buscar a sua
esfinge, naquelas últimas e obscuras
noites, pois, como afirma Sigmund
Freud, “o sentimento de felicidade
originado da satisfação de um im
selvagem, não domado pelo eu, é
incomparavelmente mais intenso do
que aquele que resulta da saciação de
um impulso domesticado” (FREUD,
2010, p. 68).
sofrendo o rebate de sua
consciência moral, Carlos se recusa a
representar o papel de espectador das
reações dramáticas que se poderia
esperar de Maria, após ela tomar
conhecimento de “tudo” aquilo que
somente ele lhe poderia dizer. A
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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Pois tu imaginas que por me virem
provar que ela é minha irmã, eu
gosto menos dela do que gostava
ontem, ou gosto de um modo
diferente? Está claro que não! O meu
amor não se vai de uma hora para a
outra acomodar a novas
tâncias, e transformar
-se em
amizade... Nunca! Nem eu quero!
(QUEIRÓS, 1888, p. 260).
Se Carlos defendeu para o
amigo a legitimidade de seus
sentimentos e cogitou manter a
relação com Maria independentemente
do que sabia, nada nos impede de
aria Eduarda pudesse
fazer o mesmo, e, caso tivesse a
chance, quem sabe não agisse como
ele, indo também buscar a sua
esfinge, naquelas últimas e obscuras
noites, pois, como afirma Sigmund
Freud, “o sentimento de felicidade
originado da satisfação de um im
pulso
selvagem, não domado pelo eu, é
incomparavelmente mais intenso do
que aquele que resulta da saciação de
um impulso domesticado” (FREUD,
sofrendo o rebate de sua
consciência moral, Carlos se recusa a
representar o papel de espectador das
reações dramáticas que se poderia
esperar de Maria, após ela tomar
conhecimento de “tudo” aquilo que
somente ele lhe poderia dizer. A
conveniência dessa
extirpada do romance, com o
“degredo” dela para Paris, às ocultas,
“toda envolta numa grande peliça
escura, com véu dobrado, espesso
como uma máscara” (QUEIRÓS, 1888,
p 275), “em silêncio, sufocada”, e
escondida numa “carruagem de luxo,
fechada
, misteriosa” (QUEIRÓS, 1888,
p. 276) – o “vagão
-
todas as cortinas cerradas” (QEIRÓS,
1888, p. 275). Ao dizer a Ega que
“nestes momentos não se pensa nos
outros”, com efeito Maria Eduarda
constatava que Carlos, ao partir para
Santa Olávia,
não suportara sequer
dar a ela o direito de lhe manifestar a
sua empatia pela morte de Dom
Afonso (ela e todos os seus criados se
vestiam de luto, quando Ega fora à sua
casa pela última vez). Mas, talvez
também intuísse, com aquele saber
que não se sabe,
Carlos pelas reações dela
relativamente a fatos vindouros: 1. O
choque da descoberta de que os dois
eram irmãos; 2. O terror da
constatação de que haviam vivido uma
relação incestuosa; 3. O grotesco da
descoberta de que Carlos tivera
relações
sexuais com ela de posse
desse conhecimento; 4. O pesar da
94
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
conveniência dessa
s reações é
extirpada do romance, com o
“degredo” dela para Paris, às ocultas,
“toda envolta numa grande peliça
escura, com véu dobrado, espesso
como uma máscara” (QUEIRÓS, 1888,
p 275), “em silêncio, sufocada”, e
escondida numa “carruagem de luxo,
, misteriosa” (QUEIRÓS, 1888,
-
salão, que tinha
todas as cortinas cerradas” (QEIRÓS,
1888, p. 275). Ao dizer a Ega que
“nestes momentos não se pensa nos
outros”, com efeito Maria Eduarda
constatava que Carlos, ao partir para
não suportara sequer
dar a ela o direito de lhe manifestar a
sua empatia pela morte de Dom
Afonso (ela e todos os seus criados se
vestiam de luto, quando Ega fora à sua
casa pela última vez). Mas, talvez
também intuísse, com aquele saber
o desprezo de
Carlos pelas reações dela
relativamente a fatos vindouros: 1. O
choque da descoberta de que os dois
eram irmãos; 2. O terror da
constatação de que haviam vivido uma
relação incestuosa; 3. O grotesco da
descoberta de que Carlos tivera
sexuais com ela de posse
desse conhecimento; 4. O pesar da
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
constatação de que, na verdade, havia
acabado de perder o avô que nunca
sequer vira e de quem tanto ouvia falar
(Ao dar a Ega a notícia de que Maria
partiria no dia seguinte para Paris,
Melanie
, ao que tudo indica a mando
dela, pergunta-
lhe onde ficava o jazigo
de Dom Afonso).
Talvez Maria também soubesse,
mesmo sem saber, que aquela visita
de Ega significava que Carlos havia
lhe virado as costas, irreversivelmente,
para outros pensamentos e
se
ntimentos que ela poderia
experimentar após saber de quase
“tudo”, e sobre os quais não é
descabido conjecturar: 5. O interesse
em ser reintegrada naquela sociedade,
como legítima herdeira dos Maias, do
seu nome, e, não tendo mais ninguém
no mundo, uma von
tade muito
plausível de iniciar um convívio familiar
com o irmão, talvez mesmo no interior
do próprio Ramalhete; 6. A tentativa,
que não é incompatível com o tópico
anterior, nem necessariamente
dependente dele, de manutenção da
condição de amantes, mesmo
conhecimento do parentesco
que, como sabemos, é perfeitamente
plausível em se tratando da lógica do
desejo.
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
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Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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constatação de que, na verdade, havia
acabado de perder o avô que nunca
sequer vira e de quem tanto ouvia falar
(Ao dar a Ega a notícia de que Maria
partiria no dia seguinte para Paris,
, ao que tudo indica a mando
lhe onde ficava o jazigo
Talvez Maria também soubesse,
mesmo sem saber, que aquela visita
de Ega significava que Carlos havia
lhe virado as costas, irreversivelmente,
para outros pensamentos e
ntimentos que ela poderia
experimentar após saber de quase
“tudo”, e sobre os quais não é
descabido conjecturar: 5. O interesse
em ser reintegrada naquela sociedade,
como legítima herdeira dos Maias, do
seu nome, e, não tendo mais ninguém
tade muito
plausível de iniciar um convívio familiar
com o irmão, talvez mesmo no interior
do próprio Ramalhete; 6. A tentativa,
que não é incompatível com o tópico
anterior, nem necessariamente
dependente dele, de manutenção da
condição de amantes, mesmo
após o
conhecimento do parentesco
algo
que, como sabemos, é perfeitamente
plausível em se tratando da lógica do
Carlos lhe nega tudo isso, como
se não reconhecesse nela os mesmos
direitos que julgava possuir. Embora
tenha recebido uma mesada, fi
lhe prometida a legítima herança, a
Maria Eduarda não é garantido o
direito legal aos mesmos rituais de luto
e melancolia que Carlos determina
para si. Lembremo-
nos da conversa de
Ega com o Vilaça, justamente sobre
esse assunto. Vilaça acha exagerado
“para uma simples mulher” (QUEIRÓS,
1888, p. 276) as quinhentas libras que
Carlos destinara à Maria, para a
viagem a Paris, e as cento e sessenta
libras que ela deveria receber, de
mesada, enquanto não se liquidassem
as propriedades a que tinha direito
sequência, quando escreve a Maria a
carta com as instruções para a
viagem, Ega fica embaraçado, não
sabendo se a destinatária era Madame
Mac Gren ou D. Maria Eduarda da
Maia. O sobrescrito acaba indo em
branco, e mais uma vez constatamos
que o direito
legal de “uma simples
mulher” era sempre algo muito
problemático naquela sociedade. Em
sua
Genealogia da Moral
comenta que “O ‘direito’ foi por muito
tempo um vetitum
[algo proibido], um
abuso, uma inovação, apareceu com
95
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)
Carlos lhe nega tudo isso, como
se não reconhecesse nela os mesmos
direitos que julgava possuir. Embora
tenha recebido uma mesada, fi
cando-
lhe prometida a legítima herança, a
Maria Eduarda não é garantido o
direito legal aos mesmos rituais de luto
e melancolia que Carlos determina
nos da conversa de
Ega com o Vilaça, justamente sobre
esse assunto. Vilaça acha exagerado
“para uma simples mulher” (QUEIRÓS,
1888, p. 276) as quinhentas libras que
Carlos destinara à Maria, para a
viagem a Paris, e as cento e sessenta
libras que ela deveria receber, de
mesada, enquanto não se liquidassem
as propriedades a que tinha direito
. Na
sequência, quando escreve a Maria a
carta com as instruções para a
viagem, Ega fica embaraçado, não
sabendo se a destinatária era Madame
Mac Gren ou D. Maria Eduarda da
Maia. O sobrescrito acaba indo em
branco, e mais uma vez constatamos
legal de “uma simples
mulher” era sempre algo muito
problemático naquela sociedade. Em
Genealogia da Moral
, Nietzsche
comenta que “O ‘direito’ foi por muito
[algo proibido], um
abuso, uma inovação, apareceu com
-
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
violência, como violênc
ia, à qual
somente com vergonha de si mesmo
alguém se submetia”, e que “cada
pequenino passo que se deu na terra
foi conquistado ao preço de suplícios
espirituais e corporais” (NIETZSCHE,
1998, p. 103). A cena que abordamos
é exemplar nesse sentido. A viol
a que Nietzsche se refere é muito mais
contra quem concede o direito do que
contra quem dele se beneficia
em geral se encontra em uma posição
mais vulnerável. Mas, a via é de mão
dupla, como veremos.
Se a perspectiva narrativa
dominante ness
a fase do romance é a
de Carlos, faz todo o sentido, do ponto
de vista da economia narrativa, que
Maria Eduarda seja tratada como uma
pária, após a morte de Dom Afonso.
Não na perspectiva narrativa, mas
também na econômica, pois não nos
esqueçamos de qu
e, no nível da
diegese, Carlos é praticamente
onipotente nesse sentido, e de que
quase tudo no romance gira em torno
de sua bolsa. Assim, materialmente
falando, Maria Eduarda sai da história
amplamente beneficiada, embora
ainda sem nome, como um fantasma.
No plano dos afetos, ela é
completamente vilipendiada, e a sua
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
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, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ia, à qual
somente com vergonha de si mesmo
alguém se submetia”, e que “cada
pequenino passo que se deu na terra
foi conquistado ao preço de suplícios
espirituais e corporais” (NIETZSCHE,
1998, p. 103). A cena que abordamos
é exemplar nesse sentido. A viol
ência
a que Nietzsche se refere é muito mais
contra quem concede o direito do que
contra quem dele se beneficia
e que
em geral se encontra em uma posição
mais vulnerável. Mas, a via é de mão
Se a perspectiva narrativa
a fase do romance é a
de Carlos, faz todo o sentido, do ponto
de vista da economia narrativa, que
Maria Eduarda seja tratada como uma
pária, após a morte de Dom Afonso.
Não na perspectiva narrativa, mas
também na econômica, pois não nos
e, no nível da
diegese, Carlos é praticamente
onipotente nesse sentido, e de que
quase tudo no romance gira em torno
de sua bolsa. Assim, materialmente
falando, Maria Eduarda sai da história
amplamente beneficiada, embora
ainda sem nome, como um fantasma.
No plano dos afetos, ela é
completamente vilipendiada, e a sua
partida também é fantasmática
apenas diz ao Nunes que a enigmática
mulher a embarcar misteriosamente
em Santa Apolônia era “Cleópatra”
(QUEIRÓS, 1888, p. 276). Maria
Eduarda embarca envol
mistérios, em scaras, oculta aos
olhos de todos, ritos que lembram os
dos antigos guerreiros
tabu da guerra, a
quando do retorno às
suas comunidades, como Freud nos
lembra em
Totem e tabu
deveras um tabu. Mas, Carlos sai
q
uase ileso, do ponto de vista de sua
relação com a sociedade. Os ritos
impostos à partida de Maria Eduarda,
entre os quais se inclui a própria
partida, são a contrapartida da
violência que Carlos impõe a si
mesmo, para permanecer no âmbito
do direito legal
e, mais do que isso, no
âmbito da civilização
relação dele consigo mesmo seria
impossível sair ileso. É violência, como
nos ensinara Freud, em
cultura
, aquela “agressão da
consciência moral”, em “sua
extraordinária severidade”, co
próprio sujeito. Segundo o pai da
psicanálise, “cada parcela de agressão
que nos recusamos a satisfazer é
assumida pelo supereu e aumenta a
96
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
partida também é fantasmática
Ega
apenas diz ao Nunes que a enigmática
mulher a embarcar misteriosamente
em Santa Apolônia era “Cleópatra”
(QUEIRÓS, 1888, p. 276). Maria
Eduarda embarca envol
ta em
mistérios, em scaras, oculta aos
olhos de todos, ritos que lembram os
dos antigos guerreiros
marcados pelo
quando do retorno às
suas comunidades, como Freud nos
Totem e tabu
. O incesto é
deveras um tabu. Mas, Carlos sai
uase ileso, do ponto de vista de sua
relação com a sociedade. Os ritos
impostos à partida de Maria Eduarda,
entre os quais se inclui a própria
partida, são a contrapartida da
violência que Carlos impõe a si
mesmo, para permanecer no âmbito
e, mais do que isso, no
âmbito da civilização
enfim, na
relação dele consigo mesmo seria
impossível sair ileso. É violência, como
nos ensinara Freud, em
Mal-estar na
, aquela “agressão da
consciência moral”, em “sua
extraordinária severidade”, co
ntra o
próprio sujeito. Segundo o pai da
psicanálise, “cada parcela de agressão
que nos recusamos a satisfazer é
assumida pelo supereu e aumenta a
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
sua agressão (contra o eu)” (FREUD,
2010, p. 154).
O final do romance nos mostra
que a taça da ira do eu con
mesmo pode transbordar e ser
dividida, iniciando um novo ciclo nessa
dinâmica. Volta-
se, assim, a agredir o
outro, como complemento da agressão
contra si próprio. A agressão de Carlos
contra Carlos é a renúncia à agressão
erótica xima representada
incesto. O que transborda para Maria
Eduarda é a exigência de segregá
a necessidade de tratá-
la, somente a
ela, da mesma forma que as
comunidades antigas tratavam os
guerreiros marcados pelo tabu. Essa
“disputa entre o amor e o anseio de
morte”,
como nos ensinara Freud,
também “se consuma em relação à
massa”, pois “a escalada do
sentimento de culpa, talvez até alturas
que o indivíduo acha dificilmente
suportáveis, está ligada à cultura de
maneira indissolúvel” (FREUD, 2010,
p. 161). Talvez tenha a
ver com isso o
fato de Carlos ter encontrado tanta
cumplicidade em seus desígnios, até
ao ponto de mesmo os direitos legais
de Maria Eduarda terem sido
questionados, por outros que estavam
a ele agregados. Por outro lado, os
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
sua agressão (contra o eu)” (FREUD,
O final do romance nos mostra
que a taça da ira do eu con
tra si
mesmo pode transbordar e ser
dividida, iniciando um novo ciclo nessa
se, assim, a agredir o
outro, como complemento da agressão
contra si próprio. A agressão de Carlos
contra Carlos é a renúncia à agressão
erótica xima representada
pelo
incesto. O que transborda para Maria
Eduarda é a exigência de segregá
-la,
la, somente a
ela, da mesma forma que as
comunidades antigas tratavam os
guerreiros marcados pelo tabu. Essa
“disputa entre o amor e o anseio de
como nos ensinara Freud,
também “se consuma em relação à
massa”, pois “a escalada do
sentimento de culpa, talvez até alturas
que o indivíduo acha dificilmente
suportáveis, está ligada à cultura de
maneira indissolúvel” (FREUD, 2010,
ver com isso o
fato de Carlos ter encontrado tanta
cumplicidade em seus desígnios, até
ao ponto de mesmo os direitos legais
de Maria Eduarda terem sido
questionados, por outros que estavam
a ele agregados. Por outro lado, os
dez anos que ele passa ausente
Lisboa, ainda que nos termos
mencionados, não deixam também de
cumprir um certo papel no seu
ajuste de contas com o social.
Nietzsche afirma que “híbris é
nossa atitude para com Deus”, a quem
ele como aquela “presumível
aranha de propósito e
trás da grande tela e teia da
causalidade” (NIETZSCHE, 1998, p.
102)
para o que, numa feliz
coincidência, o exemplo de “Carlos,
o Temerário, em luta com Luís XI:
combats l’universelle araignée
autor da
Genealogia da moral
afirma que “híbris é nossa atitude para
com nós mesmos
, pois fazemos
conosco experimentos que não nos
permitiríamos fazer com nenhum
animal, e alegres e curiosos
vivisseccionamos nossa alma: que nos
importa ainda a ‘salvação’ da alma!”
(NIETZSCHE, 1998
, p. 103). Até a
morte do avô, Carlos fora, decerto,
temerário em alguns lances de sua
relação com Maria Eduarda. Era como
se também tivesse o propósito de
combater uma certa aranha universal.
Depois, trocará essa atitude pelo
combate a si mesmo, vivissecc
a própria alma com um rigor ainda não
97
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
dez anos que ele passa ausente
de
Lisboa, ainda que nos termos
mencionados, não deixam também de
cumprir um certo papel no seu
ajuste de contas com o social.
Nietzsche afirma que “híbris é
nossa atitude para com Deus”, a quem
ele como aquela “presumível
aranha de propósito e
mora lida de por
trás da grande tela e teia da
causalidade” (NIETZSCHE, 1998, p.
para o que, numa feliz
coincidência, o exemplo de “Carlos,
o Temerário, em luta com Luís XI:
je
combats l’universelle araignée
’”. O
Genealogia da moral
também
afirma que “híbris é nossa atitude para
, pois fazemos
conosco experimentos que não nos
permitiríamos fazer com nenhum
animal, e alegres e curiosos
vivisseccionamos nossa alma: que nos
importa ainda a ‘salvação’ da alma!”
, p. 103). Até a
morte do avô, Carlos fora, decerto,
temerário em alguns lances de sua
relação com Maria Eduarda. Era como
se também tivesse o propósito de
combater uma certa aranha universal.
Depois, trocará essa atitude pelo
combate a si mesmo, vivissecc
ionando
a própria alma com um rigor ainda não
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
visto no romance
uma alma que
não podia ser salva, como ele próprio
diz ao Ega:
Não! É estranho, não me faço mais
desgraçado! Aceito isto como um
castigo... Quero que seja um
castigo... E sinto-
me muito
pequeno, muito humilde diante de
quem assim me castiga. Esta manhã
pensava em matar-
me. E agora não!
É o meu castigo viver, esmagado
para sempre... (QUEIRÓS, 1888, p.
270).
Carlos se como um proscrito
na terra... Não espera a salvação da
alma. Est
á disposto a seguir errante
pela poeira dos caminhos. Mas, no
fundo, sabe que sempre uma
compensação, ao menos “para
cómodo e salvação do corpo, que a
alma... Oh! a alma...” (GARRETT,
2017, p. 40)
dizia o astuto Autor
das
Viagens na minha Terra
ao analisar a situação financeira dos
Maias, diz a Ega que “há muito
dinheiro”, concluindo que “isto”, “digam
o que quiserem, sempre consola de
tudo”. Ega concorda, reservando um
espaço para a contradição: “Consola
de muito, com efeito” (QUEIRÓ
1888, p. 273). Ele mesmo faria a sua
própria análise, voltando da casa de
Maria Eduarda, depois de lhe ter
entregado as libras de Carlos:
Foi na Rua do Ouro que começou
a serenar, tirando o chapéu,
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
uma alma que
não podia ser salva, como ele próprio
Não! É estranho, não me faço mais
desgraçado! Aceito isto como um
castigo... Quero que seja um
me muito
pequeno, muito humilde diante de
quem assim me castiga. Esta manhã
me. E agora não!
É o meu castigo viver, esmagado
para sempre... (QUEIRÓS, 1888, p.
Carlos se como um proscrito
na terra... Não espera a salvação da
á disposto a seguir errante
pela poeira dos caminhos. Mas, no
fundo, sabe que sempre uma
compensação, ao menos “para
cómodo e salvação do corpo, que a
alma... Oh! a alma...” (GARRETT,
dizia o astuto Autor
Viagens na minha Terra
. Vilaça,
ao analisar a situação financeira dos
Maias, diz a Ega que “há muito
dinheiro”, concluindo que “isto”, “digam
o que quiserem, sempre consola de
tudo”. Ega concorda, reservando um
espaço para a contradição: “Consola
de muito, com efeito” (QUEIRÓ
S,
1888, p. 273). Ele mesmo faria a sua
própria análise, voltando da casa de
Maria Eduarda, depois de lhe ter
entregado as libras de Carlos:
Foi na Rua do Ouro que começou
a serenar, tirando o chapéu,
respirando largamente. E ia então
repetindo a si
consolações que se poderiam dar a
Maria Eduarda: era nova e formosa;
o seu pecado fora inconsciente; o
tempo acalma toda a dor; e em
breve, já resignada, encontrar
com uma família séria, uma larga
fortuna, nesse amável Paris, onde
uns
lindos olhos, com algumas notas
de mil francos, têm sempre um
reinado seguro...
É uma situação de viúva bonita e
rica
terminou ele por dizer alto no
coupé. Há pior na vida (QUEIRÓS,
1888, p. 275).
pior na vida... Esse cálculo
talvez seja a medida
que sempre nos é cobrada por nossa
consciência moral. O mal
nos aflige é que tal cálculo não
conta nem de nosso amor, nem de
nosso anseio de morte. Como se diz
por aí, a conta não fecha. não se
pode salvar a alma, a felicida
absoluta é impossível, somos
proscritos, degredados cumprindo na
terra uma certa pena, um castigo,
como Carlos, como Maria Eduarda...
No trecho em que Carlos comenta
sobre o seu castigo, ele conclui,
ressentido com o avô: “O que me
custa é que ele não m
adeus!” (QUEIRÓS, 1888, p. 270).
Maria Eduarda talvez tenha terminado
seus dias com o mesmo ressentimento
em relação a Carlos. E não se pode ter
certeza de que Afonso quereria dizer
98
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
respirando largamente. E ia então
repetindo a si
mesmo todas as
consolações que se poderiam dar a
Maria Eduarda: era nova e formosa;
o seu pecado fora inconsciente; o
tempo acalma toda a dor; e em
breve, já resignada, encontrar
-se-ia
com uma família séria, uma larga
fortuna, nesse amável Paris, onde
lindos olhos, com algumas notas
de mil francos, têm sempre um
reinado seguro...
É uma situação de viúva bonita e
terminou ele por dizer alto no
coupé. Há pior na vida (QUEIRÓS,
pior na vida... Esse cálculo
talvez seja a medida
para a punição
que sempre nos é cobrada por nossa
consciência moral. O mal
-estar que
nos aflige é que tal cálculo não
conta nem de nosso amor, nem de
nosso anseio de morte. Como se diz
por aí, a conta não fecha. não se
pode salvar a alma, a felicida
de
absoluta é impossível, somos
proscritos, degredados cumprindo na
terra uma certa pena, um castigo,
como Carlos, como Maria Eduarda...
No trecho em que Carlos comenta
sobre o seu castigo, ele conclui,
ressentido com o avô: “O que me
custa é que ele não m
e tivesse dito
adeus!” (QUEIRÓS, 1888, p. 270).
Maria Eduarda talvez tenha terminado
seus dias com o mesmo ressentimento
em relação a Carlos. E não se pode ter
certeza de que Afonso quereria dizer
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
algo ao neto, na sua última hora, se
tivesse tido a oportun
idade. Tampouco
se pode garantir que Carlos estivera
no cemitério, para um último adeus ao
avô... Maria Eduarda, que
suspeitamos ter visitado “o jazigo dos
senhores Vilaça”, “nos Prazeres, à
direita, ao fundo, onde havia um anjo
com uma tocha” (QUEIRÓS,
275), é reduzida a um silêncio
mortuário, apenas quebrado pelo que
o próprio Carlos nos conta dela no
capítulo final, numa última e cabal
prova da violência que lhe fora
imposta.
A civilização que se representa
em Os Maias
é isto: atos e mais at
de violência, em geral disfarçados por
ritos de distanciamento e
impessoalidade
mais precisamente,
de civilidade
, como no caso em que
Ega e Cruges vão levar ao Dâmaso o
aviso do desafio de Carlos, ou no frio
abandono, no isolamento e no
silenciament
recompensado de Maria, após a morte
de Dom Afonso. Nietzsche analisa
bem esse estágio da cultura, ao
afirmar que os seres humanos foram
violentamente formatados em relação
à sua antiga versão. Segundo o
filósofo, “a inserção de uma populaçã
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
algo ao neto, na sua última hora, se
idade. Tampouco
se pode garantir que Carlos estivera
no cemitério, para um último adeus ao
avô... Maria Eduarda, que
suspeitamos ter visitado “o jazigo dos
senhores Vilaça”, “nos Prazeres, à
direita, ao fundo, onde havia um anjo
com uma tocha” (QUEIRÓS,
1888, p.
275), é reduzida a um silêncio
mortuário, apenas quebrado pelo que
o próprio Carlos nos conta dela no
capítulo final, numa última e cabal
prova da violência que lhe fora
A civilização que se representa
é isto: atos e mais at
os
de violência, em geral disfarçados por
ritos de distanciamento e
mais precisamente,
, como no caso em que
Ega e Cruges vão levar ao Dâmaso o
aviso do desafio de Carlos, ou no frio
abandono, no isolamento e no
o materialmente
recompensado de Maria, após a morte
de Dom Afonso. Nietzsche analisa
bem esse estágio da cultura, ao
afirmar que os seres humanos foram
violentamente formatados em relação
à sua antiga versão. Segundo o
filósofo, “a inserção de uma populaçã
o
sem normas e sem freios numa forma
estável, assim como tivera início com
um ato de violência, foi levada a termo
somente com atos de violência”
(NIETZSCHE, 1998, p. 74). Nietzsche
quer dizer que é do homem praticar a
violência, que a sua domesticação é
e
la mesma um ato de violência contra
o próprio homem, e que esse ato,
agora internalizado, continua a operar
no interior do homem, a partir de algo
que lhe é essencial: a vontade de
violência. Por isso, ele tem razão ao
afirmar que,
essencialmente,
em suas funções básicas, a vida atua
ofendendo, violentando, explorando,
destruindo, não podendo sequer ser
concebida sem esse caráter”. No
trecho a seguir, da mesma seção da
citação anterior, o filósofo desenvolve
esse raciocínio, de forma ainda mais
elucidativa:
É preciso mesmo admitir algo ainda
mais grave: que, do mais alto ponto
de vista biológico, os estados de
direito não podem senão ser
de exceção,
enquanto restrições
parciais da vontade de vida que visa
o poder, a cujos fins gerais se
subordinam enquanto meios
particulares: a saber, como meios
para criar
maiores
poder. Uma ordem de direito
concebida como geral e soberana,
não como meio n
complexos de poder, mas como meio
contra
toda luta, [...] seria um
princípio
hostil à vida,
destruidora e desagregadora do
homem, um atentado ao futuro do
99
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sem normas e sem freios numa forma
estável, assim como tivera início com
um ato de violência, foi levada a termo
somente com atos de violência”
(NIETZSCHE, 1998, p. 74). Nietzsche
quer dizer que é do homem praticar a
violência, que a sua domesticação é
la mesma um ato de violência contra
o próprio homem, e que esse ato,
agora internalizado, continua a operar
no interior do homem, a partir de algo
que lhe é essencial: a vontade de
violência. Por isso, ele tem razão ao
essencialmente,
isto é,
em suas funções básicas, a vida atua
ofendendo, violentando, explorando,
destruindo, não podendo sequer ser
concebida sem esse caráter”. No
trecho a seguir, da mesma seção da
citação anterior, o filósofo desenvolve
esse raciocínio, de forma ainda mais
É preciso mesmo admitir algo ainda
mais grave: que, do mais alto ponto
de vista biológico, os estados de
direito não podem senão ser
estados
enquanto restrições
parciais da vontade de vida que visa
o poder, a cujos fins gerais se
subordinam enquanto meios
particulares: a saber, como meios
maiores
unidades de
poder. Uma ordem de direito
concebida como geral e soberana,
não como meio n
a luta entre
complexos de poder, mas como meio
toda luta, [...] seria um
hostil à vida,
uma ordem
destruidora e desagregadora do
homem, um atentado ao futuro do
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
homem, um sinal de cansaço, um
caminho sinuoso para o nada
(NIETZSCHE, 1998, p
. 65).
A leitura desse trecho de
Nietzsche, com
Os Maias
diz-
nos mesmo muita coisa... O direito,
nesse romance, a estrutura mesma do
que se pode chamar de civilização,
não existe senão como filtro instável,
que pode, a qualquer momento, ser
arrancado dos olhos, para que se veja
melhor com o sangue que nele sobe,
em momentos de crise e de violência.
E, “de ordinário, mesmo para as mais
íntegras pessoas basta uma pequena
dose de agressão, malícia, insinuação,
para lhes fazer o
sangue subir aos
olhos e a imparcialidade sair dos
olhos” (NIETZSCHE, 1998, p. 63). Fica
muito claro, ao fim do romance, que a
garantia dos direitos de Maria Eduarda
tem todas as características de uma
“exceção”, e que as “restrições
parciais da vontade” que lhe
asseguram tais direitos geram certo
mal-
estar naquela estrutura social,
como se es
ta sentisse ameaçada a
sua hegemonia misógina, pois, afinal,
como disse o Vilaça, além de tudo se
tratava apenas de “uma mulher, uma
simples mulher”. No entanto, apesar
de em todo o romance o se
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
homem, um sinal de cansaço, um
caminho sinuoso para o nada
. 65).
A leitura desse trecho de
Os Maias
ao fundo,
nos mesmo muita coisa... O direito,
nesse romance, a estrutura mesma do
que se pode chamar de civilização,
não existe senão como filtro instável,
que pode, a qualquer momento, ser
arrancado dos olhos, para que se veja
melhor com o sangue que nele sobe,
em momentos de crise e de violência.
E, “de ordinário, mesmo para as mais
íntegras pessoas basta uma pequena
dose de agressão, malícia, insinuação,
sangue subir aos
olhos e a imparcialidade sair dos
olhos” (NIETZSCHE, 1998, p. 63). Fica
muito claro, ao fim do romance, que a
garantia dos direitos de Maria Eduarda
tem todas as características de uma
“exceção”, e que as “restrições
parciais da vontade” que lhe
asseguram tais direitos geram certo
estar naquela estrutura social,
ta sentisse ameaçada a
sua hegemonia misógina, pois, afinal,
como disse o Vilaça, além de tudo se
tratava apenas de “uma mulher, uma
simples mulher”. No entanto, apesar
de em todo o romance o se
vislumbrar algo como “uma ordem de
direito concebida como g
soberana”, o que nele ressalta é a
sensação de que a civilização e suas
exigências, mesmo num contexto
social precário como o português de
fins do culo XIX, estão muito
próximas daquilo que Nietzsche
chamou de “uma ordem destruidora e
desagregador
a do homem, um
atentado ao futuro do homem, um sinal
de cansaço, um caminho sinuoso para
o nada”.
A palavra civilização e suas
derivações aparecem repetidas vezes
no romance, evidenciando a
importância desse tema, que também
é bastante debatido. No trecho
segue, João Ega, refletindo sobre
questões de civilização, critica a
crônica dependência de Portugal
relativamente às grandes potências
europeias, a sua falta de
autenticidade, de originalidade. A
abrangência de sua crítica não se
restringe às importaç
materiais, mas se estende às ciências,
à filosofia, aos costumes:
Aqui importa-
se tudo. Leis, ideias,
filosofias, teorias, assuntos,
estéticas, ciências, estilo, indústrias,
modas, maneiras, pilhérias, tudo nos
vem em caixotes pelo paquete. A
c
ivilização custa
os direitos da Alfândega: e é em
100
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
vislumbrar algo como “uma ordem de
direito concebida como g
eral e
soberana”, o que nele ressalta é a
sensação de que a civilização e suas
exigências, mesmo num contexto
social precário como o português de
fins do culo XIX, estão muito
próximas daquilo que Nietzsche
chamou de “uma ordem destruidora e
a do homem, um
atentado ao futuro do homem, um sinal
de cansaço, um caminho sinuoso para
A palavra civilização e suas
derivações aparecem repetidas vezes
no romance, evidenciando a
importância desse tema, que também
é bastante debatido. No trecho
que
segue, João Ega, refletindo sobre
questões de civilização, critica a
crônica dependência de Portugal
relativamente às grandes potências
europeias, a sua falta de
autenticidade, de originalidade. A
abrangência de sua crítica não se
restringe às importaç
ões de bens
materiais, mas se estende às ciências,
à filosofia, aos costumes:
se tudo. Leis, ideias,
filosofias, teorias, assuntos,
estéticas, ciências, estilo, indústrias,
modas, maneiras, pilhérias, tudo nos
vem em caixotes pelo paquete. A
ivilização custa
-nos caríssima, com
os direitos da Alfândega: e é em
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
segunda mão, não foi feita para nós,
fica-
nos curta nas mangas... Nós
julgamo-
nos civilizados como os
negros de o Tomé se supõem
cavalheiros, se supõem mesmo
brancos, por usarem com a t
uma casaca velha do patrão... Isto é
uma choldra torpe (QUEIRÓS, 1888,
p. 43).
O século XIX foi um período de
ebulição e de muito progresso, muito
disso sendo devido aos avanços
obtidos com a Revolução Industrial,
que também gerou mazelas sociais.
Em
seu último romance publicado, Eça
dirige um olhar de preocupação aos
resultados finisseculares desse
processo histórico, e dirigiu sua crítica
especificamente à sociedade
portuguesa, consumidora periférica de
tendências e descobertas, mas
incapaz de produ
zir e participar
efetivamente no trabalho do progresso,
do qual se acreditava resultar a
civilização.
No trecho que citaremos a
seguir, Carlos e Ega conversam com o
conde de Gouvarinho, em São Carlos.
O conde considerava a rivalidade entre
Lisboa e Porto
algo comparável à
dualidade existente entre Áustria e
Hungria, atribuindo a esse conflito um
valor muito positivo, e vendo nessa
semelhança um sinal de civilização.
Com esse discurso, o Gouvarinho é
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
segunda mão, não foi feita para nós,
nos curta nas mangas... Nós
nos civilizados como os
negros de o Tomé se supõem
cavalheiros, se supõem mesmo
brancos, por usarem com a t
anga
uma casaca velha do patrão... Isto é
uma choldra torpe (QUEIRÓS, 1888,
O século XIX foi um período de
ebulição e de muito progresso, muito
disso sendo devido aos avanços
obtidos com a Revolução Industrial,
que também gerou mazelas sociais.
seu último romance publicado, Eça
dirige um olhar de preocupação aos
resultados finisseculares desse
processo histórico, e dirigiu sua crítica
especificamente à sociedade
portuguesa, consumidora periférica de
tendências e descobertas, mas
zir e participar
efetivamente no trabalho do progresso,
do qual se acreditava resultar a
No trecho que citaremos a
seguir, Carlos e Ega conversam com o
conde de Gouvarinho, em São Carlos.
O conde considerava a rivalidade entre
algo comparável à
dualidade existente entre Áustria e
Hungria, atribuindo a esse conflito um
valor muito positivo, e vendo nessa
semelhança um sinal de civilização.
Com esse discurso, o Gouvarinho é
muito elogiado por Carlos e Ega, mas,
nessas efusões dos
sempre, como sabemos, ou muito de
ironia, ou apenas superficialidade
pragmática. Também é bom lembrar
que outros interesses mais prementes
do que apreciar a retórica do conde os
haviam levado ali. Feita essa ressalva,
concede-
se que o conflito
em posição muito elevada, como parte
inerente à própria civilização, apesar
de o senso comum sempre reproduzir,
ao longo do romance, a ideia de que
civilização e civilidade o sinônimos
de concórdia. Vejamos o trecho:
Aí está, por exemplo
ciúme entre Lisboa e Porto. É uma
verdadeira dualidade como a que
existe entre a Hungria e a Áustria...
Ouço por ali lamentá
eu, se fosse poder, instigá
acirrá-la-
ia, se as vossas
Excelências me permitem a
expressão. Nesta l
grandes cidades do reino, podem
outros ver despeitos mesquinhos, eu
vejo elementos de progresso. Vejo
civilização! (QUEIRÓS, 1888, p. 56).
Em outra cena bastante
conhecida, a do jantar no Hotel
Central, Ega vai enumerando os
possíveis benefíc
ios de um conflito
bélico para Portugal, caso este
sofresse uma invasão dos espanhóis.
Em contraposição à preocupação dos
demais presentes com um provável
massacre, ele ressalta as vantagens
101
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
muito elogiado por Carlos e Ega, mas,
nessas efusões dos
dois, havia
sempre, como sabemos, ou muito de
ironia, ou apenas superficialidade
pragmática. Também é bom lembrar
que outros interesses mais prementes
do que apreciar a retórica do conde os
haviam levado ali. Feita essa ressalva,
se que o conflito
é colocado
em posição muito elevada, como parte
inerente à própria civilização, apesar
de o senso comum sempre reproduzir,
ao longo do romance, a ideia de que
civilização e civilidade o sinônimos
de concórdia. Vejamos o trecho:
Aí está, por exemplo
— dizia ele o
ciúme entre Lisboa e Porto. É uma
verdadeira dualidade como a que
existe entre a Hungria e a Áustria...
Ouço por ali lamentá
-la. Pois bem,
eu, se fosse poder, instigá
-la-ia,
ia, se as vossas
Excelências me permitem a
expressão. Nesta l
uta das duas
grandes cidades do reino, podem
outros ver despeitos mesquinhos, eu
vejo elementos de progresso. Vejo
civilização! (QUEIRÓS, 1888, p. 56).
Em outra cena bastante
conhecida, a do jantar no Hotel
Central, Ega vai enumerando os
ios de um conflito
bélico para Portugal, caso este
sofresse uma invasão dos espanhóis.
Em contraposição à preocupação dos
demais presentes com um provável
massacre, ele ressalta as vantagens
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
desse conflito do ponto de vista do que
considera a civilização
isso porque,
em sua opinião, não havia evidência
histórica de que os seis milhões de
portugueses pudessem ser “engolidos”
por uma nação de quinze milhões. Ao
contrário, Ega demonstra acreditar que
uma derrota terrível, como se poderia
esperar nesses casos
, bastaria para
suscitar o ressurgimento do espírito
português, que, em tais condições,
seria necessário “fazer esforço para
viver”:
E em que bela situação nos
achávamos! Sem monarquia, sem
essa caterva de políticos, sem esse
tortulho da inscrição,
desaparecia, estávamos novos em
folha, limpos, escarolados, como se
nunca tivéssemos servido E
recomeçava-
se uma história nova,
um outro Portugal, um Portugal sério
e inteligente, forte e decente,
estudando, pensando, fazendo
civilização como o
utrora... Meninos,
nada regenera uma nação como
uma medonha tareia... Oh! Deus de
Ourique, manda-
nos o castelhano!
(QUEIRÓS, 1888, p. 66).
Se pensarmos a crítica anterior,
à passividade dos portugueses e à sua
dependência crônica das tendências
estrangeir
as, temos uma paradoxal
contraposição de ideias
mais, é o que precisamente
caracteriza o comportamento desse
heterodoxo personagem. Essa forma
paradoxal de pensar relacionada à
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
desse conflito do ponto de vista do que
isso porque,
em sua opinião, não havia evidência
histórica de que os seis milhões de
portugueses pudessem ser “engolidos”
por uma nação de quinze milhões. Ao
contrário, Ega demonstra acreditar que
uma derrota terrível, como se poderia
, bastaria para
suscitar o ressurgimento do espírito
português, que, em tais condições,
seria necessário “fazer esforço para
E em que bela situação nos
achávamos! Sem monarquia, sem
essa caterva de políticos, sem esse
tortulho da inscrição,
porque tudo
desaparecia, estávamos novos em
folha, limpos, escarolados, como se
nunca tivéssemos servido E
se uma história nova,
um outro Portugal, um Portugal sério
e inteligente, forte e decente,
estudando, pensando, fazendo
utrora... Meninos,
nada regenera uma nação como
uma medonha tareia... Oh! Deus de
nos o castelhano!
(QUEIRÓS, 1888, p. 66).
Se pensarmos a crítica anterior,
à passividade dos portugueses e à sua
dependência crônica das tendências
as, temos uma paradoxal
o que, para
mais, é o que precisamente
caracteriza o comportamento desse
heterodoxo personagem. Essa forma
paradoxal de pensar relacionada à
reflexão acerca da civilização
reaparece quando o Cohen descob
ou passa a fingir que não sabia
o Ega andara enamorado de sua
mulher, e o expulsa do seu baile, de
sua casa, prometendo corrê
pontapés” (QUEIRÓS, 1888, p. 107).
Curiosamente, é justamente o Ega,
que se via como “um homem de
estudo e de art
e”, enfim, como um
homem mis civilizado do que “um
burguês, um agiota”, quem vai pensar
em duelo, com ódio do marido
enciumado que agora lhe vedava a
amante:
E enquanto a deixar
uma bala, o! Tinha mais direito a
viver que o Cohen, que era um
burguês, e um agiota... E ele era um
homem de estudo e de arte! Tinha
na cabeça livros, ideias, coisas
grandes. Devia
civilização!... Se fosse ao campo, era
para fazer a sua pontaria, e abater o
Cohen, ali, como uma besta
imunda... (QUEIRÓS,
Cortejar fazia parte dos
costumes daquela sociedade
adultério elegante
, mas, digno de
espanto era que, ainda em nome da
honra, se recorresse a um ato que
remonta à barbárie humana: o duelo.
Porém, ainda existia a possibilidade
ext
rema de a honra, valor tão caro às
sociedades ditas civilizadas, acabar
sendo lavada com o sangue que sobe
102
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
reflexão acerca da civilização
reaparece quando o Cohen descob
re –
ou passa a fingir que não sabia
que
o Ega andara enamorado de sua
mulher, e o expulsa do seu baile, de
sua casa, prometendo corrê
-lo “a
pontapés” (QUEIRÓS, 1888, p. 107).
Curiosamente, é justamente o Ega,
que se via como “um homem de
e”, enfim, como um
homem mis civilizado do que “um
burguês, um agiota”, quem vai pensar
em duelo, com ódio do marido
enciumado que agora lhe vedava a
E enquanto a deixar
-se varar por
uma bala, o! Tinha mais direito a
viver que o Cohen, que era um
burguês, e um agiota... E ele era um
homem de estudo e de arte! Tinha
na cabeça livros, ideias, coisas
grandes. Devia
-se ao país, à
civilização!... Se fosse ao campo, era
para fazer a sua pontaria, e abater o
Cohen, ali, como uma besta
imunda... (QUEIRÓS,
1888, p. 109).
Cortejar fazia parte dos
costumes daquela sociedade
o
, mas, digno de
espanto era que, ainda em nome da
honra, se recorresse a um ato que
remonta à barbárie humana: o duelo.
Porém, ainda existia a possibilidade
rema de a honra, valor tão caro às
sociedades ditas civilizadas, acabar
sendo lavada com o sangue que sobe
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
aos olhos do marido traído. Como
sabemos, o próprio Cohen fizera
pouco caso do adultério, e, no dia
seguinte, o Ega não recebeu nenhum
emissário em s
eu nome, com o
desafio. O banqueiro, o agiota, se
mostrara muito mais civilizado do que
o próprio poeta, a não ser pelas
“bofetadas”, pelos “trambolhões”, pelos
golpes de “bengala” que ele teria dado
em Raquel
o “lírio de Israel” de Ega,
que, por essa “c
oça”, considerou o seu
marido um “cobarde” que “merecia
uma bala no coração” (QUEIRÓS,
1888, p. 113).
outros momentos no
romance em que o duelo enquanto
possibilidade radical de violência volta
a estar presente. O primeiro que
interessa aqui também est
relacionado ao adultério elegante, ou,
pelo menos num primeiro momento,
essa é a impressão que temos. Carlos
é surpreendido no Ramalhete pela
visita o anunciada de Castro
Gomes, personagem que a essa
cena todos acreditam ser o marido de
Maria Eduarda
, e que havia chegado
naquele mesmo dia do Rio de Janeiro:
Não era o correio. Era apenas um
bilhete que o Baptista trazia numa
salva: e vinha tão perturbado que
anunciou «um sujeito, ali fora, na
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
aos olhos do marido traído. Como
sabemos, o próprio Cohen fizera
pouco caso do adultério, e, no dia
seguinte, o Ega não recebeu nenhum
eu nome, com o
desafio. O banqueiro, o agiota, se
mostrara muito mais civilizado do que
o próprio poeta, a não ser pelas
“bofetadas”, pelos “trambolhões”, pelos
golpes de “bengala” que ele teria dado
o “lírio de Israel” de Ega,
oça”, considerou o seu
marido um “cobarde” que “merecia
uma bala no coração” (QUEIRÓS,
outros momentos no
romance em que o duelo enquanto
possibilidade radical de violência volta
a estar presente. O primeiro que
interessa aqui também est
á
relacionado ao adultério elegante, ou,
pelo menos num primeiro momento,
essa é a impressão que temos. Carlos
é surpreendido no Ramalhete pela
visita o anunciada de Castro
Gomes, personagem que a essa
cena todos acreditam ser o marido de
, e que havia chegado
naquele mesmo dia do Rio de Janeiro:
Não era o correio. Era apenas um
bilhete que o Baptista trazia numa
salva: e vinha tão perturbado que
anunciou «um sujeito, ali fora, na
antecâmara, numa carruagem, à
espera...».
Carlos olhou o bi
terrivelmente. E ficou a revirá
lento e como atordoado, entre os
dedos, que tremiam... Depois, em
silêncio, atirou-
o ao Ega para cima
da mesa.
Caramba
assombrado.
Era Castro Gomes!
Bruscamente Carlos erguera
decidido.
Manda entrar... Para o salão
grande!
Baptista apontou para o jaquetão de
flanela com que Carlos tinha
almoçado, e perguntou baixo se a
sua Excelência queria uma
sobrecasaca.
— Traz.
Sós, Ega e Carlos olharam
instante, ansiosamente.
Não é um desafio, está claro
balbuciou Ega.
Carlos não respondeu. Examinava
outra vez o bilhete: o homem
chamava-
se Joaquim Álvares de
Castro Gomes: por baixo tinha
escrito a lápis: «Hotel Bragança»...
Baptista voltara com a sobrecasaca:
e Carlos, abo
toando
sem outra mais palavra ao Ega, que
ficara de junto da mesa, limpando
estupidamente as mãos ao
guardanapo (QUEIRÓS, 1888, p.
190).
A possibilidade de um desafio é
descartada por Ega, mas o fato de
ter sido mencionada, fica cla
essa era, inicialmente, uma
preocupação. Porém, aos poucos, o
que parece é que, para Carlos,
conforme se desenvolve a cena, o
desafio vai perdendo o que quer que
pudesse ter de temível e ganhando
contornos de uma excelente
103
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)
antecâmara, numa carruagem, à
Carlos olhou o bi
lhete, empalideceu
terrivelmente. E ficou a revirá
-lo,
lento e como atordoado, entre os
dedos, que tremiam... Depois, em
o ao Ega para cima
murmurou Ega,
Era Castro Gomes!
Bruscamente Carlos erguera
-se,
Manda entrar... Para o salão
Baptista apontou para o jaquetão de
flanela com que Carlos tinha
almoçado, e perguntou baixo se a
sua Excelência queria uma
Sós, Ega e Carlos olharam
-se um
instante, ansiosamente.
Não é um desafio, está claro
Carlos não respondeu. Examinava
outra vez o bilhete: o homem
se Joaquim Álvares de
Castro Gomes: por baixo tinha
escrito a lápis: «Hotel Bragança»...
Baptista voltara com a sobrecasaca:
toando
-a devagar, saiu
sem outra mais palavra ao Ega, que
ficara de junto da mesa, limpando
estupidamente as mãos ao
guardanapo (QUEIRÓS, 1888, p.
A possibilidade de um desafio é
descartada por Ega, mas o fato de
ter sido mencionada, fica cla
ro que
essa era, inicialmente, uma
preocupação. Porém, aos poucos, o
que parece é que, para Carlos,
conforme se desenvolve a cena, o
desafio vai perdendo o que quer que
pudesse ter de temível e ganhando
contornos de uma excelente
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
oportunidade, sendo mesmo
como vingança
no que, aliás, se
aproxima de Ega, no caso anterior.
Porque, e a partir das informações que
ele tinha até então, o duelo, se
vencido, era a chance de Carlos sair,
por cima, da incômoda situação de
amante que julgava amar deveras,
que temia ter de voltar a dividir a
mulher amada, com o regresso
daquele que achava ser o marido.
Vejam que o trecho a seguir faz muito
bem essa transição:
Carlos, em frente numa cadeira, com
os punhos fortemente fechados
sobre os joelhos, conservava a
i
mobilidade de um mármore. E,
perante aquele modo afável, uma
ideia ia-
o atravessando, lacerante,
angustiosa, pondo-
lhe já nos olhos
largos, que não tirava de sobre o
outro, uma irreprimível chama de
cólera. Castro Gomes decerto não
sabia nada. Chegara, des
correra aos Olivais, dormira nos
Olivais! Era o marido, era novo,
tivera-
a nos braços
agora ali estava, tranquilo, de flor ao
peito, falando de Constable! O único
desejo de Carlos, naquele instante,
era que aquele homem o insultass
(QUEIRÓS, 1888, p. 190).
No final do trecho, não tendo
nada que o colocasse no direito
desafiar Castro Gomes, Carlos deseja
mesmo ser insultado, para alcançar
esse requisito. No fundo, tanto Ega
quanto Carlos não tinham a coragem
de reconhecer, sem o v
erniz do duelo,
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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oportunidade, sendo mesmo
almejado,
no que, aliás, se
aproxima de Ega, no caso anterior.
Porque, e a partir das informações que
ele tinha até então, o duelo, se
vencido, era a chance de Carlos sair,
por cima, da incômoda situação de
amante que julgava amar deveras,
e
que temia ter de voltar a dividir a
mulher amada, com o regresso
daquele que achava ser o marido.
Vejam que o trecho a seguir faz muito
Carlos, em frente numa cadeira, com
os punhos fortemente fechados
sobre os joelhos, conservava a
mobilidade de um mármore. E,
perante aquele modo afável, uma
o atravessando, lacerante,
lhe já nos olhos
largos, que não tirava de sobre o
outro, uma irreprimível chama de
cólera. Castro Gomes decerto não
sabia nada. Chegara, des
embarcara,
correra aos Olivais, dormira nos
Olivais! Era o marido, era novo,
a nos braços
a ela! E
agora ali estava, tranquilo, de flor ao
peito, falando de Constable! O único
desejo de Carlos, naquele instante,
era que aquele homem o insultass
e
(QUEIRÓS, 1888, p. 190).
No final do trecho, não tendo
nada que o colocasse no direito
desafiar Castro Gomes, Carlos deseja
mesmo ser insultado, para alcançar
esse requisito. No fundo, tanto Ega
quanto Carlos não tinham a coragem
erniz do duelo,
que, na verdade, o que desejavam era
assassinar aqueles dois homens
Cohen e Castro Gomes,
respectivamente. Sim, porque o duelo
não era outra coisa senão isto: um
resquício da barbárie humana pintado
com o verniz da civilização. Na
sequênc
ia, Castro Gomes a Carlos
a carta que recebera no Rio de
Janeiro, antes de partir de volta, na
qual um autor anônimo e também mal
informado lhe avisava de que Carlos e
aquela que todos achavam ser a sua
mulher estavam mantendo um
adultério elegante. Vej
reação de Carlos, que praticamente se
oferece para um duelo:
É tudo o que diz a carta; e eu
devo acrescentar, porque o sei, que
tudo quanto ela diz é
incontestavelmente exato... O Sr.
Carlos da Maia é pois, publicamente,
com conhecim
ento de toda a Lisboa,
o amante dessa senhora.
Carlos ergueu-
se, muito sereno. E
abrindo de leve os braços, numa
aceitação inteira de todas as
responsabilidades:
Não tenho então nada a dizer a
Vossa Excelência senão que estou
às suas ordens!...
Uma fug
itiva onda de sangue avivou
a palidez morena de Castro Gomes.
Dobrou a carta, guardou
o vagar na carteira. Depois, sorrindo
friamente:
Perdão... O Sr. Carlos da Maia
sabe, tão bem como eu, que, se isto
tivesse de ter uma solução violenta,
eu
não viria aqui pessoalmente, a
sua casa, ler-
lhe este papel... A coisa
é inteiramente outra.
Carlos recaíra na cadeira,
assombrado. E agora a lentidão
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)
que, na verdade, o que desejavam era
assassinar aqueles dois homens
Cohen e Castro Gomes,
respectivamente. Sim, porque o duelo
não era outra coisa senão isto: um
resquício da barbárie humana pintado
com o verniz da civilização. Na
ia, Castro Gomes a Carlos
a carta que recebera no Rio de
Janeiro, antes de partir de volta, na
qual um autor anônimo e também mal
informado lhe avisava de que Carlos e
aquela que todos achavam ser a sua
mulher estavam mantendo um
adultério elegante. Vej
amos o final, e a
reação de Carlos, que praticamente se
oferece para um duelo:
É tudo o que diz a carta; e eu
devo acrescentar, porque o sei, que
tudo quanto ela diz é
incontestavelmente exato... O Sr.
Carlos da Maia é pois, publicamente,
ento de toda a Lisboa,
o amante dessa senhora.
se, muito sereno. E
abrindo de leve os braços, numa
aceitação inteira de todas as
responsabilidades:
Não tenho então nada a dizer a
Vossa Excelência senão que estou
às suas ordens!...
itiva onda de sangue avivou
a palidez morena de Castro Gomes.
Dobrou a carta, guardou
-a com todo
o vagar na carteira. Depois, sorrindo
Perdão... O Sr. Carlos da Maia
sabe, tão bem como eu, que, se isto
tivesse de ter uma solução violenta,
não viria aqui pessoalmente, a
lhe este papel... A coisa
é inteiramente outra.
Carlos recaíra na cadeira,
assombrado. E agora a lentidão
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
adocicada daquela voz ia
tornando intolerável. Um confuso
terror do que viria desses lábios, que
sorriam com uma polidez
impertinente, quase fazia estalar o
seu pobre coração. E era um desejo
brutal de lhe gritar que acabasse,
que o matasse, ou que saísse
daquela sala, onde a sua presença
era uma inutilidade ou uma
torpeza!... (QUEIRÓS, 1888, p. 191).
Carlos não suportava ali, em
sua casa, a presença do homem a
quem julgava ter o direito legítimo de
possuir a mulher que ele amava. Se a
questão era essa, não havia porque
perder tempo, que fossem logo ao
campo: “Não tenho então nada a dizer
a Vossa Excelê
ncia senão que estou
às suas ordens!...”. Não era uma
decisão fácil de tomar, mas era
certamente a mais vantajosa naquele
momento, no jogo de pesos e
contrapesos da consciência. A
resposta de Castro Gomes confirma a
conclusão de Ega, aquilo “não é um
desaf
io, está claro”, e tem o status de
insígnias, porque deixa claro para
Carlos que ele compreendia bem
aquele jogo, as suas regras, que não
era um tolo: “O Sr. Carlos da Maia
sabe, tão bem como eu, que, se isto
tivesse de ter uma solução violenta, eu
não vir
ia aqui pessoalmente, a sua
casa, ler-
lhe este papel... A coisa é
inteiramente outra”. A coisa era
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
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adocicada daquela voz ia
-se-lhe
tornando intolerável. Um confuso
terror do que viria desses lábios, que
sorriam com uma polidez
impertinente, quase fazia estalar o
seu pobre coração. E era um desejo
brutal de lhe gritar que acabasse,
que o matasse, ou que saísse
daquela sala, onde a sua presença
era uma inutilidade ou uma
torpeza!... (QUEIRÓS, 1888, p. 191).
Carlos não suportava ali, em
sua casa, a presença do homem a
quem julgava ter o direito legítimo de
possuir a mulher que ele amava. Se a
questão era essa, não havia porque
perder tempo, que fossem logo ao
campo: “Não tenho então nada a dizer
ncia senão que estou
às suas ordens!...”. Não era uma
decisão fácil de tomar, mas era
certamente a mais vantajosa naquele
momento, no jogo de pesos e
contrapesos da consciência. A
resposta de Castro Gomes confirma a
conclusão de Ega, aquilo “não é um
io, está claro”, e tem o status de
insígnias, porque deixa claro para
Carlos que ele compreendia bem
aquele jogo, as suas regras, que não
era um tolo: “O Sr. Carlos da Maia
sabe, tão bem como eu, que, se isto
tivesse de ter uma solução violenta, eu
ia aqui pessoalmente, a sua
lhe este papel... A coisa é
inteiramente outra”. A coisa era
mesmo outra, e todos sabemos como
ela termina. Certamente, muito da
violência no tratamento que Carlos
dispensa a Maria Eduarda no final do
romance tem a ver
descobre sobre ela nesse dia, com a
violência que indesejada visita do
Castro Gomes representava para ele,
e com os cálculos pela sua
consciência moral para perdoá
Mas, o impacto dessa descoberta é
visível na forma como os fatos que ela
relacionados estão sempre retornando
aos pensamentos de Carlos, em
momentos posteriores, o que nos
mostra que aquele processo não
estava acabado, que ainda estava
aberto a reavaliações. No final, o
tratamento que Carlos à Maria
Eduarda é apenas um pouco
do que aquele que ele daria à Madame
Mac Gren. E, no fim das contas, tanto
“o cheque de duzentas libras, ao
portador” (QUEIRÓS, 1888, p. 195),
que ele levara na carteira, para os
Olivais, e que o enchera de vergonha
na noite daquele dia, quanto as
quinhentas libras e as notas que ele
mandara o Ega levar para Maria
Eduarda, depois da morte do avô, não
deixam de ser a mesma “afronta brutal
de homem rico” (QUEIRÓS, 1888, p.
105
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mesmo outra, e todos sabemos como
ela termina. Certamente, muito da
violência no tratamento que Carlos
dispensa a Maria Eduarda no final do
com o que ele
descobre sobre ela nesse dia, com a
violência que indesejada visita do
Castro Gomes representava para ele,
e com os cálculos pela sua
-la.
Mas, o impacto dessa descoberta é
visível na forma como os fatos que ela
relacionados estão sempre retornando
aos pensamentos de Carlos, em
momentos posteriores, o que nos
mostra que aquele processo não
estava acabado, que ainda estava
aberto a reavaliações. No final, o
tratamento que Carlos à Maria
Eduarda é apenas um pouco
melhor
do que aquele que ele daria à Madame
Mac Gren. E, no fim das contas, tanto
“o cheque de duzentas libras, ao
portador” (QUEIRÓS, 1888, p. 195),
que ele levara na carteira, para os
Olivais, e que o enchera de vergonha
na noite daquele dia, quanto as
quinhentas libras e as notas que ele
mandara o Ega levar para Maria
Eduarda, depois da morte do avô, não
deixam de ser a mesma “afronta brutal
de homem rico” (QUEIRÓS, 1888, p.
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
196), que sabe o preço justo a dar a
cada coisa: a acompanhante com
quem havia
dormido algumas noites,
ou a mulher a quem nunca de fato
entregara a vida, e que tinha direitos
sobre sua bolsa.
O outro desafio a que nos
referimos é aquele de Carlos ao
Dâmado, após o episódio da “Corneta
do Diabo”. Não vem ao caso
reproduzir o teor do
libelo que contava
as recentes “façanhas do Maia das
conquistas”, o “sô Maia” (QUEIRÓS,
1888, p. 212), mas nos interessa este
trecho da reação de Carlos após lê
Carlos ficou imóvel entre as acácias,
com o jornal na mão, no espanto
furioso e mudo de um
subitamente recebe na face uma
grossa chapada de lodo! Não era a
cólera de ver o seu amor assim
aviltado na publicidade chula de um
jornal sórdido: era o horror de sentir
aquelas frases em calão, pandilhas,
afadistadas, como Lisboa as pode
cri
ar, pingando fetidamente, à
maneira de sebo, sobre si, Maria,
sobre o esplendor da sua paixão...
Sentia-
se todo emporcalhado. E uma
única ideia surgia através da sua
confusão
matar o bruto que
escrevera aquilo.
Matá-
lo! Ega sustera a tiragem da
folha, E
ga pois conhecia o foliculário.
Nada importava que aqueles
números que tinha na mão fossem
os únicos impressos. Recebera lama
na face. Que a injúria fosse
espalhada nas praças numa profusa
publicidade ou lhe fosse atirada a
ele escondidamente num papel
único, era igual... Quem tanto ousara
tinha de cair, esmagado! (QUEIRÓS,
1888, p. 212).
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
196), que sabe o preço justo a dar a
cada coisa: a acompanhante com
dormido algumas noites,
ou a mulher a quem nunca de fato
entregara a vida, e que tinha direitos
O outro desafio a que nos
referimos é aquele de Carlos ao
Dâmado, após o episódio da “Corneta
do Diabo”. Não vem ao caso
libelo que contava
as recentes “façanhas do Maia das
conquistas”, o “sô Maia” (QUEIRÓS,
1888, p. 212), mas nos interessa este
trecho da reação de Carlos após lê
-lo:
Carlos ficou imóvel entre as acácias,
com o jornal na mão, no espanto
furioso e mudo de um
homem que
subitamente recebe na face uma
grossa chapada de lodo! Não era a
cólera de ver o seu amor assim
aviltado na publicidade chula de um
jornal sórdido: era o horror de sentir
aquelas frases em calão, pandilhas,
afadistadas, como Lisboa as pode
ar, pingando fetidamente, à
maneira de sebo, sobre si, Maria,
sobre o esplendor da sua paixão...
se todo emporcalhado. E uma
única ideia surgia através da sua
matar o bruto que
lo! Ega sustera a tiragem da
ga pois conhecia o foliculário.
Nada importava que aqueles
números que tinha na mão fossem
os únicos impressos. Recebera lama
na face. Que a injúria fosse
espalhada nas praças numa profusa
publicidade ou lhe fosse atirada a
ele escondidamente num papel
único, era igual... Quem tanto ousara
tinha de cair, esmagado! (QUEIRÓS,
O desejo de “matar o bruto que
escrevera aquilo”, de fazê
esmagado”, é proporcional às injúrias
sofridas, mas logo se dissipa por não
poder competir com a a
Carlos concentrava nos Olivais. Antes
da dissipação, no entanto, há a
descoberta do autor do libelo, graças à
larga bolsa de Carlos
ocasião, ironicamente, não tinha o
suficiente e tem de fazer um
empréstimo emergencial ao velho
Co
rtês, alfaiate de seu avô, pois, como
lhe diz o Ega: “No terreno do dinheiro
vence sempre quem tem mais
dinheiro” (QUEIRÓS, 1888, p. 215); e
o desafio ao descoberto autor do artigo
da “Corneta”, o Damaso, conforme a
coisa pedia, ou como era possível,
pois
quase que se não consegue um
outro mensageiro, sendo o Cruges
enviado meio que de improviso, com
um verniz que mal lhe cabia e que não
lhe deixa manter a gravidade
recomendada na postura. Dâmaso
nada sabia daqueles protocolos, mas
estranha, tal como o boi
abate, aquela gravidade toda das
sobrecasacas pretas, sobretudo a
solenidade do Ega ao falar
verdade é que não interessava a
Carlos desafio nenhum com o
106
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)
O desejo de “matar o bruto que
escrevera aquilo”, de fazê
-lo “cair,
esmagado”, é proporcional às injúrias
sofridas, mas logo se dissipa por não
poder competir com a a
tenção que
Carlos concentrava nos Olivais. Antes
da dissipação, no entanto, há a
descoberta do autor do libelo, graças à
larga bolsa de Carlos
que, naquela
ocasião, ironicamente, não tinha o
suficiente e tem de fazer um
empréstimo emergencial ao velho
rtês, alfaiate de seu avô, pois, como
lhe diz o Ega: “No terreno do dinheiro
vence sempre quem tem mais
dinheiro” (QUEIRÓS, 1888, p. 215); e
o desafio ao descoberto autor do artigo
da “Corneta”, o Damaso, conforme a
coisa pedia, ou como era possível,
quase que se não consegue um
outro mensageiro, sendo o Cruges
enviado meio que de improviso, com
um verniz que mal lhe cabia e que não
lhe deixa manter a gravidade
recomendada na postura. Dâmaso
nada sabia daqueles protocolos, mas
estranha, tal como o boi
que vai para o
abate, aquela gravidade toda das
sobrecasacas pretas, sobretudo a
solenidade do Ega ao falar
-lhe. A
verdade é que não interessava a
Carlos desafio nenhum com o
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
Dâmaso. O seu objetivo era que ele se
borrasse de medo e lhe escrevesse
qualquer
coisa com que se passasse
peante a sociedade como um infame.
Os emissários alcançam êxito e levam
consigo uma carta em que o Dâmaso,
que sai muito humilhado dessa
história, se declara um borracho
crônico.
O que ressalta nesse episódio
não é a questão d
a barbárie, mas a
da perversidade, de certa crueldade
dos envolvidos na armadilha em que
cai o Dâmaso (que também sabia ser
muito perverso e cruel, à sua maneira),
num desejo quase coletivo de
vingança
quase porque fica nítido
que o Cruges apenas adere à
campanha visando garantir um novo
contrato de aluguel para o primeiro
andar na Rua de São Francisco: “Ó
Carlos, olha que eu falei em casa.
Os quartos do primeiro andar estão
livres, e forrados de papel novo...”
(QUEIRÓS, 1888, p. 219). O duelo
entra em
cena apenas como embuste,
um blefe contra alguém que tinha
pavor de espadas, de floretes. O que
se queria era a carta que o tornaria um
infame, se fosse publicada. E mesmo
tendo dito a Carlos que não o faria, o
Ega a publica, tentado pelo desejo de
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Dâmaso. O seu objetivo era que ele se
borrasse de medo e lhe escrevesse
coisa com que se passasse
peante a sociedade como um infame.
Os emissários alcançam êxito e levam
consigo uma carta em que o Dâmaso,
que sai muito humilhado dessa
história, se declara um borracho
O que ressalta nesse episódio
a barbárie, mas a
da perversidade, de certa crueldade
dos envolvidos na armadilha em que
cai o Dâmaso (que também sabia ser
muito perverso e cruel, à sua maneira),
num desejo quase coletivo de
quase porque fica nítido
que o Cruges apenas adere à
campanha visando garantir um novo
contrato de aluguel para o primeiro
andar na Rua de São Francisco: “Ó
Carlos, olha que eu falei em casa.
Os quartos do primeiro andar estão
livres, e forrados de papel novo...”
(QUEIRÓS, 1888, p. 219). O duelo
cena apenas como embuste,
um blefe contra alguém que tinha
pavor de espadas, de floretes. O que
se queria era a carta que o tornaria um
infame, se fosse publicada. E mesmo
tendo dito a Carlos que não o faria, o
Ega a publica, tentado pelo desejo de
vingan
ça, visto que supunha ser o
Dâmaso o novo amante de Raquel.
Na
Genealogia da moral
ao falar de “submissão ao
Nietzsche comenta que não foi senão
com “objeção da consciência” que “as
estirpes nobres de toda parte
renunciaram à
vendetta
curvaram-
se ao direito!” (NIETZSCHE,
1888, p. 103). Como estamos vendo, o
mal-
estar gerado por essa submissão
pode ser carga explosiva capaz de
arrombar as barreiras dessa
resistência à
vendetta
outro passo de sua obra fundamental,
Nietzsc
he, preparando o terreno para
Freud, nos ajudava a entender como
ainda era perfeitamente possível ao
homem obter prazer na crueldade, de
uma forma mais sutil:
Talvez possamos admitir a
possibilidade de que o prazer na
crueldade não esteja realmente
extinto
: apenas necessitaria, pelo
fato de agora doer mais a dor, de
alguma sublimação e sutilização, isto
é, deveria aparecer transposto para
o plano imaginativo e psíquico, e
ornado de nomes tão inofensivos
que não despertassem suspeita nem
mesmo na mais delica
consciência (NIETSZCHE, 1998, p.
57).
não é novidade nenhuma
hoje, século XXI, que, sob “nomes tão
inofensivos” como civilização e
civilidade, o homem tenha conseguido
107
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ça, visto que supunha ser o
Dâmaso o novo amante de Raquel.
Genealogia da moral
,
ao falar de “submissão ao
direito”,
Nietzsche comenta que não foi senão
com “objeção da consciência” que “as
estirpes nobres de toda parte
vendetta
[vingança] e
se ao direito!” (NIETZSCHE,
1888, p. 103). Como estamos vendo, o
estar gerado por essa submissão
pode ser carga explosiva capaz de
arrombar as barreiras dessa
vendetta
... Porém, em
outro passo de sua obra fundamental,
he, preparando o terreno para
Freud, nos ajudava a entender como
ainda era perfeitamente possível ao
homem obter prazer na crueldade, de
Talvez possamos admitir a
possibilidade de que o prazer na
crueldade não esteja realmente
: apenas necessitaria, pelo
fato de agora doer mais a dor, de
alguma sublimação e sutilização, isto
é, deveria aparecer transposto para
o plano imaginativo e psíquico, e
ornado de nomes tão inofensivos
que não despertassem suspeita nem
mesmo na mais delica
da e hipócrita
consciência (NIETSZCHE, 1998, p.
não é novidade nenhuma
hoje, século XXI, que, sob “nomes tão
inofensivos” como civilização e
civilidade, o homem tenha conseguido
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
embora sem despertar “suspeita”
apenas nas consciências mais
hipócritas
transpor toda a sua
“crueldade” “para o plano imaginativo e
psíquico”
o que, tampouco, mudou
em alguma coisa o “fato de agora doer
mais a dor”. A solenidade e o
distanciamento despersonalizados que
caracterizam o tratamento dispensado
por Ega ao D
amaso, por ocasião do
desafio de Carlos, é um bom exemplo
de que é perfeitamente possível ser
cruel e, ao mesmo tempo, agir com
civilidade, como, aliás, também fizera
o Castro Gomes com Carlos, e o
Cohen com o próprio Ega, quando, no
gozo pleno dos seus di
expulsara de sua casa, com ameaças
de pontapés, mas sobretudo depois,
quando com ele cruzara na Rua do
Ouro e “lhe atirara de lado um olhar
atrevido, sacudindo a bengala”, o que
levou o Ega a jurar “que se «esse
canalha» ousasse outra vez fitá
espedaçava-
o, sem piedade,
publicamente, a uma esquina da
Baixa” (QUEIRÓS, 1888, p. 167). A
bengala não é e nunca foi um objeto
ameaçador, mas vemos incontáveis
vezes, nesse romance, o seu uso de
forma intimidadora. Se, no final do
século XIX, a bengal
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
embora sem despertar “suspeita”
apenas nas consciências mais
transpor toda a sua
“crueldade” “para o plano imaginativo e
o que, tampouco, mudou
em alguma coisa o “fato de agora doer
mais a dor”. A solenidade e o
distanciamento despersonalizados que
caracterizam o tratamento dispensado
amaso, por ocasião do
desafio de Carlos, é um bom exemplo
de que é perfeitamente possível ser
cruel e, ao mesmo tempo, agir com
civilidade, como, aliás, também fizera
o Castro Gomes com Carlos, e o
Cohen com o próprio Ega, quando, no
gozo pleno dos seus di
reitos, lhe
expulsara de sua casa, com ameaças
de pontapés, mas sobretudo depois,
quando com ele cruzara na Rua do
Ouro e “lhe atirara de lado um olhar
atrevido, sacudindo a bengala”, o que
levou o Ega a jurar “que se «esse
canalha» ousasse outra vez fitá
-lo,
o, sem piedade,
publicamente, a uma esquina da
Baixa” (QUEIRÓS, 1888, p. 167). A
bengala não é e nunca foi um objeto
ameaçador, mas vemos incontáveis
vezes, nesse romance, o seu uso de
forma intimidadora. Se, no final do
século XIX, a bengal
a estava
substituindo o florete como objeto de
violência, isso era mais uma evidência
de que o lugar dessa violência era
cada vez mais o “plano imaginativo e
psíquico”, como constatou Nietzsche.
Como se sabe, não deu em nada a
publicação da carta do Dâmaso
depois se esquecia dele, por conta
de questões mais sérias, como a crise
política:
E o derradeiro, esvaído eco da carta
do Dâmaso foi, na véspera do sarau
da Trindade, um parágrafo da própria
Tarde onde ela fora publicada,
nestas amáveis palavras:
«O nosso amigo e distinto sportman,
Dâmaso Salcede, parte brevemente
para uma viagem de re
Desejamos ao elegante touriste
todas as prosperidades, na sua bela
excursão ao país do canto e das
artes.» (QUEIRÓS, 1888, p. 232).
O mais importante nesse
episódio da “Corneta do Diabo”
parece-
nos o retorno de Madame Mac
Gren aos process
Carlos. Mesmo o Dâmaso tivera
condições de apresentar as suas
alegações aos emissários, as suas
desculpas. A própria declaração feita
na carta é ela mesma uma grande
desculpa. Foi o que pensou Dom
Afonso:
a opinião do velho foi que, se
o Dâm
aso estava embriagado (e de
outro modo como teria injuriado
Carlos, seu antigo amigo?), a sua
108
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
substituindo o florete como objeto de
violência, isso era mais uma evidência
de que o lugar dessa violência era
cada vez mais o “plano imaginativo e
psíquico”, como constatou Nietzsche.
Como se sabe, não deu em nada a
publicação da carta do Dâmaso
, e dias
depois se esquecia dele, por conta
de questões mais sérias, como a crise
E o derradeiro, esvaído eco da carta
do Dâmaso foi, na véspera do sarau
da Trindade, um parágrafo da própria
Tarde onde ela fora publicada,
nestas amáveis palavras:
«O nosso amigo e distinto sportman,
Dâmaso Salcede, parte brevemente
para uma viagem de re
creio a Itália.
Desejamos ao elegante touriste
todas as prosperidades, na sua bela
excursão ao país do canto e das
artes.» (QUEIRÓS, 1888, p. 232).
O mais importante nesse
episódio da “Corneta do Diabo”
nos o retorno de Madame Mac
os mentais de
Carlos. Mesmo o Dâmaso tivera
condições de apresentar as suas
alegações aos emissários, as suas
desculpas. A própria declaração feita
na carta é ela mesma uma grande
desculpa. Foi o que pensou Dom
a opinião do velho foi que, se
aso estava embriagado (e de
outro modo como teria injuriado
Carlos, seu antigo amigo?), a sua
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
declaração revelava extrema lealdade
e um amor quase heroico da verdade!”
(QUEIRÓS, 1888, p. 232). Somente
Maria Eduarda ou Madame Mac Gren
é que não tem direito
ao contraditório
nos julgamentos da consciência moral
de Carlos, na qual, além de também
ser um dos réus, ele é, ao mesmo
tempo, juiz e acusador, como vemos
neste trecho:
E, no meio desta alta cólera de
moralista, uma dor perpassava,
precisa e dilacerante.
sociedade de Lisboa fazia um
monturo sórdido neste canto do
mundo
mas, em suma, havia no
artigo da Corneta uma calúnia? Não.
Era o passado de Maria, que ela
arrancara de si como um vestido roto
e sujo, que ele mesmo enterrara
muito fundo, deitando-
seu amor e o seu nome
alguém desenterrava para o mostrar
bem alto ao sol, com as suas
manchas e os seus rasgões... E isto
agora ameaçava para sempre a sua
vida, como um terror sobre ela
suspenso. Debalde ele perdoara,
debalde
ele esquecera. O mundo em
redor sabia. E a todo o tempo, o
interesse ou a perversidade
poderiam refazer o artigo da Corneta
(QUEIRÓS, 1888, p. 212).
É, de fato, essa dor “precisa e
dilacerante” o que melhor define o
nosso mal-
estar ancestral, como nos
en
sinara Freud. Carlos diz para si
mesmo que “enterrara muito fundo” o
passado de Maria Eduarda, que
deitara por cima dele o seu amor e o
seu nome. O final do romance mostra
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
declaração revelava extrema lealdade
e um amor quase heroico da verdade!”
(QUEIRÓS, 1888, p. 232). Somente
Maria Eduarda ou Madame Mac Gren
ao contraditório
nos julgamentos da consciência moral
de Carlos, na qual, além de também
ser um dos réus, ele é, ao mesmo
tempo, juiz e acusador, como vemos
E, no meio desta alta cólera de
moralista, uma dor perpassava,
Sim, toda a
sociedade de Lisboa fazia um
monturo sórdido neste canto do
mas, em suma, havia no
artigo da Corneta uma calúnia? Não.
Era o passado de Maria, que ela
arrancara de si como um vestido roto
e sujo, que ele mesmo enterrara
lhe por cima o
seu amor e o seu nome
— e que
alguém desenterrava para o mostrar
bem alto ao sol, com as suas
manchas e os seus rasgões... E isto
agora ameaçava para sempre a sua
vida, como um terror sobre ela
suspenso. Debalde ele perdoara,
ele esquecera. O mundo em
redor sabia. E a todo o tempo, o
interesse ou a perversidade
poderiam refazer o artigo da Corneta
(QUEIRÓS, 1888, p. 212).
É, de fato, essa dor “precisa e
dilacerante” o que melhor define o
estar ancestral, como nos
sinara Freud. Carlos diz para si
mesmo que “enterrara muito fundo” o
passado de Maria Eduarda, que
deitara por cima dele o seu amor e o
seu nome. O final do romance mostra
-
lhe que o nome fora antes dela do que
dele, e que o seu amor, que estava à
superfíci
e, não foi capaz de resistir a
ventos mais fortes, antes mesmo do
turbilhão iniciado com a descoberta do
incesto. O que permanece e sempre
retorna é justamente o que foi
enterrado bem fundo, o seu anseio de
morte, determinado a destruir aquilo
que “agora a
meaçava para sempre a
sua vida, como um terror sobre ela
suspenso”. Isso significa que, o perdão
e o esquecimento não são tão estáveis
como ele pensa. O processo está
sempre aberto, sempre sendo
reavaliado, tanto na relação do sujeito
consigo mesmo, quanto
relação com “o mundo em redor”. E a
perversidade, a crueldade, vem tanto
de um lado, quanto de outro, vai tanto
para um lado, como para o outro, do
que resulta mal-
estar, violência e
outras palinódias da consciência
moral...
Em
Os realistas: retra
romancistas
, Charles Percy Snow
afirma que “é interessante, e às vezes
importante, observar a freqüência com
que o pensamento cognitivo e a
sabedoria intuitiva convergiram,
antecipando descobertas posteriores
realizadas por meio de processos ma
109
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lhe que o nome fora antes dela do que
dele, e que o seu amor, que estava à
e, não foi capaz de resistir a
ventos mais fortes, antes mesmo do
turbilhão iniciado com a descoberta do
incesto. O que permanece e sempre
retorna é justamente o que foi
enterrado bem fundo, o seu anseio de
morte, determinado a destruir aquilo
meaçava para sempre a
sua vida, como um terror sobre ela
suspenso”. Isso significa que, o perdão
e o esquecimento não são tão estáveis
como ele pensa. O processo está
sempre aberto, sempre sendo
reavaliado, tanto na relação do sujeito
consigo mesmo, quanto
na sua
relação com “o mundo em redor”. E a
perversidade, a crueldade, vem tanto
de um lado, quanto de outro, vai tanto
para um lado, como para o outro, do
estar, violência e
outras palinódias da consciência
Os realistas: retra
tos de oito
, Charles Percy Snow
afirma que “é interessante, e às vezes
importante, observar a freqüência com
que o pensamento cognitivo e a
sabedoria intuitiva convergiram,
antecipando descobertas posteriores
realizadas por meio de processos ma
is
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
estritamente racionais” (SNOW, 1988,
p. ix). Retomando a argumentação
desenvolvida por Alves em um artigo
de 2009, entendemos que “não é
exagero afirmar que Eça”, “do alto de
sua posição de grande artista”, tenha
“percebido o grande drama do homem
diant
e do desejo e os problemas
resultantes [de sua] posição [...] em
relação a essa força”, lançando por
terra, “mesmo antes da criação da
Psicanálise por Sigmund Freud”,
aquele que foi o “núcleo fundamental
do Realismo-
Naturalismo e do
Positivismo em geral” (
ALVES, 2009,
p. 21-
22): “o mito da razão soberana
com sede na consciência”, como nos
ensina Sérgio Nazar David, em
século de Silvestre da Silva: Estudos
queirosianos:
De fato, a literatura realista
naturalista vai deslocar o foco de
interesse àquilo que
até então muitas
vezes se fingia ignorar: cobrindo
entretanto, com o manto da
indignidade. Retira-
se o véu com o
qual se quis ocultar determinada
parcela da vida. E qual não foi o
nosso espanto ao vermos que
mesmo assim permanece o enigma?
É isto que a
escrita do naturalismo
não suportou, não sustentou até o
fim. É interessante que o homem não
seja mais visto como bom pela
própria natureza. Por se acreditar
destinado à verdade, o escritor
naturalista talvez se sinta no dever
de reconhecer a força do dese
sexual; mas consegue fazê
apontando-
lhe “degenerescência”.
Parecem dizer a todo tempo: algo
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
estritamente racionais” (SNOW, 1988,
p. ix). Retomando a argumentação
desenvolvida por Alves em um artigo
de 2009, entendemos que “não é
exagero afirmar que Eça”, “do alto de
sua posição de grande artista”, tenha
“percebido o grande drama do homem
e do desejo e os problemas
resultantes [de sua] posição [...] em
relação a essa força”, lançando por
terra, “mesmo antes da criação da
Psicanálise por Sigmund Freud”,
aquele que foi o “núcleo fundamental
Naturalismo e do
ALVES, 2009,
22): “o mito da razão soberana
com sede na consciência”, como nos
ensina Sérgio Nazar David, em
O
século de Silvestre da Silva: Estudos
De fato, a literatura realista
-
naturalista vai deslocar o foco de
até então muitas
vezes se fingia ignorar: cobrindo
-o,
entretanto, com o manto da
se o véu com o
qual se quis ocultar determinada
parcela da vida. E qual não foi o
nosso espanto ao vermos que
mesmo assim permanece o enigma?
escrita do naturalismo
não suportou, não sustentou até o
fim. É interessante que o homem não
seja mais visto como bom pela
própria natureza. Por se acreditar
destinado à verdade, o escritor
naturalista talvez se sinta no dever
de reconhecer a força do dese
jo
sexual; mas consegue fazê
-lo
lhe “degenerescência”.
Parecem dizer a todo tempo: algo
no humano que repugna. É preciso
combate-
lo, é preciso armar a
consciência, é preciso educar.
Homens e mulheres desarmados
serão presas fáceis (DAVID, 2
28).
O que queremos dizer, em tom
de conclusão, é que o ceticismo de
Eça
3
lhe permite estar atento a tudo o
que o conhecimento científico lhe
poderia proporcionar no fim do século,
sem, no entanto, abrir mão de outros
saberes concorrentes. É assim que, no
romance Os Maias
, ele consegue ir
mais além do que até então haviam
ido o
s naturalistas de seu tempo, pois
nos mostra que mesmo a
“Consciência” não é confiável, que a
“Razão” é limitada e traiçoeira, e que o
desejo, apesar de todo o recalque
sofrido, sempre retorna, de um jeito ou
de outro. O ceticismo de Eça é mesmo
capaz de torná-
lo imune à tentação de
fechar a obra com qualquer
mensagem pedagógica, como faziam
3
Ver, para isso, o que afirma Alves sobre o
“ceticismo queirosiano” (GARMES, 2003) no
artigo “A insustentável leveza das flores”
(2018), bem como no Projeto de Pesquisa
“11130 –
O ceticismo na ficção queirosiana
(2017). Nesses dois trabalhos, aprofundando a
reflexão de Helder Garmes, Alves busca
demonstrar como o ceticismo é uma marca
que percorre toda a obra de Eça
em coerência com a tese de Orlando
Grossegesse de que “não há regresso na
evolução q
ueirosiana” (GROSSEGESSE,
2006/07, p. 11).
110
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
no humano que repugna. É preciso
lo, é preciso armar a
consciência, é preciso educar.
Homens e mulheres desarmados
serão presas fáceis (DAVID, 2
007, p.
O que queremos dizer, em tom
de conclusão, é que o ceticismo de
lhe permite estar atento a tudo o
que o conhecimento científico lhe
poderia proporcionar no fim do século,
sem, no entanto, abrir mão de outros
saberes concorrentes. É assim que, no
, ele consegue ir
mais além do que até então haviam
s naturalistas de seu tempo, pois
nos mostra que mesmo a
“Consciência” não é confiável, que a
“Razão” é limitada e traiçoeira, e que o
desejo, apesar de todo o recalque
sofrido, sempre retorna, de um jeito ou
de outro. O ceticismo de Eça é mesmo
lo imune à tentação de
fechar a obra com qualquer
mensagem pedagógica, como faziam
Ver, para isso, o que afirma Alves sobre o
“ceticismo queirosiano” (GARMES, 2003) no
artigo “A insustentável leveza das flores”
(2018), bem como no Projeto de Pesquisa
O ceticismo na ficção queirosiana
(2017). Nesses dois trabalhos, aprofundando a
reflexão de Helder Garmes, Alves busca
demonstrar como o ceticismo é uma marca
que percorre toda a obra de Eça
– o que está
em coerência com a tese de Orlando
Grossegesse de que “não há regresso na
ueirosiana” (GROSSEGESSE,
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
alguns naturalistas. Eça, ou o seu
“autor implícito” (BOOTH, 1980, p. 91)
parece querer dizer ao leitor, nesse
romance
sobretudo quando
neutraliza as teses nele enunc
forma mais evidente com outras visões
que buscam certa “isostenia”
(VERDAN, 1998, p. 38), ou equilíbrio
, que ao homem é vedado o acesso a
qualquer verdade absoluta, o que
torna todos os seus juízos sujeitos ao
erro. Sendo assim, é preciso manter
se sempre em estado de suspeita
contra si mesmo, sobretudo contra o
próprio senso de justiça.
Eça de Queirós, em sua obra
prima, expressa um pensamento e
uma inteligência à altura dos dois
maiores teóricos da cultura do século
XIX: Nietzsche e Freud
nunca tenha dado evidências
concretas de ter conhecido o
pensamento nietzschiano ou
freudiano, e apesar de este último
ter despontado como o pensador que
hoje conhecemos no mesmo ano da
morte de Eça. No entanto, segundo
Ulrich Weinsstein, tal co
nsonância é
possível porque “tendências
comuns significativas” que
“frequentemente constituem
espantosos laços de unidade”, como
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
-estar,
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Americana de Estudos em
, out. 2019 a mar
ço 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
alguns naturalistas. Eça, ou o seu
“autor implícito” (BOOTH, 1980, p. 91)
parece querer dizer ao leitor, nesse
sobretudo quando
neutraliza as teses nele enunc
iadas de
forma mais evidente com outras visões
que buscam certa “isostenia”
(VERDAN, 1998, p. 38), ou equilíbrio
, que ao homem é vedado o acesso a
qualquer verdade absoluta, o que
torna todos os seus juízos sujeitos ao
erro. Sendo assim, é preciso manter
-
se sempre em estado de suspeita
contra si mesmo, sobretudo contra o
Eça de Queirós, em sua obra
-
prima, expressa um pensamento e
uma inteligência à altura dos dois
maiores teóricos da cultura do século
ainda que
nunca tenha dado evidências
concretas de ter conhecido o
pensamento nietzschiano ou
freudiano, e apesar de este último
ter despontado como o pensador que
hoje conhecemos no mesmo ano da
morte de Eça. No entanto, segundo
nsonância é
possível porque “tendências
comuns significativas” que
“frequentemente constituem
espantosos laços de unidade”, como
“elementos comuns de uma tradição,
consciente ou inconscientemente
mantidos em pensamento, emoção e
imaginação” (WEISSTEIN,
312).
Com base no pressuposto
enunciado acima, buscamos estudar o
romance Os Maias
Eça de Queirós
comparatismo como metodologia
principal, especialmente a sua vertente
fundada no diálogo da literatura com
outros campos
do saber, sobretudo no
“estudo da literatura em suas
intersecções com a filosofia”
aqui é utilizada “como paradigma
teórico”. Sem se subestimar “as
possibilidades oferecidas ao
pensamento filosófico pela literatura”
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6),
“conjugando filosofia e literatura de tal
modo que conteúdo filosófico e forma
literária tornam-
se indissociáveis”
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6
pois “a ficcionalidade da teoria e a
força teórica da ficção criam uma
porosidade entre os campos da
li
teratura e da filosofia”
em termos gerais, “a subversão das
fronteiras tradicionalmente
estabelecidas entre conteúdo filosófico
e conteúdo literário”, bem como o
111
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
“elementos comuns de uma tradição,
consciente ou inconscientemente
mantidos em pensamento, emoção e
imaginação” (WEISSTEIN,
1994, p.
Com base no pressuposto
enunciado acima, buscamos estudar o
a obra-prima de
tendo o
comparatismo como metodologia
principal, especialmente a sua vertente
fundada no diálogo da literatura com
do saber, sobretudo no
“estudo da literatura em suas
intersecções com a filosofia”
que
aqui é utilizada “como paradigma
teórico”. Sem se subestimar “as
possibilidades oferecidas ao
pensamento filosófico pela literatura”
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6),
e
“conjugando filosofia e literatura de tal
modo que conteúdo filosófico e forma
se indissociáveis”
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 6
-7)
pois “a ficcionalidade da teoria e a
força teórica da ficção criam uma
porosidade entre os campos da
teratura e da filosofia”
–, buscamos,
em termos gerais, “a subversão das
fronteiras tradicionalmente
estabelecidas entre conteúdo filosófico
e conteúdo literário”, bem como o
ALVES, Silvio Cesar dos Santos; CAPELARI, Alan Diogo. Mal
violência e outras palinódias da consciência n'Os maias, de Eça de
Queirós. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 89-112
, out. 2019 a mar
“escrutínio das múltiplas articulações
entre literatura e filosofia, em virtude
d
o caráter polimorfo de seus signos”
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 7).
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Departamento de Letras Vernáculas e
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proposta de evolução estética na obra
de Eça de Queirós. CAD
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
“escrutínio das múltiplas articulações
entre literatura e filosofia, em virtude
o caráter polimorfo de seus signos”
(ALVES; CEI; DIOGO; 2018, p. 7).
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da obra de Eça de Queirós. In: 14º
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s.). Literatura
Textos fundadore
s. Rio
de Janeiro: Rocco, 1994, p. 308
-333.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
O
s crimes de verdade: as memórias de Camilo
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40229
Resumo:
O presente artigo observa de que modo,
criminosos verídicos, como
Maria, não me mates que sou tua mãe
Cárcere
(1862), Camilo Castelo Branco comprova que boa parte da violência é cometida justamente
por aqueles que deveriam prot
habitado por pobres. A partir de um relato minucioso e, por vezes, lírico, Camilo comenta como era o
cotidiano no interior daquele que era o maior instrumento de repressão oitocentista. Um desses
prisioneiros, José do Telhado, graças a pena camiliana, ganha fama e notoriedade despertando o
interesse de muitos leitores e de outros autores.
Palavras-chave: Crime;
Camilo Castelo Branco
Crímenes de verdad: las memorias de Camilo
Resumen:
El presente artículo analiza
sobre verdaderos
delincuentes, como el
(1848), en
Memórias do Cárcere
violencia se comete con
justicia. por aquellos que debían proteger a los
era un mundo esencialmente habitado por los pobres. Desde un relato minucioso y a veces lírico,
Camilo comenta sobre cuál era la vida cotidi
del siglo XIX. Uno de estos
prisioneros, José do Telhado, gracias a la pena de Camillio, gana fama y
notoriedad despertando el
interés de muchos
Palabras clave: Crimen;
Camilo Castelo Branco
Crimes of truth: Camilo's memories
Abstract:
The present article observes how, using the knowledge
criminals, such as the
Maria, não me mates que sou
Camilo Castelo Branco proves that
protect the citizens and that the jail was a world essentially
and sometimes lyrical
account, Camilo co
greatest
instrument of nineteenth
to the Camillian feather, gains
fame and notoriety
authors.
Keywords: Crime;
Camilo Castelo Branco
1
Andreia Alves Monteiro de Castro. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade
do Rio de Janeiro/UERJ
, profess
http://orcid.org/0000-0002-2586-
6789
Texto recebido em 26/12/201
9 e aceito para publicação em 09
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
s crimes de verdade: as memórias de Camilo
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40229
Andreia Alves Monteiro de Castro
O presente artigo observa de que modo,
usando o conhecimento adquirido em obras sobre
Maria, não me mates que sou tua mãe
(1848
)
(1862), Camilo Castelo Branco comprova que boa parte da violência é cometida justamente
por aqueles que deveriam prot
eger os cidadãos e que a cadeia era um mundo essencialmente
habitado por pobres. A partir de um relato minucioso e, por vezes, lírico, Camilo comenta como era o
cotidiano no interior daquele que era o maior instrumento de repressão oitocentista. Um desses
prisioneiros, José do Telhado, graças a pena camiliana, ganha fama e notoriedade despertando o
interesse de muitos leitores e de outros autores.
Camilo Castelo Branco
; cárcere.
Crímenes de verdad: las memorias de Camilo
El presente artículo analiza
cómo, utilizando los
delincuentes, como el
folleto de cordel
Maria, não me mates que sou tua e
Memórias do Cárcere
(1863), Camilo Castelo Branco demuestra que g
justicia. por aquellos que debían proteger a los
ciudadanos y que la
era un mundo esencialmente habitado por los pobres. Desde un relato minucioso y a veces lírico,
Camilo comenta sobre cuál era la vida cotidi
ana dentro de cuál era el
mayor instrumento de represión
prisioneros, José do Telhado, gracias a la pena de Camillio, gana fama y
interés de muchos
lectores y otros autores.
Camilo Castelo Branco
; cárcel.
Crimes of truth: Camilo's memories
The present article observes how, using the knowledge
acquired in works
Maria, não me mates que sou
tua mãe (1848), in
Memórias do
Camilo Castelo Branco proves that
much of the violence is committed
precisely by those
protect the citizens and that the jail was a world essentially
inhabited by the poor. From a thorough
account, Camilo co
mments on what was the everyday
life
instrument of nineteenth
-century repression. One of these
prisoners, José do Telhado, thanks
fame and notoriety
arousing the interest of many
Camilo Castelo Branco
; prison.
Andreia Alves Monteiro de Castro. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade
, profess
ora da UERJ, Brasil. E-
mail: andreiaacastro@gmail.com
6789
9 e aceito para publicação em 09
/01/2020.
113
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Andreia Alves Monteiro de Castro
1
usando o conhecimento adquirido em obras sobre
)
, em Memórias do
(1862), Camilo Castelo Branco comprova que boa parte da violência é cometida justamente
eger os cidadãos e que a cadeia era um mundo essencialmente
habitado por pobres. A partir de um relato minucioso e, por vezes, lírico, Camilo comenta como era o
cotidiano no interior daquele que era o maior instrumento de repressão oitocentista. Um desses
prisioneiros, José do Telhado, graças a pena camiliana, ganha fama e notoriedade despertando o
conocimientos adquiridos en
trabajos
Maria, não me mates que sou tua e
(1863), Camilo Castelo Branco demuestra que g
ran parte de la
ciudadanos y que la
cárcel
era un mundo esencialmente habitado por los pobres. Desde un relato minucioso y a veces lírico,
mayor instrumento de represión
prisioneros, José do Telhado, gracias a la pena de Camillio, gana fama y
acquired in works
about veritable
Memórias do
Cárcere (1863),
precisely by those
who should
inhabited by the poor. From a thorough
life
within what was the
prisoners, José do Telhado, thanks
arousing the interest of many
readers and other
Andreia Alves Monteiro de Castro. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade
do Estado
mail: andreiaacastro@gmail.com
-
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
Os crimes de verdade: as memórias de Camilo
Cada época, cada sensibilidade,
cada realidade social desenvolve suas
próprias percepções do que classifica
como violência e/ou crime e de como
combater a criminalidade. Durante o
século XIX, a elite burguesa
po
rtuguesa, ilustrada e urbana,
empregava todos os esforços
possíveis para fazer com que, pelo
menos nas suas duas principais
cidades, Lisboa e Porto, fossem
cumpridas à risca as suas severas
regras de conduta, indispensáveis ao
novo modo de vida que se afir
uma rotina ainda profundamente
regida pela moral religiosa, mas que
rapidamente se rendia à produção e à
acumulação de bens.
Nesse momento histórico, os
comportamentos e as formas de
sociabilidade associados às camadas
mais baixas da sociedade,
incom
patíveis com o ideal de
civilização burguês, foram duramente
reprimidos. A pobreza foi, então,
criminalizada, marginalizada,
deslocada e circunscrita às periferias
dos centros urbanos. Em uma época
de enormes transformações sociais,
incertezas políticas, c
rises econômicas
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Os crimes de verdade: as memórias de Camilo
Cada época, cada sensibilidade,
cada realidade social desenvolve suas
próprias percepções do que classifica
como violência e/ou crime e de como
combater a criminalidade. Durante o
século XIX, a elite burguesa
rtuguesa, ilustrada e urbana,
empregava todos os esforços
possíveis para fazer com que, pelo
menos nas suas duas principais
cidades, Lisboa e Porto, fossem
cumpridas à risca as suas severas
regras de conduta, indispensáveis ao
novo modo de vida que se afir
mava,
uma rotina ainda profundamente
regida pela moral religiosa, mas que
rapidamente se rendia à produção e à
Nesse momento histórico, os
comportamentos e as formas de
sociabilidade associados às camadas
mais baixas da sociedade,
patíveis com o ideal de
civilização burguês, foram duramente
reprimidos. A pobreza foi, então,
criminalizada, marginalizada,
deslocada e circunscrita às periferias
dos centros urbanos. Em uma época
de enormes transformações sociais,
rises econômicas
e de desigualdades abissais, o
policiamento ostensivo e truculento era
a principal ferramenta do Estado para
proteger a propriedade, conter e
debelar revoltas populares.
Antigos mecanismos de
repressão foram aperfeiçoados e
outros tantos c
riados para garantir a
segurança pública. O complexo
aparelhamento policial, jurídico e
científico, na prática, agia de maneira
mais humanizada, evitando os atrozes
espetáculos públicos da pena de
morte, as torturas e outros castigos
sangrentos, mas com um
objetivo: controlar e afastar as “classes
perigosas”.
Identificar, enquadrar, tratar,
ocultar e até eliminar os delinquentes,
sem considerar as causas sociais e
econômicas dos seus delitos, eram as
práticas mais usuais de combate ao
crime e à desor
dem. Neste ambiente,
a figura do criminoso se delineou e
ganhou grande destaque, e o crime se
tornou motivo de constante
preocupação e de infinita curiosidade,
alcançando um inusitado protagonismo
na imprensa, na literatura e nos
estudos científicos, conse
114
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
e de desigualdades abissais, o
policiamento ostensivo e truculento era
a principal ferramenta do Estado para
proteger a propriedade, conter e
debelar revoltas populares.
Antigos mecanismos de
repressão foram aperfeiçoados e
riados para garantir a
segurança pública. O complexo
aparelhamento policial, jurídico e
científico, na prática, agia de maneira
mais humanizada, evitando os atrozes
espetáculos públicos da pena de
morte, as torturas e outros castigos
sangrentos, mas com um
único
objetivo: controlar e afastar as “classes
Identificar, enquadrar, tratar,
ocultar e até eliminar os delinquentes,
sem considerar as causas sociais e
econômicas dos seus delitos, eram as
práticas mais usuais de combate ao
dem. Neste ambiente,
a figura do criminoso se delineou e
ganhou grande destaque, e o crime se
tornou motivo de constante
preocupação e de infinita curiosidade,
alcançando um inusitado protagonismo
na imprensa, na literatura e nos
estudos científicos, conse
quência da
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
forma obsessiva com que a sociedade
encarava a crescente criminalidade.
A imprensa periódica, “animada
das melhores intenções de satisfazer a
curiosidade do público ávido da
crónica vultuosa, regista, com a
minuciosidade que sabemos, todos os
p
ormenores dos grandes crimes”
(FRIAS, 1880, p. 78). Antes de
arrebatar o leitor, com a descrição
minuciosa das cenas, os títulos
sugestivos das notícias de sensação,
O Assombroso Crime
ou
Caso
, evidenciavam que se tratava de
grandes dramas, atra
indo a atenção
do público, que seguia cativo até o
final da narrativa, b
uscando os
detalhes dos casos.
A partir desse viés, a narrativa
se construiu através de dois elementos
básicos que se superpunham: a
história do inquérito judiciário e a da
vida das pe
ssoas envolvidas. As
narrativas, produzidas em uma
linguagem simples e hiperbólica, eram
publicadas com grandes e sequenciais
ilustrações, permitindo uma rápida
apreensão do assunto abordado. O
sangue fez vender muita tinta e papel.
Tornadas um pouco mais
discretas na
vida quotidiana burguesa, a
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
forma obsessiva com que a sociedade
encarava a crescente criminalidade.
A imprensa periódica, “animada
das melhores intenções de satisfazer a
curiosidade do público ávido da
crónica vultuosa, regista, com a
minuciosidade que sabemos, todos os
ormenores dos grandes crimes”
(FRIAS, 1880, p. 78). Antes de
arrebatar o leitor, com a descrição
minuciosa das cenas, os títulos
sugestivos das notícias de sensação,
ou
O Terrível
, evidenciavam que se tratava de
indo a atenção
do público, que seguia cativo até o
uscando os
A partir desse viés, a narrativa
se construiu através de dois elementos
básicos que se superpunham: a
história do inquérito judiciário e a da
ssoas envolvidas. As
narrativas, produzidas em uma
linguagem simples e hiperbólica, eram
publicadas com grandes e sequenciais
ilustrações, permitindo uma rápida
apreensão do assunto abordado. O
sangue fez vender muita tinta e papel.
discretas na
vida quotidiana burguesa, a
brutalidade funesta e a licenciosidade
apaixonavam o povo.
Para Pedroso, a popularidade
do fait divers
estaria relacionada a sua
carga de fantasia, de impacto, de
raridade e de espetáculo, que
provocava “uma tênue
algo vivido no crime, no sexo e na
morte” (
PEDROSO,
Segundo a autora, essas narrativas
ajudariam os leitores a lidar com os
próprios sonhos, desejos e temores,
além de permitirem uma fuga, mesmo
que passageira, da monotonia do
co
tidiano, sendo uma trégua nas
preocupações, um relaxamento das
tensões e opressões do dia a dia, uma
experimentação de emoções até certo
ponto interditadas ao bom e
respeitável burguês.
Além de divertir, de atiçar a
curiosidade e a imaginação dos
leitores,
ao divulgarem os dramas
vividos nos bas-
fonds das cidades, os
fait divers
acabaram por revelar as
motivações das ações criminosas, que
iam desde a cobiça, a ambição e o
ciúme até a exploração de mulheres e
de crianças, os abusos físicos e
sexuais, a ignom
ínia das graves
privações financeiras e o desespero da
fome. Desse modo, eram inevitáveis a
115
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
brutalidade funesta e a licenciosidade
apaixonavam o povo.
Para Pedroso, a popularidade
estaria relacionada a sua
carga de fantasia, de impacto, de
raridade e de espetáculo, que
provocava “uma tênue
sensação de
algo vivido no crime, no sexo e na
2001, p. 106).
Segundo a autora, essas narrativas
ajudariam os leitores a lidar com os
próprios sonhos, desejos e temores,
além de permitirem uma fuga, mesmo
que passageira, da monotonia do
tidiano, sendo uma trégua nas
preocupações, um relaxamento das
tensões e opressões do dia a dia, uma
experimentação de emoções até certo
ponto interditadas ao bom e
Além de divertir, de atiçar a
curiosidade e a imaginação dos
ao divulgarem os dramas
fonds das cidades, os
acabaram por revelar as
motivações das ações criminosas, que
iam desde a cobiça, a ambição e o
ciúme até a exploração de mulheres e
de crianças, os abusos físicos e
ínia das graves
privações financeiras e o desespero da
fome. Desse modo, eram inevitáveis a
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
repercussão e a denúncia, mesmo que
não intencionais, de problemas
sociais, políticos e econômicos.
Se as notícias empregavam
artifícios literários para conquistar
leitor, o contrário igualmente ocorria
com frequência. Muitos escritores de
ficção partiram de impactantes
acontecimentos divulgados na
imprensa para desenvolver ou
incrementar os seus enredos, que
também passaram a ser difundidos
nos jornais.
O escrit
or português Camilo
Castelo Branco soube como poucos
aproveitar o misto de horror e
irrecusável fascínio que os mais
afamados criminosos “de carne e
osso” eram e são capazes de
despertar. Ao recontar as escabrosas
histórias matizadas com o seu ponto
de vis
ta e aquilatadas pelo seu estilo,
o escritor acabou por fazer de tais
narrativas verdadeiras “minas de
patacos”.
Fonte: Revista Universa Lisbonense dos dias
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
repercussão e a denúncia, mesmo que
não intencionais, de problemas
sociais, políticos e econômicos.
Se as notícias empregavam
artifícios literários para conquistar
o
leitor, o contrário igualmente ocorria
com frequência. Muitos escritores de
ficção partiram de impactantes
acontecimentos divulgados na
imprensa para desenvolver ou
incrementar os seus enredos, que
também passaram a ser difundidos
or português Camilo
Castelo Branco soube como poucos
aproveitar o misto de horror e
irrecusável fascínio que os mais
afamados criminosos “de carne e
osso” eram e são capazes de
despertar. Ao recontar as escabrosas
histórias matizadas com o seu ponto
ta e aquilatadas pelo seu estilo,
o escritor acabou por fazer de tais
narrativas verdadeiras “minas de
Um dos primeiros desses casos
parece, realmente, ter sido o matricídio
cometido por Maria José, uma
assassina fria que, com a ajuda do
namora
do, teria esfaqueado por
deze
nove vezes a própria mãe e, em
seguida, lhe desmembrado o cadáver,
espalhando-
o pelas ruas do bairro
onde moravam, mas tomando o
cuidado de enterrar, na cozinha de
casa, a cabeça na tentativa de ocultar
lhe a identidade e, assi
apanhada.
É bem verdade que o “crime
bárbaro e espantoso” cometido por
uma moça de “e
statura regular, cor
acobreada, e cabelo crespo, altiva e
muito senhora de si”, cuja aparência e
atitude livravam-
na de quaisquer
suspeitas, “correu Lisboa,
pelos cegos, e correu o resto do País,
descrito nos jornais” (REVISTA
UNIVERSAL LISBONENSE, 14 de
setembro de 1848).
Figura 1
– Notícias sobre o matricídio
Fonte: Revista Universa Lisbonense dos dias
14 e 21 de setembro de 1848.
116
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Um dos primeiros desses casos
parece, realmente, ter sido o matricídio
cometido por Maria José, uma
assassina fria que, com a ajuda do
do, teria esfaqueado por
nove vezes a própria mãe e, em
seguida, lhe desmembrado o cadáver,
o pelas ruas do bairro
onde moravam, mas tomando o
cuidado de enterrar, na cozinha de
casa, a cabeça na tentativa de ocultar
-
lhe a identidade e, assi
m, evitar ser
É bem verdade que o “crime
bárbaro e espantoso” cometido por
statura regular, cor
acobreada, e cabelo crespo, altiva e
muito senhora de si”, cuja aparência e
na de quaisquer
suspeitas, “correu Lisboa,
cantado
pelos cegos, e correu o resto do País,
descrito nos jornais” (REVISTA
UNIVERSAL LISBONENSE, 14 de
14 e 21 de setembro de 1848.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
Mas, sem dúvida, foram a
perspicácia e o talento do escritor
português os responsáveis não só pelo
imenso sucesso do folheto de cordel
Maria, não me mates que sou tua Mãe!
Meditação sobre o
espantoso crime
acontecido em Lisboa: uma filha que
mata e despedaça sua mãe, mandada
imprimir por um mendigo, que foi
lançado fora do seu convento, e anda
pedindo esmolas pelas portas.
Oferecida aos pais de famílias, e
àqueles que acreditam em Deus
também por levar Maria José a figurar,
em definitivo, na galeria dos maiores
malfeitores da literatura portuguesa.
Camilo, grande conhecedor da
alma portuguesa e muito atento às
estratégias de mercado, empregou,
desde o frontispício, vários
ingredientes c
apazes de atiçar a
curiosidade de um público sedento por
emoções fortes, tornando o opúsculo
um verdadeiro chamariz de leitores.
No paratexto que abre a
primeira edição, por exemplo, é
possível destacar a linguagem
apelativa e irônica do título, que se
ma
nterá por toda a narrativa; a
2
Nota do Editor: o longo trecho em itálico
refere-
se mesmo ao título da obra.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Mas, sem dúvida, foram a
perspicácia e o talento do escritor
português os responsáveis não só pelo
imenso sucesso do folheto de cordel
Maria, não me mates que sou tua Mãe!
espantoso crime
acontecido em Lisboa: uma filha que
mata e despedaça sua mãe, mandada
imprimir por um mendigo, que foi
lançado fora do seu convento, e anda
pedindo esmolas pelas portas.
Oferecida aos pais de famílias, e
àqueles que acreditam em Deus
2
, mas
também por levar Maria José a figurar,
em definitivo, na galeria dos maiores
malfeitores da literatura portuguesa.
Camilo, grande conhecedor da
alma portuguesa e muito atento às
estratégias de mercado, empregou,
desde o frontispício, vários
apazes de atiçar a
curiosidade de um público sedento por
emoções fortes, tornando o opúsculo
um verdadeiro chamariz de leitores.
No paratexto que abre a
primeira edição, por exemplo, é
possível destacar a linguagem
apelativa e irônica do título, que se
nterá por toda a narrativa; a
Nota do Editor: o longo trecho em itálico
se mesmo ao título da obra.
indicação de um marginal proscrito,
um religioso expulso de seu convento,
acumulando de autor e de narrador; e
as menções moralizantes e religiosas
provenientes da descrição do
autor/narrador, reforçada pela
ilustração de um m
com a mão no coração, e da
dedicatória, “Oferecida aos pais de
famílias, e àqueles que acreditam em
Deus”.
117
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
indicação de um marginal proscrito,
um religioso expulso de seu convento,
acumulando de autor e de narrador; e
as menções moralizantes e religiosas
provenientes da descrição do
autor/narrador, reforçada pela
ilustração de um m
onge ajoelhado
com a mão no coração, e da
dedicatória, “Oferecida aos pais de
famílias, e àqueles que acreditam em
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de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
Figura 2
Fonte: Frontispício da primeira
Ainda 1848, o escritor publicou
uma segunda edição/versão da
história, agora, intitulada
Sem Exemplo. Uma filha que matou e
esquartejou sua própria mãi, Mathilde
do Rozário da Luz, em Lisboa
Travessa das Freiras, nº17. Às almas
sensíveis -
aos pais de família
bons Christãos oferecem
meditação, duas perguntas do
e duas respostas da perversa
matricida Maria José. Juiz
que é acusada? Imputa-
lhe a morte de
sua mãi.
Que responde a isto?
Accusada
Que foi eu que a
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Figura 2
– Frontispício da primeira edição do folheto
Fonte: Frontispício da primeira
edição do folheto, 1848.
Ainda 1848, o escritor publicou
uma segunda edição/versão da
história, agora, intitulada
Matricídio
Sem Exemplo. Uma filha que matou e
esquartejou sua própria mãi, Mathilde
do Rozário da Luz, em Lisboa
- na
Travessa das Freiras, nº17. Às almas
aos pais de família
- e aos
bons Christãos oferecem
-se em
meditação, duas perguntas do
Juiz,
e duas respostas da perversa
matricida Maria José. Juiz
Sabe do
lhe a morte de
Que responde a isto?
Que foi eu que a
matei!!! Juiz
Porque perpetrou tal
barbaridade? Accusada
barbaridade
3
.
Desta vez, o prefácio
não prediz o tema e o tom
sensacionalista e macabro da
narrativa, como também evidencia as
mudanças presentes no texto. As duas
edições diferem entre si, sobretudo
pela inclusão, na segunda, de cenas e
passagens referentes ao inqu
policial e ao rito judicial, anunciadas
pelo diálogo transcrito na folha de
rosto. Este diálogo também evidencia
3
Nota do Editor: o longo trecho em itálico
refere-
se mesmo ao título da obra.
118
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Porque perpetrou tal
barbaridade? Accusada
Não foi
Desta vez, o prefácio
não prediz o tema e o tom
sensacionalista e macabro da
narrativa, como também evidencia as
mudanças presentes no texto. As duas
edições diferem entre si, sobretudo
pela inclusão, na segunda, de cenas e
passagens referentes ao inqu
érito
policial e ao rito judicial, anunciadas
pelo diálogo transcrito na folha de
rosto. Este diálogo também evidencia
Nota do Editor: o longo trecho em itálico
se mesmo ao título da obra.
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de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
voz e evidência a posição de Maria
José em relação ao seu ato. Para a
moça, o matricídio, tão cruelmente
cometido, não teria sido uma
barbaridade, e o leitor teria de comprar
o opúsculo para saber o porquê. Para
além destas alterações, há também a
Figura 3
Fonte: Frontispício da segunda edição folheto, 1848.
o frontispício da terceira
edição, intitulada
Matricídio Sem
Exemplo. Uma filha que matou e
esquartejou sua própria mãe, Matilde
do Rosário da Luz, em Lisboa
Travessa das Freiras, nº17. Às almas
sensíveis -
aos pais de família
bons Cristãos oferece
meditação, a descrição do atentado
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9, out. 2019 a março 2020.
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voz e evidência a posição de Maria
José em relação ao seu ato. Para a
moça, o matricídio, tão cruelmente
cometido, não teria sido uma
barbaridade, e o leitor teria de comprar
o opúsculo para saber o porquê. Para
além destas alterações, há também a
troca da ilustração, antes um frade,
que também era mencionado, no título
da primeira edição e não mais no da
segunda, como autor/narrador do
opúsculo, foi substituído por uma
imagem da Virgem Maria.
Figura 3
– Frontispício da segunda edição do folheto
Fonte: Frontispício da segunda edição folheto, 1848.
o frontispício da terceira
Matricídio Sem
Exemplo. Uma filha que matou e
esquartejou sua própria mãe, Matilde
do Rosário da Luz, em Lisboa
- na
Travessa das Freiras, nº17. Às almas
aos pais de família
- e aos
bons Cristãos oferece
-se em
meditação, a descrição do atentado
praticado pela perversa matricida
Maria José -
seguido do interrogatório
da acusada, e da sentença do tribunal
do1º distrito, que a condenou a morrer
n'uma forca, no campo de Santa Clara
em Lisboa
4
, comprova que as
mudanças ocorridas na folha de rosto
4
Nota do Editor: o longo trecho
refere-
se mesmo ao título da obra.
119
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
troca da ilustração, antes um frade,
que também era mencionado, no título
da primeira edição e não mais no da
segunda, como autor/narrador do
opúsculo, foi substituído por uma
imagem da Virgem Maria.
praticado pela perversa matricida
seguido do interrogatório
da acusada, e da sentença do tribunal
do1º distrito, que a condenou a morrer
n'uma forca, no campo de Santa Clara
, comprova que as
mudanças ocorridas na folha de rosto
Nota do Editor: o longo trecho
em itálico
se mesmo ao título da obra.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
par
ecem simular a continuidade
caraterística das notícias veiculadas
nos periódicos, que, com o desenrolar
do processo penal, divulgavam novas
informações. Nesta folha de rosto, o
leitor toma conhecimento da
sentença final, que condenou Maria
José à forca.
Essas alterações e acréscimos,
a cada nova edição, renovariam a
Figura 4
Fonte: Frontispício da terceira edição [18
Os criminosos camilianos
decerto não figuraram apenas os
folhetos da popular literatura de cordel.
Um caso especialíssimo e
sobejamente conhecido é o da
narrativa de suas
Memórias do
Cárcere
, publicada em 1862.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ecem simular a continuidade
caraterística das notícias veiculadas
nos periódicos, que, com o desenrolar
do processo penal, divulgavam novas
informações. Nesta folha de rosto, o
leitor toma conhecimento da
sentença final, que condenou Maria
Essas alterações e acréscimos,
a cada nova edição, renovariam a
narrativa, parecem ser estratégias
para deixá-
la mais atraente. A gravura
também se altera mais uma vez, as
imagens religiosas são substituídas
pela figura de uma mulher, em meio
corpo, de l
enço e de capote, bem mais
próxima das imagens dos
publicados nos jornais.
– Frontispício da terceira edição do folheto
Fonte: Frontispício da terceira edição [18
--].
Os criminosos camilianos
decerto não figuraram apenas os
folhetos da popular literatura de cordel.
Um caso especialíssimo e
sobejamente conhecido é o da
Memórias do
, publicada em 1862.
Nela,
Camilo fez um relato da sua
experiência nos meses em que esteve
na cadeia da Relação do Porto,
pronunciado pelo Juiz Teixeira de
Queirós por manter relações sexuais
com mulher de Manuel Pinheiro Alves,
Ana Augusta Plácido.
120
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
narrativa, parecem ser estratégias
la mais atraente. A gravura
também se altera mais uma vez, as
imagens religiosas são substituídas
pela figura de uma mulher, em meio
enço e de capote, bem mais
próxima das imagens dos
fait divers
publicados nos jornais.
Camilo fez um relato da sua
experiência nos meses em que esteve
na cadeia da Relação do Porto,
pronunciado pelo Juiz Teixeira de
Queirós por manter relações sexuais
com mulher de Manuel Pinheiro Alves,
Ana Augusta Plácido.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
O título certamente aguçar
apetite dos leitores famintos por
desvios e escândalos do escritor, com
fama de sedutor e de arruaceiro.
Apesar disto, os vertiginosos e
inebriantes mergulhos, proporcionados
por aquela híbrida composição de
poesia, de ficção e de verdade factual,
Figura
Fonte: Postal do Centro Português de Fotografia, 2001.
Durante o tempo de sua
reclusão, pouco mais de um ano,
Camilo, afamado e reconhecido,
ocupou a melhor das celas privativas,
conhecidas como “quartos da Malta”, e
destinadas aos prisioneiros ilustres,
enfrentando uma realidade dura, mas
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9, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
O título certamente aguçar
a o
apetite dos leitores famintos por
desvios e escândalos do escritor, com
fama de sedutor e de arruaceiro.
Apesar disto, os vertiginosos e
inebriantes mergulhos, proporcionados
por aquela híbrida composição de
poesia, de ficção e de verdade factual,
nas
entranhas das masmorras, nas
almas dos mais variados tipos de
criminosos e nas várias obras literárias
escritas ou mencionadas por Camilo,
surpreendeu e muito provavelmente
tocou de modo especial o público da
época.
Figura
5 – Cadeia da Relação do Porto
Fonte: Postal do Centro Português de Fotografia, 2001.
Durante o tempo de sua
reclusão, pouco mais de um ano,
Camilo, afamado e reconhecido,
ocupou a melhor das celas privativas,
conhecidas como “quartos da Malta”, e
destinadas aos prisioneiros ilustres,
enfrentando uma realidade dura, mas
bem diferente da
exemplo, pela própria Ana Plácido.
Com certo improviso, a escritora e o
filho, Manuel Plácido Pinheiro Alves,
de apenas dois anos, foram mantidos
em um frio corredor, próximo à
enfermaria.
121
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
entranhas das masmorras, nas
almas dos mais variados tipos de
criminosos e nas várias obras literárias
escritas ou mencionadas por Camilo,
surpreendeu e muito provavelmente
tocou de modo especial o público da
vivenciada, por
exemplo, pela própria Ana Plácido.
Com certo improviso, a escritora e o
filho, Manuel Plácido Pinheiro Alves,
de apenas dois anos, foram mantidos
em um frio corredor, próximo à
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
Talvez por um misto de medo,
de autopreservação e
de curiosidade,
e, principalmente, por desfrutar de
certas regalias
o seu quarto não
ficava trancado e tinha permissão
para circular por quase toda a cadeia e
ainda dar pequenos passeios fora dela
, o escritor não empregou os seus
afinadíssimos dote
s de observação,
como também se relacionou, inquiriu e
conseguiu obter dos outros reclusos as
mais terríveis e, por vezes, repletas de
injustiças, histórias de vida, que,
compiladas e publicadas, deram
visibilidade a homens e mulheres
compulsoriamente sile
nciados e
esquecidos.
Os infortúnios dessas pessoas,
transpostas pelo autor em
personagens da sua ficção,
apresentados como vicissitudes de
uma organização social cruel e
imperfeita, relacionam o “destino
individual” com “o destino coletivo”.
Somente vive
nciados por pessoas “de
carne e osso”, com nome, família e
amigos, os efeitos de tanta injustiça e
descaso comoveriam o leitor, levando
o a refletir sobre as suas verdadeiras
dimensões e consequências.
Em boa parte da obra, as
“memórias” não eram fatos
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Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Talvez por um misto de medo,
de curiosidade,
e, principalmente, por desfrutar de
o seu quarto não
ficava trancado e tinha permissão
para circular por quase toda a cadeia e
ainda dar pequenos passeios fora dela
, o escritor não empregou os seus
s de observação,
como também se relacionou, inquiriu e
conseguiu obter dos outros reclusos as
mais terríveis e, por vezes, repletas de
injustiças, histórias de vida, que,
compiladas e publicadas, deram
visibilidade a homens e mulheres
nciados e
Os infortúnios dessas pessoas,
transpostas pelo autor em
personagens da sua ficção,
apresentados como vicissitudes de
uma organização social cruel e
imperfeita, relacionam o “destino
individual” com “o destino coletivo”.
nciados por pessoas “de
carne e osso”, com nome, família e
amigos, os efeitos de tanta injustiça e
descaso comoveriam o leitor, levando
-
o a refletir sobre as suas verdadeiras
dimensões e consequências.
Em boa parte da obra, as
“memórias” não eram fatos
exa
tamente ocorridos com o seu autor,
que parece ter propositadamente
explorado a ambiguidade presente no
sintagma nominal “Memórias do
Cárcere”. Através da pena camiliana, é
a Cadeia de Relação quem ganha voz
e, personificada, conta, capítulo a
capítulo, a s
ua terrível trajetória.
Sem poder deixar eminente de
lado a sua própria situação e usando a
sua reconhecida feição de historiador
social, na sequência daquilo que ele
mesmo chamou de quadros, Camilo
retrata, entre dolentes grimas e
irônicos sorrisos, os
mais profundos e
mais sombrios sentimentos humanos e
os mais pungentes testemunhos sobre
o cotidiano daquele antro de
desgraças e misérias, onde se
acumulavam, à espera do devido
julgamento, do desterro ou da morte,
meninos e meninas desamparados,
loucos e
doentes desvalidos,
baderneiros, falsários, ladrões,
prostitutas, infanticidas, parricidas,
conjungidas, assassinos de aluguel,
sedutores e violadores.
Através destas histórias, o autor
questiona a validade das penas
carcerárias como formas de
reabilitaç
ão e de ressocialização dos
delinquentes, assinalando, por vezes,
122
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
tamente ocorridos com o seu autor,
que parece ter propositadamente
explorado a ambiguidade presente no
sintagma nominal “Memórias do
Cárcere”. Através da pena camiliana, é
a Cadeia de Relação quem ganha voz
e, personificada, conta, capítulo a
ua terrível trajetória.
Sem poder deixar eminente de
lado a sua própria situação e usando a
sua reconhecida feição de historiador
social, na sequência daquilo que ele
mesmo chamou de quadros, Camilo
retrata, entre dolentes grimas e
mais profundos e
mais sombrios sentimentos humanos e
os mais pungentes testemunhos sobre
o cotidiano daquele antro de
desgraças e misérias, onde se
acumulavam, à espera do devido
julgamento, do desterro ou da morte,
meninos e meninas desamparados,
doentes desvalidos,
baderneiros, falsários, ladrões,
prostitutas, infanticidas, parricidas,
conjungidas, assassinos de aluguel,
sedutores e violadores.
Através destas histórias, o autor
questiona a validade das penas
carcerárias como formas de
ão e de ressocialização dos
delinquentes, assinalando, por vezes,
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
que o encarceramento dos
marginalizados, na prática, apenas
seria “uma ilusória válvula de
segurança” (PERROT, 2010, p. 266)
exigida por uma sociedade, que,
apoiada nos valores da moral reli
e da acumulação de bens, não
tolerava aqueles que transgrediam as
normas e, principalmente, eliminava os
que ousavam ameaçar o seu poder e o
seu capital.
Camilo também aponta que as
debilitadas instalações físicas, a total
falta de assistência básica
físicos diários cominados aos presos e
a convivência forçada de crianças
detidas, simplesmente por não terem
para onde ir, e de loucos, recolhidos
mesmo sem terem cometido crime
algum, ao lado de agressores,
estupradores e assassinos,
seguramen
te, fragilizavam, adoeciam,
embruteciam e desumanizavam muito
mais do que corrigiam:
Estavam ali rapazinhos de oito a
dezoito anos, conglobados todos
num pequeno recinto [...]. Ali é que a
perdição moral das crianças se
consumava com as lições dos
ladrões
recalcitrantes e matadores
condenados a pena última.
Contaram-
me que, nas enxovias,
alguns maiorais davam preleções e
cursos regulares de engenhosas
ladroeiras (CASTELO BRANCO,
2001, p. 144).
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
que o encarceramento dos
marginalizados, na prática, apenas
seria “uma ilusória válvula de
segurança” (PERROT, 2010, p. 266)
exigida por uma sociedade, que,
apoiada nos valores da moral reli
giosa
e da acumulação de bens, não
tolerava aqueles que transgrediam as
normas e, principalmente, eliminava os
que ousavam ameaçar o seu poder e o
Camilo também aponta que as
debilitadas instalações físicas, a total
falta de assistência básica
, os abusos
físicos diários cominados aos presos e
a convivência forçada de crianças
detidas, simplesmente por não terem
para onde ir, e de loucos, recolhidos
mesmo sem terem cometido crime
algum, ao lado de agressores,
estupradores e assassinos,
te, fragilizavam, adoeciam,
embruteciam e desumanizavam muito
Estavam ali rapazinhos de oito a
dezoito anos, conglobados todos
num pequeno recinto [...]. Ali é que a
perdição moral das crianças se
consumava com as lições dos
recalcitrantes e matadores
condenados a pena última.
me que, nas enxovias,
alguns maiorais davam preleções e
cursos regulares de engenhosas
ladroeiras (CASTELO BRANCO,
Afligiu-
me ver um dia o castigo de
disciplinas que ele dava a u
doente, e censurei
Disse-
me o enfermeiro que o doente
era doido, e com o terror se
continha quieto. A origem do mal
estava na absurda autoridade, que
mandou para a cadeia um demente,
e no carcereiro, que o retinha.
Este lançava de si
responsabilidade, dizendo que o
hospital da Misericórdia não queria
receber doidos, porque não tinha
enfermaria especial (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 194).
Naqueles idos, um menor com
mais de sete anos de idade que fosse
apanhado vagando sem destino certo,
esmolando ou furtando para comer,
invariavelmente, deveria cumprir pena
de reclusão, com ou sem trabalhos
forçados, nas cadeias comuns.
Segundo Santos, com a miséria em
que se encontrava boa parte da
população portuguesa, na segunda
metade dos oitocentos,
desabrigados e de pedintes nas vias
aumentava, fazendo com que os
abastados experimentassem uma
crescente sensação de medo e
insegurança.
Esta inquietação, alimentada
pelos reais acréscimos nos casos de
crimes contra o patrimônio e pelo
al
arde sensacionalista da imprensa
sobre estes fatos, praticamente
constrangia as autoridades a imporem
medidas repressivas cada vez mais
123
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
me ver um dia o castigo de
disciplinas que ele dava a u
m
doente, e censurei
-lhe a crueza.
me o enfermeiro que o doente
era doido, e com o terror se
continha quieto. A origem do mal
estava na absurda autoridade, que
mandou para a cadeia um demente,
e no carcereiro, que o retinha.
Este lançava de si
a
responsabilidade, dizendo que o
hospital da Misericórdia não queria
receber doidos, porque não tinha
enfermaria especial (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 194).
Naqueles idos, um menor com
mais de sete anos de idade que fosse
apanhado vagando sem destino certo,
esmolando ou furtando para comer,
invariavelmente, deveria cumprir pena
de reclusão, com ou sem trabalhos
forçados, nas cadeias comuns.
Segundo Santos, com a miséria em
que se encontrava boa parte da
população portuguesa, na segunda
metade dos oitocentos,
o número de
desabrigados e de pedintes nas vias
aumentava, fazendo com que os
abastados experimentassem uma
crescente sensação de medo e
Esta inquietação, alimentada
pelos reais acréscimos nos casos de
crimes contra o patrimônio e pelo
arde sensacionalista da imprensa
sobre estes fatos, praticamente
constrangia as autoridades a imporem
medidas repressivas cada vez mais
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
severas. Logo, se antes, devido à
complacência de determinados juízes,
alguns dos desabrigados famintos
eram liberados a
o roubar um pão,
agora, todos aqueles que fossem
encontrados, sozinhos ou em bandos,
a vadiar e/ou a pedir pelos espaços
públicos, incluindo as crianças e os
jovens, deveriam ser conduzidos às
prisões.
Igualmente inoportunos,
temidos e desprezados, os doen
mentais desvalidos quando eram
retirados das ruas, em regra, tinham
como destino as cadeias, uma vez que
pouquíssimos hospitais ofereciam
tratamento especializado para este
tipo de transtorno e quase não
disponibilizavam vagas para quem não
podia pagar
caro. Mesmo a Santa
Casa de Misericórdia, referência no
atendimento médico aos pobres, se
mostrava ineficaz na assistência aos
alienados, como Camilo aponta em
Memórias do Cárcere:
Este lançava de si a
responsabilidade, dizendo que o
hospital da Misericór
dia não queria
receber doidos, porque não tinha
enfermaria especial. Ninguém o dirá
do estabelecimento de caridade mais
dotado e rico do país! Com uma
galeria de bustos, que ali fizeram no
firmamento do pórtico, verdadeira
enfermaria da arte e do engenho
a
rquitetónico, poderia a mesa da
Santa Casa ter criado uma
enfermaria de doidos (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 193
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
severas. Logo, se antes, devido à
complacência de determinados juízes,
alguns dos desabrigados famintos
o roubar um pão,
agora, todos aqueles que fossem
encontrados, sozinhos ou em bandos,
a vadiar e/ou a pedir pelos espaços
públicos, incluindo as crianças e os
jovens, deveriam ser conduzidos às
Igualmente inoportunos,
temidos e desprezados, os doen
tes
mentais desvalidos quando eram
retirados das ruas, em regra, tinham
como destino as cadeias, uma vez que
pouquíssimos hospitais ofereciam
tratamento especializado para este
tipo de transtorno e quase não
disponibilizavam vagas para quem não
caro. Mesmo a Santa
Casa de Misericórdia, referência no
atendimento médico aos pobres, se
mostrava ineficaz na assistência aos
alienados, como Camilo aponta em
Este lançava de si a
responsabilidade, dizendo que o
dia não queria
receber doidos, porque não tinha
enfermaria especial. Ninguém o dirá
do estabelecimento de caridade mais
dotado e rico do país! Com uma
galeria de bustos, que ali fizeram no
firmamento do pórtico, verdadeira
enfermaria da arte e do engenho
rquitetónico, poderia a mesa da
Santa Casa ter criado uma
enfermaria de doidos (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 193
-194).
Sendo assim, naquele
momento, para ser tratado, inclusive
judicialmente, como um criminoso, não
era preciso efetivamente infringir as
leis.
Ser visto com um possível
delinquente era o suficiente para
que alguém fosse encarcerado, e, para
aquela sociedade, a pobreza
exacerbada e o desiquilíbrio mental
eram grandes indícios de
periculosidade, não apenas pela
ameaça imediata que esses sujeitos
representavam, mas também pelas
poucas perspectivas de “recuperação”
(FOUCAULT, 1999, p. 85).
Se o confinamento dos
marginalizados era preconizado, não é
de se espantar que as instituições
prisionais estivessem sempre lotadas.
O encarceramento de um número
extremamente excessivo de presos em
espaços improvisados, sujos, escuros
e mal arejados, alia
do à má nutrição
generalizada, à água de origem
duvidosa e à falta de toda a sorte de
agasalho, podia resultar na
multiplicação da ocorrência e dos tipos
de enfermidade, que, não raro,
resultavam em óbito. Camilo, em
Memórias do Cárcere
indif
erente a essa situação. O escritor
124
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Sendo assim, naquele
momento, para ser tratado, inclusive
judicialmente, como um criminoso, não
era preciso efetivamente infringir as
Ser visto com um possível
delinquente era o suficiente para
que alguém fosse encarcerado, e, para
aquela sociedade, a pobreza
exacerbada e o desiquilíbrio mental
eram grandes indícios de
periculosidade, não apenas pela
ameaça imediata que esses sujeitos
representavam, mas também pelas
poucas perspectivas de “recuperação”
(FOUCAULT, 1999, p. 85).
Se o confinamento dos
marginalizados era preconizado, não é
de se espantar que as instituições
prisionais estivessem sempre lotadas.
O encarceramento de um número
extremamente excessivo de presos em
espaços improvisados, sujos, escuros
do à má nutrição
generalizada, à água de origem
duvidosa e à falta de toda a sorte de
agasalho, podia resultar na
multiplicação da ocorrência e dos tipos
de enfermidade, que, não raro,
resultavam em óbito. Camilo, em
Memórias do Cárcere
, não ficou
erente a essa situação. O escritor
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
evidenciou, repetidas vezes, a agonia
da doença e da morte na prisão. A dor,
o desespero, o remorso e o abandono
estiveram, reiteradamente, presentes
nos momentos finais dessas
personagens:
António José Coutinho agonizou
quinze dias na enfermaria, e morreu
em princípios de abril, quando o sol
da primavera e o perfume das flores
vinham à grade, onde me ele falara
da morte dois meses antes.
Nesse mesmo dia foi envolvido num
lençol, e enviado por dois galegos ao
cemitério de
Agramonte, onde em
redor da sua cova o estavam
esperando as enfezadas florinhas,
que a esta hora estão reviçando da
leiva de carne e sangue e podridão
daquele velho, que chorava de
saudades delas (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 137).
Os presos enganaram
simulada enfermidade de José
Maria. Vi-
o, segunda vez, e achei
desfigurado do que era, lívido,
com as fossas orbiculares de todo
descarnadas, e a espinha dorsal
recurva pelos empuxões da tosse.
Em março de 1861 vieram os
perdões, que comutavam a s
de José Maria em degredo perpétuo
com trabalhos blicos, e a de
Benedita em degredo para
Moçambique com prisão perpétua.
Chegada a comutação, o condenado
morreu na enfermaria, em
contorções de raiva contra as dores,
e contra quantos o cercavam com
benefícios corporais e espirituais nas
últimas horas (CASTELO BRANCO,
2001, p. 180).
Decerto, as cadeias
portuguesas de então poderiam ser
definidas como deletérios depósitos de
excluídos, que, quando não matavam,
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
evidenciou, repetidas vezes, a agonia
da doença e da morte na prisão. A dor,
o desespero, o remorso e o abandono
estiveram, reiteradamente, presentes
nos momentos finais dessas
António José Coutinho agonizou
quinze dias na enfermaria, e morreu
em princípios de abril, quando o sol
da primavera e o perfume das flores
vinham à grade, onde me ele falara
da morte dois meses antes.
Nesse mesmo dia foi envolvido num
lençol, e enviado por dois galegos ao
Agramonte, onde em
redor da sua cova o estavam
esperando as enfezadas florinhas,
que a esta hora estão reviçando da
leiva de carne e sangue e podridão
daquele velho, que chorava de
saudades delas (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 137).
Os presos enganaram
-se com a
simulada enfermidade de José
o, segunda vez, e achei
-o
desfigurado do que era, lívido,
com as fossas orbiculares de todo
descarnadas, e a espinha dorsal
recurva pelos empuxões da tosse.
Em março de 1861 vieram os
perdões, que comutavam a s
entença
de José Maria em degredo perpétuo
com trabalhos blicos, e a de
Benedita em degredo para
Moçambique com prisão perpétua.
Chegada a comutação, o condenado
morreu na enfermaria, em
contorções de raiva contra as dores,
e contra quantos o cercavam com
os
benefícios corporais e espirituais nas
últimas horas (CASTELO BRANCO,
Decerto, as cadeias
portuguesas de então poderiam ser
definidas como deletérios depósitos de
excluídos, que, quando não matavam,
adoeciam severamente a mente e o
corp
o dos seus detentos, “homens
mais castigados que as feras”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 435),
não lembrando em nada o instrumento
de prevenção e de “cura” prometido
pelos reformadores.
Como o Estado não tinha a
obrigação de fornecer a alimentação, o
vestuári
o, nem mesmo lençóis e
cobertores, e ainda cobrava pela
estadia, não era raro encontrar presos
com as mãos estendidas através das
grades ou com cestos pendurados nas
janelas esmolando. Também não era
incomum que os detentos obrigassem
os próprios filhos pe
mendigar nas proximidades das
cadeias.
Evidentemente, depender da
providência de desconhecidos,
sobretudo em um momento de
instabilidade política e econômica, não
era uma posição moda. Por
conseguinte, os detidos vencidos pela
fome e pelo frio
se viam constrangidos
a acatar todo tipo barganha dentro da
prisão, inclusive favores sexuais, na
tentativa de obter os suprimentos de
que tanto careciam, sendo extorquidos
e explorados, sob as mais diversas
125
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
adoeciam severamente a mente e o
o dos seus detentos, “homens
mais castigados que as feras”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 435),
não lembrando em nada o instrumento
de prevenção e de “cura” prometido
Como o Estado não tinha a
obrigação de fornecer a alimentação, o
o, nem mesmo lençóis e
cobertores, e ainda cobrava pela
estadia, não era raro encontrar presos
com as mãos estendidas através das
grades ou com cestos pendurados nas
janelas esmolando. Também não era
incomum que os detentos obrigassem
os próprios filhos pe
quenos a
mendigar nas proximidades das
Evidentemente, depender da
providência de desconhecidos,
sobretudo em um momento de
instabilidade política e econômica, não
era uma posição moda. Por
conseguinte, os detidos vencidos pela
se viam constrangidos
a acatar todo tipo barganha dentro da
prisão, inclusive favores sexuais, na
tentativa de obter os suprimentos de
que tanto careciam, sendo extorquidos
e explorados, sob as mais diversas
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
formas, por outros presos ou por
funcionários da cadeia.
Esta circunstância acarretava
um tipo particular de instrumento de
controle, que não era exercido
diretamente pelas grandes autoridades
penais e administrativas, consolidando
uma clandestina e ilícita estrutura de
poder, como retrata a história da
prisioneira registrada por Camilo no
capítulo XVI de sua obra. Mariquinhas
era uma “mocinha de quinze anos”,
que, aos doze, fora detida como ladra.
Objeto da afeição e do interesse do
carrasco, a padeirinha lhe oferecia “o
melhor de sua juventude”, em tro
“manjares” que banqueteavam “juntos,
face a face, à mesma mesa”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 248).
É verdade que os mais carentes
até podiam contar com a ração diária,
caridosamente, servida pelas
Misericórdias. Contudo, as duas
tigelas de caldo e as b
roas de milho
eram de ssima qualidade e,
eventualmente, impróprias para o
consumo, como é relatado por aqueles
que não podiam se dar ao luxo de
recusá-
los em diversas passagens das
Memórias do Cárcere:
Coutinho, na qualidade de escrivão
dos quartos de ma
diariamente meia broa e quatro
tigelas de caldo. Do caldo escolhia
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
formas, por outros presos ou por
Esta circunstância acarretava
um tipo particular de instrumento de
controle, que não era exercido
diretamente pelas grandes autoridades
penais e administrativas, consolidando
uma clandestina e ilícita estrutura de
poder, como retrata a história da
prisioneira registrada por Camilo no
capítulo XVI de sua obra. Mariquinhas
era uma “mocinha de quinze anos”,
que, aos doze, fora detida como ladra.
Objeto da afeição e do interesse do
carrasco, a padeirinha lhe oferecia “o
melhor de sua juventude”, em tro
ca de
“manjares” que banqueteavam “juntos,
face a face, à mesma mesa”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 248).
É verdade que os mais carentes
até podiam contar com a ração diária,
caridosamente, servida pelas
Misericórdias. Contudo, as duas
roas de milho
eram de ssima qualidade e,
eventualmente, impróprias para o
consumo, como é relatado por aqueles
que não podiam se dar ao luxo de
los em diversas passagens das
Coutinho, na qualidade de escrivão
dos quartos de ma
lta, recebia
diariamente meia broa e quatro
tigelas de caldo. Do caldo escolhia
ele os raros feijões, que lavava em
duas águas, e adubava com azeite.
A broa, que o próprio Ugolino do
Dante não comeria, trocava
outro pão, para si e para a cadelinha,
que o queria aquele (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 133).
Vivia do caldo e do pão da
Misericórdia. Enquanto os outros
presos se queixavam da insipidez
das couves, e despejavam
praguejando as tigelas,
Francisquinho comia serenamente a
sua ração, dizendo em r
nunca as santas tinham sido tão
maltratadas como entre a canalha da
cadeia!
Santas é o nome que têm aquelas
esmolas, por serem dadas pela
Santa Casa da Misericórdia
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 228).
Segundo documentos oficiais e
relatos públic
os, o tratamento
dispensado aos encarcerados parecia
comover apenas os corações mais
brandos e sensíveis, pois, havia quem
defendesse que a prisão, sendo um
lugar de expiação, não deveria
oferecer aos presos melhores
condições do que a vida lhe oferecia
fo
ra dela. Caso contrário, ao invés de
coibir, iria incentivar os “desocupados”
a cometerem mais crimes, somente
para aproveitarem uma existência
sem a obrigação de trabalhar para
garantir sustento.
As doenças e as privações não
eram os únicos flagelos do
encarcerados. O abuso de poder das
126
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ele os raros feijões, que lavava em
duas águas, e adubava com azeite.
A broa, que o próprio Ugolino do
Dante não comeria, trocava
-a ele a
outro pão, para si e para a cadelinha,
que o queria aquele (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 133).
Vivia do caldo e do pão da
Misericórdia. Enquanto os outros
presos se queixavam da insipidez
das couves, e despejavam
praguejando as tigelas,
Francisquinho comia serenamente a
sua ração, dizendo em r
isota, que
nunca as santas tinham sido tão
maltratadas como entre a canalha da
Santas é o nome que têm aquelas
esmolas, por serem dadas pela
Santa Casa da Misericórdia
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 228).
Segundo documentos oficiais e
os, o tratamento
dispensado aos encarcerados parecia
comover apenas os corações mais
brandos e sensíveis, pois, havia quem
defendesse que a prisão, sendo um
lugar de expiação, não deveria
oferecer aos presos melhores
condições do que a vida lhe oferecia
ra dela. Caso contrário, ao invés de
coibir, iria incentivar os “desocupados”
a cometerem mais crimes, somente
para aproveitarem uma existência
sem a obrigação de trabalhar para
As doenças e as privações não
eram os únicos flagelos do
s
encarcerados. O abuso de poder das
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
autoridades e funcionários prisionais,
que negligenciavam e torturavam,
também descrito na obra de Camilo,
revela que o comportamento e a rotina
dos enfermeiros, dos chaveiros, dos
carcereiros e dos carrascos não eram
m
uito diferentes da realidade dos
próprios presos. Em muitos casos,
estes agentes e trabalhadores eram
corruptos e violentos:
Levantou-
se um dia de humor de se
fazer juiz de um dos salões da
cadeia. Comprou o juizado por doze
libras ao carcereiro, que
neste género de imoral veniaga, e
inaugurou o seu reinado
embebedando os presos com
aguardente... para se entreter. Dias
depois, o carcereiro tomou o entre
dentes, e quis mudá-
lo de repartição.
José Bernardino queixou
defunto presidente da
indignidade do carcereiro, que lhe
vendera e tirara o juizado (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 189
Como juiz, o Sr. Brito era um modelo
de funcionários, e tinha rasgos de
generosidade. Quando o carcereiro
interino, um tal Guimarães
(despedido,
depois, como ladrão, do
serviço da cadeia, pela mesma
causa que os seus confrades são
levados violentamente para lá)
obrigava o preso indigente a vender
a jaqueta, sua coberta única, para
pagar a carceragem, o caritativo juiz
pagava de seu bolso, ou fintav
presos mais abastados para valerem
ao pobre (CASTELO BRANCO,
2001, p. 251).
Todavia o a coerção e a
violência regiam essas relações.
Achegas e camaradagens não eram
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
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autoridades e funcionários prisionais,
que negligenciavam e torturavam,
também descrito na obra de Camilo,
revela que o comportamento e a rotina
dos enfermeiros, dos chaveiros, dos
carcereiros e dos carrascos não eram
uito diferentes da realidade dos
próprios presos. Em muitos casos,
estes agentes e trabalhadores eram
se um dia de humor de se
fazer juiz de um dos salões da
cadeia. Comprou o juizado por doze
libras ao carcereiro, que
negociava
neste género de imoral veniaga, e
inaugurou o seu reinado
embebedando os presos com
aguardente... para se entreter. Dias
depois, o carcereiro tomou o entre
lo de repartição.
José Bernardino queixou
-se ao
defunto presidente da
Relação da
indignidade do carcereiro, que lhe
vendera e tirara o juizado (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 189
-190).
Como juiz, o Sr. Brito era um modelo
de funcionários, e tinha rasgos de
generosidade. Quando o carcereiro
-
interino, um tal Guimarães
depois, como ladrão, do
serviço da cadeia, pela mesma
causa que os seus confrades são
levados violentamente para lá)
obrigava o preso indigente a vender
a jaqueta, sua coberta única, para
pagar a carceragem, o caritativo juiz
pagava de seu bolso, ou fintav
a os
presos mais abastados para valerem
ao pobre (CASTELO BRANCO,
Todavia o a coerção e a
violência regiam essas relações.
Achegas e camaradagens não eram
invulgares entre os funcionários mais
subalternos e os presos, que muito
tinham
em comum. Essas funções,
socialmente desprestigiadas e mal
remuneradas, acabavam por ser
exercidas pelos próprios presidiários,
que trabalhavam por comutação das
penas ou até por comida, e mesmo os
trabalhadores carcerários que nunca
haviam sido presos, po
pobres e socialmente vulneráveis, não
estavam livres de um dia virem a ser:
Às cinco horas duma dessas tardes,
Rosa entrou no quarto de sua tia, fez
oração à imagem do oratório, beijou
lhe a mão insensível, e saiu sozinha.
Subiu as lôbregas
escadas da Relação, invocou o favor
do carcereiro para falar com seu
primo Salazar, perdoável fraude, que
o carcereiro perdoou primeiro que o
leitor. Farto estava ele de saber
quem era a priminha; mas Salazar
fora-
lhe recomendado pelo
chanceler,
e pelas liberalidades do
preso e de seus amigos (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 160).
Outro parricida, que não consumara
o crime, era o enfermeiro dos presos,
condenado a perpétua e
incomunicável prisão. Há seis anos
que ali está, e é estimado das
autoridades
, e dos fiscais da
Misericórdia, a quem compete
aquela enfermaria. Os doentes, em
geral, dão testemunho de sua
caridade, e eu mesmo presenciei a
brandura e cuidados com que ele
assistiu aos últimos dias do pobre
Coutinho (CASTELO BRANCO,
2001, p. 193-
194).
Estes homens permaneciam
confinados no mesmo espaço, vivendo
127
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
invulgares entre os funcionários mais
subalternos e os presos, que muito
em comum. Essas funções,
socialmente desprestigiadas e mal
remuneradas, acabavam por ser
exercidas pelos próprios presidiários,
que trabalhavam por comutação das
penas ou até por comida, e mesmo os
trabalhadores carcerários que nunca
haviam sido presos, po
r serem muito
pobres e socialmente vulneráveis, não
estavam livres de um dia virem a ser:
Às cinco horas duma dessas tardes,
Rosa entrou no quarto de sua tia, fez
oração à imagem do oratório, beijou
-
lhe a mão insensível, e saiu sozinha.
Subiu as lôbregas
e húmidas
escadas da Relação, invocou o favor
do carcereiro para falar com seu
primo Salazar, perdoável fraude, que
o carcereiro perdoou primeiro que o
leitor. Farto estava ele de saber
quem era a priminha; mas Salazar
lhe recomendado pelo
e pelas liberalidades do
preso e de seus amigos (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 160).
Outro parricida, que não consumara
o crime, era o enfermeiro dos presos,
condenado a perpétua e
incomunicável prisão. Há seis anos
que ali está, e é estimado das
, e dos fiscais da
Misericórdia, a quem compete
aquela enfermaria. Os doentes, em
geral, dão testemunho de sua
caridade, e eu mesmo presenciei a
brandura e cuidados com que ele
assistiu aos últimos dias do pobre
Coutinho (CASTELO BRANCO,
194).
Estes homens permaneciam
confinados no mesmo espaço, vivendo
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
e morrendo nas mesmas adversas
condições que as dos indivíduos de
quem tinham custódia, como é
ressaltado, em um ofício, pelo
Procurador Régio o qual, aterrorizado
com a hipótese, se opunha a t
local de trabalho fixado em uma das
salas do prédio da Cadeia da Relação:
Este edifício é frigidíssimo... Pela
prática tem-
se reconhecido que os
presos detidos logo que são
atacados de incommodos
pulmonares e se recolhem à
enfermaria alli falecem
edificio
perniciosissimo a taes
moléstias [...]; três empregados
daquella repartição falleceram no
inverno, todos atacados com
molestias pulmonares ali originadas
durante as horas de trabalho. O
actual Carcereiro lá, jaz doente à
muitos meses
sem esperança de
melhoras... Um servente deste
empregado, que com elle vivia,
falleceu na Caza da habitação do
Carcereiro estando ainda na flor da
edade... (TRP, Proc. Rég., Livro
Copiador de Correspondência com o
Governo, 1853-
1895, Lv. 4).
Além da amiza
de e do
companheirismo, aquele espaço
marcado pela selvageria e pela
punição, também podia abrigar o
amor. Sem lidar com os casos que
envolvessem agressões e violência,
para retratar algumas das nuances da
“sexualidade encarcerada”, Camilo
parece ter prefe
rido deter a sua
atenção nos apaixonados.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
e morrendo nas mesmas adversas
condições que as dos indivíduos de
quem tinham custódia, como é
ressaltado, em um ofício, pelo
Procurador Régio o qual, aterrorizado
com a hipótese, se opunha a t
er o seu
local de trabalho fixado em uma das
salas do prédio da Cadeia da Relação:
Este edifício é frigidíssimo... Pela
se reconhecido que os
presos detidos logo que são
atacados de incommodos
pulmonares e se recolhem à
enfermaria alli falecem
por ser este
perniciosissimo a taes
moléstias [...]; três empregados
daquella repartição falleceram no
inverno, todos atacados com
molestias pulmonares ali originadas
durante as horas de trabalho. O
actual Carcereiro lá, jaz doente à
sem esperança de
melhoras... Um servente deste
empregado, que com elle vivia,
falleceu na Caza da habitação do
Carcereiro estando ainda na flor da
edade... (TRP, Proc. Rég., Livro
Copiador de Correspondência com o
1895, Lv. 4).
de e do
companheirismo, aquele espaço
marcado pela selvageria e pela
punição, também podia abrigar o
amor. Sem lidar com os casos que
envolvessem agressões e violência,
para retratar algumas das nuances da
“sexualidade encarcerada”, Camilo
rido deter a sua
Estes casais podiam ser
formados por homens e mulheres que
se conheceram fora da cadeia, mas
que mantiveram o relacionamento
apesar do controle e das interdições
próprios ao encarceramento, ou
podiam ser pessoas q
encontraram e se relacionaram ao
longo do cumprimento da pena de um
ou de ambos.
Presos precisamente pelo
envolvimento afetivo, Camilo e Ana
Plácido correspondem muito bem à
primeira condição. Segundo registros
do próprio escritor, ele se valia de
quaisquer meios que lhe garantissem
momentos de intimidade com a sua
amada dentro da pris
ão.
A leitura desses textos deixa
claro que, com frequência, Camilo
contava com guardas e carcereiros,
solidários e/ou bem remunerados,
para, na calada da noite, lhe abrirem
as portas que ficavam no caminho que
ia do seu quarto até a “caverna da sua
márti
r”. Quando algum carcereiro
“amigo” era momentaneamente
substituído, devido, por exemplo, a
problemas de saúde, o escritor
empregava expedientes mais
engenhosos, sempre realizados com a
128
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Estes casais podiam ser
formados por homens e mulheres que
se conheceram fora da cadeia, mas
que mantiveram o relacionamento
apesar do controle e das interdições
próprios ao encarceramento, ou
podiam ser pessoas q
ue se
encontraram e se relacionaram ao
longo do cumprimento da pena de um
Presos precisamente pelo
envolvimento afetivo, Camilo e Ana
Plácido correspondem muito bem à
primeira condição. Segundo registros
do próprio escritor, ele se valia de
quaisquer meios que lhe garantissem
momentos de intimidade com a sua
ão.
A leitura desses textos deixa
claro que, com frequência, Camilo
contava com guardas e carcereiros,
solidários e/ou bem remunerados,
para, na calada da noite, lhe abrirem
as portas que ficavam no caminho que
ia do seu quarto até a “caverna da sua
r”. Quando algum carcereiro
“amigo” era momentaneamente
substituído, devido, por exemplo, a
problemas de saúde, o escritor
empregava expedientes mais
engenhosos, sempre realizados com a
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
ajuda de pessoas próximas e de
outros presos “talentosos”.
Isto fica e
vidente em uma carta
remetida por Camilo a Vieira de
Castro, na qual ele solicita o envio de
chaves, que, após serem ajustadas
por algum “especialista”, lhe
permitiriam, a horas mortas, ir ter com
Ana Plácido:
Meu caro Viera de Castro.
Eu não pude arranjar
as ch[aves].
Se podes fazer alguma, grande favor
me fazes. Ainda que não venham
perfeitas, lhes daria alguém a
última demão.
Abrevia quanto possas.
O negócio de Lisboa corre moroso.
Parece-
me que ainda aqui amargo
as férias de Páscoa.
Adeus.
Teu dedicado
Camilo Castelo Branco
1 de fevereiro de 1861
(CASTELO BRANCO, 2002, p. 680).
Sobre as relações que
emergiram no cárcere, Camilo oferece
ao leitor de suas Memórias um painel
amplo e diversificado. Entre tantos
relatos, o do casto e ditoso namoro
do tenente Salazar, preso por lutar
pelos seus ideais, com Rosinha, a
sobrinha de cônego que morava com o
tio defronte à cadeia. O jacobino e a
órfã, que ao final de muitas
escaramuças acabaram se casando,
trocavam olhares e juras de amor
eterno pela jane
la gradeada do
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ajuda de pessoas próximas e de
vidente em uma carta
remetida por Camilo a Vieira de
Castro, na qual ele solicita o envio de
chaves, que, após serem ajustadas
por algum “especialista”, lhe
permitiriam, a horas mortas, ir ter com
Meu caro Viera de Castro.
as ch[aves].
Se podes fazer alguma, grande favor
me fazes. Ainda que não venham
perfeitas, lhes daria alguém a
Abrevia quanto possas.
O negócio de Lisboa corre moroso.
me que ainda aqui amargo
Camilo Castelo Branco
(CASTELO BRANCO, 2002, p. 680).
Sobre as relações que
emergiram no cárcere, Camilo oferece
ao leitor de suas Memórias um painel
amplo e diversificado. Entre tantos
relatos, o do casto e ditoso namoro
do tenente Salazar, preso por lutar
pelos seus ideais, com Rosinha, a
sobrinha de cônego que morava com o
tio defronte à cadeia. O jacobino e a
órfã, que ao final de muitas
escaramuças acabaram se casando,
trocavam olhares e juras de amor
la gradeada do
corredor principal dos quartos de
malta.
Também figura nessa lista a
união desditosa do alfaiate, o senhor
Joaquim, com a mais bela mulher que
passara pelas enxovias da Relação, a
senhora Quitéria. O dois se amaram
“como aves de longes clim
encontram na mesma gaiola,
saudosas das suas florestas e ribeiras”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 313),
mas “ele tinha mulher que lhe trazia o
caldo; ela tinha marido que lhe trazia a
regueifa” (CASTELO BRANCO, 2001,
p. 314). Mesmo após ficarem viúvo
“a mulher do mestre morreu de fome e
o marido de Quitéria morreu de
indigestão” (CASTELO BRANCO,
2001, p. 315)
e se casarem, os dois
não viveram felizes. Quando ele é
libertado, ela começa a estiolar com
saudades dele, envelhece, acaba por
morrer ain
da na cadeia, com o
desgosto da separação; e o alfaiate,
em liberdade, morre também,
tuberculoso.
Nem todas as histórias
contadas por Camilo envolviam
apenas um par de enamorados. Havia
quem mantivesse vários
relacionamentos simultâneos, seja
com outros
presos seja com visitantes,
129
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
corredor principal dos quartos de
Também figura nessa lista a
união desditosa do alfaiate, o senhor
Joaquim, com a mais bela mulher que
passara pelas enxovias da Relação, a
senhora Quitéria. O dois se amaram
“como aves de longes clim
as, que se
encontram na mesma gaiola,
saudosas das suas florestas e ribeiras”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 313),
mas “ele tinha mulher que lhe trazia o
caldo; ela tinha marido que lhe trazia a
regueifa” (CASTELO BRANCO, 2001,
p. 314). Mesmo após ficarem viúvo
s
“a mulher do mestre morreu de fome e
o marido de Quitéria morreu de
indigestão” (CASTELO BRANCO,
e se casarem, os dois
não viveram felizes. Quando ele é
libertado, ela começa a estiolar com
saudades dele, envelhece, acaba por
da na cadeia, com o
desgosto da separação; e o alfaiate,
em liberdade, morre também,
Nem todas as histórias
contadas por Camilo envolviam
apenas um par de enamorados. Havia
quem mantivesse vários
relacionamentos simultâneos, seja
presos seja com visitantes,
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
como a enfermeira Benedita, que
nunca conseguira ser de um único
homem, presa sob a acusação de ter
instigado o amante a matar o marido, e
sustentava correspondência com
vários presos; e também José
Bernardino Tavares, que rece
“amiudadas visitas de valentes e
atoicinhadas mocetonas” (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 189), tantas, que a
volumosa atenção despendida ao
rapaz parece ter despertado
remordimentos no escritor, que, com
muito humor, diz o entender o
motivo das lamúrias do
encarcerado:
Raro homem se terá gabado de
prender às grades de uma cadeia os
corações leais das mulheres, que o
amaram nos dias fortunosos! Agora,
era uma que lhe trazia um cesto de
ovos; logo, outra com um açafate de
regueifas; depois, outra mais g
com uma cambada de chouriços; e,
afinal, a mais estremecida, que lhe
administrava a casa, e pejava o
quarto de mimos da lavoira. E nem
assim estava contente o Sr. José
Bernardino Tavares! (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 189).
Outros estimavam companhias
be
m mais singelas e bem menos
ardentes, como a de animais de
estimação. Camilo diz ter abrigado em
sua cela uma avezinha chamada
Viúva:
Tinha sido de Álvaro Ramos, que
morrera delegado em Moçambique.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
como a enfermeira Benedita, que
nunca conseguira ser de um único
homem, presa sob a acusação de ter
instigado o amante a matar o marido, e
sustentava correspondência com
vários presos; e também José
Bernardino Tavares, que rece
bia
“amiudadas visitas de valentes e
atoicinhadas mocetonas” (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 189), tantas, que a
volumosa atenção despendida ao
rapaz parece ter despertado
remordimentos no escritor, que, com
muito humor, diz o entender o
motivo das lamúrias do
rapaz
Raro homem se terá gabado de
prender às grades de uma cadeia os
corações leais das mulheres, que o
amaram nos dias fortunosos! Agora,
era uma que lhe trazia um cesto de
ovos; logo, outra com um açafate de
regueifas; depois, outra mais g
uapa
com uma cambada de chouriços; e,
afinal, a mais estremecida, que lhe
administrava a casa, e pejava o
quarto de mimos da lavoira. E nem
assim estava contente o Sr. José
Bernardino Tavares! (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 189).
Outros estimavam companhias
m mais singelas e bem menos
ardentes, como a de animais de
estimação. Camilo diz ter abrigado em
sua cela uma avezinha chamada
Tinha sido de Álvaro Ramos, que
morrera delegado em Moçambique.
O meu primeiro serviço de todas as
manhãs era cuidar do as
gaiola, e do alimento da avezinha.
Conhecia-
me tanto, que se
deixava afagar.
O cantar da Viúva era um
encadeamento de notas
gemebundas, e deste carpir penso
eu que lhe vem o nome, como quem
a entender que assim se
lastimava a viúva inconsoláv
ela a minha companhia de um ano.
Direi bastante quanto lhe queria,
contando com infantil ingenuidade
que me doía a ideia de que
alguma vez havia de morrer a minha
amiga (CASTELO BRANCO, 2001,
p. 101).
Como o autor, José Coutinho
também se
dividia entre dois amores,
mas nenhum deles era uma mulher. O
falsário nutria uma paixão irremediável
e irresistível pelo próprio engenho, a
ponto de não conseguir viver sem
exercê-lo:
A arte era o meu amor, amor único
de toda a minha vida, amor que
devia perder-
me, como todos
quantos senhoreiam e alienam o
homem. Não era, porém, a arte do
ourives que me enlevava. Acanhado
me parecia o espaço para afoitezas
do talento que me abrasava, e
deixe-
me este pobre orgulho
queimava a vida com o fogo que ele
n
ão podia converter em clarões de
sua glória.
Dediquei-
me clandestinamente à
gravura. Dois anos consumi em
ensaios para levar à perfeição os
cunhos do papel selado (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 117).
Coutinho se dedicara com fervor
e, ao longo de sua carreir
especializou nas mais diversas formas
de expressões de sua “arte”, falsificou
130
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
O meu primeiro serviço de todas as
manhãs era cuidar do as
seio da
gaiola, e do alimento da avezinha.
me tanto, que se
O cantar da Viúva era um
encadeamento de notas
gemebundas, e deste carpir penso
eu que lhe vem o nome, como quem
a entender que assim se
lastimava a viúva inconsoláv
el. Foi
ela a minha companhia de um ano.
Direi bastante quanto lhe queria,
contando com infantil ingenuidade
que me doía a ideia de que
alguma vez havia de morrer a minha
amiga (CASTELO BRANCO, 2001,
Como o autor, José Coutinho
dividia entre dois amores,
mas nenhum deles era uma mulher. O
falsário nutria uma paixão irremediável
e irresistível pelo próprio engenho, a
ponto de não conseguir viver sem
A arte era o meu amor, amor único
de toda a minha vida, amor que
me, como todos
quantos senhoreiam e alienam o
homem. Não era, porém, a arte do
ourives que me enlevava. Acanhado
me parecia o espaço para afoitezas
do talento que me abrasava, e
me este pobre orgulho
– me
queimava a vida com o fogo que ele
ão podia converter em clarões de
me clandestinamente à
gravura. Dois anos consumi em
ensaios para levar à perfeição os
cunhos do papel selado (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 117).
Coutinho se dedicara com fervor
e, ao longo de sua carreir
a, se
especializou nas mais diversas formas
de expressões de sua “arte”, falsificou
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
rapé, papel selado, assinaturas e
moedas de ouro. José Coutinho
acabou morrendo por seu amor. Ele foi
apanhado e condenado a cumprir uma
pena longa na Cadeia da Relação, de
onde só saiu morto.
Nos tempos de detenção,
curiosamente, a falsificação dividia a
atenção do preso com uma também
peculiar rival. O “moedeiro falso”
conservou, até ao fim da vida, uma
amiga leal, a cadelinha Minerva.
Porém, o dócil e amoroso animal
també
m acabou pagando o preço de
viver naquele terrível lugar,
demonstrando que, na cadeia, nada e
ninguém estava a salvo da violência,
nem mesmo as formas mais inocentes
de vida. Um chaveiro de natureza ruim
achou por bem torturar a indefesa
cadelinha galga, tornando-
a cega.
Antes de figurar no rol dos
proscritos das Memórias do Cárcere, a
comovente e angustiante história do
Sr. Coutinho e de sua companheira
Minerva havia sido trazida a lume
nas páginas d’
O Nacional
veiculação da história, sem informar
co
m precisão o nome do malfazejo
funcionário que tinha prazer em ferir
animais, parece ter mexido com os
brios do chaveiro da Cadeia da
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
rapé, papel selado, assinaturas e
moedas de ouro. José Coutinho
acabou morrendo por seu amor. Ele foi
apanhado e condenado a cumprir uma
pena longa na Cadeia da Relação, de
Nos tempos de detenção,
curiosamente, a falsificação dividia a
atenção do preso com uma também
peculiar rival. O “moedeiro falso”
conservou, até ao fim da vida, uma
amiga leal, a cadelinha Minerva.
Porém, o dócil e amoroso animal
m acabou pagando o preço de
viver naquele terrível lugar,
demonstrando que, na cadeia, nada e
ninguém estava a salvo da violência,
nem mesmo as formas mais inocentes
de vida. Um chaveiro de natureza ruim
achou por bem torturar a indefesa
a cega.
Antes de figurar no rol dos
proscritos das Memórias do Cárcere, a
comovente e angustiante história do
Sr. Coutinho e de sua companheira
Minerva havia sido trazida a lume
O Nacional
. A
veiculação da história, sem informar
m precisão o nome do malfazejo
funcionário que tinha prazer em ferir
animais, parece ter mexido com os
brios do chaveiro da Cadeia da
Relação da época, que, de pronto,
teria exigido uma retratação. Em
poucos dias, o desgravo também foi
publicado nesse mesm
As desventuras da cadela galga
e seu dono presidiário teriam chegado
ao Rio de Janeiro. Machado de Assis
parece ter criado a sua Miss Dollar,
personagem do texto homônimo que
faz parte integrante dos Contos
Fluminenses, a imagem e semelhança
d
a Minerva retratada por Camilo,
conforme aponta Josué Montello:
O começo da narrativa dá ideia do
contista seguro, senhor da novidade
e guarda em si um indiscutível eco
de leitura camiliana
Memórias do cárcere, no capítulo em
que o memoria
medianeira que o aproximou de um
preso, António José Coutinho,
alojado em quarto fronteiro ao na
cadeia da Relação do Porto (1998, p.
68).
Estas histórias de homens e de
mulheres marcados, não tanto pela
astúcia e pela maldade, mas pela
fata
lidade e pela miséria também,
mostram que os delinquentes eram
capazes de amar, de se apiedar, de se
arrepender, de sofrer e até de se
sacrificar pelos outros. Desta maneira,
Camilo comprova que existia mesmo
uma “porção incorrupta em cada uma
das almas” (
CASTELO BRANCO,
2001, p. 364) que deixou bosquejada.
131
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)
Relação da época, que, de pronto,
teria exigido uma retratação. Em
poucos dias, o desgravo também foi
publicado nesse mesm
o periódico.
As desventuras da cadela galga
e seu dono presidiário teriam chegado
ao Rio de Janeiro. Machado de Assis
parece ter criado a sua Miss Dollar,
personagem do texto homônimo que
faz parte integrante dos Contos
Fluminenses, a imagem e semelhança
a Minerva retratada por Camilo,
conforme aponta Josué Montello:
O começo da narrativa dá ideia do
contista seguro, senhor da novidade
e guarda em si um indiscutível eco
de leitura camiliana
da leitura das
Memórias do cárcere, no capítulo em
que o memoria
lista fala da
medianeira que o aproximou de um
preso, António José Coutinho,
alojado em quarto fronteiro ao na
cadeia da Relação do Porto (1998, p.
Estas histórias de homens e de
mulheres marcados, não tanto pela
astúcia e pela maldade, mas pela
lidade e pela miséria também,
mostram que os delinquentes eram
capazes de amar, de se apiedar, de se
arrepender, de sofrer e até de se
sacrificar pelos outros. Desta maneira,
Camilo comprova que existia mesmo
uma “porção incorrupta em cada uma
CASTELO BRANCO,
2001, p. 364) que deixou bosquejada.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
E, ao evidenciar as causas sociais de
vários daqueles crimes, o escritor
parece desculpar e mesmo valorizar
certos comportamentos
transgressivos, chegando ao ponto de
transformar bandoleiros em heróis do
povo, como no caso do seu amigo e
protetor, o conhecido José do Telhado.
As várias menções às façanhas
do “condecorado sargento da Junta” e,
sobretudo, o capítulo XXVI, totalmente
dedicado ao bandoleiro, são
perpassados por expressões
valorativas e image
ns simbólicas
empregadas de forma a persuadir o
leitor de que o desamparado e
endividado ex-
militar, tornado caudilho
de uma violenta malta pela total falta
de recursos, era, na verdade, um
justiceiro revolucionário, que,
propositadamente, infringira as le
ricos para socorrer quem, em
desespero, carecida do mínimo à
sobrevivência.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
E, ao evidenciar as causas sociais de
vários daqueles crimes, o escritor
parece desculpar e mesmo valorizar
certos comportamentos
transgressivos, chegando ao ponto de
transformar bandoleiros em heróis do
povo, como no caso do seu amigo e
protetor, o conhecido José do Telhado.
As várias menções às façanhas
do “condecorado sargento da Junta” e,
sobretudo, o capítulo XXVI, totalmente
dedicado ao bandoleiro, são
perpassados por expressões
ns simbólicas
empregadas de forma a persuadir o
leitor de que o desamparado e
militar, tornado caudilho
de uma violenta malta pela total falta
de recursos, era, na verdade, um
justiceiro revolucionário, que,
propositadamente, infringira as le
is dos
ricos para socorrer quem, em
desespero, carecida do mínimo à
Apesar de ser qualificado como
criminoso e homicida, nas Memórias
de Camilo, Jo do Telhado surge
agigantado e quase imbatível, senhor
das rédeas do seu destino e capaz de
mudar os dos outros. O capitão dos
bandidos é retratado como um íntegro
combatente que, já na aldeia e nos
campos de batalha, escolhera proteger
os mais necessitados: “José do
Telhado era querido dos seus vizinhos,
porque aos ricos nada pedia, e aos
pobre
s dava os sobejos da sua renda
e do seu trabalho de castrador”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 332).
Mais: “Entrou José do Telhado ao
serviço da Junta na arma de cavalaria
[...]. Repartia do seu dinheiro com os
camaradas carecidos, e recebia as
migalhas do cofre
da Junta para valer
aos que de sua casa nada tinham”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 333).
132
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Apesar de ser qualificado como
criminoso e homicida, nas Memórias
de Camilo, Jo do Telhado surge
agigantado e quase imbatível, senhor
das rédeas do seu destino e capaz de
mudar os dos outros. O capitão dos
bandidos é retratado como um íntegro
combatente que, já na aldeia e nos
campos de batalha, escolhera proteger
os mais necessitados: “José do
Telhado era querido dos seus vizinhos,
porque aos ricos nada pedia, e aos
s dava os sobejos da sua renda
e do seu trabalho de castrador”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 332).
Mais: “Entrou José do Telhado ao
serviço da Junta na arma de cavalaria
[...]. Repartia do seu dinheiro com os
camaradas carecidos, e recebia as
da Junta para valer
aos que de sua casa nada tinham”
(CASTELO BRANCO, 2001, p. 333).
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
Figura
Inconformado com a fome e
com a pobreza, José do telhado
preteria os interesses pessoais e se
arriscava com bravura na luta contra
as enormes assimetrias sociais,
sempre tentando evitar o uso
extremado da violên
cia física e
demonstrando com frequência o seu
lado cavalheiresco e galanteador. Era
um homem vaidoso, cortês com as
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
6 – Joaquim do Telhado e José de Telhado
Fonte: MOUTINHO, 2009, p. 171.
Inconformado com a fome e
com a pobreza, José do telhado
preteria os interesses pessoais e se
arriscava com bravura na luta contra
as enormes assimetrias sociais,
sempre tentando evitar o uso
cia física e
demonstrando com frequência o seu
lado cavalheiresco e galanteador. Era
um homem vaidoso, cortês com as
damas e que não permitia a violação
de mulheres.
Nas ginas da obra camiliana,
o salteador, nas ações de seu bando,
sempre se esforçava pa
instinto sanguinário de seus
comparsas, tentando convencer as
suas vítimas a colaborarem com os
assaltos e, no final, ainda saía
beijando as mãos das mulheres e
133
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
damas e que não permitia a violação
Nas ginas da obra camiliana,
o salteador, nas ações de seu bando,
sempre se esforçava pa
ra refrear o
instinto sanguinário de seus
comparsas, tentando convencer as
suas vítimas a colaborarem com os
assaltos e, no final, ainda saía
beijando as mãos das mulheres e
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
fazendo elogios à beleza feminina:
“José Teixeira folgava de entremeter
incidentes
cómicos nas suas
assaltadas. A uma dama de
Carrapatelo dera ele um beijo na
despedida” (CASTELO BRANCO,
2001, p. 339).
Até na cadeia e de posse de
bem pouco dinheiro, o “repartidor
público” se sentia na obrigação de
atender a quem a ele recorria:
José Tei
xeira entrou para a Relação
com seiscentos mil réis. Deu largas
ao seu antigo prazer de esmolar
necessitados, e em volta dele todos
o eram. Alimentou e vestiu o
parricida Mendes, seu secretário,
advogado e particular amigo. Às
levas de degredados distribuí
grandes esmolas; e presos
indigentes de outras repartições da
Relação acharam sempre nele a
ardente caridade que seria a glória e
o céu dum justo (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 343).
E, além da ajuda financeira,
movido por um princípio de integridade
e justi
ça, o bandoleiro tomava para si
as ofensas e as ameaças dos que
considerava seus iguais, tal como teria
feito com o próprio autor de Memórias:
Uma vez comuniquei a José Teixeira
do Telhado as minhas suspeitas, e
este me disse:
Esteja descansado. Se algu
aqui tentasse contra a sua vida, três
dias e três noites não chegariam
para enterrar os mortos.
Pacifiquei-
me com este programa de
José do Telhado. Não o achei
exagerado nem impraticável, nem
despido de interesse dramático. É
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
fazendo elogios à beleza feminina:
“José Teixeira folgava de entremeter
cómicos nas suas
assaltadas. A uma dama de
Carrapatelo dera ele um beijo na
despedida” (CASTELO BRANCO,
Até na cadeia e de posse de
bem pouco dinheiro, o “repartidor
público” se sentia na obrigação de
atender a quem a ele recorria:
xeira entrou para a Relação
com seiscentos mil réis. Deu largas
ao seu antigo prazer de esmolar
necessitados, e em volta dele todos
o eram. Alimentou e vestiu o
parricida Mendes, seu secretário,
advogado e particular amigo. Às
levas de degredados distribuí
a
grandes esmolas; e presos
indigentes de outras repartições da
Relação acharam sempre nele a
ardente caridade que seria a glória e
o céu dum justo (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 343).
E, além da ajuda financeira,
movido por um princípio de integridade
ça, o bandoleiro tomava para si
as ofensas e as ameaças dos que
considerava seus iguais, tal como teria
feito com o próprio autor de Memórias:
Uma vez comuniquei a José Teixeira
do Telhado as minhas suspeitas, e
Esteja descansado. Se algu
ém
aqui tentasse contra a sua vida, três
dias e três noites não chegariam
para enterrar os mortos.
me com este programa de
José do Telhado. Não o achei
exagerado nem impraticável, nem
despido de interesse dramático. É
certo que, daquele dia em
escurecer, José Teixeira andava
sempre passeando nas proximidades
do meu quarto (CASTELO BRANCO,
2001, p. 272-
273).
O narrador ainda aponta que
José do Telhado era um bom marido e
um bom pai. O ex-
lanceiro da Rainha é
retratado como um homem am
preocupado com o bem
seus: “raríssima era a noite que ele
faltava em casa. Quando mais não
fosse, beijava os filhos mais novos,
tranquilizava a mulher, e ia pernoitar
nas lapas conhecidas na serra, ou a
casa de dedicados amigos”
(CASTELO
BRANCO, 2001, p. 338).
Em vista disto, é possível
salientar que, no processo de
ficcionalização do salteador minhoto,
Camilo valorizou a dimensão social do
cavalheiro honrado e do herói fora
lei ressaltando ideais com raízes
profundas na memória e na id
cultural europeia.
A personagem construída por
Camilo unia os mais altos valores dos
cavaleiros medievais e as melhores
qualidades do lendário Robin dos
Bosques, eternizando o controverso
salteador como um defensor dos
direitos do povo.
134
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
certo que, daquele dia em
diante, ao
escurecer, José Teixeira andava
sempre passeando nas proximidades
do meu quarto (CASTELO BRANCO,
273).
O narrador ainda aponta que
José do Telhado era um bom marido e
lanceiro da Rainha é
retratado como um homem am
oroso e
preocupado com o bem
-estar dos
seus: “raríssima era a noite que ele
faltava em casa. Quando mais não
fosse, beijava os filhos mais novos,
tranquilizava a mulher, e ia pernoitar
nas lapas conhecidas na serra, ou a
casa de dedicados amigos”
BRANCO, 2001, p. 338).
Em vista disto, é possível
salientar que, no processo de
ficcionalização do salteador minhoto,
Camilo valorizou a dimensão social do
cavalheiro honrado e do herói fora
-da-
lei ressaltando ideais com raízes
profundas na memória e na id
entidade
A personagem construída por
Camilo unia os mais altos valores dos
cavaleiros medievais e as melhores
qualidades do lendário Robin dos
Bosques, eternizando o controverso
salteador como um defensor dos
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
A compar
ação posta pelo
escritor ainda ressalvava, de forma
explícita, a conformação apequenada
da sua nação frente a outros países
europeus, sobretudo a Itália,
conhecidas pelo seu banditismo, com
efeito de valorizar ainda mais a
imagem de José do Telhado como
fi
gura que extrapolaria as condições
de sua própria pátria:
Este nosso Portugal é um país em
que nem pode ser-
se salteador de
fama, de estrondo, de feroz
sublimidade! Tudo aqui é pequeno:
nem os ladrões chegam à craveira
dos ladrões dos outros países!
Todas
as vocações morrem de
garrote; quando se manifestam e
apontam a extraordinários destinos.
A Calábria é um desprezado retalho
do mundo; mas tem dado
salteadores de renome. Toda aquela
Itália, tão rica, tão fértil de pintores,
escultores, maestros, cantores,
bailarinas, até em produzir
quadrilhas de ladrões a bafejou o
seu bom génio! corre um grosso
livro intitulado Salteadores Célebres
de Itália. É ver como debaixo
daquele céu es abalizada em alto
ponto a graduação das vocações.
Tudo grande, tudo magníf
fadado a viver com os vindouros, e a
prelibar os deleites da sua
imortalidade (CASTELO BRANCO,
2001, p. 329).
Não por acaso, Jacinto do
Prado Coelho aponta que “o José do
Telhado camiliano tem aspetos épicos,
magníficos, de novela de capa e
espada” (CASTELO BRANCO, 2001,
p. 57). Como o próprio estudioso
aponta, há claras diferenças entre a
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ação posta pelo
escritor ainda ressalvava, de forma
explícita, a conformação apequenada
da sua nação frente a outros países
europeus, sobretudo a Itália,
conhecidas pelo seu banditismo, com
efeito de valorizar ainda mais a
imagem de José do Telhado como
gura que extrapolaria as condições
Este nosso Portugal é um país em
se salteador de
fama, de estrondo, de feroz
sublimidade! Tudo aqui é pequeno:
nem os ladrões chegam à craveira
dos ladrões dos outros países!
as vocações morrem de
garrote; quando se manifestam e
apontam a extraordinários destinos.
A Calábria é um desprezado retalho
do mundo; mas tem dado
salteadores de renome. Toda aquela
Itália, tão rica, tão fértil de pintores,
escultores, maestros, cantores,
bailarinas, até em produzir
quadrilhas de ladrões a bafejou o
seu bom génio! corre um grosso
livro intitulado Salteadores Célebres
de Itália. É ver como debaixo
daquele céu es abalizada em alto
ponto a graduação das vocações.
Tudo grande, tudo magníf
ico, tudo
fadado a viver com os vindouros, e a
prelibar os deleites da sua
imortalidade (CASTELO BRANCO,
Não por acaso, Jacinto do
Prado Coelho aponta que “o José do
Telhado camiliano tem aspetos épicos,
magníficos, de novela de capa e
espada” (CASTELO BRANCO, 2001,
p. 57). Como o próprio estudioso
aponta, há claras diferenças entre a
personagem esculpida pel
habilidoso prosador e a biografia do
bandido minhoto verificada nos autos
judiciais e nas notícias da imprensa.
Ao mostrar os efeitos do
encarceramento sobre o valente
salteador, no desfecho do capítulo, o
Camilo denuncia que aquelas
circunstâ
ncias eram capazes de
aniquilar e vencer até mesmo os mais
fortes. Após passar por várias sanções
disciplinadoras, incluindo uma
passagem pela solitária, sem comida,
sem água e sem luz, José do Telhado
aparece abatido, humilhado e
impotente, chegando a man
segundo o narrador, “um desejo
sincero de morrer” (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 345).
A história do bandido
agradou tanto ao público burguês
ávido por aventuras e peripécias
romanescas quanto às parcelas mais
baixas da população, que, ao tomarem
conhecimento das ações do bandoleiro
talvez tenham se sentido um pouco
vingadas. Tal popularidade garantiu
que textos em torno da figura do José
do Telhado continuassem a ser
escritos e difundidos. Parte desta
produção é constituída por edições
autônomas
do capítulo da obra
135
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
personagem esculpida pel
o cinzel do
habilidoso prosador e a biografia do
bandido minhoto verificada nos autos
judiciais e nas notícias da imprensa.
Ao mostrar os efeitos do
encarceramento sobre o valente
salteador, no desfecho do capítulo, o
Camilo denuncia que aquelas
ncias eram capazes de
aniquilar e vencer até mesmo os mais
fortes. Após passar por várias sanções
disciplinadoras, incluindo uma
passagem pela solitária, sem comida,
sem água e sem luz, José do Telhado
aparece abatido, humilhado e
impotente, chegando a man
ifestar,
segundo o narrador, “um desejo
sincero de morrer” (CASTELO
BRANCO, 2001, p. 345).
A história do bandido
-herói
agradou tanto ao público burguês
ávido por aventuras e peripécias
romanescas quanto às parcelas mais
baixas da população, que, ao tomarem
conhecimento das ações do bandoleiro
talvez tenham se sentido um pouco
vingadas. Tal popularidade garantiu
que textos em torno da figura do José
do Telhado continuassem a ser
escritos e difundidos. Parte desta
produção é constituída por edições
do capítulo da obra
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
camiliana sobre o bandido, como
do José do Telhado, Extrahida das
Memorias do Carcere
Confissão Sincera e Completa da Vida
e Crimes de José do Telhado
Extrahida das Memorias do Carcere de
Camillo Castello Branco
(s./d.);
parte é formada pela obra de outros
escritores, como
A Vida do José do
Telhado
(1874), de Rafael Augusto de
Sousa.
Não era comum que criminosos
fossem vistos e tratados como heróis
pelo povo. Aqueles que tinham a sorte
de sobreviver às agruras do
reaver o direto à liberdade eram
obrigados a conviver com pelo menos
mais um estigma. O fato de ser um
egresso do sistema penitenciário era
um outro grande fator de exclusão do
meio social e do mercado de trabalho,
deixando os “ex-
detentos” sem
p
erspectivas reais de subsistência,
vendo o crime novamente como a
forma mais provável de sobrevivência,
corroborando com as afirmações das
correntes científicas da época que,
desconsiderando as causas sociais,
entendiam a reincidência como uma
evidência de
que o crime era
relacionado a questões biológicas e
hereditárias.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
camiliana sobre o bandido, como
Vida
do José do Telhado, Extrahida das
(1864) e
Confissão Sincera e Completa da Vida
e Crimes de José do Telhado
-
Extrahida das Memorias do Carcere de
(s./d.);
a outra
parte é formada pela obra de outros
A Vida do José do
(1874), de Rafael Augusto de
Não era comum que criminosos
fossem vistos e tratados como heróis
pelo povo. Aqueles que tinham a sorte
de sobreviver às agruras do
cárcere e
reaver o direto à liberdade eram
obrigados a conviver com pelo menos
mais um estigma. O fato de ser um
egresso do sistema penitenciário era
um outro grande fator de exclusão do
meio social e do mercado de trabalho,
detentos” sem
erspectivas reais de subsistência,
vendo o crime novamente como a
forma mais provável de sobrevivência,
corroborando com as afirmações das
correntes científicas da época que,
desconsiderando as causas sociais,
entendiam a reincidência como uma
que o crime era
relacionado a questões biológicas e
Deste modo, vale a pena
ressaltar que, sentindo na pele todas
as penalidades infligidas àqueles que
não se encaixavam no padrão, Camilo,
ao ser preso como corréu na querela
movida por Pinhe
iro Alves, também
precisou empunhar em sua defesa as
mesmas armas empregadas para
aniquilar publicamente os criminosos.
O escritor, contando com a
ajuda de amigos respeitados e
letrados, moveu, através da imprensa
periódica e de sua própria literatura,
um
a campanha erguida sobre a ideia
de que o adultério, considerado pelo
senso comum da época crime de
natureza moral, deveria na verdade
ser visto como consequência dos
casamentos baseados em
conveniências financeiras, verdadeiros
negócios entre homens, em q
mulher entrava como mercadoria,
comércio frio que excluía totalmente o
amor.
Um dos grandes pilares dessa
empreitada literária movida por
Camilo, composta por textos
importantes como o
Homem Rico e
Amor de Perdição
Memórias do Cárcere
a sorte de criminosos, Camilo
comprova que o seu lugar não era
136
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Deste modo, vale a pena
ressaltar que, sentindo na pele todas
as penalidades infligidas àqueles que
não se encaixavam no padrão, Camilo,
ao ser preso como corréu na querela
iro Alves, também
precisou empunhar em sua defesa as
mesmas armas empregadas para
aniquilar publicamente os criminosos.
O escritor, contando com a
ajuda de amigos respeitados e
letrados, moveu, através da imprensa
periódica e de sua própria literatura,
a campanha erguida sobre a ideia
de que o adultério, considerado pelo
senso comum da época crime de
natureza moral, deveria na verdade
ser visto como consequência dos
casamentos baseados em
conveniências financeiras, verdadeiros
negócios entre homens, em q
ue a
mulher entrava como mercadoria,
comércio frio que excluía totalmente o
Um dos grandes pilares dessa
empreitada literária movida por
Camilo, composta por textos
importantes como o
Romance dum
Amor de Perdição
, é
Memórias do Cárcere
. Diante de toda
a sorte de criminosos, Camilo
comprova que o seu lugar não era
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
definitivamente o rcere e que o seu
destino não poderia ser o degredo,
pois, diversamente de muitos dos seus
vizinhos de cela, ele não havia
cometido qualquer ato de violência
mesmo tempo em que se defende, o
escritor denuncia a realidade penal e
jurídica do seu país, mostrando que as
bárbaras condições do
encarceramento não podiam regenerar
e nem educar ninguém e que muitos
daqueles prisioneiros eram na verdade
vítimas de
um sistema socioeconômico
cruel, frio e utilitarista.
A imagem de transgressor
apaixonado, de eloquente defensor
dos injustiçados e de profundo
conhecedor dos tormentos enfrentados
pelas almas indóceis e insubmissas
difundida pelo próprio escritor nesse
mo
mento tão conturbado de sua vida
foi tão bem urdida e retrabalhada ao
longo de sua vasta obra, que ele
acabou sendo chamado a participar da
defesa de outros célebres “criminosos
da vida real”: Viera de Castro e
Marinho da Cruz.
O primeiro réu era um amigo
Camilo, e o escritor fez tudo ao seu
alcance para ajudá-
lo, inclusive
publicou textos inspirados no
acontecido, alegando que qualquer
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
definitivamente o rcere e que o seu
destino não poderia ser o degredo,
pois, diversamente de muitos dos seus
vizinhos de cela, ele não havia
cometido qualquer ato de violência
. Ao
mesmo tempo em que se defende, o
escritor denuncia a realidade penal e
jurídica do seu país, mostrando que as
bárbaras condições do
encarceramento não podiam regenerar
e nem educar ninguém e que muitos
daqueles prisioneiros eram na verdade
um sistema socioeconômico
A imagem de transgressor
apaixonado, de eloquente defensor
dos injustiçados e de profundo
conhecedor dos tormentos enfrentados
pelas almas indóceis e insubmissas
difundida pelo próprio escritor nesse
mento tão conturbado de sua vida
foi tão bem urdida e retrabalhada ao
longo de sua vasta obra, que ele
acabou sendo chamado a participar da
defesa de outros célebres “criminosos
da vida real”: Viera de Castro e
O primeiro réu era um amigo
de
Camilo, e o escritor fez tudo ao seu
lo, inclusive
publicou textos inspirados no
acontecido, alegando que qualquer
um, sem exceção, podia sucumbir
frente ao desespero. Os esforços de
Camilo, neste sentido, foram, no
entanto, em vão.
Vieira de Castro não
quis se valer da única brecha legal
alegação de “insanidade mental
temporária” –
que poderia garantir a
sua absolvição do assassinato de
Claudina, sua mulher, surpreendida
em um envolvimento afetivo fora do
casamento. Com sede de g
de Castro recusou a estratégia da qual
mesmo Camilo não se dera ao luxo de
abrir mão. Ainda que boa parte da
população o apoiasse, o renomado
orador e político foi condenado e
desterrado para a África.
o segundo homicida se
declarou um de
generado epilético
latente e por pouco seria inocentado
pela justiça militar. Ao contrário de
Viera de Castro, Marinho da Cruz era
desprezado pela opinião pública. Para
aquela sociedade o maior crime do
alferes não fora exatamente o
assassinato, mas sim te
do mesmo sexo como objeto de sua
paixão e da sua loucura. Além disto, a
distância etária e social entre os
amantes foi explorada negativamente
pela imprensa, que a todo momento
insinuava que o alferes teria se valido
137
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
um, sem exceção, podia sucumbir
frente ao desespero. Os esforços de
Camilo, neste sentido, foram, no
Vieira de Castro não
quis se valer da única brecha legal
a
alegação de “insanidade mental
que poderia garantir a
sua absolvição do assassinato de
Claudina, sua mulher, surpreendida
em um envolvimento afetivo fora do
casamento. Com sede de g
lória, Vieira
de Castro recusou a estratégia da qual
mesmo Camilo não se dera ao luxo de
abrir mão. Ainda que boa parte da
população o apoiasse, o renomado
orador e político foi condenado e
desterrado para a África.
o segundo homicida se
generado epilético
latente e por pouco seria inocentado
pela justiça militar. Ao contrário de
Viera de Castro, Marinho da Cruz era
desprezado pela opinião pública. Para
aquela sociedade o maior crime do
alferes não fora exatamente o
assassinato, mas sim te
r uma pessoa
do mesmo sexo como objeto de sua
paixão e da sua loucura. Além disto, a
distância etária e social entre os
amantes foi explorada negativamente
pela imprensa, que a todo momento
insinuava que o alferes teria se valido
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
de Camilo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 113-13
9, out. 2019 a março 2020.
da sua posição para “desen
o jovem e inexperiente cabo.
A comparação entre esses dois
casos comprova que médicos legistas,
psiquiatras e neurologistas,
profundamente inspirados pela teoria
lombrosiana, tinham garantido em
definitivo o seu lugar junto a
magistrados, a juris
tas e a
investigadores nos inquéritos policiais
e nos julgamentos penais.
Se muitos alienados eram
tratados como criminosos, muitos
criminosos se passaram por alienados.
Na prática, ainda demoraria muito para
que os doentes mentais deixassem de
ser oficia
lmente identificados como um
perigo iminente. No final do século XIX
e em boa parte do século XX, ainda se
acreditava que, para garantir a ordem
social e a integridade física dos
próprios “doentes”, o médico tinha o
direito e dever de controlar, excluir e
retirar tais indivíduos do convívio
social.
O mesmo Camilo que ganhou o
pão escrevendo sobre as paixões, as
transgressões e os crimes daqueles
que não conseguiam ou não podiam
se encaixar no padrão social vigente,
se compadeceu e defendeu os seus
companhe
iros de prisão nas Memórias
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
da sua posição para “desen
caminhar”
o jovem e inexperiente cabo.
A comparação entre esses dois
casos comprova que médicos legistas,
psiquiatras e neurologistas,
profundamente inspirados pela teoria
lombrosiana, tinham garantido em
definitivo o seu lugar junto a
tas e a
investigadores nos inquéritos policiais
Se muitos alienados eram
tratados como criminosos, muitos
criminosos se passaram por alienados.
Na prática, ainda demoraria muito para
que os doentes mentais deixassem de
lmente identificados como um
perigo iminente. No final do século XIX
e em boa parte do século XX, ainda se
acreditava que, para garantir a ordem
social e a integridade física dos
próprios “doentes”, o médico tinha o
direito e dever de controlar, excluir e
retirar tais indivíduos do convívio
O mesmo Camilo que ganhou o
pão escrevendo sobre as paixões, as
transgressões e os crimes daqueles
que não conseguiam ou não podiam
se encaixar no padrão social vigente,
se compadeceu e defendeu os seus
iros de prisão nas Memórias
do Cárcere, se compadeceu e
defendeu Vieira de Castro, Marinho da
Cruz,se compadeceu e defendeu
tantos outros padecentes
representados em seus inúmeros
textos.
Ademais, entre fausto e miséria,
sorrisos e lágrimas, amores e
aban
donos, o sofrimento sempre
aparece nas obras de Camilo como a
realidade mais incontroversa do
homem.
Referências
bibliográficas
BASTOS, José Joaquim Gonçalves.
Nacional: Jornal Politico, Commercial,
Industrial e Agricola
Faria
Guimarães, 1854
CASTELO BRANCO, Camilo.
Memórias do Cárcere
A. M. Pereira, 2001.
CASTELO BRANCO, Camilo.
completas.
Volume: XVII. Porto: Lello
& Irmão Editores, 2002.
CASTILHO, António Feliciano de.
Revista Universal Lisbonens
dos Interesses Phisicos, Moraes e
Intelecctuais
. Lisboa: Imprensa da
Gazeta dos Tribunaes, 1846
FOUCAULT, Michel.
nascimento da prisão
Vozes, 1999.
FRIAS, Roberto.
Apontamentos para systematização d
criminalidade
. Porto: Typografia de
Alexandre da Fonseca Vasconcelos,
1880.
138
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
do Cárcere, se compadeceu e
defendeu Vieira de Castro, Marinho da
Cruz,se compadeceu e defendeu
tantos outros padecentes
representados em seus inúmeros
Ademais, entre fausto e miséria,
sorrisos e lágrimas, amores e
donos, o sofrimento sempre
aparece nas obras de Camilo como a
realidade mais incontroversa do
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O
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. Porto: Typ. de
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-1862.
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. Lisboa: Parceria
CASTELO BRANCO, Camilo.
Obras
Volume: XVII. Porto: Lello
& Irmão Editores, 2002.
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. Lisboa: Imprensa da
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-1848.
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Os inimigos de
Machado de Assis.
Rio de janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1998.
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A construção
do discurso da sedução em um jornal
sensacionalista
. São Paulo:
Annablume, 2001.
PERROT, Michelle.
Os excluídos da
história: operários, mulheres e
prisioneiros
. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2010.
PORTUGAL.
Procuradoria Régia, Livro
Copiador de Correspondência com o
Governo
. Porto: Tribunal da Relação
do Porto, 1853-
1895, Lv. 4.
CASTRO, Andreia Alves Monteiro de. Os crimes de verdade: as memórias
Americana de Estudos em
9, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Os inimigos de
Rio de janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1998.
A construção
do discurso da sedução em um jornal
. São Paulo:
Os excluídos da
história: operários, mulheres e
. Rio de Janeiro: Paz e
Procuradoria Régia, Livro
Copiador de Correspondência com o
. Porto: Tribunal da Relação
1895, Lv. 4.
139
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:
urbana em
Contos de Pedro
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40225
Resumo:
Pedro é nome de personagens em diversas obras da literatura brasileira, como
Areia, de Jorge Amado, e
Lira Paulistana
origem em uma classe social pobre e trabalhadora. O professor, tradutor e escritor Rubens
Figueiredo também dedicou boa parte de sua obra ficcional à retratação do cotidiano das vítimas da
injustiça e exc
lusão social, principalmente nas áreas urbanas e suas periferias. Portanto, o objetivo
deste artigo é
examinar os modos pelos quais a violência, seja ela de caráter físico ou oriunda da
desigualdade social, é representada em
publicado em 2010. Críticos e teóricos como Beatriz Resende e Karl Erik Schollhammer veem uma
heterogeneidade na literatura brasileira contemporânea e, dentre suas diversas características, a
urgência em se relacionar com a realidade
analisados aqui, haja vista a necessidade que Rubens Figueiredo mostra ao abordar a realidade
social e urbana.Seja através da perspectiva do Pedro de
onisciente dos narradores dos
homens,cuja exclusão social pode ser percebida por meio de temas como solidão, educação e
escola, violência e desilusão. É através do cotidiano de vida e trabalho precários dos
contos, ou da perspectiva experienciada por Pedro no romance, que o autor, tal como Chico Buarque
na música Pedro Pedreiro, denuncia a opressão da classe trabalhadora brasileira.
Palavras-chave:
Literatura brasileira; Violência, Experiência urb
Los diversos “Pedros”que habitan
Contos de Pedro e
Passageiro do fim do dia,
Resumen:
Pedro es el nombre de los personajes de varias
Capitães de Areia
, de Jorge Amado, y
se originan de una clase social pobre y trabajadora. El profesor, traductor y escritor Rubens
Figueiredo también dedicó gran parte
injusticia y la exclusión social, especialmente en las zonas urbanas y sus periferias. Por lo tanto, el
objetivo de este artículo es examinar las formas en que la violencia, ya sea física
representada en
Contos de Pedro
teóricos como Beatriz Resende y Karl Erik Schollhammer ven una heterogeneidad en la literatura
brasilera contemporánea y, entre sus varias cara
realidad histórica se puede percibir en los cuentos y novela analizados aquí, dada la necesidad que
Rubens Figueiredo muestra al abordar la realidad social y urbana. Ya sea a través de la perspectiva
de Pedro de
Passageiro do fim do dia
estamos delante de jóvenes y adultos, mujeres y hombres, cuya exclusión social se puede percibir a
través de temas como la soledad, la educación y la escuela, violencia
1
Carolina Montebelo Barcelos Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, pela PUC
Brasil. E-
mail: carolinambarcelos@hotmail.com
Texto recebido em 31/12
/2019 e aceito para publicação em
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:
violência, cotidiano e experiência
Contos de Pedro
e Passageiro do fim do dia
, de Rubens Figueiredo
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40225
Carolina Montebelo Barcelos
Pedro é nome de personagens em diversas obras da literatura brasileira, como
Lira Paulistana
, de Mário de Andrade. Em comum, esses Pedros têm a
origem em uma classe social pobre e trabalhadora. O professor, tradutor e escritor Rubens
Figueiredo também dedicou boa parte de sua obra ficcional à retratação do cotidiano das vítimas da
lusão social, principalmente nas áreas urbanas e suas periferias. Portanto, o objetivo
examinar os modos pelos quais a violência, seja ela de caráter físico ou oriunda da
desigualdade social, é representada em
Contos de Pedro, de 2006, e Pas
sageiro do fim do dia,
publicado em 2010. Críticos e teóricos como Beatriz Resende e Karl Erik Schollhammer veem uma
heterogeneidade na literatura brasileira contemporânea e, dentre suas diversas características, a
urgência em se relacionar com a realidade
histórica pode ser percebida nos contos e romance
analisados aqui, haja vista a necessidade que Rubens Figueiredo mostra ao abordar a realidade
social e urbana.Seja através da perspectiva do Pedro de
Passageiro do fim do dia,
Contos de Pedro
, estamos diante de jovens e adultos, mulheres e
homens,cuja exclusão social pode ser percebida por meio de temas como solidão, educação e
escola, violência e desilusão. É através do cotidiano de vida e trabalho precários dos
contos, ou da perspectiva experienciada por Pedro no romance, que o autor, tal como Chico Buarque
na música Pedro Pedreiro, denuncia a opressão da classe trabalhadora brasileira.
Literatura brasileira; Violência, Experiência urb
ana; Rubens Figueiredo
Los diversos “Pedros”que habitan
las
ciudades: violencia, cotidiano y experiencia urbana en
Passageiro do fim do dia,
de Rubens Figueiredo
Pedro es el nombre de los personajes de varias
obras de la
literatur
, de Jorge Amado, y
Lira Paulistana, de Mário de Andrade.
En común, estos Pedros
se originan de una clase social pobre y trabajadora. El profesor, traductor y escritor Rubens
Figueiredo también dedicó gran parte
de sus ficciones a retratar la vida cotidiana de las víctimas de la
injusticia y la exclusión social, especialmente en las zonas urbanas y sus periferias. Por lo tanto, el
objetivo de este artículo es examinar las formas en que la violencia, ya sea física
Contos de Pedro
, 2006, y Passageiros do fim do dia
, publicado en 2010. Críticos y
teóricos como Beatriz Resende y Karl Erik Schollhammer ven una heterogeneidad en la literatura
brasilera contemporánea y, entre sus varias cara
cterísticas, la urgencia de relacionarse con la
realidad histórica se puede percibir en los cuentos y novela analizados aquí, dada la necesidad que
Rubens Figueiredo muestra al abordar la realidad social y urbana. Ya sea a través de la perspectiva
Passageiro do fim do dia
, o la mirada omnisciente del narrador de
estamos delante de jóvenes y adultos, mujeres y hombres, cuya exclusión social se puede percibir a
través de temas como la soledad, la educación y la escuela, violencia
y desilusión. Es a través de la
Carolina Montebelo Barcelos Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, pela PUC
mail: carolinambarcelos@hotmail.com
- http://orcid.org/0000-0002-2644
-
/2019 e aceito para publicação em
07/01/2020.
140
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
violência, cotidiano e experiência
, de Rubens Figueiredo
Carolina Montebelo Barcelos
1
Pedro é nome de personagens em diversas obras da literatura brasileira, como
Capitães de
, de Mário de Andrade. Em comum, esses Pedros têm a
origem em uma classe social pobre e trabalhadora. O professor, tradutor e escritor Rubens
Figueiredo também dedicou boa parte de sua obra ficcional à retratação do cotidiano das vítimas da
lusão social, principalmente nas áreas urbanas e suas periferias. Portanto, o objetivo
examinar os modos pelos quais a violência, seja ela de caráter físico ou oriunda da
sageiro do fim do dia,
publicado em 2010. Críticos e teóricos como Beatriz Resende e Karl Erik Schollhammer veem uma
heterogeneidade na literatura brasileira contemporânea e, dentre suas diversas características, a
histórica pode ser percebida nos contos e romance
analisados aqui, haja vista a necessidade que Rubens Figueiredo mostra ao abordar a realidade
Passageiro do fim do dia,
ou do olhar
, estamos diante de jovens e adultos, mulheres e
homens,cuja exclusão social pode ser percebida por meio de temas como solidão, educação e
escola, violência e desilusão. É através do cotidiano de vida e trabalho precários dos
Pedros dos
contos, ou da perspectiva experienciada por Pedro no romance, que o autor, tal como Chico Buarque
na música Pedro Pedreiro, denuncia a opressão da classe trabalhadora brasileira.
ana; Rubens Figueiredo
.
ciudades: violencia, cotidiano y experiencia urbana en
literatur
abrasilera, como
En común, estos Pedros
se originan de una clase social pobre y trabajadora. El profesor, traductor y escritor Rubens
de sus ficciones a retratar la vida cotidiana de las víctimas de la
injusticia y la exclusión social, especialmente en las zonas urbanas y sus periferias. Por lo tanto, el
objetivo de este artículo es examinar las formas en que la violencia, ya sea física
o social, está
, publicado en 2010. Críticos y
teóricos como Beatriz Resende y Karl Erik Schollhammer ven una heterogeneidad en la literatura
cterísticas, la urgencia de relacionarse con la
realidad histórica se puede percibir en los cuentos y novela analizados aquí, dada la necesidad que
Rubens Figueiredo muestra al abordar la realidad social y urbana. Ya sea a través de la perspectiva
, o la mirada omnisciente del narrador de
Contos de Pedro,
estamos delante de jóvenes y adultos, mujeres y hombres, cuya exclusión social se puede percibir a
y desilusión. Es a través de la
Carolina Montebelo Barcelos Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, pela PUC
-Rio,
-
0704
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
precaria vida cotidiana y el trabajo de Pedros dos cuentos, o la perspectiva que Pedro experimentó,
en la novela, que el autor, como Chico Buarque en la canción Pedro Pedreiro, denuncia la opresión
de la clase trabajadora br
asilera.
Palabras clave:
Literatura brasilera; Violencia; Experiencia urbana; Rubens Figueiredo
The several “Pedros” who
inhabit
Rubens Figueiredo’s
Contos de Pedro
Abstract:
Pedro is the name of characters in several works of Brazilian Literature, such as
de Areia, by Jorge Amado, and
Lira Paulistana
that these Pedros originate from the poor working class. The teacher, translator and writer Rubens
Figueiredo also committed part of his fictional works to the portrayal of the everyday life of the victims
of injustice and social exclusion, especially in urban areas and their outskirts. Thus, the aim of this
article is to examine the ways in which violence, be it physical or deriving from social inequality, is
represented in
Contos de Pedro,
and scholarssuch as Beatriz Resende and Karl Erik Schollhammer see a heterogeneity in
contemporary Brazilian Literature and, amongst its diverse characteristics, the urgency in relating to
the historic re
ality can be noticed in the short stories and novel analyzed here, given the need Rubens
Figueiredo shows when approaching the social and urban reality. Whether it be from
Pedro’s
Passageiro do fim do dia
narrator, we are before young and adults, women and men whose social exclusion can be perceived
by means of themes such as loneliness, education and school, violence and disillusionment. It is
through everyday life and the precarious jobs of the Pe
experienced by Pedro in the novel that the author, just as Chico Buarque did in the song Pedro
Pedreiro, reports the oppression of the Brazilian working class.
Keywords:
Brazilian literature; Violence;
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:violência, cotidiano e
experiência urbana em
Contos de Pedro
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho
tinha uma pedra.
Carlos Drummond e Andrade,
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
precaria vida cotidiana y el trabajo de Pedros dos cuentos, o la perspectiva que Pedro experimentó,
en la novela, que el autor, como Chico Buarque en la canción Pedro Pedreiro, denuncia la opresión
Literatura brasilera; Violencia; Experiencia urbana; Rubens Figueiredo
inhabit
the cities: violence, everyday life and
urban
Contos de Pedro
e Passageiro do fim do dia
Pedro is the name of characters in several works of Brazilian Literature, such as
Lira Paulistana
, by rio de Andrade. What they have in common is
that these Pedros originate from the poor working class. The teacher, translator and writer Rubens
Figueiredo also committed part of his fictional works to the portrayal of the everyday life of the victims
of injustice and social exclusion, especially in urban areas and their outskirts. Thus, the aim of this
article is to examine the ways in which violence, be it physical or deriving from social inequality, is
Contos de Pedro,
from 2006, andPassageiro do fim do dia,
published in 2010. Critics
and scholarssuch as Beatriz Resende and Karl Erik Schollhammer see a heterogeneity in
contemporary Brazilian Literature and, amongst its diverse characteristics, the urgency in relating to
ality can be noticed in the short stories and novel analyzed here, given the need Rubens
Figueiredo shows when approaching the social and urban reality. Whether it be from
Passageiro do fim do dia
perspective or from the omniscient views of
narrator, we are before young and adults, women and men whose social exclusion can be perceived
by means of themes such as loneliness, education and school, violence and disillusionment. It is
through everyday life and the precarious jobs of the Pe
dros in the short stories or from the perspective
experienced by Pedro in the novel that the author, just as Chico Buarque did in the song Pedro
Pedreiro, reports the oppression of the Brazilian working class.
Brazilian literature; Violence;
Urban experience; Rubens Figueiredo.
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:violência, cotidiano e
Contos de Pedro
e
Passageiro do fim do dia
Figueiredo
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do
caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra.
Carlos Drummond e Andrade,
No meio do
caminho, 1928.
Introdução
Pedra, elemento rígido,
fragmento de rocha. No poema de
Drummond, a pedra surge
repetidamente no caminho como
obstáculo a ser superado
cotidianamente, o que é reforçado pela
repetição
“no meio do caminho tinha
uma pedra” -
presente no poema.
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www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
precaria vida cotidiana y el trabajo de Pedros dos cuentos, o la perspectiva que Pedro experimentó,
en la novela, que el autor, como Chico Buarque en la canción Pedro Pedreiro, denuncia la opresión
Literatura brasilera; Violencia; Experiencia urbana; Rubens Figueiredo
.
urban
experience in
Pedro is the name of characters in several works of Brazilian Literature, such as
Capitães
, by rio de Andrade. What they have in common is
that these Pedros originate from the poor working class. The teacher, translator and writer Rubens
Figueiredo also committed part of his fictional works to the portrayal of the everyday life of the victims
of injustice and social exclusion, especially in urban areas and their outskirts. Thus, the aim of this
article is to examine the ways in which violence, be it physical or deriving from social inequality, is
published in 2010. Critics
and scholarssuch as Beatriz Resende and Karl Erik Schollhammer see a heterogeneity in
contemporary Brazilian Literature and, amongst its diverse characteristics, the urgency in relating to
ality can be noticed in the short stories and novel analyzed here, given the need Rubens
Figueiredo shows when approaching the social and urban reality. Whether it be from
perspective or from the omniscient views of
Contos de Pedro’s
narrator, we are before young and adults, women and men whose social exclusion can be perceived
by means of themes such as loneliness, education and school, violence and disillusionment. It is
dros in the short stories or from the perspective
experienced by Pedro in the novel that the author, just as Chico Buarque did in the song Pedro
Os diversos “Pedros” que habitam as cidades:violência, cotidiano e
Passageiro do fim do dia
, de Rubens
Pedra, elemento rígido,
fragmento de rocha. No poema de
Drummond, a pedra surge
repetidamente no caminho como
obstáculo a ser superado
cotidianamente, o que é reforçado pela
“no meio do caminho tinha
presente no poema.
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
Pedro, nome que vem de pedra,
nome aparentemente comum, tem sido
personagem de diversas obras da
literatura brasileira. Em algumas delas,
Pedro faz parte de um estrato social
desprivile
giado do Brasil, aquele para
quem sempre muitas pedras no
caminho. Assim, temos Pedro Bala,
em Capitães de Areia
, de Jorge
Amado, e o personagem folclórico
Pedro Malasartes, herança dos contos
populares da Península Ibérica, que
inspirou filmes, teatro,
circo e óperas,
além da sua semelhança com
Macunaíma, de Mário de Andrade.
O Pedro da
Lira Paulistana
também de Mário de Andrade, não tem
a astúcia e galhardia de Pedro
Malasartes ou de Macunaíma, nem a
coragem e espírito de liderança do
marginalizado P
edro Bala. Também
não tem o elemento destruidor e
exploratório de Venceslau Pietro Pietra
ou Pedro Pedra
,o gigante Piaimã,
antagonista de Macunaíma. No
poema, o Pedro marioandradino
parte de uma classe social pobre, com
uma trajetória de agruras de
nascimento até a morte:
Uma história muito triste
Que nunca ninguém cantou,
A triste história de Pedro,
Que acabou qual principiou
(ANDRADE, 1987).
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Pedro, nome que vem de pedra,
nome aparentemente comum, tem sido
personagem de diversas obras da
literatura brasileira. Em algumas delas,
Pedro faz parte de um estrato social
giado do Brasil, aquele para
quem sempre muitas pedras no
caminho. Assim, temos Pedro Bala,
, de Jorge
Amado, e o personagem folclórico
Pedro Malasartes, herança dos contos
populares da Península Ibérica, que
circo e óperas,
além da sua semelhança com
Macunaíma, de Mário de Andrade.
Lira Paulistana
,
também de Mário de Andrade, não tem
a astúcia e galhardia de Pedro
Malasartes ou de Macunaíma, nem a
coragem e espírito de liderança do
edro Bala. Também
não tem o elemento destruidor e
exploratório de Venceslau Pietro Pietra
,o gigante Piaimã,
antagonista de Macunaíma. No
poema, o Pedro marioandradino
faz
parte de uma classe social pobre, com
uma trajetória de agruras de
sde o
Uma história muito triste
Que nunca ninguém cantou,
A triste história de Pedro,
Que acabou qual principiou
Quando criança,
Pedrinho engatinhou logo
Mas muito tarde falou;
Ninguém falava com ele,
Quando
chorava era surra
E aprendeu a emudecer
(ANDRADE, 1987).
Atrás do quarto alugado onde
morava, ou atrás da escola onde
estudara antes dos pais o tirarem de
lá, havia uma serra que se tornara
para ele um escapismo do árduo
cotidiano:
— Havia de ter,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou
(ANDRADE, 1987).
Na fase adulta, a vida de Pedro
não melhoraria. Ele não veria mais
uma serra que se encontrava atrás da
fábrica onde trabalhava. Sua vida de
trabalhador pobre minou as ilusõe
metaforizadas pela imagem da serra
que tinha quando mais novo. Ele era
apenas mais um Pedro dentre muitos:
Por trás do túmulo dele
Tinha outro túmulo... Igual
(ANDRADE, 1987).
Assim também parece ser o
cotidiano dos diversos Pedros
narrados por Rubens
Contos de Pedro
(nas nove histórias, o
protagonista se chama Pedro) e no
romance
Passageiro do fim do dia
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www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Quando criança,
Pedrinho engatinhou logo
Mas muito tarde falou;
Ninguém falava com ele,
chorava era surra
E aprendeu a emudecer
(ANDRADE, 1987).
Atrás do quarto alugado onde
morava, ou atrás da escola onde
estudara antes dos pais o tirarem de
lá, havia uma serra que se tornara
para ele um escapismo do árduo
decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou
(ANDRADE, 1987).
Na fase adulta, a vida de Pedro
não melhoraria. Ele não veria mais
uma serra que se encontrava atrás da
fábrica onde trabalhava. Sua vida de
trabalhador pobre minou as ilusõe
s
metaforizadas pela imagem da serra
que tinha quando mais novo. Ele era
apenas mais um Pedro dentre muitos:
Por trás do túmulo dele
Tinha outro túmulo... Igual
(ANDRADE, 1987).
Assim também parece ser o
cotidiano dos diversos Pedros
narrados por Rubens
Figueiredo em
(nas nove histórias, o
protagonista se chama Pedro) e no
Passageiro do fim do dia
. Na
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
maioria dos contos e no romance, o
autor procura representar um cotidiano
da classe pobre trabalhadora, jovens e
adultos, mulheres e
homens, onde
exclusão social, violência e solidão
delineiam situações e personagens.
Dessa forma, procura
-
estudo, examinar os modos pelos
quais a violência, seja ela de caráter
físico ou oriunda da desigualdade
social, é representada em
Pedro, de 2006, e
Passageiro do fim
do dia,
publicado em 2010.
Professor de Português,
romancista, contista e tradutor,
Rubens Figueiredo foi premiado
pelos livros
Barco a seco
secretas. Passageiro do fim do dia
contemplado, em agosto
como o melhor livro do ano pelo
Prêmio São Paulo de Literatura
dezembro daquele mesmo ano, pelo
Prêmio Portugal Telecom de
Literatura
. Seus textos têm figurado
em alguns artigos sobre literatura
contemporânea, em coletâneas como
Geração 90:
manuscritos de
computador
, organizado por Nelson de
Oliveira, e
Rio literário: um guia
apaixonado da cidade do Rio de
Janeiro
, organizado por Beatriz
Resende, e receberam fortuna crítica
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
maioria dos contos e no romance, o
autor procura representar um cotidiano
da classe pobre trabalhadora, jovens e
homens, onde
exclusão social, violência e solidão
delineiam situações e personagens.
-
se, neste
estudo, examinar os modos pelos
quais a violência, seja ela de caráter
físico ou oriunda da desigualdade
social, é representada em
Contos de
Passageiro do fim
publicado em 2010.
Professor de Português,
romancista, contista e tradutor,
Rubens Figueiredo foi premiado
Barco a seco
e Palavras
secretas. Passageiro do fim do dia
foi
contemplado, em agosto
de 2011,
como o melhor livro do ano pelo
Prêmio São Paulo de Literatura
, e, em
dezembro daquele mesmo ano, pelo
Prêmio Portugal Telecom de
. Seus textos têm figurado
em alguns artigos sobre literatura
contemporânea, em coletâneas como
manuscritos de
, organizado por Nelson de
Rio literário: um guia
apaixonado da cidade do Rio de
, organizado por Beatriz
Resende, e receberam fortuna crítica
aprofundada por Paulo Roberto Tonani
do Patrocínio em
Os (não) adapt
a experiência urbana na obra de
Rubens Figueiredo
(RESENDE, 2014),
Passageiro do fim do dia, de Rubens
Figueiredo: um olhar sobre o
naturalismo
(CHIARELLI; DEALTRY;
VIDAL, 2013) e
Cidade de lobos: a
representação de territórios marginais
na obra de R
ubens Figueiredo
(PATROCÍNIO, 2016).
Críticos e teóricos da literatura
tais como Beatriz Resende (2008) e
Karl Erik Schollhammer (2009)
acreditam que a literatura brasileira
contemporânea se caracteriza por uma
pluraridade de formas e temas e
identificam
traços marcantes como
narrativas curtas, estruturas
fragmentadas, urgência em se
relacionar com a realidade histórica,
insistência do presente temporal,
presentificação do autor, hibridismos
entre a escrita literária e não
utilização e tecnolo
gias como internet
e blogs. Alguns desses traços podem
ser percebidos na escrita de Rubens
Figueiredo, principalmente a
necessidade que o autor mostra em se
relacionar com a realidade social e
urbana.
143
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
aprofundada por Paulo Roberto Tonani
Os (não) adapt
ados:
a experiência urbana na obra de
(RESENDE, 2014),
Passageiro do fim do dia, de Rubens
Figueiredo: um olhar sobre o
(CHIARELLI; DEALTRY;
Cidade de lobos: a
representação de territórios marginais
ubens Figueiredo
(PATROCÍNIO, 2016).
Críticos e teóricos da literatura
tais como Beatriz Resende (2008) e
Karl Erik Schollhammer (2009)
acreditam que a literatura brasileira
contemporânea se caracteriza por uma
pluraridade de formas e temas e
traços marcantes como
narrativas curtas, estruturas
fragmentadas, urgência em se
relacionar com a realidade histórica,
insistência do presente temporal,
presentificação do autor, hibridismos
entre a escrita literária e não
-literária e
gias como internet
e blogs. Alguns desses traços podem
ser percebidos na escrita de Rubens
Figueiredo, principalmente a
necessidade que o autor mostra em se
relacionar com a realidade social e
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
Karl Erik Schollhammer (2009)
percebe nos escritores ma
uma busca pela reinvenção de formas
históricas do realismo ao lidarem com
questões como crime, violência,
corrupção e miséria. Um traço comum
a esses escritores seria, segundo
Schollhammer, a demanda de
presença que, contudo, se apresenta
de forma variada:
para alguns
Marcelino Freire, Luiz
Ruffato, Marçal Aquino, Nelson de
Oliveira, Fernando Bonassi, entre
outros -
, se evidencia na perspectiva
de uma invenção do realismo, à
procura de um impacto numa
determinada realidade social, ou na
busca
de se refazer a relação de
responsabilidade e solidariedade
com os problemas sociais e culturais
de seu tempo. Para outros
Figueiredo, Adriana Lisboa, Michel
Laub e João Anzanello
evocar e lidar com a presença torna
se sinônimo de
consciência subjetiva
e de uma aproximação literária ao
mais cotidiano, autobiográfico e
banal, o estofo material da vida
ordinária em seus detalhes mínimos
(SCHOLLHAMMER,
2009, p. 15).
No entanto, o crítico não
uma polarização entre essas duas
vertent
es, ao postular que “A literatura
que hoje trata dos problemas sociais
não exclui a dimensão pessoal e
íntima, privilegiando apenas a
realidade exterior; o escritor que opta
por ressaltar a experiência subjetiva
não ignora a turbulência do contexto
social
e histórico” (SCHOLLHAMMER,
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Karl Erik Schollhammer (2009)
percebe nos escritores ma
is recentes
uma busca pela reinvenção de formas
históricas do realismo ao lidarem com
questões como crime, violência,
corrupção e miséria. Um traço comum
a esses escritores seria, segundo
Schollhammer, a demanda de
presença que, contudo, se apresenta
Marcelino Freire, Luiz
Ruffato, Marçal Aquino, Nelson de
Oliveira, Fernando Bonassi, entre
, se evidencia na perspectiva
de uma invenção do realismo, à
procura de um impacto numa
determinada realidade social, ou na
de se refazer a relação de
responsabilidade e solidariedade
com os problemas sociais e culturais
de seu tempo. Para outros
Rubens
Figueiredo, Adriana Lisboa, Michel
Laub e João Anzanello
Carrascoza- ,
evocar e lidar com a presença torna
-
consciência subjetiva
e de uma aproximação literária ao
mais cotidiano, autobiográfico e
banal, o estofo material da vida
ordinária em seus detalhes mínimos
2009, p. 15).
No entanto, o crítico não
uma polarização entre essas duas
es, ao postular que “A literatura
que hoje trata dos problemas sociais
não exclui a dimensão pessoal e
íntima, privilegiando apenas a
realidade exterior; o escritor que opta
por ressaltar a experiência subjetiva
não ignora a turbulência do contexto
e histórico” (SCHOLLHAMMER,
2009, p. 15). Dessa forma,
Pedro e
Passageiro do fim do dia
tratam da vida ordinária e do cotidiano
dos diversos Pedros, mas fazendo da
realidade social e dos problemas que
dela derivam a tônica das narrativas.
Como af
irma Beatriz Resende
Numa sociedade em que talvez
apenas Luiz Ruffato e Rubens
Figueiredo, dentre os
contemporaníssimos, lançam mão de
um olhar onde haja marcas políticas,
o individualismo agrava a certeza da
impossibilidade das relações
humanas e
a cidade é sobretudo
ameaça, mesmo quando olhada do
alto da janela que provoca (várias
vezes) desejos de um s
espaço.
Dos nove contos, em apenas
um o protagonista narra sua própria
história, mas tanto a narrativa de
Passageiro do fim do dia
histórias de
Contos de Pedro
possuem uma linearidade, são cheias
de idas e vindas cronológicas, de
flashbacks.Em
Passageiro do fim do
dia,
vemos uma narrativa que, a
princípio, poderia nos remeter a fluxos
de consciência, pois não é linear,
associação de ideias, promove
rupturas e mostra lembranças
entremeadas pelo presente concreto.
Entretanto, talvez fosse melhor pensar
a estrutura narrativa do romance como
fluxos de fragmentos de memória:
144
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
2009, p. 15). Dessa forma,
Contos de
Passageiro do fim do dia
tratam da vida ordinária e do cotidiano
dos diversos Pedros, mas fazendo da
realidade social e dos problemas que
dela derivam a tônica das narrativas.
irma Beatriz Resende
(2002),
Numa sociedade em que talvez
apenas Luiz Ruffato e Rubens
Figueiredo, dentre os
contemporaníssimos, lançam mão de
um olhar onde haja marcas políticas,
o individualismo agrava a certeza da
impossibilidade das relações
a cidade é sobretudo
ameaça, mesmo quando olhada do
alto da janela que provoca (várias
vezes) desejos de um s
alto no
Dos nove contos, em apenas
um o protagonista narra sua própria
história, mas tanto a narrativa de
Passageiro do fim do dia
quanto as
Contos de Pedro
não
possuem uma linearidade, são cheias
de idas e vindas cronológicas, de
Passageiro do fim do
vemos uma narrativa que, a
princípio, poderia nos remeter a fluxos
de consciência, pois não é linear,
faz
associação de ideias, promove
rupturas e mostra lembranças
entremeadas pelo presente concreto.
Entretanto, talvez fosse melhor pensar
a estrutura narrativa do romance como
fluxos de fragmentos de memória:
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
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154
, out. 2019 a março 2020.
Pedro de lembra de algo, esse algo é
associado
a alguma outra lembrança,
ele retorna à leitura, comenta sobre
passageiros, cria história de vida para
eles e sobre que está prestes a
acontecer, volta à leitura, às
lembranças e ao presente em que se
narra. O mesmo acontece em
de Pedro quando, por
exemplo, toda a
angústia e temor do Pedro de “O nome
que falta”, no momento em que
imagina que está prestes a ser
baleado, é entrecortada por memórias
do personagem de várias pessoas que
se esconderam de um tiroteio, que
foram baleadas e até mesmo
assass
inadas. A narrativa do momento
em que o ponto vermelho,
provavelmente uma mira de fuzil, se
volta para sua cabeça, é também
cortada para mostrar como Pedro
entendia a mensagem que o cachorro
queria lhe passar sobre esse
momento.
Nenhuma das narrativas tra
da enunciação pedestre proposta por
Michel de Certeau, da visão
panorâmica ou do observador da
janela. O que o passageiro Pedro, do
romance, da janela, é apenas
ônibus que emparelham para avisar
que o motorista não deva prosseguir a
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Pedro de lembra de algo, esse algo é
a alguma outra lembrança,
ele retorna à leitura, comenta sobre
passageiros, cria história de vida para
eles e sobre que está prestes a
acontecer, volta à leitura, às
lembranças e ao presente em que se
narra. O mesmo acontece em
Contos
exemplo, toda a
angústia e temor do Pedro de “O nome
que falta”, no momento em que
imagina que está prestes a ser
baleado, é entrecortada por memórias
do personagem de várias pessoas que
se esconderam de um tiroteio, que
foram baleadas e até mesmo
inadas. A narrativa do momento
em que o ponto vermelho,
provavelmente uma mira de fuzil, se
volta para sua cabeça, é também
cortada para mostrar como Pedro
entendia a mensagem que o cachorro
queria lhe passar sobre esse
Nenhuma das narrativas tra
ta
da enunciação pedestre proposta por
Michel de Certeau, da visão
panorâmica ou do observador da
janela. O que o passageiro Pedro, do
romance, da janela, é apenas
ônibus que emparelham para avisar
que o motorista não deva prosseguir a
viagem. Entretant
o, a assertiva de
Certeau de que “a cidade é um espaço
de guerra de relatos: pequenos
discursos cotidianos de um instante”
(CERTEAU, 2009, p. 30) vale para
toda a escrita de Rubens Figueiredo
examinada aqui.
Violência, cotidiano e experiência
urbana em
Contos de Pedro
Passageiro do fim do dia
A maior parte da narrativa de
Passageiro do fim do dia
do ônibus que Pedro pega para ir do
centro da cidade ao bairro de Tirol,
região periférica onde fica a casa de
Rosane, sua namorada, e onde el
passa finais de semana. Nessa
viagem, que parece fazer parte do
cotidiano dos passageiros, Pedro
opera fluxos de memória de fatos de
sua vida pessoal e de suas
experiências no Tirol, entremeados
com observações sobre os
passageiros do ônibus e sobre o qu
vê da janela durante todo o trajeto.
Segundo Rubens Figueiredo, a
ideia do livro surgiu a partir de sua
experiência pessoal, uma vez que
sempre andou muito de ônibus. No
entanto, o escritor também afirma
“embora seja pessoal na origem, ela
145
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
o, a assertiva de
Certeau de que “a cidade é um espaço
de guerra de relatos: pequenos
discursos cotidianos de um instante”
(CERTEAU, 2009, p. 30) vale para
toda a escrita de Rubens Figueiredo
Violência, cotidiano e experiência
Contos de Pedro
e
Passageiro do fim do dia
A maior parte da narrativa de
Passageiro do fim do dia
se dentro
do ônibus que Pedro pega para ir do
centro da cidade ao bairro de Tirol,
região periférica onde fica a casa de
Rosane, sua namorada, e onde el
e
passa finais de semana. Nessa
viagem, que parece fazer parte do
cotidiano dos passageiros, Pedro
opera fluxos de memória de fatos de
sua vida pessoal e de suas
experiências no Tirol, entremeados
com observações sobre os
passageiros do ônibus e sobre o qu
e
vê da janela durante todo o trajeto.
Segundo Rubens Figueiredo, a
ideia do livro surgiu a partir de sua
experiência pessoal, uma vez que
sempre andou muito de ônibus. No
entanto, o escritor também afirma
“embora seja pessoal na origem, ela
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
não é pessoal
na própria experiência,
que é muito abrangente, muito
presente no nosso quotidiano”
(COUTINHO, 2011, p. 1). Embora se
trate de experiências comuns a muitas
pessoas, sempre passam
despercebidas, e cabe ao leitor sua
leitura ou escritura, ou, como afirma
Certeau (2009, p. 23),
É como se as práticas que
organizam uma cidade febril se
caracterizassem pela cegueira. As
redes dessas escrituras que se
movem e se entrecruzam compõem
uma história múltipla sem autor nem
espectador, formada de fragmentos
de trajetóri
as e alterações de
espaços.
Mais do que a diversidade de
pessoas que podem ser encontradas
em um ônibus em percursos comuns,
como o de casa para o trabalho,
Figueiredo acredita que uma viagem
de ônibus tenha “o sentido do
deslocamento do lugar onde as
pessoas trabalham para o lugar o
elas dormem; do lugar onde elas o
exploradas para o lugar onde elas
deveriam viver mas apenas refazem
as força do trabalho” (COUTINHO,
2011, p. 2). Essa preocupação com a
exclusão social permeia todas as
narrativas de
Passageiro do fim do dia
e de Contos de Pedro.
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
na própria experiência,
que é muito abrangente, muito
presente no nosso quotidiano”
(COUTINHO, 2011, p. 1). Embora se
trate de experiências comuns a muitas
pessoas, sempre passam
despercebidas, e cabe ao leitor sua
leitura ou escritura, ou, como afirma
É como se as práticas que
organizam uma cidade febril se
caracterizassem pela cegueira. As
redes dessas escrituras que se
movem e se entrecruzam compõem
uma história múltipla sem autor nem
espectador, formada de fragmentos
as e alterações de
Mais do que a diversidade de
pessoas que podem ser encontradas
em um ônibus em percursos comuns,
como o de casa para o trabalho,
Figueiredo acredita que uma viagem
de ônibus tenha “o sentido do
deslocamento do lugar onde as
pessoas trabalham para o lugar o
nde
elas dormem; do lugar onde elas o
exploradas para o lugar onde elas
deveriam viver mas apenas refazem
as força do trabalho” (COUTINHO,
2011, p. 2). Essa preocupação com a
exclusão social permeia todas as
Passageiro do fim do dia
No romance, não é exatamente
Pedro a maior vítima da desigualdade
social e, sim, sua namorada Rosane,
seus familiares e vizinhos. Rosane, por
exemplo, havia trabalhado em uma
fábrica de copo de refresco e, ao ser
demitida após algumas faltas
de um problema no pulso adquirido em
função do trabalho que exercia, teve
touca, chinelo, uniforme e atrasos
descontados. Ironicamente, essa
mesma fábrica patrocinava uma
campanha de preservação de um tipo
de ave marinha que vivia em uma ilha
de
serta. (FIGUEIREDO, 2010, p. 158).
Pedro, por seu turno, age como o
mediador entre o centro e a periferia.
Ele não é do Tirol e, por vezes,pensa
que os outros passageiros estão
piores que ele, pois ele não
necessariamente precisa estar lá. Sua
distância do
Tirol é tanto física e
geográfica quanto social.
nos contos, embora haja
uma heterogeneidade social dos
personagens, a maioria dos Pedros ou
é vítima direta da desigualdade social
ou é protagonista de uma história onde
esta questão é premente. Em “O d
de ouro”, Pedro é porteiro e faxineiro,
cobre horas de outros funcionários,
dorme em um quarto minúsculo, cuja
146
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
No romance, não é exatamente
Pedro a maior vítima da desigualdade
social e, sim, sua namorada Rosane,
seus familiares e vizinhos. Rosane, por
exemplo, havia trabalhado em uma
fábrica de copo de refresco e, ao ser
demitida após algumas faltas
por conta
de um problema no pulso adquirido em
função do trabalho que exercia, teve
touca, chinelo, uniforme e atrasos
descontados. Ironicamente, essa
mesma fábrica patrocinava uma
campanha de preservação de um tipo
de ave marinha que vivia em uma ilha
serta. (FIGUEIREDO, 2010, p. 158).
Pedro, por seu turno, age como o
mediador entre o centro e a periferia.
Ele não é do Tirol e, por vezes,pensa
que os outros passageiros estão
piores que ele, pois ele não
necessariamente precisa estar lá. Sua
Tirol é tanto física e
geográfica quanto social.
nos contos, embora haja
uma heterogeneidade social dos
personagens, a maioria dos Pedros ou
é vítima direta da desigualdade social
ou é protagonista de uma história onde
esta questão é premente. Em “O d
ente
de ouro”, Pedro é porteiro e faxineiro,
cobre horas de outros funcionários,
dorme em um quarto minúsculo, cuja
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
janela é voltada para a garagem do
prédio e, depois de empréstimos
concedidos e não devidamente pagos,
além do exíguo salário que recebia, f
demitido, mas, com os descontos,
nada recebeu. No entanto, para os
moradores do prédio, não importava o
quanto o faxineiro e porteiro tivesse
trabalhado, “ser submisso não
bastava. Exigiam-
se repetidas derrotas
cotidianas.” (FIGUEIREDO, 2006, p.
11).
De
ssa forma, a violência está
sempre na escrita de Figueiredo nos
textos aqui analisados, em várias
camadas, menos na criminalidade, tão
em pauta na literatura contemporânea,
e mais na opressão e desigualdade
social. A criminalidade não está no
foco do roman
ce ou contos, embora
em um ou outro momento do romance
ou de alguns contos ela apareça
vitimando alguns personagens. Muitas
vezes a desigualdade social é
mostrada de modo irônico, como o fato
de, no romance, o ônibus em que
Pedro se encontra poder estar pr
a ser incendiado, enquanto lembra
que em um dia de trabalho em um
sebo, um homem folheava com
encantamento um livro sobre
instalação com automóveis batidos ou
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
janela é voltada para a garagem do
prédio e, depois de empréstimos
concedidos e não devidamente pagos,
além do exíguo salário que recebia, f
oi
demitido, mas, com os descontos,
nada recebeu. No entanto, para os
moradores do prédio, não importava o
quanto o faxineiro e porteiro tivesse
trabalhado, “ser submisso não
se repetidas derrotas
cotidianas.” (FIGUEIREDO, 2006, p.
ssa forma, a violência está
sempre na escrita de Figueiredo nos
textos aqui analisados, em várias
camadas, menos na criminalidade, tão
em pauta na literatura contemporânea,
e mais na opressão e desigualdade
social. A criminalidade não está no
ce ou contos, embora
em um ou outro momento do romance
ou de alguns contos ela apareça
vitimando alguns personagens. Muitas
vezes a desigualdade social é
mostrada de modo irônico, como o fato
de, no romance, o ônibus em que
Pedro se encontra poder estar pr
estes
a ser incendiado, enquanto lembra
-se
que em um dia de trabalho em um
sebo, um homem folheava com
encantamento um livro sobre
instalação com automóveis batidos ou
incendiados (FIGUEIREDO, 2010, p.
144).
O livro e a escola são
presenças constantes no r
escola que Rosana pretende concluir,
o livro do sebo (sobre passarinhos e
discos-
voadores) que leva para o
guarda-
vida, amigo da família de
Rosane, o livro de inglês que para
Rosane estudar, o livro que a juíza
folheia sobre a instalação de
au
tomóveis e, principalmente, o livro
sobre Darwin que Pedro lê. Segundo
Rubens Figueiredo, a escolha sobre
Darwin estava relacionada à tônica de
seu romance:
Havia mais um motivo pelo qual
considerei interessante incluir
Darwin, era a questão da ciência.
Como a ciência e a literatura podiam
servir de instrumentos para aquele
mesmo processo de dominação e de
justificação da desigualdade [...]. Ou
como a teoria da evolução poderia
servir para justificar a desigualdade,
deixando de ser uma questão
científica
para ser uma questão
social (COUTINHO, 2011, p. 2).
Em todos os contos a escola
também se faz presente e ela é
também marca da denúncia do escritor
da desigualdade social. Em “De forno
a forno”, a escola que o jovem Pedro
frequentava, dando claros sin
descaso do tempo, foi “construída
muitos anos antes para abrigar uma
147
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
incendiados (FIGUEIREDO, 2010, p.
O livro e a escola são
presenças constantes no r
omance: a
escola que Rosana pretende concluir,
o livro do sebo (sobre passarinhos e
voadores) que leva para o
vida, amigo da família de
Rosane, o livro de inglês que para
Rosane estudar, o livro que a juíza
folheia sobre a instalação de
tomóveis e, principalmente, o livro
sobre Darwin que Pedro lê. Segundo
Rubens Figueiredo, a escolha sobre
Darwin estava relacionada à tônica de
Havia mais um motivo pelo qual
considerei interessante incluir
Darwin, era a questão da ciência.
Como a ciência e a literatura podiam
servir de instrumentos para aquele
mesmo processo de dominação e de
justificação da desigualdade [...]. Ou
como a teoria da evolução poderia
servir para justificar a desigualdade,
deixando de ser uma questão
para ser uma questão
social (COUTINHO, 2011, p. 2).
Em todos os contos a escola
também se faz presente e ela é
também marca da denúncia do escritor
da desigualdade social. Em “De forno
a forno”, a escola que o jovem Pedro
frequentava, dando claros sin
ais de
descaso do tempo, foi “construída
muitos anos antes para abrigar uma
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
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, out. 2019 a março 2020.
família de ricos [...]. Muitas coisas não
deixavam ninguém esquecer que ali,
um dia, havia morado uma família. Por
isso, os alunos acabam sentindo
invasores” (FIGUEIREDO, 2006,
36).Os pais de Pedro demonstram
dificuldade em pagar as mensalidades
da escola com os rendimentos de
venda de empadas
o que o próprio
Pedro também fazia nas ruas para
ajudar no orçamento familiar.
Afora as dificuldades financeiras
e o convívio fam
iliar prejudicado pelas
constantes desavenças entre os pais,
“De forno a forno” também é marcado
pela presença constante de um outro
personagem que Pedro
regularmente na rua: um mendigo.
Rubens Figueiredo faz aqui mais uma
denúncia da exclusão social at
da metáfora da ferida:
“Algum calor
trabalhava por dentro e, mês a mês, a
ferida mudava de feição. O vermelho
roía a pele negra pelas beiradas e, no
centro, uma gota esbranquiçada queria
abrir caminho para o fundo”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 32
d
ia, entretanto, ao voltar da
escola,“Pedro olhou com atenção e
não viu a gota pendurada na ponta do
nariz. Viu apenas as narinas imóveis,
bordadas de rachaduras secas.
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
família de ricos [...]. Muitas coisas não
deixavam ninguém esquecer que ali,
um dia, havia morado uma família. Por
isso, os alunos acabam sentindo
-se
invasores” (FIGUEIREDO, 2006,
p. 35-
36).Os pais de Pedro demonstram
dificuldade em pagar as mensalidades
da escola com os rendimentos de
o que o próprio
Pedro também fazia nas ruas para
ajudar no orçamento familiar.
Afora as dificuldades financeiras
iliar prejudicado pelas
constantes desavenças entre os pais,
“De forno a forno” também é marcado
pela presença constante de um outro
personagem que Pedro
regularmente na rua: um mendigo.
Rubens Figueiredo faz aqui mais uma
denúncia da exclusão social at
ravés
“Algum calor
trabalhava por dentro e, mês a mês, a
ferida mudava de feição. O vermelho
roía a pele negra pelas beiradas e, no
centro, uma gota esbranquiçada queria
abrir caminho para o fundo”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 32
-33). Num
ia, entretanto, ao voltar da
escola,“Pedro olhou com atenção e
não viu a gota pendurada na ponta do
nariz. Viu apenas as narinas imóveis,
bordadas de rachaduras secas.
Quando Pedro voltou, horas depois, o
homem o estava mais lá”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 45)
Posteriormente, com a morte desse
mendigo, logo viria outro: “exatamente
no mesmo ponto, sobre a mesma
mancha que estava lá, como se
fosse um lugar marcado: um outro
homem, o novo rei da rua”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 48).
As marcas constantes de
violênci
a se encontram em todas as
histórias contadas; são marcas nos
corpos, cicatrizes que não deixam os
personagens se esquecerem de seu
duro cotidiano. Em
Passageiro do fim
do dia,
o próprio Pedro teve a perna
esmagada por um cavalo quando se
viu no meio de um
policiais e ambulantes; João, que
Pedro conheceu num hospital, foi
atropelado por um caminhão, teve o
corpo quase destruído e perdeu a
memória; a cicatriz profunda da colega
de escola de Rosane que foi atingida
por uma bala perdida
assaltante de ônibus fugindo da polícia
de pistola atravessada no seu corpo
em vários órgãos, quando ela estava
grávida de seis meses; o pé do pai de
Rosane, sacrificado pelo trabalho
quando era pedreiro. No conto
148
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Quando Pedro voltou, horas depois, o
homem o estava mais lá”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 45)
.
Posteriormente, com a morte desse
mendigo, logo viria outro: “exatamente
no mesmo ponto, sobre a mesma
mancha que estava lá, como se
fosse um lugar marcado: um outro
homem, o novo rei da rua”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 48).
As marcas constantes de
a se encontram em todas as
histórias contadas; são marcas nos
corpos, cicatrizes que não deixam os
personagens se esquecerem de seu
Passageiro do fim
o próprio Pedro teve a perna
esmagada por um cavalo quando se
viu no meio de um
confronto entre
policiais e ambulantes; João, que
Pedro conheceu num hospital, foi
atropelado por um caminhão, teve o
corpo quase destruído e perdeu a
memória; a cicatriz profunda da colega
de escola de Rosane que foi atingida
por uma bala perdida
de um
assaltante de ônibus fugindo da polícia
de pistola atravessada no seu corpo
em vários órgãos, quando ela estava
grávida de seis meses; o pé do pai de
Rosane, sacrificado pelo trabalho
quando era pedreiro. No conto
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
“Alegrias da carne”, uma menina
testemunha o acidente do tio com a
mão na churrasqueira: “só a menina
viu, grudada no ferro da grelha, uma
fatia de pele do tamanho de uma
moeda (FIGUEIREDO, 2006, p. 190).
Em “Uma questão de lógica”, uma
lesão no dedo de Pe
dro sempre lhe
lembrava que
Um acidente, certa noite, na cozinha
da churrascaria onde [...] trabalhava,
tingiu de ponta a ponta, com uma
faixa de sangue, uma travessa de
arroz branco. Dali para a frente, no
entra-e-
sai dos anos, o feixe de
nervos inúteis
passou de um tribunal
para o outro, de peritos para
neurologistas, de procuradores para
juízes sem que eu alguma vez
perdesse a fé na única aptidão que
entendia haver na justiça: tomar
alguma coisa de alguém e pôr nas
mãos de outra pessoa
(FIGUEIREDO, 2006
, p. 55).
Desse modo, as lesões e
cicatrizes são também uma assinatura
da violência na pele, fruto da
desigualdade social em que os
personagens de Rubens Figueiredo se
encontram. Tal violência, contudo, não
furta determinados Pedros de praticá
la também,
inclusive entre os seus. O
acidente do Pedro de “Uma questão
de lógica” garantiu
-
indenização trabalhista e
aposentadoria por invalidez e, desse
modo, a aquisição de uma pequena
casa na periferia. Nessa casa moram
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
“Alegrias da carne”, uma menina
testemunha o acidente do tio com a
mão na churrasqueira: “só a menina
viu, grudada no ferro da grelha, uma
fatia de pele do tamanho de uma
moeda (FIGUEIREDO, 2006, p. 190).
Em “Uma questão de lógica”, uma
dro sempre lhe
Um acidente, certa noite, na cozinha
da churrascaria onde [...] trabalhava,
tingiu de ponta a ponta, com uma
faixa de sangue, uma travessa de
arroz branco. Dali para a frente, no
sai dos anos, o feixe de
passou de um tribunal
para o outro, de peritos para
neurologistas, de procuradores para
juízes sem que eu alguma vez
perdesse a fé na única aptidão que
entendia haver na justiça: tomar
alguma coisa de alguém e pôr nas
mãos de outra pessoa
, p. 55).
Desse modo, as lesões e
cicatrizes são também uma assinatura
da violência na pele, fruto da
desigualdade social em que os
personagens de Rubens Figueiredo se
encontram. Tal violência, contudo, não
furta determinados Pedros de praticá
-
inclusive entre os seus. O
acidente do Pedro de “Uma questão
-
lhe uma
indenização trabalhista e
aposentadoria por invalidez e, desse
modo, a aquisição de uma pequena
casa na periferia. Nessa casa moram
também seu filho, sua nora e dois
netos. Apesar das dificuldades
financeiras que a família do filho se
encontra, este consegue construir um
galinheiro para auxiliar na renda e um
quarto junto à casa. Contudo, certo dia
Pedro decide destruir a morada do
filho: “abri a tampa da caixa de esgo
no chão do quintal, usei dois pedaços
de madeira compensada como se
fossem pás e empurrei para dentro
toda a areia, a terra e a brita que
estavam acumuladas num canto”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 48).
Igualmente, Pedro também destrói o
galinheiro: “[...] en
fiei as mãos no
galinheiro e estrangulei os pintos, um
por um, com quatro dedos da mão.
Também torci o pescoço das galinhas,
que vieram como loucas bicar meu
braço”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 48). A
destruição de todo o pouco que o filho,
nora e netos tinham
saída de casa dessa família e o
consequente abandono que Pedro
sofreria.
O Pedro de “Uma questão de
lógica”, ao forçar a saída do filho e
família, aponta para um outro
elemento presente nos demais contos:
a solidão. Os Pedros, sejam do centr
ou da periferia, encontram
149
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
também seu filho, sua nora e dois
netos. Apesar das dificuldades
financeiras que a família do filho se
encontra, este consegue construir um
galinheiro para auxiliar na renda e um
quarto junto à casa. Contudo, certo dia
Pedro decide destruir a morada do
filho: “abri a tampa da caixa de esgo
to
no chão do quintal, usei dois pedaços
de madeira compensada como se
fossem pás e empurrei para dentro
toda a areia, a terra e a brita que
estavam acumuladas num canto”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 48).
Igualmente, Pedro também destrói o
fiei as mãos no
galinheiro e estrangulei os pintos, um
por um, com quatro dedos da mão.
Também torci o pescoço das galinhas,
que vieram como loucas bicar meu
(FIGUEIREDO, 2006, p. 48). A
destruição de todo o pouco que o filho,
nora e netos tinham
materializam a
saída de casa dessa família e o
consequente abandono que Pedro
O Pedro de “Uma questão de
lógica”, ao forçar a saída do filho e
família, aponta para um outro
elemento presente nos demais contos:
a solidão. Os Pedros, sejam do centr
o
ou da periferia, encontram
-se em uma
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
154
, out. 2019 a março 2020.
cidade populosa, mas sempre estão,
de algum modo, sozinhos. Esse
elemento é amplificado no último
conto, “Céu negro”, onde um homem,
um pedreiro, beirando os setenta anos,
se compraz com relações sexuais
fugazes com m
ulheres muito mais
jovens, em troca de presentes. Em
uma dessas relações, Pedro vai à
casa da mulher
ao contrário do
costumeiro, pois são elas que vão a
sua casa –
na periferia, se defronta
com a área inóspita e com a
possibilidade de perder a vida quand
o parceiro da mulher chega na casa
dela.
Paulo Roberto Tonani do
Patrocínio, ao examinar as diferentes
escritas sobre os marginalizados,
afirma que “a violência e o tráfico de
drogas surgem, na
contemporaneidade, como elementos
quase indissociáveis da fa
em textos jornalísticos ou em
discursos oficiais, tais aspectos são
examinados quase como sinônimos
para favela. Torna-
se, assim, quase
impossível desagregar os termos
violência e favela” (PATROCÍNIO,
2006). Esse tipo de violência, fruto da
crim
inalidade retratada, por exemplo,
por Paulo Lins em
Cidade de
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
cidade populosa, mas sempre estão,
de algum modo, sozinhos. Esse
elemento é amplificado no último
conto, “Céu negro”, onde um homem,
um pedreiro, beirando os setenta anos,
se compraz com relações sexuais
ulheres muito mais
jovens, em troca de presentes. Em
uma dessas relações, Pedro vai à
ao contrário do
costumeiro, pois são elas que vão a
na periferia, se defronta
com a área inóspita e com a
possibilidade de perder a vida quand
o
o parceiro da mulher chega na casa
Paulo Roberto Tonani do
Patrocínio, ao examinar as diferentes
escritas sobre os marginalizados,
afirma que “a violência e o tráfico de
drogas surgem, na
contemporaneidade, como elementos
quase indissociáveis da fa
vela. Seja
em textos jornalísticos ou em
discursos oficiais, tais aspectos são
examinados quase como sinônimos
se, assim, quase
impossível desagregar os termos
violência e favela” (PATROCÍNIO,
2006). Esse tipo de violência, fruto da
inalidade retratada, por exemplo,
Cidade de
Deus,
não corresponde ao tratamento dado
por Rubens Figueiredo no romance e
nos contos aqui examinados. Embora
o tráfico e o crime estejam presentes,
não são sublinhados. Nesse sentido, o
único
conto em que a violência se
mostra de forma mais crua é “O nome
que falta”. Aqui, o homem é sempre
comparado a lixo, o lixo que carrega
“bagaço, cascas de laranjas, de
batata, de banana, uma embalagem
vazia de macarrão e outra de salsicha,
uma lacraia e ci
nco baratas, que ele
acuou e esmagou no banheiro”
(FIGUEIREDO , 2006, p. 81), mas
também o saco de lixo que carrega
mortos. Em um dia, quando Pedro
jogou seu saco de lixo na caçamba,
percebeu que “enquanto as moscas
voavam para os lados, ele viu o saco
de
lixo bater e rolar sobre as costas de
um homem morto, com as pernas
dobradas e a cabeça enfiada em um
saco de pano encharcada e vermelha”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 84).
Ao comprar a escrita de
de Patrícia Mello, com
Deus
, Patrocínio assinala
clara a opção de tratar a favela não
apenas como um espaço da
criminalidade, como optou Paulo Lins
no romance
Cidade de Deus
150
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
não corresponde ao tratamento dado
por Rubens Figueiredo no romance e
nos contos aqui examinados. Embora
o tráfico e o crime estejam presentes,
não são sublinhados. Nesse sentido, o
conto em que a violência se
mostra de forma mais crua é “O nome
que falta”. Aqui, o homem é sempre
comparado a lixo, o lixo que carrega
“bagaço, cascas de laranjas, de
batata, de banana, uma embalagem
vazia de macarrão e outra de salsicha,
nco baratas, que ele
acuou e esmagou no banheiro”
(FIGUEIREDO , 2006, p. 81), mas
também o saco de lixo que carrega
mortos. Em um dia, quando Pedro
jogou seu saco de lixo na caçamba,
percebeu que “enquanto as moscas
voavam para os lados, ele viu o saco
lixo bater e rolar sobre as costas de
um homem morto, com as pernas
dobradas e a cabeça enfiada em um
saco de pano encharcada e vermelha”
(FIGUEIREDO, 2006, p. 84).
Ao comprar a escrita de
Inferno,
de Patrícia Mello, com
Cidade de
, Patrocínio assinala
que “fica
clara a opção de tratar a favela não
apenas como um espaço da
criminalidade, como optou Paulo Lins
Cidade de Deus
, mas sim
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
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, out. 2019 a março 2020.
como um espaço de marginalidade, na
qual a favela se constrói como um
local posto à margem da cidade
formal, ma
s nem tampouco
independente”. As situações narradas
por Rubens Figueiredo se encontram
mais próximas a essa ideia de “local
posto à margem da cidade formal”,
mas que não estão independentes
dela, que seus personagens fazem
parte de uma classe trabalhado
aviltada pela relação exploratória do
trabalho realizado nessa cidade
formal.
Beatriz Jaguaribe as diversas
formas de representação atual da
realidade através da expressão
“pedagogia da realidade” e argumenta
que
por “pedagogia da realidade”
compreendo o uso de estéticas
realistas em várias modalidades e
expressões como meio de ilustrar
retratos da realidade contemporânea
de uma forma legível para
espectadores ou leitores. Trata
uma pedagogia porque estes
registros oferecem pautas
interp
retativas permeadas pelo
sentido comum de problemas
cotidianos compartilhados
(JAGUARIBE, 2010, p. 7).
Essa compreensão de estética
realista pode ser entendida na escrita
de Rubens Figueiredo, uma vez que a
realidade que ele se dispõe a retratar
faz parte
desses problemas cotidianos
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
como um espaço de marginalidade, na
qual a favela se constrói como um
local posto à margem da cidade
s nem tampouco
independente”. As situações narradas
por Rubens Figueiredo se encontram
mais próximas a essa ideia de “local
posto à margem da cidade formal”,
mas que não estão independentes
dela, que seus personagens fazem
parte de uma classe trabalhado
ra
aviltada pela relação exploratória do
trabalho realizado nessa cidade
Beatriz Jaguaribe as diversas
formas de representação atual da
realidade através da expressão
“pedagogia da realidade” e argumenta
por “pedagogia da realidade”
compreendo o uso de estéticas
realistas em várias modalidades e
expressões como meio de ilustrar
retratos da realidade contemporânea
de uma forma legível para
espectadores ou leitores. Trata
-se de
uma pedagogia porque estes
registros oferecem pautas
retativas permeadas pelo
sentido comum de problemas
cotidianos compartilhados
(JAGUARIBE, 2010, p. 7).
Essa compreensão de estética
realista pode ser entendida na escrita
de Rubens Figueiredo, uma vez que a
realidade que ele se dispõe a retratar
desses problemas cotidianos
legíveis para os leitores.
segundo Jaguaribe, “[...] as estéticas
realistas detêm forte poder de
persuasão porque foram naturalizadas
enquanto apreensões interpretativas
da realidade social moderna”
(JAGUARIBE, 2010, p.
na escrita de Rubens Figueiredo, não
vemos um tratamento do realismo e
uma busca da verossimilhança como
ocorriam nos romances históricos do
século XIX e apontados por Roland
Barthes através do seu conceito de
“efeito do real”. Segundo Bart
“efeito do real”consistia nos elementos
presentes no romance realista que,
embora a princípio aparentassem
irrelevância em relação ao que era
narrado, eram de extrema importância
para a leitura verossímil do romance.
Entretanto, de acordo com Jaguar
“este ‘efeito de realidade
contemporâneo o depende somente
do detalhe verossímil, mas da força de
intensificação da imagem que cria uma
ilusão de realidade maior do que a
nossa percepção amorfa do cotidiano”
(JAGUARIBE, 2010, p. 8).
Enquanto a clar
bairro Cidade de Deus, no Rio de
Janeiro, conferia ao romance de Paulo
Lins um caráter realista no sentido de
151
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
legíveis para os leitores.
Ainda,
segundo Jaguaribe, “[...] as estéticas
realistas detêm forte poder de
persuasão porque foram naturalizadas
enquanto apreensões interpretativas
da realidade social moderna”
(JAGUARIBE, 2010, p.
7). Entretanto,
na escrita de Rubens Figueiredo, não
vemos um tratamento do realismo e
uma busca da verossimilhança como
ocorriam nos romances históricos do
século XIX e apontados por Roland
Barthes através do seu conceito de
“efeito do real”. Segundo Bart
hes, o
“efeito do real”consistia nos elementos
presentes no romance realista que,
embora a princípio aparentassem
irrelevância em relação ao que era
narrado, eram de extrema importância
para a leitura verossímil do romance.
Entretanto, de acordo com Jaguar
ibe,
“este ‘efeito de realidade
contemporâneo o depende somente
do detalhe verossímil, mas da força de
intensificação da imagem que cria uma
ilusão de realidade maior do que a
nossa percepção amorfa do cotidiano”
(JAGUARIBE, 2010, p. 8).
Enquanto a clar
a referência ao
bairro Cidade de Deus, no Rio de
Janeiro, conferia ao romance de Paulo
Lins um caráter realista no sentido de
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
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, out. 2019 a março 2020.
tentar apreender o real tal como ele é,
como um retrato da realidade, no
romance e contos de Rubens
Figueiredo, não qualquer re
a cidades ou bairros conhecidos ou
identificáveis. Em
Passageiro do fim
do dia,
apesar das referências ao
bairro Tirol, ao bairro “rival” Várzea e à
praça da Bigorna, não evidência
alguma de que cidade se trata, apenas
a certeza de Pedro de que
esteve lá. Embora haja, no Rio de
Janeiro, uma favela Tirol na Freguesia,
Jacarepaguá, e Várzea, em Rocha
Miranda, a curta distância que separa
essas duas regiões, conforme diz o pai
de Rosane na ida ao supermercado
após a tia desta ganhar o cartão
governo, nos permite afirmar que não
se trata, de fato, de Freguesia e Rocha
Miranda. Pedro não conhece bem o
Tirol e acha que quase ninguém
conhece seu próprio bairro direito.
Certamente se trata de um bairro
periférico, empobrecido, semelhante
às des
crições de favelas cariocas.
Dessa forma, o Tirol, assim como
quase todos os bairros e cidades onde
moram os Pedros dos contos,
existem enquanto ficção. Esse
também é o recurso utilizado por
Patrícia Mello em
Inferno
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
tentar apreender o real tal como ele é,
como um retrato da realidade, no
romance e contos de Rubens
Figueiredo, não qualquer re
ferência
a cidades ou bairros conhecidos ou
Passageiro do fim
apesar das referências ao
bairro Tirol, ao bairro “rival” Várzea e à
praça da Bigorna, não evidência
alguma de que cidade se trata, apenas
a certeza de Pedro de que
Darwin
esteve lá. Embora haja, no Rio de
Janeiro, uma favela Tirol na Freguesia,
Jacarepaguá, e Várzea, em Rocha
Miranda, a curta distância que separa
essas duas regiões, conforme diz o pai
de Rosane na ida ao supermercado
após a tia desta ganhar o cartão
do
governo, nos permite afirmar que não
se trata, de fato, de Freguesia e Rocha
Miranda. Pedro não conhece bem o
Tirol e acha que quase ninguém
conhece seu próprio bairro direito.
Certamente se trata de um bairro
periférico, empobrecido, semelhante
crições de favelas cariocas.
Dessa forma, o Tirol, assim como
quase todos os bairros e cidades onde
moram os Pedros dos contos,
existem enquanto ficção. Esse
também é o recurso utilizado por
Inferno
, que a
favela Berimbau, como apon
Roberto Tonani do Patrocínio “só
existe enquanto romance”
(PATROCÍNIO, 2006).
Ao se debruçar sobre a
experiência urbana nos textos de
Rubens Figueiredo, Tonani do
Patrocínio nos lembra que o escritor
“não dialoga apenas com a cidade real
enquanto
fonte de inspiração”
(PATROCÍNIO, 2014, p. 96), como
também “com os muitos discursos
literários já existentes que
representam a cidade(PATROCÍNIO,
2014, p. 96). Tomando como aporte
teórico as considerações de Beatriz
Sarlo sobre uma certa predileção da
ficção realista e naturalista sobre a
temática e representação das cidades
e de Flora Sussekind sobre o haver
uma única naturalista no Brasil, mas
reedições dela, Tonani do Patrocínio
assevera que “o ciclo novamente se
abre e o naturalismo, que antes
par
ecia estar encapsulado na década
de 1970, retorna agora com novas
vestes e amparado em uma linguagem
fria e direta que almeja representar a
experiência urbana através do temário
da violência”. (PATROCÍNIO, 2014, p.
99).
152
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
favela Berimbau, como apon
ta Paulo
Roberto Tonani do Patrocínio “só
existe enquanto romance”
(PATROCÍNIO, 2006).
Ao se debruçar sobre a
experiência urbana nos textos de
Rubens Figueiredo, Tonani do
Patrocínio nos lembra que o escritor
“não dialoga apenas com a cidade real
fonte de inspiração”
(PATROCÍNIO, 2014, p. 96), como
também “com os muitos discursos
literários já existentes que
representam a cidade(PATROCÍNIO,
2014, p. 96). Tomando como aporte
teórico as considerações de Beatriz
Sarlo sobre uma certa predileção da
ficção realista e naturalista sobre a
temática e representação das cidades
e de Flora Sussekind sobre o haver
uma única naturalista no Brasil, mas
reedições dela, Tonani do Patrocínio
assevera que “o ciclo novamente se
abre e o naturalismo, que antes
ecia estar encapsulado na década
de 1970, retorna agora com novas
vestes e amparado em uma linguagem
fria e direta que almeja representar a
experiência urbana através do temário
da violência”. (PATROCÍNIO, 2014, p.
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
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, out. 2019 a março 2020.
Considerações finais
Pedro
pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa
mais linda que o mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Chico Buarque,
Pedro Pedreiro
Assim com
o na “Lira Paulistana”
a vida de Pedro é relatada por Mário
de Andrade através da repetição,
Chico Buarque também se vale desse
recurso estilístico ao retratar a
opressão da classe trabalhadora
brasileira, na figura de Pedro Pedreiro.
Os diversos Pedros qu
e habitam o
Passageiro do fim do dia
e os
de Pedro
perpassam os Pedros de
Mário de Andrade e de Chico Buarque.
Conquanto o poema e a sica
tratam do indivíduo Pedro inserido em
um contexto de opressão e
desigualdade social, os Pedros de
Rubens Figueiredo também
experimentam a violência da área
urbana e periférica, além da solidão.
Ou como assinala Paulo Roberto
BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
mais linda que o mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Pedro Pedreiro
,1965
o na “Lira Paulistana”
a vida de Pedro é relatada por Mário
de Andrade através da repetição,
Chico Buarque também se vale desse
recurso estilístico ao retratar a
opressão da classe trabalhadora
brasileira, na figura de Pedro Pedreiro.
e habitam o
e os
Contos
perpassam os Pedros de
Mário de Andrade e de Chico Buarque.
Conquanto o poema e a sica
tratam do indivíduo Pedro inserido em
um contexto de opressão e
desigualdade social, os Pedros de
Rubens Figueiredo também
experimentam a violência da área
urbana e periférica, além da solidão.
Ou como assinala Paulo Roberto
To
nani do Patrocínio, “tornar
uma rocha, nos parece ser uma saída
possível para a busca por uma
acomodação em uma cidade hostil e
violenta”
(PATROCÍNIO, 2016, p. 124).
Renato Cordeiro Gomes
assinala
que boa parte da escrita
literária contemporânea
debruçar sobre “a experiência urbana
dramatizada nas megalópoles em seus
roteiros da violência, o espaço do
medo e da invisibilidade, a solidão e a
exclu
são (não mais solidão
(GOMES, 2007, p. 11). Não tal
assertiva diz respeito a
Pedro
, como essa observação pode
ser estendida também a
fim do dia
e a toda obra de Rubens
Figueiredo, embora, como nos mostra
Beatriz Resende, “um dos raros
momentos de esperança no destino
humano, na possibilidade de se
encontrar a
lgum conforto ao lado de
alguém, aparece onde menos se
espera: na narrativa que Rubens
Figueiredo constrói a partir, mais uma
vez, em sua produção literária, do
olhar do excluído” (RESENDE, 2002).
Referências
bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Lira paulistana.
In:
Poesias completas.
Itatiaia, 1987. Disponível em:
153
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
nani do Patrocínio, “tornar
-se Pedro,
uma rocha, nos parece ser uma saída
possível para a busca por uma
acomodação em uma cidade hostil e
(PATROCÍNIO, 2016, p. 124).
Renato Cordeiro Gomes
que boa parte da escrita
literária contemporânea
procura se
debruçar sobre “a experiência urbana
dramatizada nas megalópoles em seus
roteiros da violência, o espaço do
medo e da invisibilidade, a solidão e a
são (não mais solidão
-multidão)”
(GOMES, 2007, p. 11). Não tal
assertiva diz respeito a
Contos de
, como essa observação pode
ser estendida também a
Passageiro do
e a toda obra de Rubens
Figueiredo, embora, como nos mostra
Beatriz Resende, “um dos raros
momentos de esperança no destino
humano, na possibilidade de se
lgum conforto ao lado de
alguém, aparece onde menos se
espera: na narrativa que Rubens
Figueiredo constrói a partir, mais uma
vez, em sua produção literária, do
olhar do excluído” (RESENDE, 2002).
bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Lira paulistana.
Poesias completas.
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BARCELOS, Carolina Montebelo. Os diversos "Pedros" que habitam as
cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p.
140
-
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cotidiano. V. 1
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Para que a rotina
não deixe que se banalize a
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outubro de 2011. Disponível em:
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a
deixe-que-se-banalize-a-
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DEALTRY, Giovanna; LEMOS, Masé;
CHIARELLI, Stefania.
Alguma prosa:
ensaios sobre literatura brasileira
contemporânea.
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notas sobre as estéticas do realismo e
pedagogias do olhar na América Latina
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: a representação
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da favela nos discursos culturais
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cidades: violência e experiência urbana em "Contos de Pedro" e
"Passageiro do fim do dia", de Rubens Figueiredo.
PragMATIZES -
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: 11 dez. 2019.
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-rotina-nao-
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pedagogias do olhar na América Latina
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: a representação
de territórios marginais na obra de
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Rubens Figueiredo: um olhar sobre o
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século XXI.
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-
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a/7Sem_13.html. Acesso
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
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Rubens Figueiredo: um olhar sobre o
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O futuro pelo retrovisor
:
inquietudes da literatura brasileira
contemporânea. Rio de Janeiro:
278.
Contemporâneos:
expressões da literatura brasileira no
Rio de Janeiro: Casa da
Ficção brasileira
hoje: a multiplicidade como sintoma.
: Revista da Cátedra Padre
Antonio Vieira de Estudos
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SCHOLLHAMMER, Karl Erik.
Ficção
asileira contemporânea
. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
Violência e crime em Luiz Alfredo Garcia
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40251
Resumo: No
presente artigo, pretende
produção ficcional do brasileiro Luiz Alfredo Garcia
policial para indicar os sintomas do mal
em verdadeiras subjetividades criminais
situadas nos anos de 1990 até os dias atuais
considera que, em meio a uma sociedade cul
mortes e outros tipos de violência, predominantes na América Latina no século XXI, encontram solo
fértil em narrativas policiais da atualidade. Atentando para o cenário caótico e desajustado onde as
tramas de Garcia-
Roza se inserem, nosso corpus será constituído pelos romances O silêncio da
chuva (1996), e Espinosa sem saída (2006). Neste constructo discursivo em que o mundo aparece
como palco, o detetive Espinosa
subjetividades literárias perdidas que não encontram respostas para os questionamentos,
descons
truindo a noção de totalidade e infalibilidade do investigador das narrativas clássicas de
enigma. Afinal, na visão do próprio romancista, a ess
irrevelável, impenetrável e inescrutável.
Palavras-chave: Violência;
crime
Violencia y crimen
en Luiz Alfredo Garcia
Resumen:
En este artículo, pretendemos demostrar que la Novela
producción ficcional del autor
brasileño Luiz Alfredo Garcia
literatura policiaca para señalar
transformándole en
auténticas subjetividades criminales
sus narrativas ubicadas en
los
literatura y
psicoanálisis, considera que, en
temas
relacionados a crímenes, muertes
Latinoamérica del
siglo XXI, encuentran una atmósfera propicia
actualidad. Cogitando sobre
el contexto caótico y desordenado,
Garcia-Roza, nuestro corpus
se compondrá de las
Espinosa sem saída
(2006). En esta construcción
escenario, el detective Espinosa
subjetividades literarias perdidas que no
la noción de totalidad y
infalibilidad
1
Fernanda Mara de Almeida Azevedo. Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Professora da
Universidade de Vassouras, Campus Maricá, Brasil. E
Texto recebido em 30/12/201
9 e aceito para publicação em 07
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Violência e crime em Luiz Alfredo Garcia
-
Roza: um misto de policial e
psicanálise
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40251
Fernanda Mara de Almeida Azevedo
presente artigo, pretende
-
se mostrar que o Romance policial contemporâneo na
produção ficcional do brasileiro Luiz Alfredo Garcia
-Roza (1936-
) utiliza as técnicas da literatura
policial para indicar os sintomas do mal
-estar cultural que atinge o sujeito fi
ccional, transformando
em verdadeiras subjetividades criminais
metáfora do indivíduo de hoje. Em suas narrativas
situadas nos anos de 1990 até os dias atuais
o autor, num misto de literatura e psicanálise,
considera que, em meio a uma sociedade cul
turalmente ‘esquizofrênica’, temáticas ligadas a crimes,
mortes e outros tipos de violência, predominantes na América Latina no século XXI, encontram solo
fértil em narrativas policiais da atualidade. Atentando para o cenário caótico e desajustado onde as
Roza se inserem, nosso corpus será constituído pelos romances O silêncio da
chuva (1996), e Espinosa sem saída (2006). Neste constructo discursivo em que o mundo aparece
como palco, o detetive Espinosa
o protagonista de Garcia-Roza
eme
subjetividades literárias perdidas que não encontram respostas para os questionamentos,
truindo a noção de totalidade e infalibilidade do investigador das narrativas clássicas de
enigma. Afinal, na visão do próprio romancista, a ess
ência de todo crime constitui
irrevelável, impenetrável e inescrutável.
crime
; medo; subjetividades criminais.
en Luiz Alfredo Garcia
-Roza: una mezcla de lo
policiaco y la
En este artículo, pretendemos demostrar que la Novela
Policiaca
contemporánea
brasileño Luiz Alfredo Garcia
-Roza (1936-
) utiliza las técnicas de la
los síntomas del mal estar c
ultural que acomete el
auténticas subjetividades criminales
metáfora del
indivíduo de hoy
los
años de 1990 hacia los días actuales
el autor, en una mezcla de
psicoanálisis, considera que, en
el medio de una
sociedad culturalmente ‘esquizofrénica’,
relacionados a crímenes, muertes
y otras
clases de violencia, predominantes en
siglo XXI, encuentran una atmósfera propicia
en narrativas p
el contexto caótico y desordenado,
donde
se encierran
se compondrá de las
siguientes novelas:
O silêncio da chuva
(2006). En esta construcción
discursiva, en la
que el mundo consiste en
escenario, el detective Espinosa
el protagonista de Garcia-Roza
se manifiesta como una de las
subjetividades literarias perdidas que no
obtienen respuestas para las
indagaciones, descontruyendo
infalibilidad
del
investigador de las narrativas clásicas de enigma. Al fin, según
Fernanda Mara de Almeida Azevedo. Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Professora da
Universidade de Vassouras, Campus Maricá, Brasil. E
-
mail: nandaspar@yahoo.com.br
9 e aceito para publicação em 07
/01/2020.
155
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Roza: um misto de policial e
Fernanda Mara de Almeida Azevedo
1
se mostrar que o Romance policial contemporâneo na
) utiliza as técnicas da literatura
ccional, transformando
-o
metáfora do indivíduo de hoje. Em suas narrativas
o autor, num misto de literatura e psicanálise,
turalmente ‘esquizofrênica’, temáticas ligadas a crimes,
mortes e outros tipos de violência, predominantes na América Latina no século XXI, encontram solo
fértil em narrativas policiais da atualidade. Atentando para o cenário caótico e desajustado onde as
Roza se inserem, nosso corpus será constituído pelos romances O silêncio da
chuva (1996), e Espinosa sem saída (2006). Neste constructo discursivo em que o mundo aparece
eme
rge como uma das
subjetividades literárias perdidas que não encontram respostas para os questionamentos,
truindo a noção de totalidade e infalibilidade do investigador das narrativas clássicas de
ência de todo crime constitui
-se como algo
policiaco y la
psicoanálisis.
contemporánea
en la
) utiliza las técnicas de la
ultural que acomete el
sujeto ficcional,
indivíduo de hoy
en día. En
el autor, en una mezcla de
sociedad culturalmente ‘esquizofrénica’,
clases de violencia, predominantes en
la
en narrativas p
oliciacas de la
se encierran
las tramas de
O silêncio da chuva
(1996) y
que el mundo consiste en
se manifiesta como una de las
indagaciones, descontruyendo
investigador de las narrativas clásicas de enigma. Al fin, según
Fernanda Mara de Almeida Azevedo. Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Professora da
mail: nandaspar@yahoo.com.br
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
la visión del
propio novelista, la
impenetrable y inescrutable.
Palabras clave: Violencia;
crimen
Violence and Crime in Garcia-
Roza: psychoanalytical detective story
Abstract:
In this article, I expect to point out how Garcia
detective-
story genre, shows how cultural
them into real criminal subjectivities as a metaphorical representation to the contemporary individual.
In his narratives set from 1990’s onwards, by intermingling literature with psychoanalysis
claims that, in a culturally ‘schizophrenic’ society, themes like crime, death and other forms of violence
predominate in the 21
st
-
century Latin America, featuring as a prolific subject
contemporary detective stories. By cr
atmospheres, in this text, I highlight his novels
(2006) in which his protagonist detective Espinosa is carefully built as a culturally lost literary
who allows the author to de-
construct the investigator’s total infallibility typically found in classic
enigma narratives, providing that the character’s never
unanswered. After all, as the novelist clarifies, th
unveiled, impenetrable, inscrutable.
Keywords:
Violence; crime; fear; criminal subjectivities.
Violência e crime em Luiz Alfredo Garcia
psicanálise
A ideia do mal como algo
inerente à estrutura social é muito forte
nas narrativas criminais latino
americanas, debilitadas por golpes e
ditaduras militares ao longo da
história.Pesquisas recentes mostram
que A América Latina concentra 39%
dos homicídios, e
que, em menos de
duas cadas, tornou-
se a região mais
violenta do planeta, registrando 2,5
milhões de homicídios, sendo 75%
cometidos com arma de fogo.A pouca
confiança nas instituições é outro fator
relevante, sendo, por isso, de extrema
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
propio novelista, la
esencia de cualquier
crimen se define como algo insondable,
crimen
; miedo; subjetividades criminales.
Roza: psychoanalytical detective story
In this article, I expect to point out how Garcia
-
Roza, in his contemporarily approach to the
story genre, shows how cultural
malaises can affect the fictional subject’s psyche, switching
them into real criminal subjectivities as a metaphorical representation to the contemporary individual.
In his narratives set from 1990’s onwards, by intermingling literature with psychoanalysis
claims that, in a culturally ‘schizophrenic’ society, themes like crime, death and other forms of violence
century Latin America, featuring as a prolific subject
contemporary detective stories. By cr
itically observing Garcia Roza’s disordered and chaotic
atmospheres, in this text, I highlight his novels
O silêncio da chuva (1996) and
(2006) in which his protagonist detective Espinosa is carefully built as a culturally lost literary
construct the investigator’s total infallibility typically found in classic
enigma narratives, providing that the character’s never
-
ending perusals are constantly left
unanswered. After all, as the novelist clarifies, th
e essence of every crime consists of something
unveiled, impenetrable, inscrutable.
Violence; crime; fear; criminal subjectivities.
Violência e crime em Luiz Alfredo Garcia
-
Roza: um misto de policial e
A ideia do mal como algo
inerente à estrutura social é muito forte
nas narrativas criminais latino
-
americanas, debilitadas por golpes e
ditaduras militares ao longo da
história.Pesquisas recentes mostram
que A América Latina concentra 39%
que, em menos de
se a região mais
violenta do planeta, registrando 2,5
milhões de homicídios, sendo 75%
cometidos com arma de fogo.A pouca
confiança nas instituições é outro fator
relevante, sendo, por isso, de extrema
urgência a cria
ção de instituições
eficientes, através da
profissionalização das polícias e a sua
consequente aproximação dos
cidadãos.De acordo com a socióloga
Maria Stela Grossi Porto (1999),
estamos mergulhados em um social
heterogêneo, no qual nem indivíduos
nem grup
os parecem reconhecer
valores coletivos. No início do século
XXI, a violência configura
diferentes formas: através das
metamorfoses do crime, da crise das
156
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
crimen se define como algo insondable,
Roza, in his contemporarily approach to the
malaises can affect the fictional subject’s psyche, switching
them into real criminal subjectivities as a metaphorical representation to the contemporary individual.
In his narratives set from 1990’s onwards, by intermingling literature with psychoanalysis
, the author
claims that, in a culturally ‘schizophrenic’ society, themes like crime, death and other forms of violence
century Latin America, featuring as a prolific subject
-matter in (and for)
itically observing Garcia Roza’s disordered and chaotic
Espinosa sem saída
(2006) in which his protagonist detective Espinosa is carefully built as a culturally lost literary
persona
construct the investigator’s total infallibility typically found in classic
ending perusals are constantly left
e essence of every crime consists of something
Roza: um misto de policial e
ção de instituições
eficientes, através da
profissionalização das polícias e a sua
consequente aproximação dos
cidadãos.De acordo com a socióloga
Maria Stela Grossi Porto (1999),
estamos mergulhados em um social
heterogêneo, no qual nem indivíduos
os parecem reconhecer
valores coletivos. No início do século
XXI, a violência configura
-se de
diferentes formas: através das
metamorfoses do crime, da crise das
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
instituições de controle social e dos
conflitos sociais.
O
Brasil é apontado pela ONU
como o se
gundo país mais violento da
América do Sul em relação às altas
taxas de homicídio intencional no
mundo ficando atrás
Venezuela, com 30,5 mortes acima da
média regional. Esse contexto
origem a múltiplos arranjos societários
e diferentes lógi
cas de conduta e
permite que renomados escritores
como Luiz Alfredo Garcia
explore em sua ficção temas que
atravessam não o discurso literário:
mas também o psicanalítico, o
sociológico, o histórico, o
antropológico.Em meio a uma
sociedade cultural
‘esquizofrênica’
2
,
conforme assinala
Fredric Jameson (1997), temáticas
ligadas a crimes, mortes e outros tipos
de violência encontram solo fértil em
narrativas policiais como
O silêncio da
chuva
, romance de estreia do autor
publicado em 1996 e
Es
saída
(2006), que constituem o
do presente artigo.Segundo
Therezinha Barbieri (2003), o romance
policial atende à emergência deste
2
Algumas noções como esquizofrenia cultural
(segundo Jameson) e temas ligados ao discurso
psicanalítico serão discutidos ao longo deste artigo.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
instituições de controle social e dos
Brasil é apontado pela ONU
gundo país mais violento da
América do Sul em relação às altas
taxas de homicídio intencional no
apenas da
Venezuela, com 30,5 mortes acima da
média regional. Esse contexto
origem a múltiplos arranjos societários
cas de conduta e
permite que renomados escritores
como Luiz Alfredo Garcia
-Roza
explore em sua ficção temas que
atravessam não o discurso literário:
mas também o psicanalítico, o
sociológico, o histórico, o
antropológico.Em meio a uma
sociedade cultural
mente
conforme assinala
Fredric Jameson (1997), temáticas
ligadas a crimes, mortes e outros tipos
de violência encontram solo fértil em
O silêncio da
, romance de estreia do autor
Es
pinosa sem
(2006), que constituem o
corpus
do presente artigo.Segundo
Therezinha Barbieri (2003), o romance
policial atende à emergência deste
Algumas noções como esquizofrenia cultural
(segundo Jameson) e temas ligados ao discurso
psicanalítico serão discutidos ao longo deste artigo.
novo contexto sociocultural,
caracterizando-
se como uma prosa em
vitrine, na qual figuram personagens
sem f
undo, sem identidades definidas,
onde se torna difícil para detetives
como Espinosa
protagonista das
tramas de Garcia-
Roza
pedaços das informações ou
reconstituir os fios narrativos.É
importante ressaltar que, no contexto
da ficção de Garcia
esquizofrenia vai além de problema
clínico. Sendo assim, propomo
estudar a emergência do crime
enquanto doença que atinge a
sociedade, e cuja impossibilidade de
decifração pode estar relacionada ao
caráter de esquizofrenia cultural a que
Jameson se refere.
Para discutir essa ideia,
recorremos às reflexões de Wolfgang
Iser (1996,) segundo o qual o acesso à
realidade, na pós-
modernidade,
através de versões falsas e modos
falsificados que amplificam a
aparência da representação. A
começar
pelo mascaramento da lei, da
polícia e das autoridades de maneira
geral. Isto nos permite traçar relações
importantes entre o gênero policial e o
discurso psicanalítico, visto que o
cenário contemporâneo desponta
157
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
novo contexto sociocultural,
se como uma prosa em
vitrine, na qual figuram personagens
undo, sem identidades definidas,
onde se torna difícil para detetives
protagonista das
Roza
juntar os
pedaços das informações ou
reconstituir os fios narrativos.É
importante ressaltar que, no contexto
da ficção de Garcia
-Roza, a
esquizofrenia vai além de problema
clínico. Sendo assim, propomo
-nos a
estudar a emergência do crime
enquanto doença que atinge a
sociedade, e cuja impossibilidade de
decifração pode estar relacionada ao
caráter de esquizofrenia cultural a que
Para discutir essa ideia,
recorremos às reflexões de Wolfgang
Iser (1996,) segundo o qual o acesso à
modernidade,
-se
através de versões falsas e modos
falsificados que amplificam a
aparência da representação. A
pelo mascaramento da lei, da
polícia e das autoridades de maneira
geral. Isto nos permite traçar relações
importantes entre o gênero policial e o
discurso psicanalítico, visto que o
cenário contemporâneo desponta
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
como um ambiente caótico, sombrio e
insegur
o; e onde as relações de
controle da máquina estatal fomentam
doenças
sejam neurológicas, físicas
ou psíquicas.
As duas modalidades
discursivas exercitam a suspeita,
partindo de uma recusa ao óbvio. Por
isso, interstícios tais como falhas,
fendas, fragme
ntos e hesitações
devem ser explorados pelo detetive
analista para se alcançar o recôndito,
o traumático, o doentio, o fobíaco, o
violento e o macabro
traços do Id
onde jaz o imaginário na ficção de
Garcia-
Roza. Para ampliar tal análise,
traremos à tona
a contribuição de
teóricos como Michel Foucault,
Sigmund Freud e Félix Guattari, que
apontam para a força do capitalismo e
para as falcatruas institucionais, vistas
simbolicamente como um dos grandes
‘monstros’ da contemporaneidade.
Gerando conflitos e ins
tabilidade nos
personagens de
O silêncio da chuva
Espinosa sem saída
, a mistura entre
policial e psicanálise corrobora a ideia
de que, nas narrativas em análise, os
detetives despontam como
subjetividades perdidas, e precisam
alcançar os desajustes psíqu
criminosos que vão desde os fóbicos
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
como um ambiente caótico, sombrio e
o; e onde as relações de
controle da máquina estatal fomentam
sejam neurológicas, físicas
As duas modalidades
discursivas exercitam a suspeita,
partindo de uma recusa ao óbvio. Por
isso, interstícios tais como falhas,
ntos e hesitações
devem ser explorados pelo detetive
-
analista para se alcançar o recôndito,
o traumático, o doentio, o fobíaco, o
traços do Id
onde jaz o imaginário na ficção de
Roza. Para ampliar tal análise,
a contribuição de
teóricos como Michel Foucault,
Sigmund Freud e Félix Guattari, que
apontam para a força do capitalismo e
para as falcatruas institucionais, vistas
simbolicamente como um dos grandes
‘monstros’ da contemporaneidade.
tabilidade nos
O silêncio da chuva
e
, a mistura entre
policial e psicanálise corrobora a ideia
de que, nas narrativas em análise, os
detetives despontam como
subjetividades perdidas, e precisam
alcançar os desajustes psíqu
icos de
criminosos que vão desde os fóbicos
sociais até os psicopatas, assassinos,
prostitutas e deslocados.A prosa
ficcional de Garcia-
Roza, situada nos
anos de 1990, apresenta traços
configuradores de um momento com
fisionomia própria. Além de
desconstru
ir preconceitos com a
chamada baixa literatura (ou
subliteratura), a qual o policial estaria
inserido, sua narrativa estabelece
relação com outros textos, faz
referências cruzadas, intra e
intertextuais.
A recorrência de índices
metaficcionais denuncia a
literário a toda hora invadindo o nível
de elaboração ficcional, o que constitui
uma constante bem característica do
período em questão (BARBIERI, 2003,
p. 15). Segundo a autora, os anos de
1980 e 1990 se caracterizam pela livre
coexistência da
s diferenças, das
contradições, não entre as obras,
mas até no interior de uma mesma
narrativa.Algumas marcas destas duas
décadas são relevantes para a
compreensão dos romances policiais
de Garcia-
Roza, a começar pela
influência que recebe de autores
li
gados à tradição do gênero: Edgar
Allan Poe e Conan Doyle, ícones dos
romances clássicos de enigma; e dos
158
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
sociais até os psicopatas, assassinos,
prostitutas e deslocados.A prosa
Roza, situada nos
anos de 1990, apresenta traços
configuradores de um momento com
fisionomia própria. Além de
ir preconceitos com a
chamada baixa literatura (ou
subliteratura), a qual o policial estaria
inserido, sua narrativa estabelece
relação com outros textos, faz
referências cruzadas, intra e
A recorrência de índices
metaficcionais denuncia a
presença do
literário a toda hora invadindo o nível
de elaboração ficcional, o que constitui
uma constante bem característica do
período em questão (BARBIERI, 2003,
p. 15). Segundo a autora, os anos de
1980 e 1990 se caracterizam pela livre
s diferenças, das
contradições, não entre as obras,
mas até no interior de uma mesma
narrativa.Algumas marcas destas duas
décadas são relevantes para a
compreensão dos romances policiais
Roza, a começar pela
influência que recebe de autores
gados à tradição do gênero: Edgar
Allan Poe e Conan Doyle, ícones dos
romances clássicos de enigma; e dos
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
criadores do roman
noir
Hammett e Raymond Chandler. A
referência direta a estes nomes aponta
não só para os índices metaficcionais
a que Bar
bieri se refere, mas também
para as contradições e diferenças no
interior do discurso policialesco,
começando pelo detetive, cercado de
dúvidas acerca do mundo onde vive e
da sua própria identidade, que se
diferencia de Dupin, o primeiro detetive
que compõ
e a tradição literária.
Nas três primeiras narrativas
clássicas de Poe, os crimes
permanecem insolúveis pela polícia
parisiense até a intervenção voluntária
do decifrador de enigmas. O herói se
vale tão somente de sua atenção, de
sua perspicácia e de seu
lógico para restabelecer a ordem e a
lei, solucionando crimes que
acontecem dentro da alta sociedade
que ele próprio frequenta. Embora o
investigador não seja um detetive
profissional nem tampouco um policial,
os exercícios lógico-
dedutivos são
facilitados pelas boas relações que ele
mantém com seus informantes.O
romance policial de enigma valoriza a
onipotência do pensamento e a lógica
imbatível dos personagens
encarregados de proteger a vida
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
noir
: Dashiell
Hammett e Raymond Chandler. A
referência direta a estes nomes aponta
não só para os índices metaficcionais
bieri se refere, mas também
para as contradições e diferenças no
interior do discurso policialesco,
começando pelo detetive, cercado de
dúvidas acerca do mundo onde vive e
da sua própria identidade, que se
diferencia de Dupin, o primeiro detetive
e a tradição literária.
Nas três primeiras narrativas
clássicas de Poe, os crimes
permanecem insolúveis pela polícia
parisiense até a intervenção voluntária
do decifrador de enigmas. O herói se
vale tão somente de sua atenção, de
sua perspicácia e de seu
raciocínio
lógico para restabelecer a ordem e a
lei, solucionando crimes que
acontecem dentro da alta sociedade
que ele próprio frequenta. Embora o
investigador não seja um detetive
profissional nem tampouco um policial,
dedutivos são
facilitados pelas boas relações que ele
mantém com seus informantes.O
romance policial de enigma valoriza a
onipotência do pensamento e a lógica
imbatível dos personagens
encarregados de proteger a vida
burguesa. No entanto, esse modelo
detetivesco é po
sociedade onde as fronteiras entre
ordem e desordem, certo e errado, lei
e crime apresentam-
se bem definidas,
como a sociedade inglesa do século
XIX. Essas dicotomias possibilitam
uma maior visualização de uma lei que
precisa ser protegida co
de corrompê-
la. O estudioso Ricardo
Piglia explica que as regas do policial
clássico se afirmam, sobretudo, no
fetiche da inteligência pura, e por isso,
o investigador desponta como o
raciocinador puro, “o grande
racionalista que defende a
os enigmas” (PIGLIA, 1994, p. 78).
Em “Os crimes da Rua
Morgue”
3
Dupin assegura
não havia perdido a pista nem por um
instante: “Não havia falha em nenhum
elo de minha cadeia de raciocínio. (...).
Meu alvo final é somente a verdade”
(CRM
, p. 128).As narrativas clássicas
de enigma foram criadas para um tipo
especial de leitor
policiais
que sente prazer em
acompanhar mistérios sempre
3
POE, Edgar Allan. Os crimes da Rua Morgue. In:
Histórias extraordinárias [
Tales of
Arabesque (1840)]
. Trad. Breno Silveira e outros. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. Todas as citações do conto
pertencem a esta edição e serão indicadas pela sigla
CRM
, seguida do número da página.
159
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
burguesa. No entanto, esse modelo
detetivesco é po
ssível em uma
sociedade onde as fronteiras entre
ordem e desordem, certo e errado, lei
se bem definidas,
como a sociedade inglesa do século
XIX. Essas dicotomias possibilitam
uma maior visualização de uma lei que
precisa ser protegida co
ntra tentativas
la. O estudioso Ricardo
Piglia explica que as regas do policial
clássico se afirmam, sobretudo, no
fetiche da inteligência pura, e por isso,
o investigador desponta como o
raciocinador puro, “o grande
racionalista que defende a
lei e decifra
os enigmas” (PIGLIA, 1994, p. 78).
Em “Os crimes da Rua
Dupin assegura
-nos de que
não havia perdido a pista nem por um
instante: “Não havia falha em nenhum
elo de minha cadeia de raciocínio. (...).
Meu alvo final é somente a verdade”
, p. 128).As narrativas clássicas
de enigma foram criadas para um tipo
o de histórias
que sente prazer em
acompanhar mistérios sempre
POE, Edgar Allan. Os crimes da Rua Morgue. In:
Tales of
the Grotesque and
. Trad. Breno Silveira e outros. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. Todas as citações do conto
pertencem a esta edição e serão indicadas pela sigla
, seguida do número da página.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
desvendados por obra da inteligência,
por uma operação intelectual. Na visão
de Jorge Luis Borges (1997), o
detetive que segue esta tradição
policial é sempre um
homem muito
inteligente “chamado Dupin, que
depois se chamará Sherlock Holmes,
que se chamará mais tarde Hercule
Poirot, que terá outros nomes decerto
famosos” (BORGES, 1997, p. 68). O
método de criação do texto literário
tem a ver com o pensamento da
époc
a: o Positivismo
substituição da intuição pela presença
da precisão e do rigor lógico no
discurso ficcional.A evolução do
romance policial apresenta
intimamente associada à história do
crime, que sua expansão
quantitativa acarreta a transform
qualitativa: “o consequente domínio do
crime organizado colocou um ponto
final no romance policial ambientado
numa sala de visitas” (MANDEL, 1988,
p. 62). Deste modo, com a quebra da
bolsa de valores de Nova York, no final
do segundo decênio, que ocas
Grande Depressão, o detetive
acostumado a usar unicamente seu
intelecto para decifrar os crimes
diante de um grande impasse: o
desaparecimento das dicotomias
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
desvendados por obra da inteligência,
por uma operação intelectual. Na visão
de Jorge Luis Borges (1997), o
detetive que segue esta tradição
homem muito
inteligente “chamado Dupin, que
depois se chamará Sherlock Holmes,
que se chamará mais tarde Hercule
Poirot, que terá outros nomes decerto
famosos” (BORGES, 1997, p. 68). O
método de criação do texto literário
tem a ver com o pensamento da
daí a
substituição da intuição pela presença
da precisão e do rigor lógico no
discurso ficcional.A evolução do
romance policial apresenta
-se
intimamente associada à história do
crime, que sua expansão
quantitativa acarreta a transform
ação
qualitativa: “o consequente domínio do
crime organizado colocou um ponto
final no romance policial ambientado
numa sala de visitas” (MANDEL, 1988,
p. 62). Deste modo, com a quebra da
bolsa de valores de Nova York, no final
do segundo decênio, que ocas
ionou a
Grande Depressão, o detetive
acostumado a usar unicamente seu
intelecto para decifrar os crimes
-se
diante de um grande impasse: o
desaparecimento das dicotomias
ordem x desordem; legalidade x
ilegalidade; verdade x mentira.
Era a chegada do
nos Estados Unidos, diretamente
relacionado à realidade dos anos de
1930. Um novo público, diferente
daquele que aceitava um policial que
seguisse os métodos de Dupin ou
Holmes, começa a emergir. A
evolução do gênero detetivesco tornou
os crimes mais ‘hum
detetives procuram entender como e
por que agem os criminosos, conforme
assinala Paulo de Medeiros e
Albuquerque: “aqui, juntamente com
os crimes, surge a necessidade de se
fazer verdadeiros estudos
psicológicos, dada a sua origem
coincidir com
uma época caótica e
muitas vezes incompreensível”
(ALBUQUERQUE, 1979, p. 106). O
que vale nesta mudança é a vitória da
Inteligência que não deve ser apenas
do detetive que resolve o problema,
mas também do criminoso ao executar
o crime da maneira mais per
possível.
4
O termo roman noir tem
pós-
guerra das décadas de 40 e 50, iniciada pela
noire
dos romance policiais de Marcel Huhanel.
Porém, o romance americano nasceu na década de 30
e trouxe uma grande evolução no romance policial. As
duas figuras mais impor
tantes foram Dashiell
e Raymond Chandler.
160
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ordem x desordem; legalidade x
ilegalidade; verdade x mentira.
Era a chegada do
roman noir
4
nos Estados Unidos, diretamente
relacionado à realidade dos anos de
1930. Um novo público, diferente
daquele que aceitava um policial que
seguisse os métodos de Dupin ou
Holmes, começa a emergir. A
evolução do gênero detetivesco tornou
os crimes mais ‘hum
anos’ e os
detetives procuram entender como e
por que agem os criminosos, conforme
assinala Paulo de Medeiros e
Albuquerque: “aqui, juntamente com
os crimes, surge a necessidade de se
fazer verdadeiros estudos
psicológicos, dada a sua origem
uma época caótica e
muitas vezes incompreensível”
(ALBUQUERQUE, 1979, p. 106). O
que vale nesta mudança é a vitória da
Inteligência que não deve ser apenas
do detetive que resolve o problema,
mas também do criminoso ao executar
o crime da maneira mais per
feita
sido aplicado à literatura
guerra das décadas de 40 e 50, iniciada pela
série
dos romance policiais de Marcel Huhanel.
Porém, o romance americano nasceu na década de 30
e trouxe uma grande evolução no romance policial. As
tantes foram Dashiell
Hammet
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
Assim é que, com a nova
realidade econômica vivenciada pelos
Estados Unidos, a partir da quebra da
bolsa em 1929, e o consequente caos
resultante da dificuldade financeira,
presenciamos uma polícia às voltas
com a corrupção. Nesta nova
mo
dalidade policial, não há
ganhadores no jogo da caça ao crime.
O detetive, isolado e em conflito com a
polícia, nem conclui seu trabalho com
alegria do dever cumprido, nem
compartilha do sentimento de acreditar
que existe gente competente para lidar
com di
abólicos velhacos. Por isso, o
chamado romance negro, cujo
iniciador seria Hammet, acaba sendo
adotado por romancistas como Rubem
Fonseca ou Garcia
Roza,especialmente por situarem o
crime num mundo sem valores
autênticos e numa sociedade
corrompida. Pondo
um fim à
delicadeza do policial inglês, o detetive
particular americano sai a campo, qual
um moderno Dom Quixote, a lutar
contra a corrupção social e a força das
organizações: “Não importa quem
matou; é necessário descobrir as
razões do crime, que também n
mais individuais, incluindo uma rede
intrincada de motivações”
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Assim é que, com a nova
realidade econômica vivenciada pelos
Estados Unidos, a partir da quebra da
bolsa em 1929, e o consequente caos
resultante da dificuldade financeira,
presenciamos uma polícia às voltas
com a corrupção. Nesta nova
dalidade policial, não há
ganhadores no jogo da caça ao crime.
O detetive, isolado e em conflito com a
polícia, nem conclui seu trabalho com
alegria do dever cumprido, nem
compartilha do sentimento de acreditar
que existe gente competente para lidar
abólicos velhacos. Por isso, o
chamado romance negro, cujo
iniciador seria Hammet, acaba sendo
adotado por romancistas como Rubem
Fonseca ou Garcia
-
Roza,especialmente por situarem o
crime num mundo sem valores
autênticos e numa sociedade
um fim à
delicadeza do policial inglês, o detetive
particular americano sai a campo, qual
um moderno Dom Quixote, a lutar
contra a corrupção social e a força das
organizações: “Não importa quem
matou; é necessário descobrir as
razões do crime, que também n
ão são
mais individuais, incluindo uma rede
intrincada de motivações”
(PELLEGRINI, 1999, p. 92). Quanto ao
momento e às condições em que
surge, no Brasil, anos de 1980, pode
se dizer que encontra solo fértil em
função da ausência de maiores
motivações polí
ticas, e da
generalizada descrença em projetos
de transformação. Esse descrédito nas
instituições e a atitude nostálgica que
toma conta do detetive do
estão presentes nas narrativas de
Garcia-Roza.
Afinal, o cenário contemporâneo
desponta como
um ambiente caótico,
sombrio, inseguro, onde as relações
de controle da quina estatal
fomentam doenças no ser humano. O
capitalismo e as falcatruas
institucionais pode ser vistos
simbolicamente como monstros que
geram conflitos, desajustes e
instabilidad
e nos personagens,
sobretudo no detetive. Sua
impossibilidade de completude ou de
desvendar mistérios que lhe aparecem
advém do medo e do pavor criados
pela violência urbana.A ausência de
sistemas coerentes e íntegros provoca
deformidades e nostalgias nas
personagens contemporâneas,
conforme se percebe em Espinosa
sem saída
. O narrador demonstra que
161
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
(PELLEGRINI, 1999, p. 92). Quanto ao
momento e às condições em que
surge, no Brasil, anos de 1980, pode
-
se dizer que encontra solo fértil em
função da ausência de maiores
ticas, e da
generalizada descrença em projetos
de transformação. Esse descrédito nas
instituições e a atitude nostálgica que
toma conta do detetive do
roman noir
estão presentes nas narrativas de
Afinal, o cenário contemporâneo
um ambiente caótico,
sombrio, inseguro, onde as relações
de controle da quina estatal
fomentam doenças no ser humano. O
capitalismo e as falcatruas
institucionais pode ser vistos
simbolicamente como monstros que
geram conflitos, desajustes e
e nos personagens,
sobretudo no detetive. Sua
impossibilidade de completude ou de
desvendar mistérios que lhe aparecem
advém do medo e do pavor criados
pela violência urbana.A ausência de
sistemas coerentes e íntegros provoca
deformidades e nostalgias nas
personagens contemporâneas,
conforme se percebe em Espinosa
. O narrador demonstra que
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
a vida de Espinosa se apoia em um
equilíbrio instável, a começar pela
própria condição de policial no cenário
carioca, onde as fronteiras entre
mocinho e bandid
o encontram
nitidamente abaladas. Consciente de
que o inimigo pode estar ao lado de
sua mesa, o delegado deposita sua
confiança exclusivamente em Welber
ou Ramiro, “dois policiais que não
aceitavam certos agrados dos
comerciantes. Mas exatamente por
iss
o eram talvez os únicos em quem
Espinosa confiava sem restrições”
Embora Espinosa faça parte de uma
corporação, ele age como um
eye
(detetive privado): “Continuou
andando e pensando no tipo estranho
que era. Excêntrico e descentrado em
relação à
instituição policial” (
81). O delegado realiza seu trabalho
isoladamente e, embora na prática não
tenha se desligado da unidade de
polícia, como os detetives de Hammet
ou Chandler, seu agir e métodos o
isolaram muito.Além disso, a
incerteza c
ontamina todas as relações
do investigador, que age sozinho e
5
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo.
Espinosa sem
saída
. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
p. 23. Todas as citações do romance pertencem
a esta edição e serão indicadas pela sigla
seguida do número da página.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
a vida de Espinosa se apoia em um
equilíbrio instável, a começar pela
própria condição de policial no cenário
carioca, onde as fronteiras entre
o encontram
-se
nitidamente abaladas. Consciente de
que o inimigo pode estar ao lado de
sua mesa, o delegado deposita sua
confiança exclusivamente em Welber
ou Ramiro, “dois policiais que não
aceitavam certos agrados dos
comerciantes. Mas exatamente por
o eram talvez os únicos em quem
Espinosa confiava sem restrições”
5
.
Embora Espinosa faça parte de uma
corporação, ele age como um
private
(detetive privado): “Continuou
andando e pensando no tipo estranho
que era. Excêntrico e descentrado em
instituição policial” (
ESS, p.
81). O delegado realiza seu trabalho
isoladamente e, embora na prática não
tenha se desligado da unidade de
polícia, como os detetives de Hammet
ou Chandler, seu agir e métodos o
isolaram muito.Além disso, a
ontamina todas as relações
do investigador, que age sozinho e
Espinosa sem
. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
p. 23. Todas as citações do romance pertencem
a esta edição e serão indicadas pela sigla
ESS,
rechaça uma corrupção que está
onipresente. Ao afastar
ele tenta manter sua integridade, não
sendo, por essa razão, bem visto pelos
demais agentes da corporação a que
pertence.
Garcia-
Roza cria um policial
noir
: ele trabalha na polícia, mas não
passa de uma figura solitária, de um
private eye
que sabe que tudo vai
acabar mal. As tramas de
da chuva ou
Espinosa sem saída
serão marcadas pela decepção que
cada caso lhe ca
sentimento de malogro que o domina.
As ações de Espinosa são substituídas
por monólogos, nos quais o detetive
reflete sobre o seu confronto cotidiano
com uma cidade agressiva, por onde
circulam indivíduos mascarados que
não são aquilo que apar
porque, através de seu protagonista,
Garcia-
Roza discute uma importante
questão: as transformações nas
esferas pública e privada, associadas
ao crescimento das grandes cidades,
são responsáveis pelo individualismo
exacerbado e pela solidão
contemporâneo.Sendo assim, os
romances rozeanos conferem ao leitor
sentimento de maior frustração e mal
estar: Espinosa percorre a trama
162
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
rechaça uma corrupção que está
onipresente. Ao afastar
-se de todos,
ele tenta manter sua integridade, não
sendo, por essa razão, bem visto pelos
demais agentes da corporação a que
Roza cria um policial
a la
: ele trabalha na polícia, mas não
passa de uma figura solitária, de um
que sabe que tudo vai
acabar mal. As tramas de
O silêncio
Espinosa sem saída
serão marcadas pela decepção que
cada caso lhe ca
usou; e pelo
sentimento de malogro que o domina.
As ações de Espinosa são substituídas
por monólogos, nos quais o detetive
reflete sobre o seu confronto cotidiano
com uma cidade agressiva, por onde
circulam indivíduos mascarados que
não são aquilo que apar
entam ser. Isto
porque, através de seu protagonista,
Roza discute uma importante
questão: as transformações nas
esferas pública e privada, associadas
ao crescimento das grandes cidades,
são responsáveis pelo individualismo
exacerbado e pela solidão
do homem
contemporâneo.Sendo assim, os
romances rozeanos conferem ao leitor
sentimento de maior frustração e mal
-
estar: Espinosa percorre a trama
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
ficcional em busca dos fios
significativos, mas não consegue
juntá-
los. As mortes continuam
acontecendo e ele sente-
se impotente
diante da força do meio que se tornou
hostil pela grande concentração de
indivíduos e seu relacionamento
irracional e desordenado. Em
silêncio da chuva
, os espetáculos da
vida social se sobrepõem sem que
necessariamente possuam coerênc
entre si, sendo múltiplos, variados. Os
cenários são muitos, as possibilidades
de leitura e interpretação, quase
infinitas. No episódio inicial do
romance, as imagens são jogadas
para o leitor fragmentadamente: um
empresário examina uma arma “com a
deli
cadeza de quem examina uma
peça rara”
6
, retira da caixa seis balas.
Em seguida, pega o dinheiro do
envelope sobre a mesa e coloca
numa divisão da pasta, separados do
revólver. Caminha em direção do
edifício-
garagem Menezes Cortes. E
aí, inicia-se mais
um espetáculo da
vida social para cujo desfecho não se
acha saída: “Entrou no carro, recostou
6
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo.
O silêncio da
chuva
. São Paulo: Companhia das Letras,
2005. p
. 126. Todas as citações do romance
pertencem a esta edição e serão indicadas
pela sigla SC
, seguida do número da página.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ficcional em busca dos fios
significativos, mas não consegue
los. As mortes continuam
se impotente
diante da força do meio que se tornou
hostil pela grande concentração de
indivíduos e seu relacionamento
irracional e desordenado. Em
O
, os espetáculos da
vida social se sobrepõem sem que
necessariamente possuam coerênc
ia
entre si, sendo múltiplos, variados. Os
cenários são muitos, as possibilidades
de leitura e interpretação, quase
infinitas. No episódio inicial do
romance, as imagens são jogadas
para o leitor fragmentadamente: um
empresário examina uma arma “com a
cadeza de quem examina uma
, retira da caixa seis balas.
Em seguida, pega o dinheiro do
envelope sobre a mesa e coloca
-os
numa divisão da pasta, separados do
revólver. Caminha em direção do
garagem Menezes Cortes. E
um espetáculo da
vida social para cujo desfecho não se
acha saída: “Entrou no carro, recostou
O silêncio da
. São Paulo: Companhia das Letras,
. 126. Todas as citações do romance
pertencem a esta edição e serão indicadas
, seguida do número da página.
a cabeça e ficou pensando nos últimos
acontecimentos. Saboreou o cigarro
lentamente. Assim que terminou,
fechou novamente os vidros, abriu a
pasta, retirou o revó
cano na têmpora direita e puxou o
gatilho” (SC, p. 12).
Ao contemplar a cena do crime,
a ideia do labirinto se configura diante
das infinitas possibilidades de
interpretação dos fatos: “Debruçado na
murada da rampa de descida do
edifício-
garagem” (
Espinosa tenta reconstruir
mentalmente a cena e acaba
imaginando várias. O narrador
descreve minuciosamente cada uma
delas (foram cinco, à principio); mas
admite que o detetive o se
preocupava com o rigor formal dessas
construções i
maginárias e nem se
esforçava para retê
-
Afinal, ele “sabia que inúmeras outras
surgiriam no curso da investigação
sem que nenhuma conservasse a
forma original, deixava fundirem
umas às outras dando lugar a cenas
mais complexas” (
curioso é que de todas as construções
de Espinosa, nenhuma delas o remete
à questão do suicídio: “Uma quinta
cena, a do suicídio, não chegou a se
163
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
a cabeça e ficou pensando nos últimos
acontecimentos. Saboreou o cigarro
lentamente. Assim que terminou,
fechou novamente os vidros, abriu a
pasta, retirou o revó
lver, encostou o
cano na têmpora direita e puxou o
Ao contemplar a cena do crime,
a ideia do labirinto se configura diante
das infinitas possibilidades de
interpretação dos fatos: “Debruçado na
murada da rampa de descida do
garagem” (
SC, p. 18),
Espinosa tenta reconstruir
mentalmente a cena e acaba
imaginando várias. O narrador
descreve minuciosamente cada uma
delas (foram cinco, à principio); mas
admite que o detetive o se
preocupava com o rigor formal dessas
maginárias e nem se
-
las na memória.
Afinal, ele “sabia que inúmeras outras
surgiriam no curso da investigação
sem que nenhuma conservasse a
forma original, deixava fundirem
-se
umas às outras dando lugar a cenas
SC
, p. 19). O
curioso é que de todas as construções
de Espinosa, nenhuma delas o remete
à questão do suicídio: “Uma quinta
cena, a do suicídio, não chegou a se
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
esboçar. Não fora encontrada
nenhuma arma no carro” (
Um aspecto que aproxima o policial de
Garcia-Roza do
private eye
principalmente de Marlowe
sensação de desconforto oriundo do
sofrimento das vítimas. Tal sentimento
agrava-
se ainda mais pela
incapacidade de solucionar
assassinatos sem razões aparentes,
como o do mendigo Magro em
Espinosa sem saída
. O delegado
apresenta ao leitor seus
questionamentos acerca dos motivos
que teriam levado o arquiteto (Aldo
Bruno) a cometer o crime: “Por que um
homem jovem, bonito, rico, bem
casado, bem
profissionalmente, ia colocar tudo isso
em ri
sco matando um sem
miserável e aparentemente
inofensivo? (ESS
, p. 72). A procura
sistemática de pessoas e coisas acaba
sendo, para ele, um processo de
estranhamento e acentua seu caráter
7
Philip Marlowe é um per
sonagem de ficção criado
pelo escritor Raymond Chandler para protagonizar
uma série de histórias de detetive na linha do
roman noir. A estreia do
private eye
particular) Marlowe foi em
The Big Sleep
em 1939. Contudo, muitas das primeir
histórias de Chandler foram publicadas anos
antes e reaproveitadas nos seus romances, com o
nome do protagonista original mudado para Philip
Marlowe. (MANDEL, Ernest.
Delícias do crime
História social do romance policial. São Paulo:
Busca Vida, 1988).
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
esboçar. Não fora encontrada
nenhuma arma no carro” (
SC, p. 19).
Um aspecto que aproxima o policial de
private eye
principalmente de Marlowe
7
é a
sensação de desconforto oriundo do
sofrimento das vítimas. Tal sentimento
se ainda mais pela
incapacidade de solucionar
assassinatos sem razões aparentes,
como o do mendigo Magro em
. O delegado
apresenta ao leitor seus
questionamentos acerca dos motivos
que teriam levado o arquiteto (Aldo
Bruno) a cometer o crime: “Por que um
homem jovem, bonito, rico, bem
casado, bem
-sucedido
profissionalmente, ia colocar tudo isso
sco matando um sem
-teto
miserável e aparentemente
, p. 72). A procura
sistemática de pessoas e coisas acaba
sendo, para ele, um processo de
estranhamento e acentua seu caráter
sonagem de ficção criado
pelo escritor Raymond Chandler para protagonizar
uma série de histórias de detetive na linha do
private eye
(detetive
The Big Sleep
, publicada
em 1939. Contudo, muitas das primeir
as
histórias de Chandler foram publicadas anos
antes e reaproveitadas nos seus romances, com o
nome do protagonista original mudado para Philip
Delícias do crime
.
História social do romance policial. São Paulo:
de perdição diante do olhar dos
próprios suspeitos: “O delegad
a encarnação do demônio.
Aparentemente está tão perdido
quanto eu no que se refere ao episódio
do mendigo” (ESS,
p. 120).
Afinal, o medo e o mal, presente
desde os primórdios, acentuam
medida que as cidades crescem e se
urbanizam. Dentre todo
merece destaque o que provém da
violência. O crime aparece há muito
como o agente causador da desordem
e do mal que contamina a civilização.
Na luta entre a ordem e o caos,
encontra-
se o detetive, que está
inequivocamente no lado da ordem
cultu
ral. Mas, se por um lado, os
heróis clássicos ainda podiam contar
com a razão, atributo permanente e
universal dos seres humanos, para
restabelecer a lei e a organização
sociais, por outro, no cenário atual, as
ferramentas da razão tornam
impotentes qua
ndo se trata de inserir o
mal na ordem do inteligível. A
humanidade se enfrentando males
produzidos pelo homem que são tão
cruéis, insensíveis, aleatórios e
impossíveis de prever: “Os males
produzidos por seres humanos
parecem agora tão inesperados,
164
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
de perdição diante do olhar dos
próprios suspeitos: “O delegad
o não é
a encarnação do demônio.
Aparentemente está tão perdido
quanto eu no que se refere ao episódio
p. 120).
Afinal, o medo e o mal, presente
desde os primórdios, acentuam
-se à
medida que as cidades crescem e se
urbanizam. Dentre todo
s os medos,
merece destaque o que provém da
violência. O crime aparece há muito
como o agente causador da desordem
e do mal que contamina a civilização.
Na luta entre a ordem e o caos,
se o detetive, que está
inequivocamente no lado da ordem
ral. Mas, se por um lado, os
heróis clássicos ainda podiam contar
com a razão, atributo permanente e
universal dos seres humanos, para
restabelecer a lei e a organização
sociais, por outro, no cenário atual, as
ferramentas da razão tornam
-se
ndo se trata de inserir o
mal na ordem do inteligível. A
humanidade se enfrentando males
produzidos pelo homem que são tão
cruéis, insensíveis, aleatórios e
impossíveis de prever: “Os males
produzidos por seres humanos
parecem agora tão inesperados,
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
qua
nto o são os provocados por
animais irracionais” (BAUMAN, 2008,
p. 86).
No cenário das narrativas
policiais atuais, o restabelecimento da
ordem e da moral torna-
se impossível;
e uma das razões é a desintegração
da subjetividade contemporânea.
Como lidar co
m a desordem e o caos
urbanos, se o detetive o consegue
lidar com a desorganização de sua
própria interioridade? Na perspectiva
do sociólogo polonês, o mal tende a
ser invocado quando insistimos em
explicar o inexplicável. De protetor e
restaurador da se
gurança pública e
social, o policial passa a constituir uma
ameaça e perigo para si e para os
outros: “a variedade moderna de
insegurança é marcada pelo medo da
maleficência humana e dos malfeitores
humanos” (BAUMAN, 2008, p. 171).
Isto explica, talvez, ta
afastamento de Espinosa de grupos ou
categorias específicas de homens e
mulheres, quanto a sua recusa em
confiar na constância, dedicação e
fidelidade dos parceiros humanos. O
protagonista de Garcia
experimenta uma frustração de
esperanças que s
e intensifica pelo
dano da insegurança e pelo insulto da
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
nto o são os provocados por
animais irracionais” (BAUMAN, 2008,
No cenário das narrativas
policiais atuais, o restabelecimento da
se impossível;
e uma das razões é a desintegração
da subjetividade contemporânea.
m a desordem e o caos
urbanos, se o detetive o consegue
lidar com a desorganização de sua
própria interioridade? Na perspectiva
do sociólogo polonês, o mal tende a
ser invocado quando insistimos em
explicar o inexplicável. De protetor e
gurança pública e
social, o policial passa a constituir uma
ameaça e perigo para si e para os
outros: “a variedade moderna de
insegurança é marcada pelo medo da
maleficência humana e dos malfeitores
humanos” (BAUMAN, 2008, p. 171).
Isto explica, talvez, ta
nto o
afastamento de Espinosa de grupos ou
categorias específicas de homens e
mulheres, quanto a sua recusa em
confiar na constância, dedicação e
fidelidade dos parceiros humanos. O
protagonista de Garcia
-Roza
experimenta uma frustração de
e intensifica pelo
dano da insegurança e pelo insulto da
impotência.; tudo isso canaliza a
ansiedade para um desejo de localizar
e punir os culpados.
Essa ideia aparece em
Espinosa sem saída
tentativa de Espinosa de r as mãos
no assassino d
e Magro, o mendigo
sem perna. Este se converte no maior
de todos os mal
personagem: o mundo da ficção, como
o da realidade, apresenta
indivíduo como um jogo, ou antes,
uma série de jogos aleatórios e
indecifráveis. Diante da angustiante
co
mplexidade em que se encontra, o
delegado não consegue reduzir “o
infinito caos da realidade [ficcional] a
proporções intelectualmente
compreensíveis e evidentemente
lógicas” (BAUMAN, 1998, p. 156).
complexidade do mundo, regido pelo
jogo do disfarce e d
a duplicidade faz
com que o detetive tenha consciência
de que não poderá encontrar a
verdade que tanto busca.
Se a palavra da ficção
contemporânea é uma palavra impura,
isto é, desprovida de autenticidade ou
verdade, então o simulacro torna
ator princ
ipal: “Neste jogo de cena, em
que a liberdade está em questão, a
representação ficcional funciona como
165
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
impotência.; tudo isso canaliza a
ansiedade para um desejo de localizar
Essa ideia aparece em
Espinosa sem saída
, na obstinada
tentativa de Espinosa de r as mãos
e Magro, o mendigo
sem perna. Este se converte no maior
de todos os mal
-estares do
personagem: o mundo da ficção, como
o da realidade, apresenta
-se ao
indivíduo como um jogo, ou antes,
uma série de jogos aleatórios e
indecifráveis. Diante da angustiante
mplexidade em que se encontra, o
delegado não consegue reduzir “o
infinito caos da realidade [ficcional] a
proporções intelectualmente
compreensíveis e evidentemente
lógicas” (BAUMAN, 1998, p. 156).
A
complexidade do mundo, regido pelo
a duplicidade faz
com que o detetive tenha consciência
de que não poderá encontrar a
verdade que tanto busca.
Se a palavra da ficção
contemporânea é uma palavra impura,
isto é, desprovida de autenticidade ou
verdade, então o simulacro torna
-se o
ipal: “Neste jogo de cena, em
que a liberdade está em questão, a
representação ficcional funciona como
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
o real da representação teatral”
(BARBIERI, 2003, p. 21).
inteiro é um palco, levando policiais
como Espinosa, perdidos em
labirintos, a emergire
subjetividades que não encontram
respostas para os seus
questionamentos, e não
compartilham da noção de totalidade
do investigador de enigma. Aliás, vale
lembrar que os primeiros germes da
falibilidade aparecem em um dos
grandes detetives clássic
os: o lendário
Sherlock Holmes. Num conto intitulado
“Um escândalo da Boêmia”
falha na aplicação de suas táticas
racionais e dedutivas, ao ser ludibriado
pela atriz Irene Adler, que não fora
capaz de antecipar-
lhe os passos e
nem impedir su
a fuga. Embora tivesse
sido prevenido acerca da mentalidade
superior da mulher, Holmes ousou
sequer imaginar o fracasso em uma
missão:“As mulheres são muito
dissimuladas e têm seu próprio modo
de guardar segredos” (DOYLE, 1999,
p. 24).Seria este o prenúnci
Razão e a Verdade absoluta dos fatos
não subsistiriam por muito tempo? O
8
DOYLE,Arthur Conan.
Um escândalo na Boêmia
In: Um estudo em vermelho. [
A Study in Scarlet
(1887)]. Trad. Antonio Carlos Vilela. São Paulo:
Melhoramentos, 1999.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
o real da representação teatral”
(BARBIERI, 2003, p. 21).
O mundo
inteiro é um palco, levando policiais
como Espinosa, perdidos em
labirintos, a emergire
m como
subjetividades que não encontram
respostas para os seus
questionamentos, e não
compartilham da noção de totalidade
do investigador de enigma. Aliás, vale
lembrar que os primeiros germes da
falibilidade aparecem em um dos
os: o lendário
Sherlock Holmes. Num conto intitulado
“Um escândalo da Boêmia”
8
, o detetive
falha na aplicação de suas táticas
racionais e dedutivas, ao ser ludibriado
pela atriz Irene Adler, que não fora
lhe os passos e
a fuga. Embora tivesse
sido prevenido acerca da mentalidade
superior da mulher, Holmes ousou
sequer imaginar o fracasso em uma
missão:“As mulheres são muito
dissimuladas e têm seu próprio modo
de guardar segredos” (DOYLE, 1999,
p. 24).Seria este o prenúnci
o de que a
Razão e a Verdade absoluta dos fatos
não subsistiriam por muito tempo? O
Um escândalo na Boêmia
.
A Study in Scarlet
(1887)]. Trad. Antonio Carlos Vilela. São Paulo:
fracasso do detetive clássico, que se
estende aos heróis
noir
da atualidade, pode ser explicado
através das palavras de Irene Adler:
“eu também sou atriz tr
(DOYLE, 1999, p. 30.
É o mundo de sombras, de
dissimulações, de disfarces e
ambiguidades, contra o qual o detetive
não consegue lutar.
desconhecimento da cidade e das
pessoas que nela circulam é um dos
fatores geradores do mal
atravessa as narrativas policiais desde
sua origem: os planos de Holmes
foram frustrados pela sagacidade de
Irene, a quem ele se refere como “a
mulher”.
Não dúvida de que a raiz
do mal-
estar detetivesco aparece na
impossibilidade de o “especialista em
criminologia” (DOYLE, 1999, p. 23) de
adentrar a natureza obscura da
personagem. A frustração de Holmes
tem a ver com o fracasso na
realização de um dese
não fora capaz de salvar o reino da
Boêmia das ameaças da
O que constitui uma falha na tarefa de
“proteger os homens contra a violência
das forças da natureza humana”
(FREUD, 1996, p. 96).
166
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
fracasso do detetive clássico, que se
noir
e aos policiais
da atualidade, pode ser explicado
através das palavras de Irene Adler:
“eu também sou atriz tr
einada”
(DOYLE, 1999, p. 30.
É o mundo de sombras, de
dissimulações, de disfarces e
ambiguidades, contra o qual o detetive
não consegue lutar.
O
desconhecimento da cidade e das
pessoas que nela circulam é um dos
fatores geradores do mal
-estar que
atravessa as narrativas policiais desde
sua origem: os planos de Holmes
foram frustrados pela sagacidade de
Irene, a quem ele se refere como “a
Não dúvida de que a raiz
estar detetivesco aparece na
impossibilidade de o “especialista em
criminologia” (DOYLE, 1999, p. 23) de
adentrar a natureza obscura da
personagem. A frustração de Holmes
tem a ver com o fracasso na
realização de um dese
jo: o detetive
não fora capaz de salvar o reino da
Boêmia das ameaças da
femme fatale.
O que constitui uma falha na tarefa de
“proteger os homens contra a violência
das forças da natureza humana”
(FREUD, 1996, p. 96).
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
Assim sendo, a ambiguidade
torna-se um
ingrediente essencial ao
universo ficcional (e ao psicanalítico) a
partir da recusa do óbvio, do dado, e
do construído. São os fragmentos, as
peças aparentemente desconexas que
conduzem detetive e psicanalista ao
trauma velado no inconsciente
pela
qual fracassam em suas missões.
Freud, que dedica a investigar as
doenças culturais e as grandes
neuroses que perpassam a
contemporaneidade, considera que o
perfil de uma comunidade interfere
diretamente na formação o indivíduo.
Então, se o coletivo afeta
“não temos nós justificativa em
diagnosticar que, sob influências
culturais, algumas civilizações se
tornaram neuróticas? (FREUD, 1996,
p. 146). Lidar com uma sociedade
neurótica, psicótica e esquizofrênica
não se transforma no maior desafi
detetive atual? Maior até do que lidar
com o crime propriamente dito?
Os perigos que tememos
transcendem nossa capacidade de
agir e, em função disso, o sentimento
de impotência -
o impacto mais
assustador do medo
sobretudo, não nas ameaças
percebidas ou imaginadas em si, mas
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Assim sendo, a ambiguidade
ingrediente essencial ao
universo ficcional (e ao psicanalítico) a
partir da recusa do óbvio, do dado, e
do construído. São os fragmentos, as
peças aparentemente desconexas que
conduzem detetive e psicanalista ao
trauma velado no inconsciente
razão
qual fracassam em suas missões.
Freud, que dedica a investigar as
doenças culturais e as grandes
neuroses que perpassam a
contemporaneidade, considera que o
perfil de uma comunidade interfere
diretamente na formação o indivíduo.
o subjetivo,
“não temos nós justificativa em
diagnosticar que, sob influências
culturais, algumas civilizações se
tornaram neuróticas? (FREUD, 1996,
p. 146). Lidar com uma sociedade
neurótica, psicótica e esquizofrênica
não se transforma no maior desafi
o do
detetive atual? Maior até do que lidar
com o crime propriamente dito?
Os perigos que tememos
transcendem nossa capacidade de
agir e, em função disso, o sentimento
o impacto mais
reside,
sobretudo, não nas ameaças
percebidas ou imaginadas em si, mas
“no espaço amplo que se estende
entre as ameaças de que emanam os
medos e nossas reações” (BAUMAN,
2008, p. 32). O ser humano é dotado
de uma espécie de medo de “segundo
grau”, ou seja, social e culturalmente
reciclado q
ue, segundo Bauman,
orienta o comportamento humano,
quer haja ou não uma ameaça
imediatamente presente. Dessa forma,
o medo provoca uma sensação de
insegurança e vulnerabilidade, tornado
as vítimas impotentes no caso de o
perigo se concretizar.
No context
o das obras de
Garcia-
Roza, a geografia da cidade
emerge como um ambiente onde a
insegurança e o medo tornam
assombro que assola a humanidade.
Na era da liquidez, ele apresenta como
traço mais opressor a sua abstração e
difusão, podendo vir de toda p
quem você não é capaz de
desconfiar.Desafios e equívocos nosso
herói enfrenta em
O silêncio da chuva
ao investigar a morte de Ricardo
Carvalho, diretor executivo da Planalto
Minerações. Acreditando o tempo todo
tratar-
se de um crime, Espinosa
engendra-
se no labirinto investigativo
que se constrói no entorno deste
empresário. A começar pela
167
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
“no espaço amplo que se estende
entre as ameaças de que emanam os
medos e nossas reações” (BAUMAN,
2008, p. 32). O ser humano é dotado
de uma espécie de medo de “segundo
grau”, ou seja, social e culturalmente
ue, segundo Bauman,
orienta o comportamento humano,
quer haja ou não uma ameaça
imediatamente presente. Dessa forma,
o medo provoca uma sensação de
insegurança e vulnerabilidade, tornado
as vítimas impotentes no caso de o
perigo se concretizar.
o das obras de
Roza, a geografia da cidade
emerge como um ambiente onde a
insegurança e o medo tornam
-se um
assombro que assola a humanidade.
Na era da liquidez, ele apresenta como
traço mais opressor a sua abstração e
difusão, podendo vir de toda p
arte e de
quem você não é capaz de
desconfiar.Desafios e equívocos nosso
O silêncio da chuva
ao investigar a morte de Ricardo
Carvalho, diretor executivo da Planalto
Minerações. Acreditando o tempo todo
se de um crime, Espinosa
se no labirinto investigativo
que se constrói no entorno deste
empresário. A começar pela
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
perseguição de suspeitos como Max e
Rose: Espinosa desloca
ponto a outro da cidade carioca, na
tentativa de encontrá-
los, já que são
indispensáveis pa
ra a elucidação do
caso do empresário. Mas os dois
convertem-
se em fantasmas, de modo
que a ambiguidade se mantém até o
fim da aventura: “realidade ou sonho?
Verdade ou ilusão? (TODOROV, 1970,
p. 30). Os fantasmas que ‘assombram’
os personagens das narrati
fantásticas e conferem à história a
atmosfera de ambiguidade, figuram,
mesmo que de forma distinta, como a
pedra de tropeço para que Espinosa
chegue à resolução e à verdade dos
fatos.
A perda de referencial e os
enganos do policial são flagrados em
rios momentos no livro.
Primeiramente, por deixar de levantar
a hipótese de suicídio (que foi o que
acontecera a Ricardo) e por nunca
cogitar a hipótese de ser o amigo
Aurélio (ex-
policial) um criminoso em
potencial. Em
O silêncio da chuva
onde a relativi
zação de papéis também
se torna patente, o detetive também se
perde em meio às pistas falsas,
deixando-
se envolver pelo discurso
mentiroso do ex-
colega de profissão.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
perseguição de suspeitos como Max e
Rose: Espinosa desloca
-se de um
ponto a outro da cidade carioca, na
los, já que são
ra a elucidação do
caso do empresário. Mas os dois
se em fantasmas, de modo
que a ambiguidade se mantém até o
fim da aventura: “realidade ou sonho?
Verdade ou ilusão? (TODOROV, 1970,
p. 30). Os fantasmas que ‘assombram’
os personagens das narrati
vas
fantásticas e conferem à história a
atmosfera de ambiguidade, figuram,
mesmo que de forma distinta, como a
pedra de tropeço para que Espinosa
chegue à resolução e à verdade dos
A perda de referencial e os
enganos do policial são flagrados em
rios momentos no livro.
Primeiramente, por deixar de levantar
a hipótese de suicídio (que foi o que
acontecera a Ricardo) e por nunca
cogitar a hipótese de ser o amigo
policial) um criminoso em
O silêncio da chuva
,
zação de papéis também
se torna patente, o detetive também se
perde em meio às pistas falsas,
se envolver pelo discurso
colega de profissão.
Outra questão que
tangencia a ficção
policial
atual é o fato de
representantes da lei se d
levar pela
corrupção e pela
grandes
motivadores do crime: “We
know that the police are not invariably
more virtuous and honest than the
society from which are recruited, and
that corruption can stalk the corridors
of Power and lie at the
government and the criminal justice
system” (JAMES, 2009, p. 157)
A corrupção a que James se
refere motivou Aurélio a sequestrar a
secretária de Ricardo, mantida em
cativeiro durante longo período. Tudo
no intuito de tomar posse de uma
en
orme quantia deixada pelo
empresário. A dificuldade maior de
Espinosa de ‘enxergar’ o verdadeiro
criminoso teria a ver com a crença de
que “a função da polícia” é capturar os
desviantes –
não podendo, por isso,
um ex-
colega de profissão ser visto
como susp
eito? A não percepção da
‘verdadeira identidade do amigo está
ligada à dificuldade do detetive em
lidar com enfermidades psíquicas, tais
9
Sabemos que a polícia não é invariavelmente mais
virtuosa do que a sociedade a que pertence e que a
corrupção passeia pelos corredores do poder e da
mentira, e no seio do governo e do sistema judicial
criminal.
168
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
tangencia a ficção
atual é o fato de
representantes da lei se d
eixarem
corrupção e pela
ganância
motivadores do crime: “We
know that the police are not invariably
more virtuous and honest than the
society from which are recruited, and
that corruption can stalk the corridors
of Power and lie at the
very heart of
government and the criminal justice
system” (JAMES, 2009, p. 157)
9
.
A corrupção a que James se
refere motivou Aurélio a sequestrar a
secretária de Ricardo, mantida em
cativeiro durante longo período. Tudo
no intuito de tomar posse de uma
orme quantia deixada pelo
empresário. A dificuldade maior de
Espinosa de ‘enxergar’ o verdadeiro
criminoso teria a ver com a crença de
que “a função da polícia” é capturar os
não podendo, por isso,
colega de profissão ser visto
eito? A não percepção da
‘verdadeira identidade do amigo está
ligada à dificuldade do detetive em
lidar com enfermidades psíquicas, tais
Sabemos que a polícia não é invariavelmente mais
virtuosa do que a sociedade a que pertence e que a
corrupção passeia pelos corredores do poder e da
mentira, e no seio do governo e do sistema judicial
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
como as que atravessam Aurélio
psicopata em potencial. As fendas
aparecem no romance pela falta de
argúcia de Espinos
a em perceber que
o amigo era o culpado, o que
reconhece após ter ignorado detalhes
escondidos pelo esquecimento: o
próprio Espinosa fornecera
informações do caso a Aurélio, em
almoços que este marcava com tanta
insistência: “A experiência do ex
policial,
investigador da companhia de
seguros fazia de Aurélio o suspeito
óbvio... e tão impossível” (
Parece-
nos que o investigador se
esquece de algo importante no cenário
da pós-
modernidade: “como pode uma
cultura supostamente definida pelo
abandono d
ecisivo da originalidade e
da autencidade ser exemplificada de
forma ‘original’ ou autêntica’?
(CONNOR, 1992, p. 47).
Aprender a lidar com as
‘monstruosidades’ contemporâneas
(medos, traumas, psicoses, neuroses)
torna-
se o desafio do policial de
Garcia-Ro
za a todo instante em
Espinosa sem saída
. O assassinato
de Magro (o sem-
teto) ocorre num
de-sac
sombrio, em plena madrugada
de chuva –
corroborando a ideia de
que a escuridão não constitui a causa
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
como as que atravessam Aurélio
psicopata em potencial. As fendas
aparecem no romance pela falta de
a em perceber que
o amigo era o culpado, o que
reconhece após ter ignorado detalhes
escondidos pelo esquecimento: o
próprio Espinosa fornecera
informações do caso a Aurélio, em
almoços que este marcava com tanta
insistência: “A experiência do ex
-
investigador da companhia de
seguros fazia de Aurélio o suspeito
óbvio... e tão impossível” (
SC, p.241).
nos que o investigador se
esquece de algo importante no cenário
modernidade: “como pode uma
cultura supostamente definida pelo
ecisivo da originalidade e
da autencidade ser exemplificada de
forma ‘original’ ou autêntica’?
Aprender a lidar com as
‘monstruosidades’ contemporâneas
(medos, traumas, psicoses, neuroses)
se o desafio do policial de
za a todo instante em
. O assassinato
teto) ocorre num
cul-
sombrio, em plena madrugada
corroborando a ideia de
que a escuridão não constitui a causa
do perigo, mas é o
habitat
incerteza e, portanto, do medo.Este é
o sentimento que acomete Aldo Bruno
(o autor do crime), que oscila entre a
alternativa da fuga ou da agressão.
Após a experiência traumática da
infância, o arquiteto atravessa a
adolescência fugindo do malf
(Nilson).
adulto, assassina o
mendigo, acreditando extirpar a figura
do mal (simbolizado pelo agressor ou
malfeitor), como ele declara a
Espinosa no final: “_Eu não o matei!
Ele me matou! (
ESS
sentido, o réu não deve ser
classifi
cado como criminoso, mas
como pessoa “doente, psicopata ou
sociopata, devendo ser submetido a
tratamento psiquiátrico, e não à prisão
ou forca” (BAUMAN, 2008, p. 82). A
dificuldade do detetive advém destes
males produzidos por seres humanos
que parecem, ag
ora, tão inesperados.
Para compreendê-
los, é necessário
que os fatos sejam vistos em
retrospecto, fato que exige destes
profissionais a capacidade de adentrar
camadas profundas do inconsciente
dos ‘criminosos’.Como um detetive
‘psicanalista’, Espinosa desc
o arquiteto assassinara, também, a
doutora Camila Bruno, em função de
169
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
habitat
natural da
incerteza e, portanto, do medo.Este é
o sentimento que acomete Aldo Bruno
(o autor do crime), que oscila entre a
alternativa da fuga ou da agressão.
Após a experiência traumática da
infância, o arquiteto atravessa a
adolescência fugindo do malf
eitor
adulto, assassina o
mendigo, acreditando extirpar a figura
do mal (simbolizado pelo agressor ou
malfeitor), como ele declara a
Espinosa no final: “_Eu não o matei!
ESS
, p. 206). Neste
sentido, o réu não deve ser
cado como criminoso, mas
como pessoa “doente, psicopata ou
sociopata, devendo ser submetido a
tratamento psiquiátrico, e não à prisão
ou forca” (BAUMAN, 2008, p. 82). A
dificuldade do detetive advém destes
males produzidos por seres humanos
ora, tão inesperados.
los, é necessário
que os fatos sejam vistos em
retrospecto, fato que exige destes
profissionais a capacidade de adentrar
camadas profundas do inconsciente
dos ‘criminosos’.Como um detetive
‘psicanalista’, Espinosa desc
obre que
o arquiteto assassinara, também, a
doutora Camila Bruno, em função de
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
atos promíscuos.
O comportamento
“degradante da esposa”, que aparece
transformada numa pessoa
sexualmente perversa, poderia
facilmente se tornar público
atingiria a honr
a dos filhos, daí a
atitude do homem de “colocar um
ponto final na história (
ESS
Todos os personagens que cruzam o
caminho do policial são atravessados
por uma série de enfermidades
psíquicas, reforçando a ideia de que
pensamentos e comportamen
humanos não podem ser explicados
de forma racional (FREUD, 1996, p.
138). Não é aleatório, então, o fato de
seus personagens viverem em
constantes dúvidas e incertezas, haja
vista que eles compõem um universo
simulado,
onde se apaga a diferença
entre o
riginal e cópia, verdadeiro ou
falso.
No romance, Espinosa chega à
conclusão de que a opção mais óbvia
para Aldo era matar a esposa de modo
que o crime parecesse obra de “algum
maníaco sexual...um psicótico... um
psicopata... um tipo bem distante da
imagem que a socialite
passava para
as pessoas. Ao criarem para si um
lugar imaginário, as singularidades de
Espinosa sem saída
perdem cada vez
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
O comportamento
“degradante da esposa”, que aparece
transformada numa pessoa
sexualmente perversa, poderia
facilmente se tornar público
– o que
a dos filhos, daí a
atitude do homem de “colocar um
ESS
, p. 207).
Todos os personagens que cruzam o
caminho do policial são atravessados
por uma série de enfermidades
psíquicas, reforçando a ideia de que
pensamentos e comportamen
tos
humanos não podem ser explicados
de forma racional (FREUD, 1996, p.
138). Não é aleatório, então, o fato de
seus personagens viverem em
constantes dúvidas e incertezas, haja
vista que eles compõem um universo
onde se apaga a diferença
riginal e cópia, verdadeiro ou
No romance, Espinosa chega à
conclusão de que a opção mais óbvia
para Aldo era matar a esposa de modo
que o crime parecesse obra de “algum
maníaco sexual...um psicótico... um
psicopata... um tipo bem distante da
passava para
as pessoas. Ao criarem para si um
lugar imaginário, as singularidades de
perdem cada vez
mais a noção de referência: “esses
lugares de fantasia são sempre
duplos”, pois oscilam entre a realidade
e a represe
ntação, entre o que o e o
que pretendem ser” (PEIXOTO, 1987,
p. 207). Eis o grande dilema
contemporâneo na visão do crítico da
cultura: a descrença na verdade, na
razão, na objetividade e na lógica. No
cenário das narrativas atuais, tais
valores o luga
r ao simulacro, à
duplicidade, que direta ou
indiretamente, atingem todos os
personagens envolvidos nos casos de
que cuida Espinosa. Camila Bruno, por
exemplo, praticava algumas
excentricidades em sua prática clínica,
a começar por manter relações
sexuais
com algumas pacientes. Uma
delas, Antônia, aliás, Mercedes,
esconde da terapeuta o fato de
trabalhar com Aldo
se torna, também, seu amante. O jogo
de falsidade e simulação chega ao fim
quando o detetive desmascara a
arquiteta e exige-
lhe e
referentes à identidade: Mercedes,
Antônia, Maria Antônia? No entanto,
surpresa maior recebe o parceiro
quando o delegado lhe revela a
“múltipla identidade da doutora
Mercedes e das diferentes
170
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mais a noção de referência: “esses
lugares de fantasia são sempre
duplos”, pois oscilam entre a realidade
ntação, entre o que o e o
que pretendem ser” (PEIXOTO, 1987,
p. 207). Eis o grande dilema
contemporâneo na visão do crítico da
cultura: a descrença na verdade, na
razão, na objetividade e na lógica. No
cenário das narrativas atuais, tais
r ao simulacro, à
duplicidade, que direta ou
indiretamente, atingem todos os
personagens envolvidos nos casos de
que cuida Espinosa. Camila Bruno, por
exemplo, praticava algumas
excentricidades em sua prática clínica,
a começar por manter relações
com algumas pacientes. Uma
delas, Antônia, aliás, Mercedes,
esconde da terapeuta o fato de
que mais tarde
se torna, também, seu amante. O jogo
de falsidade e simulação chega ao fim
quando o detetive desmascara a
lhe e
sclarecimentos
referentes à identidade: Mercedes,
Antônia, Maria Antônia? No entanto,
surpresa maior recebe o parceiro
quando o delegado lhe revela a
“múltipla identidade da doutora
Mercedes e das diferentes
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
personalidades que elas representam”
(ESS, p. 199).
A questão da identidade e do
relativismo de papéis configura
trama como indício de que a
psicanálise convoca a todos
sujeitos trágicos (PIGLIA, 2004, p. 52)
e que ninguém é apenas bom ou
mau. Acrescenta-
se a isso o
apagamento que se faz e
noções de verdade e mentira, que fica
claro no relato de Mercedes: “Não
mentira na prática psicanalítica”, assim
como não verdade absoluta (ou
definitiva) nos relatos daqueles
envolvidos nos crimes. A plena
consciência do policial do quão fug
se torna a verdade manifesta
quando Mercedes confessa que a
troca de nome não fora feita com o
intuito de matar a doutora Camila: “é
um raciocínio pobre. Ele matou
sozinho a doutora Camila. Eu a
amava. Nós nos amávamos” (
200). Isso nos m
argem a seguintes
reflexões: não são os equívocos de
Espinosa frutos da própria relação
entre o discurso policial e o
psicanalítico?
Tendo que lidar com as
neuroses, psicoses, psicopatias,
traumas, medos
esses grandes
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
personalidades que elas representam”
A questão da identidade e do
relativismo de papéis configura
-se na
trama como indício de que a
psicanálise convoca a todos
como
sujeitos trágicos (PIGLIA, 2004, p. 52)
e que ninguém é apenas bom ou
se a isso o
apagamento que se faz e
ntre as
noções de verdade e mentira, que fica
claro no relato de Mercedes: “Não
mentira na prática psicanalítica”, assim
como não verdade absoluta (ou
definitiva) nos relatos daqueles
envolvidos nos crimes. A plena
consciência do policial do quão fug
idia
se torna a verdade manifesta
-se
quando Mercedes confessa que a
troca de nome não fora feita com o
intuito de matar a doutora Camila: “é
um raciocínio pobre. Ele matou
sozinho a doutora Camila. Eu a
amava. Nós nos amávamos” (
ESS, p.
argem a seguintes
reflexões: não são os equívocos de
Espinosa frutos da própria relação
entre o discurso policial e o
Tendo que lidar com as
neuroses, psicoses, psicopatias,
esses grandes
‘monstros’ da cultura contemporânea
o detetive se sente capaz de vencê
los? Afinal, era preciso que Espinosa
fosse um detetive da alma para que
obtivesse o êxito esperado. Se nem
mesmo Freud, que tem a cooperação
do analisado, se propõe a ser um
‘detetive da alma’, como o
personagem de Ga
conseguiria sem a cooperação do
‘suspeito’? Para descobrir os crimes
contra Magro (sem-
teto) e contra a
esposa, o delegado precisaria alcançar
o recôndito, o traumático, o fobíaco e o
doentio do interior do arquiteto, da
amante e da psicanalist
marcado por traumas de infância e
acometido de sintomas
psiconeuróticos: daí a manifestação da
pulsão da crueldade em suas formas
passiva e ativa e domina quase
invariavelmente a conduta social do
doente: “Por intermédio dessa ligação
da libid
o com a crueldade que se dá a
transformação do amor em ódio, das
moções afetuosas em hostis, que é
característica de um grande número
de casos de neurose e até, ao que
parece, da paranoia em geral”
(FREUD, 2002, p. 44). Sendo assim,
nos romances de Garcia
violência e o crime são motivados por
171
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
‘monstros’ da cultura contemporânea
o detetive se sente capaz de vencê
-
los? Afinal, era preciso que Espinosa
fosse um detetive da alma para que
obtivesse o êxito esperado. Se nem
mesmo Freud, que tem a cooperação
do analisado, se propõe a ser um
‘detetive da alma’, como o
personagem de Ga
rcia-Roza o
conseguiria sem a cooperação do
‘suspeito’? Para descobrir os crimes
teto) e contra a
esposa, o delegado precisaria alcançar
o recôndito, o traumático, o fobíaco e o
doentio do interior do arquiteto, da
amante e da psicanalist
a. O homem é
marcado por traumas de infância e
acometido de sintomas
psiconeuróticos: daí a manifestação da
pulsão da crueldade em suas formas
passiva e ativa e domina quase
invariavelmente a conduta social do
doente: “Por intermédio dessa ligação
o com a crueldade que se dá a
transformação do amor em ódio, das
moções afetuosas em hostis, que é
característica de um grande número
de casos de neurose e até, ao que
parece, da paranoia em geral”
(FREUD, 2002, p. 44). Sendo assim,
nos romances de Garcia
-Roza, a
violência e o crime são motivados por
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
subjetividades atingidas por diferentes
enfermidades comportamentais,
desajustadas, cujo esvaziamento tem
a ver com o fim do ego burguês ou do
descentramento do próprio sujeito
qual acarreta, ainda, no esma
do afeto no contexto atual
.
qualidades de vida no capitalismo
tardio têm seu eco no âmbito cultural,
num novo fascínio pela confusão, pela
desintegração da subjetividade, pelo
que
Jameson resume como uma
espécie de esquizofrenia
sentido meramente clínico ou com
propósitos diagnosticais. Seguindo a
concepção lacaniana que descreve a
esquizofrenia como sendo a ruptura na
cadeia dos significantes (JAMESON,
1997, p. 53), Jameson considera que o
indivíduo perde gradativamente a
capac
idade de organizar seu passado
e futuro como uma experiência
coerente; principalmente porque está
imerso numa cultura cada vez mais
dominada pela lógica espacial. Por
isso, torna-
se bastante difícil perceber
como a produção cultural de tal sujeito
poderia
resultar em outra coisa que
não “um amontoado de fragmentos”
que apontam para um comportamento
‘esquizofrênico’. Este nada mais é do
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
subjetividades atingidas por diferentes
enfermidades comportamentais,
desajustadas, cujo esvaziamento tem
a ver com o fim do ego burguês ou do
descentramento do próprio sujeito
o
qual acarreta, ainda, no esma
ecimento
.
Muitas das
qualidades de vida no capitalismo
tardio têm seu eco no âmbito cultural,
num novo fascínio pela confusão, pela
desintegração da subjetividade, pelo
Jameson resume como uma
não no
sentido meramente clínico ou com
propósitos diagnosticais. Seguindo a
concepção lacaniana que descreve a
esquizofrenia como sendo a ruptura na
cadeia dos significantes (JAMESON,
1997, p. 53), Jameson considera que o
indivíduo perde gradativamente a
idade de organizar seu passado
e futuro como uma experiência
coerente; principalmente porque está
imerso numa cultura cada vez mais
dominada pela lógica espacial. Por
se bastante difícil perceber
como a produção cultural de tal sujeito
resultar em outra coisa que
não “um amontoado de fragmentos”
que apontam para um comportamento
‘esquizofrênico’. Este nada mais é do
que consequência do mal
toma conta do indivíduo dominado
pelo medo e pela insegurança diante
da violência e da de
sordem social.
A subjetividade, como explica
Félix Guattari (1993), não é passível
de totalização ou de centralização no
indivíduo. de início, o autor
esclarece que a subjetividade não
implica uma posse, mas uma produção
incessante que acontece a parti
encontros que vivemos com o outro.
Nesse caso, o outro pode ser
compreendido como o outro social,
mas também como a natureza, os
acontecimentos, as invenções, enfim,
aquilo que produz efeitos nos corpos e
nas maneiras de viver. Tais efeitos
difundem-
se por meio de ltiplos
componentes de subjetividade que
estão em circulação no campo social:
“a subjetividade é essencialmente
fabricada e modelada no registro do
social” (GUATTARI, 1993, p.178).As
reflexões de Guattari tornam
relevantes no processo d
das subjetividades criminais de Garcia
Roza. Primeiramente, porque suas
tramas se organizam em torno da
morte, que, sob o olhar da psicanálise,
constitui um ato de rompimento e/ou
desvio definitivo dos parâmetros da lei.
172
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
que consequência do mal
-estar que
toma conta do indivíduo dominado
pelo medo e pela insegurança diante
sordem social.
A subjetividade, como explica
Félix Guattari (1993), não é passível
de totalização ou de centralização no
indivíduo. de início, o autor
esclarece que a subjetividade não
implica uma posse, mas uma produção
incessante que acontece a parti
r dos
encontros que vivemos com o outro.
Nesse caso, o outro pode ser
compreendido como o outro social,
mas também como a natureza, os
acontecimentos, as invenções, enfim,
aquilo que produz efeitos nos corpos e
nas maneiras de viver. Tais efeitos
se por meio de ltiplos
componentes de subjetividade que
estão em circulação no campo social:
“a subjetividade é essencialmente
fabricada e modelada no registro do
social” (GUATTARI, 1993, p.178).As
reflexões de Guattari tornam
-se
relevantes no processo d
e construção
das subjetividades criminais de Garcia
-
Roza. Primeiramente, porque suas
tramas se organizam em torno da
morte, que, sob o olhar da psicanálise,
constitui um ato de rompimento e/ou
desvio definitivo dos parâmetros da lei.
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
Por isso, os estudos
sobre o inconsciente auxiliam,
também, na compreensão da
subjetividade criminal contemporânea.
A começar pela dificuldade de se
distinguir a natureza dos homens,
sempre ligada a esse Outro regido por
instintos primitivos
daí a identificação
de s
uas ações com o caos, com o
mistério e com o ilógico (FREUD,
1996, p. 347). O que a psicanálise
reconhece como crimes ou delitos
provenientes da censura inconsciente
são aqueles cujas condutas tornam
claras à luz da interpretação edipiana.
Mas o que as
distingue como mórbidas
é o seu caráter simbólico. Sua
estrutura psicopatológica não está na
situação criminal que elas exprimem,
mas no modo irreal dessa expressão:
“as estruturas da sociedade são
simbólicas. O indivíduo, na medida em
que é normal, serve-
se delas em
condutas reais; na medida em que é
psicopata, exprime-
as por condutas
simbólicas” (LACAN, 1998, p. 134).
Não é este o caso de Aurélio,
cuja conduta imaginária permite a sua
adaptação parcial ao real? Se o
supereu, enquanto manifestação
indivi
dual, está ligado às condições
sociais do edipianismo, as tensões
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Por isso, os estudos
de Freud
sobre o inconsciente auxiliam,
também, na compreensão da
subjetividade criminal contemporânea.
A começar pela dificuldade de se
distinguir a natureza dos homens,
sempre ligada a esse Outro regido por
daí a identificação
uas ações com o caos, com o
mistério e com o ilógico (FREUD,
1996, p. 347). O que a psicanálise
reconhece como crimes ou delitos
provenientes da censura inconsciente
são aqueles cujas condutas tornam
-se
claras à luz da interpretação edipiana.
distingue como mórbidas
é o seu caráter simbólico. Sua
estrutura psicopatológica não está na
situação criminal que elas exprimem,
mas no modo irreal dessa expressão:
“as estruturas da sociedade são
simbólicas. O indivíduo, na medida em
se delas em
condutas reais; na medida em que é
as por condutas
simbólicas” (LACAN, 1998, p. 134).
Não é este o caso de Aurélio,
cuja conduta imaginária permite a sua
adaptação parcial ao real? Se o
supereu, enquanto manifestação
dual, está ligado às condições
sociais do edipianismo, as tensões
criminosas se instauram e se tornam
patogênicas nas sociedades quando
essa própria situação se desintegra.
Por isso, homem e animal se igualam
na violação da lei de castração e na
busca ince
ssante de realização dos
desejos
‘instintivos’, ‘primitivos’ ou
‘animalescos’. Acerca desta ideia,
Bataille explica que as proibições
passaram a separar o animal do
homem, sendo este o único a observá
las. Para a humanidade primitiva, o
animal não podia
fundamental: que o seu próprio
movimento, a sua própria violência era
uma violação da lei. “Em comparação
com uma vida calculada, morte e
violência são delírio, pois que nem o
respeito nem a lei, que socialmente
ordenam a vida humana, as po
deter” (BATAILLE, 1980, p. 74). A
morte, para uma consciência ingênua,
pode vir duma ofensa, duma falha
que mais uma vez, destroem
violentamente a ordem legal. O crime,
porém, configura-
se de forma distinta
nos romances. Em
saída, ele
foi proveniente do trauma
sofrido pelo arquiteto ainda criança.
Agredido por um menino de rua
(Nilson), cujas ações foram regidas
pelas mesmas leis da selva primitiva, o
173
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
criminosas se instauram e se tornam
patogênicas nas sociedades quando
essa própria situação se desintegra.
Por isso, homem e animal se igualam
na violação da lei de castração e na
ssante de realização dos
‘instintivos’, ‘primitivos’ ou
‘animalescos’. Acerca desta ideia,
Bataille explica que as proibições
passaram a separar o animal do
homem, sendo este o único a observá
-
las. Para a humanidade primitiva, o
ignorar uma lei
fundamental: que o seu próprio
movimento, a sua própria violência era
uma violação da lei. “Em comparação
com uma vida calculada, morte e
violência são delírio, pois que nem o
respeito nem a lei, que socialmente
ordenam a vida humana, as po
dem
deter” (BATAILLE, 1980, p. 74). A
morte, para uma consciência ingênua,
pode vir duma ofensa, duma falha
que mais uma vez, destroem
violentamente a ordem legal. O crime,
se de forma distinta
nos romances. Em
Espinosa sem
foi proveniente do trauma
sofrido pelo arquiteto ainda criança.
Agredido por um menino de rua
(Nilson), cujas ações foram regidas
pelas mesmas leis da selva primitiva, o
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
sujeito ficcional submete
castração pelo negar-
se de si próprio.
Se os impulsos
humanos devem
ser domados em impulsos de meta
inibida, ou seja, anestesiados, o
personagem incorpora as grades do
decoro social em seu corpo e mente.
Mas o regresso ao que primeiramente
havia negado acontece em função das
experiências traumáticas infantis
provenientes de conflitos reais com o
mundo externo. Sandor
(1992) considera que a reação
imediata ao trauma é uma comoção,
uma agonia psíquica e física que
acarreta uma dor incompreensível e
insuportável. A dor é tão extrema que
a criança pre
cisa distanciar
mesma, afastar-
se de seu psiquismo e
de seu corpo. As descrições de
Ferenczi em relação à comoção
psíquica aludem sempre ao terror, à
catástrofe, à morte. O desprazer
causado pela comoção é tão
superlativo que não pode ser
superado
, exigindo uma válvula de
escape: "Tal possibilidade é oferecida
pela autodestruição, a qual, enquanto
fator que liberta da angústia, se
preferida ao sofrimento mudo"
(FERENCZI, 1992, p. 111).
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
sujeito ficcional submete
-se à
se de si próprio.
humanos devem
ser domados em impulsos de meta
inibida, ou seja, anestesiados, o
personagem incorpora as grades do
decoro social em seu corpo e mente.
Mas o regresso ao que primeiramente
havia negado acontece em função das
experiências traumáticas infantis
,
provenientes de conflitos reais com o
Ferenczi
(1992) considera que a reação
imediata ao trauma é uma comoção,
uma agonia psíquica e física que
acarreta uma dor incompreensível e
insuportável. A dor é tão extrema que
cisa distanciar
-se de si
se de seu psiquismo e
de seu corpo. As descrições de
Ferenczi em relação à comoção
psíquica aludem sempre ao terror, à
catástrofe, à morte. O desprazer
causado pela comoção é tão
superlativo que não pode ser
, exigindo uma válvula de
escape: "Tal possibilidade é oferecida
pela autodestruição, a qual, enquanto
fator que liberta da angústia, se
preferida ao sofrimento mudo"
(FERENCZI, 1992, p. 111).
Nasce, assim, a desorientação
psíquica que, se por um lado d
consciência, por outro ajuda a suportar
a dor moral. A subjetividade, enquanto
processo de produção no qual
comparecem e participam múltiplos
componentes, é produto de uma
heterogeneidade de elementos
presentes no contexto social. Assim,
valores,
ideias e sentidos ganham um
registro singular, tornando
prima para expressão dos afetos
vividos nesses encontros. Essa
produção de subjetividades, da qual o
sujeito é um efeito provisório, mantém
se em aberto uma vez que cada um,
ao mesmo tempo
em que acolhe os
componentes de subjetivação em
circulação, também os emite, fazendo
dessas trocas uma construção coletiva
viva. Assim, esses componentes
ganham importância coletiva e são
atualizados de diferentes maneiras no
cotidiano de cada vivente. A a
que parece constituir a humanidade
mesmo aquela ultrapassada
o caráter de passividade do
personagem (Aldo) que após situação
traumática acaba por se converter
numa subjetividade criminal.
No universo da ficção, o
assassino aparece como
174
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Nasce, assim, a desorientação
psíquica que, se por um lado d
estrói a
consciência, por outro ajuda a suportar
a dor moral. A subjetividade, enquanto
processo de produção no qual
comparecem e participam múltiplos
componentes, é produto de uma
heterogeneidade de elementos
presentes no contexto social. Assim,
ideias e sentidos ganham um
registro singular, tornando
-se matéria-
prima para expressão dos afetos
vividos nesses encontros. Essa
produção de subjetividades, da qual o
sujeito é um efeito provisório, mantém
-
se em aberto uma vez que cada um,
em que acolhe os
componentes de subjetivação em
circulação, também os emite, fazendo
dessas trocas uma construção coletiva
viva. Assim, esses componentes
ganham importância coletiva e são
atualizados de diferentes maneiras no
cotidiano de cada vivente. A a
ngústia,
que parece constituir a humanidade
mesmo aquela ultrapassada
destrói
o caráter de passividade do
personagem (Aldo) que após situação
traumática acaba por se converter
numa subjetividade criminal.
No universo da ficção, o
assassino aparece como
um neurótico
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
que procura neutralizar a dor e o
sofrimento decorrentes das
experiências traumáticas infantis.
Entretanto, o desprazer cresce e exige
uma válvula de escape, oferecida pela
destruição de si e dos outros.
posição extrema, como a de ameaça
medos, e perigos, o personagem
passa a desejar aquilo que faz perigar
a sua vida. Se o perigo é demasiado
pesado, se a morte é inevitável, em
princípio, o desejo fica inibido.
Contudo, se a sorte nos auxilia, “o
aspecto que mais ardentemente
desejamos é
o mais susceptível de
nos arrastar para gastos loucos e de
nos arruinar” (BATAILLE, 1980, p. 77).
A sorte de que fala o estudioso
atravessa o caminho do arquiteto na
ladeira da infância de Espinosa. No
ápice do delírio, o rapaz
‘instintivamente’ atira à q
ueima
a fim de eliminar definitivamente o
agressor. Como assinala Nietzsche, se
o ressentimento é em si o que está
proibido aos doentes, -
o seu mal
infelizmente é, também, a sua
tendência mais primitiva e natural.
Relacionado a um problema
fisiológico, o ressentimento serve para
evidenciar
aquele homem sem forças
para reagir diante dos
imprevistos e
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
que procura neutralizar a dor e o
sofrimento decorrentes das
experiências traumáticas infantis.
Entretanto, o desprazer cresce e exige
uma válvula de escape, oferecida pela
destruição de si e dos outros.
Numa
posição extrema, como a de ameaça
s,
medos, e perigos, o personagem
passa a desejar aquilo que faz perigar
a sua vida. Se o perigo é demasiado
pesado, se a morte é inevitável, em
princípio, o desejo fica inibido.
Contudo, se a sorte nos auxilia, “o
aspecto que mais ardentemente
o mais susceptível de
nos arrastar para gastos loucos e de
nos arruinar” (BATAILLE, 1980, p. 77).
A sorte de que fala o estudioso
atravessa o caminho do arquiteto na
ladeira da infância de Espinosa. No
ápice do delírio, o rapaz
ueima
-roupa,
a fim de eliminar definitivamente o
agressor. Como assinala Nietzsche, se
o ressentimento é em si o que está
o seu mal
infelizmente é, também, a sua
tendência mais primitiva e natural.
Relacionado a um problema
fisiológico, o ressentimento serve para
aquele homem sem forças
imprevistos e
das dificuldades da vida e que,
também, não consegue digerir os
maus sentimentos,
sentimentos nocivos, venenosos,
produzidos por sua
realizar a
verdadeira reação, a dos
atos. Dessa forma, esse indivíduo
passa a manifestar um desequilíbrio
psicológico que o
impossibilita de viver
de forma espontânea, ativa;e movido
por “uma vingança imaginaria”, passa
a viver em função de
‘outro’, um‘não-
eu’, próprio do
ressentimento. A compreensão de sua
própria fraqueza e o sentimento de
decepção em
decorrência da
impossibilidade da ação gera um
rancor, uma vontade de ferir e magoar
aquele
que o desprezou. Assim, surge
nele um desejo
de vingança que a sua
covardia o impossibilita de
não ser de um modo falso e
inventivo,uma vez que o homem do
ressentimento é afeito
suspeitas e evasivas.
O
homem do ressentimento
é franco,nem ingênuo, nem honesto e
reto consigo.
Ele ama
subterfúgios, os caminhos
tudo escondido lhe agrada
mundo, sua segurança, seu
ele entende do silêncio, do não
175
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
das dificuldades da vida e que,
também, não consegue digerir os
maus sentimentos,
aqueles
sentimentos nocivos, venenosos,
incapacidade de
verdadeira reação, a dos
atos. Dessa forma, esse indivíduo
passa a manifestar um desequilíbrio
impossibilita de viver
de forma espontânea, ativa;e movido
por “uma vingança imaginaria”, passa
a viver em função de
“umfora’, um
eu’, próprio do
ressentimento. A compreensão de sua
própria fraqueza e o sentimento de
decorrência da
impossibilidade da ação gera um
rancor, uma vontade de ferir e magoar
que o desprezou. Assim, surge
de vingança que a sua
covardia o impossibilita de
realizar, a
não ser de um modo falso e
inventivo,uma vez que o homem do
ressentimento é afeito
a atitudes
suspeitas e evasivas.
homem do ressentimento
não
é franco,nem ingênuo, nem honesto e
Ele ama
os refúgios, os
subterfúgios, os caminhos
ocultos,
tudo escondido lhe agrada
como seu
mundo, sua segurança, seu
bálsamo;
ele entende do silêncio, do não
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
esquecimento,da espera, do
momentâneo,
e da humilhação
(NIETZSCHE, 1998,
p. 22). O
personagem de Garcia-
Roza é esse
sujeito ressentido, cujo desejo de
vingança foi capaz de transpor
qualquer covardia ou lei.
As vivências
o afetam com demasiada
profundidade, e as recordações
tornam-
se feridas tão purulentas que
ele parte para o
caráter de
autodestruição. O crime por
transferência transforma o
personagem de Garcia
-
criminoso, e dá-
lhe o poder de aplicar
ao malfeitor o castigo merecido
característica essencial da ideia do
homem que prevalece numa dada
sociedade.
Os impu
lsos criminosos advêm
da desordem das categorias sociais, e
são apreensíveis no estado
psicopático em que se instaura o
indivíduo. Por outro lado, permite
ao encontro do ‘gozo’ impossível,
descrito por Lacan como a alucinação
fundamental: “se tod
os os homens, ou
melhor, os neuróticos, vivem
constantemente alucinados, poderiam
ser considerados como loucos e se
aproximam dos psicóticos, uma vez
que ambos se sustentam de uma
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
esquecimento,da espera, do
e da humilhação
própria
p. 22). O
Roza é esse
sujeito ressentido, cujo desejo de
vingança foi capaz de transpor
As vivências
o afetam com demasiada
profundidade, e as recordações
se feridas tão purulentas que
caráter de
autodestruição. O crime por
transferência transforma o
-
Roza num
lhe o poder de aplicar
ao malfeitor o castigo merecido
característica essencial da ideia do
homem que prevalece numa dada
lsos criminosos advêm
da desordem das categorias sociais, e
são apreensíveis no estado
psicopático em que se instaura o
indivíduo. Por outro lado, permite
-lhe ir
ao encontro do ‘gozo’ impossível,
descrito por Lacan como a alucinação
os os homens, ou
melhor, os neuróticos, vivem
constantemente alucinados, poderiam
ser considerados como loucos e se
aproximam dos psicóticos, uma vez
que ambos se sustentam de uma
projeção imaginária” (WILLEMART,
1995, p. 19). Na trama de
sem saída
, Aldo tenta suprimir os
males sociais através da neutralização
da agressividade
mandada de volta
à origem e dirigida contra o próprio eu.
A cultura humana, aquela em que a
vida humana se elevou acima de suas
condições animais e distinta da vida
dos bic
hos, abrange, por um lado, todo
o saber e capacidade adquiridos pelo
homem com o fim de dominar as
forças da natureza; por outro, todas as
instituições necessárias para regular
as relações e ações dos homens entre
si e, em especial, a divisão dos bens
aces
síveis.Entretanto, como a
subjetividade criminal é regida por uma
mente infantil primária, ela viola as
intermediações do superego e cede à
satisfação dos impulsos. Por isso,
precisa ser punido pelo fato de ter
burlado a lei, o controle representado
pelo Pai
e deve ser punido pela
sociedade. No plano da ficção,
Espinosa -
metáfora da ordem e do
cumprimento da lei
mais um assassinato
arquiteto.
Se o primeiro crime realizado
pelo homem justifica
forma, pelas
angústias decorrentes do
176
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
projeção imaginária” (WILLEMART,
1995, p. 19). Na trama de
Espinosa
, Aldo tenta suprimir os
males sociais através da neutralização
mandada de volta
à origem e dirigida contra o próprio eu.
A cultura humana, aquela em que a
vida humana se elevou acima de suas
condições animais e distinta da vida
hos, abrange, por um lado, todo
o saber e capacidade adquiridos pelo
homem com o fim de dominar as
forças da natureza; por outro, todas as
instituições necessárias para regular
as relações e ações dos homens entre
si e, em especial, a divisão dos bens
síveis.Entretanto, como a
subjetividade criminal é regida por uma
mente infantil primária, ela viola as
intermediações do superego e cede à
satisfação dos impulsos. Por isso,
precisa ser punido pelo fato de ter
burlado a lei, o controle representado
e deve ser punido pela
sociedade. No plano da ficção,
metáfora da ordem e do
precisa lidar com
– o da esposa do
Se o primeiro crime realizado
pelo homem justifica
-se, de certa
angústias decorrentes do
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
trauma, o segundo pode ser entendido
como um desejo de vingança
(punição) pelo agir frio e degradante
de Camila. Na trama do romance, ela
não escapa do perfil de um criminoso
ao violar a moral e ordem instituídas.
Ao se transforma
r “numa pessoa
sexualmente perversa, com um
comportamento que poderia facilmente
se tornar público” (ES
, p. 206), a
mulher o deixa de ameaçar a
imagem da família, daí a
responsabilidade do personagem
marido e pai
de aplicar o castigo
oriundo do ato d
e transgressão. De
acordo com Lacan, o crime torna o
indivíduo um foracluído, mas ao
mesmo tempo permite
experimentar um poder perdido
sua castração como ser, quando era
criança (LACAN, 1998,
p. 139). Ser
juiz e decidir sobre a vida ou a mort
de outros não seria uma forma de o
criminoso reverter sua castração?
O poder de matar ou de poupar
a vida da esposa não se torna a prova
maior da filiação do personagem à
categoria criminal? E se a lei moral se
afirma contra a satisfação dos
impulsos e
do prazer, é preciso pagar
com alguma coisa: “essa alguma coisa
se chama gozo, o bem que se paga
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
trauma, o segundo pode ser entendido
como um desejo de vingança
(punição) pelo agir frio e degradante
de Camila. Na trama do romance, ela
não escapa do perfil de um criminoso
ao violar a moral e ordem instituídas.
r “numa pessoa
sexualmente perversa, com um
comportamento que poderia facilmente
, p. 206), a
mulher o deixa de ameaçar a
imagem da família, daí a
responsabilidade do personagem
de aplicar o castigo
e transgressão. De
acordo com Lacan, o crime torna o
indivíduo um foracluído, mas ao
mesmo tempo permite
-lhe
experimentar um poder perdido
o da
sua castração como ser, quando era
p. 139). Ser
juiz e decidir sobre a vida ou a mort
e
de outros não seria uma forma de o
criminoso reverter sua castração?
O poder de matar ou de poupar
a vida da esposa não se torna a prova
maior da filiação do personagem à
categoria criminal? E se a lei moral se
afirma contra a satisfação dos
do prazer, é preciso pagar
com alguma coisa: “essa alguma coisa
se chama gozo, o bem que se paga
pela satisfação do desejo” (LACAN,
1997, p. 386). No sentido psicanalítico,
a sexualidade humana, no fundo, pode
ser definida como ‘perversa’, na
medida em que
nunca se desliga
inteiramente das suas origens, que a
fazem procurar sua satisfação não
numa atividade especifica, mas no
ganho do prazer ligado a funções ou
atividades que dependem de outras
pulsões (FREUD, 2002, p. 45). O
criminoso deseja reverter sua
c
astração pelo poder de ameaça que
ele representa. Se a lei moral se
afirma contra o prazer, a morte de
Camila significa a punição do indivíduo
que faz dos instintos a lei natural da
realização dos desejos? Ou a
libertação plena de uma sociedade
castradora,
incapaz de saciar os
desejos de qualquer sujeito? Se
atentarmos para este significado, a
morte pode ser vista como auge, o fim
da angústia de alguém cuja vivência
não passa de um evento de ficção.
Freud sustenta que o indivíduo é
virtualmente inimigo da
visto o pesado fardo dos sacrifícios
impostos pelos poderes coercitivos
aos impulsos e aos desejos naturais.
Freud aponta que é através do
sentimento de culpa que a civilização
177
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
pela satisfação do desejo” (LACAN,
1997, p. 386). No sentido psicanalítico,
a sexualidade humana, no fundo, pode
ser definida como ‘perversa’, na
nunca se desliga
inteiramente das suas origens, que a
fazem procurar sua satisfação não
numa atividade especifica, mas no
ganho do prazer ligado a funções ou
atividades que dependem de outras
pulsões (FREUD, 2002, p. 45). O
criminoso deseja reverter sua
astração pelo poder de ameaça que
ele representa. Se a lei moral se
afirma contra o prazer, a morte de
Camila significa a punição do indivíduo
que faz dos instintos a lei natural da
realização dos desejos? Ou a
libertação plena de uma sociedade
incapaz de saciar os
desejos de qualquer sujeito? Se
atentarmos para este significado, a
morte pode ser vista como auge, o fim
da angústia de alguém cuja vivência
não passa de um evento de ficção.
Freud sustenta que o indivíduo é
virtualmente inimigo da
civilização,
visto o pesado fardo dos sacrifícios
impostos pelos poderes coercitivos
aos impulsos e aos desejos naturais.
Freud aponta que é através do
sentimento de culpa que a civilização
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
impede que a potência dos instintos se
transforme em ato. Se a cu
atormenta o arquiteto de
sem saída
, ela não se torna aparente
nas violações morais e criminosas
praticadas por Aurélio, em
da chuva
. Aqui, os processos de
singularização apontados por Guattari
podem ser entendidos como algo que
frus
tra esses mecanismos de
interiorização dos valores
capitalísticos, e que pode conduzir à
afirmação de valores num registro
particular, independentemente das
escalas de valor que nos cercam e
espreitam por todos os lados
(GUATTARI & ROLNIK, 1996, p. 47).
No
romance de estreia de Garcia
Roza, a coerção que o indivíduo sofre
pelo sistema social maquínico,
atrelado ao seu desejo de ambição,
transforma-
o num criminoso, e
demonstram a sua foraclusão ou
assujeitamento diante da ordem
vigente.
No caso de Aurélio, a tensão
entre o severo superego e o ego não
consegue dominar o seu perigoso
desejo de agressão, “enfraquecendo
o, desarmando-
o e estabelecendo no
seu interior um agente para cuidar
dele, como uma guarnição numa
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
impede que a potência dos instintos se
transforme em ato. Se a cu
lpa
atormenta o arquiteto de
Espinosa
, ela não se torna aparente
nas violações morais e criminosas
praticadas por Aurélio, em
O silêncio
. Aqui, os processos de
singularização apontados por Guattari
podem ser entendidos como algo que
tra esses mecanismos de
interiorização dos valores
capitalísticos, e que pode conduzir à
afirmação de valores num registro
particular, independentemente das
escalas de valor que nos cercam e
espreitam por todos os lados
(GUATTARI & ROLNIK, 1996, p. 47).
romance de estreia de Garcia
-
Roza, a coerção que o indivíduo sofre
pelo sistema social maquínico,
atrelado ao seu desejo de ambição,
o num criminoso, e
demonstram a sua foraclusão ou
assujeitamento diante da ordem
No caso de Aurélio, a tensão
entre o severo superego e o ego não
consegue dominar o seu perigoso
desejo de agressão, “enfraquecendo
-
o e estabelecendo no
seu interior um agente para cuidar
dele, como uma guarnição numa
cidade conquistada”
1998, p. 19).
Assim, se em Freud a
restrição aos impulsos produzirá
sentimento de culpa, em Nietzsche o
sentimento provocado pela repressão
aos desejos naturais do homem, o
não-
gozar da liberdade experimentada
no estado de natureza, gera
ressentime
nto. A civilização, nas
proposições nietzschiana e freudiana,
se constitui como cultura inumana de
recalque dos desejos, sendo o mal
estar e a angústia os efeitos do
excesso das restrições impostas pelas
agências moralizadoras. Neste
sentido, além de ser u
expelir aquilo que nos fere, o crime em
O silêncio da chuva
como uma prática libertadora e de
extremo prazer. Agindo como se não
fosse viver o amanhã, Aurélio segue
lado a lado com Espinosa, sem ao
menos sentir medo da punição. P
Freud, estes são os criminosos adultos
que praticam crimes sem qualquer
sentimento de culpa;
desenvolveram quaisquer inibições
morais, ou, em seu conflito com a
sociedade, consideram sua ação
justificada (FREUD, 1996, p. 348).
Tais ações s
delinquentes psicopatas ou sociopatas
178
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cidade conquistada”
(NIETZSCHE,
Assim, se em Freud a
restrição aos impulsos produzirá
sentimento de culpa, em Nietzsche o
sentimento provocado pela repressão
aos desejos naturais do homem, o
gozar da liberdade experimentada
no estado de natureza, gera
nto. A civilização, nas
proposições nietzschiana e freudiana,
se constitui como cultura inumana de
recalque dos desejos, sendo o mal
-
estar e a angústia os efeitos do
excesso das restrições impostas pelas
agências moralizadoras. Neste
sentido, além de ser u
ma forma de
expelir aquilo que nos fere, o crime em
O silêncio da chuva
pode ser visto
como uma prática libertadora e de
extremo prazer. Agindo como se não
fosse viver o amanhã, Aurélio segue
lado a lado com Espinosa, sem ao
menos sentir medo da punição. P
ara
Freud, estes são os criminosos adultos
que praticam crimes sem qualquer
sentimento de culpa;
que, ou não
desenvolveram quaisquer inibições
morais, ou, em seu conflito com a
sociedade, consideram sua ação
justificada (FREUD, 1996, p. 348).
Tais ações s
ão típicas de
delinquentes psicopatas ou sociopatas
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Garcia-
Roza: um misto de policial e psicanálise.
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
155-181, out. 2019 a março 2020.
cujo crime corresponde ao de um
perverso agindo friamente
lembremos que todas as mortes
provocadas por Aurélio no romance
exploram a violência por mutilação.
Daí a dificuldade de Espinosa na
captura des
te tipo de desviante: “Não
retrato que corresponda ao
perverso. Pode parecer com qualquer
um de nós” (SC
, p. 125). O agir do
personagem
metaforizando o agir de
qualquer sujeito de nossa realidade
estaria relacionado à satisfação do
prazer aniquilad
o pela cultura.
lei moral se afirma contra a satisfação
dos impulsos e do prazer, é preciso
pagar com alguma coisa: “essa
alguma coisa se chama gozo, o bem
que se paga pela satisfação do desejo”
(LACAN, 1997, p. 386).
Problematizando vários
aspectos
da chamada sociedade de
massa, de consumo, e acompanhando
a desordem provocada pelos impactos
de um mundo globalizado, capitalista e
perigoso, a trama policial de Garcia
Roza, um dos maiores escritores da
América Latina, apresentam
personagens que se cons
troem sob o
signo do simulacro.Isto quer dizer que
a realidade que seus livros
representam é mascarada, fingida ou
AZEVEDO, Fernanda Mara de Almeida. Violência e crime em Luiz Alfredo
Roza: um misto de policial e psicanálise.
PragMATIZES - Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
cujo crime corresponde ao de um
perverso agindo friamente
lembremos que todas as mortes
provocadas por Aurélio no romance
exploram a violência por mutilação.
Daí a dificuldade de Espinosa na
te tipo de desviante: “Não
retrato que corresponda ao
perverso. Pode parecer com qualquer
, p. 125). O agir do
metaforizando o agir de
qualquer sujeito de nossa realidade
estaria relacionado à satisfação do
o pela cultura.
E se a
lei moral se afirma contra a satisfação
dos impulsos e do prazer, é preciso
pagar com alguma coisa: “essa
alguma coisa se chama gozo, o bem
que se paga pela satisfação do desejo”
Problematizando vários
da chamada sociedade de
massa, de consumo, e acompanhando
a desordem provocada pelos impactos
de um mundo globalizado, capitalista e
perigoso, a trama policial de Garcia
-
Roza, um dos maiores escritores da
América Latina, apresentam
troem sob o
signo do simulacro.Isto quer dizer que
a realidade que seus livros
representam é mascarada, fingida ou
representada
algo que condiz com a
condição contemporânea: “A forma
pós-
moderna de ocultamento consiste
em obscurecer ou apagar inteirament
a distinção entre verdade e falsidade
dentro dos próprios seres” (BAUMAN,
1998, p. 158). Ao detetive que
vivencia, ficcionalmente, esta
realidade, lidar com uma sociedade
sem rosto torna-
se o maior de todos os
entraves para a reconstituição da
moral e da ordem.
A literatura, enquanto a
expressão da cultura, caminha de
braços dados com as mudanças na
ordem social, política e econômica de
seus respectivos países. Nesta nova
ordem social, crime e criminoso são os
verdadeiros componentes dessa
barbárie pós-m
oderna
contexto, a polícia não cumpre a
função para a qual fora criada;
principalmente pela presença desse
Outro, regido única e exclusivamente
pelas forças do inconsciente, que são,
acima de tudo, inexplicáveis,
irreveláveis e inescrutáveis.
Re
ferências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros
e.
O mundo emocionante do romance
policial. Rio de J
aneiro: Francisco
Alves, 1979.
179
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
algo que condiz com a
condição contemporânea: “A forma
moderna de ocultamento consiste
em obscurecer ou apagar inteirament
e
a distinção entre verdade e falsidade
dentro dos próprios seres” (BAUMAN,
1998, p. 158). Ao detetive que
vivencia, ficcionalmente, esta
realidade, lidar com uma sociedade
se o maior de todos os
entraves para a reconstituição da
A literatura, enquanto a
expressão da cultura, caminha de
braços dados com as mudanças na
ordem social, política e econômica de
seus respectivos países. Nesta nova
ordem social, crime e criminoso são os
verdadeiros componentes dessa
oderna
e neste
contexto, a polícia não cumpre a
função para a qual fora criada;
principalmente pela presença desse
Outro, regido única e exclusivamente
pelas forças do inconsciente, que são,
acima de tudo, inexplicáveis,
irreveláveis e inescrutáveis.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
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São Paulo:
-
105.
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
Representações da violência institucional em
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40416
Resumo:
O presente artigo aborda algumas representações da violência, especialmente em seu
caráter institucional, contra crianças e jovens, no romance
Mortos
(1977), estabelecendo diálogos com a História
estudam o tema, como o Direito. Entre os trabalhos cotejados neste artigo estão os de André Gustavo
de Paula Eduardo (2013), Elio Gaspari (2002), Marcos Napolitano (2011),
(2009), Márcio Rogério d
e Oliveira (2008), Vanessa Chiari
1987). Assumindo que a literatura está intrinsecamente ligada a fenômenos sociais, pretende
apurar de que maneira a violência institucional é representada no romance
delineamento conceitual, bem como seus desdobramentos e efeitos nos mecanismos de controle
social na obra de Louzeiro.
Palavras-chave:
Violência institucional;
Representaciones de violencia institucional en
Resumen:
Este artículo aborda algunas representaciones de violencia, en su carácter institucional,
contra los niños y los jóvenes, en el romance
la historia y otras áreas de conocimiento que estudian el tema, como Derecho. Entre los trabajos
compilados en este artículo están los de André Gustavo de Paula Eduardo (2013), Elio Gaspari
(2002), Marcos Napolitano (2011), Ma
Vanessa Chiari Gonçalves (2013) y Michel Foucault (1984, 1987). Suponiendo que la literatura está
intrínsecamente vinculada a los fenómenos sociales, su objetivo es investigar cómo se representa
1
Eloísa Porto Corrêa
Allevato Braem.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, p
Janeiro, Brasil. E-
mail: eloisaporto@gmail.com
2
Saron do Amaral Gomes.
Graduado em Letras/Literaturas pela Faculdade de Formação de
Professores da Universidade d
o Estado do Rio de Janeiro (UERJ
saron.do.valle@gmail.com –
https://orcid.org/0000
Este trabalho é um dos produtos da pesquisa de IC UERJ, coordenada pela Prof.ª Dra. Eloisa Porto
C. Allevato Braem, intitulada: O Direito na Lit
Mortos, de José Louzeiro, e
Pixote, a lei do mais fraco
Texto recebido em 15/01/2020
e aceito para publicação em 2
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Representações da violência institucional em
Infância dos M
Louzeiro
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40416
Eloísa Porto C. Allevato Braem
Saron do Amaral
O presente artigo aborda algumas representações da violência, especialmente em seu
caráter institucional, contra crianças e jovens, no romance
-
reportagem de José Louzeiro
(1977), estabelecendo diálogos com a História
e com outras áreas do conhecimento que
estudam o tema, como o Direito. Entre os trabalhos cotejados neste artigo estão os de André Gustavo
de Paula Eduardo (2013), Elio Gaspari (2002), Marcos Napolitano (2011),
Maria Cecília
e Oliveira (2008), Vanessa Chiari
Gonçalves (2013)
e Michel Foucault (1984,
1987). Assumindo que a literatura está intrinsecamente ligada a fenômenos sociais, pretende
apurar de que maneira a violência institucional é representada no romance
-
reportagem,
delineamento conceitual, bem como seus desdobramentos e efeitos nos mecanismos de controle
Violência institucional;
Infância dos Mortos; José Louzeiro.
Representaciones de violencia institucional en
Infância dos mortos
, de José Louzeiro
Este artículo aborda algunas representaciones de violencia, en su carácter institucional,
contra los niños y los jóvenes, en el romance
-reportaje de José Louzeir
o, estableciendo diálogos con
la historia y otras áreas de conocimiento que estudian el tema, como Derecho. Entre los trabajos
compilados en este artículo están los de André Gustavo de Paula Eduardo (2013), Elio Gaspari
(2002), Marcos Napolitano (2011), Ma
ria Cecilia Minayo (2009), Márcio Rogério de Oliveira (2008),
Vanessa Chiari Gonçalves (2013) y Michel Foucault (1984, 1987). Suponiendo que la literatura está
intrínsecamente vinculada a los fenómenos sociales, su objetivo es investigar cómo se representa
Allevato Braem.
Doutora em
Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, p
rofessora Adjunta na Universidade do Estado do Rio de
mail: eloisaporto@gmail.com
– https://orcid.org/0000-0001-
5356
Graduado em Letras/Literaturas pela Faculdade de Formação de
o Estado do Rio de Janeiro (UERJ
-FFP) E-mail:
https://orcid.org/0000
-0002-5710-8309
Este trabalho é um dos produtos da pesquisa de IC UERJ, coordenada pela Prof.ª Dra. Eloisa Porto
C. Allevato Braem, intitulada: O Direito na Lit
eratura e no Cinema: um estudo sobre
Pixote, a lei do mais fraco
, dirigido por Hector Babenco.
e aceito para publicação em 2
1/01/2020.
182
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Infância dos M
ortos
, de José
Eloísa Porto C. Allevato Braem
1
Saron do Amaral
Gomes
2
O presente artigo aborda algumas representações da violência, especialmente em seu
reportagem de José Louzeiro
, Infância dos
e com outras áreas do conhecimento que
estudam o tema, como o Direito. Entre os trabalhos cotejados neste artigo estão os de André Gustavo
Maria Cecília
Minayo
e Michel Foucault (1984,
1987). Assumindo que a literatura está intrinsecamente ligada a fenômenos sociais, pretende
-se
reportagem,
qual é o seu
delineamento conceitual, bem como seus desdobramentos e efeitos nos mecanismos de controle
, de José Louzeiro
Este artículo aborda algunas representaciones de violencia, en su carácter institucional,
o, estableciendo diálogos con
la historia y otras áreas de conocimiento que estudian el tema, como Derecho. Entre los trabajos
compilados en este artículo están los de André Gustavo de Paula Eduardo (2013), Elio Gaspari
ria Cecilia Minayo (2009), Márcio Rogério de Oliveira (2008),
Vanessa Chiari Gonçalves (2013) y Michel Foucault (1984, 1987). Suponiendo que la literatura está
intrínsecamente vinculada a los fenómenos sociales, su objetivo es investigar cómo se representa
la
Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa) pela
5356
-3059
Graduado em Letras/Literaturas pela Faculdade de Formação de
Este trabalho é um dos produtos da pesquisa de IC UERJ, coordenada pela Prof.ª Dra. Eloisa Porto
eratura e no Cinema: um estudo sobre
Infância dos
, dirigido por Hector Babenco.
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
violencia institucional en el romance
consecuencias y efectos sobre los mecanismos de control social en el trabajo de José Louzeiro.
Palabras clave:
Violencia institucional;
Representations of institutional violence in
Abstract:
This article discusses some representations of violence, especially in its institutional
character, against children and youth, in José Louzeiro's
establishing dialogues with history and other areas of knowledge that study the theme, such the law.
Among the collated works in this article are those of André Gustavo de Paula Eduardo (2013), Elio
Gaspari (2002), Marcos Napolitano (2011), Maria
(2008), Vanessa Chiari Gonçalves (2013) and Michel Foucault (1984, 1987). Accepting that literature
is intrinsically linked to social phenomena, we intend to investigate how institutional violence is
represented in the novel-
reportage, what is its conceptual design, as well as its consequences and
effects on the mechanisms
of social control in Louzeiro's work.
Keywords:
Institutional Violence;
Representações da violênci
O romance-
reportagem
dos Mortos
(1977) ficcionaliza o
processo de marginalização de
crianças desamparadas, que
perambulam pelas ruas de cidades
brasileiras como o Rio de Janeiro, São
Paulo e Camanducaia
, no sul de Minas
Gerais, locais onde o maranhense
José Louzeiro (1932-
2017) atuou
como jornalista a partir de 1950. São
episódios de mendicância,
prostituição, envolvimento com drogas,
furtos e outros atos infracionais
cometidos por jovens desamparados,
n
a busca por subsistência, não raro
explorados por organizações
criminosas e agredidos por agentes de
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
violencia institucional en el romance
-
reportaje, cuál es su esquema conceptual, así como sus
consecuencias y efectos sobre los mecanismos de control social en el trabajo de José Louzeiro.
Violencia institucional;
Infância dos Mortos; José Louzeiro
Representations of institutional violence in
Infância dos mortos
, by José Louzeiro
This article discusses some representations of violence, especially in its institutional
character, against children and youth, in José Louzeiro's
novel-reportage:
Infância dos M
establishing dialogues with history and other areas of knowledge that study the theme, such the law.
Among the collated works in this article are those of André Gustavo de Paula Eduardo (2013), Elio
Gaspari (2002), Marcos Napolitano (2011), Maria
Cecilia Minayo (2009), Márcio Rogério de Oliveira
(2008), Vanessa Chiari Gonçalves (2013) and Michel Foucault (1984, 1987). Accepting that literature
is intrinsically linked to social phenomena, we intend to investigate how institutional violence is
reportage, what is its conceptual design, as well as its consequences and
of social control in Louzeiro's work.
Institutional Violence;
Infância dos Mortos; José Louzeiro.
Representações da violênci
a institucional em
Infância dos Mortos
Louzeiro
reportagem
Infância
(1977) ficcionaliza o
processo de marginalização de
crianças desamparadas, que
perambulam pelas ruas de cidades
brasileiras como o Rio de Janeiro, São
, no sul de Minas
Gerais, locais onde o maranhense
2017) atuou
como jornalista a partir de 1950. São
episódios de mendicância,
prostituição, envolvimento com drogas,
furtos e outros atos infracionais
cometidos por jovens desamparados,
a busca por subsistência, não raro
explorados por organizações
criminosas e agredidos por agentes de
instituições que deveriam amparar,
educar e ressocializar esses
Desde a epígrafe do romance
reportagem,
retirada do Jornal do
Brasil de 05/04/197
6, notamos que a
narrativa de
José Louzeiro estabelece
diálogo com obras jornalísticas da
época e a preocupação em
demonstrar como os índices de
violência contra crianças e jovens
vulneráveis no Brasil eram altos: “Há
cerca de 15 milhões de menores
abandon
ados ou em estado de
carência no Brasil ou à espera de
alguma ajuda. Representam pouco
menos de um terço dos 48.226.708
brasileiros entre zero e 18 anos”,
183
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
reportaje, cuál es su esquema conceptual, así como sus
consecuencias y efectos sobre los mecanismos de control social en el trabajo de José Louzeiro.
, by José Louzeiro
This article discusses some representations of violence, especially in its institutional
Infância dos M
ortos (1977),
establishing dialogues with history and other areas of knowledge that study the theme, such the law.
Among the collated works in this article are those of André Gustavo de Paula Eduardo (2013), Elio
Cecilia Minayo (2009), Márcio Rogério de Oliveira
(2008), Vanessa Chiari Gonçalves (2013) and Michel Foucault (1984, 1987). Accepting that literature
is intrinsically linked to social phenomena, we intend to investigate how institutional violence is
reportage, what is its conceptual design, as well as its consequences and
Infância dos Mortos
, de José
instituições que deveriam amparar,
educar e ressocializar esses
meninos.
Desde a epígrafe do romance
-
retirada do Jornal do
6, notamos que a
José Louzeiro estabelece
diálogo com obras jornalísticas da
época e a preocupação em
demonstrar como os índices de
violência contra crianças e jovens
vulneráveis no Brasil eram altos: “Há
cerca de 15 milhões de menores
ados ou em estado de
carência no Brasil ou à espera de
alguma ajuda. Representam pouco
menos de um terço dos 48.226.708
brasileiros entre zero e 18 anos”,
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
estando 42,91% deles na região
sudeste (LOUZEIRO, 1977, p. 8), foco
da narrativa em estudo.
Em suas d
iversas formas, a
violência é uma das preocupações
mais latentes das sociedades nos
últimos séculos. Segundo Minayo
(2009, p. 31), os piores índices de
“morbimortalidade por violência no
Brasil ocorrem nas cidades” e estão
ligados à delinquência, acidentes
trânsito e de transporte, ao tráfico de
drogas e à difusão das armas de fogo
no país. Exemplos dessas variantes da
violência são fartos desde as primeiras
linhas de
Infância dos Mortos
como se pode notar no seguinte
impasse vivido pelo protagon
enfatizado pelo narrador no discurso
indireto-livre:
Como
honestamente com tipos como
Cristal
(traficante e aliciador)
delegado Mauro,
Roxão
Caramelo (policiais truculentos e
corruptos na obra)? Apagaram
Zebrado,
queimaram Pixote,
Fu
maça e Manguito haviam
sumido”
(LOUZEIRO, 1977, p. 104).
No fragmento, o narrador revela o
dilema do jovem vulnerável e sua
revolta pela falta de opções, que o
deixa dividido entre, por um lado, o
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
estando 42,91% deles na região
sudeste (LOUZEIRO, 1977, p. 8), foco
iversas formas, a
violência é uma das preocupações
mais latentes das sociedades nos
últimos séculos. Segundo Minayo
(2009, p. 31), os piores índices de
“morbimortalidade por violência no
Brasil ocorrem nas cidades” e estão
ligados à delinquência, acidentes
de
trânsito e de transporte, ao tráfico de
drogas e à difusão das armas de fogo
no país. Exemplos dessas variantes da
violência são fartos desde as primeiras
Infância dos Mortos
(1977),
como se pode notar no seguinte
impasse vivido pelo protagon
ista Dito e
enfatizado pelo narrador no discurso
Como
agir
honestamente com tipos como
(traficante e aliciador)
, o
Roxão
e
Caramelo (policiais truculentos e
corruptos na obra)? Apagaram
queimaram Pixote,
maça e Manguito haviam
(LOUZEIRO, 1977, p. 104).
No fragmento, o narrador revela o
dilema do jovem vulnerável e sua
revolta pela falta de opções, que o
deixa dividido entre, por um lado, o
desejo de agir dentro da lei e de ser
aceito socialmente, m
a necessidade de sobreviver em meio
à violência, à escassez de recursos e
à marginalização nas ruas, que vão
levando-
o cada vez mais a se envolver
em situações de conflito com a lei.
No entanto, mesmo que seja
frequente, ao falarmos de violência, a
ênfase dada à sua variante urbana,
onde roubos e mortes
centralidade, pressupõe
regiões fora do perímetro urbano a
violência seja muito menor ou
inexistente pode contribuir p
análise inconsistente do fenômeno.
Isso porque mais índices elevados de
violência nas cidades podem ser fruto
da ênfase maior dada às variantes da
violência urbana, inclusive nos
veículos de comunicação e outros
espaços de debate público, na
elabor
ação das leis e na
implementação de políticas de
segurança pública. Por outro lado, o
inchaço populacional e o crescimento
desordenado nas cidades realmente
contribuem para a elevação nos
números da violência nesses espaços.
Grande parte do romance
reporta
gem de Louzeiro aborda a
violência no sudeste brasileiro, em
184
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
desejo de agir dentro da lei e de ser
aceito socialmente, m
as por outro lado
a necessidade de sobreviver em meio
à violência, à escassez de recursos e
à marginalização nas ruas, que vão
o cada vez mais a se envolver
em situações de conflito com a lei.
No entanto, mesmo que seja
frequente, ao falarmos de violência, a
ênfase dada à sua variante urbana,
onde roubos e mortes
adquirem
centralidade, pressupõe
que em
regiões fora do perímetro urbano a
violência seja muito menor ou
inexistente pode contribuir p
ara uma
análise inconsistente do fenômeno.
Isso porque mais índices elevados de
violência nas cidades podem ser fruto
da ênfase maior dada às variantes da
violência urbana, inclusive nos
veículos de comunicação e outros
espaços de debate público, na
ação das leis e na
implementação de políticas de
segurança pública. Por outro lado, o
inchaço populacional e o crescimento
desordenado nas cidades realmente
contribuem para a elevação nos
números da violência nesses espaços.
Grande parte do romance
-
gem de Louzeiro aborda a
violência no sudeste brasileiro, em
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
áreas mais urbanizadas do país à
época, como Rio de Janeiro e São
Paulo, mas também toca na violência
ocorrida fora do perímetro urbano e no
modo como a violência urbana pode
se propagar e afetar
outras regiões.
Isso se fa
z através do diálogo com o
polêmico caso dos meninos de
Camanducaia,
no sul de Minas Gerais,
ocorrido em outubro de 1974 e
investigado por Jo Louzeiro,
inspirando-
lhe passagens e
personagens de
Infância dos Mortos
(1977). Em suas investigações sobre o
episódio, o jornalista e romancista
apurou que quase cem
menores de
idade recolhidos das ruas e de
delegacias, acusados de praticar atos
infracionais em São Paulo, tinham sido
jogados nus e espancados de uma
ribanceira
em Camanducaia, por
policiais do DEIC, Departamento
Estadual de Investigações Criminais
de São Paulo. Mas, apesar de o
número de jovens e as circunstâncias
do evento terem causado escândalo,
não se tratava de um caso isolado,
como lembra
André Gustavo de
Eduardo (2013, p. 87).
As dificuldades para publicar
textos sobre casos como esse em
jornais levam Louzeiro a escrever
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
áreas mais urbanizadas do país à
época, como Rio de Janeiro e São
Paulo, mas também toca na violência
ocorrida fora do perímetro urbano e no
modo como a violência urbana pode
outras regiões.
z através do diálogo com o
polêmico caso dos meninos de
no sul de Minas Gerais,
ocorrido em outubro de 1974 e
investigado por Jo Louzeiro,
lhe passagens e
Infância dos Mortos
(1977). Em suas investigações sobre o
episódio, o jornalista e romancista
menores de
idade recolhidos das ruas e de
delegacias, acusados de praticar atos
infracionais em São Paulo, tinham sido
jogados nus e espancados de uma
em Camanducaia, por
policiais do DEIC, Departamento
Estadual de Investigações Criminais
de São Paulo. Mas, apesar de o
número de jovens e as circunstâncias
do evento terem causado escândalo,
não se tratava de um caso isolado,
André Gustavo de
Paula
As dificuldades para publicar
textos sobre casos como esse em
jornais levam Louzeiro a escrever
Infância dos Mortos
de romance
ficcionalizando matérias jornalísticas
censuradas pelos órgãos militares
ficcionalizando o contato do escritor
com “os arredios garotos encontrados
em Camanducaia, notavelmente com
Dito, que se torna protagonista”
obra
(EDUARDO, 2013, p. 88)
do sucesso da narrativa no Brasil e em
outros países, o livro ganha uma
recriação cinematográfica em 1980
1981, intitulada
Pixote, a lei do mais
fraco
, e dirigida por Hector Babenco.
Infância dos Mortos
concebida durante um dos períodos
mais violentos da ditadura militar
brasileira, após o chamado golpe
dentro do golpe: o AI
ato institucional ampliou sobremaneira
os mecanismos de repressão e
censura do regime, desviando
ideais constitucionalistas liberais,
como lembr
a o professor Marcos
Napolitano (2011, p. 217), e
inaugurando o que Elio Gaspari (2002)
chama de “
ditadura escancarada”
anos de chumbo (1968
prisões arbitrárias, práticas de tortura e
execução de presos. Nesse contexto,
foi relevante o “papel
repressão política, nas escalas de
185
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
(1977) em forma
de romance
-reportagem,
ficcionalizando matérias jornalísticas
censuradas pelos órgãos militares
e
ficcionalizando o contato do escritor
com “os arredios garotos encontrados
em Camanducaia, notavelmente com
Dito, que se torna protagonista”
da
(EDUARDO, 2013, p. 88)
. Diante
do sucesso da narrativa no Brasil e em
outros países, o livro ganha uma
recriação cinematográfica em 1980
-
Pixote, a lei do mais
, e dirigida por Hector Babenco.
Infância dos Mortos
(1977) foi
concebida durante um dos períodos
mais violentos da ditadura militar
brasileira, após o chamado golpe
dentro do golpe: o AI
-5 (1968). Este
ato institucional ampliou sobremaneira
os mecanismos de repressão e
censura do regime, desviando
-se dos
ideais constitucionalistas liberais,
a o professor Marcos
Napolitano (2011, p. 217), e
inaugurando o que Elio Gaspari (2002)
ditadura escancarada”
ou
anos de chumbo (1968
-1974), com
prisões arbitrárias, práticas de tortura e
execução de presos. Nesse contexto,
da legislação na
repressão política, nas escalas de
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
violência legal e para-
legal, implicando
em variadas formas de controle e
repressão sobre os diversos atores
sociais e políticos” (NAPOLITANO,
2011, p. 216). Surgem também, nesse
cenário, os porões do re
gime que
mesmo não sendo “espaços
desregrados, virtualmente
incontroláveis e autônomos”
evidenciam as relações entre
autoritarismo institucional e repressão
violenta no regime militar brasileiro, o
qual valeu-
se da “tortura como sistema
e não como m
ero desvio patológico
de alguns indivíduos a serviço do
poder”, como lembra Napolitano (2011,
p. 216).
Vários episódios em
dos Mortos
(1977) remetem a esses
porões do regime, à violência legal e
para-
legal, à corrupção e aos
excessos cometidos po
militares e civis, dentro e fora de
órgãos públicos, não apenas contra
presos políticos, mas também contra
presos comuns e até contra crianças e
jovens em situação de vulnerabilidade
ou autores de atos infracionais. É o
que se nota no trecho a seg
romance-
reportagem, em que
Manguito, Dito e Fumaça são presos e
torturados em uma delegacia de São
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
legal, implicando
em variadas formas de controle e
repressão sobre os diversos atores
sociais e políticos” (NAPOLITANO,
2011, p. 216). Surgem também, nesse
gime que
mesmo não sendo “espaços
desregrados, virtualmente
incontroláveis e autônomos”
evidenciam as relações entre
autoritarismo institucional e repressão
violenta no regime militar brasileiro, o
se da “tortura como sistema
ero desvio patológico
de alguns indivíduos a serviço do
poder”, como lembra Napolitano (2011,
Vários episódios em
Infância
(1977) remetem a esses
porões do regime, à violência legal e
legal, à corrupção e aos
excessos cometidos po
r grupos
militares e civis, dentro e fora de
órgãos públicos, não apenas contra
presos políticos, mas também contra
presos comuns e até contra crianças e
jovens em situação de vulnerabilidade
ou autores de atos infracionais. É o
que se nota no trecho a seg
uir do
reportagem, em que
Manguito, Dito e Fumaça são presos e
torturados em uma delegacia de São
Paulo, depois de serem flagrados
entregando drogas a uma receptadora
no estabelecimento indicado pelo
traficante aliciador Cristal. Mas, são
apreendid
os apenas os meninos,
provavelmente delatados. Os policiais
não prendem outros integrantes da
quadrilha no ponto de prostituição,
tráfico de entorpecentes e outras
contravenções
“tudo do grupo”,
como declara Cristal (LOUZEIRO,
1977, p. 18)
e não aceita
jovens acusem Débora, a receptadora
das drogas, o que sugere
envolvimento dos agentes públicos no
esquema criminoso:
Dito não sabia o que fazer. Não
conseguia entender se o cara era um
tira ou traficante
querendo passar Cristal pa
Estava confuso e bastante
atordoado, pois cada vez mais o
braço era torcido e os cabelos
esticados.
Fala, moleque, antes que me
enfureça.
Entreguei tudo a
quase chorando.
Mentira, cachorro! Não mete a
mulher nos teus rolos
— Leva pro
confessionário
O magricela e o moreno puseram
a empurrar Dito. Agora, sabiam estar
numa
delegacia
Dito temia. (...)
Acho
bom abrirem logo o bico
Dr. Mauro não é de brincadeira.
tirou o couro de muito cara ruim
quanto mais de vocês (...)
Prometi
porrada
ter. (LOUZEIRO, 1977, p. 31
grifos nossos)
186
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Paulo, depois de serem flagrados
entregando drogas a uma receptadora
no estabelecimento indicado pelo
traficante aliciador Cristal. Mas, são
os apenas os meninos,
provavelmente delatados. Os policiais
não prendem outros integrantes da
quadrilha no ponto de prostituição,
tráfico de entorpecentes e outras
“tudo do grupo”,
como declara Cristal (LOUZEIRO,
e não aceita
m que os
jovens acusem Débora, a receptadora
das drogas, o que sugere
envolvimento dos agentes públicos no
Dito não sabia o que fazer. Não
conseguia entender se o cara era um
tira ou traficante
amigo de Débora,
querendo passar Cristal pa
ra trás.
Estava confuso e bastante
atordoado, pois cada vez mais o
braço era torcido e os cabelos
Fala, moleque, antes que me
Entreguei tudo a
Débora — disse
quase chorando.
Mentira, cachorro! Não mete a
mulher nos teus rolos
! (...)
confessionário
...
O magricela e o moreno puseram
-se
a empurrar Dito. Agora, sabiam estar
delegacia
. Exatamente o que
bom abrirem logo o bico
.
Dr. Mauro não é de brincadeira.
tirou o couro de muito cara ruim
,
quanto mais de vocês (...)
porrada
e é o que vão
ter. (LOUZEIRO, 1977, p. 31
-33,
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
No trecho, aparecem espaços
reservados à tortura e estratégias para
coagir depoimentos, apresentadas
como habituais em interrogatórios
feitos por ess
es policiais, que incluem
até ameaças de entregar os jovens
apreendidos a presos para serem
estuprados em celas da delegacia,
entre suas estratégias para forçar
depoimentos: “quem vai primeiro com
a bonequinha sou eu” (LOUZEIRO,
1977, p. 37). Isso mostra n
ão apenas a
violência institucionalizada nessas
forças militares e a corrupção de
agentes públicos, mas também a
ineficiência de sistemas de segurança,
sobretudo se pensarmos que crianças
são encarceradas junto com
criminosos adultos de diferentes
periculosidades na obra.
Trata-
se de um entre os muitos
exemplos, em
Infância dos Mortos
(1977), de
graves violações à
Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a qual assegura, desde
1948, em seu artigo V,
que “ninguém
será submetido à tortura nem a
tratamen
to ou castigo cruel, desumano
ou degradante”.
Desobedecendo esse
preceito,
os policiais lançam mão da
“tortura-
prova” que, segundo
Chiari
Gonçalves (2013, p. 275),
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
No trecho, aparecem espaços
reservados à tortura e estratégias para
coagir depoimentos, apresentadas
como habituais em interrogatórios
es policiais, que incluem
até ameaças de entregar os jovens
apreendidos a presos para serem
estuprados em celas da delegacia,
entre suas estratégias para forçar
depoimentos: “quem vai primeiro com
a bonequinha sou eu” (LOUZEIRO,
ão apenas a
violência institucionalizada nessas
forças militares e a corrupção de
agentes públicos, mas também a
ineficiência de sistemas de segurança,
sobretudo se pensarmos que crianças
são encarceradas junto com
criminosos adultos de diferentes
se de um entre os muitos
Infância dos Mortos
graves violações à
Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a qual assegura, desde
que “ninguém
será submetido à tortura nem a
to ou castigo cruel, desumano
Desobedecendo esse
os policiais lançam mão da
prova” que, segundo
Vanessa
Gonçalves (2013, p. 275),
objetiva não exatamente um castigo,
mas busca confissões: “todo tipo de
sofrimento f
ísico ou psicológico
infligido a alguém com o fim de obter
informação, declaração ou confissão
da vítima ou de terceira pessoa,
mediante o emprego de violência física
ou grave ameaça”. É exatamente o
que se nota no fragmento anterior do
romance-
reportagem,
como uma prática habitual, que
um modo chamado de
“confessionário” na delegacia, onde o
delegado
“já tirou o couro de muito
cara ruim
para os torturados
o bico” (LOUZEIRO, 1977, p. 32
A tortura praticada nessa
del
egacia e em várias instituições de
Infância dos Mortos
antigo suplício de que nos fala Michel
Foucault em obras como
Punir: o nascimento da prisão
p. 14, 37, 65, 94): “rito que dava fecho
ao crime e mantinha com ele
afinidad
es espúrias”, imposição de
vergonha e dor para submeter vítimas
ao poder, “ritual organizado para
marcação das vítimas e manifestação
do poder que pune”. Entretanto,
enquanto o suplício era considerado
em grande parte do mundo ocidental
como intolerável
, por revelar o
187
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
objetiva não exatamente um castigo,
mas busca confissões: “todo tipo de
ísico ou psicológico
infligido a alguém com o fim de obter
informação, declaração ou confissão
da vítima ou de terceira pessoa,
mediante o emprego de violência física
ou grave ameaça”. É exatamente o
que se nota no fragmento anterior do
a “tortura-prova”
como uma prática habitual, que
um modo chamado de
“confessionário” na delegacia, onde o
“já tirou o couro de muito
para os torturados
abrirem
o bico” (LOUZEIRO, 1977, p. 32
-33).
A tortura praticada nessa
egacia e em várias instituições de
(1977) lembra o
antigo suplício de que nos fala Michel
Foucault em obras como
Vigiar e
Punir: o nascimento da prisão
(1987,
p. 14, 37, 65, 94): “rito que dava fecho
ao crime e mantinha com ele
es espúrias”, imposição de
vergonha e dor para submeter vítimas
ao poder, “ritual organizado para
marcação das vítimas e manifestação
do poder que pune”. Entretanto,
enquanto o suplício era considerado
em grande parte do mundo ocidental
, por revelar o
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
autoritarismo, a busca de vingança, o
cruel prazer de punir (FOUCAULT,
1987, p. 14, 37, 65, 94), ainda é
largamente empregado por agentes
públicos em várias instituições no
romance-
reportagem de José
Louzeiro. Vários sistemas penais e
penit
enciários ocidentais passavam
por reformas desde o século XVIII,
buscando “punir de outro modo:
eliminar essa confrontação física entre
carrasco e supliciado” (FOUCAULT,
1987, p. 94, 98), até para atender a
interesses capitalistas industriais, que
deman
dam corpos saudáveis para o
trabalho e a produtividade. Mas, ao
contrário disso, no romance
reportagem de Louzeiro (1977), muitas
vezes nem um julgamento justo é
garantido a vários acusados, incluindo
crianças.
Nesse contexto de violência
institucional, as
práticas violentas são
agravadas pelo fato de serem
cometidas pela parte que, em tese,
deveria garantir a assertividade dos
direitos inerentes a toda pessoa.
Entretanto, tendo abrangência mais
ampla do que outras tipologias de
violência, a violência insti
tucional pode
ocorrer por ação ou omissão. No
excerto do romance
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
autoritarismo, a busca de vingança, o
cruel prazer de punir (FOUCAULT,
1987, p. 14, 37, 65, 94), ainda é
largamente empregado por agentes
públicos em várias instituições no
reportagem de José
Louzeiro. Vários sistemas penais e
enciários ocidentais passavam
por reformas desde o século XVIII,
buscando “punir de outro modo:
eliminar essa confrontação física entre
carrasco e supliciado” (FOUCAULT,
1987, p. 94, 98), até para atender a
interesses capitalistas industriais, que
dam corpos saudáveis para o
trabalho e a produtividade. Mas, ao
contrário disso, no romance
-
reportagem de Louzeiro (1977), muitas
vezes nem um julgamento justo é
garantido a vários acusados, incluindo
Nesse contexto de violência
práticas violentas são
agravadas pelo fato de serem
cometidas pela parte que, em tese,
deveria garantir a assertividade dos
direitos inerentes a toda pessoa.
Entretanto, tendo abrangência mais
ampla do que outras tipologias de
tucional pode
ocorrer por ação ou omissão. No
-
reportagem
anteriormente citado, fica mais
flagrante a ação institucional violenta
contra os meninos em situação de
vulnerabilidade, na forma da tortura
praticada pelos policiais aos jovens
a
liciados pelo traficante. Mas, essas
ações de grave violação aos direitos
dos jovens são acompanhadas de
omissões a outros direitos deles, como
os direitos de defesa e proteção
também garantidos, desde 1948,
pela Declaração Universal dos Direitos
Humano
s, em seus artigos VIII ao XI,
mesmo antes da
Constituição Cidadã
de 1988 e antes da Lei brasileira
número 8.069
conhecida como
ECA:
Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 13 de julho de 1990
dirigir especial atenção aos direitos
dos jovens. O
Artigo XI da
Universal dos Direitos Humanos
exemplo,
garantia que “todo ser
humano acusado de um ato delituoso
tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade
tenha sido provada de acordo com a
lei,
em julgamento
tenham sido asseguradas todas as
garantias necessárias à sua defesa”
no entanto os meninos sofrem
sanções antes do julgamento legal em
Infância dos Mortos
(1977)
188
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
anteriormente citado, fica mais
flagrante a ação institucional violenta
contra os meninos em situação de
vulnerabilidade, na forma da tortura
praticada pelos policiais aos jovens
liciados pelo traficante. Mas, essas
ações de grave violação aos direitos
dos jovens são acompanhadas de
omissões a outros direitos deles, como
os direitos de defesa e proteção
também garantidos, desde 1948,
pela Declaração Universal dos Direitos
s, em seus artigos VIII ao XI,
Constituição Cidadã
de 1988 e antes da Lei brasileira
conhecida como
Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 13 de julho de 1990
dirigir especial atenção aos direitos
Artigo XI da
Declaração
Universal dos Direitos Humanos
, por
garantia que “todo ser
humano acusado de um ato delituoso
tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade
tenha sido provada de acordo com a
em julgamento
blico no qual lhe
tenham sido asseguradas todas as
garantias necessárias à sua defesa”
,
no entanto os meninos sofrem
sanções antes do julgamento legal em
(1977)
.
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
Para o pesquisador da área de
Direito Márcio Rogério de Oliveira
(2008), a violência institucional se
define como “aquela praticada por
organizações da sociedade civil e pelo
próprio Estado, por ação ou omissão,
contra determinadas minorias ou
grupos sociais em situação de
vulnerabilidade” (OLIVEIRA, 2008, p.
27). Mas,
além da violência
institucional que resulta da negligência
ou da negação dos serviços, para o
autor,
[...] há, evidentemente, a violência
institucional que resulta de
políticas ou ações concretas dos
agentes do Estado
, não raro em
detrimento de pe
ssoas que este
deveria cuidar e proteger, de que são
exemplos inapeláveis
únicos
a violência
violência praticada por
agentes do sistema de segurança
pública
(OLIVEIRA, 2008, p. 27,
grifos nossos).
É possível, então, entende
violência institucional não como
aquela que ocorre relacionada com
uma atuação ou omissão do Estado,
mas também como aquela que ocorre
a partir de decisões, posturas e ações
efetivamente adotadas por agentes a
serviço do Estado, inclusive por meio
d
e outras modalidades de violência,
como a física e a psicológica.
Exemplos disso ocorrem nas
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Para o pesquisador da área de
Direito Márcio Rogério de Oliveira
(2008), a violência institucional se
define como “aquela praticada por
organizações da sociedade civil e pelo
próprio Estado, por ação ou omissão,
contra determinadas minorias ou
grupos sociais em situação de
vulnerabilidade” (OLIVEIRA, 2008, p.
além da violência
institucional que resulta da negligência
ou da negação dos serviços, para o
[...] há, evidentemente, a violência
institucional que resulta de
decisões
políticas ou ações concretas dos
, não raro em
ssoas que este
deveria cuidar e proteger, de que são
mas não
policial e a
violência praticada por
outros
agentes do sistema de segurança
(OLIVEIRA, 2008, p. 27,
É possível, então, entende
r a
violência institucional não como
aquela que ocorre relacionada com
uma atuação ou omissão do Estado,
mas também como aquela que ocorre
a partir de decisões, posturas e ações
efetivamente adotadas por agentes a
serviço do Estado, inclusive por meio
e outras modalidades de violência,
como a física e a psicológica.
Exemplos disso ocorrem nas
mencionadas cenas de tortura aos
jovens na delegacia do Dr. Mauro, no
romance-
reportagem, mas também em
casos como o do assassinato e
ocultação do cadáver de Pi
seguranças do cemitério, que também
podem ser considerados como
desdobramentos de violência
institucional, que praticados numa
organização social
por “outros agentes
do sistema de segurança pública”
(OLIVEIRA, 2008, p. 27), ainda que
não regu
lamentados ou não
fiscalizados adequadamente ou não
punidos pelo Estado. Sendo assim, de
certo modo, também resultam de
omissões do Estado ou de seus
agentes, trazendo graves prejuízos a
cidadãos que o Estado deveria
proteger, como se nota no trecho a
seguir:
Poucas vezes se sentira assim,
encurralado, sem oportunidade de
escapar
. E se o funcionário fosse na
verdade um
guarda de segurança
Esperaria que escalassem o muro, a
fim de ter um alvo melhor. (...) Se o
cara do boné saísse da toca, teria
condição de
acertá
pedra.
(...) Pixote corre, agachando
depois, livremente. está perto do
muro e nem sombra do homem do
boné. Todavia, ouvem
disparos
secos.
Pixote cambaleia. Cai. (...) Dito está
com pedras nas mãos, sem saber
em quem jogá-
las.
Atiraram em Pixote!
Fumaça, alarmado. (...)
189
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mencionadas cenas de tortura aos
jovens na delegacia do Dr. Mauro, no
reportagem, mas também em
casos como o do assassinato e
ocultação do cadáver de Pi
xote pelos
seguranças do cemitério, que também
podem ser considerados como
desdobramentos de violência
institucional, que praticados numa
por “outros agentes
do sistema de segurança pública”
(OLIVEIRA, 2008, p. 27), ainda que
lamentados ou não
fiscalizados adequadamente ou não
punidos pelo Estado. Sendo assim, de
certo modo, também resultam de
omissões do Estado ou de seus
agentes, trazendo graves prejuízos a
cidadãos que o Estado deveria
proteger, como se nota no trecho a
Poucas vezes se sentira assim,
encurralado, sem oportunidade de
. E se o funcionário fosse na
guarda de segurança
?
Esperaria que escalassem o muro, a
fim de ter um alvo melhor. (...) Se o
cara do boné saísse da toca, teria
acertá
-lo com uma
(...) Pixote corre, agachando
-se e,
depois, livremente. está perto do
muro e nem sombra do homem do
boné. Todavia, ouvem
-se dois
secos.
Pixote cambaleia. Cai. (...) Dito está
com pedras nas mãos, sem saber
las.
Atiraram em Pixote!
diz
Fumaça, alarmado. (...)
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
Os três saem correndo, agachando
se o mais que podem.
são disparados, mas ninguém está
ferido, Dito chega perto de Pixote.
Ele tem os olhos abertos,
sangue a escorrerem do pe
A mão amarela se abriu, com as
flores murchas que ia levando
para Estrelado
. Manguito e Fumaça
escalaram o muro. Dito ergue
lança as pedras sem saber ao certo
o que pretendia atingir.
Compreendendo a inutilidade de seu
gesto e a impossibilida
Pixote dali, corre para o muro, salta
(LOUZEIRO, 1977, p. 14
nossos).
A truculência na ação do
segurança do cemitério contrasta com
as intenções do jovem Pixote
assassinado: levar flores para o túmulo
do amigo Estrelado –
menino vít
anterior da violência
e atravessar o
cemitério para chegar mais rápido ao
traficante do outro lado.
Apesar de dividirmos as formas
de violência para melhor estudá
na prática elas aparecem imbricadas,
evidentemente, como vimos ocorrer
nos exemplos de
Infância dos Mortos
(1977) até aqui analisados, em que
violência física, psicológica, social,
delinquencial e institucional podem se
agregar e se agravar. É o que ocorre
na delegacia, onde a violência física é
acompanhada de tortura psicológica,
compo
ndo elementos da violência
policial e da institucional, conjuntos de
práticas contra os jovens em conflito
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Os três saem correndo, agachando
-
se o mais que podem.
Outros tiros
são disparados, mas ninguém está
ferido, Dito chega perto de Pixote.
Ele tem os olhos abertos,
filetes de
sangue a escorrerem do pe
scoço.
A mão amarela se abriu, com as
flores murchas que ia levando
. Manguito e Fumaça
escalaram o muro. Dito ergue
-se,
lança as pedras sem saber ao certo
o que pretendia atingir.
Compreendendo a inutilidade de seu
gesto e a impossibilida
de de tirar
Pixote dali, corre para o muro, salta
(LOUZEIRO, 1977, p. 14
-15, grifos
A truculência na ação do
segurança do cemitério contrasta com
as intenções do jovem Pixote
assassinado: levar flores para o túmulo
menino vít
ima
e atravessar o
cemitério para chegar mais rápido ao
Apesar de dividirmos as formas
de violência para melhor estudá
-las,
na prática elas aparecem imbricadas,
evidentemente, como vimos ocorrer
Infância dos Mortos
(1977) até aqui analisados, em que
violência física, psicológica, social,
delinquencial e institucional podem se
agregar e se agravar. É o que ocorre
na delegacia, onde a violência física é
acompanhada de tortura psicológica,
ndo elementos da violência
policial e da institucional, conjuntos de
práticas contra os jovens em conflito
com a lei. Aliás, esses jovens praticam
atos infracionais
delinquencial,
na qual as crianças são
vítimas e atores”
sobreviver a situações de
vulnerabilidade, que são
desdobramentos de uma violência
estrutural
cujas expressões mais
fortes são o trabalho infantil, a
existência de crianças vivendo nas
ruas e em instituições fechadas; e de
uma violência social, cujas mais
expressões se configuram na violência
doméstica”
(MINAYO, 2001, p. 91
Abordagens a essas formas de
violência contra as crianças no
romance-
reportagem são notadas até
nos apelidos de alguns meninos, como
Castigo de Mãe, ou quando meninos
relatam vi
olências domésticas como
causas de alguns terem fugido de casa
para as ruas, ou na primeira cena da
narrativa, quando Pixote, menino de
apenas onze anos, dentre os quais
três vividos na delinquência, dorme
nas ruas e precisa enfrentar a
violência policial
e a criminal, a fome e
toda sorte de adversidades:
A manhã estava clara e leve. Pixote
livrou-
se das folhas de jornal, olhou o
dia que principiava, os que entravam
e saíam apressados na estação de
trens. Ergueu-
se, antes que os
guardas aparecessem. Surgia
volta de 6 horas e espancavam os
190
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
com a lei. Aliás, esses jovens praticam
violência
na qual as crianças são
por vezes para
sobreviver a situações de
vulnerabilidade, que são
desdobramentos de uma violência
cujas expressões mais
fortes são o trabalho infantil, a
existência de crianças vivendo nas
ruas e em instituições fechadas; e de
uma violência social, cujas mais
vivas
expressões se configuram na violência
(MINAYO, 2001, p. 91
).
Abordagens a essas formas de
violência contra as crianças no
reportagem são notadas até
nos apelidos de alguns meninos, como
Castigo de Mãe, ou quando meninos
olências domésticas como
causas de alguns terem fugido de casa
para as ruas, ou na primeira cena da
narrativa, quando Pixote, menino de
apenas onze anos, dentre os quais
três vividos na delinquência, dorme
nas ruas e precisa enfrentar a
e a criminal, a fome e
toda sorte de adversidades:
A manhã estava clara e leve. Pixote
se das folhas de jornal, olhou o
dia que principiava, os que entravam
e saíam apressados na estação de
se, antes que os
guardas aparecessem. Surgia
m por
volta de 6 horas e espancavam os
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
que podiam pegar. Era a quarta vez
que dormia na estação e escapava
dos guardas (LOUZEIRO, 1981, p.
9).
Nessa cena, apesar de a ação
dos guardas traduzir a violência de
maneira mais ostensiva, sobretudo
pela sugestão
de que tal conduta é
frequente, chama atenção também a
condição de abandono em que a
criança se encontra, violência primeira
que desencadeia e viabiliza várias
outras violências na obra, de modo
escalar.
Percebemos que a noção do
termo violência – ao meno
s no seu uso
comum na contemporaneidade, em
várias mídias e outros
espaços de
debate público
pode ser relativizada
ou mesmo esvaziada de muitos de
seus sentidos, ao se priorizar, a
violência física e a
comumente. Com isso
, ocultam
inúmeras mo
dalidades tão graves
quanto essas ou até mais graves e
mais complexas, o que favorece a
invisibilidade de muitas omissões e
ações violentas que estruturam as
sociedades. Sobre isso, Chauí (1999)
defende que os fenômenos da
violência não se dão de maneira
d
esarticulada na organização social e
que existem dispositivos responsáveis
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
que podiam pegar. Era a quarta vez
que dormia na estação e escapava
dos guardas (LOUZEIRO, 1981, p.
Nessa cena, apesar de a ação
dos guardas traduzir a violência de
maneira mais ostensiva, sobretudo
de que tal conduta é
frequente, chama atenção também a
condição de abandono em que a
criança se encontra, violência primeira
que desencadeia e viabiliza várias
outras violências na obra, de modo
Percebemos que a noção do
s no seu uso
comum na contemporaneidade, em
espaços de
pode ser relativizada
ou mesmo esvaziada de muitos de
seus sentidos, ao se priorizar, a
violência física e a
criminal
, ocultam
-se
dalidades tão graves
quanto essas ou até mais graves e
mais complexas, o que favorece a
invisibilidade de muitas omissões e
ações violentas que estruturam as
sociedades. Sobre isso, Chauí (1999)
defende que os fenômenos da
violência não se dão de maneira
esarticulada na organização social e
que existem dispositivos responsáveis
por invisibilizar a violência real, assim
enumerados:
1- um
dispositivo jurídico
localiza a violência apenas no crime
contra a propriedade e contra a vida;
2) um
dispositivo
considera a violência um momento
de anomia social, isto é, como um
momento no qual grupos sociais
‘atrasados’ ou ‘arcaicos’ entram em
contato com grupos ‘modernos’, e
‘desadaptados; 3) um
exclusão
, isto é, a distinção entre
um
‘nós brasileiros não
um ‘eles violentos’; 4) um
dispositivo de distinção entre o
essencial e o acidental
essência, a sociedade brasileira não
seria violenta, e, portanto, a violência
é apenas um acidente na superfície
social sem tocar em
essencial não-
violento
os meios de comunicação se referem
à violência com as palavras "surto",
"onda", "epidemia", "crise", isto é,
termos que indicam algo passageiro
e acidental (CHAUÍ, 1999, p. 3, grifos
nossos).
No romance
-
Louzeiro, a sociedade destaque e
punição rigorosa à violência praticada
pelos jovens em situação de
vulnerabilidade, mas não ao abandono
do vulnerável, violência anterior
(sofrida cotidianamente pelo
inimputável) que, muitas vez
causa ao ato infracional do jovem.
Minimiza-
se, naturaliza
se a parcela de violência estrutural ou
institucional e pune-
se com rigor (não
raro fora da lei) infrações praticadas
por grupos excluídos, numa
perspectiva bastante patrimon
191
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
por invisibilizar a violência real, assim
dispositivo jurídico
, que
localiza a violência apenas no crime
contra a propriedade e contra a vida;
dispositivo
sociológico, que
considera a violência um momento
de anomia social, isto é, como um
momento no qual grupos sociais
‘atrasados’ ou ‘arcaicos’ entram em
contato com grupos ‘modernos’, e
‘desadaptados; 3) um
dispositivo de
, isto é, a distinção entre
‘nós brasileiros não
-violentos’ e
um ‘eles violentos’; 4) um
dispositivo de distinção entre o
essencial e o acidental
: por
essência, a sociedade brasileira não
seria violenta, e, portanto, a violência
é apenas um acidente na superfície
social sem tocar em
seu fundo
violento
eis por que
os meios de comunicação se referem
à violência com as palavras "surto",
"onda", "epidemia", "crise", isto é,
termos que indicam algo passageiro
e acidental (CHAUÍ, 1999, p. 3, grifos
-
reportagem de
Louzeiro, a sociedade destaque e
punição rigorosa à violência praticada
pelos jovens em situação de
vulnerabilidade, mas não ao abandono
do vulnerável, violência anterior
(sofrida cotidianamente pelo
inimputável) que, muitas vez
es,
causa ao ato infracional do jovem.
se, naturaliza
-se ou justifica-
se a parcela de violência estrutural ou
se com rigor (não
raro fora da lei) infrações praticadas
por grupos excluídos, numa
perspectiva bastante patrimon
ialista do
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
que seria direito, em seu sentido mais
amplo, que defende os interesses
econômicos e materiais das classes
altas e médias.
Nessa perspectiva, Minayo
(2009), ao conceituar a violência
institucional, ressalta elementos
relevantes dessa modalidade:
aquela que se realiza
instituições
, sobretudo por meio de
suas regras, normas de
funcionamento e relações
burocráticas e políticas, reproduzindo
as estruturas sociais injustas. Uma
dessas modalidades de violência
ocorre na forma como são
oferecidos, negados ou
negligenciados os serviços pú
(MINAYO, 2009, p. 33).
A violência institucional, então,
mais do que produzir ou manter as
desigualdades e estruturas sociais
injustas, arraiga-
se às instituições de
maneira circunscrita. Frequentemente
a obra
Infância dos Mortos
narra epis
ódios de violência em
delegacias, celas e até em espaços
teoricamente destinados à
recuperação ou à socioeducação dos
meninos que, como vimos,
de suas funções institucionais
originais, operam como depósito de
crianças e jovens. Isso pode ocorr
porque a instituição falha na execução
de sua missão original ou porque essa
missão é ou tornou-
se mera fachada.
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
que seria direito, em seu sentido mais
amplo, que defende os interesses
econômicos e materiais das classes
Nessa perspectiva, Minayo
(2009), ao conceituar a violência
institucional, ressalta elementos
relevantes dessa modalidade:
aquela que se realiza
dentro das
, sobretudo por meio de
suas regras, normas de
funcionamento e relações
burocráticas e políticas, reproduzindo
as estruturas sociais injustas. Uma
dessas modalidades de violência
ocorre na forma como são
oferecidos, negados ou
negligenciados os serviços pú
blicos
(MINAYO, 2009, p. 33).
A violência institucional, então,
mais do que produzir ou manter as
desigualdades e estruturas sociais
se às instituições de
maneira circunscrita. Frequentemente
Infância dos Mortos
(1977)
ódios de violência em
delegacias, celas e até em espaços
teoricamente destinados à
recuperação ou à socioeducação dos
meninos que, como vimos,
à revelia
de suas funções institucionais
originais, operam como depósito de
crianças e jovens. Isso pode ocorr
er
porque a instituição falha na execução
de sua missão original ou porque essa
se mera fachada.
Assim, tais instituições reproduzem
estruturas sociais injustas em suas
práticas de funcionamento e em suas
relações burocráticas e polít
negando ou negligenciando os
serviços blicos básicos (que foram
criadas para oferecer) aos jovens, os
quais ficam no romance
sem garantia de seus direitos
fundamentais e sociais, sem
alimentação, sem escola, sem
segurança e sem moradia d
O Estado e seus agentes não
atuam de forma positiva, no sentido de
garantir dignidade e igualdade aos
cidadãos, ao contrário perpetuam a
desigualdade
, como na cena em que
Dito, depois de sucessivas capturas e
fugas de diversas instituições, acorda
a
lgemado a uma cama de enfermaria,
em meio a vários garotos agonizando:
Caminhou pela varanda escura, viu o
muro, os arames, as lâmpadas
fracas. Não poderia fugir facilmente.
Teria de atravessar o pátio e, depois,
escalar o muro. Um dos guardas
aproximava-
se. Entrou num dos
prédios. Estava todo escuro. Um
garoto chorava
, outros
As celas apareceram. Em todas elas
havia muitos garotos. A maioria
ainda estava
caída ao chão
dois resistiam, magros, olhos fundos.
Encostavam-
se nas paredes, pernas
alongadas, como se não tivessem
mais ânimo de levantar
pequenos apenas acompanhava os
movimentos de Dito. Mesmo que
abrisse a tranca de ferro,
conseguiria mais
Simplesmente
não tinha condição
192
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Assim, tais instituições reproduzem
as
estruturas sociais injustas em suas
práticas de funcionamento e em suas
relações burocráticas e polít
icas,
negando ou negligenciando os
serviços blicos básicos (que foram
criadas para oferecer) aos jovens, os
quais ficam no romance
-reportagem
sem garantia de seus direitos
fundamentais e sociais, sem
alimentação, sem escola, sem
segurança e sem moradia d
igna.
O Estado e seus agentes não
atuam de forma positiva, no sentido de
garantir dignidade e igualdade aos
cidadãos, ao contrário perpetuam a
, como na cena em que
Dito, depois de sucessivas capturas e
fugas de diversas instituições, acorda
lgemado a uma cama de enfermaria,
em meio a vários garotos agonizando:
Caminhou pela varanda escura, viu o
muro, os arames, as lâmpadas
fracas. Não poderia fugir facilmente.
Teria de atravessar o pátio e, depois,
escalar o muro. Um dos guardas
se. Entrou num dos
prédios. Estava todo escuro. Um
, outros
gemiam. [...]
As celas apareceram. Em todas elas
havia muitos garotos. A maioria
caída ao chão
. uns
dois resistiam, magros, olhos fundos.
se nas paredes, pernas
alongadas, como se não tivessem
mais ânimo de levantar
-se. Um dos
pequenos apenas acompanhava os
movimentos de Dito. Mesmo que
abrisse a tranca de ferro,
não
conseguiria mais
sair dali.
não tinha condição
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
de mover-se
. Dito se esforçou.
Muniu-
se de um pedaço de pau e
terminou destravando a grade.
Puxou o portão que se abriu com
ruído. Chegou-
se ao garoto. A
era frágil e lamentosa
que botaram a gente aqu
deram comida
. Cada semana
tirando os que morrem
Quem fazendo isso?
inspetor-geral
(LOUZEIRO, 1981, p.
101, grifos nossos).
Notamos que essa instituição de
acolhimento, supostamente parte de
um sistema socioeducativo, que
d
everia trabalhar pela recuperação da
saúde e pela (re)integração social
desses jovens, em
Infância dos M
(1977), mergulha em grave quadro de
violência institucional, funcionando
como um verdadeiro “morredouro, um
lugar onde morrer (...) aliado à funçã
de separação dos indivíduos ditos
perigosos para a saúde geral da
população”, de que nos fala Foucault,
em Microfísica do poder
(1984, p. 59).
Nesse caso, a tortura
institucionalizada, observada no
fragmento anterior do romance
reportagem, tem objetivos e
metodologias bem distintos dos
notados no episódio da delegacia do
Dr. Mauro porque, ao invés de visar
confissões, essa tortura visa a isolar,
castigar e eliminar os jovens. Nessa
perspectiva, segundo Gonçalves
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
. Dito se esforçou.
se de um pedaço de pau e
terminou destravando a grade.
Puxou o portão que se abriu com
se ao garoto. A
voz
era frágil e lamentosa
. Desde
que botaram a gente aqu
i não nos
. Cada semana
vão
tirando os que morrem
primeiro.
Quem fazendo isso?
O
(LOUZEIRO, 1981, p.
Notamos que essa instituição de
acolhimento, supostamente parte de
um sistema socioeducativo, que
everia trabalhar pela recuperação da
saúde e pela (re)integração social
Infância dos M
ortos
(1977), mergulha em grave quadro de
violência institucional, funcionando
como um verdadeiro “morredouro, um
lugar onde morrer (...) aliado à funçã
o
de separação dos indivíduos ditos
perigosos para a saúde geral da
população”, de que nos fala Foucault,
(1984, p. 59).
Nesse caso, a tortura
institucionalizada, observada no
fragmento anterior do romance
-
reportagem, tem objetivos e
metodologias bem distintos dos
notados no episódio da delegacia do
Dr. Mauro porque, ao invés de visar
confissões, essa tortura visa a isolar,
castigar e eliminar os jovens. Nessa
perspectiva, segundo Gonçalves
(2013, p. 275), é possível categorizar a
tortura em dois sentidos, a
mencionada “tortura-
prova” e também
a “tortura-
pena”. A primeira, como
vimos, entende-
se por “todo tipo de
sofriment
o físico ou psicológico
infligido a alguém com o fim de obter
informação, declaração ou confissão
da vítima ou de terceira pessoa,
mediante o emprego de violência física
ou grave ameaça”. a segunda,
notada na cena da enfermaria,
diferencia-
se “em relaçã
intencionalidade que, neste caso, se
a de submeter a vítima a um intenso e
diferenciado sofrimento físico ou
psíquico como forma de aplicação de
um castigo” (GONÇALVES, 2013, p.
275).
Além dos inúmeros episódios
em que predomina a “tortura
obra, também várias passagens em
que encontramos a “tortura
como quando os meninos são
submetidos a uma espécie de
veredicto final: recolhidos, no meio da
noite, por policiais e levados rumo a
um lugar desconhecido por um
camburão, depois por
janelas cobertas, sempre vigiados por
policiais e cães de guarda:
A considerar pelo barulho do motor,
o ônibus subia uma estrada de
193
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
(2013, p. 275), é possível categorizar a
tortura em dois sentidos, a
prova” e também
pena”. A primeira, como
se por “todo tipo de
o físico ou psicológico
infligido a alguém com o fim de obter
informação, declaração ou confissão
da vítima ou de terceira pessoa,
mediante o emprego de violência física
ou grave ameaça”. a segunda,
notada na cena da enfermaria,
se “em relaçã
o à sua
intencionalidade que, neste caso, se
a de submeter a vítima a um intenso e
diferenciado sofrimento físico ou
psíquico como forma de aplicação de
um castigo” (GONÇALVES, 2013, p.
Além dos inúmeros episódios
em que predomina a “tortura
-prova” na
obra, também várias passagens em
que encontramos a “tortura
-pena”,
como quando os meninos são
submetidos a uma espécie de
veredicto final: recolhidos, no meio da
noite, por policiais e levados rumo a
um lugar desconhecido por um
camburão, depois por
um ônibus com
janelas cobertas, sempre vigiados por
policiais e cães de guarda:
A considerar pelo barulho do motor,
o ônibus subia uma estrada de
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
ladeira. [...] Os solavancos se
prolongaram por uma boa meia hora,
até que o sistema de freio foi
acionado.
Agora, cambada, vamos tirando a
roupa. Pra onde vão não precisam
de nada.
Um dos garotos tentou escapar, foi
seguro pelos policiais que
começaram a espancá
meio ao tumulto os primeiros garotos
rolaram pela porta. [...] Dito não
conseguia ma
is saber o que se
passava [...], quando um cão
mordeu-
o nas pernas e o policial
segurou-
o pelo pescoço e começou
a puxá-
lo, até a porta. Ali, empurrou
o com o e ele sentiu o espaço
faltar aos seus pés. A noite era
escura, os primeiros matos que
passaram
pelo seu corpo e por seu
rosto, numa velocidade de vertigem,
pareciam-
lhe frios, à proporção em
que se distanciava, perdia
se mais uma vez estivesse caindo
num mergulho e procurasse as
profundezas do rio, impossível de
alcançar (LOUZEIRO, 1981, p.
171).
O medo, a impotência, a
incerteza e a dor dos meninos no
fragmento anterior contrasta com a
indiferença, o poder e a raiva ou a
descontração com que esses agentes
do Estado tutelam a tortura
romance-
reportagem, por vezes rindo,
enquan
to agridem, ameaçam e
condenam sem julgamento legal ou
executam sem sentença judicial esses
jovens personagens. Trata
instituição, através de seus agentes
representantes, não apenas negando
aos cidadãos os serviços e direitos
que deveria lhes gar
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ladeira. [...] Os solavancos se
prolongaram por uma boa meia hora,
até que o sistema de freio foi
Agora, cambada, vamos tirando a
roupa. Pra onde vão não precisam
Um dos garotos tentou escapar, foi
seguro pelos policiais que
começaram a espancá
-lo. [...] Em
meio ao tumulto os primeiros garotos
rolaram pela porta. [...] Dito não
is saber o que se
passava [...], quando um cão
o nas pernas e o policial
o pelo pescoço e começou
lo, até a porta. Ali, empurrou
-
o com o e ele sentiu o espaço
faltar aos seus pés. A noite era
escura, os primeiros matos que
pelo seu corpo e por seu
rosto, numa velocidade de vertigem,
lhe frios, à proporção em
que se distanciava, perdia
-se como
se mais uma vez estivesse caindo
num mergulho e procurasse as
profundezas do rio, impossível de
alcançar (LOUZEIRO, 1981, p.
169-
O medo, a impotência, a
incerteza e a dor dos meninos no
fragmento anterior contrasta com a
indiferença, o poder e a raiva ou a
descontração com que esses agentes
do Estado tutelam a tortura
-pena” no
reportagem, por vezes rindo,
to agridem, ameaçam e
condenam sem julgamento legal ou
executam sem sentença judicial esses
jovens personagens. Trata
-se de uma
instituição, através de seus agentes
representantes, não apenas negando
aos cidadãos os serviços e direitos
que deveria lhes gar
antir, mas
eliminando as causas primeiras de sua
existência: o seu próprio público
Assim, muitas instituições no
romance-
reportagem funcionam
como clínicas de vigiar e punir,
cumprindo funções de condenar,
isolar, torturar, humilhar ou eliminar
margi
nalizados, por isso o tão
temidas
pelos jovens em situação de
vulnerabilidade. E por isso chegam
a ser mesmo comparadas
cemitério por Pixote, pouco antes de
ser assassinado: “Chegou a imaginar
que os portões e os muros (do
cemitério) servissem para as
não fugirem, como nas prisões e no
internato onde estivera seis meses”
(LOUZEIRO, 1977, p. 11). Por isso os
jovens se sentem tratados como lixo,
tal qual Pixote ao tentar encontrar o
túmulo do amigo Estrelado: “Se era
por ali que haviam enterrado o
Estrelado, então ele tinha sido
praticamente jogado fora” (LOUZEIRO,
1977, p. 13). E é o que pensam os
próprios seguranças e o administrador
do cemitério sobre o corpo de Pixote,
por eles assassinado, como enfatiza o
narrador louzeiriano: “Dr. Alenca
está preocupado com a morte do
menino, preocupa-
o a forma de livrar
se do corpo, sem que haja problema”
194
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
eliminando as causas primeiras de sua
existência: o seu próprio público
-alvo.
Assim, muitas instituições no
reportagem funcionam
como clínicas de vigiar e punir,
cumprindo funções de condenar,
isolar, torturar, humilhar ou eliminar
nalizados, por isso o tão
pelos jovens em situação de
vulnerabilidade. E por isso chegam
a ser mesmo comparadas
ao
cemitério por Pixote, pouco antes de
ser assassinado: “Chegou a imaginar
que os portões e os muros (do
cemitério) servissem para as
almas
não fugirem, como nas prisões e no
internato onde estivera seis meses”
(LOUZEIRO, 1977, p. 11). Por isso os
jovens se sentem tratados como lixo,
tal qual Pixote ao tentar encontrar o
túmulo do amigo Estrelado: “Se era
por ali que haviam enterrado o
pobre
Estrelado, então ele tinha sido
praticamente jogado fora” (LOUZEIRO,
1977, p. 13). E é o que pensam os
próprios seguranças e o administrador
do cemitério sobre o corpo de Pixote,
por eles assassinado, como enfatiza o
narrador louzeiriano: “Dr. Alenca
r não
está preocupado com a morte do
o a forma de livrar
-
se do corpo, sem que haja problema”
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
(LOUZEIRO, 1977, p. 16
-
modo, muitas instituições no romance
reportagem deixam de cumprir suas
funções sociais originais e passam a
aten
der a interesses de determinados
indivíduos ou grupos no poder, que se
impõem através de práticas violentas,
muitas vezes, e promovem severas
transformações nas culturas
institucionais das organizações em
questão.
Com tudo isso, o narrador de
Infância dos Mortos
(1977) encena
vários modos de demonstrar como “a
perversidade ainda é uma maneira de
ser privilegiado”, parafraseando
Foucault (1987, p. 84). E valoriza a
reescrita estética de delitos, atos
infracionais, corrupção e várias
mazelas sociais, em favor
do exercício
do pensamento crítico a respeito da
perversidade e da violência escalar, da
exclusão social e da banalização da
morte nesse romance
-
entre outros temas:
“Não tinha
dúvida quanto ao futuro. Mais
ou
mais tarde o acertariam”
(LOUZEIRO, 1977, p. 80).
Deste modo, percebemos que
obras literárias como
Infância do
Mortos
(1977) assumem relevante
papel social, pois a literatura, mesmo
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
-
17). Desse
modo, muitas instituições no romance
-
reportagem deixam de cumprir suas
funções sociais originais e passam a
der a interesses de determinados
indivíduos ou grupos no poder, que se
impõem através de práticas violentas,
muitas vezes, e promovem severas
transformações nas culturas
institucionais das organizações em
Com tudo isso, o narrador de
(1977) encena
vários modos de demonstrar como “a
perversidade ainda é uma maneira de
ser privilegiado”, parafraseando
Foucault (1987, p. 84). E valoriza a
reescrita estética de delitos, atos
infracionais, corrupção e várias
do exercício
do pensamento crítico a respeito da
perversidade e da violência escalar, da
exclusão social e da banalização da
-
reportagem,
“Não tinha
dúvida quanto ao futuro. Mais
cedo
mais tarde o acertariam”
(LOUZEIRO, 1977, p. 80).
Deste modo, percebemos que
Infância do
s
(1977) assumem relevante
papel social, pois a literatura, mesmo
sem ser uma área científica que faça
de seu objeto exclusivo o
comportamento e as sociedades
human
as, contribui de modo relevante
no estudo destes. É justamente por
apreender a dinâmica social, que a
literatura pode assumir funções diante
da sociedade, uma delas denominada
por Candido (2002) de “função social
da literatura”. A partir dessa função, é
po
ssível analisar obras literárias, tal
qual Infância dos M
ortos
fontes pertinentes na busca de
compreensão dos fenômenos sociais
e, através de seu estudo, pontuar as
relações mantidas entre o homem, a
literatura e o corte temporal de que
são co
ntemporâneos, assim
considerando seu valor simbólico,
subjetivo e também histórico. Além
disso, através da sua carga subjetiva,
o texto literário proporciona uma
reflexão que suplanta o pragmatismo
dos diálogos cotidianos,
ressignificando-
os, como lembra
Schø
llhammer (2005): “A literatura que
expressa a violência modifica
sempre que reencena os limites de
sua possibilidade. [...] Comunicar a
violência é uma maneira não de
divulgar a violência, mas de
ressimbolizá-
la e de reverbalizá
195
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
sem ser uma área científica que faça
de seu objeto exclusivo o
comportamento e as sociedades
as, contribui de modo relevante
no estudo destes. É justamente por
apreender a dinâmica social, que a
literatura pode assumir funções diante
da sociedade, uma delas denominada
por Candido (2002) de “função social
da literatura”. A partir dessa função, é
ssível analisar obras literárias, tal
ortos
(1977), como
fontes pertinentes na busca de
compreensão dos fenômenos sociais
e, através de seu estudo, pontuar as
relações mantidas entre o homem, a
literatura e o corte temporal de que
ntemporâneos, assim
considerando seu valor simbólico,
subjetivo e também histórico. Além
disso, através da sua carga subjetiva,
o texto literário proporciona uma
reflexão que suplanta o pragmatismo
dos diálogos cotidianos,
os, como lembra
llhammer (2005): “A literatura que
expressa a violência modifica
-a
sempre que reencena os limites de
sua possibilidade. [...] Comunicar a
violência é uma maneira não de
divulgar a violência, mas de
la e de reverbalizá
-la”
BRAEM, Eloisa Porto C. A.; GOMES, Saron do A. Representaçõies da
violência
institucional em "Infância dos mortos", de José Louzeiro
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 182-197
, out. 2019 a março 2020.
(SCHØLLHAMMER, 201
3, p.128
Essas tarefas relevantes para o estudo
da violência no âmbito artístico podem
também contribuir para os estudos da
violência na sociedade.
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intervenção
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, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
3, p.128
-129).
Essas tarefas relevantes para o estudo
da violência no âmbito artístico podem
também contribuir para os estudos da
bibliográficas
Textos de
. São Paulo: Ed. Duas
CHAUÍ, M. Uma Ideologia Perversa.
, São Paulo,
14 de março de
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS. Assembleia
Nações Unidas em Paris. 10
dez. 1948. Disponível em
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, Santa
v.9, n.15., p.11
-31,
2006. Disponível em:
http://www.uesc.br/revistas/especiarias
/ed15/15_1_sobre_a_violencia_e_os_j
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André Gustavo de Paula.
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2, ano 2, p. 209-217, 2011.
OLIVEIRA, Márcio Rogério de.
Violência Institucional no Sistema
Socioeducativo: Quem se Importa?
FÓRUM PERMANENTE do Sistema
de Atendimento Socioeducativo de
Belo Horizonte (org.).
Desafios
socioeducação:
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integração social de adolescentes
autores de atos infracionais.
Horizonte: CEAF, 2008.
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do crime:
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contemporâneo.
Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013.
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A cena
violência e realismo no Brasil
Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013.
197
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
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SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
Marco Zero
: da crise à violência fundadora do estado distópico
DOI: https://doi.org/
10.22409/pragmatizes
Resumo:
Um dos nomes mais conhecidos da ficção distópica brasileira é, sem dúvida, Ignácio de
Loyola Brandão, através de
Recentemente, o autor retornou ao gênero da distopia através de
ser o vento que sopra sobre ela
, revelando nessa escolha o sintoma de certo clima político que, longe
de se limitar ao território nacional, se une a manifestações internacionais como a recente série
distópica produzida pela BBC,
Years
mais famosa distopia de Atwood,
identifica o encerramento de uma trilogia que tem como primeiro romance
dois, Zero
não é, no entanto, associado à ficção distópica, mas geralmente tomado como uma sátira
política ao período da ditadura, tendo sido, inclusive, censurado na época de seu lançamento.
Partindo da associação com as demais obras que compõem a trilogia de Brand
trabalho se propõe a ler o romance
como objeto dentro da tradição distópica, entendendo
transição entre o presente de crise e o futuro sombrio q
uma violência fundadora tanto física quanto política.
Palavras-chave: Ditadura;
distopia
Zona Zero
: de la crisis a la violencia fundadora del estado distópico
Resumen:
Uno de los nombres más conocidos de la ficción distópica brasileña es, sin dudas, Ignácio
de Loyola Brandão, mediante
Recientemente, el autor ha retornado al género de la distopia
ser o vento que sopra sobre ela
, revelando en esa elección un síntoma de cierto clima político que no
se limita al territorio nacional, pero se une a manifestaciones internacionales como la reciente serie
distópica produzida por la
BBC,
para la más famosa distopia de Atwood,
distopia, Brandão identifica el encerramiento de una trilogía que tiene como primera novela
Diferente de las otras dos, Zero
no es, sin embargo, asociada a la ficción distópica, pero normalmente
tomada como una sátira política al período de la dictadura, habiendo sido, incluso, censurada en la
época de su publicación. Partiendo de la asociac
Brandão, este trabajo se propone a leer
de la tradición distópica, entendiéndolo así como una representación del momento de transición entre
un pr
esente de crisis y el futuro sombrío que lo sustituye, transición esa marcada por una violencia
fundadora, tanto física cuando política.
Palabras clave: Dictadura;
distopia
1
Pedro Puro Sasse da Silva. Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Professor
convidado do Programa de Pós
Brasil. E-
mail: pedro_sasse@hotmail.com
Texto recebido em 21/11/2019 e aceito para publicação em 04/01/2020.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
: da crise à violência fundadora do estado distópico
10.22409/pragmatizes
.v10i18.38766
Um dos nomes mais conhecidos da ficção distópica brasileira é, sem dúvida, Ignácio de
Não verás país nenhum
, publicado em plena ditadura militar.
Recentemente, o autor retornou ao gênero da distopia através de
Desta terra nada va
, revelando nessa escolha o sintoma de certo clima político que, longe
de se limitar ao território nacional, se une a manifestações internacionais como a recente série
Years
and Years, e The Testments
,uma inesperada continuação da
mais famosa distopia de Atwood,
O conto da aia
. Com a publicação de sua nova distopia, Brandão
identifica o encerramento de uma trilogia que tem como primeiro romance
Zero
. Diferente dos outros
não é, no entanto, associado à ficção distópica, mas geralmente tomado como uma sátira
política ao período da ditadura, tendo sido, inclusive, censurado na época de seu lançamento.
Partindo da associação com as demais obras que compõem a trilogia de Brand
trabalho se propõe a ler o romance
Zero
não pelo viés de suas abordagens usuais, mas tomá
como objeto dentro da tradição distópica, entendendo
-
o como uma representação do momento de
transição entre o presente de crise e o futuro sombrio q
ue o substitui, transição essa marcada por
uma violência fundadora tanto física quanto política.
distopia
; tempo; violência; totalitarismo.
: de la crisis a la violencia fundadora del estado distópico
Uno de los nombres más conocidos de la ficción distópica brasileña es, sin dudas, Ignácio
Não verás país nenhum
, publicado en plena dictadura militar.
Recientemente, el autor ha retornado al género de la distopia
con Desta terra
nada vai sobrar, a não
, revelando en esa elección un síntoma de cierto clima político que no
se limita al territorio nacional, pero se une a manifestaciones internacionales como la reciente serie
BBC,
Years and Years, y Los testamentos
, una inesperada continuación
para la más famosa distopia de Atwood,
El cuento de la criada
. Con la publicación de su nueva
distopia, Brandão identifica el encerramiento de una trilogía que tiene como primera novela
no es, sin embargo, asociada a la ficción distópica, pero normalmente
tomada como una sátira política al período de la dictadura, habiendo sido, incluso, censurada en la
época de su publicación. Partiendo de la asociac
ión con las demás obras que componen la trilogía de
Brandão, este trabajo se propone a leer
Zero
no por su abordaje usual, pero como un objeto dentro
de la tradición distópica, entendiéndolo así como una representación del momento de transición entre
esente de crisis y el futuro sombrío que lo sustituye, transición esa marcada por una violencia
fundadora, tanto física cuando política.
distopia
; tiempo; violencia; totalitarismo.
Pedro Puro Sasse da Silva. Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense
convidado do Programa de Pós
-
Graduação em Estudos de Literatura da UFF,
mail: pedro_sasse@hotmail.com
- ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7441
Texto recebido em 21/11/2019 e aceito para publicação em 04/01/2020.
198
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
: da crise à violência fundadora do estado distópico
Pedro Sasse
1
Um dos nomes mais conhecidos da ficção distópica brasileira é, sem dúvida, Ignácio de
, publicado em plena ditadura militar.
Desta terra nada va
i sobrar, a não
, revelando nessa escolha o sintoma de certo clima político que, longe
de se limitar ao território nacional, se une a manifestações internacionais como a recente série
,uma inesperada continuação da
. Com a publicação de sua nova distopia, Brandão
. Diferente dos outros
não é, no entanto, associado à ficção distópica, mas geralmente tomado como uma sátira
política ao período da ditadura, tendo sido, inclusive, censurado na época de seu lançamento.
Partindo da associação com as demais obras que compõem a trilogia de Brand
ão, o presente
não pelo viés de suas abordagens usuais, mas tomá
-lo
o como uma representação do momento de
ue o substitui, transição essa marcada por
Uno de los nombres más conocidos de la ficción distópica brasileña es, sin dudas, Ignácio
, publicado en plena dictadura militar.
nada vai sobrar, a não
, revelando en esa elección un síntoma de cierto clima político que no
se limita al territorio nacional, pero se une a manifestaciones internacionales como la reciente serie
, una inesperada continuación
. Con la publicación de su nueva
distopia, Brandão identifica el encerramiento de una trilogía que tiene como primera novela
Zero.
no es, sin embargo, asociada a la ficción distópica, pero normalmente
tomada como una sátira política al período de la dictadura, habiendo sido, incluso, censurada en la
ión con las demás obras que componen la trilogía de
no por su abordaje usual, pero como un objeto dentro
de la tradición distópica, entendiéndolo así como una representación del momento de transición entre
esente de crisis y el futuro sombrío que lo sustituye, transición esa marcada por una violencia
Pedro Puro Sasse da Silva. Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense
Graduação em Estudos de Literatura da UFF,
7441
-7122.
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
Ground Zero
: from the crisis to the founding
Abstract:
One of the most notorious names of the Brazilian dystopian fiction is, without doubt, Ignácio
de Loyola Brandão, through
Não
Recently, the aut
hor returned to the dystopian genre through
vento que sopra sobre ela
[2018], revealing in this choice the symptom of a political atmosphere that
rather than being limited by national boundaries
recent dystopian BBC series
Years and Years
famous of Atwood’s dystopias,
Brandão identifies the ending of a trilogy started with the novel
not, however, associated with dy
satire of the dictatorship era
which lead to it being censored. With an assumption of the association
with the dystopian novels that form the trilogy, this work aims to read
approaches, but rather as within the dystopian tradition, understanding it as a representation of the
transition between a present crisis and a dark future that replaces it
political and physical violence.
Keywords: Dictatorship;
dystopia
Marco Zero
: da crise à violência fundadora do estado distópico
“Se você quer formar uma
imagem do futuro, imagine uma bota
pisoteando um rosto humano
sempre” (ORWELL, 2009, p. 312).
Através das palavras do personagem
O’Brien, Orwell deixa cristalizado no
imaginário de seus leitores mais do
que uma imagem de opr
essão, deixa
um símbolo que condensa em si a
poética do gênero que sua obra ajuda
a delinear, a ficção distópica. Através
dessa imagem, entendemos que a
distopia é, sobretudo, uma
representação da opressão
de um estado absoluto sobre o povo.
S
ucedendo precursores do gênero
como Nós
[1924], de Yevgeny
Zamyatin, 1984
[1949], de George
Orwell, ao lado de
Admirável mundo
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
: from the crisis to the founding
violence of the dystopian state
One of the most notorious names of the Brazilian dystopian fiction is, without doubt, Ignácio
Não
verás país nenhum
[1981], published during the military dictatorship.
hor returned to the dystopian genre through
Desta terra nada vai
[2018], revealing in this choice the symptom of a political atmosphere that
rather than being limited by national boundaries
joins other international manifestations such as the
Years and Years
and The Testments, an unexpec
ted sequel for the most
famous of Atwood’s dystopias,
The Handmaid's Tale
. With the publication of his new dystopia,
Brandão identifies the ending of a trilogy started with the novel
Zero
. Different from the others,
not, however, associated with dy
stopian fiction but, instead, more commonly considered a political
which lead to it being censored. With an assumption of the association
with the dystopian novels that form the trilogy, this work aims to read
Zero
approaches, but rather as within the dystopian tradition, understanding it as a representation of the
transition between a present crisis and a dark future that replaces it
with a transition marked both by
dystopia
; time; violence; totalitarianism.
: da crise à violência fundadora do estado distópico
“Se você quer formar uma
imagem do futuro, imagine uma bota
pisoteando um rosto humano
– para
sempre” (ORWELL, 2009, p. 312).
Através das palavras do personagem
O’Brien, Orwell deixa cristalizado no
imaginário de seus leitores mais do
essão, deixa
um símbolo que condensa em si a
poética do gênero que sua obra ajuda
a delinear, a ficção distópica. Através
dessa imagem, entendemos que a
distopia é, sobretudo, uma
representação da opressão
violenta
de um estado absoluto sobre o povo.
ucedendo precursores do gênero
[1924], de Yevgeny
[1949], de George
Admirável mundo
novo
[1932], de Aldous Huxley,
consolida um gênero em plena sintonia
com os horrores políticos produzidos
ao longo do século XX
totalitários, de um lado, e pelo
capitalismo desenfreado, do outro.
No Brasil, ainda que a recepção
de Orwell tenha se dado pouco tempo
após a publicação de
década de 70 a política interna do país
cria o cenário favorável pa
florescimento desse tipo de ficção. O
clima de censura, vigilância e violência
instaurado pela ditadura militar
alimentará um período pródigo na
produção de obras nacionais com
inclinações distópicas, dentre as quais
podemos destacar
funcionário Ruam
[1975], de Mauro
199
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
violence of the dystopian state
One of the most notorious names of the Brazilian dystopian fiction is, without doubt, Ignácio
[1981], published during the military dictatorship.
Desta terra nada vai
sobrar, a não ser o
[2018], revealing in this choice the symptom of a political atmosphere that
joins other international manifestations such as the
ted sequel for the most
. With the publication of his new dystopia,
. Different from the others,
Zero is
stopian fiction but, instead, more commonly considered a political
which lead to it being censored. With an assumption of the association
not by the common
approaches, but rather as within the dystopian tradition, understanding it as a representation of the
with a transition marked both by
: da crise à violência fundadora do estado distópico
[1932], de Aldous Huxley,
consolida um gênero em plena sintonia
com os horrores políticos produzidos
ao longo do século XX
– pelos projetos
totalitários, de um lado, e pelo
capitalismo desenfreado, do outro.
No Brasil, ainda que a recepção
de Orwell tenha se dado pouco tempo
após a publicação de
1984, apenas na
década de 70 a política interna do país
cria o cenário favorável pa
ra o
florescimento desse tipo de ficção. O
clima de censura, vigilância e violência
instaurado pela ditadura militar
alimentará um período pródigo na
produção de obras nacionais com
inclinações distópicas, dentre as quais
Adaptação do
[1975], de Mauro
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
Chaves,
O fruto do vosso ventre
[1976], de Herberto Sales, e, uma das
mais conhecidas,
Não verás país
nenhum
[1981], de Ignácio de Loyola
Brandão.
Enquanto o Brasil dava seus
primeiros passos firmes nessa
literatura distópica
totalitária, a
literatura anglófona começa, a partir
do fim da segunda guerra mundial, a
distanciar-
se desse modelo, conforme
os próprios projetos totalitários
europeus vão perdendo força. Novas
ansiedades surgem e a bota
esmagando o rosto humano deixa
estar no horizonte de expectativa de
autores e leitores, sendo substituída
por temores como: (i) a partir da
década de 1950, a destruição do
planeta em uma guerra nuclear; (ii) a
partir da década de 1970, a
degradação ambiental levando a uma
catástrofe
climática sem precedentes;
(iii) uma progressiva mecanização da
sociedade e subordinação do homem
à tecnologia, levando a um
apagamento das fronteiras identitárias
humano/máquina; (iv) e a expansão
das sociedades de consumo e a
produção de massas alienadas
cultural e intelectualmente prostradas
aos padrões hedonistas de vida
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
O fruto do vosso ventre
[1976], de Herberto Sales, e, uma das
Não verás país
[1981], de Ignácio de Loyola
Enquanto o Brasil dava seus
primeiros passos firmes nessa
totalitária, a
literatura anglófona começa, a partir
do fim da segunda guerra mundial, a
se desse modelo, conforme
os próprios projetos totalitários
europeus vão perdendo força. Novas
ansiedades surgem e a bota
esmagando o rosto humano deixa
de
estar no horizonte de expectativa de
autores e leitores, sendo substituída
por temores como: (i) a partir da
década de 1950, a destruição do
planeta em uma guerra nuclear; (ii) a
partir da década de 1970, a
degradação ambiental levando a uma
climática sem precedentes;
(iii) uma progressiva mecanização da
sociedade e subordinação do homem
à tecnologia, levando a um
apagamento das fronteiras identitárias
humano/máquina; (iv) e a expansão
das sociedades de consumo e a
produção de massas alienadas
,
cultural e intelectualmente prostradas
aos padrões hedonistas de vida
vendidos pela mídia (cf. CLAEYS,
2017, p.447).
Nos aproximamos, assim, do
século XXI com uma crescente
confiança na superação do pesadelo
orwelliano. Por mais que a distopia
houvesse r
apidamente encontrado
novos caminhos para traçar sua
projeção negativa do futuro, cada vez
menos a metáfora de O’Brien
dialogava com as tensões do presente.
Tal confiança foi, hoje
percebemos, falsa: nos últimos anos,
uma onda conservadora se alastrou
por
países da Europa e das Américas.
Políticos de extrema direita sobem ao
poder, com discursos perigosos
envolvendo nacionalismo, moral e
religião, infundindo medo para justificar
atos extremos; grupos neonazistas
saem à luz do dia em marchas
carregadas de xe
nofobia; a hostilidade
cresce contra imigrantes, refugiados e
rapidamente se alastra a outras
minorias. Em 2018, o escritor Daniel
Olivas, em uma coluna para o
New York Times
, conclui, diante de
uma das ações desumanas do
governo Trump, que “A distopia
aqui”:
Eu queria que minha história
servisse como um conto de
advertência sobre o que nosso país
poderia se tornar caso as políticas
200
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
vendidos pela mídia (cf. CLAEYS,
Nos aproximamos, assim, do
século XXI com uma crescente
confiança na superação do pesadelo
orwelliano. Por mais que a distopia
apidamente encontrado
novos caminhos para traçar sua
projeção negativa do futuro, cada vez
menos a metáfora de O’Brien
dialogava com as tensões do presente.
Tal confiança foi, hoje
percebemos, falsa: nos últimos anos,
uma onda conservadora se alastrou
países da Europa e das Américas.
Políticos de extrema direita sobem ao
poder, com discursos perigosos
envolvendo nacionalismo, moral e
religião, infundindo medo para justificar
atos extremos; grupos neonazistas
saem à luz do dia em marchas
nofobia; a hostilidade
cresce contra imigrantes, refugiados e
rapidamente se alastra a outras
minorias. Em 2018, o escritor Daniel
Olivas, em uma coluna para o
The
, conclui, diante de
uma das ações desumanas do
governo Trump, que “A distopia
está
Eu queria que minha história
servisse como um conto de
advertência sobre o que nosso país
poderia se tornar caso as políticas
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
imigratórias do Sr. Trump fossem
totalmente concretizadas. Mas agora
é a nossa realidade: filhos e filhas
estão sendo
arrancados dos braços
de seus pais
em alguns casos
literalmente
e centros de detenção
estão ficando cheios de crianças
apavoradas. Em comunidades
imigrantes, o medo é palpável, com
pais se perguntando se eles
deveriam arriscar levar seus filhos à
esco
la ou ir trabalhar ou denunciar
um crime, temendo se tornarem
vulneráveis a uma batida dos
agentes da imigração
2018. Tradução própria)
No ano anterior, a Hulu lança
uma adaptação televisiva da
assustadora distopia de Margaret
Atwood, O conto da aia
[1985], uma
das narrativas distópicas que ainda
apelava para a distopia totalitária na
segunda metade do século XX,
explorando os perigos da exploração
do moralismo como ferramenta
política, o fundamentalismo religioso e
o controle dos corpos pelo E
a própria autora, na posterior trilogia
pós-apocalíptica Madd
Addam, havia
se voltado para os temas distópicos
2
No original: “I wanted my story to serve as a
cautionary tale of what our country could
devolve into if Mr. Trump’s immigration policies
were fully realized. But now this is our reality:
Sons and daughters are being ripped from
their parents’ arms — in so
me cases, literally
and detention centers are filled with
frightened children. In immigrant communities,
the fear is palpable, with parents asking
themselves if they should risk taking their
children to school, or going to work or reporting
a crime, lest
they become vulnerable to a
sweep by immigration agents”.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
imigratórias do Sr. Trump fossem
totalmente concretizadas. Mas agora
é a nossa realidade: filhos e filhas
arrancados dos braços
em alguns casos
e centros de detenção
estão ficando cheios de crianças
apavoradas. Em comunidades
imigrantes, o medo é palpável, com
pais se perguntando se eles
deveriam arriscar levar seus filhos à
la ou ir trabalhar ou denunciar
um crime, temendo se tornarem
vulneráveis a uma batida dos
agentes da imigração
.
2
(OLIVAS,
2018. Tradução própria)
No ano anterior, a Hulu lança
uma adaptação televisiva da
assustadora distopia de Margaret
[1985], uma
das narrativas distópicas que ainda
apelava para a distopia totalitária na
segunda metade do século XX,
explorando os perigos da exploração
do moralismo como ferramenta
política, o fundamentalismo religioso e
o controle dos corpos pelo E
stado. Se
a própria autora, na posterior trilogia
Addam, havia
se voltado para os temas distópicos
No original: “I wanted my story to serve as a
cautionary tale of what our country could
devolve into if Mr. Trump’s immigration policies
were fully realized. But now this is our reality:
Sons and daughters are being ripped from
me cases, literally
and detention centers are filled with
frightened children. In immigrant communities,
the fear is palpable, with parents asking
themselves if they should risk taking their
children to school, or going to work or reporting
they become vulnerable to a
pós-
totalitários que anteriormente
citamos, o lançamento súbito de uma
continuação para
O conto da aia
testamentos
[2019]
Atwood percebe o retorno do
totalitarismo como ameaça em uma
visão distópica do futuro.
No Brasil, acompanhando
quase o mesmo intervalo de produção
das distopias totalitárias de Atwood,
Ignácio de Loyola Brandão lança,
também em 2019, uma nova visão
distópica do Brasil,
vai sobrar a não ser o vento que sopra
sobre ela
(doravante
encerrando o que o autor considera
ser uma trilogia que iniciaria com
[1974]. Se as duas últimas obras
dessa trilogia são facilmente
reco
nhecíveis como distopias,
entanto, é mais resistente a uma
classificação de tal tipo. Romance
experimental, fragmentado, construído
através de diversos gêneros textuais
distintos, oscilando de um realismo cru
ao surrealismo,
Zero
mai
s tradicional dos romances
distópicos.
Se nossa introdução nos
levaria, de forma mais natural, a
propor uma leitura de
que ressaltasse o diálogo com o
201
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
totalitários que anteriormente
citamos, o lançamento súbito de uma
O conto da aia
Os
mostra que
Atwood percebe o retorno do
totalitarismo como ameaça em uma
visão distópica do futuro.
No Brasil, acompanhando
quase o mesmo intervalo de produção
das distopias totalitárias de Atwood,
Ignácio de Loyola Brandão lança,
também em 2019, uma nova visão
Desta terra nada
vai sobrar a não ser o vento que sopra
(doravante
Desta terra...),
encerrando o que o autor considera
ser uma trilogia que iniciaria com
Zero
[1974]. Se as duas últimas obras
dessa trilogia são facilmente
nhecíveis como distopias,
Zero, no
entanto, é mais resistente a uma
classificação de tal tipo. Romance
experimental, fragmentado, construído
através de diversos gêneros textuais
distintos, oscilando de um realismo cru
Zero
foge ao molde
s tradicional dos romances
Se nossa introdução nos
levaria, de forma mais natural, a
propor uma leitura de
Desta terra...
que ressaltasse o diálogo com o
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
cenário local e global da ascensão
desse novo totalitarismo, desejamos,
na verdade, diante
da nova produção
de Loyola Brandão e do atual cenário
de novo fôlego das distopias
totalitárias, retornar ao romance
para ler nele não a imagem de uma
distopia estabelecida, mas para tomá
lo como uma narrativa da violência
fundadora do estado distópi
espécie de origem, marco zero, da
guinada social que marca a ascensão
de um regime opressivo, controlador e
violento, que vemos de forma
consolidada nos romances distópicos
tradicionais.
Tal leitura se vê, ainda,
incentivada por uma peculiar pro
distópica contemporânea: a recente
série da BBC OneYears
[2019]. Sucesso de audiência e crítica,
a série vem reforçar esse retorno da
distopia totalitária ao pensamento
contemporâneo, mas de uma forma
atípica: distinguindo-
se de obras como
Nós, 1984 e
O conto da aia
Years
não é situado em um futuro em
que um regime detém o pleno
controle da sociedade, mas, tomando
como ponto de partida o nosso
presente, mostra, ano a ano, como o
título sugere, os eventos que
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
cenário local e global da ascensão
desse novo totalitarismo, desejamos,
da nova produção
de Loyola Brandão e do atual cenário
de novo fôlego das distopias
totalitárias, retornar ao romance
Zero
para ler nele não a imagem de uma
distopia estabelecida, mas para tomá
-
lo como uma narrativa da violência
fundadora do estado distópi
co, uma
espécie de origem, marco zero, da
guinada social que marca a ascensão
de um regime opressivo, controlador e
violento, que vemos de forma
consolidada nos romances distópicos
Tal leitura se vê, ainda,
incentivada por uma peculiar pro
dução
distópica contemporânea: a recente
and Years
[2019]. Sucesso de audiência e crítica,
a série vem reforçar esse retorno da
distopia totalitária ao pensamento
contemporâneo, mas de uma forma
se de obras como
O conto da aia
, Years and
não é situado em um futuro em
que um regime detém o pleno
controle da sociedade, mas, tomando
como ponto de partida o nosso
presente, mostra, ano a ano, como o
título sugere, os eventos que
culminarão na funda
ção desse estado
distópico.
Years and
Years
aviso sobre o que podemos nos tornar
num futuro muito distante. É um
documentário satírico sobre nosso
presente, tomando a projeção no
futuro imediato apenas para afinar
essa caricatura de nossos tempos.
Nossa hipótese é que
que afastado pelo próprio Loyola do
escopo de sua produção distópica, é
também essa espécie de distopia em
processo. Se controle é uma palavra
chave para entender a distopia
tradicional, nesse estágio ainda
embrionário de
formação do estado
distópico, a violência será o tema
central: violência política no processo
progressivo de perda dos direitos
constitucionais; violência cognitiva na
drástica mudança de visão de mundo
trazida pela implementação de um
novo sistema; e, sob
física, direta e explícita, no confronto
entre o Estado totalitário que começa a
se estabelecer e a resistência que
precisa ser esmada para que sobre os
seus corpos seja erguida a verdadeira
distopia.
202
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ção desse estado
Years
não é um
aviso sobre o que podemos nos tornar
num futuro muito distante. É um
documentário satírico sobre nosso
presente, tomando a projeção no
futuro imediato apenas para afinar
essa caricatura de nossos tempos.
Nossa hipótese é que
Zero, mesmo
que afastado pelo próprio Loyola do
escopo de sua produção distópica, é
também essa espécie de distopia em
processo. Se controle é uma palavra
-
chave para entender a distopia
tradicional, nesse estágio ainda
formação do estado
distópico, a violência será o tema
central: violência política no processo
progressivo de perda dos direitos
constitucionais; violência cognitiva na
drástica mudança de visão de mundo
trazida pela implementação de um
novo sistema; e, sob
retudo, violência
física, direta e explícita, no confronto
entre o Estado totalitário que começa a
se estabelecer e a resistência que
precisa ser esmada para que sobre os
seus corpos seja erguida a verdadeira
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
Do marco zero ao fim do tempo
Para p
odermos fazer uma
análise de Zero
a partir da ótica da
distopia, é preciso, antes, desdobrar
essa hipótese daquilo que chamamos
de estágio pré-
distópico encontrado na
obra de Loyola, na série
Years
e, se quisermos um exemplo
dentro do próprio cânone distópico,
Laranja mecânica
[1962], de Anthony
Burgess.
A distopia mantém uma relação
complexa com o tempo, tanto diegético
quanto cronológico. O próprio conceito
distopia nasce, de certa forma,
anacr
ônico para designar o que hoje
entendemos pelo gênero. Esse lugar
apontado pelo sufixo de distopia
topos
remete ao neologismo de More
em sua fundadora
Utopia
posteriormente, num jogo de sátira,
crítica e negação, possibilitará o
surgimento tanto d
o gênero quanto do
termo derivados.
More formula o nome de sua
ilha através do prefixo de negação
criando um não-
lugar, ou um lugar
outro, um lugar além de nossa visão
de mundo. Esse lugar, na obra de
Morus (assim como posteriormente
vemos em Bacon ou
Campanella) era
contemporâneo ao contexto de
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Do marco zero ao fim do tempo
odermos fazer uma
a partir da ótica da
distopia, é preciso, antes, desdobrar
essa hipótese daquilo que chamamos
distópico encontrado na
Years and
e, se quisermos um exemplo
dentro do próprio cânone distópico,
[1962], de Anthony
A distopia mantém uma relação
complexa com o tempo, tanto diegético
quanto cronológico. O próprio conceito
distopia nasce, de certa forma,
ônico para designar o que hoje
entendemos pelo gênero. Esse lugar
apontado pelo sufixo de distopia
remete ao neologismo de More
Utopia
que,
posteriormente, num jogo de sátira,
crítica e negação, possibilitará o
o gênero quanto do
More formula o nome de sua
ilha através do prefixo de negação
u,
lugar, ou um lugar
outro, um lugar além de nossa visão
de mundo. Esse lugar, na obra de
Morus (assim como posteriormente
Campanella) era
contemporâneo ao contexto de
produção da obra, uma espécie de
sociedade isolada, ainda não
descoberta. Dessa forma, o tempo
ainda não era um elemento central
para o gênero como mais tarde se
tornará.
As utopias de More,
Campanella ou Bacon
uma visão de mundo anterior à noção
de progresso e de história que se
fundará a partir do pensamento
iluminista no século XVIII:
A projeção dos desejos utópicos no
futuro implicou uma mudança na
própria natureza da utopia
nasceu uma
derivação neologística.
Da eu/utopia, o bom/não
movemos para a eucronia, o lugar
bom no futuro. O nascimento da
eucronia se por uma mudança na
mentalidade, presidida por uma visão
de mundo otimista que prevaleceu
na Europa no Iluminismo. Na
R
enascença, o homem havia
descoberto que havia opções
alternativas à sociedade em que ele
vivia, tornara-
se consciente dos
poderes infinitos da razão e
entendera que a construção do
futuro estava em suas mãos. No
Iluminismo, o homem descobriu que
a razão lh
e possibilitaria não apenas
a ter uma vida feliz, mas a alcançar a
perfeição humana. A
é o resultado da descoberta que
ocorre na Renascença; eucronia é o
produto da nova lógica do
Iluminismo.
3
(VIEIRA, 2010, p. 9.
Tradução própria).
3
No original: “The projection of the utopian
wishes into the future implied a change in the
very nature of utopia –
and thus a derivation
neologism was born. From eu/utopia, the
good/non-place, we
move to euchronia, the
good place in the future. The birth of euchronia
was due to a change of mentality, presided
over by the optimistic worldview that prevailed
203
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
produção da obra, uma espécie de
sociedade isolada, ainda não
descoberta. Dessa forma, o tempo
ainda não era um elemento central
para o gênero como mais tarde se
As utopias de More,
Campanella ou Bacon
são fruto de
uma visão de mundo anterior à noção
de progresso e de história que se
fundará a partir do pensamento
iluminista no século XVIII:
A projeção dos desejos utópicos no
futuro implicou uma mudança na
própria natureza da utopia
e assim
derivação neologística.
Da eu/utopia, o bom/não
-lugar, nos
movemos para a eucronia, o lugar
bom no futuro. O nascimento da
eucronia se por uma mudança na
mentalidade, presidida por uma visão
de mundo otimista que prevaleceu
na Europa no Iluminismo. Na
enascença, o homem havia
descoberto que havia opções
alternativas à sociedade em que ele
se consciente dos
poderes infinitos da razão e
entendera que a construção do
futuro estava em suas mãos. No
Iluminismo, o homem descobriu que
e possibilitaria não apenas
a ter uma vida feliz, mas a alcançar a
perfeição humana. A
Utopia de More
é o resultado da descoberta que
ocorre na Renascença; eucronia é o
produto da nova lógica do
(VIEIRA, 2010, p. 9.
Tradução própria).
No original: “The projection of the utopian
wishes into the future implied a change in the
and thus a derivation
neologism was born. From eu/utopia, the
move to euchronia, the
good place in the future. The birth of euchronia
was due to a change of mentality, presided
over by the optimistic worldview that prevailed
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
A mudan
ça da projeção dessa
sociedade imaginada do espaço para
o tempo o encontrará, no entanto,
equivalência numa atualização
taxonômica, e usos de ucronia, ainda
que mais precisos, encontrarão
lugar em alguns poucos críticos
especializados no gênero. A lit
distópica, ainda que tenha dado se
consolidado como gênero apenas no
século XX
e desde o início estivesse
atrelada a essa projeção no tempo
mais que no espaço
paralelo com o gênero do qual deriva.
Tal descompasso etimológico acabará
g
erando algumas contradições:
A distopia literária usa os dispositivos
narrativos da
utopia
incorporando em sua lógica os
princípios da eucronia (ou seja,
imaginando como o
mesmo lugar
lugar em que o
utopista
em outro tempo –
no fu
prevê que as coisas sairão mal; é,
portanto, essencialmente pessimista
em sua apresentação das imagens
in Europe in the Enlightenment. In the
Renaissance, man discovered that there were
alternati
ve options to the society he lived in,
became aware of the infinite powers of reason
and understood that the construction of the
future was in his hands. In the Enlightenment,
man discovered that reason could enable him
not only to have a happy life, but a
human perfection. More’s
Utopia
of the discovery that occurred in the
Renaissance; euchronia is the product of the
new logic of the Enlightenment”.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
ça da projeção dessa
sociedade imaginada do espaço para
o tempo o encontrará, no entanto,
equivalência numa atualização
taxonômica, e usos de ucronia, ainda
que mais precisos, encontrarão
lugar em alguns poucos críticos
especializados no gênero. A lit
eratura
distópica, ainda que tenha dado se
consolidado como gênero apenas no
e desde o início estivesse
atrelada a essa projeção no tempo
manteve o
paralelo com o gênero do qual deriva.
Tal descompasso etimológico acabará
erando algumas contradições:
A distopia literária usa os dispositivos
utopia
literária,
incorporando em sua lógica os
princípios da eucronia (ou seja,
mesmo lugar
o
utopista
vive será
no fu
turo), mas
prevê que as coisas sairão mal; é,
portanto, essencialmente pessimista
em sua apresentação das imagens
in Europe in the Enlightenment. In the
Renaissance, man discovered that there were
ve options to the society he lived in,
became aware of the infinite powers of reason
and understood that the construction of the
future was in his hands. In the Enlightenment,
man discovered that reason could enable him
not only to have a happy life, but a
lso to reach
Utopia
is the result
of the discovery that occurred in the
Renaissance; euchronia is the product of the
projetivas.
4
(VIEIRA, 2010, p. 17.
Tradução e grifos próprios)
Percebamos que se aponta o
uso da utopia e chama
o produtor des
distópicas, ainda que a lógica utilizada
seja etimologicamente oposta à ideia
de utopia, uma vez que apresenta não
esse outro lugar significado pela
utopia, mas justamente “o mesmo
lugar”. Caso se buscasse priorizar a
precisão conceitual à p
termo, discronia
seria mais apropriado,
uma vez que o eixo de deslocamento
nesse gênero é o tempo, e não mais o
espaço. No entanto, dada a
popularização de distopia e seu vasto
uso mesmo entre os especialistas,
mantém-
se, assim o conceito d
distopia, ainda que problemático.
Sendo, então, característico da
distopia seu deslocamento temporal
em relação ao presente de seu
contexto de produção
deslocamento uma projeção negativa
do futuro –
, nos interessa observar não
4
No original “Literary dystopia utilizes the
narrative devices of literary utopi
incorporating into its logic the principles of
euchronia (i.e., imagining what the same place
the place where the utopist lives
in another time –
the future), but predicts that
things will turn out badly; it is thus essentially
pessimis
tic in its presentation of projective
images”.
204
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
(VIEIRA, 2010, p. 17.
Tradução e grifos próprios)
Percebamos que se aponta o
uso da utopia e chama
-se de utopista
sas narrativas
distópicas, ainda que a lógica utilizada
seja etimologicamente oposta à ideia
de utopia, uma vez que apresenta não
esse outro lugar significado pela
utopia, mas justamente “o mesmo
lugar”. Caso se buscasse priorizar a
precisão conceitual à p
opularização do
seria mais apropriado,
uma vez que o eixo de deslocamento
nesse gênero é o tempo, e não mais o
espaço. No entanto, dada a
popularização de distopia e seu vasto
uso mesmo entre os especialistas,
se, assim o conceito d
e
distopia, ainda que problemático.
Sendo, então, característico da
distopia seu deslocamento temporal
em relação ao presente de seu
contexto de produção
criando nesse
deslocamento uma projeção negativa
, nos interessa observar não
No original “Literary dystopia utilizes the
narrative devices of literary utopi
a,
incorporating into its logic the principles of
euchronia (i.e., imagining what the same place
the place where the utopist lives
– will be like
the future), but predicts that
things will turn out badly; it is thus essentially
tic in its presentation of projective
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
apenas o ponto inicial
contexto de
futuro negativo estabelecido
trajetória, mas entender os estágios
intermediários desse processo, dados
apenas entrevistos das distopias
totalitárias canônicas.
Observando romances basilares
para pensar a distopia, como
1984,
Admirável mundo novo
Fahrenheit 451
, de Ray Bradbury, e
conto da aia
, é possível perceber
certas constâncias no uso do tempo e
na construção do espaço narrativo. Em
todos esses casos, somos
apresentados a uma sociedade em
que o estado
distópico se
plenamente estabelecido: uma nova
lógica de mundo
em que a liberdade
cede espaço ao controle, em que a
coletividade substitui a individualidade,
e uma tecnocracia autoritária substitui
a democracia
é tomada como
natural para a maior
população e suas estratégias de
controle e vigilância estão
integralmente implementadas.
Em uma primeira análise,
Laranja mecânica
, geralmente
associado a essas distopias literárias
de grande circulação e atenção crítica
sobretudo após o bem
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
presente,
produção da obra
e final
futuro negativo estabelecido
dessa
trajetória, mas entender os estágios
intermediários desse processo, dados
apenas entrevistos das distopias
Observando romances basilares
para pensar a distopia, como
Nós,
Admirável mundo novo
,
, de Ray Bradbury, e
O
, é possível perceber
certas constâncias no uso do tempo e
na construção do espaço narrativo. Em
todos esses casos, somos
apresentados a uma sociedade em
distópico se
plenamente estabelecido: uma nova
em que a liberdade
cede espaço ao controle, em que a
coletividade substitui a individualidade,
e uma tecnocracia autoritária substitui
é tomada como
parte da
população e suas estratégias de
controle e vigilância estão
integralmente implementadas.
Em uma primeira análise,
, geralmente
associado a essas distopias literárias
de grande circulação e atenção crítica
sobretudo após o bem
sucedido
filme de Kubrik baseado na obra de
Burgess
, parece resistir a essa
definição se buscamos na obra os
mesmos temas que encontramos nos
romances distópicos anteriormente
citados: o governo totalitário
controlando cada aspecto da vida de
sua po
pulação, não coletividade
compulsória, paranoia, manipulação
completa da informação. A sociedade
em que vive Alex, o protagonista do
romance, não é a nossa, sem vida.
Não compartilhamos sequer o idioma
com os personagens dessa sociedade.
No entanto, e
la é consideravelmente
mais próxima da lógica de
funcionamento da nossa sociedade do
que aquela encontrada na Oceânia ou
em Gilead, por exemplo. A diferença
do mundo de Burgess para o nosso é
apenas uma questão de intensidade
jovens mais violentos, caos
mais generalizado, degeneração moral
mais explícita. De fato, o único ponto
de contato, talvez, entre
mecânica
e as distopias totalitárias se
no pano de fundo político da obra,
que só ganha foco narrativo através da
Técnica Ludovico, to
cerebral construído para impedir que
criminosos voltem a praticar delitos.
205
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
filme de Kubrik baseado na obra de
, parece resistir a essa
definição se buscamos na obra os
mesmos temas que encontramos nos
romances distópicos anteriormente
citados: o governo totalitário
controlando cada aspecto da vida de
pulação, não coletividade
compulsória, paranoia, manipulação
completa da informação. A sociedade
em que vive Alex, o protagonista do
romance, não é a nossa, sem vida.
Não compartilhamos sequer o idioma
com os personagens dessa sociedade.
la é consideravelmente
mais próxima da lógica de
funcionamento da nossa sociedade do
que aquela encontrada na Oceânia ou
em Gilead, por exemplo. A diferença
do mundo de Burgess para o nosso é
apenas uma questão de intensidade
jovens mais violentos, caos
urbano
mais generalizado, degeneração moral
mais explícita. De fato, o único ponto
de contato, talvez, entre
Laranja
e as distopias totalitárias se
no pano de fundo político da obra,
que só ganha foco narrativo através da
Técnica Ludovico, to
do de lavagem
cerebral construído para impedir que
criminosos voltem a praticar delitos.
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
Utilizando a tecnologia para
retirar a vontade do homem,
castrando-
o da possibilidade de
cometer atos violentos, a técnica,
ainda experimental, se aproxima dos
mecanis
mos de controle do estado
distópico. A cnica Ludovico está,
contudo, longe de ser uma prática
naturalizada dentro da sociedade de
Laranja mecânica
. Ao compará
o controle comportamental da
humanidade através da tecnologia que
vemos em Admirável mun
do novo
exemplo,
via redução dos níveis de
oxigênio nos fetos, lavagem cerebral
hipnopédica e a droga calmante Soma
, temos como diferença o fato de que,
na sociedade de Alex, esse controle é
excepcional
o rapaz é o primeiro
paciente
e encontr
resistência
que em última instância
será responsável por frear o avanço do
partido totalitário
, enquanto na
sociedade de Bernard Marx, o
processo é a regra, implementada em
toda a população e tomada como
natural pela quase totalidade de seus
cidadãos.
O estágio inicial da Técnica
Ludovico serve de metonímia para o
próprio estágio de formação do estado
totalitário que se esboça no pano de
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Utilizando a tecnologia para
retirar a vontade do homem,
o da possibilidade de
cometer atos violentos, a técnica,
ainda experimental, se aproxima dos
mos de controle do estado
distópico. A cnica Ludovico está,
contudo, longe de ser uma prática
naturalizada dentro da sociedade de
. Ao compará
-la com
o controle comportamental da
humanidade através da tecnologia que
do novo
, por
via redução dos níveis de
oxigênio nos fetos, lavagem cerebral
hipnopédica e a droga calmante Soma
, temos como diferença o fato de que,
na sociedade de Alex, esse controle é
o rapaz é o primeiro
e encontr
a pronta
que em última instância
será responsável por frear o avanço do
, enquanto na
sociedade de Bernard Marx, o
processo é a regra, implementada em
toda a população e tomada como
natural pela quase totalidade de seus
O estágio inicial da Técnica
Ludovico serve de metonímia para o
próprio estágio de formação do estado
totalitário que se esboça no pano de
fundo da obra. Tendo como foco
narrativo Alex, um adolescente
alienado, não temos acesso a muito
mais do que
sua rotina de violência e,
posteriormente, sua vida na prisão. Os
únicos momentos em que podemos
vislumbrar com clareza o contexto
político de
Laranja mecânica
alguns diálogos de Alex, sobretudo
com os membros do partido de
oposição, responsáveis por
inicialmente após a lavagem cerebral.
F. Alexander, escritor e vítima prévia
do rapaz
ainda sem reconhecer seu
agressor
, é o primeiro a ajudá
ficando escandalizado com o processo
a que o menino foi exposto. Ao mesmo
tempo, vê, junto com
membros do partido, a possibilidade
de derrotar o governo autoritário que
crescia explorando o caso trágico de
Alex:
(...) Acho que você pode ajudar a
desalojar esse governo super
exigente. Transformar um jovem
decente em uma coisa mecânica não
deveria, certamente, ser encarado
como triunfo para nenhum governo,
a não ser aquele que se gabe de sua
capacidade de repressão
(BURGESS, 2014, p. 156
(...) Sabe, aquilo de que o governo
mais se gaba é a maneira pela qual
lidou com o crime nestes úl
meses. (...) Recrutando jovens
brutos para a polícia. Propondo
técnicas de condicionamento
debilitantes e que tiram a força de
vontade. (...) vimos tudo isso
antes –
ele disse
206
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
fundo da obra. Tendo como foco
narrativo Alex, um adolescente
alienado, não temos acesso a muito
sua rotina de violência e,
posteriormente, sua vida na prisão. Os
únicos momentos em que podemos
vislumbrar com clareza o contexto
Laranja mecânica
é em
alguns diálogos de Alex, sobretudo
com os membros do partido de
oposição, responsáveis por
acolhê-lo
inicialmente após a lavagem cerebral.
F. Alexander, escritor e vítima prévia
ainda sem reconhecer seu
-lo,
ficando escandalizado com o processo
a que o menino foi exposto. Ao mesmo
tempo, vê, junto com
os demais
membros do partido, a possibilidade
de derrotar o governo autoritário que
crescia explorando o caso trágico de
(...) Acho que você pode ajudar a
desalojar esse governo super
exigente. Transformar um jovem
decente em uma coisa mecânica não
deveria, certamente, ser encarado
como triunfo para nenhum governo,
a não ser aquele que se gabe de sua
capacidade de repressão
(BURGESS, 2014, p. 156
-7).
(...) Sabe, aquilo de que o governo
mais se gaba é a maneira pela qual
lidou com o crime nestes úl
timos
meses. (...) Recrutando jovens
brutos para a polícia. Propondo
técnicas de condicionamento
debilitantes e que tiram a força de
vontade. (...) vimos tudo isso
ele disse
– em outros países.
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
Estamos à beira do abismo. Sem
que nos apercebamos,
pouco teremos o aparato completo
do totalitarismo (p. 160)
O que temos no caso de
Laranja mecânica
, então, é um
governo em
vias de
totalitário, experimentando suas
primeiras medidas de controle da
população, a princípio em cidadãos
desa
mparados pela lei e despojados
da possibilidade de luta. O grupo de F.
Alexander serve para marcar a
resistência aberta de uma parcela da
sociedade
intelectual, humanista e
defensora das liberdades individuais
como são geralmente os dissidentes
do estado
totalitário distópico
regime ainda
democrático que ganha
ares de totalitarismo.
Longe de um final esperançoso,
a tentativa de usar Alex contra o
governo falha diante de outra
estratégia do totalitarismo: o controle
da informação. Após uma tentativa
suicídio do rapaz induzida por F.
Alexander, que havia descoberto que
Alex era um dos responsáveis pelo
estupro e morte de sua esposa, o
Ministro do Interior repara os danos
feitos ao rapaz e, numa jogada de
publicidade, usa os jornais para mudar
a opin
ião pública diante do caso.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Estamos à beira do abismo. Sem
que nos apercebamos,
daqui a
pouco teremos o aparato completo
do totalitarismo (p. 160)
O que temos no caso de
, então, é um
vias de
tornar-se
totalitário, experimentando suas
primeiras medidas de controle da
população, a princípio em cidadãos
mparados pela lei e despojados
da possibilidade de luta. O grupo de F.
Alexander serve para marcar a
resistência aberta de uma parcela da
intelectual, humanista e
defensora das liberdades individuais
como são geralmente os dissidentes
totalitário distópico
ao
democrático que ganha
Longe de um final esperançoso,
a tentativa de usar Alex contra o
governo falha diante de outra
estratégia do totalitarismo: o controle
da informação. Após uma tentativa
de
suicídio do rapaz induzida por F.
Alexander, que havia descoberto que
Alex era um dos responsáveis pelo
estupro e morte de sua esposa, o
Ministro do Interior repara os danos
feitos ao rapaz e, numa jogada de
publicidade, usa os jornais para mudar
ião pública diante do caso.
Assim, ainda que a obra se encerre
pouco depois, temos a sugestão de
que esse governo autoritário continua
a crescer, esboçando um caminho
claro em direção ao estado distópico.
Diante dessa tensão entre
governo democrático autor
esboço de uma distopia totalitária
projetada para o futuro, podemos
tomar a organização política de
Laranja mecânica
como o primeiro
estágio de desenvolvimento de um
estado distópico. Estamos,
claramente, diante de um cenário
distinto do contemp
apenas em grau, mantendo uma
mesma lógica de funcionamento das
organizações sociais e políticas.
Esses estágios anteriores à
consolidação do estado distópico, em
alguns casos, podem ser vislumbrados
também nas distopias plenas através
de invest
igação histórica, conversa
com sobreviventes ou flashbacks. No
entanto, são informações geralmente
obstruídas pelo contínuo processo de
manipulação da informação e
apagamento/reformulação da história e
da memória operado pelo governo
Ministério da Verd
ade em
queima dos livros em
207
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Assim, ainda que a obra se encerre
pouco depois, temos a sugestão de
que esse governo autoritário continua
a crescer, esboçando um caminho
claro em direção ao estado distópico.
Diante dessa tensão entre
governo democrático autor
itário e o
esboço de uma distopia totalitária
projetada para o futuro, podemos
tomar a organização política de
como o primeiro
estágio de desenvolvimento de um
estado distópico. Estamos,
claramente, diante de um cenário
distinto do contemp
orâneo, mas
apenas em grau, mantendo uma
mesma lógica de funcionamento das
organizações sociais e políticas.
Esses estágios anteriores à
consolidação do estado distópico, em
alguns casos, podem ser vislumbrados
também nas distopias plenas através
igação histórica, conversa
com sobreviventes ou flashbacks. No
entanto, são informações geralmente
obstruídas pelo contínuo processo de
manipulação da informação e
apagamento/reformulação da história e
da memória operado pelo governo
o
ade em
1984, a
queima dos livros em
Fahrenheit 451,
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
a proibição da leitura em
aia etc.
Vale ressaltar que tais
informações são mais ou menos
acessíveis dependendo do ponto
cronológico escolhido para o presente
narrativo nas distopias estabelecid
Em O conto da aia
, ainda que não haja
um acesso livre à informação, o foco é
a primeira geração do estado
distópico; todos seus membros
viveram o tempo de transição,
permitindo, como vemos, a exploração
desse estágio pré-
distópico através da
memória da
própria protagonista. Em
Fahrenheit 451
, Guy não pertence a
geração que viveu o momento de
transição, mas tal geração está viva,
como vemos em seu diálogo com
Faber, o velho professor. em
Admirável mundo novo
, o presente
narrativo está centenas de a
futuro, e o único acesso
passado de transição é através de
registros –
e, de alguma forma, através
da preservação cultural de grupos
como aquele de que vem John.
Analisando as relações dessas
distopias com o tempo, a
implementação de seus gov
vestígios do passado apresentados,
sugerimos estabelecer uma cronologia
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
O conto da
Vale ressaltar que tais
informações são mais ou menos
acessíveis dependendo do ponto
cronológico escolhido para o presente
narrativo nas distopias estabelecid
as.
, ainda que não haja
um acesso livre à informação, o foco é
a primeira geração do estado
distópico; todos seus membros
viveram o tempo de transição,
permitindo, como vemos, a exploração
distópico através da
própria protagonista. Em
, Guy não pertence a
geração que viveu o momento de
transição, mas tal geração está viva,
como vemos em seu diálogo com
Faber, o velho professor. em
, o presente
narrativo está centenas de a
nos no
futuro, e o único acesso
a esse
passado de transição é através de
e, de alguma forma, através
da preservação cultural de grupos
como aquele de que vem John.
Analisando as relações dessas
distopias com o tempo, a
implementação de seus gov
ernos e os
vestígios do passado apresentados,
sugerimos estabelecer uma cronologia
dos estágios de desenvolvimento de
uma distopia da seguinte forma:
1-
Presente: o presente de
produção da obra é o ponto de
partida. Sendo o único ponto de
coincidência cronológica entre a
narrativa distópica e seu contexto
de recepção inicial, esse
presente é visto de forma
ambivalente: ressalta
aspecto negativo do presente,
vendo-
o como um momento de
crise (política, eco
ecológica, moral, intelectual etc.),
mas tal destaque tem, em geral,
uma função crítica e
conscientizadora, um impulso de
esperança na resolução dessa
crise antes que a terrível
predição distópica se concretize.
2-
Totalitarismo velado:
esse estágio
inicial de crise se
intensifica até o ponto de se
tornar intolerável. Grupos
totalitários se aproveitam do
descontentamento da população
e justificam medidas drásticas,
negociando ideais democráticos,
direitos humanos e liberdades
individuais em troca de u
solução eficaz para a crise. Essa
é, ainda, uma fase mais de
208
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
dos estágios de desenvolvimento de
uma distopia da seguinte forma:
Presente: o presente de
produção da obra é o ponto de
partida. Sendo o único ponto de
coincidência cronológica entre a
narrativa distópica e seu contexto
de recepção inicial, esse
presente é visto de forma
ambivalente: ressalta
-se o
aspecto negativo do presente,
o como um momento de
crise (política, eco
nômica,
ecológica, moral, intelectual etc.),
mas tal destaque tem, em geral,
uma função crítica e
conscientizadora, um impulso de
esperança na resolução dessa
crise antes que a terrível
predição distópica se concretize.
Totalitarismo velado:
inicial de crise se
intensifica até o ponto de se
tornar intolerável. Grupos
totalitários se aproveitam do
descontentamento da população
e justificam medidas drásticas,
negociando ideais democráticos,
direitos humanos e liberdades
individuais em troca de u
ma
solução eficaz para a crise. Essa
é, ainda, uma fase mais de
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
adesão que de imposição dos
ideais distópicos. É o momento
em que a população, iludida,
apoia tais grupos diante dos
resultados obtidos –
anunciados
no combate à crise,
como vemos
na reação favorável
do público ao governo em
Laranja mecânica.
3-
Violência fundadora: o
poder investido nesse grupo
totalitário cresce ao ponto em
que não é preciso mais sustentar
as vias democráticas. Dessa
forma, inicia-
se o processo de
consolidação dos mecanismos de
controle da população. Nessa
drástica mudança no
fu
ncionamento da sociedade,
muitas das características
presentes na distopia
estabelecida são
implementadas em larga escala,
diferente do estágio anterior. No
entanto, o que diferencia esse
momento do estágio final de
desenvolvimento do estado
distópico é
a presença de uma
resistência a essa
implementação. Um ou mais
grupos se erguem como voz
dissonante e lutam contra as
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
adesão que de imposição dos
ideais distópicos. É o momento
em que a população, iludida,
apoia tais grupos diante dos
ou apenas
no combate à crise,
na reação favorável
do público ao governo em
Violência fundadora: o
poder investido nesse grupo
totalitário cresce ao ponto em
que não é preciso mais sustentar
as vias democráticas. Dessa
se o processo de
consolidação dos mecanismos de
controle da população. Nessa
drástica mudança no
ncionamento da sociedade,
muitas das características
presentes na distopia
estabelecida são
implementadas em larga escala,
diferente do estágio anterior. No
entanto, o que diferencia esse
momento do estágio final de
desenvolvimento do estado
a presença de uma
resistência a essa
implementação. Um ou mais
grupos se erguem como voz
dissonante e lutam contra as
mudanças, confronto que leva ou
a um impedimento da ascensão
do poder totalitário ou a uma
derrota e extermínio dos
opositores.
4-
Distopia
Após o silenciamento de
qualquer voz ativamente
divergente, os processos se
naturalizam, a população é
eficazmente controlada através
da docilização e da vigilância, e
os vestígios da violência
fundadora, apagados, num gesto
que tenta justame
desconectar a distopia do tempo,
tornando-
a, assim, eterna.
Claro que, como qualquer
esquema, o acima proposto pode
esbarrar com exceções, como
distopias em que a transição ao novo
modelo é alcançada sem uma
resistência declarada. Ainda nesses
casos,
no entanto, resta, se não uma
violência física contra opositores, uma
violência política no cerceamento da
liberdade, na imposição da
coletividade, no aparato de vigilância e
controle etc.
Um ótimo exemplo da trajetória
de formação desse Estado distópico
209
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mudanças, confronto que leva ou
a um impedimento da ascensão
do poder totalitário ou a uma
derrota e extermínio dos
estabelecida:
Após o silenciamento de
qualquer voz ativamente
divergente, os processos se
naturalizam, a população é
eficazmente controlada através
da docilização e da vigilância, e
os vestígios da violência
fundadora, apagados, num gesto
nte
desconectar a distopia do tempo,
a, assim, eterna.
Claro que, como qualquer
esquema, o acima proposto pode
esbarrar com exceções, como
distopias em que a transição ao novo
modelo é alcançada sem uma
resistência declarada. Ainda nesses
no entanto, resta, se não uma
violência física contra opositores, uma
violência política no cerceamento da
liberdade, na imposição da
coletividade, no aparato de vigilância e
Um ótimo exemplo da trajetória
de formação desse Estado distópico
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
s
e dá na recente série lançada pela
BBC One Years and
Years
T. Davies. Diante de um crescente
clima de totalitarismo que retorna ao
pensamento contemporâneo
vimos intuído no texto de Olivas
Davies propõe não uma distopia, mas
a história
de formação de uma
distopia, justamente essa história que
se tenta
e muitas vezes se consegue
apagar durante o processo de
consolidação do governo totalitário e
que nos chega, geralmente, através
de vestígios.
A série toma como ponto de
partida a c
ontemporaneidade, criando
um marco inicial no nascimento do
mais novo membro da família Lyons,
em Manchester. O surgimento de uma
nova geração espelha o início da
cronologia a caminho da distopia: as
cenas do parto da criança são
alternadas com a primeira
Vivienne Rook, espécie de versão
britânica de políticos como Trump e
Bolsonaro. Como eles, Rook fala o que
pensa, ignora o decoro esperado de
um político, é sensacionalista e
polêmica. Como eles, Rook se torna
rapidamente a projeção do cidadão
médio, insatisfeito com o sistema,
frustrado com os rumos de uma
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
e dá na recente série lançada pela
Years
, de Russel
T. Davies. Diante de um crescente
clima de totalitarismo que retorna ao
pensamento contemporâneo
como
vimos intuído no texto de Olivas
–,
Davies propõe não uma distopia, mas
de formação de uma
distopia, justamente essa história que
e muitas vezes se consegue
apagar durante o processo de
consolidação do governo totalitário e
que nos chega, geralmente, através
A série toma como ponto de
ontemporaneidade, criando
um marco inicial no nascimento do
mais novo membro da família Lyons,
em Manchester. O surgimento de uma
nova geração espelha o início da
cronologia a caminho da distopia: as
cenas do parto da criança são
aparição de
Vivienne Rook, espécie de versão
britânica de políticos como Trump e
Bolsonaro. Como eles, Rook fala o que
pensa, ignora o decoro esperado de
um político, é sensacionalista e
polêmica. Como eles, Rook se torna
rapidamente a projeção do cidadão
médio, insatisfeito com o sistema,
frustrado com os rumos de uma
democracia em decadência, cansado
da demagogia da velha política. Como
eles, Rook é a primeira a explorar o
potencial das redes sociais, a entender
que visibilidade é mais importante que
prep
aro, que verdade ou fato são
palavras obsoletas na era da
instantânea difusão de mensagens.
A sequência do nascimento de
Lincoln
cujo nome marca o ideal de
liberdade em oposição à tirania de seu
gêmeo maligno, o projeto de Rook
ambientada ainda no pre
com um questionamento de seu tio:
como será o mundo para aquela
criança nos anos vindouros, diante da
crise que era vista no próprio
presente? Tomando tal
questionamento como fundamento, a
série passa a narrar, ano a ano, a
ascensão de Rook
piada nas redes a líder de um novo
governo totalitário na Inglaterra
inversamente proporcional queda da
família Lyons e seu engajamento na
luta contra esse sistema autoritário.
Uma vez que é ambientada nos
anos imediatamente posteri
presente de sua produção,
Years, assim como
Laranja mecânica
se distancia de seu contexto de
produção apenas pela intensidade de
210
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
democracia em decadência, cansado
da demagogia da velha política. Como
eles, Rook é a primeira a explorar o
potencial das redes sociais, a entender
que visibilidade é mais importante que
aro, que verdade ou fato são
palavras obsoletas na era da
instantânea difusão de mensagens.
A sequência do nascimento de
cujo nome marca o ideal de
liberdade em oposição à tirania de seu
gêmeo maligno, o projeto de Rook
–,
ambientada ainda no pre
sente, termina
com um questionamento de seu tio:
como será o mundo para aquela
criança nos anos vindouros, diante da
crise que era vista no próprio
presente? Tomando tal
questionamento como fundamento, a
série passa a narrar, ano a ano, a
que passa de
piada nas redes a líder de um novo
governo totalitário na Inglaterra
e a
inversamente proporcional queda da
família Lyons e seu engajamento na
luta contra esse sistema autoritário.
Uma vez que é ambientada nos
anos imediatamente posteri
ores ao
presente de sua produção,
Years and
Laranja mecânica
,
se distancia de seu contexto de
produção apenas pela intensidade de
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
sua crise. Ainda que pequenos
avanços tecnológicos apareçam na
narrativa, os problemas levantados
nela são a
queles que vivemos,
apenas distorcidos pela
hipérbole satírica própria do gênero
distópico. De fato, para um morador
dos EUA de Trump ou do Brasil de
Bolsonaro, o começo da série e seus
anos iniciais estão aquém da realidade
vivida nesses p
aíses. Tal fato acaba
dificultando o encaixe dessas obras
numa visão mais restrita de distopia,
que apenas aceita o modelo totalitário
em estágio final como possibilidade.
Sem entrar na problemática conceitual,
vale pensar nessas obras, se não
como distopi
as, ao menos como
distopias em potência, fundamentais
para explorar certas questões que, nas
distopias plenas, são secundárias,
dentre elas, justamente, essa violência
fundadora do Estado distópico.
A visão de Loyola do gênero
distópico parece se alinhar a
perspectiva mais restrita, o que o leva
ainda que aceite Zero
,
país nenhum e
Desta terra...
uma trilogia a distinguir
Zero
obras distópicas, entendendo
um romance que fala especificamente
sobre a ditadura militar. No
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
sua crise. Ainda que pequenos
avanços tecnológicos apareçam na
narrativa, os problemas levantados
queles que vivemos,
tênue
hipérbole satírica própria do gênero
distópico. De fato, para um morador
dos EUA de Trump ou do Brasil de
Bolsonaro, o começo da série e seus
anos iniciais estão aquém da realidade
aíses. Tal fato acaba
dificultando o encaixe dessas obras
numa visão mais restrita de distopia,
que apenas aceita o modelo totalitário
em estágio final como possibilidade.
Sem entrar na problemática conceitual,
vale pensar nessas obras, se não
as, ao menos como
distopias em potência, fundamentais
para explorar certas questões que, nas
distopias plenas, são secundárias,
dentre elas, justamente, essa violência
fundadora do Estado distópico.
A visão de Loyola do gênero
distópico parece se alinhar a
essa
perspectiva mais restrita, o que o leva
,
Não verás
Desta terra...
como
Zero
de suas
obras distópicas, entendendo
-o como
um romance que fala especificamente
sobre a ditadura militar. No
entanto,
fazendo uma leitura à revelia da crítica
tradicional e da designação autoral,
em Zero
justamente a hipérbole
satírica que caracteriza esse cenário
da crise do presente intensificada
como vemos em
Laranja mecânica
Years and Years
. A obra de B
fala sobre a ditadura, mas não usa os
registros realistas para tal, o faz
através de um registro que nos permite
aproximar o romance dessa tradição
das distopias em potencial. Ainda que
fale sobre o presente, o caráter
preditivo fica marcado na pri
página de Zero
, que expõe, ocupando
a página inteira, o espaço
narrativa: “Num país da América
Latíndia, amanhã” (BRANDÃO, 1979,
p. 9).
Trajetória da violência
Zero
é uma obra de difícil
categorização. Desde é preciso
ressaltar que, diferente dos casos de
Laranja mecânica e
não se trata de obra facilmente
associável ao gênero distópico.
Romance experimetal,
narrativa fragmentada, cont
através de gêneros textuais diversos,
desde o fluxo de consciência à
propaganda, utilizando ainda
211
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
fazendo uma leitura à revelia da crítica
tradicional e da designação autoral,
justamente a hipérbole
satírica que caracteriza esse cenário
da crise do presente intensificada
Laranja mecânica
e
. A obra de B
randão
fala sobre a ditadura, mas não usa os
registros realistas para tal, o faz
através de um registro que nos permite
aproximar o romance dessa tradição
das distopias em potencial. Ainda que
fale sobre o presente, o caráter
preditivo fica marcado na pri
meira
, que expõe, ocupando
a página inteira, o espaço
-tempo da
narrativa: “Num país da América
Latíndia, amanhã” (BRANDÃO, 1979,
Trajetória da violência
é uma obra de difícil
categorização. Desde é preciso
ressaltar que, diferente dos casos de
Years
and Years,
não se trata de obra facilmente
associável ao gênero distópico.
Romance experimetal,
Zero tem uma
narrativa fragmentada, cont
ada
através de gêneros textuais diversos,
desde o fluxo de consciência à
propaganda, utilizando ainda
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
desenhos, explorando de forma não
linear o espaço branco da página,
criando colunas e notas de rodapé. A
obra não é apenas experimental em
sua forma: o co
nteúdo também oscila
dos registros realistas ao pleno
surrealismo, explorando, muitas vezes,
um absurdo de influência kafkiana.
Zero
é, acima de tudo, um
romance sobre a ditadura militar. É
escrito, no entanto, bem fora de um
gênero que se espera para abor
tema: demasiado absurdo para o
realismo documental, demasiado
realista para uma alegoria que
escapasse da censura
de fato, não
escapou. Mas é justamente esse tom
satírico, absurdo
ma non troppo
nos permite uma leitura à revelia da
crítica trad
icional sobre a obra:
tomando esse “amanhã” exposto na
primeira página e a hipérbole da crise
social retratada por Zero
, podemos ver
o romance como uma distopia em
construção, tal como encontramos no
romance de Burgess e na rie da
BBC.
Apesar das sequênc
menores que vão se desencadeando
ao longo da obra, pode-
se dizer que a
história central é focada no
personagem José, contando, por um
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
desenhos, explorando de forma não
linear o espaço branco da página,
criando colunas e notas de rodapé. A
obra não é apenas experimental em
nteúdo também oscila
dos registros realistas ao pleno
surrealismo, explorando, muitas vezes,
um absurdo de influência kafkiana.
é, acima de tudo, um
romance sobre a ditadura militar. É
escrito, no entanto, bem fora de um
gênero que se espera para abor
dar o
tema: demasiado absurdo para o
realismo documental, demasiado
realista para uma alegoria que
de fato, não
escapou. Mas é justamente esse tom
ma non troppo
, que
nos permite uma leitura à revelia da
icional sobre a obra:
tomando esse “amanhã” exposto na
primeira página e a hipérbole da crise
, podemos ver
o romance como uma distopia em
construção, tal como encontramos no
romance de Burgess e na rie da
Apesar das sequênc
ias
menores que vão se desencadeando
se dizer que a
história central é focada no
personagem José, contando, por um
lado, sua trajetória de matador de
ratos num cinema a guerrilheiro
procurado pelo governo e, por outro, o
desenvolvime
nto de um complicado
relacionamento com Rosa. A partir de
tal história, com o suporte dos textos
menores, vamos conhecendo essa
América Latíndia, paródia sombria do
Brasil da década de 70 apenas por um
gesto de magnificação: mais violenta,
consumista, doen
te, caótica.
Esse espaço, no entanto, não é
dado de forma linear, mas precisa ser
montado através dos fragmentos
espalhados pela obra, seja nos trechos
isolados ou na narrativa de José.
Como vimos anteriormente, essas
distopias em potência se
diferenciaria
m das plenas distopias
pela presença, ainda, da crise que
justificará a ascensão do regime
totalitário e da violência decorrente da
resistência no processo de
consolidação desse regime. Dessa
forma, o primeiro elemento a se
ressaltar na construção do espaç
Zero
é justamente o caos social que o
governo tenta combater através de
suas medidas autoritárias.
Um dos problemas mais
explícitos e marcantes da América
Latíndia é a crise econômica em que
212
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
lado, sua trajetória de matador de
ratos num cinema a guerrilheiro
procurado pelo governo e, por outro, o
nto de um complicado
relacionamento com Rosa. A partir de
tal história, com o suporte dos textos
menores, vamos conhecendo essa
América Latíndia, paródia sombria do
Brasil da década de 70 apenas por um
gesto de magnificação: mais violenta,
te, caótica.
Esse espaço, no entanto, não é
dado de forma linear, mas precisa ser
montado através dos fragmentos
espalhados pela obra, seja nos trechos
isolados ou na narrativa de José.
Como vimos anteriormente, essas
distopias em potência se
m das plenas distopias
pela presença, ainda, da crise que
justificará a ascensão do regime
totalitário e da violência decorrente da
resistência no processo de
consolidação desse regime. Dessa
forma, o primeiro elemento a se
ressaltar na construção do espaç
o de
é justamente o caos social que o
governo tenta combater através de
suas medidas autoritárias.
Um dos problemas mais
explícitos e marcantes da América
Latíndia é a crise econômica em que
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
se vive. Ainda nas primeiras páginas
da obra vemos o nível d
o problema:
José foi intimado a depor. O dono da
pensão se atirara ao poço, alegando
miséria. Tinha convidado a mulher,
mas ela não quis, disse: Vai sozinho.
A polícia suspeitava. Numa só
semana, três pessoas tinham se
atirado em poços, alegando miséria
(BRANDÃO, 1979, p
. 15).
Tal problema, num mundo
globalizado, é ainda intensificado pel
ondas migratórias em busca de
emprego. Sem amparo social, a mão
de obra estrangeira aceita salários
ainda mais baixos e condições de
trabalho deploráveis:
Todos os dias chegam trabalhadores
à procura de emprego. Sempre há
vagas nas obras dos Monumentos
Nacionais. Dizem (não se confirma)
que quase todos os dias morre (SIC)
operários em acidente, pela falta de
segurança e pela pressa com que o
governo pretende terminar a obra, a
fim de comemorar o Décimo
Aniversário da Revolução que tirou o
país das mãos d
os comunistas.
O costarriquenho conseguiu o
emprego, porque aceitou o Terço
mínimo.
É isso, meu caro, se quiser. É o
salário para estrangeiro. Está
baixando muito em nosso país,
ultimamente. ? O que é que por
lá.
5
Terço
mínimo: uma das três partes
do
salário mínimo (BRANDÃO, 1979,
p. 51-52).
Tal situação, intensificada por uma
falta de interesse do governo em resolver
5
A pontuação no começo das frases é uma
marca estilística usada na maior parte dos
fragmentos de José na obra.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
se vive. Ainda nas primeiras páginas
o problema:
José foi intimado a depor. O dono da
pensão se atirara ao poço, alegando
miséria. Tinha convidado a mulher,
mas ela não quis, disse: Vai sozinho.
A polícia suspeitava. Numa só
semana, três pessoas tinham se
atirado em poços, alegando miséria
. 15).
Tal problema, num mundo
globalizado, é ainda intensificado pel
as
ondas migratórias em busca de
emprego. Sem amparo social, a mão
de obra estrangeira aceita salários
ainda mais baixos e condições de
Todos os dias chegam trabalhadores
à procura de emprego. Sempre há
vagas nas obras dos Monumentos
Nacionais. Dizem (não se confirma)
que quase todos os dias morre (SIC)
operários em acidente, pela falta de
segurança e pela pressa com que o
governo pretende terminar a obra, a
fim de comemorar o Décimo
Aniversário da Revolução que tirou o
os comunistas.
O costarriquenho conseguiu o
emprego, porque aceitou o Terço
É isso, meu caro, se quiser. É o
salário para estrangeiro. Está
baixando muito em nosso país,
ultimamente. ? O que é que por
mínimo: uma das três partes
salário mínimo (BRANDÃO, 1979,
Tal situação, intensificada por uma
falta de interesse do governo em resolver
A pontuação no começo das frases é uma
marca estilística usada na maior parte dos
de fato o problema
foco é o combate aos revolucionários,
repressão dos descontentes e uma
fiscalização de questões mo
em meados da obra, à beira de um
colapso social:
Esmolas, mendigos, fome,
vendedores ambulantes surgindo por
toda a parte. Advogados bem
falantes vendendo io
ratinhos de corda, barbatana,
esferográficas (3 por mil), saquinhos
de limão (l zia por 50 centavos),
imagens de santo, bolas de gás,
isqueiros, doces feitos em casa,
perfumes, livros clandestinos,
chaveiros, meias, anéis, óculos,
distintivos, caleidoscópios,
aparelhinho de descascar batatas,
réguas, lápis, borracha. Méd
vendendo flâmulas de porta em
porta. Agrônomos lavando vidros de
carros nos estacionamentos.
Arquitetos orientando construção de
barracos nas favelas.
As filas no serviço social, crescendo.
Brigas todas as noites diante dos
albergues, debaixo dos viad
pontes, nas portas de prédio, portas
de igreja / os mais fortes tomando o
lugar e vendendo aos mais fracos
por um cigarro, um dar a bunda, uma
pinga e os padres surgindo com a
polícia: fora, fora da casa de deus, ó
vendilhões /, um lugar para dormir.
Mendigos, vagabundos,
desempregados, hordas revirando os
lixos da cidade, de todas as cidades.
As casas invadidas, ladrões presos
ao roubar despensas, armazéns e
supermercados protegidos por
contigentes (SIC) policiais. Todo
mundo querendo ir para a cadei
onde, ao menos, não se morre de
fome.
Casal que pastava nas margens do
riacho atacou a dentadas
companheiros de pastagem.
Empregados demitidos. E demitidos
matando patrões.
Os padres rezando e pedindo: Filhos
meus, confiem em Deus e deus vos
alimentará
(BRANDÃO, 1979, p.
133).
213
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
uma vez que seu
foco é o combate aos revolucionários,
repressão dos descontentes e uma
fiscalização de questões mo
rais –, chega,
em meados da obra, à beira de um
Esmolas, mendigos, fome,
vendedores ambulantes surgindo por
toda a parte. Advogados bem
falantes vendendo io
-iôs luminosos,
ratinhos de corda, barbatana,
esferográficas (3 por mil), saquinhos
de limão (l zia por 50 centavos),
imagens de santo, bolas de gás,
isqueiros, doces feitos em casa,
perfumes, livros clandestinos,
chaveiros, meias, anéis, óculos,
distintivos, caleidoscópios,
aparelhinho de descascar batatas,
réguas, lápis, borracha. Méd
icos
vendendo flâmulas de porta em
porta. Agrônomos lavando vidros de
carros nos estacionamentos.
Arquitetos orientando construção de
barracos nas favelas.
As filas no serviço social, crescendo.
Brigas todas as noites diante dos
albergues, debaixo dos viad
utos,
pontes, nas portas de prédio, portas
de igreja / os mais fortes tomando o
lugar e vendendo aos mais fracos
por um cigarro, um dar a bunda, uma
pinga e os padres surgindo com a
polícia: fora, fora da casa de deus, ó
vendilhões /, um lugar para dormir.
Mendigos, vagabundos,
desempregados, hordas revirando os
lixos da cidade, de todas as cidades.
As casas invadidas, ladrões presos
ao roubar despensas, armazéns e
supermercados protegidos por
contigentes (SIC) policiais. Todo
mundo querendo ir para a cadei
a
onde, ao menos, não se morre de
Casal que pastava nas margens do
riacho atacou a dentadas
companheiros de pastagem.
Empregados demitidos. E demitidos
matando patrões.
Os padres rezando e pedindo: Filhos
meus, confiem em Deus e deus vos
(BRANDÃO, 1979, p.
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
A consequência mais direta
desse cenário é o aumento das taxas
de crime e violência urbana, que
também abundam ao longo da
narrativa. Essa violência é explorada
de diversas formas, desde um
condensado fragmento estatístico
indican
do números de roubos a
bancos no país (cf. BRANDÃO, 1979,
p. 18-
19) a longas cenas de tiroteios,
assaltos e ataques terroristas.
Vale ressaltar, nesse espaço de
crise, o surgimento de uma geração de
jovens violentos que em muito se
assemelham a Alex e seus
Laranja mecânica
. Em visita à Filhoda,
cidade de sua esposa, José é
abordado por um grupo de jovens que,
sem aparente motivo, resolvem
hostilizá-lo:
? Por que vocês se preocupam
comigo.
. Não gostamos de você. Por isso.
. Você tem 24 horas para
cidade.
. Olha, você pode mandar nesses
bostinhas dos teus amigos, em mim
não.
. Mando em tudo. Eu e eles, nós
fazemos o que nós queremos. Pra se
divertir. Você é a nossa diversão.
. Vamos fazer como fizemos com
aqueles comunistinhas da faculdade
? Sabe o que fizemos.
. Batemos em todos. Um deles, um
negrinho baixote, andava pregando
reforma agrária. E nós fizemos uma
reforma agrária nele. Pegamos ele e
levamos pra fazenda do Diabo Loiro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
A consequência mais direta
desse cenário é o aumento das taxas
de crime e violência urbana, que
também abundam ao longo da
narrativa. Essa violência é explorada
de diversas formas, desde um
condensado fragmento estatístico
do números de roubos a
bancos no país (cf. BRANDÃO, 1979,
19) a longas cenas de tiroteios,
assaltos e ataques terroristas.
Vale ressaltar, nesse espaço de
crise, o surgimento de uma geração de
jovens violentos que em muito se
assemelham a Alex e seus
druguis em
. Em visita à Filhoda,
cidade de sua esposa, José é
abordado por um grupo de jovens que,
sem aparente motivo, resolvem
? Por que vocês se preocupam
. Não gostamos de você. Por isso.
. Você tem 24 horas para
deixar a
. Olha, você pode mandar nesses
bostinhas dos teus amigos, em mim
. Mando em tudo. Eu e eles, nós
fazemos o que nós queremos. Pra se
divertir. Você é a nossa diversão.
. Vamos fazer como fizemos com
aqueles comunistinhas da faculdade
.
. Batemos em todos. Um deles, um
negrinho baixote, andava pregando
reforma agrária. E nós fizemos uma
reforma agrária nele. Pegamos ele e
levamos pra fazenda do Diabo Loiro.
. Era de noite. Amarramos ele no
chão do pomar, perto das
Passamos ketchup no corpo inteiro
dele e esperamos. De manhã, estava
cheio de saúvas comendo ele,
aaaaaaaaahhhhh, aha, ah, h, h, aha.
. Ah, ah, ah, ah, ah, aaaaaaaaaaaa
. Aha, aha, hahahahaaaaahahahaha
. Oh, ooooooooooo, oh, ohoho,
hohoohoooi
. Iuiuiuiuiuiuuuuuuuuuu, uhuhii
(BRANDÃO, 1979, p. 80)
O governo, contudo, não a
violência despropositada desses jovens
como um problema, encontrando
rapidamente uma forma de canalizá
mesma forma como alguns companheiros
de Alex, em Laranja
mecânica
entrando para a polícia e passando a agir
violentamente com legitimação
institucional, em Zero
, o governo recruta
esses jovens para suas fileiras de
repressores:
José mostrou. O soldado era quase
moleque, cacetete (SIC) 50
centímetros na m
no ombro. A arma pesada, ele ficava
curvado. Fazia cara de mau, gritava.
(Deve se divertir)
. Vai, vai, VAI, VAI
Funcionava a Operação Patrulheiros
do Norte. Rapazinhos em idade
militar, orgulhosos de autoridade,
cheios de poder, vaidosos
metralhadoras, arrojados, impunes.
Eles tinham atendido aos anúncios
que prometiam armas, viaturas e
prêmios pelas prisões (BRANDÃO,
1979, p. 146).
A militarização da juventude é, no
entanto, apenas uma
manifestação de um plano maior
do governo para
população na fiscalização e
combate ao crime. Começa
se configurar, nesse momento, o
clima de paranoia e vigilância que
impera nas distopias, em que
214
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
. Era de noite. Amarramos ele no
chão do pomar, perto das
laranjeiras.
Passamos ketchup no corpo inteiro
dele e esperamos. De manhã, estava
cheio de saúvas comendo ele,
aaaaaaaaahhhhh, aha, ah, h, h, aha.
. Ah, ah, ah, ah, ah, aaaaaaaaaaaa
. Aha, aha, hahahahaaaaahahahaha
. Oh, ooooooooooo, oh, ohoho,
. Iuiuiuiuiuiuuuuuuuuuu, uhuhii
(BRANDÃO, 1979, p. 80)
O governo, contudo, não a
violência despropositada desses jovens
como um problema, encontrando
rapidamente uma forma de canalizá
-la. Da
mesma forma como alguns companheiros
mecânica
, acabam
entrando para a polícia e passando a agir
violentamente com legitimação
, o governo recruta
esses jovens para suas fileiras de
José mostrou. O soldado era quase
moleque, cacetete (SIC) 50
centímetros na m
ão, metralhadora
no ombro. A arma pesada, ele ficava
curvado. Fazia cara de mau, gritava.
(Deve se divertir)
. Vai, vai, VAI, VAI
Funcionava a Operação Patrulheiros
do Norte. Rapazinhos em idade
militar, orgulhosos de autoridade,
cheios de poder, vaidosos
com as
metralhadoras, arrojados, impunes.
Eles tinham atendido aos anúncios
que prometiam armas, viaturas e
prêmios pelas prisões (BRANDÃO,
A militarização da juventude é, no
entanto, apenas uma
manifestação de um plano maior
do governo para
a integração da
população na fiscalização e
combate ao crime. Começa
-se a
se configurar, nesse momento, o
clima de paranoia e vigilância que
impera nas distopias, em que
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
cada cidadão é um agente em
potencial de fiscalização do
governo:
O secretário da Seg
televisão e pediu a colaboração do
povo diante da onda de assaltos. “É
preciso reagir, não ficar passivo,
guardar a fisionomia dos bandidos,
denunciar, ajudar a polícia a conter a
onda de assaltos, prostituição,
contrabando, tráfico de
entorpe
centes. Vamos fazer de cada
cidadão um policial.” (BRANDÃO,
1979, p. 100)
Uma das manifestações mais
violentas e poderosas desse aparato civil
de controle da criminalidade se na
formação de um esquadrão da morte que
vai ganhando poder e liberdade de
ao longo da narrativa. É anunciada ainda
no começo da obra, em um fragmento que
indica seu surgimento como resposta à
violência urbana:
A cidade se humaniza. Meninas
curradas
em plena luz do dia. Ladrões
assaltam mulheres
que saem às tardes para fazer
compras.
Ladrões brigam com ladrões
e se matam, se assassinam.
Estaria sendo formado um
Esquadrão Punitivo.
tinha existido um, anos atrás. Nos
tempos heróicos. (BRANDÃO, 1979,
p. 49)
Explorando o descontentamento
da população com os estupros e assaltos,
como mencionado no trecho, esse
Esquadrão Punitivo será prontamente
exaltado pela população. Ao ter sua fama
de assassinos espalhada, “deixara de ser
a organização clandestina que matava e
telefonava para os jornais informando o
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
cada cidadão é um agente em
potencial de fiscalização do
O secretário da Seg
urança foi à
televisão e pediu a colaboração do
povo diante da onda de assaltos. “É
preciso reagir, não ficar passivo,
guardar a fisionomia dos bandidos,
denunciar, ajudar a polícia a conter a
onda de assaltos, prostituição,
contrabando, tráfico de
centes. Vamos fazer de cada
cidadão um policial.” (BRANDÃO,
Uma das manifestações mais
violentas e poderosas desse aparato civil
de controle da criminalidade se na
formação de um esquadrão da morte que
vai ganhando poder e liberdade de
ão
ao longo da narrativa. É anunciada ainda
no começo da obra, em um fragmento que
indica seu surgimento como resposta à
A cidade se humaniza. Meninas
em plena luz do dia. Ladrões
que saem às tardes para fazer
Ladrões brigam com ladrões
e se matam, se assassinam.
Estaria sendo formado um
tinha existido um, anos atrás. Nos
tempos heróicos. (BRANDÃO, 1979,
Explorando o descontentamento
da população com os estupros e assaltos,
como mencionado no trecho, esse
Esquadrão Punitivo será prontamente
exaltado pela população. Ao ter sua fama
de assassinos espalhada, “deixara de ser
a organização clandestina que matava e
telefonava para os jornais informando o
local. Depois da reportage
sede, carros especiais, uniformes cheios
de galões, cromados, botas altas, quepes”
(BRANDÃO, 1979, p. 116). Sua ação na
obra, contudo, não é outra senão a de
igualmente trabalhar na repressão das
dissidências do governo, talvez de forma
ain
da mais violenta que a polícia comum.
Assim como o Esquadrão Punitivo,
o governo explora o medo e a revolta do
povo à situação de crise para consolidar
sua própria forma de violência: política e
cognitiva. Lembremos que o romance
não está no mesmo estágio de
desenvolvimento do Estado distóp
Laranja mecânica
, no qual o governo
totalitário ainda buscava apoio nas vias
democráticas. Em
Zero
exatamente no passo seguinte: um
governo totalitário recente, dando seus
primeiros passos na consolidação do
poder através de suas me
autoritárias.
Dessa forma, ao longo da obra,
temos fragmentos exclusivamente
dedicados aos pronunciamentos do
governo e a implementação de suas
medidas, nas quais vemos,
progressivamente, como os discursos e
leis se tornam cada vez mais totalitários.
O primeiro desses fragmentos,
denominado “O tempora, o mores”, em
alusão ao discurso de Cícero nas
Catilinárias
sobre a depravação dos
costumes e a corrupção de seu tempo,
215
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
local. Depois da reportage
m no Life tinha
sede, carros especiais, uniformes cheios
de galões, cromados, botas altas, quepes”
(BRANDÃO, 1979, p. 116). Sua ação na
obra, contudo, não é outra senão a de
igualmente trabalhar na repressão das
dissidências do governo, talvez de forma
da mais violenta que a polícia comum.
Assim como o Esquadrão Punitivo,
o governo explora o medo e a revolta do
povo à situação de crise para consolidar
sua própria forma de violência: política e
cognitiva. Lembremos que o romance
não está no mesmo estágio de
desenvolvimento do Estado distóp
ico de
, no qual o governo
totalitário ainda buscava apoio nas vias
Zero
, nos encontramos
exatamente no passo seguinte: um
governo totalitário recente, dando seus
primeiros passos na consolidação do
poder através de suas me
didas
Dessa forma, ao longo da obra,
temos fragmentos exclusivamente
dedicados aos pronunciamentos do
governo e a implementação de suas
medidas, nas quais vemos,
progressivamente, como os discursos e
leis se tornam cada vez mais totalitários.
O primeiro desses fragmentos,
denominado “O tempora, o mores”, em
alusão ao discurso de Cícero nas
sobre a depravação dos
costumes e a corrupção de seu tempo,
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
condensa, na voz do presidente, a
mensagem de uma distopia em formação:
"Ou nos uni
mos, ou o mundo
explode numa onda de
desregramento, pecado,
imoralidade." O Presidente falava
numa praça da capital. Diante dele,
milhares de pessoas, atentas.
uma trazia na mão uma tocha acesa
e o Presidente tinha uma visão
fantástica: um fogo que iluminava /
mas para ele, o fogo consumia;
naquela noite devia começar uma
reforma nos costumes e nas leis/. Os
microfones levavam a palavra do
Presidente a todas as praças do
país, a todas as casas.
palanque havia um estrado, onde se
sentavam os altos dignitários da
Igreja, Ministros, Juízes dos
Tribunais Superiores, Procuradores
Gerais, o Chefe Supremo das
Milícias Repressivas, os
Encarregados da Ordem e Moral, os
Cruzados, os Templários, o
Defensores das Famílias, os
Vingadores. Cada um representava
centenas de associações e
organizações que estavam sendo
formadas no país, em defesa dos
bons costumes, da família, da boa
conduta, da liberdade, da
propriedade
. Estas centenas
represen
tavam milhões de pessoas.
"Vamos nos lançar numa grande
campanha, num
movimento monstro
para que a moda seja mais sóbria,
para que as saias desçam aos
tornozelos, para que as
licenciosas sejam queimadas
que o palavrão deixe de existir em
no
ssa amada e tão bonita língua,
para que os jovens levem uma vida
decente e recatada, para que o
termo prostituição seja abolido de
uma vez de nossa Pátria bem
aventurada, para que não haja
pílulas e todos procriemos muito
para a grandeza futura. Para isso
estamos mudando tudo
nossas leis para proteger a
sociedade, e portanto, proteger
vocês. (BRANDÃO, 1979, p. 19.
Grifos nossos)
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
condensa, na voz do presidente, a
mensagem de uma distopia em formação:
mos, ou o mundo
explode numa onda de
desregramento, pecado,
imoralidade." O Presidente falava
numa praça da capital. Diante dele,
milhares de pessoas, atentas.
Cada
uma trazia na mão uma tocha acesa
e o Presidente tinha uma visão
fantástica: um fogo que iluminava /
mas para ele, o fogo consumia;
naquela noite devia começar uma
reforma nos costumes e nas leis/. Os
microfones levavam a palavra do
Presidente a todas as praças do
país, a todas as casas.
Abaixo do
palanque havia um estrado, onde se
sentavam os altos dignitários da
Igreja, Ministros, Juízes dos
Tribunais Superiores, Procuradores
-
Gerais, o Chefe Supremo das
Milícias Repressivas, os
Encarregados da Ordem e Moral, os
Cruzados, os Templários, o
s
Defensores das Famílias, os
Vingadores. Cada um representava
centenas de associações e
ligas e
organizações que estavam sendo
formadas no país, em defesa dos
bons costumes, da família, da boa
conduta, da liberdade, da
. Estas centenas
tavam milhões de pessoas.
"Vamos nos lançar numa grande
movimento monstro
,
para que a moda seja mais sóbria,
para que as saias desçam aos
tornozelos, para que as
revistas
licenciosas sejam queimadas
, para
que o palavrão deixe de existir em
ssa amada e tão bonita língua,
para que os jovens levem uma vida
decente e recatada, para que o
termo prostituição seja abolido de
uma vez de nossa Pátria bem
-
aventurada, para que não haja
pílulas e todos procriemos muito
para a grandeza futura. Para isso
estamos mudando tudo
, mudando
nossas leis para proteger a
sociedade, e portanto, proteger
vocês. (BRANDÃO, 1979, p. 19.
A cena remete a certa imagética
consolidada das narrativas distópicas: o
grande der discursando, o povo abaixo,
hos
til, com suas tochas, sendo alimentado
pelo ódio destilado. Outra imagem
recorrente das distopias, graças a
Fahrenheit 451
,e que voltará a aparecer
em Zero
posteriormente, é a queima dos
livros. Aqui, apenas revistas licenciosas,
mas posteriormente outros
também. Vale ressaltar ainda o uso de
“movimento monstro” como caracterização
para o projeto de mudança que é
proposto, reforçado a caracterização
monstruosa do governo nas narrativas
distópicas. Por último, entrevemos na
última frase a sug
estão dessa virada em
direção à distopia, cuja lógica de
funcionamento difere plenamente daquela
encontrada no presente. Para isso, seus
dirigentes, a partir da justificativa de
“proteger a sociedade” poderão mudar
livremente o funcionamento das leis,
cost
umes e ideias daquela comunidade.
O discurso, assim como toda a
inclinação moral-
religiosa do governo,
poderia, muito bem, ser oferecido como
um discurso de formação da Gilead de
conto da aia
. De fato, em uma das
memórias de Offred apontando para o
passa
do precursor da situação distópica
vivida no romance, vemos a mesma
queima de revistas licenciosas apontada
no discurso do presidente de
Havia alguns homens, também, em
meio às mulheres, e os livros eram
216
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
A cena remete a certa imagética
consolidada das narrativas distópicas: o
grande der discursando, o povo abaixo,
til, com suas tochas, sendo alimentado
pelo ódio destilado. Outra imagem
recorrente das distopias, graças a
,e que voltará a aparecer
posteriormente, é a queima dos
livros. Aqui, apenas revistas licenciosas,
mas posteriormente outros
tipos de livros
também. Vale ressaltar ainda o uso de
“movimento monstro” como caracterização
para o projeto de mudança que é
proposto, reforçado a caracterização
monstruosa do governo nas narrativas
distópicas. Por último, entrevemos na
estão dessa virada em
direção à distopia, cuja lógica de
funcionamento difere plenamente daquela
encontrada no presente. Para isso, seus
dirigentes, a partir da justificativa de
“proteger a sociedade” poderão mudar
livremente o funcionamento das leis,
umes e ideias daquela comunidade.
O discurso, assim como toda a
religiosa do governo,
poderia, muito bem, ser oferecido como
um discurso de formação da Gilead de
O
. De fato, em uma das
memórias de Offred apontando para o
do precursor da situação distópica
vivida no romance, vemos a mesma
queima de revistas licenciosas apontada
no discurso do presidente de
Zero:
Havia alguns homens, também, em
meio às mulheres, e os livros eram
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
revistas. Devem ter derramado
gasolina, porque
irromperam altas, e então
começaram a descarregar as
revistas, de caixas, não muitas de
cada vez. Alguns estavam cantando
hinos; curiosos começaram a se
juntar. (...)
A mulher me deu uma das revistas.
Tinha uma mulher bonita na capa,
sem nenhuma
roupa, pendurada do
teto por uma corrente enrolada ao
redor das mãos. (...)
Atirei a revista nas chamas. As
folhas cascatearam abertas com o
sopro de sua própria combustão,
grandes flocos de papel se soltaram,
voaram no ar, ainda em chamas,
partes de corp
os de mulheres
transformando-
se em cinza negra no
ar, diante dos meus olhos
(ATWOOD, 2017, p. 50
Se, de início, as medidas
apontadas no discurso ainda são
moderadas para os padrões que vemos
em uma distopia como a de Atwood, seu
nível de violência e
controle escala
conforme o governo ganha força. No
fragmento “Determinações sagradas”, as
promessas do discurso se tornam leis, e
leis mais rígidas do que as sugeridas
anteriormente:
Cinco novas proibições:
1) Nenhum trabalhador poderá fazer
hora extra, pa
ra não sobrecarregar a
empresa.
2) Nenhum órgão da imprensa
poderá estampar mulheres nuas ou
seminuas.
3) Ninguém poderá usar as cores do
pavilhão nacional em vestidos,
casas, autos e demais.
4) Ninguém poderá, em público,
pegar na mão das mulheres, sejam
namorados, noivas ou esposas.
Beijos, abraços e demais
manifestações serão punidas com
cadeia de 6 a 12 meses.
5) Ninguém poderá usar tipo
mocassim. O calçado oficial terá
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
revistas. Devem ter derramado
as chamas
irromperam altas, e então
começaram a descarregar as
revistas, de caixas, não muitas de
cada vez. Alguns estavam cantando
hinos; curiosos começaram a se
A mulher me deu uma das revistas.
Tinha uma mulher bonita na capa,
roupa, pendurada do
teto por uma corrente enrolada ao
Atirei a revista nas chamas. As
folhas cascatearam abertas com o
sopro de sua própria combustão,
grandes flocos de papel se soltaram,
voaram no ar, ainda em chamas,
os de mulheres
se em cinza negra no
ar, diante dos meus olhos
(ATWOOD, 2017, p. 50
-51).
Se, de início, as medidas
apontadas no discurso ainda são
moderadas para os padrões que vemos
em uma distopia como a de Atwood, seu
controle escala
conforme o governo ganha força. No
fragmento “Determinações sagradas”, as
promessas do discurso se tornam leis, e
leis mais rígidas do que as sugeridas
Cinco novas proibições:
1) Nenhum trabalhador poderá fazer
ra não sobrecarregar a
2) Nenhum órgão da imprensa
poderá estampar mulheres nuas ou
3) Ninguém poderá usar as cores do
pavilhão nacional em vestidos,
4) Ninguém poderá, em público,
pegar na mão das mulheres, sejam
namorados, noivas ou esposas.
Beijos, abraços e demais
manifestações serão punidas com
cadeia de 6 a 12 meses.
5) Ninguém poderá usar tipo
mocassim. O calçado oficial terá
amarrilhos e as cores permitidas são
o marrom e o preto. (BRANDÃO,
1979, p. 86)
Não
vemos que o discurso deu
lugar a proibições mais claras, como o
controle do comportamento se escala
na previsão de prisão para mínimas
manifestações afetivas. A quinta regra
remete, ainda, à uniformização das roupas
que também é imagem recorrente no
imaginário distópico e será,
posteriormente, plenamente concretizada.
Da mesma forma, o governo acaba
com os espaços de entretenimento,
alegando a necessidade de as pessoas
ficarem em casa, com a família (p. 92);
proíbe o uso do biquíni (p. 111); censura
todas as músicas profanas, permitindo
apenas músicas religiosas e marchas
patrióticas (p. 141); controla a natalidade e
impõe prisão perpétua ao aborto (p.160).
Até atingir, em um dos fragmentos
chamado Temperatura instável, sujeira a
chuvas e trovoadas”
o clímax da violência
em nome da moral cristã:
Começou o fuzilamento de
prostitutas, ontem, às seis horas, nas
principais capitais do país. Trata
de uma campanha para exterminar o
vício, comunicou o Ministério do
Bem-
Estar Social. Ao ser
entrevistado, salientou que não é
uma atitude desumana, porque
as mulheres terão chance de
regeneração e conversão. Se
aceitarem, serão libertadas e irão
trabalhar como enfermeiras e
assistentes sociais. Deverão apenas
se confessar e comungar uma vez
por semana, sendo que o padre
carimbará carteira que elas
apr
esentarão cada três meses na
217
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
amarrilhos e as cores permitidas são
o marrom e o preto. (BRANDÃO,
vemos que o discurso deu
lugar a proibições mais claras, como o
controle do comportamento se escala
na previsão de prisão para mínimas
manifestações afetivas. A quinta regra
remete, ainda, à uniformização das roupas
que também é imagem recorrente no
imaginário distópico e será,
posteriormente, plenamente concretizada.
Da mesma forma, o governo acaba
com os espaços de entretenimento,
alegando a necessidade de as pessoas
ficarem em casa, com a família (p. 92);
proíbe o uso do biquíni (p. 111); censura
todas as músicas profanas, permitindo
apenas músicas religiosas e marchas
patrióticas (p. 141); controla a natalidade e
impõe prisão perpétua ao aborto (p.160).
Até atingir, em um dos fragmentos
chamado Temperatura instável, sujeira a
o clímax da violência
em nome da moral cristã:
Começou o fuzilamento de
prostitutas, ontem, às seis horas, nas
principais capitais do país. Trata
-se
de uma campanha para exterminar o
vício, comunicou o Ministério do
Estar Social. Ao ser
entrevistado, salientou que não é
uma atitude desumana, porque
todas
as mulheres terão chance de
regeneração e conversão. Se
aceitarem, serão libertadas e irão
trabalhar como enfermeiras e
assistentes sociais. Deverão apenas
se confessar e comungar uma vez
por semana, sendo que o padre
carimbará carteira que elas
esentarão cada três meses na
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
delegacia mais próxima, As que não
aceitarem, serão fuziladas. A grande
maioria não está aceitando. E assim,
as putas morrem ao amanhecer. A
lei que atinge as prostitutas é mais
ampla: todo aquele que for apanhado
em ato com um
a delas, sepreso e
julgado. Sendo casado, será
fuzilado, por se tratar de adultério.
Sendo solteiro, apanhará de dez a
vinte anos de prisão por vício
(BRANDÃO, 1979, p. 148).
Não é, contudo, apenas nas
imposições morais que o governo
distópico em ascen
são de
assemelha aos encontrados nas distopias
totalitárias canônicas. Outras duas fortes
marcas distópicas, a coletividade
compulsória e o controle da informação
também aparecem em formação ao longo
do romance de Brandão.
Uma das marcas mais exp
dessa coletividade compulsória
muito ligada à própria estética distópica,
condensando na imagem do espaço e na
caracterização dos personagens a
padronização
é a uniformização e
separação por classes:
Determinara
m as cores. Por
categorias
sociais. Os ricos usariam
vermelho, azul, rosa, lilás, vinho,
bordo e todas as variações em torno.
As variações seriam escolhidas pelo
computador, de acordo com o
imposto de renda. Depois viriam os
menos ricos, a classe média alta, a
baixa, as classes mais
6
Assim como o controle da moral, tais
características não são distópicas, mas
próprias de muitos
governos totalitários reais,
pode-
se argumentar. É, no entanto, na forma
satírica e magnificada –
que tais elementos
são apresentados ao leitor que reside seu o
potencial distópico.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
delegacia mais próxima, As que não
aceitarem, serão fuziladas. A grande
maioria não está aceitando. E assim,
as putas morrem ao amanhecer. A
lei que atinge as prostitutas é mais
ampla: todo aquele que for apanhado
a delas, sepreso e
julgado. Sendo casado, será
fuzilado, por se tratar de adultério.
Sendo solteiro, apanhará de dez a
vinte anos de prisão por vício
(BRANDÃO, 1979, p. 148).
Não é, contudo, apenas nas
imposições morais que o governo
são de
Zero se
assemelha aos encontrados nas distopias
totalitárias canônicas. Outras duas fortes
marcas distópicas, a coletividade
compulsória e o controle da informação
6
,
também aparecem em formação ao longo
Uma das marcas mais exp
lícitas
dessa coletividade compulsória
– marca
muito ligada à própria estética distópica,
condensando na imagem do espaço e na
caracterização dos personagens a
é a uniformização e
m as cores. Por
sociais. Os ricos usariam
vermelho, azul, rosa, lilás, vinho,
bordo e todas as variações em torno.
As variações seriam escolhidas pelo
computador, de acordo com o
imposto de renda. Depois viriam os
menos ricos, a classe média alta, a
baixa, as classes mais
baixas,
Assim como o controle da moral, tais
características não são distópicas, mas
governos totalitários reais,
se argumentar. É, no entanto, na forma
que tais elementos
são apresentados ao leitor que reside seu o
surgindo o amarelo, o laranja, o
abóbora, e todas as variações, e o
azul, o verde, o marrom, terminando
no preto que era a cor dos que não
tinham nada, nada, nada. Além das
casas, o decreto incluía também as
roupas com modelos desenhados
pelos esp
ecialistas e que variavam
entre um uniforme militar e um terno
Mao, em brim, para o verão e em
para o inverno. Havia apenas dois
tipos de desenhos e nenhuma
possibilidade de escolha
(BRANDÃO, 1979, p. 89
As cores marcavam tanto as casas
de cada classe
casas cujas plantas são
iguais. Sem diferença. Trezentas páginas,
cada página dez plantas. Iguaisinhas” (p.
130)
quanto os uniformes vestidos por
eles como em
O conto da aia
cada classe tem um uniforme e uma cor
atribuída a ela, dividin
do Gilead em aias,
esposas, Martas, tias e guardiões. Se, nas
distopias plenas, tal divisão é
plenamente integrada à lógica de mundo
daquela sociedade
determinada no nascimento, como a
preparação biológica das classes em
Admirável mund
o novo
medida ainda seus primeiros passos.
Não chegamos a ver a efetiva divisão por
cores anunciada, pois, no presente da
obra, o governo ainda começa a se
organizar para tornar a proposta
realidade:
se encontram em todas as boas
lojas d
o ramo os uniformes para o
povo, nas cores estabelecidas pelo
governo, de acordo com as classes
sociais e profissões. Os uniformes
são baratos, acessíveis. Os que não
puderem comprá
fazê-
lo a prazo, através das Caixas,
218
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
surgindo o amarelo, o laranja, o
abóbora, e todas as variações, e o
azul, o verde, o marrom, terminando
no preto que era a cor dos que não
tinham nada, nada, nada. Além das
casas, o decreto incluía também as
roupas com modelos desenhados
ecialistas e que variavam
entre um uniforme militar e um terno
Mao, em brim, para o verão e em
para o inverno. Havia apenas dois
tipos de desenhos e nenhuma
possibilidade de escolha
(BRANDÃO, 1979, p. 89
-90).
As cores marcavam tanto as casas
casas cujas plantas são
iguais. Sem diferença. Trezentas páginas,
cada página dez plantas. Iguaisinhas” (p.
quanto os uniformes vestidos por
O conto da aia
, em que
cada classe tem um uniforme e uma cor
do Gilead em aias,
esposas, Martas, tias e guardiões. Se, nas
distopias plenas, tal divisão é
plenamente integrada à lógica de mundo
muitas vezes
determinada no nascimento, como a
preparação biológica das classes em
o novo
–, em Zero a
medida ainda seus primeiros passos.
Não chegamos a ver a efetiva divisão por
cores anunciada, pois, no presente da
obra, o governo ainda começa a se
organizar para tornar a proposta
se encontram em todas as boas
o ramo os uniformes para o
povo, nas cores estabelecidas pelo
governo, de acordo com as classes
sociais e profissões. Os uniformes
são baratos, acessíveis. Os que não
puderem comprá
-los à vista, poderão
lo a prazo, através das Caixas,
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
com financiament
o do governo. Para
isso, basta levar: Escritura da casa,
Contas de luz e gás, Carteira
Profissional, Identidade, Quitação
com a Hora Oficial, Atestado de
Residência, Boa Conduta,
Antecedentes, Salvo Conduto,
Carnês de Compras a Crédito.
Dentro de dois mese
s, o povo todo
deverá estar uniformizado
(BRANDÃO, 1979, p. 191).
O mesmo pode ser dito em relação
ao controle da informação. Longe de ter
um aparato de vigilância e propaganda
eficazmente instalado como vemos nas
teletelas de 1984
, o governo de
seus passos iniciais nessa direção. Uma
das primeiras medidas, claro, é a censura.
Vemos, desde o começo da obra, a
menção a editoras fechadas. A queima de
revistas licenciosas que anteriormente
mencionamos evolui para uma prática
corriqueira em que se
dá, “todas as noites,
nas praças principais de todas as cidades,
a queima de livros ao som de hinos
religiosos” (BRANDÃO, 1979, p. 157). A
prisão de estudantes também é recorrente
ao longo da obra (p. 19), junto com a fuga
de intelectuais perseguidos, rep
ao longo de toda a obra através dos
fragmentos denominados “Adeus, adeus”.
Em relação à propaganda, se não
a ubiquidade das teletelas,
encontramos a difusão obrigatória de
informação do governo através da
instalação de alto-falantes:
José, contemple a colocação desses
alto-
falantes. De hoje em diante, eles
vão transmitir os ditos do seu
governo. E todos ouvirão. Não será
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
o do governo. Para
isso, basta levar: Escritura da casa,
Contas de luz e gás, Carteira
Profissional, Identidade, Quitação
com a Hora Oficial, Atestado de
Residência, Boa Conduta,
Antecedentes, Salvo Conduto,
Carnês de Compras a Crédito.
s, o povo todo
deverá estar uniformizado
(BRANDÃO, 1979, p. 191).
O mesmo pode ser dito em relação
ao controle da informação. Longe de ter
um aparato de vigilância e propaganda
eficazmente instalado como vemos nas
, o governo de
Zero
seus passos iniciais nessa direção. Uma
das primeiras medidas, claro, é a censura.
Vemos, desde o começo da obra, a
menção a editoras fechadas. A queima de
revistas licenciosas que anteriormente
mencionamos evolui para uma prática
dá, “todas as noites,
nas praças principais de todas as cidades,
a queima de livros ao som de hinos
religiosos” (BRANDÃO, 1979, p. 157). A
prisão de estudantes também é recorrente
ao longo da obra (p. 19), junto com a fuga
de intelectuais perseguidos, rep
resentada
ao longo de toda a obra através dos
fragmentos denominados “Adeus, adeus”.
Em relação à propaganda, se não
a ubiquidade das teletelas,
encontramos a difusão obrigatória de
informação do governo através da
José, contemple a colocação desses
falantes. De hoje em diante, eles
vão transmitir os ditos do seu
governo. E todos ouvirão. Não será
possível desligar, José, como todo
mundo fazia, das sete às oito. Agora,
esses alto-
falantes, em altapotência,
falar
ão e o povo ouvirá, nem que
ponha algodão, cera, tapa
Saiba, José, que eles estão
instalados em todas as cidades, até
nas vilas de duas e três casas. Serão
instalados nas tabas dos índios,
onde haja índios, onde houver
índios, nesta terra.
José se
prepare.
Locutores de vozes monótonas e
graves discorrerão sobre os atos do
governo, que você terá a cumprir
amanhã.
Saiba, José, que os cinemas vão
parar nessa hora, as igrejas, teatros,
televisões.
His Master’sVoice
Marque: vamos conferir nossos
relógios, José:
Às oito (BRANDÃO, 1979, p. 63).
Não é, porém, o caráter ainda
provisório dessas medidas a maior
característica desse estágio anterior de
formação do um Estado distópico, mas a
presença de uma resistência social que se
eliminada
7
nas distopias p
estabelecidas. É justamente contra essa
resistência que vemos se impor de forma
mais direta a violência que marca a
ruptura com a organização de mundo pré
distópica. Se nas medidas anteriores,
7
Em obras como Nós e
O conto da aia
uma organização revolucionária. No entanto,
nas distopias plenamente estabelecidas, esse
grupo não age abertamente e é desconhecido
ou odiado pela população de forma geral. Não
há espaço para descontentamento popular e
para manifestações, e também
confronto direto, mas um embate subterrâneo,
bem distinto da perseguição aberta e da
resistência de uma parcela da população que
vemos ainda nesse estágio de formação do
Estado distópico, em obras como
mecânica, Zero e Years
and
219
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
possível desligar, José, como todo
mundo fazia, das sete às oito. Agora,
falantes, em altapotência,
ão e o povo ouvirá, nem que
ponha algodão, cera, tapa
-ouvidos.
Saiba, José, que eles estão
instalados em todas as cidades, até
nas vilas de duas e três casas. Serão
instalados nas tabas dos índios,
onde haja índios, onde houver
índios, nesta terra.
prepare.
Locutores de vozes monótonas e
graves discorrerão sobre os atos do
governo, que você terá a cumprir
Saiba, José, que os cinemas vão
parar nessa hora, as igrejas, teatros,
His Master’sVoice
Marque: vamos conferir nossos
Às oito (BRANDÃO, 1979, p. 63).
Não é, porém, o caráter ainda
provisório dessas medidas a maior
característica desse estágio anterior de
formação do um Estado distópico, mas a
presença de uma resistência social que se
nas distopias p
lenamente
estabelecidas. É justamente contra essa
resistência que vemos se impor de forma
mais direta a violência que marca a
ruptura com a organização de mundo pré
-
distópica. Se nas medidas anteriores,
O conto da aia
, vemos
uma organização revolucionária. No entanto,
nas distopias plenamente estabelecidas, esse
grupo não age abertamente e é desconhecido
ou odiado pela população de forma geral. Não
há espaço para descontentamento popular e
para manifestações, e também
não há um
confronto direto, mas um embate subterrâneo,
bem distinto da perseguição aberta e da
resistência de uma parcela da população que
vemos ainda nesse estágio de formação do
Estado distópico, em obras como
Laranja
and
Years.
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
temos majoritariamente uma violência
política – de el
iminação de direitos
cognitiva
de mudança drástica de visão
de mundo
, a violência direta, física, será
utilizada em ampla escala contra aqueles
que se opõem diretamente ao governo.
Em Zero
, a brutalidade policial que
é exposta desde o começo da nar
vai se intensificando conforme José se
associa com os Comuns, grupo
revolucionário caçado pelo governo. Bem
antes de se envolver com os dissidentes,
no entanto, sofre a violência da polícia
quando é convocado para depor sobre o
caso de um assalta
nte de bancos
supostamente ligado aos Comuns que
mora na mesma pensão que ele. Mesmo
sem nenhuma conexão direta com o caso,
os policiais não hesitam em torturá
. Não sei de nada, não conhecia ele.
Ele morava lá no quarto dele, eu no
meu, a gente nem se
encontrava.
. Tinha seu nome numa lista.
. Não sei de nada juro.
. Acho que você precisa é apanhar
mais.
O tira bateu em José durante cinco
minutos.
O tira bateu em José durante cinco
minutos.
O tira bateu em José durante cinco
minutos.
Deram amoníaco par
a José cheirar.
Ele acordou.
. Se não dé esse serviço logo, vai
ficá aqui muito tempo.
. Então, vou ficar, porque não sei de
nada. (...) (BRANDÃO, 1979, p. 47)
O nível de brutalidade escala
conforme o governo avança em suas
medidas e os Comuns resistem. José,
cansado das arbitrariedades do governo
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
temos majoritariamente uma violência
iminação de direitos
– e
de mudança drástica de visão
, a violência direta, física, será
utilizada em ampla escala contra aqueles
que se opõem diretamente ao governo.
, a brutalidade policial que
é exposta desde o começo da nar
rativa
vai se intensificando conforme José se
associa com os Comuns, grupo
revolucionário caçado pelo governo. Bem
antes de se envolver com os dissidentes,
no entanto, sofre a violência da polícia
quando é convocado para depor sobre o
nte de bancos
supostamente ligado aos Comuns que
mora na mesma pensão que ele. Mesmo
sem nenhuma conexão direta com o caso,
os policiais não hesitam em torturá
-lo:
. Não sei de nada, não conhecia ele.
Ele morava lá no quarto dele, eu no
encontrava.
. Tinha seu nome numa lista.
. Acho que você precisa é apanhar
O tira bateu em José durante cinco
O tira bateu em José durante cinco
O tira bateu em José durante cinco
a José cheirar.
. Se não dé esse serviço logo, vai
. Então, vou ficar, porque não sei de
nada. (...) (BRANDÃO, 1979, p. 47)
O nível de brutalidade escala
conforme o governo avança em suas
medidas e os Comuns resistem. José,
cansado das arbitrariedades do governo
e daquela sociedade como um todo
começa a assassinar pessoas para
descontar seu descontentamento,
sobretudo contr
a os militares. Gê, líder
dos Comuns, percebendo a eficácia de
José em seu passatempo, não demora a
recrutá-
lo para a fileira dos
revolucionários, convite que José reluta
em aceitar por não compartilhar os ideais
do grupo. Uma vez convencido, passa a
matar
em nome do grupo, ainda que
nunca se sinta plenamente parte dele.
Assim, vemos, por um lado, a
violência dos Comuns e do público em
geral, e, por outro, a resposta do governo,
com seus grupos de extermínio, caçando
o grupo a qualquer custo. As cenas mais
explícitas dessa violência se dão nas
cenas de tortura dos capturados pelo
governo. Nos últimos fragmentos do livro,
se avultam os trechos dedicados a uma
descrição detalhada dos atos dos
torturadores
ocupando até diversas
páginas, como na tortura de um
amigos de José, Átila. É, no entanto, no
relato sobre Crato, supostamente um
Comum que dividiu sua cela com um
membro do grupo de José, que temos o
mais chocante exemplo da violência
absurda desse estado totalitário:
Tiravam ele da cela, à noite, ele
v
oltava de manhã, sem dentes,
ensanguentado. Não podia andar,
tinha as solas dos pés em carne
viva. Picada de agulhas. Não dava o
serviço, eu sabia que iam matar ele,
mas o cara não dava serviço.
Passava o dia na cela, apavorado
220
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
e daquela sociedade como um todo
começa a assassinar pessoas para
descontar seu descontentamento,
a os militares. Gê, líder
dos Comuns, percebendo a eficácia de
José em seu passatempo, não demora a
lo para a fileira dos
revolucionários, convite que José reluta
em aceitar por não compartilhar os ideais
do grupo. Uma vez convencido, passa a
em nome do grupo, ainda que
nunca se sinta plenamente parte dele.
Assim, vemos, por um lado, a
violência dos Comuns e do público em
geral, e, por outro, a resposta do governo,
com seus grupos de extermínio, caçando
o grupo a qualquer custo. As cenas mais
explícitas dessa violência se dão nas
cenas de tortura dos capturados pelo
governo. Nos últimos fragmentos do livro,
se avultam os trechos dedicados a uma
descrição detalhada dos atos dos
ocupando até diversas
páginas, como na tortura de um
dos
amigos de José, Átila. É, no entanto, no
relato sobre Crato, supostamente um
Comum que dividiu sua cela com um
membro do grupo de José, que temos o
mais chocante exemplo da violência
absurda desse estado totalitário:
Tiravam ele da cela, à noite, ele
oltava de manhã, sem dentes,
ensanguentado. Não podia andar,
tinha as solas dos pés em carne
viva. Picada de agulhas. Não dava o
serviço, eu sabia que iam matar ele,
mas o cara não dava serviço.
Passava o dia na cela, apavorado
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
com o que viria à noite. Cad
inventavam uma. Inventavam não.
Aplicavam. Eram profissionais. (...)
Um dia, levaram o sujeito pro pau de
arara. “Dá o serviço: nomes,
aparelhos, planos. Dá, que é tua
última chance.” O interrogador tinha
as mãos postas, e suplicava. O
Crato, quieto
, nu, dependurado, os
fios elétricos no saco. O saco, o
pinto, a bunda, tudo dele era carne
viva. Passaram navalha no corpo
dele, fizeram cortes finos como fios
de cabelo, o sangue brotou. Jogaram
salmoura, depois água gelada. O
interrogador chorava: “Pelo
Deus, eu tenho dó, não quero fazer
isso. Seja bom comigo, não faça
uma coisa dessas, você não tem
direito.” Trouxeram para a sala, a
mulher e os três filhos do sujeito. O
mais novo tinha quatro meses. “Diz,
nomes, aparelhos, planos.” Crato,
quieto
. Nem podia falar, não tinha
língua. Tiraram a roupa da mulher
dele. Comeram ela, ali. Seis caras
marrudos. Enrabaram, gozaram na
cara dela, bateram. “Diz, vai dizer,
agora vai.” Crato não disse, ligaram
todos os fios possíveis, na orelha,
nariz, dentro da
boca, dedos,
enfiaram no canal da uretra.
Estavam encapetados, gritavam,
como quem goza numa mulher.
Pegaram o menino de quatro meses,
deram um choque, o menino chorou.
Deram outro, o menino morreu,
pretinho. A mulher gritou,
enlouqueceu naquela hora mesm
“Nós matamos sua família e você
não diz nada. É mesmo filhodaputa.”
Bateram nos outros filhos. Então,
ligaram os fios. Eletrocutaram Crato.
Nem que tivesse passado num fio de
alta tensão. Quase se desintegrou.
Sumiram com a mulher, com os
filhos, com tu
do.” (BRANDÃO, 1979,
p. 255-6)
Assim como podemos entrever, em
Laranja mecânica
, a ascensão do Estado
distópico que se esboça ao longo da
narrativa, Zero
conclui oferecendo uma
imagem semelhante em seu horizonte. Os
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
com o que viria à noite. Cad
a dia,
inventavam uma. Inventavam não.
Aplicavam. Eram profissionais. (...)
Um dia, levaram o sujeito pro pau de
arara. “Dá o serviço: nomes,
aparelhos, planos. Dá, que é tua
última chance.” O interrogador tinha
as mãos postas, e suplicava. O
, nu, dependurado, os
fios elétricos no saco. O saco, o
pinto, a bunda, tudo dele era carne
viva. Passaram navalha no corpo
dele, fizeram cortes finos como fios
de cabelo, o sangue brotou. Jogaram
salmoura, depois água gelada. O
interrogador chorava: “Pelo
amor de
Deus, eu tenho dó, não quero fazer
isso. Seja bom comigo, não faça
uma coisa dessas, você não tem
direito.” Trouxeram para a sala, a
mulher e os três filhos do sujeito. O
mais novo tinha quatro meses. “Diz,
nomes, aparelhos, planos.” Crato,
. Nem podia falar, não tinha
língua. Tiraram a roupa da mulher
dele. Comeram ela, ali. Seis caras
marrudos. Enrabaram, gozaram na
cara dela, bateram. “Diz, vai dizer,
agora vai.” Crato não disse, ligaram
todos os fios possíveis, na orelha,
boca, dedos,
enfiaram no canal da uretra.
Estavam encapetados, gritavam,
como quem goza numa mulher.
Pegaram o menino de quatro meses,
deram um choque, o menino chorou.
Deram outro, o menino morreu,
pretinho. A mulher gritou,
enlouqueceu naquela hora mesm
o.
“Nós matamos sua família e você
não diz nada. É mesmo filhodaputa.”
Bateram nos outros filhos. Então,
ligaram os fios. Eletrocutaram Crato.
Nem que tivesse passado num fio de
alta tensão. Quase se desintegrou.
Sumiram com a mulher, com os
do.” (BRANDÃO, 1979,
Assim como podemos entrever, em
, a ascensão do Estado
distópico que se esboça ao longo da
conclui oferecendo uma
imagem semelhante em seu horizonte. Os
Comuns vão sendo capturados, torturados
e fuzilados, até que José é pego e,
passando pelo mesmo processo, sua
história se encerra no fragmento
“Granfinale”, diante do pelotão de
fuzilamento. Nesse ponto da narrativa,
José, após uma insuportável dose de
sofrimento, já está alucinando, o que é
re
fletido na linguagem caótica do
fragmento, deixando apenas entrever os
últimos pensamentos do protagonista de
Zero
antes de sua morte:
José, Joe, Josepho, José viu (ouviu):
o céu coberto. Trancado. Uma placa,
incandescente. Fechado.
(Irremediavelmente) Pôr
A placa formou uma bola. E o
mundo, encerrado dentro. A placa:
milhões de projéteis: balas de
canhão-revólver
-
metralhadoraespingarda
bazuca, E ele ouviu o ruído
(ensurdecedor) e o eco do ruído por
dentro da bola de fogo: motores,
aviões, carros blindados, caminhões,
tanques, explosões, ordens de
comando, ordem unida / apontar
fogo-
fuzilamento/, gritos de dor e
alegria e gargalhadas e botas. E
José, Joe, Josepho, José viu
refletido no ferro incandescente (tela,
vídeo, tv, vidro) a n
grilhões, a nudez (finalmente, todas
as palavra proibidas), a imobilidade
(finalmente, todos os gestos
interditados), os comuns fuzilados,
crucificado (mas Gê, eu me
lembro, tinha fugido, escondido,
criava galinhas numa granja, vendia
ovos
, estercos, pintos de um dia). ?
Será que pegaram (de novo),
pegaram todos, vão continuar a
pegar até que possa descobrir um
modo de lutar e organizar. E então,
inverter. E reinverter. Quem está
certo, estará errado, quem está
errado, estará certo, quem
estiver errado hoje
quem estiver certo
certo ou errado. E a placa mais
221
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Comuns vão sendo capturados, torturados
e fuzilados, até que José é pego e,
passando pelo mesmo processo, sua
história se encerra no fragmento
“Granfinale”, diante do pelotão de
fuzilamento. Nesse ponto da narrativa,
José, após uma insuportável dose de
sofrimento, já está alucinando, o que é
fletido na linguagem caótica do
fragmento, deixando apenas entrever os
últimos pensamentos do protagonista de
antes de sua morte:
José, Joe, Josepho, José viu (ouviu):
o céu coberto. Trancado. Uma placa,
incandescente. Fechado.
(Irremediavelmente) Pôr
uma tampa.
A placa formou uma bola. E o
mundo, encerrado dentro. A placa:
milhões de projéteis: balas de
-
fuzil-
metralhadoraespingarda
-foguete-
bazuca, E ele ouviu o ruído
(ensurdecedor) e o eco do ruído por
dentro da bola de fogo: motores,
aviões, carros blindados, caminhões,
tanques, explosões, ordens de
comando, ordem unida / apontar
-
fuzilamento/, gritos de dor e
alegria e gargalhadas e botas. E
José, Joe, Josepho, José viu
refletido no ferro incandescente (tela,
vídeo, tv, vidro) a n
ova ordem, os
grilhões, a nudez (finalmente, todas
as palavra proibidas), a imobilidade
(finalmente, todos os gestos
interditados), os comuns fuzilados,
crucificado (mas Gê, eu me
lembro, tinha fugido, escondido,
criava galinhas numa granja, vendia
, estercos, pintos de um dia). ?
Será que pegaram (de novo),
pegaram todos, vão continuar a
pegar até que possa descobrir um
modo de lutar e organizar. E então,
inverter. E reinverter. Quem está
certo, estará errado, quem está
errado, estará certo, quem
depois
estiver errado hoje
-certo-incerto e
quem estiver certo
-errado, depois
certo ou errado. E a placa mais
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
quente, a bola de fogo. A terra
fechada dentro e a bola disparada.
(BRANDÃO, 1979, p. 284)
Em sua alucinação, José como
reflexo de sua morte
“os comuns
fuzilados” e “Gê crucificado”, permitindo,
então, a ascensão dessa nova ordem”
que se forma com a consolidação do
Estado distópico. Sem mais resistência
aberta, a população pode ser controlada,
a história pode ser reescrita e a violência
funda
dora pode ser devidamente
apagada, nos conduzindo diretamente à
distopia plena de
Não verás país nenhum
Considerações finais
É importante ressaltar que essa
leitura de Zero
, uma leitura, voltamos a
frisar, à revelia das análises mais
tradicionais, é p
ossível em uma
determinada organização do quebra
cabeça de fragmentos que o livro
apresenta. Separando as narrativas mais
sóbrias sobre a trajetória de José e os
comentários sobre o governo e a
sociedade, conseguimos construir, num
ato interpretativo, esse
Zero
aqui apresentado.
Para tal, foi necessário
negligenciar diversos fragmentos que
apontam para direções diferentes.
Algumas delas ainda serviriam para
reforçar nossa mensagem, mas nos
levariam a uma digressão demasiado
longa de nosso obje
tivo central, como a
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
quente, a bola de fogo. A terra
fechada dentro e a bola disparada.
(BRANDÃO, 1979, p. 284)
Em sua alucinação, José como
“os comuns
fuzilados” e “Gê crucificado”, permitindo,
então, a ascensão dessa nova ordem”
que se forma com a consolidação do
Estado distópico. Sem mais resistência
aberta, a população pode ser controlada,
a história pode ser reescrita e a violência
dora pode ser devidamente
apagada, nos conduzindo diretamente à
Não verás país nenhum
.
É importante ressaltar que essa
, uma leitura, voltamos a
frisar, à revelia das análises mais
ossível em uma
determinada organização do quebra
-
cabeça de fragmentos que o livro
apresenta. Separando as narrativas mais
sóbrias sobre a trajetória de José e os
comentários sobre o governo e a
sociedade, conseguimos construir, num
pré-distópico
Para tal, foi necessário
negligenciar diversos fragmentos que
apontam para direções diferentes.
Algumas delas ainda serviriam para
reforçar nossa mensagem, mas nos
levariam a uma digressão demasiado
tivo central, como a
colonização americana, o consumismo
exacerbado e as doenças e deformações,
todos temas que ecoarão posteriormente
na formação da São Paulo distópica de
Não verás país nenhum
contudo, acabam afastando
caracter
ização mais solidamente
distópica, sobretudo aqueles em que o
absurdo toma o primeiro plano.
Alinhados aqui ao pensamento de
autores como Darko
Suvin (1979, p. viii) e
Gregory Claeys (2010, p. 109),
acreditamos que é parte da expectativa de
leitura das dis
topias
plausibilidade da narrativa apresentada,
ou seja, ainda que apresente uma visão
distorcida, magnificada, satírica e negativa
do presente de produção, essa visão
ainda precisa –
mesmo que apenas dentro
do pacto ficcional
predição de um futuro possível para o
presente de seu contexto de produção
Ao explorar o surrealismo e o
absurdo em certos fragmentos,
a possibilidade dessa plausibilidade. Caso
fosse uma narrativa linear, uma leitura
como a aqui feita s
fragilizada por tal característica. No
entanto, ao optar pelo fragmento,
nos convida a jogar com suas cenas,
8
Sabemos, no entanto, que tal
posicionamento, construindo uma visão mais
restrita de distopia, não encontra consenso na
crítica especializada, havendo aqueles que
não vejam esse maior grau de realismo como
uma necessidade inerente ao enquadramento
no gênero.
222
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
colonização americana, o consumismo
exacerbado e as doenças e deformações,
todos temas que ecoarão posteriormente
na formação da São Paulo distópica de
Não verás país nenhum
. Outros temas,
contudo, acabam afastando
Zero de uma
ização mais solidamente
distópica, sobretudo aqueles em que o
absurdo toma o primeiro plano.
Alinhados aqui ao pensamento de
Suvin (1979, p. viii) e
Gregory Claeys (2010, p. 109),
acreditamos que é parte da expectativa de
stricto sensu a
plausibilidade da narrativa apresentada,
ou seja, ainda que apresente uma visão
distorcida, magnificada, satírica e negativa
do presente de produção, essa visão
mesmo que apenas dentro
ser vista como a
predição de um futuro possível para o
presente de seu contexto de produção
8
.
Ao explorar o surrealismo e o
absurdo em certos fragmentos,
Zero abala
a possibilidade dessa plausibilidade. Caso
fosse uma narrativa linear, uma leitura
como a aqui feita s
e veria bastante
fragilizada por tal característica. No
entanto, ao optar pelo fragmento,
Zero
nos convida a jogar com suas cenas,
Sabemos, no entanto, que tal
posicionamento, construindo uma visão mais
restrita de distopia, não encontra consenso na
crítica especializada, havendo aqueles que
não vejam esse maior grau de realismo como
uma necessidade inerente ao enquadramento
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
permitindo organizar um caminho de
leitura que torna essa visão de distopia
possível
9
.
Ainda que todos os romances
canonizados no gênero distópico
apresentem esse Estado plenamente
estabelecido do governo totalitário, tomar
esse estágio como fronteira para a
definição do gênero nos impediria de
trabalhar com obras que claramente estão
relaci
onadas com o gênero, sem
necessariamente se encaixarem nos
moldes de Nós,
Admirável mundo novo
1984
. Como vimos no caso de Loyola, o
próprio autor nega, talvez por tomar como
distopia essa visão mais restrita do
gênero, o enquadramento de
tal,
ainda que, como esperamos haver
conseguido mostrar ao longo deste artigo,
a obra, em sua hipérbole satírica da crise
de seu contexto de produção e das
medidas autoritárias do período ditatorial,
se apresente até mais distópica que o
romance de Burgess
comumente relacionado com o gênero.
Enquanto muitos tomam
um ponto de partida para o gênero
distópico ou mesmo
The Machine
[1909], de E. M. Forster
, observando
9
O mesmo talvez já não se possa dizer de
Desta terra...
, em que a opção pelo absurdo
não se dá em fragmentos isolados, mas é
parte integrante da construção da sociedade
imaginada por Brandão. Oferecido como
distopia, seu exagero é tal que a plausibilida
se perde, tornando a alegoria a única
possibilidade de leitura daquela sociedade
imaginada.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
permitindo organizar um caminho de
leitura que torna essa visão de distopia
Ainda que todos os romances
canonizados no gênero distópico
apresentem esse Estado plenamente
estabelecido do governo totalitário, tomar
esse estágio como fronteira para a
definição do gênero nos impediria de
trabalhar com obras que claramente estão
onadas com o gênero, sem
necessariamente se encaixarem nos
Admirável mundo novo
ou
. Como vimos no caso de Loyola, o
próprio autor nega, talvez por tomar como
distopia essa visão mais restrita do
gênero, o enquadramento de
Zero como
ainda que, como esperamos haver
conseguido mostrar ao longo deste artigo,
a obra, em sua hipérbole satírica da crise
de seu contexto de produção e das
medidas autoritárias do período ditatorial,
se apresente até mais distópica que o
este mais
comumente relacionado com o gênero.
Enquanto muitos tomam
Nóscomo
um ponto de partida para o gênero
The Machine
Stops
, observando
O mesmo talvez já não se possa dizer de
, em que a opção pelo absurdo
não se dá em fragmentos isolados, mas é
parte integrante da construção da sociedade
imaginada por Brandão. Oferecido como
distopia, seu exagero é tal que a plausibilida
de
se perde, tornando a alegoria a única
possibilidade de leitura daquela sociedade
apenas as obras em que já há plenamente
estabelecida essa drástica ru
lógica de funcionamento do mundo
contemporâneo, Jack London, em 1907, já
produzia
Tacão de ferro
se entendermos como parte do gênero
essas obras situadas não no cume, mas
na ascensão do Estado distópico
projeta, assim como
mecânica
, em um futuro não muito
distante a formação de um Estado
distópico dominado pelos grandes
conglomerados capitalistas à custa de um
massacre do proletariado socialista que
ganhava força no momento.
Através de um estudo desses
diversos
estágios de formação de uma
distopia, podemos não apenas reler obras
até então afastadas do gênero
como exemplos divergentes
nossa leitura dos próprios romances
distópicos canônicos, em que a violência
fundadora é escondida, mas e
Podemos, ainda, ressaltar os efeitos
buscados em cada estágio desse
progresso, em que uma maior
proximidade com o contexto de produção
diminuiria esse estranhamento (cf. SUVIN,
1979, p. 6; BOOKER, 1994, p. 19)
explorado pela distopia plena para f
sua crítica ao presente, mas, ao mesmo
tempo, ressaltaria que o caminho até esse
cenário é bem mais curto do que se pode
entrever nas obras canônicas.
223
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
apenas as obras em que já há plenamente
estabelecida essa drástica ru
ptura com a
lógica de funcionamento do mundo
contemporâneo, Jack London, em 1907, já
Tacão de ferro
, uma obra que
se entendermos como parte do gênero
essas obras situadas não no cume, mas
na ascensão do Estado distópico
–,
Zero e Laranja
, em um futuro não muito
distante a formação de um Estado
distópico dominado pelos grandes
conglomerados capitalistas à custa de um
massacre do proletariado socialista que
ganhava força no momento.
Através de um estudo desses
estágios de formação de uma
distopia, podemos não apenas reler obras
até então afastadas do gênero
ou vistas
como exemplos divergentes
–, mas afinar
nossa leitura dos próprios romances
distópicos canônicos, em que a violência
fundadora é escondida, mas e
xistente.
Podemos, ainda, ressaltar os efeitos
buscados em cada estágio desse
progresso, em que uma maior
proximidade com o contexto de produção
diminuiria esse estranhamento (cf. SUVIN,
1979, p. 6; BOOKER, 1994, p. 19)
explorado pela distopia plena para f
azer
sua crítica ao presente, mas, ao mesmo
tempo, ressaltaria que o caminho até esse
cenário é bem mais curto do que se pode
entrever nas obras canônicas.
SASSE, Pedro.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
distópico. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 198-224
, out. 2019 a março 2020.
Começamos este artigo mostrando
o retorno das distopias totalitárias ao
pensamento contemporâneo. Ma
trabalhamos com uma obra do período da
ditadura militar no Brasil. Aparente
descompasso, essa escolha, no entanto,
se pela importância de entender como
uma obra como Zero
pode dialogar com a
produção distópica contemporânea e
como sua análise pode nos
ferramentas para trabalhar com aquilo que
se está produzindo hoje. Em um momento
político como o que vivemos atualmente, é
compreensível que Years
and
por mostrar não a distopia plena, mas seu
processo de formação. Fenômeno
Referências bibliográficas
ATWOOD, Margaret.
O conto da aia
Trad. Ana Deiró. Rio de Janeiro:
Rocco, 2017.
BOOKER, Keith M.
The dystopian
impulse in modern literature
social criticism.
London: Greenwood
Press, 1994.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola.
ed. Rio de Janeiro: Ed. Codecri,
1979.
BURGESS, Anthony.
mecânica
. Trad. Fábio Fernandes. São
Paulo: Aleph, 2014.
CLAEYS, Gregory.
The Origins of
Dystopia: Wells, Huxley and Orwell. In:
The Cambridge Companion to Utopian
Literature
. Cambridge: Cambridge
University Press, 2010. p
.107
CLAEYS, Gregory.
Dystopia
History. Oxford: Oxford University
Press, 2017.
Marco Zero: da crise à violência fundadora do estado
Americana de Estudos em
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Começamos este artigo mostrando
o retorno das distopias totalitárias ao
pensamento contemporâneo. Ma
s
trabalhamos com uma obra do período da
ditadura militar no Brasil. Aparente
descompasso, essa escolha, no entanto,
se pela importância de entender como
pode dialogar com a
produção distópica contemporânea e
como sua análise pode nos
dar
ferramentas para trabalhar com aquilo que
se está produzindo hoje. Em um momento
político como o que vivemos atualmente, é
and
Years opte
por mostrar não a distopia plena, mas seu
processo de formação. Fenômeno
semelhante pode
ser encontrado na
escolha da adaptação televisa de
da aia
de explorar, nos flashbacks, esse
período de transição entre democracia e
totalitarismo de forma mais aprofundada.
Em ambos os casos, se tenta refletir não
sobre os perigos de um Estado tota
plenamente estabelecido, cuja ameaça
ainda não se tenha conformado
plenamente em nosso horizonte de
expectativa, mas sobre a fragilidade da
democracia e a rapidez e facilidade com
que um governo autoritário pode, à custa
de muitas vidas, mudar dras
rumo de uma nação.
O conto da aia
.
Trad. Ana Deiró. Rio de Janeiro:
The dystopian
impulse in modern literature
: fiction as
London: Greenwood
BRANDÃO, Ignácio de Loyola.
Zero.
ed. Rio de Janeiro: Ed. Codecri,
Laranja
. Trad. Fábio Fernandes. São
The Origins of
Dystopia: Wells, Huxley and Orwell. In:
The Cambridge Companion to Utopian
. Cambridge: Cambridge
.107
-131.
Dystopia
: a Natural
History. Oxford: Oxford University
OLIVAS, Daniel A
.
Here.
The New York Times
2018.
Disponível em:
https://www.nytimes.com/2018/06/19/o
pinion/children-
separated
parents-border-
immigrant
dystopia.html. Acesso:
ORWELL, George.
Alexandre Hubner, Heloisa Jahn.
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SUVIN, Darko.
Metamorphoses of
Science Fiction
: on the Poetics and
History of a Literary Genre. New
Haven e London
: Yale University
Press, 1979.
VIEIRA, Fátima
.
Utopia. In
: CLAEYS, Gregory (o
The Cambridge Companion to Utopian
Literature.
Cambridge: Cambridge
University Press, 2010.
224
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ser encontrado na
escolha da adaptação televisa de
O conto
de explorar, nos flashbacks, esse
período de transição entre democracia e
totalitarismo de forma mais aprofundada.
Em ambos os casos, se tenta refletir não
sobre os perigos de um Estado tota
litário
plenamente estabelecido, cuja ameaça
ainda não se tenha conformado
plenamente em nosso horizonte de
expectativa, mas sobre a fragilidade da
democracia e a rapidez e facilidade com
que um governo autoritário pode, à custa
de muitas vidas, mudar dras
ticamente o
The Dystopia Is
The New York Times
, 19 junho
Disponível em:
https://www.nytimes.com/2018/06/19/o
separated
-from-
immigrant
-
dystopia.html. Acesso:
21mar. 2019.
ORWELL, George.
1984. Trad.
Alexandre Hubner, Heloisa Jahn.
São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Metamorphoses of
: on the Poetics and
History of a Literary Genre. New
: Yale University
The Conceptof
: CLAEYS, Gregory (o
rg.).
The Cambridge Companion to Utopian
Cambridge: Cambridge
University Press, 2010.
p. 3 - 27.
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.38897
Resumo
: O artigo analisa distintas modalidades de violência a que são submetidos Fabiano, sinh
Vitória e seus dois filhos meninos em
material, de vocabulário, não como resultado da animalização
das experiências traumáticas impostas. A partir das reflexões de Maria Cecília S. Minayo (2007),
Michel Foucault (1987), Pierre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri Spivak (2010),
Walter Benjamin (1994) e
rcio Seligmann
violência no romance de Ramos, em alguns de seus múltiplos aspectos.
Palavras-chave
:Violência na literatura
Cuerpo y alma bajo violência: de ladolor al silencio en
Resumen
: El artículo analiza diferentes tipos de violencia a los que son sometidos Fabiano, sinh
Vitória y los dos hijos, en la novela
del vocabulario, no como resultado de la animalización de los seres ficticios, sino como consecuencia
de las
experiencias traumáticas impuestas. Sobre la base de las reflexiones de Maria Cecília S.
Minayo (2007), Michel Foucault (1987), Pi
Spivak (2010),
Walter Benjamin (1994) y Márcio Seligmann
la violencia en la novela de Ramos em algunos de sus múltiples aspectos.
Palabras clave: Violencia en
la literatura
Body and soul under
violence: from
Abstract: The article analyzes
different types of violence to which Fabiano, sinh
sons are subjected in Graciliano Ramos’s novel
carce vocabulary, not seen
here a result of the animalization of these
consequence of imposed
traumatic
(2007), Michel Foucault (1987), Pierre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri Spivak
1
Paulo Cesar Silva de Oliveira. Doutor em Letras pela UFRJ e Professor Adjunto de Teoria Literária
da FFP/UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Bolsista do Programa Prociência da
FAPERJ, Brasil.
Email: paulo.centrorio@uol.com.br
2
Isabela Cristina Rodrigues
Azevedo.
Mestranda do Programa de
Pós
Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. E
-
Texto recebido em 06/12/20
19 e aceito para publicação em 04
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em
Vidas secas
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.38897
Paulo Cesar Silva de Oliveira
Isabela Cristina Rodrigues Azevedo
: O artigo analisa distintas modalidades de violência a que são submetidos Fabiano, sinh
Vitória e seus dois filhos meninos em
Vidas secas
, de Graciliano Ramos. Aponta
material, de vocabulário, não como resultado da animalização
destes seres, mas como consequência
das experiências traumáticas impostas. A partir das reflexões de Maria Cecília S. Minayo (2007),
Michel Foucault (1987), Pierre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri Spivak (2010),
rcio Seligmann
-
Silva (2000), dentre outros, discutiremos o problema da
violência no romance de Ramos, em alguns de seus múltiplos aspectos.
:Violência na literatura
; poder simbólico; trauma.
Cuerpo y alma bajo violência: de ladolor al silencio en
Vidas secas
: El artículo analiza diferentes tipos de violencia a los que son sometidos Fabiano, sinh
Vitória y los dos hijos, en la novela
Vidas secas
de Graciliano Ramos. Se señala
del vocabulario, no como resultado de la animalización de los seres ficticios, sino como consecuencia
experiencias traumáticas impuestas. Sobre la base de las reflexiones de Maria Cecília S.
Minayo (2007), Michel Foucault (1987), Pi
erre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri
Walter Benjamin (1994) y Márcio Seligmann
-
Silva (2000) discutiremos el problema de
la violencia en la novela de Ramos em algunos de sus múltiples aspectos.
la literatura
; poder simbólico; trauma.
violence: from
pain to silence, in Vidas secas
different types of violence to which Fabiano, sinh
a
sons are subjected in Graciliano Ramos’s novel
Vidas secas
. Their material poverty
here a result of the animalization of these
human
traumatic
experiences. Based on t
he reflections of Maria Cecília S. Minayo
(2007), Michel Foucault (1987), Pierre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri Spivak
Paulo Cesar Silva de Oliveira. Doutor em Letras pela UFRJ e Professor Adjunto de Teoria Literária
da FFP/UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Bolsista do Programa Prociência da
Email: paulo.centrorio@uol.com.br
- https://orcid.org/0000-0002
-
Azevedo.
Graduada em Letras pela Universidade
Pós
-Graduação em Letras e Linguística da
Universidade
-
mail: icrazevedo@gmail.com
19 e aceito para publicação em 04
/01/2020.
225
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
Vidas secas
Paulo Cesar Silva de Oliveira
1
Isabela Cristina Rodrigues Azevedo
2
: O artigo analisa distintas modalidades de violência a que são submetidos Fabiano, sinh
a
, de Graciliano Ramos. Aponta
-se a pobreza
destes seres, mas como consequência
das experiências traumáticas impostas. A partir das reflexões de Maria Cecília S. Minayo (2007),
Michel Foucault (1987), Pierre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri Spivak (2010),
Silva (2000), dentre outros, discutiremos o problema da
: El artículo analiza diferentes tipos de violencia a los que son sometidos Fabiano, sinh
a
de Graciliano Ramos. Se señala
la pobreza material
del vocabulario, no como resultado de la animalización de los seres ficticios, sino como consecuencia
experiencias traumáticas impuestas. Sobre la base de las reflexiones de Maria Cecília S.
erre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri
Silva (2000) discutiremos el problema de
a
Vitória and their two
. Their material poverty
aligns with theirs
human
beings, but as a
he reflections of Maria Cecília S. Minayo
(2007), Michel Foucault (1987), Pierre Bourdieu (2012), Emmanuel Levinas (2016), Gayatri Spivak
Paulo Cesar Silva de Oliveira. Doutor em Letras pela UFRJ e Professor Adjunto de Teoria Literária
da FFP/UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Bolsista do Programa Prociência da
-
3710-4722
Federal Fluminense.
Universidade
do Estado do
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
(2010), Walter Benjamin (1994) and Márcio Seligmann
violence in Ramos’s no
vel focusing on some of its multiple aspects.
Keywords: Violence in literature
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em
A crítica literária comumente
define as personagens de
secas
, de Graciliano Ramos (2013),
como sujeitos animalizados, em
contraste com a humanização da
cadela Baleia, a que são equiparados.
Nesta relação paradoxal,
frequentemente se aponta a linguagem
como um dos fatores de
desumanização das personagens. De
fato, Vidas secas
considerado um drama sobre a
linguagem. Como aponta Rui Mourão
(2003, p. 117-
135), em obra de 1969,
o rompimento de Graciliano Ramos
com os esquemas narrativos em
primeira pessoa, empregados
anteriormente a
Vidas secas
Caetés, São Bernardo e
Angústia
faz notar parcialmente na narrativa
sobre Fabiano e sua família. Dizemos
parcialmente, pois, como bem
observou Wander Melo de Miranda, no
“Prefácio” à terceira edição do livro de
Mourão (2003, p. 9), “o resultado é
uma “vitoriosa onisc
iência”, a que o
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
(2010), Walter Benjamin (1994) and Márcio Seligmann
-Silva (2000) we will
discuss the problem of
vel focusing on some of its multiple aspects.
;
symbolic power; trauma.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em
Vidas secas
A crítica literária comumente
define as personagens de
Vidas
, de Graciliano Ramos (2013),
como sujeitos animalizados, em
contraste com a humanização da
cadela Baleia, a que são equiparados.
Nesta relação paradoxal,
frequentemente se aponta a linguagem
como um dos fatores de
desumanização das personagens. De
pode ser
considerado um drama sobre a
linguagem. Como aponta Rui Mourão
135), em obra de 1969,
o rompimento de Graciliano Ramos
com os esquemas narrativos em
primeira pessoa, empregados
Vidas secas
em
Angústia
se
faz notar parcialmente na narrativa
sobre Fabiano e sua família. Dizemos
parcialmente, pois, como bem
observou Wander Melo de Miranda, no
“Prefácio” à terceira edição do livro de
Mourão (2003, p. 9), “o resultado é
iência”, a que o
discurso indireto livre, sem dúvida, se
encarrega de relativizar”.
Ramos constrói um narrador
que estaria supostamente “de fora” do
fato narrado, como uma espécie de
demiurgo. Este esquema narrativo
revela mais do que uma estratégia
artíst
ica: Fabiano e os seus não
manejam a linguagem de forma a
expressar a complexa rede de
encobrimentos e impedimentos em
que são apanhados. São formas de
violência política, psicossociais a que
são submetidos e o narrador cumpre o
papel de porta-
voz destes s
excluídos, falando “por” eles.
Entretanto, porque não está à altura
dos dramas vividos pelas
personagens, o narrador os evoca
indiretamente por meio de uma ilusória
primeira pessoa. Isso é evidente
quando analisamos essa estratégia
narrativa de forma
pragmática, como
fez Castelar de Carvalho (1978, p. 16):
“Dessa forma, aproximando o narrador
do personagem, pode o Discurso
226
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
discuss the problem of
Vidas secas
discurso indireto livre, sem dúvida, se
encarrega de relativizar”.
Ramos constrói um narrador
que estaria supostamente “de fora” do
fato narrado, como uma espécie de
demiurgo. Este esquema narrativo
revela mais do que uma estratégia
ica: Fabiano e os seus não
manejam a linguagem de forma a
expressar a complexa rede de
encobrimentos e impedimentos em
que são apanhados. São formas de
violência política, psicossociais a que
são submetidos e o narrador cumpre o
voz destes s
eres
excluídos, falando “por” eles.
Entretanto, porque não está à altura
dos dramas vividos pelas
personagens, o narrador os evoca
indiretamente por meio de uma ilusória
primeira pessoa. Isso é evidente
quando analisamos essa estratégia
pragmática, como
fez Castelar de Carvalho (1978, p. 16):
“Dessa forma, aproximando o narrador
do personagem, pode o Discurso
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
Indireto Livre dar ao leitor a impressão
de que ambos passam a falar em
uníssono”.
Gayatri Chakravorty Spivak, em
Pode o subalterno falar?
(2000, p. 31
32), nos mostra que o termo
“representação” pode ter o sentido de
“falar-
por”, como na política; e de re
presentação”, na arte ou na filosofia.
Para Spivak, a teoria é apenas uma
ação, daí o teórico não representar o
oprimido, como se
falasse por ele. No
caso da representação literária em
Vidas secas
, uma superposição de
camadas que devemos considerar:
Graciliano, autor-
empírico, cria um
narrador, que se transforma em autor
modelo e que, por vezes, concede voz
aos
subalternos, mas n
esse sujeito entra no discurso por
uma concessão do narrador
heterodiegético, que manipula os
discursos. Mesmo no caso das
narrativas em primeira pessoa em que
se ficcionaliza um sujeito subalterno, a
voz deste sujeito é camuflada, visto
que
sua subalternidade é
ficcionalizada e não real. Quando
dizemos que Jorge Amado ou
Graciliano Ramos, dois autores da
década de 1930, “dão voz” aos
marginalizados, não podemos
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
Indireto Livre dar ao leitor a impressão
de que ambos passam a falar em
Gayatri Chakravorty Spivak, em
(2000, p. 31
-
32), nos mostra que o termo
“representação” pode ter o sentido de
por”, como na política; e de re
-
presentação”, na arte ou na filosofia.
Para Spivak, a teoria é apenas uma
ação, daí o teórico não representar o
falasse por ele. No
caso da representação literária em
, uma superposição de
camadas que devemos considerar:
empírico, cria um
narrador, que se transforma em autor
-
modelo e que, por vezes, concede voz
subalternos, mas n
a verdade,
esse sujeito entra no discurso por
uma concessão do narrador
heterodiegético, que manipula os
discursos. Mesmo no caso das
narrativas em primeira pessoa em que
se ficcionaliza um sujeito subalterno, a
voz deste sujeito é camuflada, visto
sua subalternidade é
ficcionalizada e não real. Quando
dizemos que Jorge Amado ou
Graciliano Ramos, dois autores da
década de 1930, “dão voz” aos
marginalizados, não podemos
esquecer que essa é uma falsa voz,
visto que os subalternos não falam em
seus text
os, são neles representados.
Isso interessa a Spivak, quando
discute a produção de um “Outro”
chancelado pela voz do intelectual, o
que não quer dizer que devemos
advogar a retirada do intelectual do
jogo, mas que ele tenha consciência
de sua responsabilid
ade institucional.
A reflexão de Spivak é
especialmente importante para
entendermos que, quando discutimos
o problema da violência e do corpo,
em Vidas secas
, estamos transitando
por um universo construído por um
autor (Graciliano Ramos) que não
participa
dos eventos ficcionalizados, a
não ser como testemunha que se
solidariza com as personagens
errantes que representa. Cabe ao
crítico expor esses paradoxos no
âmbito de uma economia ficcional que
demanda reflexões que vão desde o
papel do escritor-
intelectu
que se coloca “a favor” de uma
determinada classe
deste processo: a representação deste
posicionamento na dupla articulação
“falar-por” e “re-
presentação”.
A linguagem que reproduz a
violência institucional, ou seja, a
227
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
esquecer que essa é uma falsa voz,
visto que os subalternos não falam em
os, são neles representados.
Isso interessa a Spivak, quando
discute a produção de um “Outro”
chancelado pela voz do intelectual, o
que não quer dizer que devemos
advogar a retirada do intelectual do
jogo, mas que ele tenha consciência
ade institucional.
A reflexão de Spivak é
especialmente importante para
entendermos que, quando discutimos
o problema da violência e do corpo,
, estamos transitando
por um universo construído por um
autor (Graciliano Ramos) que não
dos eventos ficcionalizados, a
não ser como testemunha que se
solidariza com as personagens
errantes que representa. Cabe ao
crítico expor esses paradoxos no
âmbito de uma economia ficcional que
demanda reflexões que vão desde o
intelectu
al – aquele
que se coloca “a favor” de uma
ao resultado
deste processo: a representação deste
posicionamento na dupla articulação
presentação”.
A linguagem que reproduz a
violência institucional, ou seja, a
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
linguagem
trágica que permeia o
romance de Ramos nos conta
destes meandros que tornam a tarefa
do crítico indispensável. À escassez
de linguagem de suas criaturas
enclausuradas, acresce a violência
institucional, reproduzida também
pelas próprias personagens em s
cotidiano trágico. Fabiano, sinh
Vitória e os dois filhos são afetados
pela seca e pela região sem recursos,
mas a reflexão de Ramos não se limita
a um determinismo que explique de
forma pragmática os processos
violentos encenados. Precisamos
expandir
algumas questões
apresentadas pelo romance para
campos mais amplos de
problematização, como a questão do
corpo e a vigência do trauma. Ambas
expõem a condição humana de
homens brutos que, ficcionalizados,
demandam o escrutínio do leitor
crítico.
Em um text
o de 1934,
Emmanuel Levinas (2016), ao tratar da
filosofia do hitlerismo, talvez tenha
sido, senão um dos primeiros, um dos
mais contundentes pensadores a tratar
da questão da barbárie nazista no
contexto de um processo de
desumanização do homem. Levinas
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
trágica que permeia o
romance de Ramos nos conta
destes meandros que tornam a tarefa
do crítico indispensável. À escassez
de linguagem de suas criaturas
enclausuradas, acresce a violência
institucional, reproduzida também
pelas próprias personagens em s
eu
cotidiano trágico. Fabiano, sinh
a
Vitória e os dois filhos são afetados
pela seca e pela região sem recursos,
mas a reflexão de Ramos não se limita
a um determinismo que explique de
forma pragmática os processos
violentos encenados. Precisamos
algumas questões
apresentadas pelo romance para
campos mais amplos de
problematização, como a questão do
corpo e a vigência do trauma. Ambas
expõem a condição humana de
homens brutos que, ficcionalizados,
demandam o escrutínio do leitor
o de 1934,
Emmanuel Levinas (2016), ao tratar da
filosofia do hitlerismo, talvez tenha
sido, senão um dos primeiros, um dos
mais contundentes pensadores a tratar
da questão da barbárie nazista no
contexto de um processo de
desumanização do homem. Levinas
d
iscutia as origens do mal no contexto
de uma modernidade da promessa
(leia-
se uma modernidade europeia e
norte-
americana, basicamente) que
tinha a mobilidade como norte, mas
nos legou a barbárie do assassínio de
milhões de seres humanos, com seus
corpos co
nfinados em campos de
extermínio em massa. As reflexões
pioneiras de Levinas nos auxiliarão em
nossas hipóteses de trabalho e leitura
de Vidas secas.
Levinas entende que o nazismo
transformou a “força” em um universal,
deslocando a perspectiva iluminista d
uma “sociedade de iguais” para o
ambiente de uma “sociedade de força”
em que grupos dominantes subjugam
os demais. Conforme bem resumiu
Arnold I. Davidson (2016, p. 34), em
sua leitura de Levinas:
Uma força engrandece a pessoa ou
a sociedade que a
subordina os outros. Em vez de criar
uma sociedade de iguais, a
expansão da força, de uma força
enraizada na raça, cria um mundo de
senhores e escravos. Portanto,
enfrentamos um ideal “que traz ao
mesmo tempo sua forma própria de
universalização:
conquista”.
Levinas propõe compreender o
advento do fascismo através da
questão do corpo, evitando as noções
clássicas e europeias de homem. A
228
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
iscutia as origens do mal no contexto
de uma modernidade da promessa
se uma modernidade europeia e
americana, basicamente) que
tinha a mobilidade como norte, mas
nos legou a barbárie do assassínio de
milhões de seres humanos, com seus
nfinados em campos de
extermínio em massa. As reflexões
pioneiras de Levinas nos auxiliarão em
nossas hipóteses de trabalho e leitura
Levinas entende que o nazismo
transformou a “força” em um universal,
deslocando a perspectiva iluminista d
e
uma “sociedade de iguais” para o
ambiente de uma “sociedade de força”
em que grupos dominantes subjugam
os demais. Conforme bem resumiu
Arnold I. Davidson (2016, p. 34), em
sua leitura de Levinas:
Uma força engrandece a pessoa ou
a sociedade que a
exerce. E
subordina os outros. Em vez de criar
uma sociedade de iguais, a
expansão da força, de uma força
enraizada na raça, cria um mundo de
senhores e escravos. Portanto,
enfrentamos um ideal “que traz ao
mesmo tempo sua forma própria de
a guerra, a
Levinas propõe compreender o
advento do fascismo através da
questão do corpo, evitando as noções
clássicas e europeias de homem. A
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
partir da ascensão do nazismo, o
corpo foi objeto não só de controle,
mas de sistemático extermínio
Levinas nos ciência de que o corpo
sempre foi compreendido como um
estrangeiro habitando em nós; o
dualismo eu x corpo deve
desaparecer, defende, para que
possamos ser espíritos
verdadeiramente livres. Talvez por isso
o controle sistemático dos corpos
inclusive dos corpos exterminados,
tenha sido um dos capítulos mais
contundentes de nossa história
moderna. Da promessa de mobilidade
resultou uma realidade da clausura.
Move-
se, mas para onde? Esse é o
primeiro grande acerto de Graciliano
Ramos, em Vida
s secas
representar a violência a que a família
de despossuídos era exposta:
problematizar o destino dos corpos
que circulam por espaços
claustrofóbicos em um tempo cíclico. A
narrativa se inicia com o capítulo
“Mudança” e se fecha com “Fuga”.
Esse apr
isionamento em uma
circularidade até permite a circulação
dos corpos no espaço-
tempo,
agrilhoados nos esquemas de clausura
que os impede de suplantar as
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
partir da ascensão do nazismo, o
corpo foi objeto não só de controle,
mas de sistemático extermínio
.
Levinas nos ciência de que o corpo
sempre foi compreendido como um
estrangeiro habitando em nós; o
dualismo eu x corpo deve
desaparecer, defende, para que
possamos ser espíritos
verdadeiramente livres. Talvez por isso
o controle sistemático dos corpos
,
inclusive dos corpos exterminados,
tenha sido um dos capítulos mais
contundentes de nossa história
moderna. Da promessa de mobilidade
resultou uma realidade da clausura.
se, mas para onde? Esse é o
primeiro grande acerto de Graciliano
s secas
, ao
representar a violência a que a família
de despossuídos era exposta:
problematizar o destino dos corpos
que circulam por espaços
claustrofóbicos em um tempo cíclico. A
narrativa se inicia com o capítulo
“Mudança” e se fecha com “Fuga”.
isionamento em uma
circularidade até permite a circulação
tempo,
porém
agrilhoados nos esquemas de clausura
que os impede de suplantar as
limitações da matéria e do mundo
circundante.
A personagem Fabiano até
consegue suspeitar de suas
limitações, que são as mesmas de seu
corpo em/sem liberdade. Em “Cadeia”,
o aprisionamento físico se cola ao
aprisionamento espiritual. Vítima da
brutalidade do poder e de uma
violência que ultrapassa a
materialidade de seu corpo, Fabiano
se revolta e pens
a em retaliar, mas
suas indignações esbarram na ideia de
que há um poder maior que o regula: o
governo. Sua prisão acontece após
uma ida à feira da cidade para
comprar mantimentos. , ele percebe
que é roubado no preço das
mercadorias, no querosene adulte
com água, na cachaça igualmente
aguada. Fabiano é chamado pelo
soldado amarelo
metonímia da força e da violência
institucionais
para um jogo de
baralho em que perde todo o dinheiro
e seu pagamento. Provocado mais
tarde pelo soldado, aca
onde matura raiva e humilhação e
pensa em vingança
consuma. Em determinado momento
do capítulo, a consciência de seu
229
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
limitações da matéria e do mundo
A personagem Fabiano até
consegue suspeitar de suas
limitações, que são as mesmas de seu
corpo em/sem liberdade. Em “Cadeia”,
o aprisionamento físico se cola ao
aprisionamento espiritual. Vítima da
brutalidade do poder e de uma
violência que ultrapassa a
materialidade de seu corpo, Fabiano
a em retaliar, mas
suas indignações esbarram na ideia de
que há um poder maior que o regula: o
governo. Sua prisão acontece após
uma ida à feira da cidade para
comprar mantimentos. , ele percebe
que é roubado no preço das
mercadorias, no querosene adulte
rado
com água, na cachaça igualmente
aguada. Fabiano é chamado pelo
espécie de
metonímia da força e da violência
para um jogo de
baralho em que perde todo o dinheiro
e seu pagamento. Provocado mais
tarde pelo soldado, aca
ba na cadeia,
onde matura raiva e humilhação e
pensa em vingança
que não
consuma. Em determinado momento
do capítulo, a consciência de seu
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
agrilhoamento é assim descrita pelo
narrador:
Agora Fabiano conseguia arranjar as
ideias. O que o segurava era a
fa
mília. Vivia preso como um novilho
amarrado ao mourão, suportando
ferro quente. Se o fosse isso, um
soldado amarelo não lhe pisava o
não. O que lhe amolecia o corpo era
a lembrança da mulher e dos filhos.
Sem aqueles cambões pesados, não
envergaria o
espinhaço não, sairia
dali como onça e faria uma asneira.
Carregaria a espingarda e daria um
tiro de de pau no soldado
amarelo. Não. O soldado amarelo
era um infeliz que merec
com as costas da mão. Mataria os
donos dele. Entraria num bando de
cangaceiros e faria estrago nos
homens que dirigiam o soldado
amarelo. Não ficaria um para
semente. Era a ideia que lhe fervia a
cabeça. Mas havia a mulher, havia
os meninos, havia a cachorrinha
(RAMOS, 2013, p. 37).
Essa passagem é determinante
para nos
sa análise. Em primeiro lugar,
porque o narrador, ao conceder voz a
Fabiano, fala com e por ele, o que nos
leva de volta ao problema da
representação, que vimos com Spivak.
Em segundo lugar, a consciência da
desigualdade alcança um estatuto de
quase revolt
a, de rebelião. Fabiano
pensa em matar o soldado, mas logo
aquiesce, após refletir sobre os
verdadeiros donos do poder, de quem
o soldado é apenas um emissário sem
importância. As estruturas oligárquicas
que perpetuam o estado de violência e
injustiça são
por ele consideradas a
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
agrilhoamento é assim descrita pelo
Agora Fabiano conseguia arranjar as
ideias. O que o segurava era a
mília. Vivia preso como um novilho
amarrado ao mourão, suportando
ferro quente. Se o fosse isso, um
soldado amarelo não lhe pisava o
não. O que lhe amolecia o corpo era
a lembrança da mulher e dos filhos.
Sem aqueles cambões pesados, não
espinhaço não, sairia
dali como onça e faria uma asneira.
Carregaria a espingarda e daria um
tiro de de pau no soldado
amarelo. Não. O soldado amarelo
era um infeliz que merec
e um tabefe
com as costas da mão. Mataria os
donos dele. Entraria num bando de
cangaceiros e faria estrago nos
homens que dirigiam o soldado
amarelo. Não ficaria um para
semente. Era a ideia que lhe fervia a
cabeça. Mas havia a mulher, havia
os meninos, havia a cachorrinha
Essa passagem é determinante
sa análise. Em primeiro lugar,
porque o narrador, ao conceder voz a
Fabiano, fala com e por ele, o que nos
leva de volta ao problema da
representação, que vimos com Spivak.
Em segundo lugar, a consciência da
desigualdade alcança um estatuto de
a, de rebelião. Fabiano
pensa em matar o soldado, mas logo
aquiesce, após refletir sobre os
verdadeiros donos do poder, de quem
o soldado é apenas um emissário sem
importância. As estruturas oligárquicas
que perpetuam o estado de violência e
por ele consideradas a
causa de sua humilhação. Fabiano
namora, quase em delírio, com a
revolta armada
ser um cangaceiro e
exterminar os homens que dirigiam o
soldado amarelo
, o que seria um
patamar radical, próprio dos sujeitos
que percebem a extensão
aprisionamento de seus corpos. Do
assujeitamento a uma ordem que o
ultrapassa à transgressão violenta,
Fabiano vai a extremos, questionando
a animalização de seu corpo
como um novilho amarrado ora
como uma onça em acesso de ria.
Isso nos leva novamente ao texto de
Levinas, quando o filósofo pensa a
questão do corpo como essência do
humano: “A essência do homem já não
está na liberdade, e sim numa espécie
de agrilhoamento. Ser
verdadeiramente si mesmo não é
retomar seu voo por sobr
contingências, sempre estranhas à
liberdade do Eu [...]”. Tomar
“consciência de nosso agrilhoamento
original inelutável e único a nosso
corpo; é, sobretudo, aceitar esse
agrilhoamento, no entanto, para que
se possa libertar o corpo e libertar
das e
struturas sociais” (LEVINAS,
2016, p. 63).
230
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
causa de sua humilhação. Fabiano
namora, quase em delírio, com a
ser um cangaceiro e
exterminar os homens que dirigiam o
, o que seria um
patamar radical, próprio dos sujeitos
que percebem a extensão
do nível de
aprisionamento de seus corpos. Do
assujeitamento a uma ordem que o
ultrapassa à transgressão violenta,
Fabiano vai a extremos, questionando
a animalização de seu corpo
ora se
como um novilho amarrado ora
como uma onça em acesso de ria.
Isso nos leva novamente ao texto de
Levinas, quando o filósofo pensa a
questão do corpo como essência do
humano: “A essência do homem já não
está na liberdade, e sim numa espécie
de agrilhoamento. Ser
verdadeiramente si mesmo não é
retomar seu voo por sobr
e as
contingências, sempre estranhas à
liberdade do Eu [...]”. Tomar
“consciência de nosso agrilhoamento
original inelutável e único a nosso
corpo; é, sobretudo, aceitar esse
agrilhoamento, no entanto, para que
se possa libertar o corpo e libertar
-se
struturas sociais” (LEVINAS,
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
Embora a articulação entre
animal e homem o se de forma
simplista, não é possível negar tal
equiparação, algo que Antonio
Candido já apontara. Afirmando que as
personagens de
Vidas secas
continham uma “pureza” que lhes
dispensava “refinamento”, Candido
alinha subjetivamente as protagonistas
da obra:
O matutar de Fabiano ou Sinhá
Vitória o corrói o eu nem
representa atividade excepcional.
Por isso é equiparado ao cismar dos
dois meninos
e da cachorrinha, pois
no primitivo, na criança e no animal a
vida interior obedece outras leis, que
o autor procura desvendar: não se
opõe ao ato, mas nele se entrosa,
imediatamente. Daí a pureza do livro,
o impacto direto e comovente, não
dispersado por
qualquer artificioso
refinamento (CANDIDO, 2006, p.
65).
Perceber o modo como os
sujeitos são afetados pelo meio em
que vivem é importante para
pensarmos a subjetividade desses
seres, contudo, a interferência do meio
sobre os corpos e mentes não torna os
sujeitos necessariamente
desumanizados, mas sim feridos, o
que explicaria o emudecimento frente
à experiência traumática. Em face
disso, cabe-
nos analisar o modo como
a obra é atravessada por uma série
estrutural de violências. A pobreza a
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
Embora a articulação entre
animal e homem o se de forma
simplista, não é possível negar tal
equiparação, algo que Antonio
Candido já apontara. Afirmando que as
Vidas secas
continham uma “pureza” que lhes
dispensava “refinamento”, Candido
alinha subjetivamente as protagonistas
O matutar de Fabiano ou Sinhá
Vitória o corrói o eu nem
representa atividade excepcional.
Por isso é equiparado ao cismar dos
e da cachorrinha, pois
no primitivo, na criança e no animal a
vida interior obedece outras leis, que
o autor procura desvendar: não se
opõe ao ato, mas nele se entrosa,
imediatamente. Daí a pureza do livro,
o impacto direto e comovente, não
qualquer artificioso
refinamento (CANDIDO, 2006, p.
Perceber o modo como os
sujeitos são afetados pelo meio em
que vivem é importante para
pensarmos a subjetividade desses
seres, contudo, a interferência do meio
sobre os corpos e mentes não torna os
sujeitos necessariamente
desumanizados, mas sim feridos, o
que explicaria o emudecimento frente
à experiência traumática. Em face
nos analisar o modo como
a obra é atravessada por uma série
estrutural de violências. A pobreza a
que são expostas as personagens; as
lembranças da seca aliadas
f
ísicas e emocionais deixadas, bem
como a imposição das autoridades,
que atuam arbitrariamente, por serem
hierarquicamente superiores na escala
socioeconômica, corroboram para que
o comportamento da família seja uma
metáfora da condição subalterna.
Cabe afi
rmar aqui, com base nos
postulados de Michel Foucault (1987),
que as personagens de
são atravessadas pela violência
estrutural, tal como a define Maria
Cecília S. Minayo (2007), de que
trataremos adiante. Há, então, a clara
presença de um “pode
(BOURDIEU, 2012) que afeta
diretamente a conjuntura social e
existencial a que estão submetidos os
sertanejos traumatizados pela dura
realidade imposta.
Vidas secas
história de uma família composta por
um homem, uma mulher, doi
e uma cachorra em extrema situação
de miséria. É significativa a escolha do
autor em nomear a única mulher
protagonista por “sinh
“sinhá Vitória”, acentuado tal como a
norma requer. Ilma da Silva Rebello
(2005), em seu artigo “As
231
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
que são expostas as personagens; as
lembranças da seca aliadas
às marcas
ísicas e emocionais deixadas, bem
como a imposição das autoridades,
que atuam arbitrariamente, por serem
hierarquicamente superiores na escala
socioeconômica, corroboram para que
o comportamento da família seja uma
metáfora da condição subalterna.
rmar aqui, com base nos
postulados de Michel Foucault (1987),
que as personagens de
Vidas secas
são atravessadas pela violência
estrutural, tal como a define Maria
Cecília S. Minayo (2007), de que
trataremos adiante. Há, então, a clara
presença de um “pode
r simbólico”
(BOURDIEU, 2012) que afeta
diretamente a conjuntura social e
existencial a que estão submetidos os
sertanejos traumatizados pela dura
(1938) narra a
história de uma família composta por
um homem, uma mulher, doi
s meninos
e uma cachorra em extrema situação
de miséria. É significativa a escolha do
autor em nomear a única mulher
protagonista por “sinh
a Vitória” e não
“sinhá Vitória”, acentuado tal como a
norma requer. Ilma da Silva Rebello
(2005), em seu artigo “As
classes
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
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Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
populares e as duras cavalgaduras da
vida: uma leitura de
Vidas secas
Graciliano Ramos”, aponta para as
diferenças de sentido que atravessam
a escolha do autor. na retirada do
acento uma marca que
simultaneamente é econômica, social
e moral.
Constata-
se que Graciliano Ramos
preferiu "sinha" ao invés de "sinhá".
Magalhães (2001: 120) expõe que
nas Alagoas a palavra sinhá é usada
para mulheres da classe dominante,
esposas dos proprietários de terra e
sinha para os pobres, casadas e
dignas de r
espeito. Por isso, sinha
Vitória (REBELLO, 2005, p. 8).
Sutilmente, não a mulher,
mas toda a família tem sua definição
inscritana hierarquia política e social a
que são
expostos,assim como cada
um de nós, invariavelmente. Embora
sem recursos financeiro
s, Fabiano e
os seus são pessoas de atitudes
lícitas, “dignas”, honestas. A
informação fornecida por Magalhães
ressignifica não o nome próprio,
que pode passar despercebido para
um leitor menos atento: pobreza e
honestidade são pares positivos
naquela f
amília, assim como os
parâmetros de ética e moral que levam
Fabiano, por exemplo, a submeter
a humilhações ao longo da
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
populares e as duras cavalgaduras da
Vidas secas
, de
Graciliano Ramos”, aponta para as
diferenças de sentido que atravessam
a escolha do autor. na retirada do
acento uma marca que
simultaneamente é econômica, social
se que Graciliano Ramos
preferiu "sinha" ao invés de "sinhá".
Magalhães (2001: 120) expõe que
nas Alagoas a palavra sinhá é usada
para mulheres da classe dominante,
esposas dos proprietários de terra e
sinha para os pobres, casadas e
espeito. Por isso, sinha
Vitória (REBELLO, 2005, p. 8).
Sutilmente, não a mulher,
mas toda a família tem sua definição
inscritana hierarquia política e social a
expostos,assim como cada
um de nós, invariavelmente. Embora
s, Fabiano e
os seus são pessoas de atitudes
lícitas, “dignas”, honestas. A
informação fornecida por Magalhães
ressignifica não o nome próprio,
que pode passar despercebido para
um leitor menos atento: pobreza e
honestidade são pares positivos
amília, assim como os
parâmetros de ética e moral que levam
Fabiano, por exemplo, a submeter
-se
a humilhações ao longo da
narrativa,em prol do bem comum dos
seus.
Sem posses e sem escolhas, a
família, após transitar em busca de
nova terra, aloca-
se em uma fazenda
para viver à mercê da exploração de
um fazendeiro, recebendo como
pagamento do trabalho
salário indigno e
incerto,
teto. Fabiano, responsável por tratar
diretamente com o dono do lugar em
que estão abrigados, trabalha no
cuidado dos animais, enquanto sua
mulher, sinha
Vitória, cuida da casa,
dos filhos e da manutenção do que
pode passar despercebido para seu
marido
. Não se trata de um trabalho
visando ao lucro: não acúmulo ou
ganho, apenas luta pela sobrevivência.
Diante disso, percebemos a presença
de uma “violência estrutural” de que
Fabiano e sua gente são timas,
aponta para o que Minayo bem
resume:
Diz resp
eito [A violência estrutural]
às mais diferentes formas de
manutenção das desigualdades
sociais, culturais, de gênero, etárias
e étnicas que produzem a miséria, a
fome, e as várias formas de
submissão e exploração de umas
pessoas pelas outras. Mais cruel,
violência que mantém a miséria de
grande parte da população do país.
Todos os autores que estudam o
fenômeno da miséria e da
desigualdade social mostram que
sua naturalização o torna o chão de
232
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
narrativa,em prol do bem comum dos
Sem posses e sem escolhas, a
família, após transitar em busca de
se em uma fazenda
para viver à mercê da exploração de
um fazendeiro, recebendo como
pagamento do trabalho
honesto um
incerto,
além de um
teto. Fabiano, responsável por tratar
diretamente com o dono do lugar em
que estão abrigados, trabalha no
cuidado dos animais, enquanto sua
Vitória, cuida da casa,
dos filhos e da manutenção do que
pode passar despercebido para seu
. Não se trata de um trabalho
visando ao lucro: não acúmulo ou
ganho, apenas luta pela sobrevivência.
Diante disso, percebemos a presença
de uma “violência estrutural” de que
Fabiano e sua gente são timas,
aponta para o que Minayo bem
eito [A violência estrutural]
às mais diferentes formas de
manutenção das desigualdades
sociais, culturais, de gênero, etárias
e étnicas que produzem a miséria, a
fome, e as várias formas de
submissão e exploração de umas
pessoas pelas outras. Mais cruel,
é a
violência que mantém a miséria de
grande parte da população do país.
Todos os autores que estudam o
fenômeno da miséria e da
desigualdade social mostram que
sua naturalização o torna o chão de
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
onde brotam várias outras formas de
relação violenta (MINAY
12).
Porta de entrada para outras
manifestações de força, a violência
estrutural é a base das demais
injustiças vividas pela família
ficcionalizada por Graciliano. Estarem
tão vulneráveis à fome e
ao desabrigo
os
torna presas fáceis de abusos, a
exemplo do que ocorre hoje, com as
mudanças nas relações de trabalho
que deixam a população mais frágil e
desprotegida. Sem ter quem os
defenda e sem alternativas, a família
de Fabiano é roubada pelo dono das
terras em que
trabalham. Fabiano, na
dependência do fazendeiro, sabe que
não se trata de escolha receber menos
do que deveria:
Sinha Vitória fazia contas direito:
sentava-
se na cozinha, consultava
montes de sementes de várias
espécies, correspondentes a mil réis,
tostõ
es e vinténs. E acertava. As
contas do patrão eram diferentes,
arranjadas a tinta e contra o
vaqueiro, mas Fabiano sabia que
elas estavam erradas e o patrão
queria enganá-
lo. Enganava. Que
remédio? Fabiano, um desgraçado,
um cabra, dormia na cadeia e
aguen
tava zinco no lombo. Podia
reagir? Não podia. Um cabra. Mas as
contas de Sinha Vitória deviam ser
exatas (RAMOS, 2013, p. 114).
A violência estrutural é uma
janela em que se descortinam outras
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
onde brotam várias outras formas de
relação violenta (MINAY
O, 2007, p.
Porta de entrada para outras
manifestações de força, a violência
estrutural é a base das demais
injustiças vividas pela família
ficcionalizada por Graciliano. Estarem
ao desabrigo
torna presas fáceis de abusos, a
exemplo do que ocorre hoje, com as
mudanças nas relações de trabalho
que deixam a população mais frágil e
desprotegida. Sem ter quem os
defenda e sem alternativas, a família
de Fabiano é roubada pelo dono das
trabalham. Fabiano, na
dependência do fazendeiro, sabe que
não se trata de escolha receber menos
Sinha Vitória fazia contas direito:
se na cozinha, consultava
montes de sementes de várias
espécies, correspondentes a mil réis,
es e vinténs. E acertava. As
contas do patrão eram diferentes,
arranjadas a tinta e contra o
vaqueiro, mas Fabiano sabia que
elas estavam erradas e o patrão
lo. Enganava. Que
remédio? Fabiano, um desgraçado,
um cabra, dormia na cadeia e
tava zinco no lombo. Podia
reagir? Não podia. Um cabra. Mas as
contas de Sinha Vitória deviam ser
exatas (RAMOS, 2013, p. 114).
A violência estrutural é uma
janela em que se descortinam outras
formas de violência, não apenas no
que diz respeito
à
“patrões x empregados”, mas também
quanto ao acesso daqueles sujeitos
educação. Segundo a
Universal dos Direitos Humanos
oportunidade de crescimento
intelectual por meio das instituições de
ensino é um direito de todos. No artigo
XXV
I, consta: “Todo ser humano tem
direito à instrução. A instrução se
gratuita, pelo menos nos graus
elementares e fundamentais. A
instrução elementar será obrigatória. A
instrução técnico-
profissional será
acessível a todos, bem como a
instrução superior,
esta baseada no
mérito” (DUDH
, 1948). Contudo, diante
da necessidade de se buscar o mínimo
para a sobrevivência, as personagens
de Graciliano Ramos expressam o
cotidiano comum ao de muitos
brasileiros sem acesso ao ensino, pois
o trabalho se impõe
emergen
cialmente. Resta para sinh
Vitória e Fabiano sonharem com um
futuro para seus filhos, que “mudar
iam depois para uma cidade, e os
meninos frequentariam escolas,
seriam diferentes deles” (RAMOS,
2013, p. 127).
233
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
formas de violência, não apenas no
à
relação entre
“patrões x empregados”, mas também
quanto ao acesso daqueles sujeitos
à
educação. Segundo a
Declaração
Universal dos Direitos Humanos
, a
oportunidade de crescimento
intelectual por meio das instituições de
ensino é um direito de todos. No artigo
I, consta: “Todo ser humano tem
direito à instrução. A instrução se
gratuita, pelo menos nos graus
elementares e fundamentais. A
instrução elementar será obrigatória. A
profissional será
acessível a todos, bem como a
esta baseada no
, 1948). Contudo, diante
da necessidade de se buscar o mínimo
para a sobrevivência, as personagens
de Graciliano Ramos expressam o
cotidiano comum ao de muitos
brasileiros sem acesso ao ensino, pois
o trabalho se impõe
cialmente. Resta para sinh
a
Vitória e Fabiano sonharem com um
futuro para seus filhos, que “mudar
-se-
iam depois para uma cidade, e os
meninos frequentariam escolas,
seriam diferentes deles” (RAMOS,
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
A questão da educação, mais
especificament
e sua falta, é outro
agravante da violência estrutural, pois
acentua a vulnerabilidade dos sujeitos
diante das estruturas hierárquicas e
arbitrárias. É sabido que a sociedade
da promessa moderna deveria alçar os
homens a um estado de bem
social, no e
ntanto, a corrupção
social, moral, política e de toda ordem
, a manutenção de privilégios e a
vigência de um capitalismo perverso
são formas do mal estrutural que
perpassa as épocas históricas e se
manifestam como cânceres no seio de
uma sociedade que s
e pretende justa:
o poder quase sempre atua com
violência para manter intocadas
determinadas estruturas. E isso não
tem a ver com a competência ou
mérito dos indivíduos.
Como afirma Adrian Sgarbin,
em
Teoria do direito (primeiras lições)
o termo “competê
ncia” pode ter muitos
sentidos. Dentre os três apontados
pelo autor, o que nos interessa agora
corresponde à terceira concepção, que
vem a ser: “atribuição normativa de
alguém” (SGARBIN, 2007, p. 56).
Competência, nesse sentido, é a
responsabilidade e a ca
profissional de uma pessoa. Podemos
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
A questão da educação, mais
e sua falta, é outro
agravante da violência estrutural, pois
acentua a vulnerabilidade dos sujeitos
diante das estruturas hierárquicas e
arbitrárias. É sabido que a sociedade
da promessa moderna deveria alçar os
homens a um estado de bem
-estar
ntanto, a corrupção
social, moral, política e de toda ordem
, a manutenção de privilégios e a
vigência de um capitalismo perverso
são formas do mal estrutural que
perpassa as épocas históricas e se
manifestam como cânceres no seio de
e pretende justa:
o poder quase sempre atua com
violência para manter intocadas
determinadas estruturas. E isso não
tem a ver com a competência ou
Como afirma Adrian Sgarbin,
Teoria do direito (primeiras lições)
,
ncia” pode ter muitos
sentidos. Dentre os três apontados
pelo autor, o que nos interessa agora
corresponde à terceira concepção, que
vem a ser: “atribuição normativa de
alguém” (SGARBIN, 2007, p. 56).
Competência, nesse sentido, é a
responsabilidade e a ca
pacidade
profissional de uma pessoa. Podemos
afirmar, assim, que o uso de uma
atribuição para suprimir o direito do
outro constitui violência, de modo que,
convém ressaltar, se a vítima da
violência não tem consciência da
violação a que está submetida, sua
situação é ainda mais injusta,
agravada pela ignorância frente a seus
direitos subtraídos.
aludimos anteriormente a um
exemplo de abuso policial no trato com
o ignorante Fabiano. Retomemos e
recordemos alguns outros momentos
da passagem, dada a sua
em nosso trabalho. Após perder seu
pouco dinheiro em uma partida de
cartas com o soldado da cidade,
Fabiano é rechaçado e humilhado pelo
policial, que o ofende e humilha,
criando pretextos para prendê
-
Vossemecê não tem direito de
provocar
os que estão quietos.
-
Desafasta, bradou o polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha
deixado a bodega sem se despedir.
-
Lorota, gaguejou o matuto. Eu
tenho culpa de vossemecê
esbagaçar os seus possuídos no
jogo?
Engasgou-
se. A autoridade rondou
por
ali um instante, desejosa de
puxar questão. Não achando
pretexto, avizinhou
salto da reiúna em cima da alpercata
do vaqueiro.
-
Isso não se faz, moço, protestou
Fabiano. Estou quieto. Veja que
mole e quente é pé de gente.
O outro continuou
Fabiano impacientou
mãe dele. o amarelo apitou, e em
234
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
afirmar, assim, que o uso de uma
atribuição para suprimir o direito do
outro constitui violência, de modo que,
convém ressaltar, se a vítima da
violência não tem consciência da
violação a que está submetida, sua
situação é ainda mais injusta,
agravada pela ignorância frente a seus
aludimos anteriormente a um
exemplo de abuso policial no trato com
o ignorante Fabiano. Retomemos e
recordemos alguns outros momentos
da passagem, dada a sua
importância
em nosso trabalho. Após perder seu
pouco dinheiro em uma partida de
cartas com o soldado da cidade,
Fabiano é rechaçado e humilhado pelo
policial, que o ofende e humilha,
criando pretextos para prendê
-lo:
Vossemecê não tem direito de
os que estão quietos.
Desafasta, bradou o polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha
deixado a bodega sem se despedir.
Lorota, gaguejou o matuto. Eu
tenho culpa de vossemecê
esbagaçar os seus possuídos no
se. A autoridade rondou
ali um instante, desejosa de
puxar questão. Não achando
pretexto, avizinhou
-se e plantou o
salto da reiúna em cima da alpercata
Isso não se faz, moço, protestou
Fabiano. Estou quieto. Veja que
mole e quente é pé de gente.
O outro continuou
a pisar com força.
Fabiano impacientou
-se e xingou a
mãe dele. o amarelo apitou, e em
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
poucos minutos o destacamento da
cidade rodeava o jatobá.
-
Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado,
entrou na cadeia, ouviu sem
compreender uma
medonha e não se defendeu
(RAMOS, 2013, p. 30-
31).
A postura autoritária do
“soldado amarelo” se firma na certeza
de que Fabiano não saberia se
defender e nem teria aliados
poderosos. Assim, valendo
posição hierárquica como
representante de um poder, de uma
força fardada (o que potencializa sua
s
ituação de “autoridade” frente ao
retirante inculto), o soldado incorpora a
violência institucional e isso lhe o
“direito” de submeter Fabiano a uma
noite no cárcere, pelo prazer do
exercício da força. Mais do que
dominar o corpo do homem, a
violência a
tua também sobre o seu
intelecto. Em seus estudos sobre o
poder e a violência, Michel Foucault
apontou para a mudança do alvo
punitivo por parte das instituições. Se
na era medieval, os castigos visavam
aos corpos, chegando à sua
destruição, na era moderna
não se concentra exclusivamente no
extermínio dos corpos, mas sim, em
sua “domesticação”. Dessa forma, não
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
poucos minutos o destacamento da
cidade rodeava o jatobá.
Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado,
entrou na cadeia, ouviu sem
acusação
medonha e não se defendeu
31).
A postura autoritária do
“soldado amarelo” se firma na certeza
de que Fabiano não saberia se
defender e nem teria aliados
poderosos. Assim, valendo
-se de sua
posição hierárquica como
representante de um poder, de uma
força fardada (o que potencializa sua
ituação de “autoridade” frente ao
retirante inculto), o soldado incorpora a
violência institucional e isso lhe o
“direito” de submeter Fabiano a uma
noite no cárcere, pelo prazer do
exercício da força. Mais do que
dominar o corpo do homem, a
tua também sobre o seu
intelecto. Em seus estudos sobre o
poder e a violência, Michel Foucault
apontou para a mudança do alvo
punitivo por parte das instituições. Se
na era medieval, os castigos visavam
aos corpos, chegando à sua
destruição, na era moderna
o poder
não se concentra exclusivamente no
extermínio dos corpos, mas sim, em
sua “domesticação”. Dessa forma, não
se pune apenas o corpo físico dos
sujeitos: novos objetos de coerção,
como a mente (Foucault chama de a
“alma”; Levinas classifica de “es
Nos dirá Foucault:
Se não é mais ao corpo que se dirige
a punição, em suas formas mais
duras, sobre o que, então, se
exerce? A resposta dos teóricos
daqueles que abriram, por volta de
1780, o período que ainda não se
encerrou
evidente. Dir-se
-
indagação. Pois não é mais o corpo,
é a alma. À expiação que tripudia
sobre o corpo deve suceder um
castigo que atue, profundamente,
sobre o coração, o intelecto, a
vontade, as disposições
(FOUCAULT, 1987, s/p).
Em
Vidas secas
observar os modos como Fabiano
internaliza as hierarquias sociais que o
oprimem. Passado o episódio da
prisão,por puro capricho do “soldado
amarelo”, Fabiano tem a chance de
vingar-
se, mas não o faz. Ao voltar
para casa, longe
seus movimentos, Fabiano depara o
soldado, perdido e sozinho.
Inicialmente, passado o medo de nova
injustiça, Fabiano recorda o vivido:
Tinha medo e repetia que estava em
perigo, mas isto lhe pareceu tão
absurdo que se pôs a rir. Medo
daquil
o? Nunca vira uma pessoa
tremer assim. Cachorro. Ele não era
dunga na cidade? Não pisava os pés
dos matutos, na feira? Não botava
gente na cadeia? Sem
mofino (RAMOS, 2013, p. 103).
235
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(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
se pune apenas o corpo físico dos
sujeitos: novos objetos de coerção,
como a mente (Foucault chama de a
“alma”; Levinas classifica de “es
pírito”).
Se não é mais ao corpo que se dirige
a punição, em suas formas mais
duras, sobre o que, então, se
exerce? A resposta dos teóricos
daqueles que abriram, por volta de
1780, o período que ainda não se
é simples, quase
-
ia inscrita na própria
indagação. Pois não é mais o corpo,
é a alma. À expiação que tripudia
sobre o corpo deve suceder um
castigo que atue, profundamente,
sobre o coração, o intelecto, a
vontade, as disposições
(FOUCAULT, 1987, s/p).
Vidas secas
, é possível
observar os modos como Fabiano
internaliza as hierarquias sociais que o
oprimem. Passado o episódio da
prisão,por puro capricho do “soldado
amarelo”, Fabiano tem a chance de
se, mas não o faz. Ao voltar
da cidade e de
seus movimentos, Fabiano depara o
soldado, perdido e sozinho.
Inicialmente, passado o medo de nova
injustiça, Fabiano recorda o vivido:
Tinha medo e repetia que estava em
perigo, mas isto lhe pareceu tão
absurdo que se pôs a rir. Medo
o? Nunca vira uma pessoa
tremer assim. Cachorro. Ele não era
dunga na cidade? Não pisava os pés
dos matutos, na feira? Não botava
gente na cadeia? Sem
-vergonha,
mofino (RAMOS, 2013, p. 103).
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
Ponderadas as consequências
de um ato de força
seu, Fabiano
submete-
se ao soldado por entendê
como autoridade. Mesmo sendo mais
forte fisicamente, o sertanejo não ousa
desobedecer ao “governo”:
Afastou-
se, inquieto. Vendo
acanalhado e ordeiro, o soldado
ganhou coragem, avançou, pisou
firme, perguntou o caminho
Fabiano tirou o chapéu de couro.
- Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou
ensinou o caminho ao soldado
amarelo
(RAMOS, 2013, p. 107).
Esse poder que rege, não pela
força, mas mediante o convencimento,
Pierre Bourdieu chama de “Poder
simbólico”. Uma vez que não se tem a
intenção de matar os subjugados, mas
sim de persuadi-
los a uma obediência
que os dociliza, Bourdieu aponta para
o modo c
omo o “consenso” atua
enquanto instrumento vital do poder
simbólico, visando à
“concordância
das inteligências”, ou seja, à
manipulação do pensamento de uns
em prol do de outros:
É enquanto instrumentos
estruturados e estruturantes de
comunicação e de conh
os «sistemas simbólicos» cumprem a
sua função política de instrumentos
de imposição ou de legitimação de
dominação, que contribuem para
assegurar a dominação de uma
classe sobre outra (violência
simbólica) dando o reforço da sua
própria força às
relações de força
que as fundamentam e contribuindo
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações
Ponderadas as consequências
seu, Fabiano
se ao soldado por entendê
-lo
como autoridade. Mesmo sendo mais
forte fisicamente, o sertanejo não ousa
se, inquieto. Vendo
-o
acanalhado e ordeiro, o soldado
ganhou coragem, avançou, pisou
firme, perguntou o caminho
. E
Fabiano tirou o chapéu de couro.
Tirou o chapéu de couro, curvou
-se e
ensinou o caminho ao soldado
(RAMOS, 2013, p. 107).
Esse poder que rege, não pela
força, mas mediante o convencimento,
Pierre Bourdieu chama de “Poder
simbólico”. Uma vez que não se tem a
intenção de matar os subjugados, mas
los a uma obediência
que os dociliza, Bourdieu aponta para
omo o “consenso” atua
enquanto instrumento vital do poder
“concordância
das inteligências”, ou seja, à
manipulação do pensamento de uns
É enquanto instrumentos
estruturados e estruturantes de
comunicação e de conh
ecimento que
os «sistemas simbólicos» cumprem a
sua função política de instrumentos
de imposição ou de legitimação de
dominação, que contribuem para
assegurar a dominação de uma
classe sobre outra (violência
simbólica) dando o reforço da sua
relações de força
que as fundamentam e contribuindo
assim, segundo a expressão de
Weber, para a «domesticação dos
dominados» (BOURDIEU, 2012, p.
11).
A postura de Fabiano é
estruturada e estruturante: ocorre por
conta dos mecanismos de poder que o
col
oca abaixo do soldado, mas,
simultaneamente, é o que reforça a
atuação do agente que demanda
obediência. Afinal, sem ter quem lhes
obedeça, as lideranças perdem seu
poder. Igualmente, convém expor que
Fabiano é alvo de imposições, mas
também é ele quem exe
parcela de poder, no caso, com a seus
filhos e à esposa, alvos de outra
manifestação dos poderes simbólicos.
É Fabiano quem impõe medo
crianças, bem como quem a
palavra final sobre como gastar o
salário, tal como fez ao perdê
jogo, dian
te do soldado amarelo.
Nesse prisma, constata
poder simbólico não possui rosto
definido
, é poroso e pervasivo,
infiltrando-
se nas instâncias sociais e
articulando-
se em múltiplas direções: o
oprimido pode passar a agressor e
vice-
versa; as diferen
anular-
algumas se normatizando;
desigualdades podem recrudescer ou
236
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(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
assim, segundo a expressão de
Weber, para a «domesticação dos
dominados» (BOURDIEU, 2012, p.
A postura de Fabiano é
estruturada e estruturante: ocorre por
conta dos mecanismos de poder que o
oca abaixo do soldado, mas,
simultaneamente, é o que reforça a
atuação do agente que demanda
obediência. Afinal, sem ter quem lhes
obedeça, as lideranças perdem seu
poder. Igualmente, convém expor que
Fabiano é alvo de imposições, mas
também é ele quem exe
rce sua
parcela de poder, no caso, com a seus
filhos e à esposa, alvos de outra
manifestação dos poderes simbólicos.
É Fabiano quem impõe medo
às
crianças, bem como quem a
palavra final sobre como gastar o
salário, tal como fez ao perdê
-lo no
te do soldado amarelo.
Nesse prisma, constata
-se que o
poder simbólico não possui rosto
, é poroso e pervasivo,
se nas instâncias sociais e
se em múltiplas direções: o
oprimido pode passar a agressor e
versa; as diferen
ças podem
se ou assumir novos papéis,
algumas se normatizando;
desigualdades podem recrudescer ou
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
acabar, dando lugar a outras formas
hierárquicas de assimetrias.
Consequentemente, a
concepção do que vem a ser a
realidade reflete as complexidades d
mundo simbólico: “O poder simbólico é
um poder de construção da realidade
que tende a estabelecer uma ordem
gnoseológica [...]” (BOURDIEU, 2012,
p. 09). Por não serem relações
naturais, determinadas por fatores
biológicos ou imanentes aos humanos,
as rel
ações de poder fantasiam
verdades que favorecem uns e
prejudicam outros. Não sem razão,
Bourdieu afirma ser, então, o “senso”
apenas um “consenso” que modula a
realidade:
“senso=consenso”(BOURDIEU, 2012,
p. 09).
Observar a ficcionalização da
realidade é a
lgo tornado possível pela
literatura e no romance de Ramos
salta aos olhos a autopercepção de
Fabiano. Ao não se reconhecer como
sujeito de direito a uma humanidade
que o torne verdadeiramente “homem”
livre e porque internaliza as relações
de força e segre
gação impostas a ele,
Fabiano se define como “bicho”.
Mesmo sendo um homem, a forma
desumana com que é levado a (sobre)
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
acabar, dando lugar a outras formas
hierárquicas de assimetrias.
Consequentemente, a
concepção do que vem a ser a
realidade reflete as complexidades d
o
mundo simbólico: “O poder simbólico é
um poder de construção da realidade
que tende a estabelecer uma ordem
gnoseológica [...]” (BOURDIEU, 2012,
p. 09). Por não serem relações
naturais, determinadas por fatores
biológicos ou imanentes aos humanos,
ações de poder fantasiam
verdades que favorecem uns e
prejudicam outros. Não sem razão,
Bourdieu afirma ser, então, o “senso”
apenas um “consenso” que modula a
“senso=consenso”(BOURDIEU, 2012,
Observar a ficcionalização da
lgo tornado possível pela
literatura e no romance de Ramos
salta aos olhos a autopercepção de
Fabiano. Ao não se reconhecer como
sujeito de direito a uma humanidade
que o torne verdadeiramente “homem”
livre e porque internaliza as relações
gação impostas a ele,
Fabiano se define como “bicho”.
Mesmo sendo um homem, a forma
desumana com que é levado a (sobre)
viver leva-
o a construir sobre si uma
identidade atravessada por um poder
simbólico em conformidade com os
elementos da violência estrut
Orgulhoso de ter encontrado, no início
da narrativa, um lugar para ficar e se
abrigar do sol “sanguíneo”, junto de
sua família, Fabiano sente
não se poupa em verbalizar sua
felicidade, chamando a si de “homem”.
Porém, a realidade, tal co
apresenta, gera nele vergonha pelo
dito, o que o faz modificar o
substantivo usado para qualificar
-
Fabiano, você é um homem,
exclamou em voz alta.
Conteve-
se, notou que os meninos
estavam perto, com certeza iam
admirar-
se ouvindo
pensando bem, ele não era homem:
era apenas um cabra ocupado em
guardar coisas dos outros. Vermelho,
queimado, tinha os olhos azuis, a
barba e os cabelos ruivos; mas como
vivia em terra alheia, cuidava de
animais alheios, descobria
encolhia-
se na pres
e julgava-
se cabra.
Olhou em torno, com receio de que,
fora os meninos, alguém tivesse
percebido a frase imprudente.
Corrigiu-
a, murmurando:
-
Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho.
Sim senhor, um bicho, capaz de
ve
ncer dificuldades.
ainda que se pensar em
outra manifestação de violência
presente em
Vidas secas.
um teto e o acesso negado à
educação são frutos daquela realidade
237
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
o a construir sobre si uma
identidade atravessada por um poder
simbólico em conformidade com os
elementos da violência estrut
ural.
Orgulhoso de ter encontrado, no início
da narrativa, um lugar para ficar e se
abrigar do sol “sanguíneo”, junto de
sua família, Fabiano sente
-se exitoso e
não se poupa em verbalizar sua
felicidade, chamando a si de “homem”.
Porém, a realidade, tal co
mo se
apresenta, gera nele vergonha pelo
dito, o que o faz modificar o
substantivo usado para qualificar
-se:
Fabiano, você é um homem,
exclamou em voz alta.
se, notou que os meninos
estavam perto, com certeza iam
se ouvindo
-o falar só. E,
pensando bem, ele não era homem:
era apenas um cabra ocupado em
guardar coisas dos outros. Vermelho,
queimado, tinha os olhos azuis, a
barba e os cabelos ruivos; mas como
vivia em terra alheia, cuidava de
animais alheios, descobria
-se,
se na pres
ença dos brancos
se cabra.
Olhou em torno, com receio de que,
fora os meninos, alguém tivesse
percebido a frase imprudente.
a, murmurando:
Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho.
Sim senhor, um bicho, capaz de
ncer dificuldades.
ainda que se pensar em
outra manifestação de violência
Vidas secas.
A falta de
um teto e o acesso negado à
educação são frutos daquela realidade
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
árida em que falta do básico ao
supérfluo, sempre uma falta que barra
a
possibilidade de uma vida digna. Ao
que parece, para além dos bens e
progresso materiais, a miséria e suas
consequências roubam também o
exercício aprofundado das faculdades
comunicativas. A língua, como bem
afirma Giorgio Agamben, é também
um dispositivo:
Não somente, portanto, as prisões,
os manicômios, o Panóptico, as
escolas, a confissão, as fábricas, as
disciplinas, as medidas jurídicas etc.,
cuja conexão com o poder é num
certo sentido evidente, mas também
a caneta, as escrituras, a literatura, a
filosofia, a agricultura, o cigarro, a
navegação, os computadores, os
telefones celulares e
a própria linguagem, que talvez é o
mais antigo dos dispositivos […]
(AGAMBEN, 2009, pg. 40
Por meio de seu uso, o ser
humano consegue se imp
or na ordem
do mundo, conforme este se
apresente. o dominar a língua é
estar em vulnerabilidade constante;
sem a capacidade de exigir,
argumentar, expressar-
se, defender
se, entre outras insubstituíveis ações
sociais, o homem passa a ser um
joguete nas m
ãos dos que detêm os
mecanismos de linguagem (leia
poder).
A família de sinh
a
Fabiano demonstra seu despreparo no
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
árida em que falta do básico ao
supérfluo, sempre uma falta que barra
possibilidade de uma vida digna. Ao
que parece, para além dos bens e
progresso materiais, a miséria e suas
consequências roubam também o
exercício aprofundado das faculdades
comunicativas. A língua, como bem
afirma Giorgio Agamben, é também
Não somente, portanto, as prisões,
os manicômios, o Panóptico, as
escolas, a confissão, as fábricas, as
disciplinas, as medidas jurídicas etc.,
cuja conexão com o poder é num
certo sentido evidente, mas também
a caneta, as escrituras, a literatura, a
filosofia, a agricultura, o cigarro, a
navegação, os computadores, os
por que o –
a própria linguagem, que talvez é o
mais antigo dos dispositivos […]
(AGAMBEN, 2009, pg. 40
-41).
Por meio de seu uso, o ser
or na ordem
do mundo, conforme este se
apresente. o dominar a língua é
estar em vulnerabilidade constante;
sem a capacidade de exigir,
se, defender
-
se, entre outras insubstituíveis ações
sociais, o homem passa a ser um
ãos dos que detêm os
mecanismos de linguagem (leia
-se,
a
Vitória e
Fabiano demonstra seu despreparo no
uso das palavras, do qual possuem
certa consciência de sua importância,
visto que admiram a personagem Seu
Tomás da Bolandeira
uso efetivo da palavra
entanto, não o salva da seca: “Seu
Tomás fugira também, com a seca, a
bolandeira estava parada. E ele,
Fabiano, era como a bolandeira. Não
sabia por que, mas era” (RAMOS,
2013, p. 15). Em outra passagem,
vem
os Fabiano como um sujeito que
“na verdade falava pouco. Admirava as
palavras compridas e difíceis da gente
da cidade, tentava reproduzir algumas,
em vão, mas sabia que elas eram
inúteis e talvez perigosas” (RAMOS,
2013, p. 20).
Esse domínio não
proficient
e no uso e na compreensão
das palavras revela na leitura da obra
uma série de relações produtivas.
Uma delas
possui raízes na
psique humana.
Tentando driblar certo senso
comum da crítica, não defenderemos a
animalização como uma explicação
única para as re
desenrolam no seio daquela família e
nem nas relações desta com o mundo
social. O emudecimento das
personagens, ao que nos parece, pode
ser compreendido de forma mais
238
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
uso das palavras, do qual possuem
certa consciência de sua importância,
visto que admiram a personagem Seu
Tomás da Bolandeira
justamente pelo
uso efetivo da palavra
que, no
entanto, não o salva da seca: “Seu
Tomás fugira também, com a seca, a
bolandeira estava parada. E ele,
Fabiano, era como a bolandeira. Não
sabia por que, mas era” (RAMOS,
2013, p. 15). Em outra passagem,
os Fabiano como um sujeito que
“na verdade falava pouco. Admirava as
palavras compridas e difíceis da gente
da cidade, tentava reproduzir algumas,
em vão, mas sabia que elas eram
inúteis e talvez perigosas” (RAMOS,
Esse domínio não
e no uso e na compreensão
das palavras revela na leitura da obra
uma série de relações produtivas.
possui raízes na
Tentando driblar certo senso
comum da crítica, não defenderemos a
animalização como uma explicação
única para as re
lações que se
desenrolam no seio daquela família e
nem nas relações desta com o mundo
social. O emudecimento das
personagens, ao que nos parece, pode
ser compreendido de forma mais
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
produtiva como uma reação humana
frente à desumanidade que as cerca,
por um
lado; por outro, a falta de uma
linguagem apreendida e depreendida
de uma relação mais formal com as
palavras e as limitações na
interpretação do mundo sugerem uma
crítica social contundente por parte de
Ramos aos próprios mecanismos de
uma sociedade de e
xclusão da qual
ele participou como intelectual,
escritor, político e vítima. Como
intelectual e escritor, Ramos colocou
seu trabalho a serviço de uma reflexão
literária que não se demitiu jamais da
crítica às estruturas de mundo
opressivas e segregadoras;
político, exerceu na prática a atividade
de administrador, quando se tornou
prefeito eleito de Palmeiras dos Índios,
em 1927; e como vítima de um regime
de força e opressão, amargou a prisão
em 1936, no Instituto Penal Cândido
Mendes, na Ilha Grande,
sem provas e inquérito, de
participação na Intentona Comunista
de 1935. Assim, apontamos que as
personagens, pobres de linguagem e,
consequentemente de mundo, são
criações filosófico-
literárias de um
escritor que se preocupou com a
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
produtiva como uma reação humana
frente à desumanidade que as cerca,
lado; por outro, a falta de uma
linguagem apreendida e depreendida
de uma relação mais formal com as
palavras e as limitações na
interpretação do mundo sugerem uma
crítica social contundente por parte de
Ramos aos próprios mecanismos de
xclusão da qual
ele participou como intelectual,
escritor, político e vítima. Como
intelectual e escritor, Ramos colocou
seu trabalho a serviço de uma reflexão
literária que não se demitiu jamais da
crítica às estruturas de mundo
opressivas e segregadoras;
como
político, exerceu na prática a atividade
de administrador, quando se tornou
prefeito eleito de Palmeiras dos Índios,
em 1927; e como vítima de um regime
de força e opressão, amargou a prisão
em 1936, no Instituto Penal Cândido
Mendes, na Ilha Grande,
acusado,
sem provas e inquérito, de
participação na Intentona Comunista
de 1935. Assim, apontamos que as
personagens, pobres de linguagem e,
consequentemente de mundo, são
literárias de um
escritor que se preocupou com a
dimensão human
a e política de seu
tempo.
Walter Benjamin, no ensaio
“Experiência e pobreza” (1994),
sinaliza para a emergência de uma
escassez de experiências
comunicáveis na modernidade. A
comunicação, entendida até então
como o poder de narrar,
crise, como no
caso dos soldados
sobreviventes da Primeira Guerra
Mundial, que retornavam para suas
localidades mudos de relatos. Quanto
a isso, Benjamin produz as seguintes
reflexões:
Os livros de guerra que inundaram o
mercado literário nos dez anos
seguintes não
experiências transmissíveis de boca
em boca. Não, o fenômeno não é
estranho. Porque nunca houve
experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência
estratégica pela guerra de
trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a exper
pela fome, a experiência moral pelos
governantes (BENJAMIN, 1994, p.
115).
Mesmo com histórias a contar,
oficiais sobreviventes
conseguiam verbalizar suas vivências.
Isso não se deu porque se tornaram
sujeitos animalizados o
perderam sua capacidade de falar,
mas sim por conta de uma “ferida na
memória”, conforme Márcio
239
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
a e política de seu
Walter Benjamin, no ensaio
“Experiência e pobreza” (1994),
sinaliza para a emergência de uma
escassez de experiências
comunicáveis na modernidade. A
comunicação, entendida até então
como o poder de narrar,
-se em
caso dos soldados
sobreviventes da Primeira Guerra
Mundial, que retornavam para suas
localidades mudos de relatos. Quanto
a isso, Benjamin produz as seguintes
Os livros de guerra que inundaram o
mercado literário nos dez anos
seguintes não
continham
experiências transmissíveis de boca
em boca. Não, o fenômeno não é
estranho. Porque nunca houve
experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência
estratégica pela guerra de
trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a exper
iência do corpo
pela fome, a experiência moral pelos
governantes (BENJAMIN, 1994, p.
Mesmo com histórias a contar,
oficiais sobreviventes
da guerra não
conseguiam verbalizar suas vivências.
Isso não se deu porque se tornaram
sujeitos animalizados o
u porque
perderam sua capacidade de falar,
mas sim por conta de uma “ferida na
memória”, conforme Márcio
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
Seligmann-
Silva define o trauma,
gravada durante o tempo de luta nos
campos de batalha e nas trincheiras. O
trauma diante do evento catastrófico
da gue
rra acabou por emudecer os
soldados. Para Benjamin, isso revela a
pobreza da experiência de um mundo
em que os atos de fala estão sendo
silenciados por conta de um
acontecimento que ultrapassa a
possibilidade de contar: a experiência
da dizimação em massa.
Pensar o trauma no romance de
Ramos requer relativizar e/ou ir além
da categórica classificação das
personagens principais como seres
zoomorfizados. As sucessivas secas e
o drama histórico dos retirantes são da
ordem do trauma, mas não do mesmo
tipo que
Benjamin apontara em sua
incursão pela pobreza dos relatos de
experiências dos soldados retornados
da guerra. Seligmann-
Silva entende a
experiência traumática como “um dos
conceitos-
chave da psicanálise”, e o
tratamento psicanalítico
pensament
o de Seligmann
função do trabalho de recomposição
do evento traumático. O que é o
trauma? “O trauma é justamente uma
ferida na memória” (SELIGMANN
SILVA. 2000. p. 84).
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
Silva define o trauma,
gravada durante o tempo de luta nos
campos de batalha e nas trincheiras. O
trauma diante do evento catastrófico
rra acabou por emudecer os
soldados. Para Benjamin, isso revela a
pobreza da experiência de um mundo
em que os atos de fala estão sendo
silenciados por conta de um
acontecimento que ultrapassa a
possibilidade de contar: a experiência
Pensar o trauma no romance de
Ramos requer relativizar e/ou ir além
da categórica classificação das
personagens principais como seres
zoomorfizados. As sucessivas secas e
o drama histórico dos retirantes são da
ordem do trauma, mas não do mesmo
Benjamin apontara em sua
incursão pela pobreza dos relatos de
experiências dos soldados retornados
Silva entende a
experiência traumática como “um dos
chave da psicanálise”, e o
resumido o
o de Seligmann
existe em
função do trabalho de recomposição
do evento traumático. O que é o
trauma? “O trauma é justamente uma
ferida na memória” (SELIGMANN
-
Fabiano e sua família chegam
fazenda em que grande parte da
narrativa se passa após vaguearem
famintos, fracos e sedentos (“a
experiência do corpo pela fome”), sem
a certeza de que encontrariam refúgio.
Se para os oficiais foi a guerra que
provocou a mudez e a pobreza dos
relatos, pa
ra as personagens de
secas
é possível entender a seca
como um fenômeno de um meio em
que se o evento traumático que
vitima um conjunto de indivíduos: o
trauma atravessa a fala desses seres
e aprofunda a ferida da memória de
que trata Seligmann.
N
o tempo presente da obra, a
seca é, em grande parte da narrativa,
passado, habitando o universo das
memórias traumáticas; ou futuro,
assombrando as possibilidades de
vida por vir. Em um dos poucos
momentos em que a seca é
experimentada no presente da
narra
tiva, encontramos sinh
refletindo sobre um evento doloroso:a
necessidade de matar um dos animais
de estimação da família para alimentar
a família, o papagaio, mudo, assim
como todos ali eram:
Sinha Vitória, queimando o assento
no chão, as mãos cru
segurando os joelhos ossudos,
240
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
Fabiano e sua família chegam
à
fazenda em que grande parte da
narrativa se passa após vaguearem
famintos, fracos e sedentos (“a
experiência do corpo pela fome”), sem
a certeza de que encontrariam refúgio.
Se para os oficiais foi a guerra que
provocou a mudez e a pobreza dos
ra as personagens de
Vidas
é possível entender a seca
como um fenômeno de um meio em
que se o evento traumático que
vitima um conjunto de indivíduos: o
trauma atravessa a fala desses seres
e aprofunda a ferida da memória de
o tempo presente da obra, a
seca é, em grande parte da narrativa,
passado, habitando o universo das
memórias traumáticas; ou futuro,
assombrando as possibilidades de
vida por vir. Em um dos poucos
momentos em que a seca é
experimentada no presente da
tiva, encontramos sinh
a Vitória
refletindo sobre um evento doloroso:a
necessidade de matar um dos animais
de estimação da família para alimentar
a família, o papagaio, mudo, assim
Sinha Vitória, queimando o assento
no chão, as mãos cru
zadas
segurando os joelhos ossudos,
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
pensava em acontecimentos antigos
que não se relacionavam: festas de
casamento, vaquejadas, novenas,
tudo numa confusão. Despertara
um grito áspero, vira de perto a
realidade e o papagaio, que andava
furioso, com os
s apalhetados,
numa atitude ridícula. Resolvera de
supetão aproveitá-
lo como alimento
e justificara-
se declarando a si
mesma que ele era mudo e inútil.
Não podia deixar de ser mudo..
Ordinariamente a família falava
pouco. E depois daquele desastre
viviam t
odos calados, raramente
soltavam palavras curtas. O louro
aboiava, tangendo um gado
inexistente, e latia arremedando a
cachorra (RAMOS, 2013, p. 11
É possível ver na superfície do
texto o modo como a seca e seus
desdobramentos afetaram a fala de
tod
as as personagens: “E depois
daquele desastre viviam todos
calados, raramente soltavam palavras
curtas”. O sol ardente que enxugava
do barro toda água também secou da
família a linguagem. Embora tendo o
que dizer uns aos outros, o conteúdo a
ser dito, dada
sua carga dolorosa,
evidenciou a pobreza de diálogos e
não o seu enriquecimento diante da
experiência traumática da morte do
animal de estimação. Entretanto, o que
não é dito é pensado. Por meio do
narrador, o leitor de
Vidas secas
acesso às
reflexões das personagens
e pode atestar que de seus
pensamentos podemos detectar
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações
pensava em acontecimentos antigos
que não se relacionavam: festas de
casamento, vaquejadas, novenas,
tudo numa confusão. Despertara
-a
um grito áspero, vira de perto a
realidade e o papagaio, que andava
s apalhetados,
numa atitude ridícula. Resolvera de
lo como alimento
se declarando a si
mesma que ele era mudo e inútil.
Não podia deixar de ser mudo..
Ordinariamente a família falava
pouco. E depois daquele desastre
odos calados, raramente
soltavam palavras curtas. O louro
aboiava, tangendo um gado
inexistente, e latia arremedando a
cachorra (RAMOS, 2013, p. 11
-12).
É possível ver na superfície do
texto o modo como a seca e seus
desdobramentos afetaram a fala de
as as personagens: “E depois
daquele desastre viviam todos
calados, raramente soltavam palavras
curtas”. O sol ardente que enxugava
do barro toda água também secou da
família a linguagem. Embora tendo o
que dizer uns aos outros, o conteúdo a
sua carga dolorosa,
evidenciou a pobreza de diálogos e
não o seu enriquecimento diante da
experiência traumática da morte do
animal de estimação. Entretanto, o que
não é dito é pensado. Por meio do
Vidas secas
tem
reflexões das personagens
e pode atestar que de seus
pensamentos podemos detectar
construções lógicas, lembranças
complexas e desejos profundos. É por
este viés que compreendemos o jogo
narrativo de Ramos: mediação entre a
possibilidade do narrador de se
expressar com mais propriedade do
que qualquer uma das personagens e
a incapacidade de cada uma das
criaturas retirantes de dar conta, pelo
relato, daqueles eventos traumáticos
por que passam. Esta mediação entre
o narrador e o leitor é necessária, pois
o
leitor poderia apontar uma falha no
critério da verossimilhança, caso a fala
dos quatro membros da família não
fosse negociada por um narrador que
a princípio tem o dom de traduzir um
pouco do que a linguagem precária
das personagens não teria como
expressar.
Como seres expostos à
violência traumática de uma existência
de seca, exílios e privações, Fabiano,
sinha Vitória, o menino mais novo e o
menino mais velho têm algo em
comum com as vítimas do Holocausto.
A tensão constante entre vida e morte
na obra,
acessível pela análise da
desumana forma de vida a que estão
submetidos os retirantes, permite que
sejam feitas aproximações entre
Shoah
e sertão nordestino brasileiro,
241
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
construções lógicas, lembranças
complexas e desejos profundos. É por
este viés que compreendemos o jogo
narrativo de Ramos: mediação entre a
possibilidade do narrador de se
expressar com mais propriedade do
que qualquer uma das personagens e
a incapacidade de cada uma das
criaturas retirantes de dar conta, pelo
relato, daqueles eventos traumáticos
por que passam. Esta mediação entre
o narrador e o leitor é necessária, pois
leitor poderia apontar uma falha no
critério da verossimilhança, caso a fala
dos quatro membros da família não
fosse negociada por um narrador que
a princípio tem o dom de traduzir um
pouco do que a linguagem precária
das personagens não teria como
Como seres expostos à
violência traumática de uma existência
de seca, exílios e privações, Fabiano,
sinha Vitória, o menino mais novo e o
menino mais velho têm algo em
comum com as vítimas do Holocausto.
A tensão constante entre vida e morte
acessível pela análise da
desumana forma de vida a que estão
submetidos os retirantes, permite que
sejam feitas aproximações entre
e sertão nordestino brasileiro,
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
embora saibamos que o evento
catastrófico do Holocausto judeu é
incomparável como poten
cialidade da
barbárie.
Diante de uma vida seca,
mísera e cujas memórias traumáticas
remetem ao medo, tais como
fantasmas que povoam as mentes e
assombram os futuros, como poderiam
Fabiano e sinha Vitória expressar a
potência de sua humanidade? Diante
de u
m futuro incerto, tendo nos
ombros a responsabilidade de
alimentar e proteger os filhos, que tipo
de linguagem poderiam ter aqueles
entes marcados pelo sol sanguíneo e
pelas últimas viagens sobre o chão
rachado do agreste? Algumas palavras
de Seligmann-Sil
va apontam para as
impossibilidades de se retratar as
experiências vividas pelos
traumatizados da Shoah:
O historiador da
Shoah
esse duplo mandamento
contraditório: por um lado, a
necessidade de escrever sobre esse
evento, e, por outro lado, a
consciência da impossibilidade de
cumprir essa tarefa por falta de um
aparato conceitual
evento, ou seja, sob o qual ele
poderia ser subsumido
(SELIGMANN-
SILVA, 2000, p. 78).
Como vemos, o problema em
Vidas secas
possui similaridades com
a
observação de Seligmann, mas o
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
embora saibamos que o evento
catastrófico do Holocausto judeu é
cialidade da
Diante de uma vida seca,
mísera e cujas memórias traumáticas
remetem ao medo, tais como
fantasmas que povoam as mentes e
assombram os futuros, como poderiam
Fabiano e sinha Vitória expressar a
potência de sua humanidade? Diante
m futuro incerto, tendo nos
ombros a responsabilidade de
alimentar e proteger os filhos, que tipo
de linguagem poderiam ter aqueles
entes marcados pelo sol sanguíneo e
pelas últimas viagens sobre o chão
rachado do agreste? Algumas palavras
va apontam para as
impossibilidades de se retratar as
experiências vividas pelos
Shoah
fica preso a
esse duplo mandamento
contraditório: por um lado, a
necessidade de escrever sobre esse
evento, e, por outro lado, a
consciência da impossibilidade de
cumprir essa tarefa por falta de um
à altura” do
evento, ou seja, sob o qual ele
poderia ser subsumido
SILVA, 2000, p. 78).
Como vemos, o problema em
possui similaridades com
observação de Seligmann, mas o
drama das personagens é de outra
natureza: Em
Vidas secas
outra possibilidade de se escrever
sobre o trauma vivido, a não ser como
faz Ramos, ao criar um narrador
heterodiegético que pode dar conta
daquele unive
rso traumático sem ferir
de morte as regras da
verossimilhança, que de outra forma
deixariam a obra em estado de
fragilidade em uma leitura mais atenta.
O problema dos sobreviventes da
Shoah
, em sua grande maioria, era da
ordem da dor de exprimir o
inexpri
mível e da vergonha por terem
sobrevivido, enquanto parentes e
amigos pereceram diante da barbárie.
Talvez, ciente dessa limitação
intransponível que vem a ser a
representação do trauma de modo
integral, Graciliano Ramos tenha
optado por um narrador não
personagem, ou seja, alguém que trate
da dor como fruto da violência que
outros viveram, sem a preocupação
com a exatidão do relato, visto que a
memória é sempre falha, ou com os
sentimentos perturbadores de quem
passou pela experiência de um
sofrimento at
roz. É justamente nessa
tentativa de se construir um
“cercamento em torno dos sem
242
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
drama das personagens é de outra
Vidas secas
, não haveria
outra possibilidade de se escrever
sobre o trauma vivido, a não ser como
faz Ramos, ao criar um narrador
heterodiegético que pode dar conta
rso traumático sem ferir
de morte as regras da
verossimilhança, que de outra forma
deixariam a obra em estado de
fragilidade em uma leitura mais atenta.
O problema dos sobreviventes da
, em sua grande maioria, era da
ordem da dor de exprimir o
mível e da vergonha por terem
sobrevivido, enquanto parentes e
amigos pereceram diante da barbárie.
Talvez, ciente dessa limitação
intransponível que vem a ser a
representação do trauma de modo
integral, Graciliano Ramos tenha
optado por um narrador não
personagem, ou seja, alguém que trate
da dor como fruto da violência que
outros viveram, sem a preocupação
com a exatidão do relato, visto que a
memória é sempre falha, ou com os
sentimentos perturbadores de quem
passou pela experiência de um
roz. É justamente nessa
tentativa de se construir um
“cercamento em torno dos sem
-
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
palavras”, como bem afirma Paul
Celan, que a obra poética se torna
uma forma de tratar dos sobreviventes
da Shoah
(Cf. SELIGMANN
2000, p. 97). É com dificuldade que
um
a vítima do trauma consegue relatar
os fatos vividos. Torna-
se necessário
ao passo que também é incontornável
, ao que parece, um determinado
afastamento do fato. Para Celan, tal
distanciamento na representação do
trauma é uma estratégia da arte. Em
Vidas Secas
, a escolha por um
determinado tipo de narrador figura
essa aproximação distanciada:
enquanto terceira pessoa do discurso
(muito embora tal definição não seja
absoluta e não nos pareça a mais
adequada), ouvimos, através do
narrador, as personagens;
não estão no pleno uso das palavras,
visto que são tuteladas, como vimos
anteriormente, por essa instância
narrativa que as precede.
Em suma, emudecida pela dor e
presa das muitas formas de violência,
a família que protagoniza
permi
te que problematizemos os
efeitos da violência na psique humana.
Seria esse, então, o trabalho da
escuta, próprio da psicanálise. Sob o
imperativo de um mundo que os
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
palavras”, como bem afirma Paul
Celan, que a obra poética se torna
uma forma de tratar dos sobreviventes
(Cf. SELIGMANN
-SILVA,
2000, p. 97). É com dificuldade que
a vítima do trauma consegue relatar
se necessário
ao passo que também é incontornável
, ao que parece, um determinado
afastamento do fato. Para Celan, tal
distanciamento na representação do
trauma é uma estratégia da arte. Em
, a escolha por um
determinado tipo de narrador figura
essa aproximação distanciada:
enquanto terceira pessoa do discurso
(muito embora tal definição não seja
absoluta e não nos pareça a mais
adequada), ouvimos, através do
narrador, as personagens;
mas elas
não estão no pleno uso das palavras,
visto que são tuteladas, como vimos
anteriormente, por essa instância
Em suma, emudecida pela dor e
presa das muitas formas de violência,
Vidas secas
te que problematizemos os
efeitos da violência na psique humana.
Seria esse, então, o trabalho da
escuta, próprio da psicanálise. Sob o
imperativo de um mundo que os
ultrapassa e subjuga, definir Fabiano e
sua família como humanos
animalizados pode sugerir
de violência: simbólica e crítico
Se entendermos que nestes
sujeitos reside também a capacidade
de não revidar, de considerar o não
assassinato, de relevar a agressão
sofrida
mesmo que isso se sob o
peso de um respeito ou medo em
relação a uma ordem superior e a um
poder invisível, quer seja o da Lei, do
Estado, da Polícia
perdão se aproximam do excelso e se
enredam em uma ordem de que os
demais
o fazendeiro, o soldado
amarelo, a polícia, o governo etc.
excluem, por incapacidade de seus
espíritos cultos e letrados de vencerem
as iniquidades de que se revestem.
Fabiano e sua família podem ser lidos
como seres exemplares no sentido dos
espíritos que, como vimos com
Levinas (2016, p. 65), nos obrigam a
olhar
de forma crítica para uma
sociedade “que perde o contato vivo
com seu verdadeiro ideal de liberdade
para aceitar suas formas degeneradas
e que, não vendo que esse ideal exige
esforço, rejubila-
se, sobretudo com o
que ele traz de comodidade [...]”. Eles
se
tornam, deste modo, mais próximos
243
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
ultrapassa e subjuga, definir Fabiano e
sua família como humanos
animalizados pode sugerir
outra forma
de violência: simbólica e crítico
-teórica.
Se entendermos que nestes
sujeitos reside também a capacidade
de não revidar, de considerar o não
assassinato, de relevar a agressão
mesmo que isso se sob o
peso de um respeito ou medo em
relação a uma ordem superior e a um
poder invisível, quer seja o da Lei, do
esses sujeitos do
perdão se aproximam do excelso e se
enredam em uma ordem de que os
o fazendeiro, o soldado
amarelo, a polícia, o governo etc.
se
excluem, por incapacidade de seus
espíritos cultos e letrados de vencerem
as iniquidades de que se revestem.
Fabiano e sua família podem ser lidos
como seres exemplares no sentido dos
espíritos que, como vimos com
Levinas (2016, p. 65), nos obrigam a
de forma crítica para uma
sociedade “que perde o contato vivo
com seu verdadeiro ideal de liberdade
para aceitar suas formas degeneradas
e que, não vendo que esse ideal exige
se, sobretudo com o
que ele traz de comodidade [...]”. Eles
tornam, deste modo, mais próximos
OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de; AZEVEDO, Isabela Cristina Rodrigues.
Corpo e mente sob violências: da dor ao silêncio, em "Vidas secas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 225-245
, out. 2019 a março 2020.
de uma ideia de caritas
, solidariedade
e compartilhamento, elementos que
faltam à sociedade descrita pelo
narrador de Vidas secas
todo. Daí a grandeza de Fabiano e dos
seus.
Tal como Benjamin expusera, a
incapaci
dade de falar é resultado das
experiências empobrecedoras e
traumáticas, como bem apontou
Seligmann-
Silva. O silêncio, deste
modo, pode ser lido como o ximo
de concentração de diversas falas ou
ainda, como um silêncio que grita: por
socorro, pela atenção
aos sujeitos
enclausurados e a seus corpos
subjugados.
Referências
bibliográficas
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O que é
dispositivo? In:
O que é
contemporâneo? e outros ensaios.
Trad. Vinícius Nicastro Honesko.
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Trad.
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www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações
, solidariedade
e compartilhamento, elementos que
faltam à sociedade descrita pelo
, como um
todo. Daí a grandeza de Fabiano e dos
Tal como Benjamin expusera, a
dade de falar é resultado das
experiências empobrecedoras e
traumáticas, como bem apontou
Silva. O silêncio, deste
modo, pode ser lido como o ximo
de concentração de diversas falas ou
ainda, como um silêncio que grita: por
aos sujeitos
enclausurados e a seus corpos
bibliográficas
O que é
O que é
contemporâneo? e outros ensaios.
Trad. Vinícius Nicastro Honesko.
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Catástrofe e representação
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Pode o
Trad. Sandra Regina
cos Pereira
Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010
.
245
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações
da Violência na Literatura")
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
Relatos
DOI: https://doi.org/
10.22409/pragmatizes
Resumo: A escritora Eliana
Alves
imaginação criadora para
denunciar,
Valongo (2018), do ponto de
vista
que até hoje deixa sequelas na
que nos marca.
Palavras-chave: escravidão;
violência;
Relatos e travessias en Eliana
Resumen: La escritora Eliana
imaginación creativa para
denunciar,
valongo (2018), desde el punto
de
en Brasil que hasta el a de
hoy
profunda desigualdad social que
Palabras clave: esclavitud;
violencia;
Reports and Crossings by
Eliana
Abstract: The writer Eliana
Alves
imagination so as to point out,
in
(2018), the violence of slavery
colonial economic model based
in
Keywords: slavery ; violence ;
memory
1
Maria Cristina Batalha.
Doutora
professora do Instituto de Letras
cbatalh@gmail.com
Texto recebido em 07/01/2020
e aceito para publicação em 2
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Relatos
e travessias em Eliana Alves Cruz
10.22409/pragmatizes
.v10i18.40323
Maria
Cristina
Alves
Cruz reúne documentos históricos,
relatos
denunciar,
em seus romances Água de barrela (2015)
vista
de quem viveu esse processo, a violência da
sociedade brasileira e está na raiz da
profunda
violência;
relatos de memória.
Alves Cruz
Alves Cruz reúne documentos históricos,
relatos
denunciar,
en sus novelas Gua de barril (2015) y El
crimen
de
vista de quienes vivieron este proceso, la
violencia
hoy
deja sequelas en la sociedad brasileña y
está
nos marca.
violencia;
informes de memoria.
Eliana
Alves Cruz
Alves
Cruz gathers historical documents, memory
in
her novels Água de barrela (2015) and O
crime
in Brazil that even today leaves sequels in
Brazilian
in
slavery remains as a root of our social
inequality.
memory
reports.
Doutora
em Literatura Comparada pela Universidade
Federal
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil.
e aceito para publicação em 2
1/01/2020.
246
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Cristina
Batalha
1
relatos
de memória e
e O crime do cais do
escravidão no Brasil
profunda
desigualdade social
relatos
de memoria e
crimen
del muelle del
violencia
de la esclavitud
está
en la raíz de la
reports and creative
crime
do cais do Valongo
Brazilian
society. This
inequality.
Federal
Fluminense,
Brasil.
E-mail:
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
Relatos
Longe de ser
um
desestimulante em
função
de classe ou de vergonha
pele, que pairava como
social e psicológico para
anterior, as escritoras
negras
últimos anos, no
Brasil,
palavra para revisitar a
sua
denunciar a violência
perpetrada
tráfico de pessoas de um
continente
outro e se dedicam a
contar
da escravidão e da
resistência.
percurso de humilhação,
de
e luta torna-se, ao
contrário,
de orgulho, de resgate de
social e de retomada de
seu
História e na sociedade
brasileira.
é o caso de Eliana
Alves
coloca sua literatura a
serviço
causa que tem em sua
origem
das violências mais
agudas
contra a população do
africano. A proposta do
presente
é a de examinar os dois
romances
premiada escritora, Água
(2015) e O crime do cais
(2018)
2
, romances
históricos
escravidão, fruto de
uma
2
Para efeito de referência aos
dois
no corpo do texto, optamos
pelas
AB e CCV, respectivamente.
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Relatos
e travessias em Eliana Alves Cruz
um
motivo
função
da origem
pela cor da
um entrave
a geração
negras
dos
tomam a
sua
história,
perpetrada
pelo
continente
a
contar
a história
resistência.
Este
de
sofrimento
contrário,
um motivo
uma dívida
seu
lugar na
brasileira.
Este
Alves
Cruz, que
serviço
de uma
origem
uma
agudas
praticadas
continente
presente
artigo
romances
da
de barrela
do Valongo
históricos
sobre a
uma
análise
dois
romances,
pelas
abreviações:
documental rigorosa,
as injustiças atuais
são
consequência do
passado
marcado pela
violência
espoliação. Nos
dois
enredos contam
sobre
compulsória, falam
de
identidades forjadas
de racismo, ainda
tão
a-dia da sociedade
brasileira,
de um belo
exercício
historiográfica que
conjuga
e imaginação.
Nos dois
romances,
a relação entre
memória
individuais e
coletivas,
representações
literárias
fértil para suas
configurações,
segundo Antoine
Compagnon
p. 50),
a literatura
percorre
experiência que
negligenciam,
arruína
limpa e a má-fé,
violentamente,
mas
obstinado [...]
visando
verdades que a
introduzir
certezas a dúvida,
interrogação.
Cabe então à
a história a partir de
não é mais
do
vislumbramos o
247
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
que mostra como
são
o resultado e a
passado
colonial
violência
e pela
dois
casos, os
sobre
essa migração
de
replasmação de
pela diáspora e
tão
presente no dia-
brasileira,
através
exercício
de metaficção
conjuga
documento
romances,
estreita-se
memória
e história
coletivas,
construindo nas
literárias
um terreno
configurações,
pois,
Compagnon
(2009,
percorre
regiões da
outros discursos
arruína
a consciência
resiste à tolice não
mas
de modo sutil e
visando
menos a enunciar
introduzir
em nossas
a ambiguidade e a
literatura revisitar
um ângulo novo:
do
centro que
passado da
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
colonização e da
escravidão
mas deslocando nosso
olhar
margem e falando a partir
lugar. Só assim
encontramos
respostas para o passado
construir perspectivas de
futuro.
sentido, faço minhas as
palavras
Vanessa Ribeiro
Teixeira,
estudo sobre Ungulani
Ba
mas que também se
romances de Eliana:
“Enquanto
discurso do poder estiver
império da barbárie,
no
construção da história
sobre ruínas, obras
apresentadas aqui
recriarão
sufocadas" (TEIXEIRA,
2019,
Com efeito, durante
comemorativa dos 131
anos
Áurea, o deputado
monarquista,
Philippe de Orleans e
Bragança,
PSL, partido do atual
presidente
Brasil, e trineto da
princesa
declarou que “a
escravidão
antiga quanto a
humanidade,
um aspecto da natureza
humana”.
naturalizar o horror, nada
que exibir a matriz da
casa
senzala da qual o Brasil
não
ainda se livrar. Daí a
premência
vozes que venham a
contribuir
reflexão sobre os
modos
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
escravidão
no Brasil,
olhar
para a
desse novo
encontramos
as
e podemos
futuro.
Neste
palavras
de
Teixeira,
em seu
Ba
Ka Khosa,
aplica aos
“Enquanto
o
atrelado ao
no
qual a
se sustenta
como as
recriarão
verdades
2019,
p. 311).
uma sessão
anos
da Lei
monarquista,
Luiz
Bragança,
do
presidente
do
princesa
Isabel,
escravidão
é tão
humanidade,
é quase
humana”.
Ao
mais fez do
casa
-grande &
não
conseguiu
premência
de
contribuir
para a
modos
de vida
atravessados por
questões
gênero,
sexualidades,
territórios diversos,
entre
caminhos que
desenham
assimetria, violência
e
marcas
permanecem
Nos diversos
“brasis”,
como as práticas
racistas
longa trajetória atrás
de
a ser reatualizadas,
relações sociais
brasileiras,
pela desigualdade,
bem
da democracia racial
que durante anos
embalaramo
imaginário.
Nesse
movimento
de um lugar de fala,
assume um papel
potencialização
desses
nos quais:
[…] o tornar-
se
processo
social
identidades, de
pois reside na
definir pelo
olhar
rompimento
embranquecimento:
autodefinição,
a
recuperação da
cultural
negro
posicionamento
mundo para
exercer
protagonista
de
comprometido
com
do racismo.
(PONS
2014, p. 973)
Eliana Alves
Cruz,
formação, vem se
destacando
romancista,
inicialmente
248
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
questões
de raça,
sexualidades,
classe e
entre
tantos outros
desenham
espaços de
e
opressões cujas
vivas entre nós.
“brasis”,
cabe entender
racistas
têm uma
de
si e continuam
sustentando as
brasileiras,
marcadas
bem
longe do mito
e da cordialidade
embalaramo
nosso
movimento
de retomada
a questão racial
central para a
desses
modos de vida
se
negra anuncia um
social
de construção de
resistência política,
recusa
de se deixar
olhar
do outro e no
com o
embranquecimento:
significa a
a
valorização e a
história e do legado
negro
traduzindo um
político de estar no
exercer
o papel de
de
um devir histórico
com
o enfrentamento
(PONS
CARDOSO,
Cruz,
jornalista de
destacando
como
inicialmente
com a
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
saga Água de barrela,
resultado
cinco anos de
pesquisa
história de sua família
que
aos tempos da
escravidã
seus antepassados
foram
Moçambique e
compulsoriamente para
o
autora recolhe
fragmentos
conversas ouvidas nas
murmuradas junto ao
fogão
tanques de lavar roupa,
reúne
de jornal, fotos de
família
deixados pelo tempo para
nos
trajetória de seus
antepassados
dias de hoje, percorrendo
3
história de uma família
negra
Em 2015, o
contemplado com o
primeiro
Prêmio Oliveira
Silveira,
promovido pela
Fundação
Palmares, que o
publicou
seguinte. O livro teve
uma
edição, publicado pela
Malê
No mesmo ano, é também
segundo romance, O
crime
Valongo, pela mesma
editora,
2018. Além de
romancista,
também se destaca
como
contista, tendo
contribuído,
com dois contos para a
dos Cadernos, entre eles
de ficção científica
intitulada
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
resultado
de
pesquisa
sobre a
que
remonta
escravidã
o, quando
foram
tirados de
trazidos
o
Brasil. A
fragmentos
de
senzalas,
fogão
e aos
reúne
recortes
família
e objetos
nos
contar a
antepassados
até os
3
séculos de
negra
no Brasil.
livro foi
primeiro
lugar no
Silveira,
concurso
Fundação
Cultural
publicou
no ano
uma
segunda
Malê
Editora.
publicado o
crime
do cais do
editora,
em
romancista,
a autora
como
poeta e
contribuído,
em 2017,
40ª edição
a narrativa
intitulada
Oitenta e
oito”. Ainda neste
mesmo
trabalho seu
incluído
antologia Novos
poetas
demais poemas
antologias
diversas.
integrou, por
exemplo,
série Cadernos
Negros
com alguns poemas
seus
Carolina
Maria
das primeiras
mulheres
levantar a sua voz do
mulher subjugada e
como precursora de
toda
novas escritoras
negras
sua voz e sua pena
a
necessária revisão
colonização no
Brasil.
de Despejo Diário
de
de 1960, Carolina
necessidade de
denúncia
de subalternidade
cotidiano das
mulheres
brasileiras. Assim,
Eurídice de
Figueiredo,
uma nação
homogênea,
grandes intérpretes
excluía negros e
indígenas
no amálgama
chamado
mestiço', o que
vemos
eclosão de vozes
que
outras histórias,
outras
a nação.
(FIGUEIREDO,
249
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mesmo
ano, teve um
incluído
na consagrada
poetas
e outros
publicados em
diversas.
Em 2016,
exemplo,
a edição 39 da
Negros
, contribuindo
seus
.
Maria
de Jesus, uma
mulheres
negras a
ponto de vista da
excluída, figura
toda
uma leva de
negras
que colocam
a
serviço de uma
da história da
Brasil.
Em seu Quarto
de
uma Favelada,
apontava para a
denúncia
da condição
presente no
mulheres
negras
como adverte
Figueiredo,
"em vez de
homogênea,
criada pelos
do Brasil, que
indígenas
ao diluí-los
chamado
'Brasil
vemos
agora é a
que
narrativizam
outras
versões sobre
(FIGUEIREDO,
2013, p. 152)
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
Como último país
do
abolir a escravidão, o
Brasil
ainda hoje, as marcas
dessa
de violência exercida
população negra. A fala
geração de escritoras
negras
se a reexaminar suas
história e seus valores,
não
ponto de vista da história
sim para recompor o lugar
obliterado pelos donos do
poder.
O romance Água
percorre trezentos anos
notadamente de
mulheres,
chegaram para trabalhar
em
e casas de família, e que
sobreviveram
lavando roupa para
famílias
garantindo o
sustento
sobrevivência de filhos
e
situações de
exploração,
humilhação. E o título
do
remete a essa atividade,
pois
significa a mistura de
água
madeira que era
queimada
fogueiras e que servia
para
roupa. Damiana é a
personagem
central da narrativa e é à
sua
acontece uma reunião da
comemorar seu
aniversário
anos. Desse encontro,
memória de uma história
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
do
Ocidente a
Brasil
carrega,
dessa
história
sobre a
dessa nova
negras
propõe-
raízes,
sua
não
mais do
oficial, mas
que lhes foi
poder.
de barrela
de história,
mulheres,
que aqui
em
engenhos
sobreviveram
famílias
brancas e
sustento
e a
e
netos em
miséria e
do
romance
pois
“barrela”
água
e cinza da
queimada
nas
para
alvejar a
personagem
sua
volta que
família para
aniversário
de cem
relatos de
individual e
coletiva de todo
evocados,
lembrando
várias gerações
lavadeiras, como
dessas histórias de
quando chegam os
convivas,
observa que, para a
festa,
impecavelmente
vestidos
Uma fina
ironia.
aquela ideia
de
branco?Gostara
peles negras
contraste.
Preto
vivido
intensamente
bicolor.
Finalmente
chegara.
Quanto
(AB, 2018, p.
16)
Damiana
viveu
falecendo em
1993.
lembranças que
trazem,
relatos esparsos e
fragmentados,
facultaram à
narradora
dessa história, esses
da vida” (p. 305) :
- Mas tia, me
conte
narradora. -
Calma,
que você vier
alguma coisa.
Às
eu me lembro
de
que você me
lembrando…
Eu?
uma menina.
2018, p. 305)
Misturados à
narrativa,
fotos de família,
fotos
emblemáticos que
seus parentes,
Moçambique, e a
árvore
250
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
um povo são
lembrando
os tempos de
de mulheres
marca
indelével
vida. Por isso,
convivas,
Damiana
festa,
todos estão
vestidos
de branco:
De quem teria sido
de
vestir todos de
bastante, pois as
faziam um belo
Preto
e branco… Tinha
intensamente
esse mundo
Finalmente
o cansaço
Quanto
tempo ainda teria?
16)
até os 105 anos,
1993.
São suas
trazem,
em forma de
fragmentados,
que
narradora
puxar o fio
“pedaços miúdos
conte
mais!, insistia a
Calma,
filha. Sempre
aqui, me pergunte
Às
vezes você sai e
de
tudo. A cada dia
pergunta vou me
Eu?
Eu era apenas
uma menina… (AB,
narrativa,
surgem
fotos
de objetos
acompanharam
oriundos de
árvore
genealógica
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
da autora que nos
permite
as diversas relações de
Através desses relatos de
romance reúne muitas
histórias
antepassados negros
da
trazidos à força para
servirem
de obra barata no
trabalho
plantações dos
aristocratas
que lucravam e viviam à
base
e sangre negro.
Essas
remontam a essa
travessia
África, território de
cruzamento
várias culturas, línguas,
mitos, mas também de
muitas
pelo poder, o que
favoreceu
de pessoas que eram
escravizadas
trazidas para o Brasil,
chegando
século XX, quando a
luta
recuperar a dignidade de
e de uma cor de pele.
Antecipando
romance, em "Nota da
Autora",
escreve em forma de
poema:
Não queremos
mais
embranquece a
negra
ser
Não queremos
mais
constante
apagamento
terra molhada, suada,
encantada…
Queremos os
remendos
nas tramas dos anos
sofridos, amados,
apaixonadamente
vividos. (AB, 2018, p.
12)
Seu antepassado
1850, a Bahia, quando o
tráf
declarado ilegal, mas
continuava
praticado livremente.
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
permite
identificar
parentesco.
memória, o
histórias
dos
da
escritora,
servirem
de mão
trabalho
das
aristocratas
brasileiros,
base
de suor
Essas
histórias
travessia
forçada de
cruzamento
de
religiões e
muitas
lutas
favoreceu
a captura
escravizadas
e
chegando
ao
luta
é para
uma cultura
Antecipando
o
Autora",
Eliana
poema:
mais
aquilo que
negra
maneira de
mais
o lento e
apagamento
da cor de
encantada…
remendos
dos panos,
apaixonadamente
12)
chegou
em
tráf
ico era
continuava
a ser
Depois de uma
parecida com
a
acordados no
caminharam
quilômetros
até
olhou
ligeiramente
seria a
última
continente que
sua
(AB, 2018, p.
25)
registro
valores sociais
títulos de
nobreza)
costumes
maçambicanos:
A terra é negra.
o pé. Ela é
massapê.
cor muito
escura
de anos de
decomposição
perdido na
eternidade.
nus que
amassavam
confundiam
com
preta. Ouro
negro
negro de carne.
Tudo isso foi
deixado
em franco
desprezo
hierarquias,
agrupamentos
crenças dos
povos
obrigados à
travessia
dentro dos navios
primeiros a
chegar
Shangokunle, que
é
Firmino, e sua
cunhada
grávida de seu irmã
o
dão o nome de
Helena,
região do reino
de
sobrevivem aos
tormentos
negreiro, dentro dos
são infinitas,
deixando
251
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
espera no depósito
a
eternidade, foram
meio da noite e
cerca de dois
o embarque. Akin
ligeiramente
para trás. Esta
última
imagem daquele
sua
retina registraria.”
25)
registro
dos diferentes
de prestígio (os
nobreza)
e de
maçambicanos:
Ela se amassa com
massapê.
Um chão de
escura
formado milhões
decomposição
do granito
eternidade.
(…) Os pés
amassavam
o massapê se
com
a cor da terra:
negro
de barro, ouro
(AB, 2018, p. 33)
deixado
para trás,
desprezo
pelas nguas,
agrupamentos
familiares e
povos
subjugados,
travessia
do Atlântico,
negreiros. Os
chegar
foram Akin
é
rebatizado de
cunhada
Ewà Oluwa,
o
Gowon, a quem
Helena,
oriundos da
de
Oió. Ambos
tormentos
do navio
quais as perdas
deixando
um rastro de
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
morte e sofrimento em
meio
do Atlântico.
Subiu a bordo um
homem
negro até os pés
falando
estranhas e
salpicando
cada um deles. Foi
novos nomes. Ele
sabia
Sangokunle era o
“menino corajoso que
quer e se ajoelha
diante
Firmino O que
significaria
2018, p. 26)
Ao chegar no
Brasil,
comprados pelos
Tosta/Tostes,
que iria ter um
longo
entrelaçado aos da
família
Ewà. Mesmo após
amargar
sofrimentos e
humilhações,
consegue dar a luz a
uma
chamada Anolina, que
continuaria
história, a memória e
as
vindos de África. A
saga
Tostes, que detém o
Recôncavo baiano, corre
à dos escravizados
trazidos
Ao mesmo tempo, esta
confunde com a saga da
no Brasil, as diferenças
religiosas
costumes. Há a
evocação
sobre as diversas lutas
local - Sabinada e a
revoluçã
- que dividiam os
conservadores
liberais,
monarquistas
independentistas, mas
nenhuma
e em nenhum dos
lados
referência à situação
dos
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
meio
às águas
homem
vestido de
falando
palavras
salpicando
água em
dizendo seus
sabia
que Akin
mesmo que
luta pelo que
diante
de Xangô”.
significaria
? (AB,
Brasil,
são
Tosta/Tostes,
família
longo
destino
família
de Akin e
amargar
enormes
humilhações,
Ewà
uma
menina
continuaria
a
as
lutas dos
saga
da família
poder no
em
paralelo
trazidos
da África.
história se
colonização
religiosas
e de
evocação
de relatos
pelo poder
revoluçã
o Praieira
conservadores
e os
monarquistas
e
nenhuma
delas
lados
fazia-se
dos
negros
escravizados. O
romance
documentos
históricos,
pela autora, e que se
as histórias
pessoais,
memória,
história
recompondo a
veracidade
fatos que foram
deturpados pelos
regist
como o episódio
dos
Pátria”, durante a
Guerra
quando negros
escravizados
rapazes arrolados
junto
pobre foram
compulsoriamente
transformados
em
Embora fosse
prometida
escravos que
partissem
a sorte de Firmino,
todos os demais,
não
sua condição:
Mais uma vez
mãos de
Juca
extirpou a lança
condições de
embarcar
Cachoeira. A
guerra
para ele com
custaria a curar
sempre com
dores
fratura mal
tratada.
pelo soldo
que
liberdade
finalmente
(AB, 2018, p.
98)
Da mesma
documentação de
arquivo,
narradora que
Francisco,
Manuel Tosta e
Barão
também ministro da
Marinha,
do Conselho de
Sua
252
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
romance
recorre a
históricos,
pesquisados
entrecruzam com
pessoais,
mesclando
e ficção,
veracidade
de alguns
obliterados ou
regist
ros oficiais,
dos
“Voluntários da
Guerra
do Paraguai,
escravizados
e muitos
junto
à população
compulsoriamente
em
"voluntários".
prometida
a alforria aos
partissem
para a guerra,
emblemática de
não
mudou muito
Firmino se viu nas
Juca
Terena, que lhe
da perna e o pôs em
embarcar
de volta a
guerra
chegara ao fim
aquela ferida que
e
que o deixaria para
dores
devido a uma
tratada.
Esse foi o preço
que
recebeu e pela
finalmente
conseguida.
98)
forma, citando
arquivo,
conta a
Francisco,
irmão de
Barão
de Muritiba, era
Marinha,
membro
Sua
Majestade (o
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
Imperador D. Pedro II),
"amigo
do imperador e grande
pelo fim da Revolução
Pernambuco, bem como
vital para o fim da
Sabinada”.
em seu discurso em
homenagem
imperador:
(…) Se
naquelas
calamitosas, em que
o
revoluções se
propagava
país, os
cachoeiranos,
intrépidos, puderam
instituições e
demonstrar
tributam à Augusta
felizmente nos rege,
conquista da
civilização
em seus corações
as
práticas do Governo
Constitu
qual não era o
seu
vendo o Soberano
Brasileiro,
Modelos dos
Príncipes
pisar as plagas
deste
ufana de haver
concorrido
magnífica
empresa,
aclamando a
regência
repercutindo depois o
de Independência
demonstrou
vivamente
Augusta Dinastia
de
2018, p. 79)
Declarada a
República,
empregada dos
Bandeira
surpreende a conversa
dos
patrão logo após o
episódio
República e os novos
arranjos
que se articulam:
- Eu congratulei
este
terem destruído
documentações
referentes ao nosso
maior
escravidão negra!
Uma
precisa ser
extirpada.
certos costumes que
nos
mais da barbárie
africana
centros mais
evoluídos
defendeu Prisco
Paraíso.
p. 155)
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
"amigo
pessoal
responsável
Praieira de
pelo apoio
Sabinada”.
Este diz
homenagem
ao
naquelas
épocas
o
gérmen das
propagava
em todo o
cachoeiranos,
sempre
manter as
demonstrar
o amor que
Dinastia, que
hoje que a
civilização
tem vigorado
as
verdadeiras
Constitu
cional,
seu
entusiasmo
Brasileiro,
Sábio
Príncipes
conhecidos,
solo. (…) se
concorrido
para essa
empresa,
quando
regência
de 1822 e
heróico brado
ou Morte,
o seu amor à
de
V.M.I. (AB,
República,
Martha,
Bandeira
Tosta,
dos
amigos do
episódio
da
arranjos
políticos
este
governo por
documentações
maior
atraso: a
Uma
nódoa que
extirpada.
Inclusive
nos
aproximam
africana
que dos
evoluídos
do planeta -
Paraíso.
(AB, 2018,
O medo de
perder
econômica fazia
com
famílias
poderosas
casamentos
consanguíneos,
partilha de poder,
os
“relacionados
nominalmente
bens, [e] foram
igualmente
entre os herdeiros”
(AB,
Entre a população
escravizada,
sempre as famílias
se
laços
consanguíneos,
afetivos, formando
um
reunido por
afinidades
fortes que os de
sangue.
Umbelina era
a
nunca
conheceu.
tornaram tios,
guardiões e
qualquer
significasse
proteção.
se
aproximaram
[escravo
revoltoso
sendo punido
com
traição sofrida].
A vida no
engenho
as condições de
trabalho
doenças e muitas
mortes:
Todo o
complexo
engenho era
potencialmente
para qualquer
escravizado.
capela um
cativo
vida se não
soubesse
seu lugar,
mas
longe o
ambiente
Aquele fogo
ininterrupto de
agosto
disso chegava
a
trabalho no
canavial
impossível.
Nessa
funcionava de
seguidas. O
melado
prensas, os
facões,
enfim era
arriscado. (AB,
2018,
253
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
perder
a hegemonia
com
que essas
poderosas
praticassem
consanguíneos,
mas, na
os
escravos eram
nominalmente
na lista de
igualmente
divididos
(AB,
2018, p. 67).
escravizada,
nem
se
formavam por
consanguíneos,
mas sim
um
grupo familiar
afinidades
de alma mais
sangue.
a
mãe que Anolina
conheceu.
Firmino e Isabel se
padrinhos, amigos,
qualquer
coisa que
proteção.
Os dois jovens
aproximaram
na dor por Roberto
revoltoso
e que acaba
com
a morte, após a
(AB, 2018, p. 70)
engenho
era penosa e
trabalho
provocavam
mortes:
complexo
que formava o
potencialmente
mortal
escravizado.
Até na
cativo
poderia perder a
soubesse
exatamente o
mas
a moenda era de
ambiente
mais perigoso.
precisava arder
agosto
a maio. Depois
a
chuva e o frio e o
canavial
tornava-se
Nessa
época, a moenda
18 a 20 horas
melado
escaldante, as
facões,
as formas, tudo
demasiadamente
2018,
p. 46)
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
Além disso, havia
epidemias que dizimavam
população negra. Esta
precisava
substituída rapidamente
trabalhos das lavouras
e
Para evitar danos
maiores, algumas
práticas
curandeiros eram
toleradas
eram chamados em
urgência. Assim, mais
ou
escondidas,
encantamentos
remédios eram aplicados:
- Ô vixe, mulé! Os
sabeno que ocê
Agora sai da frente o
Tito
E, ajoelhando-se
perto
onde o rapaz jazia,
deu
líquido amargo. Chá
uma planta que
acalmava,
aliviava a dor. (…)
Murmurou
palavras
incompreensíveis,
recomendações a
Salustiana
apressada. (AB, 2018,
Enquanto alguns,
mesmo
os senhores brancos,
recorriam
rituais de cura, outros
atribuíam
a origem de seus males:
Mais vale uma alma
no
que na Terra por
artimanhas
diabo! Toda essa
peste
olhos deles,
desses
horrendos e seus
conluio com o
Tinhoso!
agarrada ao
inseparável
mirando com olhos
turvos
da imagem de
Nossa
Natividade, que
mantinha
nicho em seu quarto.
65)
Com efeito, a
imposição
cristã pelos senhores de
engenho
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
as diversas
sobretudo a
precisava
ser
para o
e
engenhos.
econômicos
práticas
de
toleradas
e estes
casos de
ou
menos às
encantamentos
e
santo tão
muito grata.
Tito
vai morrê!
perto
da esteira
deu
a ele um
de mulungo,
acalmava,
sedava e
Murmurou
uma
incompreensíveis,
deu
Salustiana
e saiu
p. 48-49)
mesmo
entre
recorriam
aos
atribuíam
a eles
no
paraíso do
artimanhas
do
peste
é fruto dos
desses
negros
segredos
em
Tinhoso!
- dizia
inseparável
terço e
turvos
na direção
Nossa
Senhora da
mantinha
em um
(AB, 2018, p.
imposição
da fé
engenho
e a
consequente
imposição
práticas religiosas
deram origem a
muitos
açoites,
queimaduras
atrocidades que são
romance. O episódio
da escrava que
ousou
religião da sinhá”
permite
da subversão
deflagrada
potencializada
duplamente
serescrava e por
ser
preciso marcar no
corpo
subalterno e os
corpos
vilipendiados,
sexualmente, para
deixar
ferida da opressão
e
que lhes eram
impostas,
historicamente, o
que
uma colonização
estupro de mulheres
a servir aos patrões
brancos,
que a cultura
eraplenamente
justificada
de cativeiro.
Sabem
sobre o seu
próprio
fundamental para a
uma identidade.
Assim,
ressaltar que nesse
espa
do além-mar, entre
Américas, sobretudo
escravização, a
viol
caracterizar-se como
254
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
imposição
à renúncia das
dos ancestrais
muitos
castigos, como
queimaduras
e outras
mencionadas no
de cortar a língua
ousou
contestar a
permite
expora força
deflagrada
que é aqui
duplamente
, por
ser
mulher. Era
corpo
a condição de
corpos
negros eram
explorados
deixar
exposta a
e
da segregação
impostas,
que,
que
se passou foi
perpetrada
pelo
negras obrigadas
brancos,
uma vez
do estupro
justificada
em tempos
os que o poder
próprio
corpo é
constituição de
Assim,
é importante
espa
ço diaspórico
a África e as
no processo de
viol
ência deixa de
consequência da
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PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
brutalidade dos conflitos
f
transformar-se em pura
exibição
poder, pois o exercício
da
tem por base o direito
sobre
Estes, historicamente
invisibilizados e tiveram
suas
suas identidades
desejosvilipendiados,
pois,
carne mais barata do
mercado
carne negra” (SEU
JORGE
2002).
Mas, como lembra
Damiana
sua sabedoria de “mais
cicatrizes salientes e
escuras
quase toda a extensão
da
queloides, cicatrizes de
uma
guerras. - Não se
assuste,
uma é um troféu, e as
que
dentro são maiores”
(AB,
174). E, assim, o
estilhaçamento
mortificação dos corpos
evocados
romance em tela nos
autoriza
aqui o relato de uma
existência
ruína, à maneira de uma
construção alegórica
que
ruína e história, como
Walter Benjamin. Era
no
sobre esses corpos
“negros"
valores de classe e de
exercidos, pois aquilo
pudesse ser
compreendido
racional estava do lado
errado
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.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
f
ísicos para
exibição
de
da
soberania
sobre
os corpos.
,
foram
suas
histórias,
e seus
pois,
afinal, a
mercado
é a
JORGE
et alii,
Damiana
em
velha”: “As
escuras
tomavam
da
pele. Eram
uma
vida de
assuste,
filha, cada
que
estão por
(AB,
2018, p.
estilhaçamento
e a
evocados
no
autoriza
a ver
existência
em
narrativa
de
que
aproxima
nos ensina
no
domínio
“negros"
que os
raça eram
que não
compreendido
de modo
errado
do bem
e do civilizado,
identificado como
categoria
automaticamente
todas
ver o mundo que
não
pela ciência, pela
pressupostos
cristãos.
Vanessa Ribeiro
Teixeira
284):
Através da
religião
domínio
colonizador
referências
nativas
parâmetros e
impedindo
acesso
de conhecer o
plantas, os
animais,
do que fosse
doença
organização e
seres do
comparados
aos
eram heréticos
ou
comparados
à
crendices ou
equívocos.
matriz dos
saberes
atualmente
aprendidos
foi tida
como
eliminando
outras
possibilidades
Assertiva tão
intensa
do tempo, o
termo
ao termo
razão,
que a razão
científica
racionalidade
entre
No entanto,
não
pelas práticas
antepassados que
a
operava. Havia
também
libertação, apagadas
mas que se
manifestavam
gestos
emblemáticos
Acusados de
sabotagem,
perseguidos, mas
255
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
sendo assim
barbárie. Nessa
incluíam-se
todas
as formas de
não
fossem filtradas
razão e pelos
cristãos.
Como lembra
Teixeira
(2019, p.
religião
ou da ciência, o
colonizador
enquadrou
nativas
segundo seus
desprezou outras,
acesso
a diversos modos
corpo humano, as
animais,
o entendimento
doença
e cura ou a
classificação dos
mundo. Quando
aos
saberes católicos,
ou
diabólicos, quando
à
ciência, eram
equívocos.
A ciência -
saberes
que são
aprendidos
na escola –
como
verdade única,
outras
variáveis e
interpretativas.
intensa
que, ao longo
termo
ciência se fundiu
ocultando, portanto,
científica
é apenas uma
entre
múltiplas.
não
era apenas
religiosas dos
a
resistência se
também
as lutas pela
da história oficial,
manifestavam
como
emblemáticos
de resiliência.
sabotagem,
alguns foram
suas histórias
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PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
ganharam tons épicos e
foram transformados em
mitos,
à fantasia e
sobrenaturalidade
atribuídas. Assim,
Firmino
companheiros fugiram
da
Moreno, o delator
mulato
perseguia anos,
não
livrar-se do pesadelo de
estar
fogueira que lhe queima a
pele:
Assim como a fuga
dos
cadeia’, como
ficaram
ninguém conseguiu
explicar
fogo, não o que
Moreno
o verdadeiro, com
ou.
cozinhava para ele
disse
garapa. Bêbado, o
deixado o álcool
entornar
panos pegos por uma
incendiando tudo.
homens que ele
pusera
disse que viu vultos
verdade é que
ninguém
salvá-lo e o perigoso
Moreno
ali mesmo, dentro de
no fogo e no ódio
que
estavam em
1889,
chamas queimavam
o
passado. (AB, 2018, p.
Alimentando o
desejo
liberdade, pairava o
sonho
africana e o
reencontro
ancestrais:
Martha soube que,
dois
visita surpresa de
Roberto,
do aniversário de
Maricota,
tentou partir para a
África
a Ysein. Queria beijar
sucumbiram seus
praticamente toda a
conseguiu, mas
Umbelina
de volta a Ketu um
pertencera a
Helena/Ewà
tinha guardado
secretamente
sua morte. Cumpriu
uma
que fizera à
compatriota
era possível
vislumbrar
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.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
seus heróis
mitos,
graças
sobrenaturalidade
a eles
Firmino
e seus
da
cadeia e
mulato
que o
não
consegue
estar
em uma
pele:
dos
‘quatro da
ficaram
conhecidos,
explicar
como o
Moreno
sentia, mas
ou.
A moça que
disse
que foi a
capataz teria
entornar
em uns
vela que caiu
Luiz, um dos
pusera
de vigia,
no terreno. A
ninguém
conseguiu
Moreno
morreu
casa, ardendo
que
o consumia.
1889,
e as altas
o
presente e o
145)
desejo
de
sonho
da terra
reencontro
com os
dois
anos após a
Roberto,
na noite
Maricota,
Firmino
África
e retornar
o solo em que
pais e
família. Não
Umbelina
sim. Levou
amuleto que
Helena/Ewà
Oluwa, que
secretamente
desde
uma
promessa
compatriota
quando não
vislumbrar
a menor
chance de
concretizá
aliviada e feliz.
(AB,
Firmino
experimenta
sentimento ambíguo
diáspora: “Eu sei
que
um lugar que não
existe
Firmino. Não da
forma
conheci. Passou
muito
sentimento
estranho.
daqui, mas não sou
2018, p. 176).
Como
crítico Édouard
Glissant
A experiência
do
abismo e
fora
daqueles que
abismo: que
passaram
do ventre do
navio
violeta dos
fundos
provação não
nesse
contínuo
pânico do país
terra perdida, e
por
a terra
imposta,
memória não
serviu de
lodo
metamorfoses.
E pergunta-
nos
(2011, p. 22):
“Mas
nómade
sobredeterminado
condições de
existência?
nomadismo, por
uma
contingências
constrangedoras,
por um desejo de
liberdade?”
Após a
promulgação
Áurea, a situação da
e mestiça não
parece
de modo
significativo:
256
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
concretizá
-la. Voltou
(AB,
2018, p. 176)
experimenta
então o
de quem viveu a
tenho na cabeça
existe
mais …, diz
forma
como eu o
muito
tempo. É um
estranho.
Eu não sou
mais de lá” (AB,
Como
nos lembra o
Glissant
(2011, p. 19):
do
abismo es no
fora
dele. Tormento
nunca saíram do
passaram
diretamente
navio
para o ventre
fundos
do mar. Mas a sua
morreu, vivificou-se
contínuo
-descontínuo: o
novo, a saudade da
por
fim a aliança com
sofrida, redimida. A
sabida do abismo
lodo
para essas
nos
ainda Glissant
“Mas
não estará o
sobredeterminado
pelas suas
existência?
E o
uma
obediência a
constrangedoras,
e não
liberdade?”
promulgação
da Lei
população negra
parece
ter se alterado
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
Anolina [criada
por
Umbelina] e Martha
[filha
eram personagens
que
naquele planeta feito
de massapê,
açúcar,
engenhos, religião,
ressentimentos
antigos.
bem separada, se
é
possível. Viviam na
tensa
deixava de um lado
o
quem manda, e de
outro
era mandado. Tudo
tinha
claro até pouco
tempo
não naquele
momento
negros estavam
livres
mais sabia quem era
quem.
vivendo tempos
duros.
de liberto queria ir
para
cana, aquele inferno
na
ao mesmo tempo,
sobreviver, e isso
era
conquistar um dia de
cada
2018, p. 110)
Continuava assim
surda entre senhores e
escravos”
2018, p. 111). Afinal,
“não
liberdade que eles
queriam.
trabalho, sem terra, com
a
pé, com medo do presente
(AB, 2018, p. 118).
Em conclusão da
saga
diz a narradora:
Toda a família
Tosta
Dona Maricota foi
ligada
Todos juízes,
advogados
professores,
formados
renomadas
instituições
exterior. Ela [Dona
Maricota]
curioso que o
descendente
aquelas mulheres
Anolina, Dasdô,
Martha,
Celina -
enveredasse
caminhos do Direito
Eloá, pai da
narradora]
estivesse
ouvindo
pensamentos, diria
que
nada de exótico ou
curioso
diria: - Xangô é rei.
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.
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, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
por
Dasdô e
[filha
do patrão]
que
gravitavam
do solo preto
cana, fumo,
lutas e
antigos.
Uma mistura
é
que isso é
tensa
linha que
o
universo de
outro
o que quem
tinha
sido muito
tempo
atrás, mas
momento
em que os
livres
e ninguém
quem.
Estavam
Quem depois
para
a lida da
na
Terra? Mas,
era preciso
era
coisa para
cada
vez. (AB,
a “guerra
escravos”
(AB,
era essa a
queriam.
Sem
a
polícia no
e do futuro”
saga
familiar,
Tosta
na linha de
ligada
à Justiça.
advogados
ou
formados
nas mais
instituições
no país ou no
Maricota]
achou
descendente
de todas
- Umbelina,
Martha,
Damiana e
enveredasse
pelos
[trata-se de
narradora]
. Se Firmino
ouvindo
seus
que
não existia
curioso
nisso. Ele
Está pisando
aqui comigo,
e
justiça se fará.
(AB,
Ao completar
a
lembra ainda que
ela
formaram-se em
curso
sentencia:
Nós, os que
estamos
caminho
deixado
enfrentamos o
desafio
século XXI,
trabalhar
linhas
divisórias
séculos nos
deixaram
banquete
principal
pela fórmula
‘Damiana’,
educação. (AB,
2018,
Inspirada
escavações que
trouxeram
calçamento de
pedra
arqueológicos
encontrados
Valongo, local
onde,
1831,
desembarcavam
mulheres e crianças
para serem
escravizados
da colônia,
Eliana
promove o resgate
da
e cultural afro-
brasileira
segundo romance, O
Valongo. A narrativa
romance histórico
enredo se inicia
em
chega até o Rio de
maior parte da
história
Recosturando inú
meras
ancestrais que
foram
257
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
e
cedo ou tarde a
(AB,
2018, p. 301)
a
história familiar,
ela
e seus irmãos
curso
superior e
estamos
prosseguindo o
deixado
por eles, também
desafio
de, ainda no
trabalhar
para apagar as
divisórias
que por tantos
deixaram
à parte do
principal
do país. Optamos
‘Damiana’,
ou seja, a da
2018,
p. 304).
nas
recentes
trouxeram
à tona o
pedra
e objetos
encontrados
no Cais do
onde,
entre 1811 e
desembarcavam
homens,
vindos da África
escravizados
nos serviços
Eliana
Alves Cruz,
da
memória social
brasileira
em seu
crime do cais do
se afigura como
e policial, cujo
em
Moçambique e
Janeiro, onde a
história
de desenvolve.
meras
memórias dos
escravizados ou
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
mortos no cais, alerta a
entrevista a Médium
Books
"Brasil, se olhe no
espelho,
quem você realmente é
e
história e o
conhecimento
negro são tesouros riquí
ssimos
precisam ser
descobertos
aproveitados por toda
(CRUZ, 2019).
Assim,
sequência ao seu
romance de estreia,
Eliana
a continuar a fazer o
resgate
memória, buscando a
preservação
identidade cultural
negra.
uma pesquisa histórica
assim como havia
procedido
seu primeiro romance,
O
como protagonistas os
negros
viviam na cidade do Rio
de
período que se segue
imediatamente
chegada da família real
trazendo consigo a
modernização
cidade e, ao
mesmo
reconfigurando seus
espaços
inclusão e exclusão.
O enredo parte do
do português branco,
Lourenço Viana,
comerciante
escravos, estabelecido
no
Valongo, no porto do Rio
de
curioso tulo do primeiro
capítulo
fim que é começo”-
anuncia
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
autora, em
Books
, que o
espelho,
enxergue
e
se ame. A
conhecimento
do povo
ssimos
que
descobertos
e
a nação”
Assim,
dando
consagrado
Eliana
propõe-se
resgate
dessa
preservação
da
negra.
Fruto de
criteriosa,
procedido
para o
O
CCV traz
negros
que
de
Janeiro, no
imediatamente
à
portuguesa,
modernização
da
mesmo
tempo,
espaços
de
assassinato
Bernardo
comerciante
de
no
Cais do
de
Janeiro. O
capítulo
- O
anuncia
que
esse episódio
servirá
para contar a
história
adulterada do
tráfico
Brasil, que o
“crime”
título da obra pode
ser
estrito e também
metafórico.
recompor esse
tecido,
de trechos de
anúncios
época que servem
ficcionalização da
história,
primeira pessoa por
Moutinho, “letrado
aspirante
(CCV, p. 13), meio
aparentado
morto, e que decide
investigar
pensando em tirar
benefício próprio.
assassino,
encontra
escritos às
escondidas
Muana Lómuè que,
destino, sabia ler,
logo
escrever, embora
todos o que fazia:
“Eu
(CCV, p. 13). E
assim
história do tráfico
de
da África e, ao
mesmo
na cidade que
se
rapidamente com a
chegada
real, a sorte
reservada
que desembarcavam
vez maior, assim
como
que lhes eram
aplicados.
ler, Muana
acompanhava
258
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
servirá
de motivação
história
esquecida e
de escravos no
“crime”
que figura no
ser
lido no sentido
metafórico.
Para
tecido,
a autora parte
anúncios
de jornais da
de mote para a
história,
narrada em
Nuno Alcântara
aspirante
a livreiro”
aparentado
com o
investigar
o crime,
desse fato um
Na
busca pelo
encontra
os cadernos
escondidas
pela escrava
por caprichos do
logo
sabia também
escondesse de
“Eu
leio, eu escrevo”
assim
são contadas a
escravos vindos
mesmo
tempo, a vida
se
transformava
chegada
da família
reservada
aos escravos
em número cada
como
os castigos
aplicados.
Como sabia
acompanhava
pelos jornais
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
e pela correspondência
que
para o poderoso
comerciante
Lourenço Viana os
acontecimentos
vida da corte e arrumava
de
se, pois os demais
escravos
pegos de surpresa,
sobretudo
eram mandados para
os
onde a vida era ainda
muito
do que na cidade.
Através
astúcia, Muana protegia-
se
de sua condição e
ajudava
driblar as sempre
escusas
dos comerciantes e
escravos.
Pois sim! Eu
saberia
pusesse meu nome
avisos, como eu
soube
Natanael à venda
e
quase o
entregando
Tamarineiras. Foi
graças
leitura que pudemos
ajudar o moleque a
escapulir.
Mariano Benguella
o
fugir com uns ciganos
na hospedaria. Hoje
sei
um quilombo
pelo
Corcovado. (CCV, p.
24)
Quando acontece o
a São Sebastião do Rio
de
suspeita de matar o
ensebado,
escroque, chantagista,
violento, cruel e
despudorado
Bernardo Lourenço
Vianna!”
97). Mas são os três
negros
que sabe ler, Roza, que
sabe
e sua comida tem poderes
Marianno, que sabe
costurar
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, out. 2019 a março
2020.
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que
chegava
comerciante
Bernardo
acontecimentos
da
de
prevenir-
escravos
eram
sobretudo
quando
os
engenhos,
muito
mais dura
Através
dessa
se
dos acasos
ajudava
os seus a
escusas
estratégias
donos de
saberia
quando ele
na seção de
soube
quando pôs o
e
estavam
entregando
para o
graças
a minha
nos ajudar e
escapulir.
Eu e o
o
ajudamos a
que estiveram
sei
que está em
pelo
alto do
24)
crime, “toda
de
Janeiro é
ensebado,
sovina,
zangano,
despudorado
senhor
Vianna!”
(CCV, p.
negros
- Muana,
sabe
cozinhar
especiais, e
costurar
panos e
era também um
grande
escravos que
serviam
português
assassinado,
identificados como
desenrolar da
investigação
conivência das
autoridades
irregularidades
praticadas
do poder, as
mazelas
parcial e a
proteção
interesses escusos
negócios na cidade.
Nuno
Alcântara
agregado que
circulava
universo dos
brancos
escravos, definia-se
assim:
Sou pardo, um
mulato
largado, solto
entre
ruas fazendo
para a família
patrícios da
terra
chamam aos
que,
filhos de
portugueses
colônias, de
valemos muito
mazombo
remediado
pretos está,
misturados
com
jogadores e os
odiavam. Eu
também
possuía até
taberna-livraria:
p. 35)
Transitando
nesse
evitava, no entanto,
pretos, pois tinha
pretensões
na vida, que,
como
quase branco”, mas,
não consegue
deixar
259
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
grande
feiticeiro -
serviam
diretamente ao
assassinado,
que logo são
suspeitos. O
investigação
exibe a
autoridades
com as
praticadas
pelos donos
mazelas
de uma justiça
proteção
dos diversos
que moviam os
Alcântara
Moutinho,
circulava
entre o
brancos
e o dos
assim:
mulato
e fui criado ali,
entre
os livros e pelas
pequenos serviços
do livreiro. […] Os
terra
de meu pai
que,
como nós, são
portugueses
nascidos nas
mazombos. o
para eles […] um
remediado
e neto de
para eles, bem
com
as prostitutas, os
bêbados, que tanto
também
era um pária e
o nome da minha
'A Mazomba’. (CCV,
nesse
“entre-lugar”,
misturar-se aos
pretensões
de subir
como
diziam, “era
ao
fim e ao cabo,
deixar
de apaixonar-se
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
por Tereza Nagô, negra
com poderes ancestrais de
Mitos, ritos
iniciáticos,
origem e costumes estão
presentes
narrativa de Muana,
vividas
trazidas por outros de
sua
Moçambique, assim
como
ancestrais, que encontra
em
pensamentos, e que
ela
inglês Mr. Toole,
interlocutor
com quem mantem
uma
imaginária, servindo de
mote
seja evocada a história
da
africana. Na cosmogonia,
o
ancestrais é vital:
“Precisamos
contato e da
intermediaç
ancestrais para as
nossas
dia-a-dia de seres
humanos”
46). Em diversos
momentos
contato é evocado, seja
conforto e
ensinamentos,
buscar proteção contra
os
“Subitamente ouvimos
nitidamente
canto maravilhoso do
Namuli
Era Nipele atenta, eram
os
vigilantes. Não fizeram
nada
momento, pois ao que
parece
outros planos” (CCV, p.
87).
vontade dos
ancestrais
impenetrável, não
puderam
captura e o embarque
para
“Estávamos prestes a
mergulhar
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.
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, out. 2019 a março
2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
alforriada e
cura.
iniciáticos,
lendas de
presentes
na
vividas
por ela e
sua
etnia, de
como
por seus
em
sonhos e
ela
relata ao
interlocutor
fictício
uma
conversa
mote
para que
da
diáspora
o
elo com os
“Precisamos
do
intermediaç
ão dos
nossas
coisas do
humanos”
(CCV, p.
momentos
esse
para trazer
ensinamentos,
seja para
os
inimigos.
nitidamente
o
Namuli
Apalis.
os
ancestrais
nada
naquele
parece
tinham
87).
Como a
ancestrais
era
puderam
evitar a
para
o Brasil :
mergulhar
no
abismo salgado do
fim
breve estaríamos
soltos
rio chamado mar”
(CCV,
A narrativa
vozes: a voz de
Nuno,
ações para
descobrir
suas artimanhas
para
dar bem na
vida
incontrolável por
Tereza;
de Muana, escrita
em
maneira de um
diário,
desfiando seus
infortúnios
gente, o suicídio da
pai, as separações
forçadas,
construídos e
desfeitos
Os
anúncios
recolhidos pela
autora
se a feitiçaria era
punida
todos a ela
recorriam
sessa prática
eram
anunciados nos
jornais
livrarias da cidade.
Nuno,
suas malandragens
de uma dívida,
recorre
escravos da
hospedaria
o português
assassinado,
para os seus
feitiços.
colocou os papéis
no
panela, Marianno
pôs
óleo e Roza
acendeu
eu estava realmente
conclusão: Os
três
260
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
fim
do mundo. Em
soltos
no gigantesco
(CCV,
p. 108).
intercala duas
Nuno,
que relata suas
descobrir
o assassino,
para
sobreviver e se
vida
e seu amor
Tereza;
e a narrativa
em
seu caderno, à
diário,
onde vão se
infortúnios
e os de sua
mãe,
a prisão do
forçadas,
os afetos
desfeitos
à revelia.
anúncios
de jornal
autora
mostram que,
punida
severamente,
recorriam
e livros sobre
eram
amplamente
jornais
e vendidos nas
Nuno,
em uma de
para
se ver livre
recorre
aos três
hospedaria
de Bernardo,
assassinado,
apelando
feitiços.
“Então ela
no
fundo de uma
pôs
um pouco de
acendeu
o fogo. Pronto,
livre. A primeira
três
tinham mais
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, out. 2019 a março
poderes que o
Intendente…
qualquer rei” (CCV, p.
135).
Os escritos
de
simulando uma
conversa
com um interlocutor
inglês,
que apenas ouve e
pouco
permite supor que este
era
“ancestral” que lhe
aparecia
quem ela
“conversava"
imaginação :
Mr. João Toole
adiantou
saudou-me
afetuosamente.
não percebi que ele
anoitecer? Eu, tão
experimentada
intercâmbio entre os
mundos,
não percebi os
certamente eu não
percebera
por causa do
senhor
afinal, ele era o
seu
menos que… O
senhor
possuísse o mesmo
Agora eu
entendia,
compreendia… Por
isso
de visitantes
aparecia
estava
adormecido,
seguramente os veria.
Em suas
conversas
Toole, sempre atento
às
relatadas por Muana,
desfilam
de sofrimento, violência
impingidos aos que
deixavam
e eram submetidos
ao
forçado.
O mar é um
enorme
impossível ver a
margem
mar é o maior
cemitério
mundo. Quando
aquele
estava havia 10 ou
12
das ondas, começou
a
no corpo todo, na
vômitos, muitos
vômitos.
feridas com pus
começavam
aparecer, as bexigas,
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Intendente…
que
135).
de
Muana,
conversa
imaginária
inglês,
Mr. Toole,
pouco
intervém,
era
mais um
aparecia
e com
em sua
adiantou
-se e
afetuosamente.
Como eu
chegava ao
experimentada
no
mundos,
como
sinais?
Sim,
percebera
nada
senhor
Bernardo;
professor. A
senhor
Bernardo
dom que eu.
entendia,
agora eu
isso
meu grupo
aparecia
quando ele
adormecido,
pois
(CCV, p. 175)
conversas
com Mr.
às
estórias
desfilam
relatos
e opressão
deixavam
sua terra
ao
trabalho
enorme
rio salgado,
margem
oposta. O
cemitério
deste
aquele
barco já
12
dias no meio
a
febre, a dor
barriga e os
vômitos.
Quando as
começavam
a
o capitão não
tinha dúvidas e
mar para não
contaminar
Meu pai,
Mutandi,
longe. Como
minha
queria tocá-lo.
Era
(CCV, p. 138)
E, em
uma
diáspora
compulsória,
situar seu lugar no
mundo
uma identidade
possível:
a este lugar por um
Toole, passa a
ocupar
neste mundo, mas
ocupa.
os que não são mais
não chegam a existir
que o padre e os
chamam de limbo?”
(CCV,
Se um
comete o crime
contra
pode-se dizer que
os
embora não
estivessem
cidade quando
ocorreu
também “mataram”
seu
modo simbólico, por
feitiçaria
"trabalhos" para
provocar
comerciante,
embora
efetivamente seja o
rapaz
pela moça com
quem
deveria casar-se,
após
estranhas
circunstâncias
um dedo cortado, o
sexo
colcha que
envolvia
explicam-se então.
Depois
os três cumprem o
desígnio
261
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)
jogava a ‘carga' no
contaminar
as outras.
Mutandi,
foi arremessado
minha
mãe, ninguém
Era
um corpo maldito.
uma
referência à
compulsória,
Muana tenta
mundo
e encontrar
possível:
“Quem chega
tumbeiro, senhor
ocupar
o pior lugar
ocupa.
Onde ficam
de onde vieram e
aqui? Seria isto o
livros de vocês
(CCV,
p. 142)
assassino que
contra
a português,
os
três escravos,
estivessem
presentes na
ocorreu
o assassinato,
seu
opressor de
feitiçaria
, fazendo
provocar
a morte do
embora
quem o mate
rapaz
apaixonado
quem
o português
após
sua viuvez. As
circunstâncias
da morte -
sexo
amputado e a
envolvia
o cadáver -
Depois
de morto,
desígnio
e a sua
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vingança até o fim,
conforme
ancestralidade e os
poderes
crenças. “Nossos
corpos
onde deveriam estar
para
Fernandes [o Intendente
encarregado
da investigação e primo
de
não nos incriminasse,
mas
almas estavam onde
precisavam
para que aquele enredo
(CCV, p. 178). E, “[…] na
mesma
em que Marianno pôs o
último
em sua mortalha de
retalhos,
maio de 1821, faleceu
saber quem afinal
matara
Bernardo Lourenço
Vianna”
189).
Situado nesse
espaço
e fluido que lhe cabe
ocupar
cor, sua origem de
classe
experiência cultural que t
ransita
a "civilização" dos
brancos
“barbárie” africana, Nuno
tenta
que viu e ouviu, o que
sabe
intui saber com respeito
ao
Valongo:
Olhei para o antigo
Muana e um
jovem
belíssimo,
certamente
amor Umpulla. Eles
conduziam
multidão que
parecia
assassinos,
desesperada
e que tomava todo o
espaço
para sumir no ar,
evaporada no
mormaço,
etéreos que sublimam
Como pesa, meu D
eus,
Muana! Como pesa!
[…]
tem o dom de
enlouquecer.
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conforme
as leis da
poderes
de suas
corpos
estavam
para
que Paulo
encarregado
de
Bernardo]
mas
nossas
precisavam
estar
terminasse”
mesma
data
último
ponto
retalhos,
dia 1. de
sem nunca
matara
seu primo
Vianna”
(CCV, p.
espaço
ambíguo
ocupar
por sua
classe
e sua
ransita
entre
brancos
e a
tenta
juntar o
sabe
e o que
ao
crime do
píer e os vi.
jovem
altíssimo e
certamente
era o seu
conduziam
uma
parecia
fugir de
desesperada
por socorro
espaço
do cais
como água
mormaço,
como seres
e partem. […]
eus,
esse baú de
[…]
A verdade
enlouquecer.
Talvez
por isso,
tantos
[…] Esse foi o
cais do
Valongo.
eras para que
seja
194-5)
No fundo,
conclui
Abolição da
escravidã
aconteceu,de fato,
contramão das
leituras
conservadoras,
que
registros e
documentos
Entregues à própria
sorte,
negra continua
desassistida,
sem direitos e
sem
Embora o romance
cenário de
destruição
situada em um
passado
remoto, é para a
reconfiguração
dessa
esquecida que o
livro
essa razão,
pouco
matou o comerci
ante
um outro crime que
de um crime que
continua
que precisa ser
reparado.
de Bernardo
Louren
meticulosamente
Marianno,
metaforiza
paciência que requer
outra história,
aquela
precisa ser
recontada,
trabalho de tecer,
alegoria
dos homens,
pode
algumas gerações.
Cabe
262
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)
tantos
vivam na mentira.
verdadeiro crime do
Valongo.
Levarão algumas
seja
pago. (CCV, p.
conclui
-se que a
escravidã
o jamais
em 1888, na
leituras
oficiais,
que
figuram nos
documentos
oficiais.
sorte,
a população
desassistida,
sem teto,
sem
escolaridade.
nos conduza ao
destruição
e violência
passado
“quase
necessidade de
dessa
história
livro
nos remete. Por
importa quem
ante
português. É de
trata o romance,
continua
impune e
reparado.
A mortalha
Louren
ço Vieira,
costurada por
metaforiza
o trabalho de
o resgate de uma
aquela
que ainda
recontada,
pois o lento
alegoria
do destino
pode
levar ainda
Cabe
lembrar que
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Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
foi somente em 2011,
com
de novos arranjos
urbanísticos
“civilizar” a cidade, que
Valongo (1779-1811),
porta
de mais de 500 mil
africanos
Congo, de Angola e de
Moçambique
um dos maiores portos
de
dessas populações às
Am
finalmente recuperado e
população. E a luta
preservação ainda
persiste,
recentemente, após uma
que caiu sobre a cidade,
o
seriamente
comprometido.
história dessa população
aqui chegou através dos
processos
escravidão, base
estrutural
capitalismo, e
constituinte
história do Brasil, precisa
recuperada: é
conhecendo
que preparamos o futuro.
Os romances que
examinamos
aqui trazem narrativas
que
pelo paciente trabalho
da
individual e coletiva,
replasmadas
escrita literária, as vozes
historicamente excluídos
,onde
violência e morte.
Afinal,
intermédio da língua que a
a nossa história para a
posteridade
(CRUZ; SEMOG, 2018,
p.22),
Eliana Alves Cruz,
autora
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2020.
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com
a ameaça
urbanísticos
para
o Cais do
porta
de entrada
africanos
vindos do
Moçambique
, e
de
chegada
Am
éricas, foi
exibido à
por sua
persiste,
pois,
forte chuva
o
local ficou
comprometido.
Parte da
negra que
processos
de
estrutural
do
da própria
e deve ser
conhecendo
o passado
examinamos
que
evocam,
da
memória
replasmadas
pela
de sujeitos
,onde
ecoam
Afinal,
“é por
gente deixa
posteridade
p.22),
nos diz
autora
que se
propõe a revisitar
escravidão do
Brasil
sempre contada
pela
escravizou e não
daqueles
escravizados. Ao
tomar
autora opera aquilo
Evaristo define
como
ou seja constrói
uma
parte do ponto de
experienciou o
narrado,
vivência e escritura,
falando
também falando
por
condição,
sobretudo
foram
duplamente
(EVARISTO, 2006,
2014).
Pelo
empenho
escritoras, o tema
da
consegue recuperar
progressivamente
um espaço na
produção
contemporânea,
ressignificar suas
recompor um
passado
marca indelével
das
coloniais. Como
lembra
As diferentes
maneiras
povo negro e
as
se situaram e
regimes
dominantes
representação
foram
um exercício
crítico
normalização
culturais.
fomos apenas
construídos
regimes, no
sentido
Said, como
outros
seio das
categorias
ocidental;
houve
consequência
que
mesmos vistos
Outro.
Todo
263
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)
o passado de
Brasil
que nos foi
pela
voz de quem
daqueles
que foram
tomar
a palavra, a
que Conceição
como
escrevivência”,
uma
narrativa que
vista de quem
narrado,
misturando
falando
de si, mas
por
muitos de sua
mulheres, que
duplamente
humilhadas
2014).
empenho
dessas novas
da
diáspora negra
progressivamente
produção
acadêmica
buscando
memórias e
passado
diaspórico,
das
sociedades
lembra
Stuart Hall:
maneiras
pelas quais o
as
experiências negras
subordinaram nos
dominantes
de
foram
o resultado de
crítico
do poder e da
culturais.
Nós não
construídos
por esses
sentido
orientalista” de
outros
e diferentes no
categorias
do saber
houve
também por
que
fôssemos nós
e vividos como o
Todo
regime de
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 246-265
, out. 2019 a março
representação é um
regime
formado, como
recorda
pelo par fatal “saber-
poder”.
2001, p. 314).
Ao exibir os
traumas
escravidão que ainda
permeiam
relações raciais e sociais
ao alertar para os
naturalização dessas
relações
desigualdade, autoras
como
Alves Cruz procuram
suscitar
reflexão sobre as
origens
discriminação e
conscientizar
para os desafios e os
problemas
essas desigualdades
Como adverte Fátima
Lima:
Para enfrentar as
questões
as práticas racistas
cotidianas
contextos
brasileiros,
enfrentar a urgente
necessidade
desmantelarmos por
completo
da democracia racial
e
da miscigenação
como
modeladores das
relações
Brasil. […] Nunca
ficou
o horror às
populações
consequentemente,
em
à população pobre
(LIMA, 2018, p. 113)
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BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
regime
de poder
recorda
Foucault,
poder”.
(HALL,
traumas
da
permeiam
as
no Brasil e,
riscos da
relações
de
como
Eliana
suscitar
uma
origens
da
conscientizar
o leitor
problemas
que
engendram.
Lima:
questões
raciais e
cotidianas
nos
brasileiros,
precisamos
necessidade
de
completo
o mito
e
o imperativo
como
elementos
relações
raciais no
ficou
tão evidente
populações
negras e,
em
sua maioria,
neste país”.
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cultural na
Rio
de Janeiro:
Maria
de. Quarto de
uma
favelada. São
1997.
Raça, gênero,
Desafios
para pensar a
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
PragMATIZES - Revista Latino-
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SALGADO,
Teresa et alli. (orgs.).
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corpo feminino:
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PONS CARDOSO,
Amefricanizando o
feminismo:
pensamento de Lélia
Revista Estudos
Florianópolis, v. 22, n. 3,
dez. 2014.
SEU JORGE et alii.
Disponível
https://www.gelbc.com/jornadaautorian
egra. Acesso: 17 out.
2018.
TEIXEIRA, Vanessa
Ribeiro.
fraturados pela História:
Ualalapi e Orgia dos
Loucos
Ungulani Ba Ka Khosa.
In:
Maria Cristina;
ROCHA,
Massoni da (orgs.).
Literatura, História
colonialidade. Rio
de
Dialogarts, 2019. p. 282-
312.
BATALHA, Maria Cristina. Relatos e travessias em Eliana Alves Cruz
.
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março
2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
nos
brasis
SALGADO,
Maria
Escritas
do
perspectivas,
debates,
Janeiro:
Oficina
Cláudia.
feminismo:
o
Gonzalez.
Feministas.
p. 965-986,
Disponível
em:
https://www.gelbc.com/jornadaautorian
2018.
Ribeiro.
Corpos
o caso de
Loucos
, de
In:
BATALHA,
ROCHA,
Vanessa
Encontro
e Pós-
de
Janeiro:
312.
265
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
Ninguém ouviu um soluçar de dor: violência racial na n
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40560
Resumo
: Este artigo trata das relações pessoais e consequentemente raciais assentadas no
dogmatismo de poder que faz com haja uma interpretação corrente do juízo correto mas cínico,
exposto na ficção narrativa de
Rio Negro 50
passagens cotidianas, problematiza o usual e chama a atenção para a invisibilidade negra, bem como
a violência simbólica historicamente construída e perpetrada por séculos no imaginário brasileiro.
Palavras chave
: violência simbólic
Nadie escuchó un sollozo de dolor: violencia racial en la n
Resumen
: Este artículo trata sobre las relaciones personales y consecuentemente raciales basadas
en el dogmat
ismo del poder que conduce a una interpretación actual del juicio correcto pero cínico,
expuesto en la ficción narrativa de
narrativa, cuando se trata de pasajes cotidianos, problematiza lo habi
invisibilidad negra, así como la violencia simbólica históricamente construida y perpetrada durante
siglos en la imaginación brasileña.
Palabras clave
: violencia simbólica; resistencia; Nei Lopes; literatura contemporánea
No one heard a sob of pain: racial violence i
Abstract
: This article deals with the personal and consequently racial relations based on the
dogmatism of power that leads to a current interpretation of the correct but cynical judgment, exposed
in the narrative fiction of
Rio Negro 50
dealing with everyday passages, problematizes the usual and draws attention to the black invisibility,
as well as the symbolic violence historically constructed and perpetrated for centuries in the Brazilian
imagination.
Keywords
: symbolic violence; resistance; Nei Lopes; contemporary literature.
1
Claudio do Carmo Gonçalves. Doutor em Ciências da literatura / UFRJ. Professor Titular de
Literaturas / Universidade Estadual da Bahia/ UNEB, professor junto a PPGEL da Universidade
Estadual de Feira de Santana/UEFS, Brasil. claudiodocarmog@gmail.com
0003-3359483X
Texto recebido em 20/01/2020
e aceito para publicação em
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Ninguém ouviu um soluçar de dor: violência racial na n
arrativa literária de Nei
Lopes
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.40560
Cláudio do Carmo
: Este artigo trata das relações pessoais e consequentemente raciais assentadas no
dogmatismo de poder que faz com haja uma interpretação corrente do juízo correto mas cínico,
Rio Negro 50
, do escritor carioca Nei Lopes. A n
passagens cotidianas, problematiza o usual e chama a atenção para a invisibilidade negra, bem como
a violência simbólica historicamente construída e perpetrada por séculos no imaginário brasileiro.
: violência simbólic
a; resistência; Nei Lopes; literatura contemporânea.
Nadie escuchó un sollozo de dolor: violencia racial en la n
arrativa literaria de Nei Lopes
: Este artículo trata sobre las relaciones personales y consecuentemente raciales basadas
ismo del poder que conduce a una interpretación actual del juicio correcto pero cínico,
expuesto en la ficción narrativa de
Rio Negro 50
, por el escritor de Río de Janeiro Nei Lopes. La
narrativa, cuando se trata de pasajes cotidianos, problematiza lo habi
tual y llama la atención sobre la
invisibilidad negra, así como la violencia simbólica históricamente construida y perpetrada durante
siglos en la imaginación brasileña.
: violencia simbólica; resistencia; Nei Lopes; literatura contemporánea
No one heard a sob of pain: racial violence i
n Nei Lopes' literary narrative
: This article deals with the personal and consequently racial relations based on the
dogmatism of power that leads to a current interpretation of the correct but cynical judgment, exposed
Rio Negro 50
, by the Rio de Janeiro wri
ter Nei Lopes. The narrative, when
dealing with everyday passages, problematizes the usual and draws attention to the black invisibility,
as well as the symbolic violence historically constructed and perpetrated for centuries in the Brazilian
: symbolic violence; resistance; Nei Lopes; contemporary literature.
Claudio do Carmo Gonçalves. Doutor em Ciências da literatura / UFRJ. Professor Titular de
Literaturas / Universidade Estadual da Bahia/ UNEB, professor junto a PPGEL da Universidade
Estadual de Feira de Santana/UEFS, Brasil. claudiodocarmog@gmail.com
- ht
tp:/orcid.org/0000
e aceito para publicação em
31/01/2020.
266
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
arrativa literária de Nei
Cláudio do Carmo
1
: Este artigo trata das relações pessoais e consequentemente raciais assentadas no
dogmatismo de poder que faz com haja uma interpretação corrente do juízo correto mas cínico,
, do escritor carioca Nei Lopes. A n
arrativa, ao tratar de
passagens cotidianas, problematiza o usual e chama a atenção para a invisibilidade negra, bem como
a violência simbólica historicamente construída e perpetrada por séculos no imaginário brasileiro.
a; resistência; Nei Lopes; literatura contemporânea.
arrativa literaria de Nei Lopes
: Este artículo trata sobre las relaciones personales y consecuentemente raciales basadas
ismo del poder que conduce a una interpretación actual del juicio correcto pero cínico,
, por el escritor de Río de Janeiro Nei Lopes. La
tual y llama la atención sobre la
invisibilidad negra, así como la violencia simbólica históricamente construida y perpetrada durante
: violencia simbólica; resistencia; Nei Lopes; literatura contemporánea
.
: This article deals with the personal and consequently racial relations based on the
dogmatism of power that leads to a current interpretation of the correct but cynical judgment, exposed
ter Nei Lopes. The narrative, when
dealing with everyday passages, problematizes the usual and draws attention to the black invisibility,
as well as the symbolic violence historically constructed and perpetrated for centuries in the Brazilian
Claudio do Carmo Gonçalves. Doutor em Ciências da literatura / UFRJ. Professor Titular de
Literaturas / Universidade Estadual da Bahia/ UNEB, professor junto a PPGEL da Universidade
tp:/orcid.org/0000
-
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
Ninguém ouviu um soluçar de dor:
violência racial na narrativa literária
de Nei Lopes.
- Mas é ele mesmo?
- É , sim! Não tá vendo?
- crioulo safado! Covarde!
-
Entregou de bandeja, né, seu merda?
- vendido!
- Frouxo!
-Viado! Filha da puta!
[...]
- É ele mesmo?
-Não tá vendo a cara?
-Olha a cara dele.
(LOPES, 2015, p.15)
A cena é real, embora figure no
romance Rio negro 50
de Nei Lopes.
Remete a um caso fortuito, desses que
vemos todos os dias nas grandes
cidades. O recorte temporal dos anos
1950, pouco mudam na estrutura
apreendida pela cena. Uma violência
gratuita e incisiva, bem como
inequívoca, já que balizada por uma
c
onvicção de valores morais que faz
com que haja uma completa
identificação naquelas pessoas que
animam e dão causa ao fato.
No caso da ficção, trata
uma cena resultante da trama principal
do romance. O Brasil sediara a Copa
do mundo de futebol de 195
logrando êxito a a partida final,
quando enfrenta a então seleção
campeã olímpica, com alto prestígio à
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Ninguém ouviu um soluçar de dor:
violência racial na narrativa literária
Entregou de bandeja, né, seu merda?
A cena é real, embora figure no
de Nei Lopes.
Remete a um caso fortuito, desses que
vemos todos os dias nas grandes
cidades. O recorte temporal dos anos
1950, pouco mudam na estrutura
apreendida pela cena. Uma violência
gratuita e incisiva, bem como
inequívoca, já que balizada por uma
onvicção de valores morais que faz
com que haja uma completa
identificação naquelas pessoas que
animam e dão causa ao fato.
No caso da ficção, trata
-se de
uma cena resultante da trama principal
do romance. O Brasil sediara a Copa
do mundo de futebol de 195
0,
logrando êxito a a partida final,
quando enfrenta a então seleção
campeã olímpica, com alto prestígio à
época, o Uruguai. Na partida final, e
isto é história, a seleção brasileira
perde por 2 X 1 de virada, diante de
um estádio do Maracanã lotado por
100 mil pessoas, ainda em obras, pois
recém construído para
mundo,atônito.
Ressalte
Brasil, é mais que a seleção brasileira
de futebol, ou como se acostumou
chamar, o país de chuteiras. Isto a
dimensão de como era tratada a
pa
rtida final, bem como os
personagens daquela partida, prestes
a se tornarem heróis.
Alguns detalhes dessa história
comum devem chamar a atenção,
além do mencionado significado.
pou
co mais, em termos históricos,
cem anos da abolição da escravatura
vindos de uma Grande guerra mundial,
cuja supremacia ariana fora levantada
e derrotada, mas que deixou suas
marcas inconfundíveis, a presença de
negros no futebol era saudada com
alguma parcimônia. A visão geral era
tratar-
se de um fenômeno atípico.
Aind
a estavam recentes na memória
nacional, sobretudo carioca, o
arroz do Fluminense Futebol Clube,
que diz-
se ganhou o apelido por
obrigar um jogador negro a se “pintar”
de de arroz e assim esconder a cor
267
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
época, o Uruguai. Na partida final, e
isto é história, a seleção brasileira
perde por 2 X 1 de virada, diante de
um estádio do Maracanã lotado por
100 mil pessoas, ainda em obras, pois
recém construído para
ser o maior do
Ressalte
-se que é o
Brasil, é mais que a seleção brasileira
de futebol, ou como se acostumou
chamar, o país de chuteiras. Isto a
dimensão de como era tratada a
rtida final, bem como os
personagens daquela partida, prestes
Alguns detalhes dessa história
comum devem chamar a atenção,
além do mencionado significado.
co mais, em termos históricos,
dos
cem anos da abolição da escravatura
,
vindos de uma Grande guerra mundial,
cuja supremacia ariana fora levantada
e derrotada, mas que deixou suas
marcas inconfundíveis, a presença de
negros no futebol era saudada com
alguma parcimônia. A visão geral era
se de um fenômeno atípico.
a estavam recentes na memória
nacional, sobretudo carioca, o
-de-
arroz do Fluminense Futebol Clube,
se ganhou o apelido por
obrigar um jogador negro a se “pintar”
de de arroz e assim esconder a cor
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
natural da pele. Era recente também a
popular
idade do Clube de regatas
Vasco da Gama, que abrira sua
instalações e futebol aos negros, em
grande maioria da população marginal
da cidade.
A então seleção brasileira de
futebol, tinha alguns negros, e algo
raro a os dias de hoje, um dos
principais era
o goleiro, Bigode. Assim,
naquela tarde de julho de 1950 o Brasil
perde inesperadamente para o
Uruguai, contrariando a expectativa
geral, e o principal do “culpado” pela
derrota é o goleiro Bigode,cuja falha
no ultimo gol não é perdoada pela
torcida, a qu
e estava presente no
Maracanã, bem como aquela imensa
maioria que assistiu pelo rádio.
O episódio retratado se passa
no dia seguinte à fatídica derrota, em
que um homem negro, na estação de
trem da Central do Brasil, é
“confundido” com o goleiro Bigode,
da
ndo início ao mal entendido que
culminaria no seu linchamento por
populares e a consequente morte. Um
tribunal moral e simbolicamente
perverso resolve em poucos minutos o
que fazer com aquele homem negro
que “só podia ser ele” entregou o jogo
do Brasil.
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
natural da pele. Era recente também a
idade do Clube de regatas
Vasco da Gama, que abrira sua
instalações e futebol aos negros, em
grande maioria da população marginal
A então seleção brasileira de
futebol, tinha alguns negros, e algo
raro a os dias de hoje, um dos
o goleiro, Bigode. Assim,
naquela tarde de julho de 1950 o Brasil
perde inesperadamente para o
Uruguai, contrariando a expectativa
geral, e o principal do “culpado” pela
derrota é o goleiro Bigode,cuja falha
no ultimo gol não é perdoada pela
e estava presente no
Maracanã, bem como aquela imensa
maioria que assistiu pelo rádio.
O episódio retratado se passa
no dia seguinte à fatídica derrota, em
que um homem negro, na estação de
trem da Central do Brasil, é
“confundido” com o goleiro Bigode,
ndo início ao mal entendido que
culminaria no seu linchamento por
populares e a consequente morte. Um
tribunal moral e simbolicamente
perverso resolve em poucos minutos o
que fazer com aquele homem negro
que “só podia ser ele” entregou o jogo
A
situação trazida através da
narrativa visceral de Nei Lopes, expõe
além de tristes estatísticas envolvendo
negros no país, o preconceito, a
discriminação e uma violência
simbólica, por que quase
imperceptível, apoiada no lugar
comum do negro como uma escó
social, cujos pressupostos históricos
contribuíam para acelerar e aprofundar
a interpretação mais vil.
Nei Lopes se dedica a
destrinchar as mazelas do mundo
invisível ou marginal a que o negro se
encontra na sociedade brasileira, com
uma produção vasta
ficção , a composição musical, na qual
se destaca com alguns dos grandes
sucessos da música popular brasileira;
e ensaios que refletem uma profunda e
complexa pesquisa sobre a memória
de raízes afro no Brasil. Deste modo,
especialmente ne
ste romance, nos
vemos diante de uma pesquisa
intrigante que aponta para uma dor
que não é ouvida, nem bem sentida
por aqueles que não são negros.
Na vivência social à mostra na
narrativa apressa-
se a conclusão
dogmática que opõe negros e não
negros, em qu
e a afetividade impõe
uma região identitária assentada nas
268
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
situação trazida através da
narrativa visceral de Nei Lopes, expõe
além de tristes estatísticas envolvendo
negros no país, o preconceito, a
discriminação e uma violência
simbólica, por que quase
imperceptível, apoiada no lugar
comum do negro como uma escó
ria
social, cujos pressupostos históricos
contribuíam para acelerar e aprofundar
a interpretação mais vil.
Nei Lopes se dedica a
destrinchar as mazelas do mundo
invisível ou marginal a que o negro se
encontra na sociedade brasileira, com
, situada entre a
ficção , a composição musical, na qual
se destaca com alguns dos grandes
sucessos da música popular brasileira;
e ensaios que refletem uma profunda e
complexa pesquisa sobre a memória
de raízes afro no Brasil. Deste modo,
ste romance, nos
vemos diante de uma pesquisa
intrigante que aponta para uma dor
que não é ouvida, nem bem sentida
por aqueles que não são negros.
Na vivência social à mostra na
se a conclusão
dogmática que opõe negros e não
e a afetividade impõe
uma região identitária assentada nas
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
dores e experiências antepassadas. É
verdade que as agruras da raça o
matizadas, de maneira a não deixar
nítida nenhuma relação de
desigualdade, culminando na narrativa
predominante que revela, c
cinismo, o aparente apaziguamento
social, cujo maior lema é
de não haver
racismo no país.
Evidentemente o que
se tem é uma relação política, em que
historicamente aqueles que dominam
deram a sua interpretação e prática
incontestável ao status coti
Assim, complexas questões
desafiam a memória e a identidade
construídas no interior do debate sobre
o conceito de raça e etnia, não por
acaso e por conseguinte, uma parcela
significativa da comunidade negra, de
origem africana, estabelece
prom
ove uma resistência velada à
dominação cultural ocidental de
características acentuadamente
colonizadora, como se pode
depreender das suas narrativas.
Para além dos guetos e
marginais estereotipados da cultura
negra, especialmente situados no Rio
de Janei
ro da década de 1950, a obra
ilumina uma certa intelectualidade que
faz contraponto a este estereótipo ao
dimensionar a construção de uma
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
dores e experiências antepassadas. É
verdade que as agruras da raça o
matizadas, de maneira a não deixar
nítida nenhuma relação de
desigualdade, culminando na narrativa
predominante que revela, c
om certo
cinismo, o aparente apaziguamento
de não haver
Evidentemente o que
se tem é uma relação política, em que
historicamente aqueles que dominam
deram a sua interpretação e prática
diano.
Assim, complexas questões
desafiam a memória e a identidade
construídas no interior do debate sobre
o conceito de raça e etnia, não por
acaso e por conseguinte, uma parcela
significativa da comunidade negra, de
origem africana, estabelece
-se e
ove uma resistência velada à
dominação cultural ocidental de
características acentuadamente
colonizadora, como se pode
depreender das suas narrativas.
Para além dos guetos e
marginais estereotipados da cultura
negra, especialmente situados no Rio
ro da década de 1950, a obra
ilumina uma certa intelectualidade que
faz contraponto a este estereótipo ao
dimensionar a construção de uma
identidade que nasce da memória de
ancestralidade comum e, ao mesmo
tempo, é capital para resistência frente
a grupos
dominantes.
A discussão se instala a partir
de um contraponto teórico que se faz
necessário pontuar, que é a noção de
literatura negra ou afro
no Brasil que legitimaria os estudos de
inserção da narrativa e/ou do autor. O
próprio conceito de Á
uma primeira pergunta que deve ser
respondida e neste sentido é clara a
remissão à representação geográfica e
política que o continente africano
estabelece com suas fronteiras,
nações e culturas, muitas vezes
sobrepostas, o que acarreta e
outros problemas, conflitos de
natureza étnico-
racial e cultural, além,
obviamente, de conflitos territoriais.
Essa África mapeada politicamente
com suas culturas tão iguais e tão
diferentes, transcende o território
numa espécie de abstração imaginári
que alcança outras culturas fora do
alcance geográfico e alimentando um
simbólico de dimensões inimagináveis.
É certo que a temática de fundo
racial reitera as discussões no
universo dos países africanos,
sobretudo na África negra; sim pois há
269
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
identidade que nasce da memória de
ancestralidade comum e, ao mesmo
tempo, é capital para resistência frente
dominantes.
A discussão se instala a partir
de um contraponto teórico que se faz
necessário pontuar, que é a noção de
literatura negra ou afro
-descendente
no Brasil que legitimaria os estudos de
inserção da narrativa e/ou do autor. O
próprio conceito de Á
frica surge como
uma primeira pergunta que deve ser
respondida e neste sentido é clara a
remissão à representação geográfica e
política que o continente africano
estabelece com suas fronteiras,
nações e culturas, muitas vezes
sobrepostas, o que acarreta e
ntre
outros problemas, conflitos de
racial e cultural, além,
obviamente, de conflitos territoriais.
Essa África mapeada politicamente
com suas culturas tão iguais e tão
diferentes, transcende o território
numa espécie de abstração imaginári
a
que alcança outras culturas fora do
alcance geográfico e alimentando um
simbólico de dimensões inimagináveis.
É certo que a temática de fundo
racial reitera as discussões no
universo dos países africanos,
sobretudo na África negra; sim pois há
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
uma África
branca, notadamente ao
norte do continente, que
sintomaticamente, se apressa na
aproximação com o Ásia ou oriente
médio. Pois bem, essa África negra, e
aqui vou me dedicar especificamente,
à matriz de língua portuguesa, ou seja,
países que foram colonizad
Metrópole europeia, Portugal, tem em
comu
m além da língua predominante
(
não pacífica), a portuguesa; uma série
de outros aspectos que de algum
modo podem ser abordados no sentido
de refletir uma possível identidade, ou
noção de semelhança que relac
entre si estes países, tais como a pele
negra, o comportamento social e
aspectos políticos.
Sabe-
se que a organização de
um processo identitário pela língua é
silencioso mas altamente eficaz, já que
se utiliza de um mecanismo simbólico
extremamente p
oderoso, por sua
aparente naturalidade. Com efeito, o
mecanismo na feliz acepção de
Barthes
(1978) é chamado de império
da língua, e que demonstra bem como
a língua age de forma mascarada no
processo de dominação. Desta forma,
a utilização da língua serve
mecanismo de império, ao mesmo
tempo que a consciência deste poder
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
branca, notadamente ao
norte do continente, que
sintomaticamente, se apressa na
aproximação com o Ásia ou oriente
médio. Pois bem, essa África negra, e
aqui vou me dedicar especificamente,
à matriz de língua portuguesa, ou seja,
países que foram colonizad
os pela
Metrópole europeia, Portugal, tem em
m além da língua predominante
não pacífica), a portuguesa; uma série
de outros aspectos que de algum
modo podem ser abordados no sentido
de refletir uma possível identidade, ou
noção de semelhança que relac
ionam
entre si estes países, tais como a pele
negra, o comportamento social e
se que a organização de
um processo identitário pela língua é
silencioso mas altamente eficaz, já que
se utiliza de um mecanismo simbólico
oderoso, por sua
aparente naturalidade. Com efeito, o
mecanismo na feliz acepção de
(1978) é chamado de império
da língua, e que demonstra bem como
a língua age de forma mascarada no
processo de dominação. Desta forma,
a utilização da língua serve
como esse
mecanismo de império, ao mesmo
tempo que a consciência deste poder
por parte de grupos supostamente
dominados, leva a uma consciência de
resistência, como um desafio a essa
maneira como foi forjada a cultura
especialmente a linguística,
m
elhor palavra, já que fruto de uma
arbitrária colonização encontrou
resistências de toda ordem,
culminando com o incômodo de
línguas nativas conviverem
concomitante à língua oficial
portuguesa e, em certas regiões,
sere
m inclusive mais frequentes.
Os país
es africanos de matriz
portuguesa, aqueles q
origem linguística
social e histórica
através da colonização de Portugal,
são cinco, e todos situam
geográfico do nordeste do continente
africano, a África subsaariana
sul e sudoes
te. Assim, esta África
portuguesa, é negra por excelência e
parte daí todo a reflexão sobre como
se dá seu processo identitário.
Angola, Moçambique, Guiné
Bissau, São Tomé e Príncipe
Verde
, parecem ter pouco em comum,
2
Refere-
se a todo o continente africano situado
abaixo do deserto do Saara, com seus cerca
de 9.000.000 k (nove milhões de Km²) o
que acaba por disti
nguir uma barreira natural
entre um continente negro, ao sul, abaixo do
Saara, e um continente branco, ao norte,
acima do Saara, cujas características
socioculturais o aproximam do oriente médio.
270
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
por parte de grupos supostamente
dominados, leva a uma consciência de
resistência, como um desafio a essa
maneira como foi forjada a cultura
,
especialmente a linguística,
essa a
elhor palavra, já que fruto de uma
arbitrária colonização encontrou
resistências de toda ordem,
culminando com o incômodo de
línguas nativas conviverem
concomitante à língua oficial
portuguesa e, em certas regiões,
m inclusive mais frequentes.
es africanos de matriz
portuguesa, aqueles q
ue tiveram
social e histórica
através da colonização de Portugal,
são cinco, e todos situam
-se num raio
geográfico do nordeste do continente
africano, a África subsaariana
2
, para o
te. Assim, esta África
portuguesa, é negra por excelência e
parte daí todo a reflexão sobre como
se dá seu processo identitário.
Angola, Moçambique, Guiné
Bissau, São Tomé e Príncipe
, e Cabo
, parecem ter pouco em comum,
se a todo o continente africano situado
abaixo do deserto do Saara, com seus cerca
de 9.000.000 k (nove milhões de Km²) o
nguir uma barreira natural
entre um continente negro, ao sul, abaixo do
Saara, e um continente branco, ao norte,
acima do Saara, cujas características
socioculturais o aproximam do oriente médio.
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
a não ser o fato da origem por
e de estarem situados no mesmo
continente, d a tendência mais forte
nos estudos recentes, de distinguir as
pesquisas que investigam os
fenômenos socioculturais e políticos
que enraízam os fatos históricos a que
estão relacionados. Mas aqui, me
pe
rmito contrariar a infundada
tendência, e pontuar o que os une,
como países, nações e sociedades
que comungam de um mesmo espírito
original e que reverberam como
constante simbólica os limites da
África negra.
A partir de uma origem que não
se distingue m
uito, quanto ao processo
de colonização, os países lusófonos
de África são fruto da expansão
marítima portuguesa nos séculos XV e
XVI, o que explica em grande parte
seus desenvolvimentos de anatomia
particular mais semelhantes entre si.
Essa semelhança pas
sa por uma
história social de colonização e de
condições adversas que em muito
contrib
ui para uma psicologia nacional
Não obstante, os fatores que
dese
quilibram uma identidade africana
são muitos e devem ser considerados,
mormente se atentarmos para o
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
a não ser o fato da origem por
tuguesa
e de estarem situados no mesmo
continente, d a tendência mais forte
nos estudos recentes, de distinguir as
pesquisas que investigam os
fenômenos socioculturais e políticos
que enraízam os fatos históricos a que
estão relacionados. Mas aqui, me
rmito contrariar a infundada
tendência, e pontuar o que os une,
como países, nações e sociedades
que comungam de um mesmo espírito
original e que reverberam como
constante simbólica os limites da
A partir de uma origem que não
uito, quanto ao processo
de colonização, os países lusófonos
de África são fruto da expansão
marítima portuguesa nos séculos XV e
XVI, o que explica em grande parte
seus desenvolvimentos de anatomia
particular mais semelhantes entre si.
sa por uma
história social de colonização e de
condições adversas que em muito
ui para uma psicologia nacional
.
Não obstante, os fatores que
quilibram uma identidade africana
são muitos e devem ser considerados,
mormente se atentarmos para o
con
ceito de identidade, conforme
assinala Pollak (
1992, p.
Ninguém pode construir uma auto
imagem isenta de mudança, de
negociação, de transformação em
função dos outros. A construção da
identidade é um fenômeno que se
produz em referência aos outros,
referência aos critérios de
aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio
da negociação direta com outros.
A identidade, então, é fundada a
partir do outro, seja por uma
autorização, seja por uma negociação
tácita, que mu
itas vezes obedece
apenas a um rito, cujos resultados são
previsíveis.
Se a própria identidade africa
se mostra
fraturada como vimos,
supõe-
se que seu acondicionamento
como uma recepção simbólica envolva
problemas de tal ordem. E é esta a
tônica que pass
amos a observar na
literatura oriunda da matriz africana
expressa fora do continente africano,
especialmente no Brasil.
Em termos ficcionais, Maria
Firmi
na dos Reis, em 1859, em São
Luí
s do Maranhão, publica o primeiro
romance de matriz africana no Brasil,
no sentido da crítica, o estudo
pioneiro se deve ao sociólogo francês
Roger Bastide, cujos trabalhos
relacionados à cultura negra são
notórios, dentre estes
271
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ceito de identidade, conforme
1992, p.
208 ):
Ninguém pode construir uma auto
-
imagem isenta de mudança, de
negociação, de transformação em
função dos outros. A construção da
identidade é um fenômeno que se
produz em referência aos outros,
em
referência aos critérios de
aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio
da negociação direta com outros.
A identidade, então, é fundada a
partir do outro, seja por uma
autorização, seja por uma negociação
itas vezes obedece
apenas a um rito, cujos resultados são
Se a própria identidade africa
na
fraturada como vimos,
se que seu acondicionamento
como uma recepção simbólica envolva
problemas de tal ordem. E é esta a
amos a observar na
literatura oriunda da matriz africana
expressa fora do continente africano,
especialmente no Brasil.
Em termos ficcionais, Maria
na dos Reis, em 1859, em São
s do Maranhão, publica o primeiro
romance de matriz africana no Brasil,
no sentido da crítica, o estudo
pioneiro se deve ao sociólogo francês
Roger Bastide, cujos trabalhos
relacionados à cultura negra são
notórios, dentre estes
A poesia negra
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
no Brasil
”, publicado em 1943, que
aponta para a primeira sistematização
ao
instaurar um pensamento vinculado
às experiências da cultura negra no
país. As duas publicações têm em
comum, além do pioneirismo
apontado, uma perspectiva de mapear
o universo dessa literatura produzida
no Brasil. E eis a primeira noção que
deve ser desta
cada. Ao falarmos de
literatura negra ou afro-
descendente
quais critérios estarão sendo
considerad
os nesta expressão
conceitual.
Eduardo de Assis
(2011), fazendo referência a O
Ian
ni, para quem “o negro é o tema
principal da literatura negra”
que tais critérios são constituídos por
um elencos de fatores, tais como o
tema, visto que a literatura negra
apreende um movimento temático
amplo em que o negro e suas
especificidades é a base. Mas não se
restringe ao tema, pois neste contexto
de se considerar também a autoria
marcada pela escrita proveniente de
autores afro-
descendentes; o ponto de
vista que registra o lugar de
enunciação do sujeito, de onde se fala,
ou seja, sugere que haja uma visão de
mundo, uma identificação com a
história
e a cultura. Pode
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
”, publicado em 1943, que
aponta para a primeira sistematização
instaurar um pensamento vinculado
às experiências da cultura negra no
país. As duas publicações têm em
comum, além do pioneirismo
apontado, uma perspectiva de mapear
o universo dessa literatura produzida
no Brasil. E eis a primeira noção que
cada. Ao falarmos de
descendente
quais critérios estarão sendo
os nesta expressão
Eduardo de Assis
Duarte
(2011), fazendo referência a O
ctávio
ni, para quem “o negro é o tema
principal da literatura negra”
destaca
que tais critérios são constituídos por
um elencos de fatores, tais como o
tema, visto que a literatura negra
apreende um movimento temático
amplo em que o negro e suas
especificidades é a base. Mas não se
restringe ao tema, pois neste contexto
de se considerar também a autoria
marcada pela escrita proveniente de
descendentes; o ponto de
vista que registra o lugar de
enunciação do sujeito, de onde se fala,
ou seja, sugere que haja uma visão de
mundo, uma identificação com a
e a cultura. Pode
-se ainda
arrolar dois tópicos que auxiliam nesta
construção da noção literária afro
descendente: a linguagem que acena
para uma dicção própria no modo
peculiar de lidar com o universo afro; e
por fim um público leitor apto a
consumir esta
literatura de herança
africana transfigurada pelas condições
locais do Brasil. Numa leitura
abrangente destes tópicos parece
óbvio que isoladamente eles se
precarizam, nenhum deles se basta
enquanto categorias que possam
identificar ou definir uma litera
negra ou afro-
descendente. A
possibilidade mais apreciada estaria
na interação, no conjunto destes
elementos, mesmo assim parece nítido
que alguns destes tópicos são
problemáticos do ponto de vista
conceitual, vejamos: uma literatura de
temática negr
a inclui, mas sua
abrangência é tamanha que ela pode
se desfigurar ao se distanciar
sobremaneira da proposta que a
originou. A autoria exclui, pois
restringe-
se aos herdeiros
objetivamente afros. De outro modo, a
autoria negra supõe um autor negro.
Mas mes
mo este autor parece sofrer
restrições, que precisa estar
identificado com as causas e universo
272
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
arrolar dois tópicos que auxiliam nesta
construção da noção literária afro
-
descendente: a linguagem que acena
para uma dicção própria no modo
peculiar de lidar com o universo afro; e
por fim um público leitor apto a
literatura de herança
africana transfigurada pelas condições
locais do Brasil. Numa leitura
abrangente destes tópicos parece
óbvio que isoladamente eles se
precarizam, nenhum deles se basta
enquanto categorias que possam
identificar ou definir uma litera
tura
descendente. A
possibilidade mais apreciada estaria
na interação, no conjunto destes
elementos, mesmo assim parece nítido
que alguns destes tópicos são
problemáticos do ponto de vista
conceitual, vejamos: uma literatura de
a inclui, mas sua
abrangência é tamanha que ela pode
se desfigurar ao se distanciar
sobremaneira da proposta que a
originou. A autoria exclui, pois
se aos herdeiros
objetivamente afros. De outro modo, a
autoria negra supõe um autor negro.
mo este autor parece sofrer
restrições, que precisa estar
identificado com as causas e universo
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
negro, numa clara atitude política. Aí
temos uma contradição, que exige
se uma postura interessada ao mesmo
tempo que não se considera o caráter
político
do próprio corpo. Sim, pois um
corpo negro fala por si, ele detém a
discursividade.
Na representação literária
uma dicotomia, que se completa, e
muitas vezes é evidenciada de
variadas maneiras e tem sido levada
ao paroxismo nos textos
contemporâneos. É
o caso do
romance “Rio negro, 50”, de Nei
Lopes, que passa a limpo algumas
dessas questões ao tematizar de
maneira singular o universo negro da
década de 1950, um período marcado
pela expansão desenvolvimentista do
país, que se queria moderno, em
termos co
ncretos e ambicionava esta
mesma construção em termos
simbólicos, seja na música (a bossa
nova é expressão dessa ambição), nas
artes plásticas e mesmo na literatura
(a poesia concreta exerce a mesma
expressão). Passa a limpo quando
atenta para o universo
que ficava de
fora deste processo, cujos sintomas de
um cânone literário produzia efeitos de
exclusão velada, que alimentava
a cultura da democracia racial.
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
negro, numa clara atitude política. Aí
temos uma contradição, que exige
-
se uma postura interessada ao mesmo
tempo que não se considera o caráter
do próprio corpo. Sim, pois um
corpo negro fala por si, ele detém a
Na representação literária
uma dicotomia, que se completa, e
muitas vezes é evidenciada de
variadas maneiras e tem sido levada
ao paroxismo nos textos
o caso do
romance “Rio negro, 50”, de Nei
Lopes, que passa a limpo algumas
dessas questões ao tematizar de
maneira singular o universo negro da
década de 1950, um período marcado
pela expansão desenvolvimentista do
país, que se queria moderno, em
ncretos e ambicionava esta
mesma construção em termos
simbólicos, seja na música (a bossa
nova é expressão dessa ambição), nas
artes plásticas e mesmo na literatura
(a poesia concreta exerce a mesma
expressão). Passa a limpo quando
que ficava de
fora deste processo, cujos sintomas de
um cânone literário produzia efeitos de
exclusão velada, que alimentava
-se
a cultura da democracia racial.
É neste cenário que a trama
se desenvolve, com forte dicção
histórica, trazendo à tona a Áfr
fincando-
a num espaço notoriamente
politizado do Rio de janeiro, as
imediações da Cinelândia.
O espaço, como um lugar
memória, carrega toda a carga
política da dinâmica social e é a partir
deste cenário que emergem lugares
símbolos como a “Caf
Negro”, de clara ironia ao Rio
o barão, precursor da diplomacia
nacional e um dos orgulhos
intelectuais do país. ainda o “Bar
Restaurante Abará”, cujo nome guarda
em si as orig
ens africanas. Saliente
que
as referências africanas
c
onstantes na narrativa
são seguidas de
explicações típicas de
uma pesquisa acadêmica, ora na voz
de um narrador em terceira pessoa
que conhece a todos e amplia seu
horizonte de observação ao não
registrar os fatos, mas tecer
comentários às
vezes sutis às vezes
irônicos, mas sempre num nítido
posicionamento do lugar em que se
fala.
O ponto de vista, assim, é
fundamental para a narrativa e carrega
consigo um viés político ao deixar
273
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
É neste cenário que a trama
se desenvolve, com forte dicção
histórica, trazendo à tona a Áfr
ica e
a num espaço notoriamente
politizado do Rio de janeiro, as
imediações da Cinelândia.
O espaço, como um lugar
-de-
memória, carrega toda a carga
política da dinâmica social e é a partir
deste cenário que emergem lugares
símbolos como a “Caf
é e Bar Rio
Negro”, de clara ironia ao Rio
branco,
o barão, precursor da diplomacia
nacional e um dos orgulhos
intelectuais do país. ainda o “Bar
-
Restaurante Abará”, cujo nome guarda
-se
as referências africanas
onstantes na narrativa
, muitas vezes
explicações típicas de
uma pesquisa acadêmica, ora na voz
de um narrador em terceira pessoa
que conhece a todos e amplia seu
horizonte de observação ao não
registrar os fatos, mas tecer
vezes sutis às vezes
irônicos, mas sempre num nítido
posicionamento do lugar em que se
O ponto de vista, assim, é
fundamental para a narrativa e carrega
consigo um viés político ao deixar
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
clar
o posicionamentos ideológicos:
outro lado da Avenida,
a uns poucos
duzentos ou trezentos metros do Rio
Negro, fervilha o Abará, maldosamente
apelidado de Café e bar Colored, com
o eufemismo usado para designar os
moreninhos.” (LOPES, 201
Ora também estes comentários se dão
através de personagens, m
galeria enorme que envolve indivíduos
puramente ficcionais e outros tantos
históricos que marcaram a
intelectualidade negra no país, e o
agrupados em torno do espaço dos
bares, constituindo deste modo a força
simbólica dos lugares-
memória.
os casos do dramaturgo e teatrólogo
Abdias do Nascimento, sociólogo
Guerreiro Ramos, do folclorista Edson
Carneiro, dos músicos Pixinguinha,
D
onga Paulo Moura e Jonny Alf ,
estabelecem uma relação orgânica
com aquilo que se fala, como é o caso
deste
trecho preconizado por Edson
Carneiro: “Na África, entre o povo
nagô, chama abalá; e é um bolinho de
arroz. E acará é de feijão. Daí, veio o
acaraj
é. Que é frito, e não cozido.”
(LOPES, 2015, p. 50)
O tom explicativo, algo de
doutoral, adquire relevância
observa que o narrador se embrenha
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
o posicionamentos ideológicos:
“Do
a uns poucos
duzentos ou trezentos metros do Rio
Negro, fervilha o Abará, maldosamente
apelidado de Café e bar Colored, com
o eufemismo usado para designar os
moreninhos.” (LOPES, 201
5, p. 45).
Ora também estes comentários se dão
através de personagens, m
uitos, numa
galeria enorme que envolve indivíduos
puramente ficcionais e outros tantos
históricos que marcaram a
intelectualidade negra no país, e o
agrupados em torno do espaço dos
bares, constituindo deste modo a força
memória.
o
os casos do dramaturgo e teatrólogo
Abdias do Nascimento, sociólogo
Guerreiro Ramos, do folclorista Edson
Carneiro, dos músicos Pixinguinha,
onga Paulo Moura e Jonny Alf ,
que
estabelecem uma relação orgânica
com aquilo que se fala, como é o caso
trecho preconizado por Edson
Carneiro: “Na África, entre o povo
nagô, chama abalá; e é um bolinho de
arroz. E acará é de feijão. Daí, veio o
é. Que é frito, e não cozido.”
O tom explicativo, algo de
doutoral, adquire relevância
quando se
observa que o narrador se embrenha
pela trama através de estratégias
ficcionais que lhe permite estar na voz
dos intelectuais que frequentam o
Café-
bar Rio Negro ou o Restaurante
Abará, e desta forma emitir opiniões e
posições que reforçam o tom
identitário no interior de um grupo
negro que se aproxima não como uma
comunidade, que como vimos esta
identidade africana é fraturada em
plena África, mas com um sentimento
de solidariedade e ancestralidade que
termina por lhes unir em certo afeto ou
i
dentificação. Para tanto, este narrador
se move entre o conhecimento escolar
e a memória de pertencimento. Com
uma marca configurada em resistência
ao contrapor-
se à história oficial, seja
através dos intelectuais negros que
destilam seus conhecimentos, se
através de anônimos, que ganham
relevância na narrativa ao
emprestarem força através da
oralidade e da experiência genuína daí
decorrente, os personagens são
instigados a tecer comentários e
descrições que guardam muito da
memória africana, revelando um
ligação espiritual dominante.
Quem me chamou a atenção pra
isso foi uma patroa que eu tive, uma
grande artista, muito culta.
Chamava-
se Etiópia de Oliveira
Houston; porque era filha de uma
274
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
pela trama através de estratégias
ficcionais que lhe permite estar na voz
dos intelectuais que frequentam o
bar Rio Negro ou o Restaurante
Abará, e desta forma emitir opiniões e
posições que reforçam o tom
identitário no interior de um grupo
negro que se aproxima não como uma
comunidade, que como vimos esta
identidade africana é fraturada em
plena África, mas com um sentimento
de solidariedade e ancestralidade que
termina por lhes unir em certo afeto ou
dentificação. Para tanto, este narrador
se move entre o conhecimento escolar
e a memória de pertencimento. Com
uma marca configurada em resistência
se à história oficial, seja
através dos intelectuais negros que
destilam seus conhecimentos, se
ja
através de anônimos, que ganham
relevância na narrativa ao
emprestarem força através da
oralidade e da experiência genuína daí
decorrente, os personagens são
instigados a tecer comentários e
descrições que guardam muito da
memória africana, revelando um
a
ligação espiritual dominante.
Quem me chamou a atenção pra
isso foi uma patroa que eu tive, uma
grande artista, muito culta.
se Etiópia de Oliveira
Houston; porque era filha de uma
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
família amulatada, mas era casada
com um maestro e compositor
ame
ricano. Era cantora lírica, de
ópera, mas a especialidade era folk
lorr... Isa não fala folclore, como todo
mundo. Ela diz folk lorr, separando
os elementos da palavra e metendo
no fim um erre vibrante. (LOPES,
2015, p.54)
O passado em comum de uma
exper
iência africana de açoite e
percalços coloniais parece emergir no
início da trama, quando um grande
mal-
entendido é narrado. Trata
dia seguinte à decantada derrota do
Brasil para o Uruguai em pleno
maracanã na Copa do mundo de
futebol em 1950. É man
de 17 de
julho e um jovem negro salta do trem
da Central do Brasil, quando é
confundido com o jogador Bigode, da
seleção brasileira, perseguido por
populares e depois de xingamentos e
pontapés, o rapaz é linchado.
Espera uns dez minutos; até que o
trem
encosta e abre as portas, com o
chiado característico. Entra sem
dificuldade, pois já é de tarde.
Procura um canto e senta, encolhido
pra esconder a ressaca e a tristeza.
Mas os olhares estão no trem
também. (...) - Mete
-
Toma, seu puto caga
-
levantar mais!
na cabeça, não ! na
cabeça não! Na cabeça sim! Pra
deixar de ser besta! Toma! Que que
é isso gente? Vocês vão matar o
homem!
É pra matar m
Segura essa, seu merda!
2015, p. 15-17)
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
família amulatada, mas era casada
com um maestro e compositor
ricano. Era cantora lírica, de
ópera, mas a especialidade era folk
-
lorr... Isa não fala folclore, como todo
mundo. Ela diz folk lorr, separando
os elementos da palavra e metendo
no fim um erre vibrante. (LOPES,
O passado em comum de uma
iência africana de açoite e
percalços coloniais parece emergir no
início da trama, quando um grande
entendido é narrado. Trata
-se do
dia seguinte à decantada derrota do
Brasil para o Uruguai em pleno
maracanã na Copa do mundo de
de 17 de
julho e um jovem negro salta do trem
da Central do Brasil, quando é
confundido com o jogador Bigode, da
seleção brasileira, perseguido por
populares e depois de xingamentos e
pontapés, o rapaz é linchado.
Espera uns dez minutos; até que o
encosta e abre as portas, com o
chiado característico. Entra sem
dificuldade, pois já é de tarde.
Procura um canto e senta, encolhido
pra esconder a ressaca e a tristeza.
Mas os olhares estão no trem
-
lhe a ripa!
-
leite! pra não
na cabeça, não ! na
cabeça não! Na cabeça sim! Pra
deixar de ser besta! Toma! Que que
é isso gente? Vocês vão matar o
É pra matar m
esmo!
Segura essa, seu merda!
(LOPES,
A cena impressiona e guarda a
marca de um grande equívoco. Um
homem negro que é confundido com o
jogador de futebol, de uma seleção de
maioria negra, que cometeu o grande
erro de perder a final de uma copa do
mundo. Para além da ruína social
exposta, a descrição traz à mostra
certo des
conforto e se insere de
maneira pontual numa deformação
social que tem origens em uma
mentalidade e ideologia de raízes
colonizadora, como na observação de
Moema Parente
Augel
Estreitamente ligadas à estratificação
social, mas não idênticas
no Brasil a questão racial e a procura
por parte da população não branca
tanto de sua identidade cultural como
da ampliação dos seus espaços de
ação, numa sociedade norteada pela
ideologia do branqueamento e ainda
deformada com resquícios da
mentalidade colonialista e
dominadora.
Assim, nas mesas dos ficcios
Cas da Cinelândia passam todos os
tipos de personagens e problemas
cotidianos, desde a falta d’água, a
crescente especulação imobiliária, os
trens que como navios negreiros,
carregam
gente como se fosse boi pro
matadouro e também o preconceito
racial, que gera uma discussão
atravessada em vários períodos da
narrativa. Alguns concordam que há
275
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)
A cena impressiona e guarda a
marca de um grande equívoco. Um
homem negro que é confundido com o
jogador de futebol, de uma seleção de
maioria negra, que cometeu o grande
erro de perder a final de uma copa do
mundo. Para além da ruína social
exposta, a descrição traz à mostra
conforto e se insere de
maneira pontual numa deformação
social que tem origens em uma
mentalidade e ideologia de raízes
colonizadora, como na observação de
Augel
(1997, p.183):
Estreitamente ligadas à estratificação
social, mas não idênticas
a ela, estão
no Brasil a questão racial e a procura
por parte da população não branca
tanto de sua identidade cultural como
da ampliação dos seus espaços de
ação, numa sociedade norteada pela
ideologia do branqueamento e ainda
deformada com resquícios da
mentalidade colonialista e
Assim, nas mesas dos ficcios
Cas da Cinelândia passam todos os
tipos de personagens e problemas
cotidianos, desde a falta d’água, a
crescente especulação imobiliária, os
trens que como navios negreiros,
gente como se fosse boi pro
matadouro e também o preconceito
racial, que gera uma discussão
atravessada em vários períodos da
narrativa. Alguns concordam que há
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
na narrativa literária de Nei Lopes.
PragMATIZES
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
out. 2019 a março 2020.
racismo no Brasil, outros não tem tanta
convicção, mas o fato é que o
linchamento da Central
nitidamente a anulão de qualquer
clima amistoso que encubra uma
democracia racial, favorecendo o
argumento de que a abolão da
escravatura foi incapaz de inserir o
negro na sociedade: “Abolão de
fachada! Onde se viu libertação sem
condição
econômica, sem previdência?”.
Há quem acredite que a ausência de leis
segregacionistas, como nos Estados
Unidos, de onde chegam as primeiras
nocias sobre Rosa Parks e o
movimento pelos direitos civis, possa ser
um incio de uma outra realidade no
Brasil, que dispensaria tais medidas, ao
mesmo tempo que os frequentadores
do Ca Rio Negro reclamam das
esquetes de humor e piadas racistas
veiculadas pela Rádio Nacional, a
grande dia da época: “E você já
reparou que, no dio, artista preto
dificilm
ente tem nome? o tem nome,
é apelido: Blecaute, Caboré,
Chocolate, Jamelão, Gasolina, Pato
Preto, Risadinha...”. (LOPES, 2015, p.
43)
Em linhas gerais, a narrativa de
Rio Negro 50, ao completar uma trilogia
iniciada com o romance “Mandingas da
CARMO, Cláudio do. Ninguiém ouviu um soluçar de dor: violência
racial
PragMATIZES
- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
racismo no Brasil, outros não tem tanta
convicção, mas o fato é que o
demonstra
nitidamente a anulão de qualquer
clima amistoso que encubra uma
democracia racial, favorecendo o
argumento de que a abolão da
escravatura foi incapaz de inserir o
negro na sociedade: “Abolão de
fachada! Onde se viu libertação sem
econômica, sem previdência?”.
Há quem acredite que a ausência de leis
segregacionistas, como nos Estados
Unidos, de onde chegam as primeiras
nocias sobre Rosa Parks e o
movimento pelos direitos civis, possa ser
um incio de uma outra realidade no
Brasil, que dispensaria tais medidas, ao
mesmo tempo que os frequentadores
do Ca Rio Negro reclamam das
esquetes de humor e piadas racistas
veiculadas pela Rádio Nacional, a
grande dia da época: “E você já
reparou que, no dio, artista preto
ente tem nome? o tem nome,
é apelido: Blecaute, Caboré,
Chocolate, Jamelão, Gasolina, Pato
Preto, Risadinha...”. (LOPES, 2015, p.
Em linhas gerais, a narrativa de
Rio Negro 50, ao completar uma trilogia
iniciada com o romance “Mandingas da
mulata
velha na cidade nova” ; e a “A lua
triste descamba tem no protagonismo
negro sua razão. O que parece evidente
é que tais obras e notadamente este
Rio Negro, 50” representam uma
resisncia ao discurso dominante que
faz com que o negro, ou afro
descenden
te esteja sempre em plano
secundário, d a atualidade de uma
narrativa que passada nos anos de 1950
traz a meria daquele tempo, e acuse
a violência secular que justifique o
discurso e prática de resistência
comumente reivindicado.
Ao pontuar com freq
passado mira-
se o presente, a
contemporaneidade, e a constante
atualizão das condições de
precarizão que a condição histórica do
negro reveste e forma. Tais
condições aviltantes são alicerçadas
num passado cruel, que está longe de
ser ficção
, e encontra eco numa atitude
senhorial que escamoteia o conflito
como forma de manter a deteão do
poder simbólico e real daqueles que o
dem.
Referências
bibliográficas
AUGEL, Moema Parente.
da África na poesia afro
contemporânea.
Revista Afro
Salvador, n.
19/20, p.183
276
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
velha na cidade nova” ; e a “A lua
triste descamba tem no protagonismo
negro sua razão. O que parece evidente
é que tais obras e notadamente este
Rio Negro, 50” representam uma
resisncia ao discurso dominante que
faz com que o negro, ou afro
-
te esteja sempre em plano
secundário, d a atualidade de uma
narrativa que passada nos anos de 1950
traz a meria daquele tempo, e acuse
a violência secular que justifique o
discurso e prática de resistência
comumente reivindicado.
Ao pontuar com freq
ncia o
se o presente, a
contemporaneidade, e a constante
atualizão das condições de
precarizão que a condição histórica do
negro reveste e forma. Tais
condições aviltantes são alicerçadas
num passado cruel, que está longe de
, e encontra eco numa atitude
senhorial que escamoteia o conflito
como forma de manter a deteão do
poder simbólico e real daqueles que o
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A imagem
da África na poesia afro
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out. 2019 a março 2020.
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. São Paulo
Cultrix, 1978.
DUARTE, Eduardo de Assis.
afro-brasileira
: um conceito em
construção.
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11
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Crítica da razão
negra. São Paulo : N-
1 edições, 2019.
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p. 200-212, 1992.
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racial
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- Revista Latino-
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
266-277,
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
. São Paulo
:
DUARTE, Eduardo de Assis.
Literatura
: um conceito em
Revista Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea
,
11
.
. Rio de
Crítica da razão
1 edições, 2019.
Memória e
Revista Estudos
, v.
5, n. 10,
277
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
Memórias da violência em “
DOI:
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.
Resumo: Este
ensaio objetiva apresentar uma análise da violência presente no livro
escritor chileno Roberto Bolaño. O romance está contextualizado no início da década de 1970,
momento de grandes tensões políticas e de significativa violência no México e do
militar-
empresarial chilena (1973
foram (e são ainda) episódios marcantes que unem os países latino
diversas formas de violência ocorrida
durante o período mencionado, assim como, qual a relação entre a política e a literatura presentes na
referida obra. Os atuais discursos políticos que circulam em nossa sociedade sinalizam que gran
parte da população brasileira provavelmente ignora parte significativa da história, inclusive do Brasil,
nas décadas de 1960/1970, ou seja, a memória produzida sobre este período não deu conta de fazer
conhecer os horrores e as atrocidades cometidos dur
país. A partir da abordagem do lugar da poesia e dos poetas na década de 1970, a narradora de
Amuleto
versa sobre seu papel de defensora da poesia e da memória política do México e do Chile
de meados do século
XX, de forma indissociável. Com seu discurso circular, calcado na reiteração de
eventos traumáticos que presenciou, em especial, à invasão à UNAM, o Massacre de
(1968) e o golpe militar chileno (1973). Neste último fato, relatado pelo personagem
um trabalho de escavação memorialística, tanto nas ocorrências históricas mencionadas, como dos
intentos poéticos do distrito federal mexicano. Os jovens poetas narrados pela protagonista
defendiam o livre trânsito entre vida e poesia, s
encarnados na figura de Octavio Paz, como também do poder hegemônico. O movimento poético
desses jovens latino-
americanos da década de 1970 agrega as muitas inquietações dos seus
integrantes. A paixão pela poesia é
ato e em cada verso um novo modo de explicar o mundo através de uma poesia sem burocracias,
sem espaços de poder e legitimações padronizadas. Este estudo contribui para a indispensabilidade
de
se manter vivos os horrores e traumas que aconteceram durante os regimes autoritários e as
ditaduras militares na América Latina e suas reverberações, considerando, sobretudo, que a memória
pode ser um potente instrumento utilizado na reconstrução da histó
teóricos e críticos de Paul Ricoeur (1996), Nascimento (2008), Seligmann
Rojo (2012), Bolognese (2009),
Villarreal (2011),
Palavras-chave
: literatura; violência; política; vanguarda;
1
Norma Sueli de Araújo Menezes.
Universidade Federal da Bahia.
E
8935
2
Júlia Morena Silva da Costa. Doutora em
Letras da Universidade Federal da Bahia/UFBA, Brasil. E
https://orcid.org/0000-0002-
2272
Texto recebido em 23/12
/2019 e aceito para publicação em 2
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Memórias da violência em “
Amuleto
” de Roberto Bolaño
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.
40211
Norma Sueli de Araújo Menezes
Júlia Morena Silva da Costa
ensaio objetiva apresentar uma análise da violência presente no livro
escritor chileno Roberto Bolaño. O romance está contextualizado no início da década de 1970,
momento de grandes tensões políticas e de significativa violência no México e do
empresarial chilena (1973
-
1990). Os regimes ditatoriais, embora em circunstâncias diferentes,
foram (e são ainda) episódios marcantes que unem os países latino
-
americanos. Identificaremos as
diversas formas de violência ocorrida
s na América Latina, especificamente, no Chile e no México
durante o período mencionado, assim como, qual a relação entre a política e a literatura presentes na
referida obra. Os atuais discursos políticos que circulam em nossa sociedade sinalizam que gran
parte da população brasileira provavelmente ignora parte significativa da história, inclusive do Brasil,
nas décadas de 1960/1970, ou seja, a memória produzida sobre este período não deu conta de fazer
conhecer os horrores e as atrocidades cometidos dur
ante os mais de 20 anos de governo militar no
país. A partir da abordagem do lugar da poesia e dos poetas na década de 1970, a narradora de
versa sobre seu papel de defensora da poesia e da memória política do México e do Chile
XX, de forma indissociável. Com seu discurso circular, calcado na reiteração de
eventos traumáticos que presenciou, em especial, à invasão à UNAM, o Massacre de
(1968) e o golpe militar chileno (1973). Neste último fato, relatado pelo personagem
um trabalho de escavação memorialística, tanto nas ocorrências históricas mencionadas, como dos
intentos poéticos do distrito federal mexicano. Os jovens poetas narrados pela protagonista
defendiam o livre trânsito entre vida e poesia, s
e opunham aos moldes acadêmicos vigentes
encarnados na figura de Octavio Paz, como também do poder hegemônico. O movimento poético
americanos da década de 1970 agrega as muitas inquietações dos seus
integrantes. A paixão pela poesia é
o princípio básico que dá unidade ao grupo que buscava em cada
ato e em cada verso um novo modo de explicar o mundo através de uma poesia sem burocracias,
sem espaços de poder e legitimações padronizadas. Este estudo contribui para a indispensabilidade
se manter vivos os horrores e traumas que aconteceram durante os regimes autoritários e as
ditaduras militares na América Latina e suas reverberações, considerando, sobretudo, que a memória
pode ser um potente instrumento utilizado na reconstrução da histó
ria. Serão utilizados textos
teóricos e críticos de Paul Ricoeur (1996), Nascimento (2008), Seligmann
-Silva
(2003), Sarlo (2007) e
Villarreal (2011),
entre outros.
: literatura; violência; política; vanguarda;
cânone.
Norma Sueli de Araújo Menezes.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
Literatura e Cultura da
E
-mail: norma_81@hotmail.com -
https://orcid.org/0000
Júlia Morena Silva da Costa. Doutora em
Literatura e Cultura (UFBA), p
rofessora do Instituto de
Letras da Universidade Federal da Bahia/UFBA, Brasil. E
-mail:
juliamorenacosta@gmail.com
2272
-9893
/2019 e aceito para publicação em 2
1/01/2020.
278
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
” de Roberto Bolaño
Norma Sueli de Araújo Menezes
1
Júlia Morena Silva da Costa
2
ensaio objetiva apresentar uma análise da violência presente no livro
Amuleto” do
escritor chileno Roberto Bolaño. O romance está contextualizado no início da década de 1970,
momento de grandes tensões políticas e de significativa violência no México e do
início da ditadura
1990). Os regimes ditatoriais, embora em circunstâncias diferentes,
americanos. Identificaremos as
s na América Latina, especificamente, no Chile e no México
durante o período mencionado, assim como, qual a relação entre a política e a literatura presentes na
referida obra. Os atuais discursos políticos que circulam em nossa sociedade sinalizam que gran
de
parte da população brasileira provavelmente ignora parte significativa da história, inclusive do Brasil,
nas décadas de 1960/1970, ou seja, a memória produzida sobre este período não deu conta de fazer
ante os mais de 20 anos de governo militar no
país. A partir da abordagem do lugar da poesia e dos poetas na década de 1970, a narradora de
versa sobre seu papel de defensora da poesia e da memória política do México e do Chile
XX, de forma indissociável. Com seu discurso circular, calcado na reiteração de
eventos traumáticos que presenciou, em especial, à invasão à UNAM, o Massacre de
Tlatelolco
(1968) e o golpe militar chileno (1973). Neste último fato, relatado pelo personagem
Arturo Belano, há
um trabalho de escavação memorialística, tanto nas ocorrências históricas mencionadas, como dos
intentos poéticos do distrito federal mexicano. Os jovens poetas narrados pela protagonista
e opunham aos moldes acadêmicos vigentes
encarnados na figura de Octavio Paz, como também do poder hegemônico. O movimento poético
americanos da década de 1970 agrega as muitas inquietações dos seus
o princípio básico que dá unidade ao grupo que buscava em cada
ato e em cada verso um novo modo de explicar o mundo através de uma poesia sem burocracias,
sem espaços de poder e legitimações padronizadas. Este estudo contribui para a indispensabilidade
se manter vivos os horrores e traumas que aconteceram durante os regimes autoritários e as
ditaduras militares na América Latina e suas reverberações, considerando, sobretudo, que a memória
ria. Serão utilizados textos
(2003), Sarlo (2007) e
Literatura e Cultura da
https://orcid.org/0000
-0001-7320-
rofessora do Instituto de
juliamorenacosta@gmail.com
-
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
Memorias de la violencia en "
Amuleto
Resumen:
Este ensayo tiene como objetivo presentar un análisis de la
"Amuleto
" del escritor chileno Roberto Bolaño. La novela se contextualiza a principios de la década de
1970, una época de gran tensión política y violencia significativa en México y el comienzo de la
dictadura militar-
comercial chilena (1973
circunstancias, fueron (y siguen siendo) episodios notables que unen a los países latinoamericanos.
Identificaremos las diversas formas de violencia que ocurrieron en el continente latino
específicamente, Chi
le y México durante el período mencionado, así como cuál es la relación entre
política y literatura presente en ese trabajo. Los discursos políticos actuales que circulan en nuestra
sociedad indican que una gran parte de la población brasileña probablement
importante de la historia reciente de América Latina, incluido Brasil, en las
para dar a conocer los horrores y atrocidades cometidos durante los más de 20 años de gobierno
militar en el país. Desde el enfoque del lu
narradora de Amuleto
aborda su papel de defensora de la poesía y la memoria política de México y
Chile de mediados del siglo XX, inseparablemente. Con su discurso circular, basado en la reiteración
de
eventos traumáticos que presenció, en particular, la invasión de UNAM, la Masacre de Tlatelolco
(1968) y el golpe militar chileno (1973). Este último hecho vivido por el personaje Arturo Belano, hay
un trabajo de excavación memorialista de las ocurrencias
intenciones poéticas del distrito federal mexicano. Los jóvenes poetas narrados por la protagonista
defendían el libre tránsito entre la vida y la poesía, y hacían oposición a los moldes académicos
actuales encarnados en la
figura de Octavio Paz, así como al poder hegemónico. El movimiento
poético de estos jóvenes latinoamericanos de la década de 1970 se suma a las muchas
preocupaciones de sus miembros. La pasión por la poesía es el principio básico que da unidad al
grupo qu
e buscaba en cada acto y verso una nueva forma de explicar el mundo a través de la poesía
sin burocracias, sin espacios de poder y legitimaciones estandarizadas. Este estudio contribuye a la
indispensabilidad de mantener vivos los horrores y traumas que oc
autoritarios y las dictaduras militares en América Latina y sus reverberaciones. Sobre todo, porque
entiende que la memoria puede ser un poderoso instrumento utilizado en la reconstrucción de la
historia. Serán utilizados tex
tos teóricos y críticos
Seligmann-Silva
(2003), Sarlo (2007) e Rojo (2012), Bolognese (2009),
Palabras clave
: literatura; violencia; política; vanguardia; canon
Memories of violence in
Roberto Bolaño's “
Abstract:
This essay aims to present an analysis of the violence present in the book “Amuleto” by the
Chilean writer Roberto Bolaño.
The novel portrays the early 1960s
and significant violence in Mexico and the beginning of the Chilean military
(1973-1990).
Dictatorial regimes, although in different circumstances, were (and still are) landmark
episodes that unite
Latin American countries. We will identify the various forms of violence that
occurred in Latin America, specifically in Chile and Mexico during the period mentioned, as well as,
what is the relationship between politics and literature present in that wor
discourses circulating in our society indicate that a large part of the Brazilian population probably
ignores a significant part of history, including Brazil, in the 1960s / 1970s, that is the memory produced
about this period fail
ed to make known the horrors and the atrocities committed during the more than
20 years of military rule in the country. Based on the approach of the place of poetry and poets in the
1970s, Amuleto's narrator talks about her role as a defender of poetry an
Mexico and Chile of the mid-
20th century, inseparable. With his circular speech, based on the
reiteration of traumatic events that witnessed, in particular, the invasion of UNAM,
Massacre (1968) and the Chilean mili
Arturo Belano, there is a work of memorialistic excavation, both in the historical events mentioned, as
well as the poetic intentions of the Mexican federal district. The young poets narrated b
protagonist defended the free transit between life and poetry, opposed the current academic patterns
embodied in the figure of Octavio Paz,
young Latin Americans in the 1970s adds to the many c
poetry is the basic principle that gives unity to the group that sought in each act and in each verse a
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Amuleto
" de Roberto Bolaño
Este ensayo tiene como objetivo presentar un análisis de la
violencia existente en el libro
" del escritor chileno Roberto Bolaño. La novela se contextualiza a principios de la década de
1970, una época de gran tensión política y violencia significativa en México y el comienzo de la
comercial chilena (1973
-1190). Los regímenes d
ictatoriales, aunque bajo diferentes
circunstancias, fueron (y siguen siendo) episodios notables que unen a los países latinoamericanos.
Identificaremos las diversas formas de violencia que ocurrieron en el continente latino
le y México durante el período mencionado, así como cuál es la relación entre
política y literatura presente en ese trabajo. Los discursos políticos actuales que circulan en nuestra
sociedad indican que una gran parte de la población brasileña probablement
e ignora una parte
importante de la historia reciente de América Latina, incluido Brasil, en las
décadas de 1960/1970
para dar a conocer los horrores y atrocidades cometidos durante los más de 20 años de gobierno
militar en el país. Desde el enfoque del lu
gar de la poesía y los poetas en la década de 1970, la
aborda su papel de defensora de la poesía y la memoria política de México y
Chile de mediados del siglo XX, inseparablemente. Con su discurso circular, basado en la reiteración
eventos traumáticos que presenció, en particular, la invasión de UNAM, la Masacre de Tlatelolco
(1968) y el golpe militar chileno (1973). Este último hecho vivido por el personaje Arturo Belano, hay
un trabajo de excavación memorialista de las ocurrencias
históricas mencionadas, y de las
intenciones poéticas del distrito federal mexicano. Los jóvenes poetas narrados por la protagonista
defendían el libre tránsito entre la vida y la poesía, y hacían oposición a los moldes académicos
figura de Octavio Paz, así como al poder hegemónico. El movimiento
poético de estos jóvenes latinoamericanos de la década de 1970 se suma a las muchas
preocupaciones de sus miembros. La pasión por la poesía es el principio básico que da unidad al
e buscaba en cada acto y verso una nueva forma de explicar el mundo a través de la poesía
sin burocracias, sin espacios de poder y legitimaciones estandarizadas. Este estudio contribuye a la
indispensabilidad de mantener vivos los horrores y traumas que oc
urrieron durante los regímenes
autoritarios y las dictaduras militares en América Latina y sus reverberaciones. Sobre todo, porque
entiende que la memoria puede ser un poderoso instrumento utilizado en la reconstrucción de la
tos teóricos y críticos
de
Paul Ricoeur (1996), Nascimento (2008),
(2003), Sarlo (2007) e Rojo (2012), Bolognese (2009),
Villarreal (2011),
: literatura; violencia; política; vanguardia; canon
Roberto Bolaño's “
Amulet
This essay aims to present an analysis of the violence present in the book “Amuleto” by the
The novel portrays the early 1960s
, a time of great political tensions
and significant violence in Mexico and the beginning of the Chilean military
-
business dictatorship
Dictatorial regimes, although in different circumstances, were (and still are) landmark
Latin American countries. We will identify the various forms of violence that
occurred in Latin America, specifically in Chile and Mexico during the period mentioned, as well as,
what is the relationship between politics and literature present in that wor
k. The current political
discourses circulating in our society indicate that a large part of the Brazilian population probably
ignores a significant part of history, including Brazil, in the 1960s / 1970s, that is the memory produced
ed to make known the horrors and the atrocities committed during the more than
20 years of military rule in the country. Based on the approach of the place of poetry and poets in the
1970s, Amuleto's narrator talks about her role as a defender of poetry an
d the political memory of
20th century, inseparable. With his circular speech, based on the
reiteration of traumatic events that witnessed, in particular, the invasion of UNAM,
Massacre (1968) and the Chilean mili
tary coup (1973).
In this last fact, reported by the character
Arturo Belano, there is a work of memorialistic excavation, both in the historical events mentioned, as
well as the poetic intentions of the Mexican federal district. The young poets narrated b
protagonist defended the free transit between life and poetry, opposed the current academic patterns
embodied in the figure of Octavio Paz,
as well as hegemonic power.
The poetic movement of these
young Latin Americans in the 1970s adds to the many c
oncerns of their members. The passion for
poetry is the basic principle that gives unity to the group that sought in each act and in each verse a
279
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
violencia existente en el libro
" del escritor chileno Roberto Bolaño. La novela se contextualiza a principios de la década de
1970, una época de gran tensión política y violencia significativa en México y el comienzo de la
ictatoriales, aunque bajo diferentes
circunstancias, fueron (y siguen siendo) episodios notables que unen a los países latinoamericanos.
Identificaremos las diversas formas de violencia que ocurrieron en el continente latino
-americano,
le y México durante el período mencionado, así como cuál es la relación entre
política y literatura presente en ese trabajo. Los discursos políticos actuales que circulan en nuestra
e ignora una parte
décadas de 1960/1970
para dar a conocer los horrores y atrocidades cometidos durante los más de 20 años de gobierno
gar de la poesía y los poetas en la década de 1970, la
aborda su papel de defensora de la poesía y la memoria política de México y
Chile de mediados del siglo XX, inseparablemente. Con su discurso circular, basado en la reiteración
eventos traumáticos que presenció, en particular, la invasión de UNAM, la Masacre de Tlatelolco
(1968) y el golpe militar chileno (1973). Este último hecho vivido por el personaje Arturo Belano, hay
históricas mencionadas, y de las
intenciones poéticas del distrito federal mexicano. Los jóvenes poetas narrados por la protagonista
defendían el libre tránsito entre la vida y la poesía, y hacían oposición a los moldes académicos
figura de Octavio Paz, así como al poder hegemónico. El movimiento
poético de estos jóvenes latinoamericanos de la década de 1970 se suma a las muchas
preocupaciones de sus miembros. La pasión por la poesía es el principio básico que da unidad al
e buscaba en cada acto y verso una nueva forma de explicar el mundo a través de la poesía
sin burocracias, sin espacios de poder y legitimaciones estandarizadas. Este estudio contribuye a la
urrieron durante los regímenes
autoritarios y las dictaduras militares en América Latina y sus reverberaciones. Sobre todo, porque
entiende que la memoria puede ser un poderoso instrumento utilizado en la reconstrucción de la
Paul Ricoeur (1996), Nascimento (2008),
Villarreal (2011),
entre otros.
This essay aims to present an analysis of the violence present in the book “Amuleto” by the
, a time of great political tensions
business dictatorship
Dictatorial regimes, although in different circumstances, were (and still are) landmark
Latin American countries. We will identify the various forms of violence that
occurred in Latin America, specifically in Chile and Mexico during the period mentioned, as well as,
k. The current political
discourses circulating in our society indicate that a large part of the Brazilian population probably
ignores a significant part of history, including Brazil, in the 1960s / 1970s, that is the memory produced
ed to make known the horrors and the atrocities committed during the more than
20 years of military rule in the country. Based on the approach of the place of poetry and poets in the
d the political memory of
20th century, inseparable. With his circular speech, based on the
reiteration of traumatic events that witnessed, in particular, the invasion of UNAM,
the Tlatelolco
In this last fact, reported by the character
Arturo Belano, there is a work of memorialistic excavation, both in the historical events mentioned, as
well as the poetic intentions of the Mexican federal district. The young poets narrated b
y the
protagonist defended the free transit between life and poetry, opposed the current academic patterns
The poetic movement of these
oncerns of their members. The passion for
poetry is the basic principle that gives unity to the group that sought in each act and in each verse a
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
new way of explaining the world through poetry without bureaucracy, without spaces of power and
standardized l
egitimations. This study contributes to the indispensability of keeping alive the horrors
and traumas that happened during the authoritarian regimes and the military dictatorships in Latin
America and its reverberations, considering, above all, that memory
used in the reconstruction of history. Theoretical and critical texts by Paul Ricoeur (1996), Nascimento
(2008), Seligmann-
Silva (2003), Sarlo (2007), Rojo (2012), Bolognese (2009), Villarreal (2011),
among others, will be used.
Keywords
: literature; violence; politics; vanguard; canon.
Memórias da violência em “
O que se pretende analisar
neste ensaio é como o autor chileno se
utiliza das memórias da personagem
narradora da obra aqui analisada,
Amuleto
(1999), Auxilio Lacouture,
para questionar o discurso oficial e
romper com lugares preestabelecidos,
tanto no campo literário como no
discurso oficial da história. Este estudo
foi desenvolvido a partir das pesquisas
e leituras realizadas no decorrer do
Cu
rso de Mestrado em Letras, do
Programa de Pós-
Graduação em
Literatura e Cultura, inserido na linha
de pesquisa Documentos da Memória
Cultural.
O escritor chileno Roberto
Bolaño começou sua carreira
escrevendo poesia. Seus primeiros
textos já indicavam uma
convenções literárias vigentes. Na
década de 1970, fundou com outros
poetas da sua geração o
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
new way of explaining the world through poetry without bureaucracy, without spaces of power and
egitimations. This study contributes to the indispensability of keeping alive the horrors
and traumas that happened during the authoritarian regimes and the military dictatorships in Latin
America and its reverberations, considering, above all, that memory
can be a powerful instrument
used in the reconstruction of history. Theoretical and critical texts by Paul Ricoeur (1996), Nascimento
Silva (2003), Sarlo (2007), Rojo (2012), Bolognese (2009), Villarreal (2011),
: literature; violence; politics; vanguard; canon.
Memórias da violência em “
Amuleto
” de Roberto Bolaño
O que se pretende analisar
neste ensaio é como o autor chileno se
utiliza das memórias da personagem
narradora da obra aqui analisada,
(1999), Auxilio Lacouture,
para questionar o discurso oficial e
romper com lugares preestabelecidos,
tanto no campo literário como no
discurso oficial da história. Este estudo
foi desenvolvido a partir das pesquisas
e leituras realizadas no decorrer do
rso de Mestrado em Letras, do
Graduação em
Literatura e Cultura, inserido na linha
de pesquisa Documentos da Memória
O escritor chileno Roberto
Bolaño começou sua carreira
escrevendo poesia. Seus primeiros
ruptura das
convenções literárias vigentes. Na
década de 1970, fundou com outros
poetas da sua geração o
Infrarrealismo, movimento literário
vanguardista tardio, que buscava na
renovação uma nova relação perante a
vida, a poesia e as convenções
sociais. Uma forte
movimento era a oposição aos moldes
acadêmicos vigentes, simbolizados,
entre outros signos, na figura do
mexicano Octavio Paz.
Chiara Bolognese (2009, p. 131) “[…]
es precisamente para oponerse a Paz
por lo que
los creadores pretendían
producir una
nueva literatura
distinta
3
”. E
ao poder hegemônico,
representado pelo Partido
Revolucionário Institucional (PRI), que
governou o México
entre os anos de
1929 a 2000.
Bolaño (1977, p. 41)
reafirma seu
objetivo de enfrentar toda
3
BOLOGNESE (2009, p 131). Tradução
nossa: “[...] é
precisamente para se opor a Paz
que os criadores pretendiam produzir uma
literatura nova e totalmente distinta”.
280
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
new way of explaining the world through poetry without bureaucracy, without spaces of power and
egitimations. This study contributes to the indispensability of keeping alive the horrors
and traumas that happened during the authoritarian regimes and the military dictatorships in Latin
can be a powerful instrument
used in the reconstruction of history. Theoretical and critical texts by Paul Ricoeur (1996), Nascimento
Silva (2003), Sarlo (2007), Rojo (2012), Bolognese (2009), Villarreal (2011),
” de Roberto Bolaño
Infrarrealismo, movimento literário
vanguardista tardio, que buscava na
renovação uma nova relação perante a
vida, a poesia e as convenções
característica do
movimento era a oposição aos moldes
acadêmicos vigentes, simbolizados,
entre outros signos, na figura do
poeta
mexicano Octavio Paz.
De acordo com
Chiara Bolognese (2009, p. 131) “[…]
es precisamente para oponerse a Paz
los creadores pretendían
nueva literatura
y
ao poder hegemônico,
representado pelo Partido
Revolucionário Institucional (PRI), que
entre os anos de
Bolaño (1977, p. 41)
afirma e
objetivo de enfrentar toda
BOLOGNESE (2009, p 131). Tradução
precisamente para se opor a Paz
que os criadores pretendiam produzir uma
literatura nova e totalmente distinta”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
e qualquer tentativa de elitização da
literatura ao escrever:
“[...] la poesía
practicada por los vanguardistas de los
años veinte fue el primer cartucho
disparado contra la literatura canónica
imperante y que recién su generació
ha disparado el segundo
chileno
e o movimento Infrarrealismo
criticavam a relação dos
escritores do
boom com o poder.
Edmundo Paz
Soldán (2013, p. 15) esclarece que
nos textos do autor chileno
encontramos: “[...] las perversas
relaciones que e
xisten en América
Latina entre el poder y la letra.
Nuestros intelectuales han terminado
más una vez seducidos por el poder
Em um dos inúmeros documentários
sobre a obra e vida
Semana do autor, Roberto Bolaño
entorno y retorno
6
”, o
professor mexicano
Rubén Medina
afirmou
que: “[…] el Infrarrealismo
planteó una ética de escribir, una
4
BOLAÑO (1977, p. 41).
Tradução
a poesia praticada pelos vanguardistas dos
anos vente foi o primeiro cartucho disparado
contra a
literatura canônica imperante e que
recém sua geração disparou o segundo”.
5
PAZ SOLDÁN (2008, p. 15). Tradução
nossa
: “[…] as perversas relações que existem
na América Latina entre o poder e a letra.
Nossos intelectuais terminaram mais uma vez
seduzidos pelo poder”.
6
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NuS
7Oml4FE. Acesso: 28 nov.
2019.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
e qualquer tentativa de elitização da
“[...] la poesía
practicada por los vanguardistas de los
años veinte fue el primer cartucho
disparado contra la literatura canónica
imperante y que recién su generació
n
ha disparado el segundo
4
”. O autor
e o movimento Infrarrealismo
escritores do
Edmundo Paz
Soldán (2013, p. 15) esclarece que
nos textos do autor chileno
encontramos: “[...] las perversas
xisten en América
Latina entre el poder y la letra.
Nuestros intelectuales han terminado
más una vez seducidos por el poder
5
”.
Em um dos inúmeros documentários
de Bolaño,
Semana do autor, Roberto Bolaño
poeta e
Rubén Medina
que: “[…] el Infrarrealismo
planteó una ética de escribir, una
Tradução
nossa: “[...]
a poesia praticada pelos vanguardistas dos
anos vente foi o primeiro cartucho disparado
literatura canônica imperante e que
recém sua geração disparou o segundo”.
PAZ SOLDÁN (2008, p. 15). Tradução
: “[…] as perversas relações que existem
na América Latina entre o poder e a letra.
Nossos intelectuais terminaram mais uma vez
https://www.youtube.com/watch?v=NuS
-
2019.
posición frente a la literatura, frente a
las instituciones
7
”.
Portanto, a
literatura de Bolaño
se caracterizou por criticar,
sistematicamente, o academ
perpetrado pelo discurso oficial, o qual
determinava, e ainda determina, em
grande parte, quais escritores
deveriam e devem ser considerados
canônicos. Ainda mais, se pensarmos
que um escritor pode ser cânone em
seu país e desconhecido em outros
lug
ares. Assim sendo, Bolaño e o
movimento Infrarrealismo
preconizavam que fosse dada a
oportunidade a todos os escritores e
não apenas aos que se submetessem
às regras do sistema.
Nos últimos 10 anos de vida,
doente, Bolaño se dedicou à narrativa
e em mui
tas de suas obras, como em
Amuleto
, aqui analisada, o
Infrarrealismo está ficcionalizado. A
personagem narradora conta uma
história que é ao mesmo tempo a sua
história e a de muitos outros
personagens. Conta também a
trajetória de um país que sofreu as
açõ
es de um governo quase ditatorial,
7
RUBÉN MEDINA.
Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=NuS
7Oml4FE>. Acesso em: 28 nov 2019.
Tradução minha: “[…] levantou uma ética de
escrever, uma
posição frente a literatura,
frente as instituições”.
281
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
posición frente a la literatura, frente a
literatura de Bolaño
se caracterizou por criticar,
sistematicamente, o academ
icismo
perpetrado pelo discurso oficial, o qual
determinava, e ainda determina, em
grande parte, quais escritores
deveriam e devem ser considerados
canônicos. Ainda mais, se pensarmos
que um escritor pode ser cânone em
seu país e desconhecido em outros
ares. Assim sendo, Bolaño e o
movimento Infrarrealismo
preconizavam que fosse dada a
oportunidade a todos os escritores e
não apenas aos que se submetessem
Nos últimos 10 anos de vida,
doente, Bolaño se dedicou à narrativa
tas de suas obras, como em
, aqui analisada, o
Infrarrealismo está ficcionalizado. A
personagem narradora conta uma
história que é ao mesmo tempo a sua
história e a de muitos outros
personagens. Conta também a
trajetória de um país que sofreu as
es de um governo quase ditatorial,
Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=NuS
-
7Oml4FE>. Acesso em: 28 nov 2019.
Tradução minha: “[…] levantou uma ética de
posição frente a literatura,
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
o México, relacionando o que para o
autor é inseparável: literatura e vida.
Bolognese (2009, pp. 34
-
que: “El mundo de Bolaño, es un
universo donde la literatura y la
existencia cotidiana se mezclan
continuamente
8
”. Em
Amuleto
narradora afirma: “Yo he vivido las
aventuras de la poesía, que siempre
son aventuras de vida o muerte”
(BOLAÑO, 1999, p. 34).
De acordo com
Andrea Carral
(2005, p. 4) “[...] el infrarrealismo está
llamado a ser ‘el ojo de la transición’,
el testigo que puede dar cuenta de las
nuevas experiencias histórico
de la América Latina de mediados de
los 70
9
”. O texto de autoria do também
fundador do
Infrarrealismo, Ramón
Estrada
Rebeldes con causa
no manifesto
Nada utópico nos es
ajeno
10
(2013, p. 19) afirma que a voz
de Bolaño: “[…] abre paso en la selva
de textos insulsos y aburridos que
saturan el panorama editorial de las
8
BOLOGNESE (2009, pp. 34-
35).
nossa
: “O mundo de Bolaño é um universo
onde a literatura e a existência cotidiana se
misturam continuamente”.
9
CARRAL (2005, p. 4).
Tradução
Infrarrealismo
está chamado a ser ‘o olho da
transição’, a testemunha que pode dar conta
das novas experiências histórico
América
Latina em meados dos 70”.
10
ESTRADA (2013). Tradução
nossa
utópico nos é distante”.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
o México, relacionando o que para o
autor é inseparável: literatura e vida.
-
35) explica
que: “El mundo de Bolaño, es un
universo donde la literatura y la
existencia cotidiana se mezclan
Amuleto
, a
narradora afirma: “Yo he vivido las
aventuras de la poesía, que siempre
son aventuras de vida o muerte”
Andrea Carral
(2005, p. 4) “[...] el infrarrealismo está
llamado a ser ‘el ojo de la transición’,
el testigo que puede dar cuenta de las
nuevas experiencias histórico
-políticas
de la América Latina de mediados de
”. O texto de autoria do também
Infrarrealismo, Ramón
Rebeldes con causa
publicado
Nada utópico nos es
(2013, p. 19) afirma que a voz
de Bolaño: “[…] abre paso en la selva
de textos insulsos y aburridos que
saturan el panorama editorial de las
35).
Tradução
: “O mundo de Bolaño é um universo
onde a literatura e a existência cotidiana se
Tradução
nossa: “O
está chamado a ser ‘o olho da
transição’, a testemunha que pode dar conta
-políticas da
Latina em meados dos 70”.
nossa
: “Nada
institu
ciones oficiales, y la profecía
gana terreno en la geografía de la
práctica
11
”.
Assim, é importante
ressaltar que a literatura de Roberto
Bolaño não aceita os estereótipos
deixados pelo realismo mágico, pelo
contrário, ela é avessa a esse
processo. Em seus
diversas entrevistas, o autor chileno
ironiza e critica os escritores latino
americanos que insistiam em
perpetuar o legado do
retrata, em grande medida, seu
posicionamento político e estético.
É neste sentido que surge o
Infrarrea
lismo, movimento político,
poético e estético: seu propósito é
atacar a cultura oficial, que naquele
período estava sob duas correntes, a
dos que obtinham a proteção do
Estado priista e a representada pelos
intelectuais Octávio Paz, Carlos
Monsiváis e seus
proposta do Infrarrealismo, abraçada
pelo jovens poetas integrantes do
movimento e seduzidos pelos ideais
defendidos por Che Guevara, era
combater este modelo de cultura
perverso, porque ele excluía tudo que
11
ESTRADA (2013
, p. 19). Tradução
“[...] abre passo na selva de textos insossos e
chatos que saturam o panorama editorial das
instituições oficiais, e a profecia ganha terreno
na geografia da prática”.
282
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
ciones oficiales, y la profecía
gana terreno en la geografía de la
Assim, é importante
ressaltar que a literatura de Roberto
Bolaño não aceita os estereótipos
deixados pelo realismo mágico, pelo
contrário, ela é avessa a esse
processo. Em seus
textos e em
diversas entrevistas, o autor chileno
ironiza e critica os escritores latino
-
americanos que insistiam em
perpetuar o legado do
boom, o que
retrata, em grande medida, seu
posicionamento político e estético.
É neste sentido que surge o
lismo, movimento político,
poético e estético: seu propósito é
atacar a cultura oficial, que naquele
período estava sob duas correntes, a
dos que obtinham a proteção do
Estado priista e a representada pelos
intelectuais Octávio Paz, Carlos
apadrinhados. A
proposta do Infrarrealismo, abraçada
pelo jovens poetas integrantes do
movimento e seduzidos pelos ideais
defendidos por Che Guevara, era
combater este modelo de cultura
perverso, porque ele excluía tudo que
, p. 19). Tradução
nossa:
“[...] abre passo na selva de textos insossos e
chatos que saturam o panorama editorial das
instituições oficiais, e a profecia ganha terreno
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
não estivesse relacionado ao PR
aos seus asseclas. (VILLARREAL,
2011). Conforme explica Caro (2010
p. 77):
Los infrarrealistas se sentían parte
de una tradición poética distinta a la
convencional. El solo hecho de
apartarse de los grandes íconos
culturales que eran Paz y Monsiváis,
significaba ir por un camino arduo: el
del exilio en la propia tierra. Existían
dos pilares en la construcción de su
identidad, uno era la lucha social, el
estar contra el gobierno del PRI y
con la revolución
mejor dicho, con
la contrarrevolución, con el
aparente igualdad y libertad con las
que las autoridades se llenaban la
boca –
y el otro gran cimiento del
movimiento era la pasión por la
poesía, la fusión entre vida y arte.
Por eso los infra encontraron refugio
en José Revueltas y Efraín Huer
Na obra em análise, ao dar a
uma mulher, Auxilio Lacouture: “[...]
ciudadana del Uruguay,
latinoamericana, poeta y viajera
(BOLAÑO, 1999, p. 11), o status de
12
CARO (2010, p. 77). Tradução
Infrarrealistas se sentiam parte de uma
tradição poética distinta da convencional.
Apenas o fato de se distanciar dos grandes
ícones culturais que eram Paz e Monsiváis,
significava ir por um caminho árduo: o do exilio
na própria terra. Existiam dois
pilares na
construção de sua identidade, um era a luta
social, o estar contra o governo do PRI e com
a revolução –
melhor dizendo, com a
contrarrevolução, com o fim da aparente
igualdade e liberdade com as que as
autoridades enchiam a boca –
e o outro
gran
de cimento do movimento era a paixão
pela poesia, a fusão entre vida e arte. Por isso
os infra encontraram refúgio em José
Revueltas e Efraín Huerta”.
13
BOLAÑO (1999, p. 11). Tradução
“[...] cidadã do Uruguai, latino-
americana,
poeta e viajante”.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
não estivesse relacionado ao PR
I e
aos seus asseclas. (VILLARREAL,
2011). Conforme explica Caro (2010
,
Los infrarrealistas se sentían parte
de una tradición poética distinta a la
convencional. El solo hecho de
apartarse de los grandes íconos
culturales que eran Paz y Monsiváis,
significaba ir por un camino arduo: el
del exilio en la propia tierra. Existían
dos pilares en la construcción de su
identidad, uno era la lucha social, el
estar contra el gobierno del PRI y
mejor dicho, con
la contrarrevolución, con el
fin de la
aparente igualdad y libertad con las
que las autoridades se llenaban la
y el otro gran cimiento del
movimiento era la pasión por la
poesía, la fusión entre vida y arte.
Por eso los infra encontraron refugio
en José Revueltas y Efraín Huer
ta
12
..
Na obra em análise, ao dar a
uma mulher, Auxilio Lacouture: “[...]
ciudadana del Uruguay,
latinoamericana, poeta y viajera
13
(BOLAÑO, 1999, p. 11), o status de
CARO (2010, p. 77). Tradução
nossa: “Os
Infrarrealistas se sentiam parte de uma
tradição poética distinta da convencional.
Apenas o fato de se distanciar dos grandes
ícones culturais que eram Paz e Monsiváis,
significava ir por um caminho árduo: o do exilio
pilares na
construção de sua identidade, um era a luta
social, o estar contra o governo do PRI e com
melhor dizendo, com a
contrarrevolução, com o fim da aparente
igualdade e liberdade com as que as
e o outro
de cimento do movimento era a paixão
pela poesia, a fusão entre vida e arte. Por isso
os infra encontraram refúgio em José
BOLAÑO (1999, p. 11). Tradução
nossa:
americana,
mãe da poesia e de todos os poetas,
Bolaño levanta uma questão relevante
no que diz
respeito ao modelo
normativo. Primeiro, porque a
protagonista da obra é uma mulher, o
que por si seria suficiente para
questionar um espaço que foi e
continua, predominantemente,
masculino, embora, hoje perceba
uma mudança neste cenário.
Segundo,
por ser uma mulher latino
americana. Sobre esse último ponto,
cabe lembrar que a literatura de língua
hispano-
americana passou a ter maior
visibilidade após a década de 1960
com o fenômeno do
americano”, tendo como principais
nomes Gabriel Gar
cia rquez, Julio
Cortázar, Carlos Fuentes, Mario
Vargas Llosa, Juan Carlos Onetti,
Alejo Carpentier, Miguel Ángel
Asturias, José Donoso, Elena Garrô,
Laura Restrepo, Cristina Peri Rossi,
entre outros. Aqui importa destacar
que mesmo tendo participado, os
nomes das escritoras deste período
quase nunca são lembrados.
Ressalta-
se que os textos de
Bolaño atuam no intento de se
distanciar dos autores citados como
canônicos ou hegemônicos.
Bolognese (2009, p. 42) “Bolaño [...]
283
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
mãe da poesia e de todos os poetas,
Bolaño levanta uma questão relevante
respeito ao modelo
normativo. Primeiro, porque a
protagonista da obra é uma mulher, o
que por si seria suficiente para
questionar um espaço que foi e
continua, predominantemente,
masculino, embora, hoje perceba
-se
uma mudança neste cenário.
por ser uma mulher latino
-
americana. Sobre esse último ponto,
cabe lembrar que a literatura de língua
americana passou a ter maior
visibilidade após a década de 1960
com o fenômeno do
boom latino-
americano”, tendo como principais
cia rquez, Julio
Cortázar, Carlos Fuentes, Mario
Vargas Llosa, Juan Carlos Onetti,
Alejo Carpentier, Miguel Ángel
Asturias, José Donoso, Elena Garrô,
Laura Restrepo, Cristina Peri Rossi,
entre outros. Aqui importa destacar
que mesmo tendo participado, os
nomes das escritoras deste período
quase nunca são lembrados.
se que os textos de
Bolaño atuam no intento de se
distanciar dos autores citados como
canônicos ou hegemônicos.
Para
Bolognese (2009, p. 42) “Bolaño [...]
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
tomó un posición firme sobre
de la herencia de los narrados del
boom
”, […] se negaba a doblarse a las
leyes del mundo del mercado
editorial
14
”. Em Amuleto
, a vida de
Auxilio nada tinha de convencional,
pois em seu relato ela afirma
el día vivía en la Facultad, como
hormiguita o más propiamente como
una cigarra, de un lado para otro, de
un cubículo a otro cubículo
(BOLAÑO, 1999, p.7).
Auxilio é uma figura que, além
de não se encaixar no chamado
padrão, não tem legitimidade para o
discurso oficial. Portanto
, Bolaño
inicia a narrativa quebrando
paradigmas ao escolher uma mulher
como narradora e protagonista de uma
história que expõe as discriminações
de gênero, sociais e literárias.
A narradora de
Amuleto
apresenta como poeta e se auto
intitula: “[...]
la madre de la poesía
14
BOLOGNESE (2009, p. 42). Tradução
nossa
: “Bolaño [...] tomou uma posição firme
sobre o tema da herança dos narrados do
boom”, […] se negava a dobrar-
se as leis do
mundo do mercado editorial”.
15
BOLAÑO (1999, p. 7).
Tradução
de dia viva na Facul
dade, como uma
formiguinha ou mais propriamente como uma
cigarra, de um lado para outro, de um cubículo
a outro cubículo [...]”.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
tomó un posición firme sobre
el tema
de la herencia de los narrados del
”, […] se negaba a doblarse a las
leyes del mundo del mercado
, a vida de
Auxilio nada tinha de convencional,
pois em seu relato ela afirma
: “Yo por
el día vivía en la Facultad, como
una
hormiguita o más propiamente como
una cigarra, de un lado para otro, de
un cubículo a otro cubículo
15
[…]”.
Auxilio é uma figura que, além
de não se encaixar no chamado
padrão, não tem legitimidade para o
, Bolaño
inicia a narrativa quebrando
paradigmas ao escolher uma mulher
como narradora e protagonista de uma
história que expõe as discriminações
de gênero, sociais e literárias.
Amuleto
se
apresenta como poeta e se auto
la madre de la poesía
BOLOGNESE (2009, p. 42). Tradução
: “Bolaño [...] tomou uma posição firme
sobre o tema da herança dos narrados do
se as leis do
Tradução
nossa: “Eu
dade, como uma
formiguinha ou mais propriamente como uma
cigarra, de um lado para outro, de um cubículo
mexicana
16
”. (BOLAÑO, 1999, p.2).
Auxilio com suas vivências se percebe
como a mãe” de todos os poetas
mexicanos, ou seja, este é o
entendimento que ela tem de si
mesma e a orientação que à sua
vida: “Yo soy la madre de los poetas
de México
17
”. (BOLAÑO, 1999, p.57).
Bolaño se apropria das memórias da
narradora para produzir o que o autor
chama de poesia latino
Essa memória que, a princípio, pode
parecer localizada ou puramente
pessoal, se coletiviza como uma
memória perten
cente a uma geração
de latino-
americanos poetas.
Conforme Paul Ricoeur (1996, p. 9)
“[...] a memória é sempre a memória
de alguém (ou de um grupo) que faz
projetos e visa o futuro, pois a
memória é o instrumento que traz este
passado ao presente, permitind
construção de novos discursos e
saberes”.
É a invasão à Universidade
Autônoma do México (UNAM) que
desencadeia o fluxo narrativo de
Amuleto
, este episódio atormenta a
narradora. São reiteradas e frequentes
16
BOLAÑO (1999, p. 2). Tradução
a mãe da poesia mexicana”.
17
BOLAÑO (1999, p. 57).
“Eu sou a mãe
dos poetas de México”.
284
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
”. (BOLAÑO, 1999, p.2).
Auxilio com suas vivências se percebe
como a mãe” de todos os poetas
mexicanos, ou seja, este é o
entendimento que ela tem de si
mesma e a orientação que à sua
vida: “Yo soy la madre de los poetas
”. (BOLAÑO, 1999, p.57).
Bolaño se apropria das memórias da
narradora para produzir o que o autor
chama de poesia latino
-americana.
Essa memória que, a princípio, pode
parecer localizada ou puramente
pessoal, se coletiviza como uma
cente a uma geração
americanos poetas.
Conforme Paul Ricoeur (1996, p. 9)
“[...] a memória é sempre a memória
de alguém (ou de um grupo) que faz
projetos e visa o futuro, pois a
memória é o instrumento que traz este
passado ao presente, permitind
o a
construção de novos discursos e
É a invasão à Universidade
Autônoma do México (UNAM) que
desencadeia o fluxo narrativo de
, este episódio atormenta a
narradora. São reiteradas e frequentes
BOLAÑO (1999, p. 2). Tradução
nossa: “[...]
a mãe da poesia mexicana”.
Tradução nossa:
dos poetas de México”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
as lembranças do período em que
ficou presa n
o banheiro da
universidade enquanto alunos,
professores e funcionários eram
agredidos e presos pela polícia: “Cosa
más increíble.
Yo estaba en el baño,
en los lavabos de una de las plantas
de la Facultad, la cuarta, […]. Y estaba
sentada en el water, en el
momento en
que los granaderos […] entraban en la
Universidad
18
”.
(BOLAÑO, 1999, p.9).
Auxilio é reclusa deste espaço que
reconstituirá sua memória individual
sobre este traumático evento.
Ainda que possa parecer linear,
a narrativa apresentada por Auxilio
entrecortada pelas recordações dos
eventos na UNAM e
18
BOLAÑO (1999, p. 12).
Tradução
“Coisa mais incrível. Eu estava no banheiro,
nos lavabos de uma das plantas da
Faculdade, a quarta, [...] E estava sentada no
vaso, no momento em que os granadeiros [...]
entraram na Universidade”.
19
COSTA (2015, p. 56).
O Massacre de
Tlatelolco
, ocorrido em 1968, foi um ataque
militar direcionado ao movimento estudantil em
protesto contra os jogos olímpicos.
r
econhecido como um evento marcado pela
repressão aos estudantes com
desproporcionalidade da ação violenta e de
seu subsequente encobrimento pelas forças
oficiais. Costa afirma que: “
O governo, à
época, divulgou somente 20 mortes; no
entanto, este número é
confrontado por
historiadores que chegam a afirmar que houve
mais de 250 mortos e outras centenas de
presos. Com uso de ostensiva força militar e
de
agentes infiltrados, o exército disparou
contra os milhares de manifestantes reunidos
na Plaza de las tres
Culturas de
Testemunhas afirmam o uso de estratégias de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
as lembranças do período em que
o banheiro da
universidade enquanto alunos,
professores e funcionários eram
agredidos e presos pela polícia: “Cosa
Yo estaba en el baño,
en los lavabos de una de las plantas
de la Facultad, la cuarta, […]. Y estaba
momento en
que los granaderos […] entraban en la
(BOLAÑO, 1999, p.9).
Auxilio é reclusa deste espaço que
reconstituirá sua memória individual
sobre este traumático evento.
Ainda que possa parecer linear,
a narrativa apresentada por Auxilio
é
entrecortada pelas recordações dos
Tlatelolco
19
.
Tradução
nossa:
“Coisa mais incrível. Eu estava no banheiro,
nos lavabos de uma das plantas da
Faculdade, a quarta, [...] E estava sentada no
vaso, no momento em que os granadeiros [...]
O Massacre de
, ocorrido em 1968, foi um ataque
militar direcionado ao movimento estudantil em
protesto contra os jogos olímpicos.
É
econhecido como um evento marcado pela
desproporcionalidade da ação violenta e de
seu subsequente encobrimento pelas forças
O governo, à
época, divulgou somente 20 mortes; no
confrontado por
historiadores que chegam a afirmar que houve
mais de 250 mortos e outras centenas de
presos. Com uso de ostensiva força militar e
agentes infiltrados, o exército disparou
contra os milhares de manifestantes reunidos
Tlatelolco.
Testemunhas afirmam o uso de estratégias de
Como nos alerta Seligmann
(2003, p. 76) “[...] toda escritura do
passado […] é uma (re)inscrição
penosa e nunca total”. É neste
processo de dor e de inúmeros
retornos ao passado que a narradora
de Amuleto
nos dá a conhecer, através
de sua memória desconexa carregada
de titubeios e
sofrimento, que esta
será uma história de terror: “Y pensé:
así es la Historia, un cuento corto de
terror
20
”. (BOLAÑO, 1999, p.23).
O relato de Auxilio é
fragmentado, não linear, suas
recordações emergem em qualquer
ocasião e lugar, indícios de que a
memóri
a não pode ser controlada,
dada a impossibilidade da tradução
total deste passado: “[...] como si el
tiempo se fracturara y corriera en
varias direcciones a la vez, un tiempo
puro, ni verbal ni compuesto de gestos
o acciones
21
[...]”. (BOLAÑO, 1999, p.
9).
Resgatamos Seligmann
(2003, p. 62), pois para o estudioso:
ágil remoção dos corpos e aprisionamento de
manifestantes, de forma a ocultar rapidamente
a violência estatal contra a manifestação.
20
BOLAÑO (1999, p. 23).
pensei:
assim é a História, um conto curto de
terror”.
21
BOLAÑO (1999, p. 9).
Tradução
como se o tempo se cortasse e corresse em
várias direções a vez, um tempo puro, nem
verbal nem composto de gestos ou ações [...]”.
285
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Como nos alerta Seligmann
-Silva
(2003, p. 76) “[...] toda escritura do
passado […] é uma (re)inscrição
penosa e nunca total”. É neste
processo de dor e de inúmeros
retornos ao passado que a narradora
nos dá a conhecer, através
de sua memória desconexa carregada
sofrimento, que esta
será uma história de terror: “Y pensé:
así es la Historia, un cuento corto de
”. (BOLAÑO, 1999, p.23).
O relato de Auxilio é
fragmentado, não linear, suas
recordações emergem em qualquer
ocasião e lugar, indícios de que a
a não pode ser controlada,
dada a impossibilidade da tradução
total deste passado: “[...] como si el
tiempo se fracturara y corriera en
varias direcciones a la vez, un tiempo
puro, ni verbal ni compuesto de gestos
[...]”. (BOLAÑO, 1999, p.
Resgatamos Seligmann
-Silva
(2003, p. 62), pois para o estudioso:
ágil remoção dos corpos e aprisionamento de
manifestantes, de forma a ocultar rapidamente
a violência estatal contra a manifestação.
Tradução nossa: “E
assim é a História, um conto curto de
Tradução
nossa: “[...]
como se o tempo se cortasse e corresse em
várias direções a vez, um tempo puro, nem
verbal nem composto de gestos ou ações [...]”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
“[...] o registro da memória é [...]
seletivo e opera no
double bind
lembrança e esquecimento, no tecer e
destecer”. E de acordo com Beatriz
Sarlo (2007, p. 9):
Del pasado no se
prescinde por el
ejercicio de la decisión ni de la
inteligencia; tampoco se lo convoca
simplemente por un acto de la
voluntad. El regreso del pasarlo no
es siempre un momento liberador del
recuerdo, sino un advenimiento, una
captura del presente
22
.
Tais
fatos são recordados pela
personagem num discurso
interrompido pelas lembranças do
passado, impressões do presente e
esboço do futuro
: “Quiero decir: me
puse a pensar en mi pasado como si
pensara en mi presente y en mi futuro
y en mi pasado, todo revuelto”
(BOLAÑO, 1999, p.29).
Auxilio narra
suas memórias rompendo com uma
lógica espacial e temporal: “Y mis
recuerdos que se remontan sin orden
ni concierto hacia atrás y hacia
adelante de aquel desamparado mes
22
SARLO (2007, p. 9). Tradução
se prescinde do passado pelo exercício da
decisão ou inteligência; tampouco ele é
convocado simplesmente por um ato da
vontade. O retorno do passado nem sempre é
um momento libertador da lembrança, mas um
advento, uma captura do presente”.
23
BOLAÑO (1999, p. 29).
Tradução
“Quero dizer: me coloquei a pensar em meu
passado como se pensasse em meu presente
e em meu futuro e em meu passado, tudo
revirado”.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
“[...] o registro da memória é [...]
double bind
entre
lembrança e esquecimento, no tecer e
destecer”. E de acordo com Beatriz
prescinde por el
ejercicio de la decisión ni de la
inteligencia; tampoco se lo convoca
simplemente por un acto de la
voluntad. El regreso del pasarlo no
es siempre un momento liberador del
recuerdo, sino un advenimiento, una
.
fatos são recordados pela
personagem num discurso
interrompido pelas lembranças do
passado, impressões do presente e
: “Quiero decir: me
puse a pensar en mi pasado como si
pensara en mi presente y en mi futuro
y en mi pasado, todo revuelto”
23
.
Auxilio narra
suas memórias rompendo com uma
lógica espacial e temporal: “Y mis
recuerdos que se remontan sin orden
ni concierto hacia atrás y hacia
adelante de aquel desamparado mes
SARLO (2007, p. 9). Tradução
nossa: “Não
se prescinde do passado pelo exercício da
decisão ou inteligência; tampouco ele é
convocado simplesmente por um ato da
vontade. O retorno do passado nem sempre é
um momento libertador da lembrança, mas um
advento, uma captura do presente”.
Tradução
nossa:
“Quero dizer: me coloquei a pensar em meu
passado como se pensasse em meu presente
e em meu futuro e em meu passado, tudo
de septiembre de 1968
1999, p.38).
A
memória sobre os episódios
mexicanos faz com que Auxilio retorne
em muitos momentos da sua narração
e, de diversas maneiras, ao dia 18 de
setembro de 1968,
especificamente ao banheiro da
Faculdade de Filosofia
UNAM:
Yo estaba en la Facul
aquel 18 de septiembre cuando el
ejército violó la autonomía y entró en el
campus a detener o a matar a todo el
mundo
25
”. (BOLAÑO, 1999, p. 9).
memórias da narradora nos levam a
um passado marcado pelas
atrocidades experienciadas que
marcaram a histó
México:
Y ahora estaba allí, […] me
dije aquí pasa algo raro, Auxilio, nena,
abre los ojos y fíjate en los detalles, no
sea que se te pase por alto lo más
importante de esta historia
(BOLAÑO, 1999, p.16).
24
BOLAÑO (1999, p. 38).
minhas recordações que se referem sem
ordem
nem gala para atrás e para frente
daquele desamparado mês de setembro de
1968”.
25
BOLAÑO (1999, p. 9).
Tradução
estava na Faculdade aquele 18 de setembro
quando o exército violou a autonomia e entrou
no campus a prender ou a matar a todo
mundo”.
26
BOLAÑO (1999, p. 16). Tradução
agora eu estava ali, [...] e pensei aqui passa
algo estranho, Auxilio, criatura, abre os olhos e
286
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
de septiembre de 1968
24
”. (BOLAÑO,
memória sobre os episódios
mexicanos faz com que Auxilio retorne
em muitos momentos da sua narração
e, de diversas maneiras, ao dia 18 de
setembro de 1968,
mais
especificamente ao banheiro da
Faculdade de Filosofia
e Letras da
tad
aquel 18 de septiembre cuando el
ejército violó la autonomía y entró en el
campus a detener o a matar a todo el
”. (BOLAÑO, 1999, p. 9).
As
memórias da narradora nos levam a
um passado marcado pelas
atrocidades experienciadas que
ria recente do
Y ahora estaba allí, […] me
dije aquí pasa algo raro, Auxilio, nena,
abre los ojos y fíjate en los detalles, no
sea que se te pase por alto lo más
importante de esta historia
26
”.
(BOLAÑO, 1999, p.16).
Tradução nossa: “E
minhas recordações que se referem sem
nem gala para atrás e para frente
daquele desamparado mês de setembro de
Tradução
nossa: “Eu
estava na Faculdade aquele 18 de setembro
quando o exército violou a autonomia e entrou
no campus a prender ou a matar a todo
BOLAÑO (1999, p. 16). Tradução
nossa: “E
agora eu estava ali, [...] e pensei aqui passa
algo estranho, Auxilio, criatura, abre os olhos e
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
As delirantes memórias da
narrad
ora também fazem alusão a
outro acontecimento significativo da
história latino-
americana, o golpe de
Estado chileno. Em
Amuleto
evento, é vivenciado pelo personagem
Arturo Belano, que assim como o
próprio autor Bolaño, na obra aqui
analisada viajou
do México ao seu
país natal, Chile, para participar do
novo momento político após a eleição
de Salvador Allende: “[…] el joven
Arturo Belano, al que yo conocí
cuando tenía dieciséis o diecisiete
años, en el año de 1970, […] que se
sentía orgulloso de que e
Chile hubiera ganado las elecciones
Salvador Allende”
27
. (BOLAÑO, 1999,
p.13).
Dessa maneira, são as
recordações da narradora que nos
fazem lembrar das adversidades pela
qual a América Latina passou (e ainda
passa) relacionadas, principalmente,
ao que aconteceu quando esteve
presa no banheiro da UNAM.
fixe-
se nos detalhes, não seja que te passe
despercebido o mais importante de esta
história”.
27
BOLAÑO (1999, p. 13). Tradução
“[…] o jovem Arturo Belano, que eu conheci
quando tinha dezesseis ou dezessete anos, no
ano de 1970, […] que se sentia orgulhoso de
que em seu longe Chile houvesse ganhado as
eleições Salvador Allende”.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
As delirantes memórias da
ora também fazem alusão a
outro acontecimento significativo da
americana, o golpe de
Amuleto
, este
evento, é vivenciado pelo personagem
Arturo Belano, que assim como o
próprio autor Bolaño, na obra aqui
do México ao seu
país natal, Chile, para participar do
novo momento político após a eleição
de Salvador Allende: “[…] el joven
Arturo Belano, al que yo conocí
cuando tenía dieciséis o diecisiete
años, en el año de 1970, […] que se
sentía orgulloso de que e
n su lejano
Chile hubiera ganado las elecciones
. (BOLAÑO, 1999,
Dessa maneira, são as
recordações da narradora que nos
fazem lembrar das adversidades pela
qual a América Latina passou (e ainda
passa) relacionadas, principalmente,
ao que aconteceu quando esteve
presa no banheiro da UNAM.
se nos detalhes, não seja que te passe
despercebido o mais importante de esta
BOLAÑO (1999, p. 13). Tradução
nossa:
“[…] o jovem Arturo Belano, que eu conheci
quando tinha dezesseis ou dezessete anos, no
ano de 1970, […] que se sentia orgulhoso de
que em seu longe Chile houvesse ganhado as
[…] yo me movía feliz de la vida, con
todos los poetas de México y con
Arturito Belano que tenía diecisiete
años, dieciocho años, y que iba
creciendo mientras yo lo miraba.
¡Todos iban creciendo amp
por mi mirada! Es decir: todos iban
creciendo en la intemperie mexicana,
en la intemperie latinoamericana,
que es la intemperie más grande
porque es la más escindida y la más
desesperada […]. Y yo estaba allí
con ellos porque yo tampoco tenía
nada,
excepto mi memoria. Yo tenía
recuerdos. Yo vivía encerrada en el
lavabo de mujeres de la Facultad,
vivía empotrada en el mes de
septiembre del año 1968
(BOLAÑO, 1999, p. 15).
Em Amuleto
, Bolaño escolhe
eventos históricos importantes da
América La
tina para construir a
narrativa. Ademais, são inúmeras as
referências à poesia e aos poetas
mexicanos, inclusive, como
mencionado, a própria narradora se
autodenomina mãe da poesia e dos
poetas mexicanos:
Yo soy la
amiga de todos
mexicanos. Podría decir: soy la
madre de la poesía mexicana, pero
mejor no lo digo. Yo conozco a todos
los poetas y todos los poetas me
28
BOLAÑO (1999
, p. 15).
“[...] eu me movia feliz da vida, com todos os
poetas de México y com Arturito Belano que
tinha dezessete anos, dezoito anos, e ia
crescendo enquanto eu cuidava dele. Todos
iam crescendo amparados por meu cuidado!
Quer dizer: todo
s iam crescendo na intempérie
latino-
americana que é maior porque é a mais
dividida e desesperada [...]. Eu tinha
recordações. Eu vivia aprisionada no banheiro
de mulheres da Faculdade, vivia incrustada no
mês de setembro de ano 1968 […]”.
287
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
[…] yo me movía feliz de la vida, con
todos los poetas de México y con
Arturito Belano que tenía diecisiete
años, dieciocho años, y que iba
creciendo mientras yo lo miraba.
¡Todos iban creciendo amp
arados
por mi mirada! Es decir: todos iban
creciendo en la intemperie mexicana,
en la intemperie latinoamericana,
que es la intemperie más grande
porque es la más escindida y la más
desesperada […]. Y yo estaba allí
con ellos porque yo tampoco tenía
excepto mi memoria. Yo tenía
recuerdos. Yo vivía encerrada en el
lavabo de mujeres de la Facultad,
vivía empotrada en el mes de
septiembre del año 1968
28
[...].
(BOLAÑO, 1999, p. 15).
, Bolaño escolhe
eventos históricos importantes da
tina para construir a
narrativa. Ademais, são inúmeras as
referências à poesia e aos poetas
mexicanos, inclusive, como
mencionado, a própria narradora se
autodenomina mãe da poesia e dos
amiga de todos
los
mexicanos. Podría decir: soy la
madre de la poesía mexicana, pero
mejor no lo digo. Yo conozco a todos
los poetas y todos los poetas me
Tradução nossa:
“[...] eu me movia feliz da vida, com todos os
poetas de México y com Arturito Belano que
tinha dezessete anos, dezoito anos, e ia
crescendo enquanto eu cuidava dele. Todos
iam crescendo amparados por meu cuidado!
s iam crescendo na intempérie
americana que é maior porque é a mais
dividida e desesperada [...]. Eu tinha
recordações. Eu vivia aprisionada no banheiro
de mulheres da Faculdade, vivia incrustada no
mês de setembro de ano 1968 […]”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
conocen a mí.
Así que podría
decirlo
29
. (
BOLAÑO, 1999,
N
este estudo, defendemos a
hipótese de que a personagem
n
arradora Auxilio Lacouture é guardiã
da memória histórica do México e do
Chile das cadas de 1960
longo da narrativa, as recordações de
Auxilio a levam diversas vezes e de
muitos modos ao que ocorreu no
México em 1968, ou seja, a invasão à
Univer
sidade Autônoma do México:
“Eso pensaba yo encerrada en el
lavabo de mujeres de la cuarta planta
de la Facultad de Filosofía y Letras
(BOLAÑO, 1999,
p.18), e ao Massacre
de Tlatelolco,
ambos em setembro de
1968: “En la Universidad no hubo
muchos muertos
. Fue en Tlatelolco
(BOLAÑO, 1999,
p.9), como também
ao Chile em 1973, período do golpe de
Estado, o que faz
com que não nos
esqueçamos o que ocorreu nos
referidos acontecimentos. Reiteramos
29
BOLAÑO (1999, p. 2).
Tradução
sou a amiga de todos os mexicanos. Podia
dizer: sou a mãe da poesia mexicana, porém
melhor não o digo. Eu conheço a todos os
poetas e todos os poetas me conhecem.
Assim que podia lhe dizer”.
30
BOLAÑO (1999, p. 18).
Tradução
Isso eu pensava presa no lavabo de mulheres
da quarta planta da Faculdade de Filosofia e
Letras”.
31
BOLAÑO (1999, p. 9).
Tradução
Universidade não houve muitos mortos. Foi
em Tlatelolco.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Así que podría
BOLAÑO, 1999,
p. 2).
este estudo, defendemos a
hipótese de que a personagem
arradora Auxilio Lacouture é guardiã
da memória histórica do México e do
Chile das cadas de 1960
-1970. Ao
longo da narrativa, as recordações de
Auxilio a levam diversas vezes e de
muitos modos ao que ocorreu no
México em 1968, ou seja, a invasão à
sidade Autônoma do México:
“Eso pensaba yo encerrada en el
lavabo de mujeres de la cuarta planta
de la Facultad de Filosofía y Letras
30
”,
p.18), e ao Massacre
ambos em setembro de
1968: “En la Universidad no hubo
. Fue en Tlatelolco
31
p.9), como também
ao Chile em 1973, período do golpe de
com que não nos
esqueçamos o que ocorreu nos
referidos acontecimentos. Reiteramos
Tradução
nossa: “Eu
sou a amiga de todos os mexicanos. Podia
dizer: sou a mãe da poesia mexicana, porém
melhor não o digo. Eu conheço a todos os
poetas e todos os poetas me conhecem.
Tradução
nossa:
Isso eu pensava presa no lavabo de mulheres
da quarta planta da Faculdade de Filosofia e
Tradução
nossa: “Na
Universidade não houve muitos mortos. Foi
que Auxilio é também guardiã da
memória literária latino
porque Bolaño através de sua
narradora questiona
a literatura, pondo
em
xeque o fazer poético e os
interesses que o circundam. Este
pressuposto se evidencia no decorrer
do relato da personagem, quando ao
longo da narrativa faz menção à
literatura cham
ada cânone ou a
produzida pelos jovens poetas
marginalizados da cidade do DF, ou
seja, é através da poesia que a
narradora encontra forças para resistir.
Así que me senté sobre las baldosas
del baño de mujeres y aproveché los
últimos rayos de luz para leer
poemas más de Pedro Garfias y
luego cerré el libro y cerré los ojos y
me dije: Auxilio Lacouture, ciudadana
del Uruguay, latinoamericana, poeta
y viajera, resiste
p. 11).
Em Amuleto
, o autor chileno
contesta o cânone através das
memórias da narradora. E o faz
passeando pela literatura mundial, de
Ovidio, Proust, Celan, Pasolini, Woolf,
Borges, Bretón, Huidobro, Cardenal a
Paz, entre outros, o que demonstra
seu profundo conhecimento d
32
BOLAÑO (1999, p. 11).
“Assim
que eu sentei sobre os azulejos do
banheiro feminino e aproveitei os últimos raios
de luz para ler mais três poemas de Pedro
Garfias e logo fechei os olhos e fechei o livro e
disse: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai,
latino-
americana, poeta y viajante,
288
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
que Auxilio é também guardiã da
memória literária latino
-americana,
porque Bolaño através de sua
a literatura, pondo
xeque o fazer poético e os
interesses que o circundam. Este
pressuposto se evidencia no decorrer
do relato da personagem, quando ao
longo da narrativa faz menção à
ada cânone ou a
produzida pelos jovens poetas
marginalizados da cidade do DF, ou
seja, é através da poesia que a
narradora encontra forças para resistir.
Así que me senté sobre las baldosas
del baño de mujeres y aproveché los
últimos rayos de luz para leer
tres
poemas más de Pedro Garfias y
luego cerré el libro y cerré los ojos y
me dije: Auxilio Lacouture, ciudadana
del Uruguay, latinoamericana, poeta
y viajera, resiste
32
. (BOLAÑO, 1999,
, o autor chileno
contesta o cânone através das
memórias da narradora. E o faz
passeando pela literatura mundial, de
Ovidio, Proust, Celan, Pasolini, Woolf,
Borges, Bretón, Huidobro, Cardenal a
Paz, entre outros, o que demonstra
seu profundo conhecimento d
a poesia
Tradução nossa:
que eu sentei sobre os azulejos do
banheiro feminino e aproveitei os últimos raios
de luz para ler mais três poemas de Pedro
Garfias e logo fechei os olhos e fechei o livro e
disse: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai,
americana, poeta y viajante,
resiste”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
e da narrativa mundial. Cabe destacar
que ao mesmo tempo em que dialoga
com autores consagrados, Bolaño
critica determinados modelos
convencionais.
¿Y la buena cultura burguesa? ¿Y la
academia y los incendiarios? ¿y las
vanguardias y sus retaguar
ciertas concepciones del amor, ¿Y
ciertas concepciones del amor, el
buen paisaje, la Colt precisa y
multinacional? Como me dijo Saint
Just en un sueño que tuve hace
tiempo: Hasta las cabezas de los
aristócratas nos pueden servir de
armas
33
.
(BOLAÑO, 2013, p. 54).
Auxilio faz comentários sobre o
futuro dos escritores ditos
consagrados, o que sinaliza que
Bolaño reconhece, ao mesmo tempo
em que põe em dúvida este modelo de
literatura. Talvez ao usar a palavra
“estátua” como metáfora para
simbo
lizar a aura dos escritores, o
autor esteja problematizando este
reconhecimento, que para ele,
assim como a vida, a aura é
susceptível ao esquecimento, ao
desaparecimento e,
consequentemente, à morte como
relata a narradora: “Y lo que los poetas
33
BOLAÑO (2013, p. 54).
Tradução
a boa cultura burguesa? E a academia e os
incendiários? E as
vanguardas e suas
retaguardas? E certas concepções do amor, a
boa paisagem, a Colt precisa e multinacional?
Como me disse Saint-
Just em um son
tive faz tempo: Até as cabeças dos
aristocratas podem nos servir de armas”.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
e da narrativa mundial. Cabe destacar
que ao mesmo tempo em que dialoga
com autores consagrados, Bolaño
critica determinados modelos
¿Y la buena cultura burguesa? ¿Y la
academia y los incendiarios? ¿y las
vanguardias y sus retaguar
dias? ¿Y
ciertas concepciones del amor, ¿Y
ciertas concepciones del amor, el
buen paisaje, la Colt precisa y
multinacional? Como me dijo Saint
-
Just en un sueño que tuve hace
tiempo: Hasta las cabezas de los
aristócratas nos pueden servir de
(BOLAÑO, 2013, p. 54).
Auxilio faz comentários sobre o
futuro dos escritores ditos
consagrados, o que sinaliza que
Bolaño reconhece, ao mesmo tempo
em que põe em dúvida este modelo de
literatura. Talvez ao usar a palavra
“estátua” como metáfora para
lizar a aura dos escritores, o
autor esteja problematizando este
reconhecimento, que para ele,
assim como a vida, a aura é
susceptível ao esquecimento, ao
desaparecimento e,
consequentemente, à morte como
relata a narradora: “Y lo que los poetas
Tradução
nossa: “E
a boa cultura burguesa? E a academia e os
vanguardas e suas
retaguardas? E certas concepções do amor, a
boa paisagem, a Colt precisa e multinacional?
Just em um son
ho que
tive faz tempo: Até as cabeças dos
aristocratas podem nos servir de armas”.
jóvenes
o la nueva generación
pretendía era mover el piso y llegado
el momento destruir esas estatuas,
salvo la de Pacheco, el único que
parecía escribir de verdad, el único
que no parecía funcionario
(BOLAÑO, 1999, p.20).
Ao trazer para a narrativa
escritore
s dos mais diversos lugares,
gêneros e língua Bolaño quebra as
barreiras geográficas e discursivas,
demonstrando que para Auxilio (e,
portanto, para a guardiã da jovem
poesia mexicana) uma leitora assídua
(como o próprio autor foi), a
considerada literatur
a marginal está no
mesmo patamar da considerada
cânone. Inclusive, ao longo da
narrativa, a personagem faz previsões
sobre alguns renomados escritores.
Estoy en el lavabo de mujeres de la
Facultad y puedo ver el futuro, decía
yo con voz de soprano […] mis
profecías son éstas. Vladímir
Maiakovski volverá a estar de moda
allá por el año 2150. James Joyce se
reencarnará en un niño chino en el
año 2124. Thomas Mann se
convertirá en un farmacéutico
ecuatoriano en el año 2101. Marcel
Proust entrará en un desespe
prolongado olvido a partir del o
2033. Jorge Luis Borges será leído
en los túneles en el año 2045.
Vicente Huidobro será un poeta de
34
BOLAÑO (1999, p. 20).
o que os poetas jovens ou a nova geração
pretendia era mover o piso e chegado o
momento destruir essas estatuas, salvo a de
Pacheco, o único que parecia escrever de
verdade, o único que não parecia funcionário”.
289
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
o la nueva generación
pretendía era mover el piso y llegado
el momento destruir esas estatuas,
salvo la de Pacheco, el único que
parecía escribir de verdad, el único
que no parecía funcionario
34
”.
(BOLAÑO, 1999, p.20).
Ao trazer para a narrativa
s dos mais diversos lugares,
gêneros e língua Bolaño quebra as
barreiras geográficas e discursivas,
demonstrando que para Auxilio (e,
portanto, para a guardiã da jovem
poesia mexicana) uma leitora assídua
(como o próprio autor foi), a
a marginal está no
mesmo patamar da considerada
cânone. Inclusive, ao longo da
narrativa, a personagem faz previsões
sobre alguns renomados escritores.
Estoy en el lavabo de mujeres de la
Facultad y puedo ver el futuro, decía
yo con voz de soprano […] mis
profecías son éstas. Vladímir
Maiakovski volverá a estar de moda
allá por el año 2150. James Joyce se
reencarnará en un niño chino en el
año 2124. Thomas Mann se
convertirá en un farmacéutico
ecuatoriano en el año 2101. Marcel
Proust entrará en un desespe
rado y
prolongado olvido a partir del o
2033. Jorge Luis Borges será leído
en los túneles en el año 2045.
Vicente Huidobro será un poeta de
Tradução nossa: “E
o que os poetas jovens ou a nova geração
pretendia era mover o piso e chegado o
momento destruir essas estatuas, salvo a de
Pacheco, o único que parecia escrever de
verdade, o único que não parecia funcionário”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
masas en el año 2045. Virginia Woolf
se reencarnará en una narradora
argentina en el año 2076
(BOLAÑO, 1999, p.
53).
Desse modo, ao validar o
cânone, Bolaño não desperdiça as
lições do centro, longe disso, faz com
que elas sirvam ao seu objetivo, que é
a literatura, respondendo,
afirmativamente, a pergunta de Grinor
Rojo (2012, p. 273) ¿Pueden producir
los latinoam
ericanos una literatura
propia, original, o están condenados a
generar réplicas menores de los
grandes modelos metropolitanos
Para Bolaño, valorar alguns
poetas em detrimento de outros tantos
é fomentar a exclusão, é contribuir
para que bons autores que
margem continuem apagados. É nesta
lógica que sua literatura trabalha,
35
BOLAÑO (1999, p. 53).
Tradução
“Estou no lavabo de mulheres da Faculdade e
posso ver o futuro, dizia eu com voz de
soprano […] minhas profecias são estas.
Vlad
ímir Maiakovski voltará a estar na moda lá
pelo ano 2150. James Joyce se reencarnará
em um menino chinês no ano 2124. Thomas
Mann se converterá em um farmacêutico
equatoriano no ano 2101. Marcel Proust
entrará num desesperado e prolongado
esquecimento a pa
rtir do ano 2033. Jorge Luis
Borges será lido nos túneis no ano 2045.
Vicente Huidobro será um poeta de massas no
ano 2045. Virginia Woolf se reencarnará em
uma narradora argentina no ano 2076”.
36
ROJO (2012, p. 273). Tradução
“Podem produzir os latino-
americanos uma
literatura própria, original, ou estão
condenados a gerar réplicas menores dos
grandes modelos metropolitanos?”
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
masas en el año 2045. Virginia Woolf
se reencarnará en una narradora
argentina en el año 2076
35
.
53).
Desse modo, ao validar o
cânone, Bolaño não desperdiça as
lições do centro, longe disso, faz com
que elas sirvam ao seu objetivo, que é
a literatura, respondendo,
afirmativamente, a pergunta de Grinor
Rojo (2012, p. 273) ¿Pueden producir
ericanos una literatura
propia, original, o están condenados a
generar réplicas menores de los
grandes modelos metropolitanos
36
?
Para Bolaño, valorar alguns
poetas em detrimento de outros tantos
é fomentar a exclusão, é contribuir
para que bons autores que
estão à
margem continuem apagados. É nesta
lógica que sua literatura trabalha,
Tradução
nossa:
“Estou no lavabo de mulheres da Faculdade e
posso ver o futuro, dizia eu com voz de
soprano […] minhas profecias são estas.
ímir Maiakovski voltará a estar na moda lá
pelo ano 2150. James Joyce se reencarnará
em um menino chinês no ano 2124. Thomas
Mann se converterá em um farmacêutico
equatoriano no ano 2101. Marcel Proust
entrará num desesperado e prolongado
rtir do ano 2033. Jorge Luis
Borges será lido nos túneis no ano 2045.
Vicente Huidobro será um poeta de massas no
ano 2045. Virginia Woolf se reencarnará em
uma narradora argentina no ano 2076”.
ROJO (2012, p. 273). Tradução
nossa:
americanos uma
literatura própria, original, ou estão
condenados a gerar réplicas menores dos
grandes modelos metropolitanos?”
dando luz, trazendo à superfície
aqueles que vivem
subterráneos del DF
red de alcantarillas, […] en lo más
oscuro y en lo s sucio, allí donde el
más
bragado de los jóvenes poetas no
podría hacer otra cosa más que
vomitar
38
”.
(BOLAÑO, 1999, p.25). Em
Amuleto
, a narradora enfrenta o
discurso oficial ao não fazer distinção
entre os textos do chamado cânone e
o produzido pelos jovens
marginalizados.
[…] una vez me detuve en un pasillo
de la Facultad y me uní a un grupo
que discutía no qué aspectos de
la poesía de
Ovidio, […] también
estuviera dos o tres poetas jóvenes.
[…] machitos que llegaban con sus
folios doblados y sus libros sobados
y sus cua
dernos sucios […] y me los
daban a leer, sus poemas, sus
versos, sus ahogadas traducciones,
y yo tomaba esos folios y los leía en
silencio
39
. (BOLAÑO, 1999, p. 7).
37
BOLAÑO (1999, p. 25). Tradução
“Subterrâneos do DF”.
38
BOLAÑO (1999, p. 25).
“[...] rede de esgoto,
[…] no mais escuro e no
mais sujo, ali onde o mais bravo dos jovens
poetas não podia fazer outra coisa mais que
vomitar”.
39
BOLAÑO (1999, p. 7).
Tradução
u
ma vez me detive em um corredor da
Faculdade e me uni a um grupo que discutia
não sei q
ual aspectos da poesia de Ovídio [...]
também que ali estivesse Monterroso e dois
ou três poetas jovens [...] machinhos que
chegavam com
seus fólios dobrados e seus
livros desgastados e seus cadernos sujos e
me davam para ler, seus poemas, seus
versos, suas af
ogadas traduções, e eu pegava
esses fólios e os lia em silêncio.
290
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
dando luz, trazendo à superfície
aqueles que vivem
nos: “[…]
subterráneos del DF
37
[…]”, na: “[…]
red de alcantarillas, […] en lo más
oscuro y en lo s sucio, allí donde el
bragado de los jóvenes poetas no
podría hacer otra cosa más que
(BOLAÑO, 1999, p.25). Em
, a narradora enfrenta o
discurso oficial ao não fazer distinção
entre os textos do chamado cânone e
o produzido pelos jovens
[…] una vez me detuve en un pasillo
de la Facultad y me uní a un grupo
que discutía no qué aspectos de
Ovidio, […] también
estuviera dos o tres poetas jóvenes.
[…] machitos que llegaban con sus
folios doblados y sus libros sobados
dernos sucios […] y me los
daban a leer, sus poemas, sus
versos, sus ahogadas traducciones,
y yo tomaba esos folios y los leía en
. (BOLAÑO, 1999, p. 7).
BOLAÑO (1999, p. 25). Tradução
nossa:
Tradução nossa:
[…] no mais escuro e no
mais sujo, ali onde o mais bravo dos jovens
poetas não podia fazer outra coisa mais que
Tradução
nossa: “[...]
ma vez me detive em um corredor da
Faculdade e me uni a um grupo que discutia
ual aspectos da poesia de Ovídio [...]
também que ali estivesse Monterroso e dois
ou três poetas jovens [...] machinhos que
seus fólios dobrados e seus
livros desgastados e seus cadernos sujos e
me davam para ler, seus poemas, seus
ogadas traduções, e eu pegava
esses fólios e os lia em silêncio.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
O autor chileno desestabiliza
discursos e parâmetros, uma vez que
ao seu texto novas poss
de leitura, confrontando
-
critérios pré-
estabelecidos. O que
Bolaño faz é se apropriar das regras
impostas pela indústria editorial para
questioná-
las, como afirmam os
escritores Paz Soldán e Faverón
(2008, p. 26) “Es imposible enfrentar
a un enemigo poderoso [...], lo mejor,
entonces, sería, como estrategia de
supervivencia, decir y no a la vez:
formar parte de la industria cultural,
pero tratar de sabotearla desde
adentro
40
”. Esta é uma especificidade
da literatura Bolañiana, isto é
estética está diretamente associada à
forma como o autor se relaciona com o
campo literário, ou seja, criticamente.
Bolaño trabalha no sentido de romper
uma literatura que poderia reafirmar
lugares de poder, apostando em
literaturas capazes de fazer
estabelecer rupturas ou discursos que
possam quebrar espaços canônicos
preestabelecidos, questionando o
lugar do ficcional e do discurso oficial.
40
SOLDÁN e FAVERÓN (2008, p. 26).
Tradução nossa
: “É impossível enfrentar a um
inimigo poderoso [...], o melhor, então, seria,
como estratégia de sobrevivência, dizer sim e
não ao mesmo
tempo: formar parte da
indústria cultural, mas tratar de sabotá
dentro”.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
O autor chileno desestabiliza
discursos e parâmetros, uma vez que
ao seu texto novas poss
ibilidades
-
o com os
estabelecidos. O que
Bolaño faz é se apropriar das regras
impostas pela indústria editorial para
las, como afirmam os
escritores Paz Soldán e Faverón
(2008, p. 26) “Es imposible enfrentar
se
a un enemigo poderoso [...], lo mejor,
entonces, sería, como estrategia de
supervivencia, decir y no a la vez:
formar parte de la industria cultural,
pero tratar de sabotearla desde
”. Esta é uma especificidade
da literatura Bolañiana, isto é
, sua
estética está diretamente associada à
forma como o autor se relaciona com o
campo literário, ou seja, criticamente.
Bolaño trabalha no sentido de romper
uma literatura que poderia reafirmar
lugares de poder, apostando em
literaturas capazes de fazer
estabelecer rupturas ou discursos que
possam quebrar espaços canônicos
preestabelecidos, questionando o
lugar do ficcional e do discurso oficial.
SOLDÁN e FAVERÓN (2008, p. 26).
: “É impossível enfrentar a um
inimigo poderoso [...], o melhor, então, seria,
como estratégia de sobrevivência, dizer sim e
tempo: formar parte da
indústria cultural, mas tratar de sabotá
-la de
As memórias da narradora de
Amuleto
são escombros, fragmentos
de um passado doloroso que é
(re)inscrito através dos traços
deixados a cada nova lembrança, a
cada nova rememoração. Sem
distinção de valor, as insistentes
recordações de Auxilio recolhem os
cacos do passado, como nos assinala
B
enjamin, para contar uma história
inconclusa, sinalizando um passado
que não passa, como um fantasma
que ronda o presente, ameaçando o
retorno das violências e horrores
perpetrados por regimes de governo
autoritários. Auxilio Lacouture guarda a
memória de
uma história de terror que
deve ser conhecida para que não seja
repetida. Portanto, a obra
colabora para que não esqueçamos de
lembrar toda violência produzida pelos
regimes autoritários pelos quais
passaram muitos países latino
americanos. Como af
p. 20) “A memória se torna um dever
[...] após o fim da ditadura militar e na
maioria dos países da América Latina”.
Nesta perspectiva, em
a personagem narradora recolhe as
imagens rememoradas para tecer uma
história que também
além de reverberar vozes que foram
291
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
As memórias da narradora de
são escombros, fragmentos
de um passado doloroso que é
(re)inscrito através dos traços
deixados a cada nova lembrança, a
cada nova rememoração. Sem
distinção de valor, as insistentes
recordações de Auxilio recolhem os
cacos do passado, como nos assinala
enjamin, para contar uma história
inconclusa, sinalizando um passado
que não passa, como um fantasma
que ronda o presente, ameaçando o
retorno das violências e horrores
perpetrados por regimes de governo
autoritários. Auxilio Lacouture guarda a
uma história de terror que
deve ser conhecida para que não seja
repetida. Portanto, a obra
Amuleto
colabora para que não esqueçamos de
lembrar toda violência produzida pelos
regimes autoritários pelos quais
passaram muitos países latino
-
americanos. Como af
irma Sarlo (2007,
p. 20) “A memória se torna um dever
[...] após o fim da ditadura militar e na
maioria dos países da América Latina”.
Nesta perspectiva, em
Amuleto,
a personagem narradora recolhe as
imagens rememoradas para tecer uma
história que também
é sua. Assim,
além de reverberar vozes que foram
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
silenciadas, as memórias da
personagem recuperam o passado e
permitem que o que estava oculto
possa ser (re)contado e, dessa forma,
(re)construído. Sarlo
41
(2007) nos
adverte que: “os protagonistas do
passado
nem sempre o os que
falam, pois muitas vezes estão
mortos”. Portanto, percebemos que
Auxilio Lacouture se configura como a
guardiã das memórias históricas e
literárias, porque é através das suas
rememorações que a voz daqueles
que foram apagados (estuda
jovens e poetas) reverberam e operam
para nos fazer lembrar o que houve no
México e no Chile nas décadas de
1960-1970.
Ao retomar histórias recentes da
América Latina que foram apagadas
pela história oficial, Bolaño nos
apresenta a maneira como esta
constituída, expõe o que nela ficou
escondido e revela a precariedade da
vida daqueles que estão à margem, na
periferia. De acordo com Judith Butler
(2016) aqueles que estão fora dos
quadros normativos, como é o caso de
41
O Estado de S. Paulo 03/04/2007 na edição
427.
Entrevista Beatriz Sarlo. O terror e a
memória num
beco sem saída. Disponível
em:
http://observatoriodaimprensa.com.br/inter
esse-publico/o-estado-de-s-
paulo
Acesso: 05 jul. 2019.
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
silenciadas, as memórias da
personagem recuperam o passado e
permitem que o que estava oculto
possa ser (re)contado e, dessa forma,
(2007) nos
adverte que: “os protagonistas do
nem sempre o os que
falam, pois muitas vezes estão
mortos”. Portanto, percebemos que
Auxilio Lacouture se configura como a
guardiã das memórias históricas e
literárias, porque é através das suas
rememorações que a voz daqueles
que foram apagados (estuda
ntes,
jovens e poetas) reverberam e operam
para nos fazer lembrar o que houve no
México e no Chile nas décadas de
Ao retomar histórias recentes da
América Latina que foram apagadas
pela história oficial, Bolaño nos
apresenta a maneira como esta
foi
constituída, expõe o que nela ficou
escondido e revela a precariedade da
vida daqueles que estão à margem, na
periferia. De acordo com Judith Butler
(2016) aqueles que estão fora dos
quadros normativos, como é o caso de
O Estado de S. Paulo 03/04/2007 na edição
Entrevista Beatriz Sarlo. O terror e a
beco sem saída. Disponível
http://observatoriodaimprensa.com.br/inter
paulo
-33438/.
Auxilio e dos jovens poetas, seq
alcançam o reconhecimento, não têm
direito a vidas vivíveis nem passíveis
de luto.
Na verdade, uma figura viva fora das
normas da vida não somente se
torna o problema com o qual a
normatividade tem que lidar, mas
parece ser aquilo que a
normatividade
reproduzir: está vivo, mas não é uma
vida. Situa
-
enquadramento fornecido pela
norma, mas não apenas como um
duplo implacável cuja ontologia não
pode ser assegurada, mas cujo
estatuto de ser vivo está aberto à
apreensão. (BUTLER, 20
É recuperando a memória
através do testemunho da personagem
narradora que Bolaño nos possibilita
reinterpretar a história, porque é a
partir dos traumas gravados nas
memórias delirantes da narradora
Auxilio que se a conhecer o que foi
ocult
ado pela história.
[…] los soldados y los granaderos
estaban deteniendo y cacheando y
pegándole a todo el que encontraban
delante sin que importara sexo o
edad, condición civil o status
adquirido (o regalado) en el
intrincado mundo de las jerarquías
universitarias
42
.
9).
42
BOLAÑO (1999, p. 9).
Tradução
os soldados e os granadeiros estavam
detendo e cacheando e pegando a tudo o que
encontravam diante sem que importara sexo
ou idade, condição civil ou
presenteado) no intrincado mundo das
hierarquias universitárias
”.
292
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Auxilio e dos jovens poetas, seq
uer
alcançam o reconhecimento, não têm
direito a vidas vivíveis nem passíveis
Na verdade, uma figura viva fora das
normas da vida não somente se
torna o problema com o qual a
normatividade tem que lidar, mas
parece ser aquilo que a
está fadada a
reproduzir: está vivo, mas não é uma
-
se fora do
enquadramento fornecido pela
norma, mas não apenas como um
duplo implacável cuja ontologia não
pode ser assegurada, mas cujo
estatuto de ser vivo está aberto à
apreensão. (BUTLER, 20
16, p. 22).
É recuperando a memória
através do testemunho da personagem
narradora que Bolaño nos possibilita
reinterpretar a história, porque é a
partir dos traumas gravados nas
memórias delirantes da narradora
Auxilio que se a conhecer o que foi
ado pela história.
[…] los soldados y los granaderos
estaban deteniendo y cacheando y
pegándole a todo el que encontraban
delante sin que importara sexo o
edad, condición civil o status
adquirido (o regalado) en el
intrincado mundo de las jerarquías
(BOLAÑO, 1999, p.
Tradução
nossa: “[…]
os soldados e os granadeiros estavam
detendo e cacheando e pegando a tudo o que
encontravam diante sem que importara sexo
ou idade, condição civil ou
status adquirido (o
presenteado) no intrincado mundo das
”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
Assim, mais uma vez, está
demonstrado que as memórias da
personagem sobre a invasão a UNAM
e o Massacre de
Tlatelolco
papel de nos lembrar, todo o tempo, os
episódios que marcaram o México
naquele setembro de 1968. Para isso,
Bolaño se apropria do que Evando
Nascimento (2008) chama de rastros,
ruínas para dizer o indizível,
potencializando as micro intervenções
que alteram a linguagem, pois
propõem outras possibilidades de
literatura (real e ficcional). A
reconfiguração de algo, o torna
ambíguo, nele se situa o entre lugar
que reitera ao mesmo tempo sua aura,
sua especificidade, recriando
produzindo nele uma
Segundo Derrida (2014, p. 53) a
literatura “[...] é uma arma política
muito poderosa”. Assim, entendemos
que a literatura de Bolaño não é
neutra, que o autor chileno se
apropria dela para tomar partido,
revelando de que lado ele está.
A liter
atura para Roberto Bolaño
esteve sempre relacionada às
questões cotidianas, sociais e
políticas. Seus livros aludem bem este
posicionamento. Não raro,
encontramos em sua obra evidências
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Assim, mais uma vez, está
demonstrado que as memórias da
personagem sobre a invasão a UNAM
Tlatelolco
cumprem o
papel de nos lembrar, todo o tempo, os
episódios que marcaram o México
naquele setembro de 1968. Para isso,
Bolaño se apropria do que Evando
Nascimento (2008) chama de rastros,
ruínas para dizer o indizível,
potencializando as micro intervenções
que alteram a linguagem, pois
propõem outras possibilidades de
literatura (real e ficcional). A
reconfiguração de algo, o torna
ambíguo, nele se situa o entre lugar
que reitera ao mesmo tempo sua aura,
sua especificidade, recriando
-o,
potência.
Segundo Derrida (2014, p. 53) a
literatura “[...] é uma arma política
muito poderosa”. Assim, entendemos
que a literatura de Bolaño não é
neutra, que o autor chileno se
apropria dela para tomar partido,
revelando de que lado ele está.
atura para Roberto Bolaño
esteve sempre relacionada às
questões cotidianas, sociais e
políticas. Seus livros aludem bem este
posicionamento. Não raro,
encontramos em sua obra evidências
de que os fatos ali narrados
ficcionalizam
situações que fizeram
parte
da sua vida ou de pessoas
próximas a ele. São nomes de
personagens, fatos históricos e textos
que rompem os padrões literários e
poéticos, na obra aqui analisada
Bolaño nos apresenta Auxilio
Lacouture como guardiã da memória
histórica e poética do período
1970 no México e no Chile. Ao
recuperar a história política e literária e
artística da América Latina, Bolaño
questiona o discurso tradicional,
expondo o que ficou oculto pela
história oficial.
Nesta perspectiva, o
autor chileno rompe com os padrõ
estéticos vigentes ao usar suas
próprias experiências como estratégia
de intervenção.
A narradora de
tecendo o discurso de uma perspectiva
que não a autorizada, de uma ótica
sustentada na experiência que até
então, deveria, de acordo com o
padrões “tradicionais” continuar
secundarizada. O lugar de fala da
personagem Auxilio é instável,
desconfortável, trata
-
periférico, excluído que carrega na
instabilidade a potência que empodera
o coletivo marginalizado. Dessa
293
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
de que os fatos ali narrados
situações que fizeram
da sua vida ou de pessoas
próximas a ele. São nomes de
personagens, fatos históricos e textos
que rompem os padrões literários e
poéticos, na obra aqui analisada
Bolaño nos apresenta Auxilio
Lacouture como guardiã da memória
histórica e poética do período
de 1960-
1970 no México e no Chile. Ao
recuperar a história política e literária e
artística da América Latina, Bolaño
questiona o discurso tradicional,
expondo o que ficou oculto pela
Nesta perspectiva, o
autor chileno rompe com os padrõ
es
estéticos vigentes ao usar suas
próprias experiências como estratégia
A narradora de
Amuleto surge
tecendo o discurso de uma perspectiva
que não a autorizada, de uma ótica
sustentada na experiência que até
então, deveria, de acordo com o
s
padrões “tradicionais” continuar
secundarizada. O lugar de fala da
personagem Auxilio é instável,
-
se de um sujeito
periférico, excluído que carrega na
instabilidade a potência que empodera
o coletivo marginalizado. Dessa
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
PragMATIZES
Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
278-295, out. 2019 a março 2020.
maneira, em Amuleto
, Bolaño principia
a destruição deste tempo violento e,
sobretudo, excludente, para
construção de um presente menos
desigual.
Destarte, é necessário que o
leitor esteja atento às pistas que são
apresentadas sob as formas de
memórias delirantes da
personagem
narradora, que aparentemente se
manifestam de maneira generalizada,
traçam um vínculo entre os fatos por
ela relatados e sua vida, esclarecendo
aos poucos qual história será contada.
Bolaño se utiliza da própria literatura
para se expressar poli
ticamente e na
crítica literária, traz outras formas de
se pensar o campo literário ao fazer
uso da sua escrita para questionar e
desconstruir o pensamento
hegemônico que se constituiu
dicotomicamente.
Ao trazer em
Amuleto
personagem que carrega em su
memórias inúmeras referências aos
fatos históricos, políticos e a escritores
consagrados, Bolaño põe em prática o
que defende o Infrarrealismo, ou seja,
não separar
literatura da vida, porque
conforme Andrés Braithwaite (2006, p.
25), para o autor chile
no “[...] toda
escritura, de alguna manera, es un
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
. Memórias da
PragMATIZES
- Revista
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
, Bolaño principia
a destruição deste tempo violento e,
sobretudo, excludente, para
construção de um presente menos
Destarte, é necessário que o
leitor esteja atento às pistas que são
apresentadas sob as formas de
personagem
narradora, que aparentemente se
manifestam de maneira generalizada,
traçam um vínculo entre os fatos por
ela relatados e sua vida, esclarecendo
aos poucos qual história será contada.
Bolaño se utiliza da própria literatura
ticamente e na
crítica literária, traz outras formas de
se pensar o campo literário ao fazer
uso da sua escrita para questionar e
desconstruir o pensamento
hegemônico que se constituiu
Amuleto
uma
personagem que carrega em su
as
memórias inúmeras referências aos
fatos históricos, políticos e a escritores
consagrados, Bolaño põe em prática o
que defende o Infrarrealismo, ou seja,
literatura da vida, porque
conforme Andrés Braithwaite (2006, p.
no “[...] toda
escritura, de alguna manera, es un
acto social
43
”. Assim sendo, para o
autor chileno, não como separar
vida e obra, porque
sola-cosa
44
”.
(BOLAÑO, 2013,
melhor dizendo,
“[…] un compromiso,
o mejor dicho, una apuesta,
el artista pone la mesa su vida
(BOLAÑO, 2013, p. 3).
Por fim, entendemos que ao
recuperar a história política e literária e
artística da América Latina, Roberto
Bolaño contesta, de dentro do sistema
e de inúmeras formas, os espaços de
le
gitimação, utilizando
que ainda hoje determinam o que pode
ou não ser considerado cânone.
Ademais, defendemos que sua
literatura, em especial
em dúvida a construção do discurso
oficial acerca dos fatos recentes que
marcaram
o continente latino
americano, especificamente, o México
e o Chile.
Referências
bibliográficas
BOLAÑO, Roberto.
Amuleto
Barcelona:
Editorial Anagrama, 1999.
43
BRAITHWAITE (2006, p. 25)
minha: “[...]
toda escritura, de alguma maneira,
é um ato social”.
44
BOLAÑO (2013, p. 1). Tradução minha: “[...]
uma-só-coisa [...]”
45
BOLAÑO (2013, p. 3). Tradução minha: “[...]
um compromisso, ou melhor dizendo, uma
aposta, onde o artista põe sua vida na mesa”.
294
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
”. Assim sendo, para o
autor chileno, não como separar
é tudo [...] una-
(BOLAÑO, 2013,
p.1),
“[…] un compromiso,
o mejor dicho, una apuesta,
en donde
el artista pone la mesa su vida
45
[...]”.
(BOLAÑO, 2013, p. 3).
Por fim, entendemos que ao
recuperar a história política e literária e
artística da América Latina, Roberto
Bolaño contesta, de dentro do sistema
e de inúmeras formas, os espaços de
gitimação, utilizando
-se dos critérios
que ainda hoje determinam o que pode
ou não ser considerado cânone.
Ademais, defendemos que sua
literatura, em especial
Amuleto, coloca
em dúvida a construção do discurso
oficial acerca dos fatos recentes que
o continente latino
-
americano, especificamente, o México
bibliográficas
Amuleto
.
Editorial Anagrama, 1999.
BRAITHWAITE (2006, p. 25)
. Tradução
toda escritura, de alguma maneira,
BOLAÑO (2013, p. 1). Tradução minha: “[...]
BOLAÑO (2013, p. 3). Tradução minha: “[...]
um compromisso, ou melhor dizendo, uma
aposta, onde o artista põe sua vida na mesa”.
MENEZES, Norma Sueli de
A.; COSTA, Júlia Morena S. da
violência em "Amuleto" de Roberto Bolaño.
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FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
Couro ruim é que chama ferrão de ponta: a respeito da violência em
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes
Resumo:
O presente artigo propõe uma leitura de
Rosa, sob a perspectiva das “poéticas do mal”. Partimos de observações e descrições feitas em um
artigo anterior, em que demonstrávamos ser o medo um elemento temát
no romance rosiano. Dando continuidade a essa abordagem, nossa proposta é considerar
especificamente a violência, tanto em sua dimensão temática quanto em sua função formal na
narrativa. A hipótese a ser desenvolvida é que a vi
essencial da história de Riobaldo, não possuindo em si mesma um valor positivo ou negativo, uma
vez que surge ora como um produto dos receios experimentados pelo protagonista, ora como um
meio de conciliar e sup
erar os seus temores.
Palavras-chave:
Guimarães Rosa;
Cuero ruin reclama punzón puntiagudo: sobre la violencia en
Resumen:
El presente artículo propone una lectura de
Rosa, desde la perspectiva de las “poéticas del mal”. Partimos de observaciones y descripciones
hechas en un artículo anterior, en que demostrábamos ser el miedo un elemento temático y
estructural fundamental da la
novela rosiana. Continuando con ese abordaje, proponemos ahora
considerar específicamente la violencia, tanto en su dimensión temática como en su función formal en
la narrativa. Se desarrollará la hipótesis de que también la violencia se configura como un
esencial del relato de Riobaldo, no teniendo en sí misma un valor positivo o negativo, ya que surge
ora como un producto de las aprensiones experimentadas por el protagonista, ora como una manera
de conciliar y superar sus temores.
Palabras clave:
Guimarães Rosa;
Tough hides call for a sharp goad: on violence in
Abstract:
This paper presents a reading of
with the tradition of the “poetics of evil” and builds on a broader approach we’ve been developing. It
1
Júlio César França Pereira. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense
(UFF).
Professor do Programa de Pós
Janeiro (UERJ), Brasil. E-mail:
julfranca@gmail.com
2
João Pedro Lima Bellas: D
Fluminense, Brasil. E-
mail: joaolbellas@gmail.com
Texto recebido em 03/12/2019 e aceito para publicação em
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
Couro ruim é que chama ferrão de ponta: a respeito da violência em
sertão: veredas
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes
.v10i18.38867
João Pedro
O presente artigo propõe uma leitura de
Grande sertão: veredas
(1956)
Rosa, sob a perspectiva das “poéticas do mal”. Partimos de observações e descrições feitas em um
artigo anterior, em que demonstrávamos ser o medo um elemento temát
ico e estrutural fundamental
no romance rosiano. Dando continuidade a essa abordagem, nossa proposta é considerar
especificamente a violência, tanto em sua dimensão temática quanto em sua função formal na
narrativa. A hipótese a ser desenvolvida é que a vi
olência também se configura como um elemento
essencial da história de Riobaldo, não possuindo em si mesma um valor positivo ou negativo, uma
vez que surge ora como um produto dos receios experimentados pelo protagonista, ora como um
erar os seus temores.
Guimarães Rosa;
Grande sertão: veredas
; poéticas do mal; medo; violência.
Cuero ruin reclama punzón puntiagudo: sobre la violencia en
Gran sertón: veredas
El presente artículo propone una lectura de
Gran sertón: veredas
(1956), de Guimarães
Rosa, desde la perspectiva de las “poéticas del mal”. Partimos de observaciones y descripciones
hechas en un artículo anterior, en que demostrábamos ser el miedo un elemento temático y
novela rosiana. Continuando con ese abordaje, proponemos ahora
considerar específicamente la violencia, tanto en su dimensión temática como en su función formal en
la narrativa. Se desarrollará la hipótesis de que también la violencia se configura como un
esencial del relato de Riobaldo, no teniendo en sí misma un valor positivo o negativo, ya que surge
ora como un producto de las aprensiones experimentadas por el protagonista, ora como una manera
de conciliar y superar sus temores.
Guimarães Rosa;
Gran sertón: veredas
; poéticas del mal; miedo; violencia.
Tough hides call for a sharp goad: on violence in
The Devil to Pay in the Backlands
This paper presents a reading of
The Devil to Pay in the Backlands
that relates the novel
with the tradition of the “poetics of evil” and builds on a broader approach we’ve been developing. It
Júlio César França Pereira. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense
Professor do Programa de Pós
-
Graduação em Letras da Universidade do Estado do
julfranca@gmail.com
-
ORCID: https:// orcid.org/0000
João Pedro Lima Bellas: D
outorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal
mail: joaolbellas@gmail.com
- ORCID: ht
tps://orcid.org/0000
Texto recebido em 03/12/2019 e aceito para publicação em
04/01/2020.
296
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Couro ruim é que chama ferrão de ponta: a respeito da violência em
Grande
Júlio França
1
João Pedro
Lima Bellas
2
(1956)
, de Guimarães
Rosa, sob a perspectiva das “poéticas do mal”. Partimos de observações e descrições feitas em um
ico e estrutural fundamental
no romance rosiano. Dando continuidade a essa abordagem, nossa proposta é considerar
especificamente a violência, tanto em sua dimensão temática quanto em sua função formal na
olência também se configura como um elemento
essencial da história de Riobaldo, não possuindo em si mesma um valor positivo ou negativo, uma
vez que surge ora como um produto dos receios experimentados pelo protagonista, ora como um
; poéticas do mal; medo; violência.
Gran sertón: veredas
(1956), de Guimarães
Rosa, desde la perspectiva de las “poéticas del mal”. Partimos de observaciones y descripciones
hechas en un artículo anterior, en que demostrábamos ser el miedo un elemento temático y
novela rosiana. Continuando con ese abordaje, proponemos ahora
considerar específicamente la violencia, tanto en su dimensión temática como en su función formal en
la narrativa. Se desarrollará la hipótesis de que también la violencia se configura como un
elemento
esencial del relato de Riobaldo, no teniendo en sí misma un valor positivo o negativo, ya que surge
ora como un producto de las aprensiones experimentadas por el protagonista, ora como una manera
; poéticas del mal; miedo; violencia.
The Devil to Pay in the Backlands
that relates the novel
with the tradition of the “poetics of evil” and builds on a broader approach we’ve been developing. It
Júlio César França Pereira. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense
Graduação em Letras da Universidade do Estado do
Rio de
ORCID: https:// orcid.org/0000
-0002-6293-8235
outorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal
tps://orcid.org/0000
-0002-2982-6661
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
consists of an interpretation that takes fear as a thematic and structural element in Guimarães Rosa’s
novel. Thus, our propositi
on is to take violence as our main subject and put forth an analysis that
relates it with the element of fear. Our hypothesis is that violence is also a fundamental component in
Riobaldo’s narrative, emerging, at times, as a byproduct of the protagonist’s
of reconciling and overcoming his terrors.
Keywords: Guimarães Rosa;
The Devil to Pay in the Backlands
Grande sertão: veredas
Romance basilar na tradição
literária brasileira,
sertão:veredas
(1956) é daquelas
obras que, como observou Antonio
Candido (cf. 1964), oferecem ao leitor
uma miríade de temas e símbolos de
modo a sustentar uma gama
igualmente ampla de interpretações,
que vão desde leituras que enfatizam
a sua experimentação linguístic
as que ressaltam significados que
perpassam domínios variados como o
da filosofia, da sociologia, da
psicanálise ou da religião.Ainda que
sejam altos os riscos de se propor uma
nova abordagem do romance rosiano,
tendo em vista a extensão de sua
fortu
na crítica, temos nos dedicado a
ler Grande sertão
a partir das relações
que a obra estabelece com as
“poéticas do mal”
3
uma perspectiva
3
Chamamos de “poéticas do
m
de fazer artístico que se caracterizam por
privilegiar a representação e a expressão de
aspectos negativos da experiência e do
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
consists of an interpretation that takes fear as a thematic and structural element in Guimarães Rosa’s
on is to take violence as our main subject and put forth an analysis that
relates it with the element of fear. Our hypothesis is that violence is also a fundamental component in
Riobaldo’s narrative, emerging, at times, as a byproduct of the protagonist’s
fears, but also as a way
of reconciling and overcoming his terrors.
The Devil to Pay in the Backlands
; poetics of evil; fear; violence.
Grande sertão: veredas
e as poéticas do mal
Romance basilar na tradição
Grande
(1956) é daquelas
obras que, como observou Antonio
Candido (cf. 1964), oferecem ao leitor
uma miríade de temas e símbolos de
modo a sustentar uma gama
igualmente ampla de interpretações,
que vão desde leituras que enfatizam
a sua experimentação linguístic
a até
as que ressaltam significados que
perpassam domínios variados como o
da filosofia, da sociologia, da
psicanálise ou da religião.Ainda que
sejam altos os riscos de se propor uma
nova abordagem do romance rosiano,
tendo em vista a extensão de sua
na crítica, temos nos dedicado a
a partir das relações
que a obra estabelece com as
uma perspectiva
m
al” aos modos
de fazer artístico que se caracterizam por
privilegiar a representação e a expressão de
aspectos negativos da experiência e do
que nos parece ainda pouco ou nada
explorada.
Em ensaio recente, propusemos
duas hipóteses centrais, que serão
desenv
olvidas em estudos
subsequentes, como é o caso deste
artigo. A primeira dessas hipóteses
consiste na defesa de que
sertão: veredas
é uma narrativa que se
estrutura a partir de “uma reflexão
sobre o mundo impregnado pelo Mal”
(FRANÇA, 2020, p. 2); a
ideia de que “é a profunda experiência
do medo que sentido à existência
de Riobaldo
e, por conseguinte,
estrutura a narração de sua vida”
(FRANÇA, 2020, p. 2). Tais hipóteses
foram construídas após a observação
da recorrência, no romance,
“medo” (precisamente, 181
ocorrências) e
termos sinônimos como
“horror”, “receio” e “temor”. Para além
imaginário humanos. Para um aprofundamento
do assunto ver França e
Araújo
297
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
consists of an interpretation that takes fear as a thematic and structural element in Guimarães Rosa’s
on is to take violence as our main subject and put forth an analysis that
relates it with the element of fear. Our hypothesis is that violence is also a fundamental component in
fears, but also as a way
; poetics of evil; fear; violence.
que nos parece ainda pouco ou nada
Em ensaio recente, propusemos
duas hipóteses centrais, que serão
olvidas em estudos
subsequentes, como é o caso deste
artigo. A primeira dessas hipóteses
consiste na defesa de que
Grande
é uma narrativa que se
estrutura a partir de “uma reflexão
sobre o mundo impregnado pelo Mal”
(FRANÇA, 2020, p. 2); a
segunda é a
ideia de que “é a profunda experiência
do medo que sentido à existência
e, por conseguinte,
estrutura a narração de sua vida”
(FRANÇA, 2020, p. 2). Tais hipóteses
foram construídas após a observação
da recorrência, no romance,
do termo
“medo” (precisamente, 181
termos sinônimos como
“horror”, “receio” e “temor”. Para além
imaginário humanos. Para um aprofundamento
Araújo
(2018).
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
dessa observação objetiva, uma leitura
pela chave do medo é ainda justificada
pela constatação de que momentos
cruciais da narração de Riobaldo
como, por exemplo, o encontro na
infância com Diadorim às margens do
São Francisco; o reconhecimento de
Hermógenes como o mal a ser
enfrentado; o pacto com o diabo; a
tomada de poder no bando de
Bebelo
são descritos em função da
experiência do medo,
seja no sentido
de identificá-
lo, seja para enfrentá
ou superá-lo.
O medo é, portanto, um tema
que atravessa a narrativa de Riobaldo
e se constitui como um elemento
central para a dimensão ética do
romance:
Com seu ritmo memorialístico
errático, Grande
sertão: veredas
em grande medida, um romance de
formação. E, como tal, um de seus
temas axiais é o das escolhas éticas:
como se deve viver, qual é o
caminho certo a seguir, qual é o
descaminho. Como o que somos é o
resultado direto de nossas escolhas,
e a sabedoria nada mais é do que
ser capaz de fazer as escolhas
corretas, o medo torna
mal porque corrompe nosso
discernimento, e nos faz tomar
decisões erradas
, isto é,
Esse é o motivo principal pelo qual
se deve temer sentir medo
estado afetivo capaz de nublar nossa
consciência, nosso entendimento e
nossa razoabilidade. (FRANÇA,
2020, p. 12)
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
dessa observação objetiva, uma leitura
pela chave do medo é ainda justificada
pela constatação de que momentos
cruciais da narração de Riobaldo
como, por exemplo, o encontro na
infância com Diadorim às margens do
São Francisco; o reconhecimento de
Hermógenes como o mal a ser
enfrentado; o pacto com o diabo; a
tomada de poder no bando de
são descritos em função da
seja no sentido
lo, seja para enfrentá
-lo
O medo é, portanto, um tema
que atravessa a narrativa de Riobaldo
e se constitui como um elemento
central para a dimensão ética do
Com seu ritmo memorialístico
sertão: veredas
é,
em grande medida, um romance de
formação. E, como tal, um de seus
temas axiais é o das escolhas éticas:
como se deve viver, qual é o
caminho certo a seguir, qual é o
descaminho. Como o que somos é o
resultado direto de nossas escolhas,
e a sabedoria nada mais é do que
ser capaz de fazer as escolhas
-se um grande
mal porque corrompe nosso
discernimento, e nos faz tomar
, isto é,
covardes.
Esse é o motivo principal pelo qual
se deve temer sentir medo
um
estado afetivo capaz de nublar nossa
consciência, nosso entendimento e
nossa razoabilidade. (FRANÇA,
A abordagem de
pelo viés das poéticas do mal, além de
realçar um aspecto do romance pouco
(ou nada) explorado pela tradição
crítica brasileira, permite
e redimensionar alguns traços da obra
reconhecidos e descritos pelos
estudos literários. Um desses
el
ementos é justamente a violência, o
tema deste artigo.
Ela
assume um papel
fundamental na
magnum opus
mas, ao contrário do medo, não se
apresenta como um elemento
inexplorado por estudos críticos sobre
o romance. Dada a multiplicidade de
sentidos
engendrados pela obra total
de Guimarães Rosa, várias são as
perspectivas adotadas para a
abordagem da violência. Ela pode ser
interpretada em termos psicanalíticos
(cf. BUENO, 2008), sociológicos (cf.
ARNT, 2015) ou políticos (cf.
GINZBURG, 1992), entre v
perspectivas. Ainda assim, se
considerarmos a violência no âmbito
das tradições literárias das poéticas do
mal talvez seja possível explicitar
sentidos que até agora passaram
despercebidos em estudos anteriores.
O presente artigo propõe
consid
erar o tema da violência dentro
298
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
A abordagem de
Grande sertão
pelo viés das poéticas do mal, além de
realçar um aspecto do romance pouco
(ou nada) explorado pela tradição
crítica brasileira, permite
-nos reavaliar
e redimensionar alguns traços da obra
reconhecidos e descritos pelos
estudos literários. Um desses
ementos é justamente a violência, o
assume um papel
magnum opus
rosiana,
mas, ao contrário do medo, não se
apresenta como um elemento
inexplorado por estudos críticos sobre
o romance. Dada a multiplicidade de
engendrados pela obra total
de Guimarães Rosa, várias são as
perspectivas adotadas para a
abordagem da violência. Ela pode ser
interpretada em termos psicanalíticos
(cf. BUENO, 2008), sociológicos (cf.
ARNT, 2015) ou políticos (cf.
GINZBURG, 1992), entre v
árias outras
perspectivas. Ainda assim, se
considerarmos a violência no âmbito
das tradições literárias das poéticas do
mal talvez seja possível explicitar
sentidos que até agora passaram
despercebidos em estudos anteriores.
O presente artigo propõe
erar o tema da violência dentro
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
de uma perspectiva de leitura que
entende a experiência do medo como
estruturante da existência de Riobaldo.
A hipótese que desdobraremos é a de
que a violência ora surge como uma
consequência
negativa da covardia
esta,
por sua vez, um produto do medo
, ora como uma forma de
apaziguamento e superação
onipresente na experiência de vida do
narrador-protagonista.
Riobaldo, jagunçagem, violência
As reminiscências do narrador
situam a narrativa em uma cronotopia
em q
ue a violência é uma constante.
Há, dessa forma, em
Grande sertão:
veredas
, muitos elementos e episódios
que poderiam ser descritos como
característicos das poéticas do mal.
Citemos, como exemplos, os diversos
loci horribiles
, como as Veredas
Tortas, onde
se dará o pacto com o
Diabo; ou o Liso do Sussuarão, “o
miôlo mal do sertão” (ROSA, 2001,
p.79), onde o protagonista irá se pôr a
prova; e as muitas personagens
descritas como monstruosas
Hermógenes e os tantos desvalidos do
sertão, tais quais os ca
trumanos da
brenha. Mas são os inúmeros crimes e
transgressões cometidos pela
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
de uma perspectiva de leitura que
entende a experiência do medo como
estruturante da existência de Riobaldo.
A hipótese que desdobraremos é a de
que a violência ora surge como uma
negativa da covardia
por sua vez, um produto do medo
, ora como uma forma de
apaziguamento e superação
do medo
onipresente na experiência de vida do
Riobaldo, jagunçagem, violência
As reminiscências do narrador
situam a narrativa em uma cronotopia
ue a violência é uma constante.
Grande sertão:
, muitos elementos e episódios
que poderiam ser descritos como
característicos das poéticas do mal.
Citemos, como exemplos, os diversos
, como as Veredas
se dará o pacto com o
Diabo; ou o Liso do Sussuarão, “o
miôlo mal do sertão” (ROSA, 2001,
p.79), onde o protagonista irá se pôr a
prova; e as muitas personagens
descritas como monstruosas
– como
Hermógenes e os tantos desvalidos do
trumanos da
brenha. Mas são os inúmeros crimes e
transgressões cometidos pela
jagunçagem através do sertão
alguns descritos de forma detalhada e
explícita
que consistem no maior
conjunto de representações de
violência no romance.
Nesse sentido, é impor
notar que um dos traços mais
marcantes da narrativa de Riobaldo
a relação ambígua que ele mantém
com seu passado de jagunço. Por um
lado, o protagonista sente
estranho em meio àquela vida, e,
algumas vezes, reluta em admitir que
possui as qua
lidades necessárias a
um jagunço, como ilustram as duas
passagens a seguir: “o que me
atazanava, a mór [...] era o significado
que euo achava lá, no meio em que
eu estava obrigado, naquele grau de
gente” (ROSA, 2001, p. 237); e “O
jagunço Riobaldo. Fui
fui. Não fui!
porque não sou,
quero ser
(ROSA, 2001, p. 280,
grifos nossos). Por outro lado, em
outros momentos de sua narração,
Riobaldo parece não apenas
naturalizar a vida jagunça
eu ia ter pena dos outros? Algum tinha
pe
na de mim...? [...] Matar, matar, quê
que me importava?” (ROSA, 2001, p.
271)
, como também demonstra
apreço por ela, como na ocasião em
299
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
jagunçagem através do sertão
alguns descritos de forma detalhada e
que consistem no maior
conjunto de representações de
violência no romance.
Nesse sentido, é impor
tante
notar que um dos traços mais
marcantes da narrativa de Riobaldo
é
a relação ambígua que ele mantém
com seu passado de jagunço. Por um
lado, o protagonista sente
-se um
estranho em meio àquela vida, e,
algumas vezes, reluta em admitir que
lidades necessárias a
um jagunço, como ilustram as duas
passagens a seguir: “o que me
atazanava, a mór [...] era o significado
que euo achava lá, no meio em que
eu estava obrigado, naquele grau de
gente” (ROSA, 2001, p. 237); e “O
jagunço Riobaldo. Fui
eu? Fui e não
porque não sou,
não
(ROSA, 2001, p. 280,
grifos nossos). Por outro lado, em
outros momentos de sua narração,
Riobaldo parece não apenas
naturalizar a vida jagunça
“Por quê
eu ia ter pena dos outros? Algum tinha
na de mim...? [...] Matar, matar, quê
que me importava?” (ROSA, 2001, p.
, como também demonstra
apreço por ela, como na ocasião em
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
que tem sua valentia elogiada
Vupes: “o mais garboso fiquei, prezei a
minha profissão. Ah, o bom costume
de jagunç
o. Assim que é a vida
soprada, vivida por cima” (ROSA,
2001, p. 106).
Conforme a narração avança,
torna-
se evidente que os sentimentos
contraditórios que ele nutre pela vida
de jagunço derivam, em grande
medida, de seu entendimento sobre as
causas e as con
sequências dos atos
violentos perpetrados pelos jagunços.
Esse aspecto do romance fica ainda
mais claro se considerarmos que a
violência é inerente ao sertão
menos, na maneira como o sertão é
concebido pelo protagonista. Isso é
manifesto, por exem
plo, na maneira
como o narrador descreve Jazevedão,
delegado que conseguiu pôr fim na
jagunçagem e levar ordem ao sertão:
“nunca vi cara de homem fornecida de
bruteza e maldade mais, do que
nesse” (ROSA, 2001, p. 42). Embora
constate que o delegado é
respo
nsável por diversas
barbaridades, Riobaldo mostra
convencido de que a violência era o
único meio de dar cabo do caos que
permeava o sertão:
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
que tem sua valentia elogiada
por
Vupes: “o mais garboso fiquei, prezei a
minha profissão. Ah, o bom costume
o. Assim que é a vida
soprada, vivida por cima” (ROSA,
Conforme a narração avança,
se evidente que os sentimentos
contraditórios que ele nutre pela vida
de jagunço derivam, em grande
medida, de seu entendimento sobre as
sequências dos atos
violentos perpetrados pelos jagunços.
Esse aspecto do romance fica ainda
mais claro se considerarmos que a
violência é inerente ao sertão
ou, ao
menos, na maneira como o sertão é
concebido pelo protagonista. Isso é
plo, na maneira
como o narrador descreve Jazevedão,
delegado que conseguiu pôr fim na
jagunçagem e levar ordem ao sertão:
“nunca vi cara de homem fornecida de
bruteza e maldade mais, do que
nesse” (ROSA, 2001, p. 42). Embora
constate que o delegado é
nsável por diversas
barbaridades, Riobaldo mostra
-se
convencido de que a violência era o
único meio de dar cabo do caos que
Conseguiu de muito homem e
mulher chorar sangue, por este, por
este simples universozinho aqui.
Sertão. O senhor
onde manda quem é forte, com as
astúcias. Deus mesmo, quando vier,
que venha armado! [...]
Tanto, digo: Jazevedão
devia de ter, precisava? Ah, precisa.
Couro ruim é que chama ferrão de
ponta. [...] Mas do modo, desses,
por fei
o instrumento, foi que a
jagunçada se findou (ROSA, 2001, p.
43).
Para Riobaldo, portanto, em um
mundo permeado por atos de violência
e crueldade, apenas a força bruta é
capaz de organizar o caos do sertão
ou seja, a ordem é alcançada
quando se a
ge de forma ainda mais
violenta e cruel. A lógica do narrador
protagonista parece apontar que, em
um mundo impregnado pelo mal, é
possível enfrentá-
lo com o próprio mal.
O romance, portanto, ao menos
inicialmente,oferece-
nos indícios de
que Riobaldo par
ece assumir uma
posição de suspensão de juízo em
relação à violência, dadas as
condições específicas do sertão: “Tudo
naquele tempo, e de cada banda que
eu fosse, eram pessoas matando e
morrendo, vivendo numa fúria firme,
[...] e eu não pertencia a razão
n
enhuma, não guardava fé e nem fazia
parte” (ROSA, 2001, p. 190).
300
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
Conseguiu de muito homem e
mulher chorar sangue, por este, por
este simples universozinho aqui.
Sertão. O senhor
sabe: sertão é
onde manda quem é forte, com as
astúcias. Deus mesmo, quando vier,
que venha armado! [...]
Tanto, digo: Jazevedão
um assim,
devia de ter, precisava? Ah, precisa.
Couro ruim é que chama ferrão de
ponta. [...] Mas do modo, desses,
o instrumento, foi que a
jagunçada se findou (ROSA, 2001, p.
Para Riobaldo, portanto, em um
mundo permeado por atos de violência
e crueldade, apenas a força bruta é
capaz de organizar o caos do sertão
ou seja, a ordem é alcançada
apenas
ge de forma ainda mais
violenta e cruel. A lógica do narrador
-
protagonista parece apontar que, em
um mundo impregnado pelo mal, é
lo com o próprio mal.
O romance, portanto, ao menos
nos indícios de
ece assumir uma
posição de suspensão de juízo em
relação à violência, dadas as
condições específicas do sertão: “Tudo
naquele tempo, e de cada banda que
eu fosse, eram pessoas matando e
morrendo, vivendo numa fúria firme,
[...] e eu não pertencia a razão
enhuma, não guardava fé e nem fazia
parte” (ROSA, 2001, p. 190).
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
Contudo, a indiferença de
Riobaldo em relação à violência que
assola o sertão não é constante no
desenvolvimento do romance. O
narrador, por diversas vezes, deixa
transparecer uma profunda
in
quietação ao presenciar atos de
crueldade, ainda que, não raramente,
demonstre uma profunda curiosidade
por eles. Essa ambiguidade manifesta
se de modo exemplar na reação de
nosso protagonista à sua nêmesis,
Hermógenes. Desde o início de sua
narração, Riob
aldo expressa profunda
repulsa por
seu antagonista: “Eu não
queria olhar para ele, encarar aquele
carangonço; me perturbava” (ROSA,
2001, p. 226). Em dado momento de
sua história, porém, o narrador nos diz:
[...] eu não queria pensar naquele
Hermógenes, e
o pensamento nele
sempre me vinha, ele figurando, eu
cativo. Ser que pensava, amiúde, em
ele ser carrasco, como tanto se dizia,
senhor de todas as crueldades. No
começo, aquilo me corria os
calafrios de horror, a ideia minha
refugava. Mas, a pouco, pegu
vezes uma ponta de querer saber
como tudo podia ser, eu imaginava
(ROSA, 2001, p. 298).
A passagem, ao ressaltar a
tensão entre atração e repulsa
fomentada pela personalidade de
Hermógenes, serve como
demonstração metonímica da
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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Contudo, a indiferença de
Riobaldo em relação à violência que
assola o sertão não é constante no
desenvolvimento do romance. O
narrador, por diversas vezes, deixa
transparecer uma profunda
quietação ao presenciar atos de
crueldade, ainda que, não raramente,
demonstre uma profunda curiosidade
por eles. Essa ambiguidade manifesta
-
se de modo exemplar na reação de
nosso protagonista à sua nêmesis,
Hermógenes. Desde o início de sua
aldo expressa profunda
seu antagonista: “Eu não
queria olhar para ele, encarar aquele
carangonço; me perturbava” (ROSA,
2001, p. 226). Em dado momento de
sua história, porém, o narrador nos diz:
[...] eu não queria pensar naquele
o pensamento nele
sempre me vinha, ele figurando, eu
cativo. Ser que pensava, amiúde, em
ele ser carrasco, como tanto se dizia,
senhor de todas as crueldades. No
começo, aquilo me corria os
calafrios de horror, a ideia minha
refugava. Mas, a pouco, pegu
ei às
vezes uma ponta de querer saber
como tudo podia ser, eu imaginava
A passagem, ao ressaltar a
tensão entre atração e repulsa
fomentada pela personalidade de
Hermógenes, serve como
demonstração metonímica da
dubiedade do pensamen
acerca da violência que caracteriza a
jagunçagem. O trecho é especialmente
significativo por indicar que mesmo
uma figura repugnante para Riobaldo
e é importante dizer que tal aversão é,
sobretudo, moral, e provocada
principalmente pelo sa
Hermógenes
era capaz de incitar a
sua imaginação e a sua curiosidade.
Hermógenes é
personagens centrais para que se
compreenda os movimentos da
narrativa, e, consequentemente, a vida
de Riobaldo. Do ponto de vista do
enredo, o antagonista é o responsável
pela morte de Joca Ramiro,
acontecimento que desencadeia a
principal subtram
a do romance: a
campanha de vingança contra “os
Judas” (ROSA, 2001, p. 64
A percepção de Riobaldo
Hermógenes é uma encarnação do
mal
encontra eco, na diegese, na
crença disseminada entre os jagunços
de que Hermógenes firmou um pacto
com o diabo. Essa suposição sobre
sua condição de pactário pode ser
entendida, aleg
oricamente, como uma
tentativa de explicar, ainda que por
meio de justificativas de cunho
sobrenatural, uma tamanha maldade
301
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)
dubiedade do pensamen
to do narrador
acerca da violência que caracteriza a
jagunçagem. O trecho é especialmente
significativo por indicar que mesmo
uma figura repugnante para Riobaldo
e é importante dizer que tal aversão é,
sobretudo, moral, e provocada
principalmente pelo sa
dismo de
era capaz de incitar a
sua imaginação e a sua curiosidade.
Hermógenes é
uma das
personagens centrais para que se
compreenda os movimentos da
narrativa, e, consequentemente, a vida
de Riobaldo. Do ponto de vista do
enredo, o antagonista é o responsável
pela morte de Joca Ramiro,
acontecimento que desencadeia a
a do romance: a
campanha de vingança contra “os
Judas” (ROSA, 2001, p. 64
et passim).
A percepção de Riobaldo
de que
Hermógenes é uma encarnação do
encontra eco, na diegese, na
crença disseminada entre os jagunços
de que Hermógenes firmou um pacto
com o diabo. Essa suposição sobre
sua condição de pactário pode ser
oricamente, como uma
tentativa de explicar, ainda que por
meio de justificativas de cunho
sobrenatural, uma tamanha maldade
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
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, out. 2019 a março 2020.
que parece exceder a capacidade de
compreensão humana.
Fazendo eco à anteriormente
mencionada constatação de que o mal
somente pode
ser combatido pelo
próprio mal, Riobaldo, em dado
momento de sua trajetória como
jagunço, parece admitir a
inevitabilidade e mesmo a própria
justiça do uso da violência para se
vingar de Hermógenes e Ricardão. Tal
entendimento irá motivar uma série de
deci
sões fulcrais na trajetória do
protagonista, e redundará no pacto
com o diabo, na tomada do poder de
Zé Bebelo e, por fim, em sua ascensão
como o “Urutú Branco” (ROSA, 2001,
p. 545), chefe do bando que outrora
pertenceu a Joca Ramiro. Nesse
movimento, u
ma escalada de atos
de violência cometidos por Riobaldo,
em uma progressão que o colocará,
enfim,como um semelhante de seu
antagonista: “A ironia trágica desse
percurso do protagonista é bastante
explícita. Agora é Riobaldo quem
causa medo nos outros. Em g
medida, ele se transformou no tipo de
monstro que combatia.” (FRANÇA,
2020, p. 11). Para o velho Riobaldo,
narrador do romance, essa trajetória é
perturbadora, pois revela nele a
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
que parece exceder a capacidade de
Fazendo eco à anteriormente
mencionada constatação de que o mal
ser combatido pelo
próprio mal, Riobaldo, em dado
momento de sua trajetória como
jagunço, parece admitir a
inevitabilidade e mesmo a própria
justiça do uso da violência para se
vingar de Hermógenes e Ricardão. Tal
entendimento irá motivar uma série de
sões fulcrais na trajetória do
protagonista, e redundará no pacto
com o diabo, na tomada do poder de
Zé Bebelo e, por fim, em sua ascensão
como o “Urutú Branco” (ROSA, 2001,
p. 545), chefe do bando que outrora
pertenceu a Joca Ramiro. Nesse
ma escalada de atos
de violência cometidos por Riobaldo,
em uma progressão que o colocará,
enfim,como um semelhante de seu
antagonista: “A ironia trágica desse
percurso do protagonista é bastante
explícita. Agora é Riobaldo quem
causa medo nos outros. Em g
rande
medida, ele se transformou no tipo de
monstro que combatia.” (FRANÇA,
2020, p. 11). Para o velho Riobaldo,
narrador do romance, essa trajetória é
perturbadora, pois revela nele a
disposição para
apreço por
cometer atos violentos.
Enqu
anto narra, ele busca através de
um processo anamnésico, tanto
lembrar quanto descobrir algo que
venha a legitimar as ações que
cometeu. E é precisamente essa
busca por uma justificação que nos
interessa mais especialmente, por sua
relação direta com a exp
medo.
A violência como remédio contra o
medo
O papel de antagonista
desempenhado por Hermógenes é um
elemento central no enredo de
sertão
, que é em função dele que
Riobaldo encontra uma justificativa
para a sua própria tendência ao m
Contudo, se pensarmos na formação
do caráter do protagonista, nenhuma
personagem é o essencial como
Diadorim. É na relação com ela que se
definem aspectos centrais da vida e da
personalidade do narrador. Nesse
sentido, quando se a obra rosiana
com
o um romance de formação, é
observável que diversos pontos de
virada fundamentais na narrativa de
Riobaldo têm Diadorim como figura
central e força motriz. Talvez nenhum
302
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)
ou mesmo um
cometer atos violentos.
anto narra, ele busca através de
um processo anamnésico, tanto
lembrar quanto descobrir algo que
venha a legitimar as ações que
cometeu. E é precisamente essa
busca por uma justificação que nos
interessa mais especialmente, por sua
relação direta com a exp
eriência do
A violência como remédio contra o
O papel de antagonista
desempenhado por Hermógenes é um
elemento central no enredo de
Grande
, que é em função dele que
Riobaldo encontra uma justificativa
para a sua própria tendência ao m
al.
Contudo, se pensarmos na formação
do caráter do protagonista, nenhuma
personagem é o essencial como
Diadorim. É na relação com ela que se
definem aspectos centrais da vida e da
personalidade do narrador. Nesse
sentido, quando se a obra rosiana
o um romance de formação, é
observável que diversos pontos de
virada fundamentais na narrativa de
Riobaldo têm Diadorim como figura
central e força motriz. Talvez nenhum
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
deles seja tão significativo quanto a
travessia do rio São Francisco (ROSA,
2001, p. 146-
148), episódio que marca
o primeiro encontro dos protagonistas,
ainda na infância de ambos.
A travessia é recordada em um
momento da narrativa em que
estamos familiarizados com a
admiração que Riobaldo nutre por
Diadorim. O que esse momento,
especifi
camente, proporciona de mais
relevante para nossa interpretação do
romance é a revelação de que essa
admiração do narrador nasce com o
assombro da descoberta de que
Diadorim não sente medo: “‘Você
nunca teve medo?’
foi o que me
veio, de dizer. Ele respon
Costumo não...’
e, passado o tempo
dum meu suspiro: –
‘Meu pai disse que
não se deve de ter...’ Ao que meio
pasmei” (ROSA, 2001, p. 147
assertiva de Diadorim não é apenas
retórica, mas se confirmada, no
episódio, tanto pela coragem que a
personagem demonstra ao atravessar
o caudaloso rio, em uma pequena
canoa, mesmo sem saber nadar,
quanto pelo enfrentamento, com um
canivete na mão, de um potencial
abusador (ROSA, 2001, p. 150).
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
deles seja tão significativo quanto a
travessia do rio São Francisco (ROSA,
148), episódio que marca
o primeiro encontro dos protagonistas,
ainda na infância de ambos.
A travessia é recordada em um
momento da narrativa em que
estamos familiarizados com a
admiração que Riobaldo nutre por
Diadorim. O que esse momento,
camente, proporciona de mais
relevante para nossa interpretação do
romance é a revelação de que essa
admiração do narrador nasce com o
assombro da descoberta de que
Diadorim não sente medo: “‘Você
foi o que me
veio, de dizer. Ele respon
deu:
e, passado o tempo
‘Meu pai disse que
não se deve de ter...’ Ao que meio
pasmei” (ROSA, 2001, p. 147
-148). A
assertiva de Diadorim não é apenas
retórica, mas se confirmada, no
episódio, tanto pela coragem que a
personagem demonstra ao atravessar
o caudaloso rio, em uma pequena
canoa, mesmo sem saber nadar,
quanto pelo enfrentamento, com um
canivete na mão, de um potencial
abusador (ROSA, 2001, p. 150).
O episódio da travessia do São
Francisco permite-
nos afirmar
certo modo, Diadorim também se
apresenta como um oposto de
Riobaldo, que o narrador do
romancese caracteriza exatamente por
ser assombrado por seus medos. Sua
história é marcada pelo desejo
profundo de entender e superar os
temores que perpassa
impedindo-
lhe de seguir um caminho
virtuoso.
Como a estima de Riobaldo por
Diadorim nasce da admiração que o
narrador manifesta pelo fato de o
amigo jamais sentir medo, o convívio
entre os dois personagens irá gerar
uma associação entre cora
bondade.Ao falar sobre
para Riobaldo, Diadorim enfatiza que
não ninguém mais valente em todo
o Gerais, e afirma na sequência: “Não
sabe que quem é mesmo inteirado
valente, no coração, esse também não
pode deixar de ser bom?!” (ROSA,
20
01, p. 200).Vale a pena lembrar que
Ramiro, ao longo de todo romance, é
descrito como uma figura quase divina:
E Joca Ramiro. A figura dele. Era
ele, num cavalo branco
que me olha de todos os altos. Numa
sela bordada, de Jequié, em lavores
de preto-e-
branco. As rédeas
bonitas, grossas, não sei de que
trançado. E ele era um homem de
303
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
O episódio da travessia do São
nos afirmar
que, de
certo modo, Diadorim também se
apresenta como um oposto de
Riobaldo, que o narrador do
romancese caracteriza exatamente por
ser assombrado por seus medos. Sua
história é marcada pelo desejo
profundo de entender e superar os
temores que perpassa
ram sua vida,
lhe de seguir um caminho
Como a estima de Riobaldo por
Diadorim nasce da admiração que o
narrador manifesta pelo fato de o
amigo jamais sentir medo, o convívio
entre os dois personagens irá gerar
uma associação entre cora
gem e
bondade.Ao falar sobre
Joca Ramiro
para Riobaldo, Diadorim enfatiza que
não ninguém mais valente em todo
o Gerais, e afirma na sequência: “Não
sabe que quem é mesmo inteirado
valente, no coração, esse também não
pode deixar de ser bom?!” (ROSA,
01, p. 200).Vale a pena lembrar que
Ramiro, ao longo de todo romance, é
descrito como uma figura quase divina:
E Joca Ramiro. A figura dele. Era
ele, num cavalo branco
cavalo
que me olha de todos os altos. Numa
sela bordada, de Jequié, em lavores
branco. As rédeas
bonitas, grossas, não sei de que
trançado. E ele era um homem de
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
largos ombros, a cara grande,
corada muito, aqueles olhos. Como é
que vou dizer ao senhor? Os cabelos
pretos, anelados? O chapéu bonito?
Ele era um homem. Liso bonito. N
tinha mais outra coisa em que se
reparar. A gente olhava, sem pousar
os olhos. A gente tinha até medo de
que, com tanta aspereza da vida, do
sertão, machucasse aquele homem
maior, ferisse, cortasse. E, quando
ele saía, o que ficava mais, na gente,
como
agrado em lembrança, era a
voz. Uma voz sem pingo de dúvida,
nem tristeza. Uma voz que
continuava. (ROSA, 2001, p. 318)
A atribuição de um caráter
divino a Joca Ramiro
extensão, a valorização de sua
bondade, justiça e coragem
ratificado pelo
termo utilizado para se
referir aos seus assassinos
“Judas”. É nesse sentido que
entendemos a jornada de Riobaldo
para sobrelevar os seus receios como
um esforço ético de
não apenas
superar o medo, mas, mais
precisamente, como uma saga para
tornar-se bom.
Das implicações existentes
entre medo e mal, coragem e bem,
decorre o ponto de vista ambíguo de
Riobaldo sobre a violência. Em boa
parte da diegese, o ódio, a intimidação
física e moral de terceiros são meios
de enfrentamento do seu próprio
medo. Em o
utras palavras, no sertão,
mergulhar no modo de vida jagunço e
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
largos ombros, a cara grande,
corada muito, aqueles olhos. Como é
que vou dizer ao senhor? Os cabelos
pretos, anelados? O chapéu bonito?
Ele era um homem. Liso bonito. N
em
tinha mais outra coisa em que se
reparar. A gente olhava, sem pousar
os olhos. A gente tinha até medo de
que, com tanta aspereza da vida, do
sertão, machucasse aquele homem
maior, ferisse, cortasse. E, quando
ele saía, o que ficava mais, na gente,
agrado em lembrança, era a
voz. Uma voz sem pingo de dúvida,
nem tristeza. Uma voz que
continuava. (ROSA, 2001, p. 318)
A atribuição de um caráter
e, por
extensão, a valorização de sua
bondade, justiça e coragem
é
termo utilizado para se
referir aos seus assassinos
os
“Judas”. É nesse sentido que
entendemos a jornada de Riobaldo
para sobrelevar os seus receios como
não apenas
superar o medo, mas, mais
precisamente, como uma saga para
Das implicações existentes
entre medo e mal, coragem e bem,
decorre o ponto de vista ambíguo de
Riobaldo sobre a violência. Em boa
parte da diegese, o ódio, a intimidação
física e moral de terceiros são meios
de enfrentamento do seu próprio
utras palavras, no sertão,
mergulhar no modo de vida jagunço e
praticar toda sorte de maldades integra
uma condição necessária no processo
formativo de se tornar bom, como
parece indicar a seguinte alusão à
sabedoria dos jagunços: “A vida é para
esse sarro
de medo se destruir;
jagunço sabe” (ROSA, 2001, p. 460).
A indicação de que o ódio é um
caminho incontornável para alcançar a
coragem, e, assim, tornar
bastante explícito na percepção de
Riobaldo acerca de qual posição deve
assumir frente ao Her
pousa na gente, por umas criaturas. Já
vai que o Hermógenes era ruim, ruim.
Eu não queria ter medo dele” (ROSA,
2001, p. 224). A ênfase na maldade
intrínseca do antagonista parece ser
voltada para explicitar e justificar o
ódio. Em outras p
alavras, Riobaldo
mais uma vez demonstra uma
profunda preocupação em justificar
uma emoção negativa. Essa
justificativa é organizada de modo a
apresentar o ódio como necessário
e, portanto, não como um sentimento
negativo, mas como um antídoto
contra o m
edo que seu antagonista lhe
inspira.
Consequentemente, a
conversão do ódio em violência parece
ser vista como um percurso quase
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- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
praticar toda sorte de maldades integra
uma condição necessária no processo
formativo de se tornar bom, como
parece indicar a seguinte alusão à
sabedoria dos jagunços: “A vida é para
de medo se destruir;
jagunço sabe” (ROSA, 2001, p. 460).
A indicação de que o ódio é um
caminho incontornável para alcançar a
coragem, e, assim, tornar
-se bom, é
bastante explícito na percepção de
Riobaldo acerca de qual posição deve
assumir frente ao Her
mógenes:“O ódio
pousa na gente, por umas criaturas. Já
vai que o Hermógenes era ruim, ruim.
Eu não queria ter medo dele” (ROSA,
2001, p. 224). A ênfase na maldade
intrínseca do antagonista parece ser
voltada para explicitar e justificar o
alavras, Riobaldo
mais uma vez demonstra uma
profunda preocupação em justificar
uma emoção negativa. Essa
justificativa é organizada de modo a
apresentar o ódio como necessário
e, portanto, não como um sentimento
negativo, mas como um antídoto
edo que seu antagonista lhe
Consequentemente, a
conversão do ódio em violência parece
ser vista como um percurso quase
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
natural, uma vez que, como foi
explicitado, Riobaldo compreende
como uma marca estrutural não
apenas da vida jagunça mas do
pr
óprio sertão. Isso parece ser
corroborado pela receita dada pelo
protagonista para
adquirir coragem:
O que há, que se diz e se faz
qualquer um vira brabo corajoso, se
puder comer cru o coração de uma
onça-
pintada. E, mas, a onça, a
pessoa mesma é que
matar; mas matar à mão curta, a
ponta de faca! Pois, então, por se
vê, eu vi: um sujeito medroso, que
tem muito medo natural de onça,
mas que tanto quer se transformar
em jagunço valentão
homem afia sua faca, e vai em
soroca, cap
az que mate a onça, com
muita inimizade; o coração come, s
enche das coragens terríveis!
(ROSA, 2001, p. 207)
O ato capaz de tornar os
homens valentes é marcado, portanto,
pela violência. Não basta apenas
matar a onça; deve fazê-
lo a partir de
um embate
direto, “à mão curta, a
ponta de faca”, que culmina em um ato
bastante cruel, quando se come, cru, o
coração da onça. É interessante
observar que o próprio Riobaldo
parece consciente da contradição de
seu raciocínio, que define a
coragem adquirida como
aterrorizante:
“o coração come, se enche das
coragens terríveis!”.
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
natural, uma vez que, como foi
explicitado, Riobaldo compreende
-a
como uma marca estrutural não
apenas da vida jagunça mas do
óprio sertão. Isso parece ser
corroborado pela receita dada pelo
adquirir coragem:
O que há, que se diz e se faz
que
qualquer um vira brabo corajoso, se
puder comer cru o coração de uma
pintada. E, mas, a onça, a
pessoa mesma é que
m carece de
matar; mas matar à mão curta, a
ponta de faca! Pois, então, por se
vê, eu vi: um sujeito medroso, que
tem muito medo natural de onça,
mas que tanto quer se transformar
em jagunço valentão
e esse
homem afia sua faca, e vai em
az que mate a onça, com
muita inimizade; o coração come, s
e
enche das coragens terríveis!
O ato capaz de tornar os
homens valentes é marcado, portanto,
pela violência. Não basta apenas
lo a partir de
direto, “à mão curta, a
ponta de faca”, que culmina em um ato
bastante cruel, quando se come, cru, o
coração da onça. É interessante
observar que o próprio Riobaldo
parece consciente da contradição de
seu raciocínio, que define a
aterrorizante:
“o coração come, se enche das
O que parece perturbar o
narrador, porém, é o reconhecimento
de que o ódio, como antídoto para
enfrentar o medo, tem efeitos
colaterais poderosos. Quando se é
efetivamente
bem
s
uperação do próprio medo, o sujeito
torna-
se, ele próprio, uma fonte de
pavor para os outros, realimentando
assim o ciclo de medo, ódio e
violência. No romance, isso é
concretizado quando Riobaldo se torna
o Urutú-
Branco e assume a liderança
dos jagunços,
o que se confirma pela
fala que lhe é dirigida por Bebelo,
destituído do posto de chefe: “você é o
outro homem, você revira o sertão...
Tu é terrível, que nem um uru
branco...” (ROSA, 2001, p. 545).
Esse encadeamento reflexivo
conduz Riobaldo a uma ap
parece não ser possível escapar do
medo. Nesse caso, a suspensão de
juízo a respeito da violência precisa,
consequentemente, ser revista. Assim,
se, em um primeiro momento, o
romance parecia caminharem direção
a uma posição de neutralidade do
pr
otagonista frente aos atos de
crueldade que presencia pelo sertão,
Riobaldo, conforme avança em sua
narração, torna-
se mais consciente de
305
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
)
O que parece perturbar o
narrador, porém, é o reconhecimento
de que o ódio, como antídoto para
enfrentar o medo, tem efeitos
colaterais poderosos. Quando se é
bem
-sucedido na
uperação do próprio medo, o sujeito
se, ele próprio, uma fonte de
pavor para os outros, realimentando
assim o ciclo de medo, ódio e
violência. No romance, isso é
concretizado quando Riobaldo se torna
Branco e assume a liderança
o que se confirma pela
fala que lhe é dirigida por Bebelo,
destituído do posto de chefe: “você é o
outro homem, você revira o sertão...
Tu é terrível, que nem um uru
branco...” (ROSA, 2001, p. 545).
Esse encadeamento reflexivo
conduz Riobaldo a uma ap
oria, pois
parece não ser possível escapar do
medo. Nesse caso, a suspensão de
juízo a respeito da violência precisa,
consequentemente, ser revista. Assim,
se, em um primeiro momento, o
romance parecia caminharem direção
a uma posição de neutralidade do
otagonista frente aos atos de
crueldade que presencia pelo sertão,
Riobaldo, conforme avança em sua
se mais consciente de
FRANÇA, Júlio; BELLAS
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n. 18, p. 296-306
, out. 2019 a março 2020.
que a violência está imbricada à
própria natureza humana: “Digo ao
senhor: remorso? Como no homem
que a onça comeu, cu
ja perna. Que
culpa tem a onça, e que culpa tem o
homem?” (ROSA, 2001, p. 395).Na
recusa ao remorso, bem como
analogia com um animal,
parece aceitar, não sem algum grau de
desencanto, a natureza violenta do ser
humano:“A gente viemos do inferno
nós todos
compadre meu Quelemém
instrui. Duns lugares inferiores, tão
monstro-
medonhos, que Cristo mesmo
conseguiu aprofundar por um
relance a graça de sua sustância
alumiável” (ROSA, 2001, p. 79).
A análise do sentido da
violência em Grande ser
tão: veredas
aqui empreendida, além de ratificar a
sua relevância na narrativa de
Riobaldo, oferece-
nos ainda mais
indícios no sentido de uma
confirmação da pertinência de uma
leitura do romance de Guimarães
Rosa sob a perspectiva das poéticas
do mal. Ao e
mergir, ainda que de
forma ambígua e tortuosa, como uma
opção efetiva para a superação do
medo, a violência torna
elemento essencial para as decisões
do protagonista a respeito do modo
, João Pedro Lima. Couro ruim é que chama ferrão
de ponta: a respeito da violência em "Grande sertão: veredas".
Americana de Estudos em Cultura,
, out. 2019 a março 2020.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
que a violência está imbricada à
própria natureza humana: “Digo ao
senhor: remorso? Como no homem
ja perna. Que
culpa tem a onça, e que culpa tem o
homem?” (ROSA, 2001, p. 395).Na
recusa ao remorso, bem como
na
analogia com um animal,
Riobaldo
parece aceitar, não sem algum grau de
desencanto, a natureza violenta do ser
humano:“A gente viemos do inferno
compadre meu Quelemém
instrui. Duns lugares inferiores, tão
medonhos, que Cristo mesmo
conseguiu aprofundar por um
relance a graça de sua sustância
alumiável” (ROSA, 2001, p. 79).
A análise do sentido da
tão: veredas
aqui empreendida, além de ratificar a
sua relevância na narrativa de
nos ainda mais
indícios no sentido de uma
confirmação da pertinência de uma
leitura do romance de Guimarães
Rosa sob a perspectiva das poéticas
mergir, ainda que de
forma ambígua e tortuosa, como uma
opção efetiva para a superação do
medo, a violência torna
-se um
elemento essencial para as decisões
do protagonista a respeito do modo
como deve orientar a sua vida. Trata
se de um componente que pare
confirmar o papel fundamental
desempenhado pela emoção do medo
no percurso diegético e, sobretudo,
ético de Riobaldo.
Referências
bibliográficas
ARNT, Gustavo.
perigoso: latifúndio e violência em
Grande sertão: veredas
Niterói,
n. 39, p. 430
2015.
BUENO, Giselle. O destapar do
demônio: violência e trauma em
Grande sertão: veredas
eletrônicos do XI Congresso
Internacional da ABRALIC. São Paulo:
USP, 2008.
CANDIDO, Antonio. O homem dos
avessos. In: T
ese e a
Paulo: Companhia Editora Nacional,
1964.
FRANÇA, J. O medo como elemento
temático e estrutural de
Sertão: Veredas.
In: ANAIS eletrônicos
do XVI encontro internacional da
ABRALIC. Brasília: UnB, 2020. [no
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FRANÇA, J., ARAÚJO, Ana P
artes e os atributos do Mal. In:
do mal
; textos seminais. Rio de
Janeiro: Bonecker, 2018.
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e Estudos Brasileiros
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(Dossiê "Representações da Violência na Literatura"
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como deve orientar a sua vida. Trata
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desempenhado pela emoção do medo
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As artes
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e Estudos Brasileiros
, n.34,
ROSA, João Guimarães.
Grande
. 20 ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001.
Resenha
COSTA, Jonathan Kaefer Gomes da.
Resenha de "A literatura como
arquivo da ditadura brasileira"
[de Eurídice Figueiredo).
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p. 308-313, out. 2019 a março 2020.
A
literatura como arquivo da ditadura brasileira
RESENHA:
FIGUEIREDO, Eurídice.
brasileira
. Rio de Janeiro: 7 letras,
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.39879
M
estrando em Ciências da Informação do PPGCI/UFMG, Universidade
Gerais, Brasil. E-
mail: jonathankaefer@yahoo.com.br
Testo recebido em 11/12/2019 e aceito para publicação em
A literatura como arquivo da
ditadura brasileira
escrito pela
professora do Programa de Pós
G
raduação em Estudos de Literatura
Resenha de "A literatura como
[de Eurídice Figueiredo).
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Resenha)
literatura como arquivo da ditadura brasileira
FIGUEIREDO, Eurídice.
A literatura como arquivo da ditadura
. Rio de Janeiro: 7 letras,
2017.
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v10i18.39879
Jonathan Kaefer Gomes da Costa
estrando em Ciências da Informação do PPGCI/UFMG, Universidade
mail: jonathankaefer@yahoo.com.br
- ORCID:
https://orcid.org/0000
Testo recebido em 11/12/2019 e aceito para publicação em
13/01/2020.
A literatura como arquivo da
escrito pela
professora do Programa de Pós
-
raduação em Estudos de Literatura
na
Universidade Federal do
Fluminense, Eurídice Figueiredo é
resultado de uma pesquisa feita desde
2014
com o especial auxílio do CNPq
308
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
literatura como arquivo da ditadura brasileira
A literatura como arquivo da ditadura
Jonathan Kaefer Gomes da Costa
estrando em Ciências da Informação do PPGCI/UFMG, Universidade
Federal de Minas
https://orcid.org/0000
-0002-
6550-0175
13/01/2020.
Universidade Federal do
Fluminense, Eurídice Figueiredo é
resultado de uma pesquisa feita desde
com o especial auxílio do CNPq
COSTA, Jonathan Kaefer Gomes da.
Resenha de "A literatura como
arquivo da ditadura brasileira"
[de Eurídice Figueiredo).
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p. 308-313, out. 2019 a março 2020.
(Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e
Tecnológico).
Figueiredo traz em seu
livro um discurso crítico sobre as
n
arrativas que tematizam a ditadura
militar.
Além das questões históricas,
a autora chega a fazer uma reflexão
sobre as consequências violentas da
ditadura
para os dias atuais.
Figueiredo usa de diversos autores
para trazer embasamento a sua
análise com o intuito de encontrar nos
rastros e fragmentos as condições de
interpretações dos processos coletivos
de trauma e sofrimento.
O livro
está dividido em
capítulos assim nomeados: “Os
arquivos do mal: memória, esquecida
e perdão”; “A literatura sobre a
ditadura: estratégias de escrita”;
B. Kucinski: Kaddish por uma irmã
desaparecida”; “Minha terra tem
palmeiras… e me expulsaram de
(Geração 1968)”.
Resenha de "A literatura como
[de Eurídice Figueiredo).
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Resenha)
(Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e
Figueiredo traz em seu
livro um discurso crítico sobre as
arrativas que tematizam a ditadura
Além das questões históricas,
a autora chega a fazer uma reflexão
sobre as consequências violentas da
para os dias atuais.
Figueiredo usa de diversos autores
para trazer embasamento a sua
análise com o intuito de encontrar nos
rastros e fragmentos as condições de
interpretações dos processos coletivos
está dividido em
quatro
capítulos assim nomeados: “Os
arquivos do mal: memória, esquecida
e perdão”; “A literatura sobre a
ditadura: estratégias de escrita”;
K. de
B. Kucinski: Kaddish por uma irmã
desaparecida”; “Minha terra tem
palmeiras… e me expulsaram de
No primeiro capítulo, Figueiredo
parte da premissa de que o golpe de
1964 foi um atentado à legalidade e à
C
onstituição, além de ressaltar que
muitos lutaram contra a falta de
liberdade imposta pelo novo regime. O
fim deste é, para a autora, assom
porque
as autoridades do país deram
carta branca a policiais e militares,
muito deles verdadeiros psicopatas,
simuladores
de
descartavam corpos
, além da “carta
branca” o regime resultou
promoção e condecoração de
torturadores. Dentro da luta pela
liberdade, a autora também aponta
que mesmo aqueles que se opuseram
ao regime, tanto nas Forças Armadas
quanto na Justiça, foram perseguidos
ou relegados na carreira em favor dos
que co
operaram com a ditadura.
A
autora afirma que a lei de
anistia realizou um
esquecimento
oposto do trabalho da
309
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
No primeiro capítulo, Figueiredo
parte da premissa de que o golpe de
1964 foi um atentado à legalidade e à
onstituição, além de ressaltar que
muitos lutaram contra a falta de
liberdade imposta pelo novo regime. O
fim deste é, para a autora, assom
broso
as autoridades do país deram
carta branca a policiais e militares,
muito deles verdadeiros psicopatas,
teatrinhos que
, além da “carta
branca” o regime resultou
também na
promoção e condecoração de
torturadores. Dentro da luta pela
liberdade, a autora também aponta
que mesmo aqueles que se opuseram
ao regime, tanto nas Forças Armadas
quanto na Justiça, foram perseguidos
ou relegados na carreira em favor dos
operaram com a ditadura.
autora afirma que a lei de
a
promoção do
oposto do trabalho da
COSTA, Jonathan Kaefer Gomes da.
Resenha de "A literatura como
arquivo da ditadura brasileira"
[de Eurídice Figueiredo).
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p. 308-313, out. 2019 a março 2020.
memória e do arquivamento. Além
disso, tal lei reforça um aspecto
cultural do país de não se cultivar a
memória política porque a a
significou amnésia. A autora faz uma
observação mais que
lida ao afirmar
que com a A
nistia o país “se recusa a
enfrentar o passado, a rever os crimes
cometidos, a expor as atrocidades
perpetradas por um regime de
exceção”.
E o primeiro capítulo c
com um trabalho minucioso sobre
outras publicações
existentes cujo foco
era a ditadura, levantando
de que
o arquivo não se confunde com
a memória, pelo contrário, o arquivo
existe no lugar da memória, pois ele é
documento ou monumento da
tendia a entrar para o esquecimento.
Diante do esquecimento, Figueiredo
aponta duas ordens sobre ele
esquecimento individual e o
esquecimento coletivo. Mas a autora
Resenha de "A literatura como
[de Eurídice Figueiredo).
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Resenha)
memória e do arquivamento. Além
disso, tal lei reforça um aspecto
cultural do país de não se cultivar a
memória política porque a a
nistia
significou amnésia. A autora faz uma
lida ao afirmar
nistia o país “se recusa a
enfrentar o passado, a rever os crimes
cometidos, a expor as atrocidades
perpetradas por um regime de
E o primeiro capítulo c
ontinua
com um trabalho minucioso sobre
existentes cujo foco
o destaque
o arquivo não se confunde com
a memória, pelo contrário, o arquivo
existe no lugar da memória, pois ele é
documento ou monumento da
quilo que
tendia a entrar para o esquecimento.
Diante do esquecimento, Figueiredo
aponta duas ordens sobre ele
: o
esquecimento individual e o
esquecimento coletivo. Mas a autora
chega a propor sol
traumas que reside
m
de lembrar
e reviver o trauma através
das palavras, ou seja, da narrativa,
nas sessões de psicanálise ou através
da escrita.
Por que a escrita seria
maneira de tratar os traumas
autora responde que o escritor
trabalharia com os vestígios do
passado e que me
smo que se trate de
uma rasura, a
escrita
rearrumar os dados do passado, pois
ao criar personagens, ao simular
situações, o escritor é capaz de levar o
leitor a imaginar aquilo que foi
efetivamente vivido por homens e
mulheres. Quem
tentam esc
sobre o passado da ditadura se
apoiam, de um lado, nas lembranças
pessoais e familiares além das
informações obtidas em diferentes
arquivos.
O segundo capítulo do livro
literatura como arquivo da ditadura
310
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
chega a propor sol
uções para os
m
na necessidade
e reviver o trauma através
das palavras, ou seja, da narrativa,
nas sessões de psicanálise ou através
Por que a escrita seria
a
maneira de tratar os traumas
? Bom, a
autora responde que o escritor
trabalharia com os vestígios do
smo que se trate de
escrita
vai juntar e
rearrumar os dados do passado, pois
ao criar personagens, ao simular
situações, o escritor é capaz de levar o
leitor a imaginar aquilo que foi
efetivamente vivido por homens e
tentam esc
rever
sobre o passado da ditadura se
apoiam, de um lado, nas lembranças
pessoais e familiares além das
informações obtidas em diferentes
O segundo capítulo do livro
A
literatura como arquivo da ditadura
COSTA, Jonathan Kaefer Gomes da.
Resenha de "A literatura como
arquivo da ditadura brasileira"
[de Eurídice Figueiredo).
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p. 308-313, out. 2019 a março 2020.
brasileira
traz o título de “A literatura
sobre a ditadura: estratégias de
escrita”. Capítulo que
traz
resumos
e reflexões sobre obras
literárias que tematizam a ditadura
brasileira. Figueiredo pondera com a
observação de Seligmann
local da diferença
(2015), de que não
dúvida sobre o caráter testemunhal
da literatura que tematiza as
catástrofes do século XX, e ainda
acrescenta, citando Giorgio Agamben,
O
que resta de Auschwitz
a etimologia da palavra “testemunha”
reside também em
superst
que viveu uma experiência sobre a
qual pode testemunhar). Desse modo,
dentre os textos analisados por
Figueiredo no segundo capítulo os
autores, na maioria dos casos, estão
atuando como superstes
testemunha sua própria experiência d
militância e de perseguição política
Resenha de "A literatura como
[de Eurídice Figueiredo).
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Resenha)
traz o título de “A literatura
sobre a ditadura: estratégias de
traz
breves
e reflexões sobre obras
literárias que tematizam a ditadura
brasileira. Figueiredo pondera com a
observação de Seligmann
-Silva, O
(2015), de que não
dúvida sobre o caráter testemunhal
da literatura que tematiza as
catástrofes do século XX, e ainda
acrescenta, citando Giorgio Agamben,
(2008), que
a etimologia da palavra “testemunha”
superst
es (aquele
que viveu uma experiência sobre a
qual pode testemunhar). Desse modo,
dentre os textos analisados por
Figueiredo no segundo capítulo os
autores, na maioria dos casos, estão
pessoa que
testemunha sua própria experiência d
e
militância e de perseguição política
.
Figueiredo também defende que
a ficção não é sinônimo de fantasia e
imaginação, trata-
se sim de uma
estratégia ordenadora da linguagem
com o objetivo de criar uma narrativa
legível e compreensível. Portanto, o
escrit
or ao se debruçar sobre a
memória e
sobre o arquivo, cria um
testemunho pessoal da história além
de escrever para um público mais
amplo, encontrando no leitor um
elemento ativo na transmissão da
memória. Por fim, a divisão realizada
entre as obras que tem
ditadura militar brasileira são assim
estabelecidas por Figueiredo: primeiro
período (1964-
1979); o segundo
período (1980-
2000); o terceiro
período que compreende os últimos
anos.
No
terceiro capítulo de
literatura como arquivo da ditadura
brasileira
a autora traz uma análise
sobre um dos livros que narram os
311
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
Figueiredo também defende que
a ficção não é sinônimo de fantasia e
se sim de uma
estratégia ordenadora da linguagem
com o objetivo de criar uma narrativa
legível e compreensível. Portanto, o
or ao se debruçar sobre a
sobre o arquivo, cria um
testemunho pessoal da história além
de escrever para um público mais
amplo, encontrando no leitor um
elemento ativo na transmissão da
memória. Por fim, a divisão realizada
entre as obras que tem
atizam a
ditadura militar brasileira são assim
estabelecidas por Figueiredo: primeiro
1979); o segundo
2000); o terceiro
período que compreende os últimos
terceiro capítulo de
A
literatura como arquivo da ditadura
a autora traz uma análise
sobre um dos livros que narram os
COSTA, Jonathan Kaefer Gomes da.
Resenha de "A literatura como
arquivo da ditadura brasileira"
[de Eurídice Figueiredo).
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p. 308-313, out. 2019 a março 2020.
traumas da ditadura: K,
de Bernardo
Kucinski. Trata-
se da história do
desaparecimento de Ana Rosa
Kucinski Silva, professora do Instituto
de Químic
a da USP, e de seu marido
Wilson Silva, ambos militantes da ALN
(Ação Libertadora
Nacional). Ana era
irmã do autor e filha de Meir Kucinski
escritor que nasceu na Polônia em
1904 e emigrou para o Brasil em 1935.
Wilson Silva foi colega de faculdade de
Bernardo Kucinski,
tendo sido
dest
e que Wilson conheceu Ana. O
casal foi preso pelo delegado Sérgio
Fleury durante o regime e anos depois
o ex-
delegado Cláudio Guerra, em
depoimento que está no livro
Memórias de uma guerra suja
ter transport
ado os corpos do casal a
fim de serem incinerados no forno da
Usina Cambahyba, no Rio de Janeiro.
A voz do personagem principal,
revela toda a angústia de um pai que,
após passar por um processo de
Resenha de "A literatura como
[de Eurídice Figueiredo).
PragMATIZES -
Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 10, n.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
(Resenha)
de Bernardo
se da história do
desaparecimento de Ana Rosa
Kucinski Silva, professora do Instituto
a da USP, e de seu marido
Wilson Silva, ambos militantes da ALN
Nacional). Ana era
irmã do autor e filha de Meir Kucinski
escritor que nasceu na Polônia em
1904 e emigrou para o Brasil em 1935.
Wilson Silva foi colega de faculdade de
tendo sido
através
e que Wilson conheceu Ana. O
casal foi preso pelo delegado Sérgio
Fleury durante o regime e anos depois
delegado Cláudio Guerra, em
depoimento que está no livro
Memórias de uma guerra suja
, revelou
ado os corpos do casal a
fim de serem incinerados no forno da
Usina Cambahyba, no Rio de Janeiro.
A voz do personagem principal,
K.,
revela toda a angústia de um pai que,
após passar por um processo de
emigração forçado somado às perdas
de familiares duran
te a ocupação dos
nazistas na Polônia, encontra no Brasil
um refúgio. Porém, é este novo refúgio
que dará a K.
suas últimas e grande
perdas: o desaparecimento da filha e
do genro, e a
falta de
Estado brasileiro.
No capítulo “Minha terra tem
palmeira… e me expulsaram de
(Geração 1968)”, o último do livro,
Eurídice elabora sua narrativa
autobiográfica. Sua experiência de
exílio após a prisão de seu namorado,
Flávio, quando se tornou uma foragida
do governo brasileiro. A autora
personagem rev
ela que durante seus
primeiros anos de exílio lhe ocorria
vagas ideias de suicídio, chegando a
conclusão de que no exílio se vive o
luto da perda da referência maior que
é o país natal. No fim do capítulo, a
autora revela que sempre
desejo de escrev
er sobre suas
312
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
- ISSN 2237-1508
emigração forçado somado às perdas
te a ocupação dos
nazistas na Polônia, encontra no Brasil
um refúgio. Porém, é este novo refúgio
suas últimas e grande
s
perdas: o desaparecimento da filha e
falta de
respostas do
No capítulo “Minha terra tem
palmeira… e me expulsaram de
(Geração 1968)”, o último do livro,
Eurídice elabora sua narrativa
autobiográfica. Sua experiência de
exílio após a prisão de seu namorado,
Flávio, quando se tornou uma foragida
do governo brasileiro. A autora
-
ela que durante seus
primeiros anos de exílio lhe ocorria
vagas ideias de suicídio, chegando a
conclusão de que no exílio se vive o
luto da perda da referência maior que
é o país natal. No fim do capítulo, a
autora revela que sempre
teve o
er sobre suas
COSTA, Jonathan Kaefer Gomes da.
Resenha de "A literatura como
arquivo da ditadura brasileira"
[de Eurídice Figueiredo).
Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura,
18, p. 308-313, out. 2019 a março 2020.
“peripécias” durante a ditadura militar
brasileira, mas havia algo que a
bloqueava de
escrever esse texto
Portanto, ao terminar a leitura
prazerosa deste livro de linguagem
clara e detalhes pontuais,
o que
se concordar com as
palavras
professor Jaime Ginzburg ao
que esta obra tem raras convergências
entre qualidades analíticas, didáticas e
expressivas, por iss
o faz dela única e
necessária.
Resenha de "A literatura como
[de Eurídice Figueiredo).
PragMATIZES -
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Niterói/RJ, Ano 10, n.
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(Resenha)
“peripécias” durante a ditadura militar
brasileira, mas havia algo que a
escrever esse texto
.
Portanto, ao terminar a leitura
prazerosa deste livro de linguagem
o que
palavras
do
professor Jaime Ginzburg ao
afirmar
que esta obra tem raras convergências
entre qualidades analíticas, didáticas e
o faz dela única e
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