ISSN 2237
-
1508
Niterói / RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
DOSSIÊ / DOSSIER
CULTURA VIVA: DO PROGRAMA À LEI - QUESTÕES
ESTRUTURANTES NO BRASIL E DEMAIS POLÍTICAS DE
CULTURA VIVA COMUNITÁRIA
Cultura Viva – 20 anos: uma análise da trajetória entre programa,
política e conceito em políticas públicas de cultura
Cultura Viva (Living Culture) - 20 years: an analysis of the trajectory
between program, policy and concept in public cultural policies
DEBORAH REBELLO LIMA
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
Cultura Viva e o transbordamento de fronteira - entrevista com
Célio Turino
Cultura Viva (Living Culture) and border crossing - interview with
Célio Turino
CÉLIO TURINO
DEBORAH REBELLO LIMA
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros -
entrevista com Márcia Rollemberg
Cultura Viva (Living Culture) National Policy: possibilities and futures
- interview with Márcia Rollemberg
MÁRCIA ROLLEMBERG
DEBORAH REBELLO LIMA
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
O Programa Arte, Cultura e Cidadania - Cultura Viva: diálogos
no tempo
The Program Art, Culture, and Citizenship - Cultura Viva: dialogues
across time
LIA CALABRE
Revisitando o Cultura Viva e os pontos de cultura
Revisiting Cultura Viva and points of culture
JOÃO GUERREIRO
Acessibilidade Cultural de Base Comunitária - Desafios para o
Programa Cultura Viva
Community-Based Cultural Accessibility: Challenges for the Cultura
Viva Program
PATRÍCIA SILVA DORNELES
CLAUDIA REINOSO ARAÚJO DE CARVALHO
A dimensão econômica solidária na Política Nacional Cultura
Viva
“The solidary economic dimension in National Policy Living Culture”
CAROLINA FREITAS
JULIANA CAETANO DA CUNHA
A rua como palco de Cultura Viva: entrevista com Alexandre
Santini
The street as a stage of Living Culture: interview with Alexandre Santini
MIRIANE PEREGRINO
Cultura Viva e seus desdobramentos: uma avaliação das
Escolas Livres
“Cultura Viva” and its developments: an evaluation of “Escolas Livres”
ALEXANDRE BARBALHO
ERNESTO GADELHA
ALEXANDRE FLEMING VALE
Cultura Viva entre o emergencial e o emergente: o mapeamento
da Rede Mineira de Pontos de Cultura
Living Culture between the emergency and the emerging: the
mapping of Culture Points’ Network of Minas Gerais - Brazil
LUANA VILUTIS
JOSÉ MÁRCIO BARROS
ANA PAULA DO VAL
ARTIGOS / ARTICLES
Da crítica do desenvolvimento à crítica da
modernidade. Pensamento latino-Americano
e criação de alternativas de
desenvolvimento
From the critique of development to the critique
of modernity. Latin American thought and
creation of alternatives.
JOSÉ GUADALUPE GANDARILLA
SALGADO
Tradução por:SEBASTIÃO GUILHERME
ALBANO
Diversidade socioeconômica no consumo e
rendimento do setor cultural no Brasil: uma
análise de insumo-produto
Socioeconomic diversity in cultural sector
consumption and income in Brazil: an input-
output analysis
LÍLIA VITÓRIA OLIVEIRA DOS SANTOS
DANYELLA JULIANA MARTINS DE BRITO
MARCUS VINÍCIUS AMARAL E SILVA
RESENHA / REVIEW
A metrópole da ilusão: o teatro social da
Uberaba de 1940
Resenha de: FONSECA, André Azevedo da. A
metrópole imaginária. Curitiba: Ed. UFPR,
2020.
DOUGLAS MEURER KUSPIOSZ
P r a g M AT I Z E S
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura
Ano 14 nº 26 - março/2024
EDITORES EXECUTIVOS
Luiz Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Arte, Brasil
Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte,
Brasil
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Arte, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Ahtziri Molina Roldán, Universidad Veracruizana, México
Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural /
Director de La Fundación Contemporánea, Espanha
Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará, Brasil
Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Brasil
Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Espanha
Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Brasil
Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Argentina
Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Deborah Rebello Lima, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Durval Muniz de Albuquerque Jr., Universidade Estadual da Paraíba,
Brasil
Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus
de Paris, França
Eloisa Porto C. Allevato Braem, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Fábio Fonseca de Castro, Universidade Federal do Pará, Brasil
Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad
de Buenos Aires, Argentina
Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Brasil
George Yúdice, Universidae de Miami, Estados Unidos da América
Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
Idemburgo Pereira Frazão, Unigranrio, Brasil
Isabel Babo, Universidade Lusófona do Porto, Portugal
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
João Guerreiro, Instituto Federal do Rio de Janeiro, IFRJ, Brasil
José Luís Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, México
José Márcio Barros, Universidade Estadual de Minas Gerais / PUC
Minas, Brasil
Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Espanha
Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Lívia de Tommasi, Universidade Federal do ABC, Brasil
Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Luís Edmundo de Souza Moraes, Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Brasil
Luiz Augusto Fernandes Rodrigues, Universidade Federal Fluminense,
Brasil
Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Marcela A. País Andrade, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Portugal
Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Mário Pragmácio Telles, Faculdades Integradas Hélio Alonso, Brasil
Marisa Schincariol de Mello, Universidade Cândido Mendes, Brasil
Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín,
Colombia
Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes, Argentina
Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Argentina
Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Brasil
Pâmella Passos, Instituto Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Patricio Rivas, Universidad de Chile, Chile
Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Paulo César Silva de Oliveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil
Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Priscilla Oliveira Xavier, Centro Universitário Carioca, Brasil
Renata Rocha, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Ricardo Gomes Lima, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Simonne Teixeira, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro, Brasil
Stefano Cristante, Università del Salento, Italia
Tamara Quírico, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Cuba
Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, Brasil
Vladimir Sibylla Pires, Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Peru
Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes, Colômbia
CONSELHO DE ÉTICA
Luiz Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
REALIZAÇÃO:
PARCEIROS e INDEXADORES:
PragMATIZES – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura.
Ano XIV nº 26, (MAR/2024). – Niterói, RJ: [s. N.], 2024.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC e Programa de Pós-Graduação em Cultura e
Territorialidades - PPCULT)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão online)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e
expressões artísticas. I. Título.
CDD 306
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades - PPCULT
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
7
Sumário / Summary
p. 10 – 19
COLABORADORES DA EDIÇÃO / ISSUE’S CONTRIBUTORS
p. 20 - 22
EDITORIAL / EDITORIAL
DOSSIÊ / DOSSIER
CULTURA VIVA: DO PROGRAMA À LEI - QUESTÕES ESTRUTURANTES NO
BRASIL E DEMAIS POLÍTICAS DE CULTURA VIVA COMUNITÁRIA
p. 23 – 28
Apresentação do dossiê, por seus editores Deborah Rebello Lima (UFPR) e Luiz
Augusto F. Rodrigues (UFF)
p. 29 - 57
Cultura Viva – 20 anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito
em políticas públicas de cultura
Cultura Viva (Living Culture) - 20 years: an analysis of the trajectory between program, policy
and concept in public cultural policies
DEBORAH REBELLO LIMA
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
p. 28 - 77
Cultura Viva e o transbordamento de fronteira - entrevista com Célio Turino
Cultura Viva (Living Culture) and border crossing - interview with Célio Turino
CÉLIO TURINO
DEBORAH REBELLO LIMA
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
p. 78 - 104
Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros - entrevista com Márcia
Rollemberg
Cultura Viva (Living Culture) National Policy: possibilities and futures - interview with Márcia
Rollemberg
MÁRCIA ROLLEMBERG
DEBORAH REBELLO LIMA
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
p. 105 - 121
O Programa Arte, Cultura e Cidadania - Cultura Viva: diálogos no tempo
The Program Art, Culture, and Citizenship - Cultura Viva: dialogues across time
LIA CALABRE
p. 122 - 143
Revisitando o Cultura Viva e os pontos de cultura
Revisiting Cultura Viva and points of culture
JOÃO GUERREIRO
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
8
p. 144 - 172
Acessibilidade Cultural de Base Comunitária - Desafios para o Programa Cultura Viva
Community-Based Cultural Accessibility: Challenges for the Cultura Viva Program
PATRÍCIA SILVA DORNELES
CLAUDIA REINOSO ARAÚJO DE CARVALHO
p. 173 - 202
A dimensão econômica solidária na Política Nacional Cultura Viva
“The solidary economic dimension in National Policy Living Culture”
CAROLINA FREITAS
JULIANA CAETANO DA CUNHA
p. 203 - 211
A rua como palco de Cultura Viva: entrevista com Alexandre Santini
The street as a stage of Living Culture: interview with Alexandre Santini
MIRIANE PEREGRINO
p. 212 - 238
Cultura Viva e seus desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres
“Cultura Viva” and its developments: an evaluation of “Escolas Livres”
ALEXANDRE BARBALHO
ERNESTO GADELHA
ALEXANDRE FLEMING VALE
p. 239 - 261
Cultura Viva entre o emergencial e o emergente: o mapeamento da Rede Mineira de
Pontos de Cultura
Living Culture between the emergency and the emerging: the mapping of Culture Points’
Network of Minas Gerais - Brazil
LUANA VILUTIS
JOSÉ MÁRCIO BARROS
ANA PAULA DO VAL
ARTIGOS / ARTICLES
p. 262 - 277
Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade. Pensamento latino-
Americano e criação de alternativas de desenvolvimento
From the critique of development to the critique of modernity. Latin American thought and
creation of alternatives.
JOSÉ GUADALUPE GANDARILLA SALGADO
Tradução por: SEBASTIÃO GUILHERME ALBANO
p. 278 - 302
Diversidade socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto
Socioeconomic diversity in cultural sector consumption and income in Brazil: an input-output
analysis
LÍLIA VITÓRIA OLIVEIRA DOS SANTOS
DANYELLA JULIANA MARTINS DE BRITO
MARCUS VINÍCIUS AMARAL E SILVA
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
9
RESENHA / REVIEW
p. 303 - 306
A metrópole da ilusão: o teatro social da Uberaba de 1940
Resenha de: FONSECA, André Azevedo da. A metrópole imaginária. Curitiba: Ed. UFPR,
2020.
DOUGLAS MEURER KUSPIOSZ
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
10
CONTRIBUIDORES DA EDIÇÃO
Alexandre Almeida Barbalho. Possui licenciatura em História pela Universidade
Estadual do Ceará (UECE), bacharelado em Ciências Sociais e mestrado em
Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorado em Comunicação
e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Estágio
pós-doutoral em Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. É professor adjunto
do curso de História e professor permanente dos PPGs em Sociologia e em Políticas
Públicas da UECE e em Comunicação da UFC. Tem experiências nas áreas de
Política, Cultura e Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas:
política cultural, política de comunicação, mídia e cidadania, mídia e minorias, mídia
e política, elites. É autor, entre outros, de: Relações entre Estado e cultura no Brasil
(1998); Cultura e imprensa alternativa (2000); A modernização da cultura (2005); A
criação está no ar: Juventudes, política, cultura e mídia (2013) - edição em espanhol:
La creación está en el aire: juventudes, política, cultura y comunicación (2014);
Democracia radical e pluralismo cultural. Para ler Chantal Mouffe (2015); Política
cultural e desentendimento (2016) - edição em espanhol: Política cultural y
desacuerdo (2020); Cultura e democracia (2017); e Sistema Nacional de Cultura.
Campo, saber e poder (2019). É organizador de Brasil, brasis: Identidades, cultura e
mídia (2008) e co-organizador, entre outros, de: Comunicação e cultura das minorias
(com Raquel Paiva, 2005 - edição em espanhol: Comunicación y cultura de las
minorías, 2012 ); Políticas Culturais no Brasil (com Albino Rubim, 2007);
Comunicação e cidadania: Questões contemporâneas (com Bruno Fuser e Denise
Cogo, 2011); Cultura e desenvolvimento: Perspectivas poticas e econômicas (com
Lia Calabre, Paulo Miguez e Renata Rocha, 2011); Federalismo e políticas culturais
no Brasil (com Lia Calabre e José Márcio Barros , 2013); Infância, juventude e mídia.
Olhares luso-brasileiros (com Lídia Maropo, 2015); Políticas culturais no governo
Dilma (com Albino Rubim e Lia Calabre, 2015); Os trabalhadores da cultura no
Brasil: criação, práticas e reconhecimento (com Elder Maia e Mariela Vieira, 2017); e
Retratos do Ceará moderno: emergência de um padrão de modernização cultural
nas margens (com Mariana Barreto, 2020). E-mail:
alexandrealmeidabarbalho@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4612-6162
Alexandre Fleming Câmara Vale. Professor Titular na Universidade Federal do
Ceará e Coordenador do Núcleo de Estudos em Antropologia Visual, Gênero e
Oralidade (LEO). Na UFC, concluiu bacharelado (com concentração em
antropologia), mestrado e doutorado. Atuando exclusivamente na área de
Antropologia, lecionou por 10 anos na Universidade Estadual Vale do Acaraú
(Sobral-CE). Em 2006, foi aprovado em concurso para Professor Adjunto de
Antropologia na UFC. Depois de algumas incursões pelo campo religioso (corpo e
religiões de transe, monografia de Bacharelado), afunilou seu interesse para as
questões ligadas à corporeidade, gênero, sexualidade e antropologia urbana e
visual. No mestrado, concluiu a dissertação com um trabalho sobre cinemas
pornográficos no centro da cidade de Fortaleza, abordando aspectos relacionados à
experiência transgênero, (homo)territorialidades e mercado da pornografia. No
doutorado, seguiu trabalhando sobre a experiência transgênero, agora pensada em
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
11
relação aos processos migratórios. Para tanto, permaneceu, por dois anos em
situação de doutorando sanduíche, vinculado à Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais e ao Laboratório de Antropologia Social, em Paris. Publicou, entre
outros trabalhos: No Escurinho do Cinema: Cenas de um Público Implícito (São
Paulo: Annablume, 2000 e Fortaleza: Experessão Gráfica, 2012, 2 edição), o verbete
Anthropologie, para o Dicionário da Homofobia (Paris: Puf, 2003), as coletâneas
Estilísticas da Sexualidade (Campinas: Pontes, 2005), França e Brasil: Olhares
Cruzados Sobre Imaginários e Práticas Culturais (São Paulo: Annablume, 2012) e O
Voo da Beleza: experiências trans e migração (Fortaleza: RDS Editora, 2013).
Coordenou ainda a realização da Coleção de Livros Ceará Cadinho (Prêmio Manuel
Coelho Raposo para Autores Cearenses da Secretaria da Cultura do Estado do
Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica e Leo, 2011. 7 volumes). Realizou os seguintes
documentários: Cinema Caradura (45 min., 2010), Homenagem ao Antropólogo
Geraldo Markan (15 min., 2011) e O Voo da Beleza (84 min., 2012/2013), Tombando
o Gênero (14 min, Manchester, 2013), a trilogia Vidas na Orla (3 filmes média-
metragem de 26 min cada) e Teresinha de Alencar e o Instituto de Antropologia (15
min, 2019). No período de maio de 2013 a maio de 2014, realizou pós-doutorado na
Universidade de Estrasburgo, convidado pelo antropólogo David Le Breton. Durante
esse período, foi também aluno no curso Filmaking for Fieldwork, no Centro
Granada de Antropologia Visual, em Manchester. Atualmente, faz parte da equipe do
Programa Cientista Chefe da Cultura, da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), da
Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior (Secitece) e da Fundação
Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap). E-mail:
acamaravale@gmail.com
Ana Paula do Val. Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC.
Urbanista, artista, gestora cultural, professora, pesquisadora, ativista e feminista
decolonial. Suas experiências práticas e acadêmicas transitam pelos campos das
artes, dos movimentos e práticas culturais, dos mapeamentos socioculturais, da
arquitetura e urbanismo, da educação popular e mobilização social, da gestão e
mediação cultural e das políticas públicas de cultura (com ênfase na diversidade
cultural, cidadania cultural, participação social, institucionalidade da cultura).
Trabalhou em diversos projetos desde 1998 voltados ao planejamento urbano e
rural, habitacional, projetos participativos, economia solidária, planos diretores,
assessoria técnica e planejamento territorial aos movimentos de moradia urbanos e
rurais. Também, atuou como gestora pública nas áreas de habitação e planejamento
urbano coordenando processos de urbanização em assentamentos precários e
mobilização social. Desde 2004, trabalha no campo cultural atuando como
consultora e realizadora de mapeamentos socioculturais, assessoria para
elaboração de políticas públicas, projetos culturais, pesquisa, docência e produção
de conteúdos de arte e cultura para diversas instituições culturais (públicas e
privadas). É pesquisadora, docente do Observatório da Diversidade Cultural (UEMG-
MG; UFBA). Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Multidisciplinares em Arquitetura
e Urbanismos do SUL, MALOCA (UNILA-PR). E-mail: anap.doval@gmail.com
- https://orcid.org/0009-0003-9278-7807
Carolina Freitas. Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional
de Blumenau - FURB (2020). Especialista em Gestão Educacional pela Faculdade
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
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Dom Bosco (2014). Graduada em Pedagogia pela Universidade do Vale do Itajaí -
UNIVALI (2002). É servidora pública, técnica pedagógica do Estado de Santa
Catarina (2005), na Secretaria de Educação integrou o Núcleo de Tecnologias
Educacionais (2008), na Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte, esteve na
Diretoria de Políticas Culturais na implementação do Sistema Estadual de Cultura,
além de análise e gestão de projetos culturais (2012), na Fundação Catarinense de
Cultura foi Coordenadora da Rede de Pontos de Cultura (2013/2017), trabalhou na
execução dos editais emergenciais da Lei Aldir Blanc e integrou o Núcleo de Gestão
do Programa de Incentivo à Cultura (2021 - 2023). Atualmente está como Chefe de
Divisão na Coordenação de Articulação Cultura Viva, na Diretoria da Política
Nacional Cultura Viva, da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, no
Ministério da Cultura. E-mail: carola.freitas19@gmail.com -https://orcid.org/0000-
0001-7888-3518
Célio Turino. Graduado em História pela Unicamp (1984), Pós-Graduado em
Administração Cultural pela PUCSP (1986), Mestre em História pela Universidade
Estadual de Campinas (2004), doutor em Humanidades pelo programa Diversitas
(FFLCH-USP) (2023). Tem experiência na área de História, com ênfase em Cultura,
História das Mentalidades, Juventude, Esportes e Lazer, Novas Economias, Bem
Viver, Governança Democrática, Articulação de Redes Comunitárias de
Colaboração, Ambientalismo e Direitos da Natureza. Formulação e implantação de
diversas Políticas Públicas, no Brasil e no exterior (aproximadamente 20 países),
com destaque para o programa CULTURA VIVA e os Pontos de Cultura (3.500
Pontos de Cultura até 2010, em 1.100 municípios e beneficiando entre 8 e 9 milhões
de pessoas). Autor de diversos livros, publicados no Brasil e no exterior, nos idiomas
espanhol, inglês e italiano. Ensaísta, autor de dezenas de ensaios e centenas de
artigos, publicados no Brasil e no exterior, nos idiomas espanhol e inglês.
Conferencista, tendo realizado mais de mil conferências nos diversos temas de
especialidade, em todo território brasileiro e em mais de 20 países, nos continentes
americano, sobretudo América Latina, europeu e asiático. Articulador de Redes
Comunitárias e encontros colaborativos, no Brasil e no exterior, com destaque para:
a) rede Cultura Viva Comunitária, presente em 17 países da América Latina e que
realizou 4 Congressos latino-americanos (La Paz/Bolívia, 2013; San Salvador/El
Salvador, 2015; Quito/Equador, 2017; Mendoza/Buenos Aires - Argentina, 2019)
com participação entre 500 e 1.200 pessoas de aproximadamente 20 países; b)
Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara; c) Articulação Brasileira
pelo Pacto Educativo Global; d) Articulação pela Lei de Emergência Cultural, que
resultou sancionada sob lei 14.017/2020, beneficiando trabalhadoras e
trabalhadores das artes e cultura (consultor na teoria e conceituação da lei, bem
como no processo de mobilização em tempos de pandemia). Ativismo em
movimentos sociais desde 1978, compreendendo Movimento estudantil secundarista
e universitário; Comitê Brasileiro pela Anistia, Movimento Contra a Carestia,
Movimento em Defesa da Amazônia, Comitês em solidariedade às greves operárias,
oposições sindicais, formação de Sindicatos e central sindical. Desenvolve
atividades de extensionismo desde 1980, organizando cineclubes e feiras de arte em
favelas e bairros da periferia na cidade de Campinas. Diretor de Museus na cidade
de Campinas (1983/88), realizando a curadoria e implantação de diversas
exposições nos campos de História, Antropologia, História Natural e Ciências, no
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
13
espaço sede dos Museus e itinerantes, em praças, escolas e centros comunitários,
incluindo serviço educativo e supervisão de equipe e estagiários. Esteve como
Secretário de Cultura e Turismo na cidade de Campinas (1990/92); Diretor de
Promoções Esportivas, Lazer e Recreação na cidade de São Paulo (2001/04);
Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/10). É escritor e,
desde 2011, viaja pelos rincões do mundo, sobretudo aldeias, vilas e favelas na
América Latina, escutando histórias e escrevendo sobre elas. E-mail:
celioturino65@gmail.com - https://orcid.org/0009-0000-5349-6474
Claudia Reinoso Araújo de Carvalho. Terapeuta Ocupacional. Professora
Associada do Departamento de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Permanente do Programa de
Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social do Instituto
de Psicologia da UFRJ (EICOS/IP/UFRJ). Atualmente é Jovem Cientista do Nosso
Estado da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo á Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro - FAPERJ. Doutora e Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de
Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).
Realizou pós-doutorado pelo PNPD/CAPES/UFSCar no Programa de Pós-
Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Especialista em Administração Universitária Federal pela UFRJ.
Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/FIOCRUZ.
Especialista em Acessibilidade Cultural pela UFRJ. Especialista em Saúde do Idoso
e Gerontologia pela UNIBF. É Líder do grupo de pesquisa Envelhecimento humano:
saúde, cultura e sociedade. Desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão
tendo como ênfase a Terapia Ocupacional, o processo de envelhecimento humano e
suas interfaces com a Cultura e com as Ciências Humanas e Sociais. Suas
pesquisas estão relacionadas às seguintes temáticas: participação social e
comunitária das pessoas idosas, vulnerabilidade social, identidade cultural, memória
social e coletiva. Adicionalmente mantém interesse em temas referentes à formação
profissional, metodologia de ensino e pesquisa e extensão universitária. E-mail:
claudiareinoso73@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4105-9191
Danyella Juliana Martins de Brito. Doutora em Economia pelo CEDEPLAR-UFMG.
Professora do PPGECON/UFPE/CAA. Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação
em Economia da Universidade Federal da Paraíba (PPGE-UFPB). Graduada em
Economia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/CAA). Possui interesse
nas áreas de Economia Regional e Urbana, Demografia Econômica, Economia do
Trabalho e Migração. E-mail: danyella.brito@ufpe.br - https://orcid.org/0000-
0002-9630-2577
Deborah Rebello Lima. Gestora cultural, pesquisadora e docente apresenta um
impressionante percurso acadêmico e profissional. O doutorado em Comunicação e
Cultura foi concluído na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2020,
com um período de pesquisa na University of Miami (2019-2020). Graduações em
Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (2009) e em Comunicação
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) foram complementadas
por uma especialização em Políticas Públicas e Gestão Governamental pelo
IUPERJ-UCAM (2012), bem como um mestrado pelo CPDOC/FGV (2013) no
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
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Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais.Com trajetória
destacada, desempenhou papel fundamental como bolsista de pesquisa e assessora
técnica no Setor de Estudos em Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui
Barbosa, ligada ao Ministério da Cultura, de 2010 a 2016. Reconhecimento veio com
a Medalha Rui Barbosa em 2016, em virtude de contribuições para a cultura
brasileira. Membro da Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Gestão da FCRB,
integrou o Simap-Sistema de Museus, Acervos e Patrimônio Cultural da UFRJ de
2019 a 2022.Assumiu recentemente a vice-coordenação do Labac Laboratório de
Ações Culturais na Universidade Federal Fluminense, onde colabora desde 2007.
Atua como professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR), ligada ao
Departamento de Artes, também sendo vice-coordenadora do curso de graduação
em Produção Cultural na UFPR. Tem como enfoque pesquisas em Políticas
Públicas de Comunicação e Cultura, com ênfase em: Representação, Economia
Política da Comunicação e da Cultura, Teoria da Regulação, Papel do Estado,
Antropologia dos Processos de Estado, entre outros. E-mail: deborahrebello@ufpr.br
- https://orcid.org/0000-0002-4598-5347
Douglas Meurer Kuspiosz. Bacharel em Comunicação Social: habilitação em
Jornalismo pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Atuou em
projetos de Iniciação Científica (IC) como bolsista da Fundação Araucária (2015 a
2016) e como voluntário (2016 a 2018). Também participou de Projetos de Extensão
da Unicentro voltados à prática cinematográfica e à memória do rádio. Na área da
pesquisa comunicacional, desenvolveu projetos voltados ao Cinema, ao Jornalismo
e à Filosofia da Linguagem. Atualmente, é aluno do Mestrado em Comunicação da
Universidade Estadual de Londrina (UEL).E-mail: douglas.meurer@uel.br -
https://orcid.org/0000-0001-9181-9035
Ernesto Gadelha (Ernesto de Souza Gadelha Costa). É mestre em Educação pelo
Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Ceará, pós-graduado em Dança Contemporânea pela Folkwang Hochschule
(Essen - Alemanha), diplomado em Pedagogia da Dança pelo Instituto de Danças
Cênicas de Colônia, graduado em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal
do Ceará (2017). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Dança. Atuou
como bailarino profissional no Brasil, Holanda e Alemanha. Atuando como professor
de dança há 30 anos, ministrou aulas em diferentes países, para diversas
companhias, teatros, estúdios e projetos de dança. Paralelamente à sua carreira
como docente, criou estudos coreográficos, bem como videodanças exibidos em
diversos festivais do Brasil e exterior. De 1999 a 2001 atuou como assistente
artístico e professor do Colégio de Dança do Ceará, assumindo sua direção no ano
de 2002. De 2003 a 2007 foi coordenador de Dança do Centro Dragão do Mar de
Arte e Cultura, período em que esteve à frente da implantação do Curso Técnico em
Dança e do Festival de Dança Litoral Oeste. Atuou como curador em diversos
festivais e desde 2009 é responsável pela direção artística e pedagógica da Bienal
Internacional de Dança do Ceará. Participou de várias comissões de seleção de
editais e mostras de dança. Em 2007 coordenou a implementação da Escola Pública
de Dança da Vila das Artes, assumindo sua coordenação de julho de 2009 a
fevereiro de 2017. Em 2018 e 2020 foi professor visitante do Mestrado em Dança da
Universidade Nacional da Costa Rica. Atualmente, além de ministrar aulas para
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diversas academias de dança de Fortaleza e para o Curso Técnico em Dança do
Porto Iracema das Artes, coordena a Coordenadoria de Formação, Livro e Leitura da
Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. E-mail:ernestogadelha@gmail.com -
https://orcid.org/0000-0002-9949-5458
João Guerreiro (João Luiz Guerreiro Mendes). Formado em Ciências Econômicas
pela Universidade Federal Fluminense (UFF - 1992), mestre em Planejamento
Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - 1998),
doutor em Serviço Social pela UFRJ (2013) e pós-doutor em Políticas Culturais pelo
Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da
Universidade Federal da Bahia (Pós-Cultura/UFBA - 2021). É professor do Instituto
Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), campus Nilópolis (RJ), atuando no curso de
graduação em Produção Cultural e no curso de Pós-Graduação em Linguagens
Artísticas, Cultura e Educação (LACE). Coordenador do Curso Técnico em Artes
Circenses na parceria entre o IFRJ e a FUNARTE (Fundação Nacional de Artes) na
Escola Nacional de Circo (ENC) e Tutor do grupo PET/Conexões de Saberes em
Produção Cultural deste 2023. É líder do Grupo de Pesquisa OBaC (Observatório
Baixada Cultural) e do Grupo de Pesquisa OiCult (Observatório Indisciplinar de
Fazeres Culturais e Letramentos). Atua também como vice-líder do Grupo de
Pesquisa JICs (Juventudes, Infâncias e Cotidianos) todos vinculado ao CNPq.
Coordena o Grupo de Trabalho "Culturas e Juventudes" no ENECULT/UFBA
(Encontro de Estudos Multidiciplinares em Cultura). Membro do Conselho Editorial
da Revista Latino-Americana de Estudos Culturais (PragMATIZES), Está
Conselheiro Estadual de Políticas Culturais do Rio de Janeiro (2021/2024)
representando o IFRJ. Atualmente participa do grupo de trabalho "Cultura e Políticas
Culturais" do CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais).
Desenvolve pesquisas sobre culturas, políticas culturais, periferias e juventudes.
E-mail: joao.mendes@ifrj.edu.br - https://orcid.org/0000-0003-1788-4132
José Guadalupe Gandarilla Salgado. Doctor en Filosofía Política, por la
Universidad Autónoma Matropolitana/UAM – Iztapalapa. Investigador Titular C,
Definitivo, del Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y
Humanidades. Ha sido profesor en las facultades de Economía, Ciencias Políticas y
Sociales, Filosofía y Letras, y Posgrado en Estudios Latinoamericanos, de la UNAM
(Universidad Nacional Autónoma de México), y profesor invitado en otras
universidades del extranjero. Su obra Asedios a la totalidad. Poder y política en la
modernidad, desde un encare de-colonial (Barcelona, Anthropos – CEIICH – UNAM,
2012), obtuvo Mención Honorífica en la 8va edición del Premio Libertador al
Pensamiento Crítico 2012, y obtuvo el Premio Frantz Fanon 2015 al trabajo
destacado en pensamiento caribeño (The Frantz Fanon Award for Outstanding Book
in Caribbean Thought) de la Asociación Filosófica del Caribe. Sus más recientes
libros son, Atravesar la pandemia. Ensayos a cuatro manos (México, CEIICH –
UNAM, 2021, en coautoría con maría Haydeé García Bravo), Colonialismo
neoliberal. Modernidad, devastación y automatismo de mercado (Buenos Aires,
Herramienta, 2018). Fundó y dirigió De Raíz Diversa. Revista especializada en
Estudios Latinoamericanos. Obtuvo el Primer lugar en el Concurso Internacional de
Ensayos “Aníbal Quijano Obregón”, de la Asociación Latinoamericana de Sociología
(ALAS). Recientemente ha sido electo como integrante, por México, del Comité
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Directivo de CLACSO. E-mail: joseg@unam.mx - https://orcid.org/0000-0001-5241-
6276 .
José Márcio Barros. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Minas Gerais (1980), Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de
Campinas (1992) e Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (2003). Professor aposentado colaborador do PPG Artes da
Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).Ex-Professor permanente externo
do PPg Cultura e Sociedade da UFBa. Professor da Faculdade de Comunicação e
Artes da PUC Minas nos cursos de Publicidade e Propaganda, Jornalismo, Cinema
e Audiovisual, Relações Públicas. Atua nas áreas da Antropologia, Políticas Públicas
e Cultura e Comunicação com ênfase em Gestão Cultural; Políticas Culturais;
Diversidade Cultural; Processos de mediação. É autor de vários artigos publicados
em periódicos, dentre outros trabalhos,. Publicou e organizou os seguintes livros:
Comunicação e Cultura nas avenidas de contorno, publicado pela Editora PUC
Minas; Diversidade Cultural da proteção à promoção, publicado pela Editora
Autêntica; As mediações da Cultura, publicado pela Editora PUC Minas; Pensar e
Agir com a cultura, publicado pelo ODC e Federalismo e políticas culturais no Brasil
e Dimensões e Desafios Políticos para a Diversidade Cultural, ambos publicados
pela EDUFBa; Gestão Cultural e Diversidade: do Pensar ao Agir e Planos Municipais
de Cultura: reflexões e experiências pela EDUEMG; Diversidade Cultural e
Desenvolvimento Sustentável. Coordena a organização não-governamental e grupo
de pesquisa (CNPq) Observatório da Diversidade Cultural e o Programa Pensar e
Agir com a Cultura. E-mail: josemarciobarros2013@gmail.com -
https://orcid.org/0000-0002-3058-5236
Juliana Caetano da Cunha. Doutora em Letras (Estudos de Literatura)
pelaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É mestre em
Letras(Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ),onde também cursou Bacharelado e Licenciatura em Letras: Português-
Francês. Especializou-se em Tradução de Espanhol pela Universidade GamaFilho
(UGF). Atua como tradutora de espanhol e francês, foi professora
dasespecializações em Tradução de Espanhol e Tradução de Inglês naUniversidade
Estácio de Sá (UNESA), é servidora técnico-administrativa daUFRJ e, atualmente,
encontra-se cedida ao Ministério da Cultura, onde exercea função de Coordenadora
de Planejamento da Cultura Viva, na Secretaria deCidadania e Diversidade Cultural.
É também atriz e atuadora no carnaval derua do Rio de Janeiro. Pesquisa Literatura,
Arte e Sociedade. E-mail:julianacae@gmail.com – https://orcid.org/0000-0001-9377-
1979
Lia Calabre. Doutora em história pela UFF. Professora do Mestrado Profissional
Memória e Acervos da FCRB e do Mestrado Cultura e Territorialidades-UFF.
Professora colaboradora daUniversidad de la Nación – CURE – UDELAR – Uruguai.
Chefe do setor de Pesquisa de Políticas Culturais da FCRB (2003-2019; 2023-atual).
Coordenadora da Cátedra UNESCO de Políticas Culturais e Gestão (2017-atual).
Líder do grupo de pesquisa do CNPq “Política cultural – história perspectivas
contemporâneas”. Membro do CULT–UFBA e do LABAC-UFF. Foi presidente da
FCRB (2015-2016). Organizadora e autora de diversos artigos e de livros, tais como:
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Políticas Culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI (Ed. FGV, 2009), Políticas
Culturais no Brasil: história e contemporaneidade (BNB, 2010) e Escritos sobre
Políticas Culturais (FCRB,2019). E-mail: liacalabre@gmail.com -
https://orcid.org/0000-0002-7586-7210
Lília Vitória Oliveira dos Santos. Possui graduação em Ciências Econômicas pela
Universidade Federal de Pernambuco - Campus Acadêmico do Agreste (2023).
Atualmente é Estagiária da Prefeitura Municipal de Caruaru. Tem experiência na
área de Economia. Universidade Federal de Pernambuco - Centro Acadêmico do
Agreste, Brasil. E-mail: lilia.oliveira@ufpe.br
Luana Vilutis. Socióloga e educadora, trabalha com formação e pesquisa nas áreas
de políticas públicas e desenvolvimento territorial, com ênfase em estudos
intersetoriais de cultura, educação e economia solidária. Doutora em Cultura e
Sociedade pela UFBA (2015), possui mestrado em Educação pela USP (2009) e
graduação em Ciências Sociais pela PUC-SP (2000). Integra a equipe de
professores e pesquisadores do Observatório da Diversidade Cultural - ODC, do
Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura - CULT/UFBA e da Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais - FLACSO Brasil. Realizou pesquisas de
Mestrado e Doutorado voltadas à análise dos alcances e limites de políticas públicas
de cultura na promoção da diversidade cultural brasileira e da sustentabilidade de
organizações da sociedade civil. Tem experiência no assessoramento técnico de
organizações, gestores e conselheiros de poticas públicas para a produção
metodológica de processos participativos na gestão cultural; trabalha com avaliação
de políticas públicas; elaboração de materiais didáticos; sistematização de
conteúdos; realização de pesquisas e diagnósticos; articulação de redes de
empreendimentos econômicos solidários e pontos de cultura. E-mail:
luanavilutis@gmail.com - https://orcid.org/0009-0003-2299-1837
Luiz Augusto F. Rodrigues. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Federal Fluminense (1987) e doutorado em História pela Universidade
Federal Fluminense (1997). É professor Titular do Departamento de Arte da UFF,
vinculado ao quadro docente permanente do Programa de Pós-Graduação em
Cultura e Territorialidades / PPCULT e ao curso de graduação em Produção
Cultural. Coordena o Laboratório de Ações Culturais -LABAC-UFF (criado em 1999 -
https://labacuff.wordpress.com). Eleito representante regional (Latin America and the
Spanish-speaking Caribbean) da Association for Cultural Studies (para o quadriênio
2022-2026). É um dos editores de PragMATIZES - Revista Latino-Americana de
Estudos em Cultura (https://periodicos.uff.br/pragmatizes/). Coorganizador da
coleção CULTURA E... (editora Lumen Juris, RJ). Coorganizador das coleções (e-
books gratuitos) Mirante; Caleidoscópio; Ipsis Litteris (Instituto Grão e LABAC-UFF).
Associado à Rede Internacional das Culturas (Brasil, Portugal, Moçambique), à Red
Latinoamericana de Gestión Cultural, à cátedra UNESCO Política cultural e gestão,
ao Laboratório Cidade e Poder (LCP-PPGH-UFF) e integra o GT CLACSO (2023-
2025) Cultura e políticas culturais na América Latina no século XXI. Coordenou o
projeto Ponto de Cultura Niterói Oceânico (MinC-CCARO, 2007-2012). Presidiu o
Conselho de Cultura de Niterói no biênio 2008-2010. Tem como linhas de pesquisa
temas como: gestão cultural, políticas públicas de cultura, cidade e cultura,
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modernidade e espaço universitário. Autor de livros, capítulos, artigos em periódicos
científicos e em anais de congressos nacionais e internacionais. E-mail:
luizaugustorodrigues@id.uff.br - https://orcid.org/0000-0003-0583-9641
Márcia Rollemberg. Graduada em Serviço Social (1982) e em Educação Artística
(2000) pela Universidade de Brasília. Coordenadora-Geral de Documentação e
Informação do Ministério da Saúde (1994-2009). Especialização em gestão de
sistemas e serviços de saúde pela Unicamp (2005). Diretora de Articulação e
Fomento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN (jul/2009-
out/2011). Secretária da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural-SCDC,
do Ministério da Cultura (MinC) (out/2011 a jan/2015). Gerente Executiva na
Fundação João Mangabeira (fev/2015 a mai/2023). Secretária da Secretaria da
Cidadania e da Diversidade Cultural-SCDC, do Ministério da Cultura (mai/2023-
atual). E-mail: marcia.rollemberg@cultura.gov.br
Marcus Vinícius Amaral e Silva. Possui Mestrado em Economia pela Universidade
Federal da Paraíba (PPGE/UFPB) e Graduação em Ciências Econômicas pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É Doutor em Economia Aplicada pelo
Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Juiz de
Fora (PPGE/UFJF). Possui interesse nas áreas de Economia Regional e
Urbana.Professor do PPGECON/UFPE/CAA. E-mail: marcus.silva@ufpe.br -
https://orcid.org/0000-0002-9361-9448
Miriane Peregrino. Doutora em Letras pela UFRJ e é mestre e especialista em
Literatura Brasileira pela UERJ. Atualmente, é Jovem Pesquisadora Fluminense da
FAPERJ/UFRJ. Entre agosto de 2017 e fevereiro de 2018 realizou doutorado
sanduíche (PDSE/CAPES) na Universidade Agostinho Neto, em Angola,
desenvolvendo estudos sobre literatura angolana contemporânea. Em 2018, atuou
nos centros culturais brasileiros de Angola e Moçambique realizando pesquisa de
doutorado e promovendo ações do seu projeto de incentivo à leitura e literatura
brasileira, Literatura Comunica!, contemplado com o Prêmio Todos Por Um Brasil de
Leitores (2015) e o Prêmio Culturas Populares (2018), ambos do Ministério da
Cultura, e cuja iniciativa "Diários de Emergência Covid-19" ficou entre os cinco
finalistas do Prêmio Jabuti 2021 (Fomento à Leitura/Inovação). Realizou estágios de
pesquisa no Romanisches Seminar (Uni-Mannheim) e no Portugiesisch-
Brasilianisches Institut (UzK), ambos na Alemanha, e no Centro de Estudos Amilcar
Cabral, na Guiné Bissau. Tem experiência em pesquisa e organização de arquivos
pessoais e culturais, dos quais destaca sua atuação no Arquivo-Museu de Literatura
Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (AMLB/FCRB), no Centro Nacional do
Folclore e Cultura Popular do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(CNFCP/IPHAN) e na Fundação Nacional de Arte (FUNARTE). Possui experiência
na área de Literatura Brasileira, Literaturas Africanas em Língua Portuguesa,
Produção de Texto, Políticas Culturais e Jornalismo Popular (Mtb 37462/RJ). E-mail:
miriane.peregrino@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-4410-347X
Patrícia Silva Dorneles. Possui graduação em Terapia Ocupacional pela Federação
das Faculdades Metodistas do Sul Instituto Porto Alegre (1995). Mestre em
Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2001) na linha de
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pesquisa Educação Popular e movimentos sociais e Doutora em Geografia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011) na linha ambiente, ensino e
território. É pós doutora em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São
Carlos - UFSCar. Atua há 20 anos no campo das políticas públicas culturais. Tem
experiência na área de Artes, com ênfase em política cultural, atuando
principalmente nos seguintes temas: ação cultural, política cultural, ação coletiva,
educação popular e saúde e direitos humanos. Trabalhou no Ministério da Cultura
entre os anos de 2005 a 2009, implementando o Programa Cultura Viva na Região
Sul e as ações de Cultura e Saúde deste órgão. Atualmente é Professora Associada
do Curso de Terapia Ocupacional da UFRJ, sendo docente das disciplinas de
Acessibilidade Cultural e Terapia Ocupacional e Educação Popular e Saúde. É
coordenadora do I Curso de Pós-Graduação em Acessibilidade Cultural para
pessoas com deficiência com o apoio do Ministério da Cultura. Foi Superintendente
de Difusão Cultural do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ de 2015 a 2019.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Terapia Ocupacional e Cultura - CNPQ. E-
mail: patriciadorneles@medicina.ufrj.br - https://orcid.org/0000-0003-3440-7549
Sebastião Guilherme Albano. Possui graduação em Comunicação Social pela
Universidade Franco Mexicana (UFRAME), mestrado em Letras Latino-Americanas
pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM, 1998), com bolsa do
Ministério de Relações Exteriores do México (SRE), e Doutorado em Comunicação
pela Universidade de Brasília (2007), com bolsa da CAPES. Foi coordenador do
Departamento de Português da Agência Mexicana de Notícias (NOTIMEX, 1989-
1994) e professor da UNAM (1990-1994) e do Centro de Estudos Brasileiros do
México (1993-1997). Foi redator da Agência de Notícias Chinesa (XINHUA) no
México (1996-1998) e correspondente do site de notícias Cyberamérica (1999-
2001). Colaborou como crítico cultural em diversos jornais da imprensa mexicana
entre 1993 e 2008. Foi professor em diversas instituições de ensino superior de
Brasília (1999-2007). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), pesquisador da Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) e do Conselho Latino-Americano
de Ciências Sociais (CLACSO). Foi professor titular entre 2008 e 2018 na UNAM, no
El Colegio de México (COLMEX), na Universidade Federal do Ceará (UFC), na
University of Texas at El Paso (UTEP), na University of Texas at San Antonio
(UTSA), na University of Texas at Austin (UTAustin), na University of La Plata,
Argentina (UNLP), no International Centre for Higher Communication Studies for
Latin America (CIESPAL), na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociales
(FLACSO), ambos no Equador, e na Universidade de Vigo em Pontevedra, Espanha
(UVIGO). Foi pesquisador visitante da UTAustin em 2010, 2012 e 2015. Em 2015
recebeu uma bolsa da DGAPA, UNAM, para realizar pesquisas no Instituto de
Pesquisas Filológicas (IIF). Realizou o segundo pós-doutoramento na Escola
Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL), Portugal, em
2019/2020, com visita técnica na UTAustin. Seus interesses são discursos e
sociabilidade na América Latina, com ênfase em audiovisuais. E-mail:
albanoppgen@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-6059-7409
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
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EDITORIAL
A edição é composta por dois artigos em Fluxo Contínuo (um deles uma
tradução) e uma resenha; que se somam a outros dez textos produzidos para o dossiê
temático, sendo duas entrevistas realizadas pelos editores do dossiê. Tivemos ao
todo 23 autores publicando nesta edição de PragMATIZES Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura. Os autores ficaram assim distribuídos: um do
México, Rio Grande do Norte, Bahia, Minas Gerais com um autor de cada estado, 6
do Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Distrito Federal com três autores cada um,
que se somam a dois autores do Paraná e outros dois de São Paulo.
Permitimos um pequeno atraso na publicação desta edição de modo a coincidir
com a efeméride dos 20 anos no mês de julho de 2024 da política cultural tema do
dossiê que integra este fascículo: Cultura Viva: do Programa à Lei - questões
estruturantes no Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária”. O dossiê
teve como editores Deborah Rebello Lima, da Universidade Federal do Paraná e Luiz
Augusto F. Rodrigues, da Universidade Federal Fluminense.
Os mapas a seguir ilustram a procura por nosso periódico desde sua criação
em 2011) e, em seguida à relação dos autores que contribuíram com esta edição,
temos a Apresentação do dossiê temático.
Editores
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
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21
Agradecemos aos autores que até o primeiro semestre de 2024
publicaram conosco, representantes dos seguintes países:
Brasil:
324
Peru: 1
França: 2
Espanha: 6
Portugal: 4
Reino Unido: 1
Argentina: 8
Chile: 2
Colômbia: 6
Cabo Verde: 1
EUA: 2
Canadá: 1
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Agradecemos aos autores que até o primeiro semestre de 2024
publicaram conosco, representantes dos seguintes estados
brasileiros:
3
2
5
50
10
154
1
1
12
3
14
3
24
2
20
29
10
3
1
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Apresentação do dossiê
O dossiê Cultura Viva: do Programa à Lei - questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária teve como editores Deborah
Rebello Lima, da Universidade Federal do Paraná e Luiz Augusto F. Rodrigues, da
Universidade Federal Fluminense.
Buscou-se reflexões e análises sobre a Política Nacional de Cultura Viva -
PNCV, institucionalizada como lei em 2014 (Lei 13.018, de 22/junho de 2014), mas
fruto do programa governamental criado em 2004: Programa Nacional de Cultura,
Educação e Cidadania Cultura Viva (portaria n. 156, de 5/julho/2004, do Ministério
da Cultura). Esta política brasileira teve transbordamento de fronteira em especial em
países da América Latina, se somando políticas de cultura viva comunitária
incentivadas pelo programa multilateral da OEI (Organização dos Estados Ibero-
Americanos) - Programa IberCultura Viva.
Programa IberCultura Viva foi aprovado na XXIII Cúpula Ibero-americana de
Chefes de Estado e de Governo (Cidade do Panamá, 2013) e foi regulamentado em
2014, tendo sido designado o Brasil como país Presidente do Programa, por um
período de três anos. Dez anos depois a presidência do IberCultura Viva retorna ao
Brasil.
O ano de 2024 marca, desta maneira, efemérides importantes para a política
de Cultura Viva.
A chamada pública lançada para compor o dossiê 26 de PragMATIZES
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura teve o intuito de observar
impactos e avanços alcançados com a política numa janela temporal de quase 20
anos por meio da análise de diversas frentes, às quais destacamos: refletir sobre as
dimensões conceituais do programa e a interação da proposta da política com
conceitos norteadores ao campo, em especial a noção de diversidade cultural e
reconhecimento; dimensionar o potencial de indução de níveis de participação social
por meio do desenho operativo e da estrutura decisória que foi criada na política
pública; observar a capilaridade de atendimento no território brasileiro; debater
interações e/ou contribuições entre esta potica e sua internacionalização.
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Defende-se que tal política é um objeto potente para avaliar novos alicerces
das políticas culturais contemporâneas (tanto as desenvolvidas no Brasil quanto em
outros países da América Latina). Enfatiza-se que a PNCV necessita de mais estudos
em profundidade pela enorme importância que ela representa ao setor cultural:
conceitualmente e administrativamente. Da mesma maneira, entende-se que as ações
contempladas nestas políticas públicas contribuem no alcance dos grandes desafios
sociais previstos da Agenda 2030 promovida pela ONU (Organização das Nações
Unidas).
O desafio de retomada de pesquisas e reflexões sobre a Cultura Viva é
grande, dado o esvaziamento político sofrido, em especial nos últimos seis anos.
Surgido como programa do governo Lula da Silva com o ministro Gilberto Gil à frente
da pasta cultural, não somente o Programa Cultura Viva, mas diversas outras políticas
públicas de cultura passaram a se revelar potentes frentes de pesquisa acadêmica. A
retomada da PNCV a partir de 2023 sinalizava um possível desdobramento também
das frentes de pesquisa, fato que induziu o presente dossiê.
Observa-se que o campo ainda não está “aquecido” suficientemente, mesmo
assim o dossiê que ora apresentamos envolveu 15 pesquisadores em seus 8 artigos
e mais duas referências trazidas a partir de entrevistas realizadas pelos organizadores
do dossiê. Embora perceba-se que os autores são oriundos de quase todas as regiões
brasileiras, constatou-se nenhum alcance em relação à região Norte e aos
pesquisadores latino-americanos; o que sinaliza demandas de indução ainda maiores.
Neste sentido apontado em relação ao fortalecimento da PNCV, duas ações
merecem destaque. A formalização junto à Secretaria de Cidadania e Diversidade
Cultural do Ministério da Cultura (SCDC/MinC) de um “Consórcio Universitário Cultura
Viva” envolvendo três universidades federais, de três distintas regiões, sendo duas
das coordenações exercidas pelos organizadores deste dossiê: a Universidade
Federal do Paraná, a Universidade Federal Fluminense, que se somaram à
Universidade Federal da Bahia.
Outra ação a destacar será o “Encontro de pesquisadores da política de
Cultura Viva”, que organizamos enquanto Consórcio Universitário para acontecer
junto ao Enecult em agosto de 2024. Esperamos que a rede de pesquisadores sobre
a Política Nacional de Cultura Viva se torne cada vez maior.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
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A partir dos artigos submetidos ao dossiê, observa-se a seguinte Nuvem de
Palavras1:
A intensidade das palavras já sinaliza aspectos importantes do Cultura Viva e
os Pontos de Cultura, surgidos como um programa e se tornaram uma política, focada
na cidadania, de base comunitária e solidária.
Em Cultura Viva - 20 anos: uma análise da trajetória entre programa, política e
conceito em políticas blicas de cultura, os autores Deborah Rebello Lima e Luiz
Augusto F. Rodrigues focalizam a Política Nacional de Cultura Viva e os Pontos de
Cultura; destacando aspectos como Diversidade Cultural e política de
reconhecimento.
Este artigo se volta para uma breve análise histórica da Política Nacional de
Cultura Viva (PNCV) que, em 2024, completa 10 anos de institucionalização. Vale
enfatizar que a efeméride também se vincula aos 10 anos de criação do programa de
cooperação internacional IberCultura Viva, construído em inspiração ao modelo
brasileiro. Além de representar os 20 anos de operação local do “conceito Cultura
1 Aplicativo desenvolvido por Steven Dutt-Ross para o projeto APOENA (2021, LABAC-UFF). Maiores
informações em APOENA: https://apoenaredecultural.wordpress.com
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Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
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Viva” enquanto ideário de política pública. O texto busca refletir em três dimensões. A
primeira mergulha na depuração do conceito cultura viva e suas interlocuções como
política pública de cultura. A segunda perspectiva debate sobre o exercício da Cultura
Viva ao “provocar” a invenção do Estado em proporcionar debates sobre novos
instrumentos e operações de políticas. E, por último, trata da dimensão de
arregimentação política, da provocação à cultura política nacional de desarticulação
para uma mudança de 180º e a reivindicação de uma gestão compartilhada.
O artigo assinado por Lia Calabre e intitulado O Programa Arte, Cultura e
Cidadania - Cultura Viva: diálogos no tempo revisita o Cultura Viva a partir de alguns
aspectos considerados como os diferenciais do Programa, que permitiram a interação
e a integração de diferentes agentes e atores culturais ao longo do território brasileiro
- em geral de territórios e segmentos pouco atendidos pelo Estado. As redes e teias
que foram sendo tecidas nos encontros e desencontros do programa nessas duas
décadas de existência contribuíram muito para uma articulação potente que cumpriu
um papel fundamental no momento da emergência sanitária do Covid 19.
Em Revisitando o Cultura Viva e os pontos de cultura, João Guerreiro parte dos
debates sobre a criação do Ministério da Cultura trazendo o debate sobre alternativas
às políticas de fomento direto e indiretos para o campo cultural procurando demonstrar
que o caráter excludente dessas políticas não está desatrelado do perfil conservador
dos grupos que privatizam o Estado brasileiro. Com isso busca demonstrar o papel
inovador, inclusivo e de alargamento desse mesmo Estado a partir do Programa
Cultura Viva, sem deixar de apontar as necessidades de aperfeiçoamento do
programa.
O tema trazido que artigo seguinte observa-se que nos últimos quinze anos a
pauta da cidadania cultural das pessoas com deficiência tem desafiado as políticas
públicas de cultura à efetivação desse direito, de forma emancipatória e
anticapacitista. Em Acessibilidade Cultural de Base Comunitária - Desafios para o
Programa Cultura Viva, assinado por Patrícia Silva Dorneles e Claudia Reinoso Araújo
de Carvalho, as autoras têm como objetivo refletir sobre o contexto da pauta da
acessibilidade cultural para pessoas com deficiência. Discutem iniciativas para
qualificar a agenda de direito cultural dessa população, bem como estratégias para
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Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
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comprometer os diferentes agentes do campo da cultura com a qualificação do capital
cultural das pessoas com deficiência.
O artigo destaca a parceria entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ - e o Ministério da Cultura MinC, entre 2013 e 2019, a partir das vagas
ofertadas aos Pontos de Cultura no Curso de Especialização em Acessibilidade
Cultural - CEAC - e outras ações que atuam na sensibilização dessas iniciativas de
base comunitária, na agenda da cidadania cultural das pessoas com deficiência.
Carolina Freitas e Juliana Caetano da Cunha apresentam em A dimensão
econômica solidária na Política Nacional Cultura Viva um debate sobre a economia
da cultura a partir de experiências culturais comunitárias do estado de Santa Catarina,
com ênfase em suas características organizacionais e considerando a problemática
do desenvolvimento e das contradições da cultura como política de desenvolvimento
e da cultura como commodity. Igualmente, buscam identificar elementos que
compõem a construção da Política Nacional de Cultura Viva fundamentando-se nos
princípios da economia solidária, na perspectiva comunitária, na produção e
articulação em rede como estratégia emancipatória para a cultura.
Em A Rua Como Palco de Cultura Viva: Entrevista com Alexandre Santini,
Miriane Peregrino apresenta a relação do entrevistado com o teatro de rua, discutindo
o conceito de cultura viva e o contexto da produção cultural durante a pandemia de
2020.
O artigo de Alexandre Barbalho, Ernesto Gadelha e Alexandre Fleming Vale é
intitulado Cultura Viva e seus desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres.
Nele, os autores analisam o desdobramento da Política Nacional de Cultura Viva em
outros programas tendo como foco a ação “Escolas Livres da Cultura” implementada
pelo Governo do Ceará e observando os elementos programáticos comuns e a
atuação prática dessas organizações. A pesquisa tem um vetor avaliativo e para tanto,
além de pesquisa bibliográfica e documental, aplicou-se questionário com gestores
das instituições e precedeu-se a um estudo de caso, o da Edisca.
Em Cultura Viva entre o emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede
Mineira de Pontos de Cultura, Luana Vilutis, José Márcio Barros e Ana Paula do Val
se baseiam nos dados gerados pelo Mapeamento e Diagnóstico realizado pelo
Observatório da Diversidade Cultural-ODC junto à Rede Mineira de Pontos de Cultura
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, mar. 2024.
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de Minas Gerais em 2021. Apresentam de forma geral a metodologia e uma breve
caracterização dos Pontos de Cultura de MG, no que tange suas institucionalidades,
atuações, distribuição territorial e infraestruturas e evidenciam duas dimensões que
apontam como parecem emblemáticas desta realidade, simultaneamente regional e
nacional: a vitalidade econômica dos Pontos de Cultura e a importância da Lei Aldir
Blanc I no fortalecimento da organização em rede de entidades culturais comunitárias.
Tem-se assim, retomados neste dossiê importantes elementos tanto de análise
prospectiva como estimuladores para se refletir e retomar pesquisas sobre o Cultura
Viva; enquanto política pública que estimula a participação social dos agentes
culturais dos pontos de cultura e que caminha lado a lado com conceitos como
Economia da cultura e economia solidária; Desenvolvimento e Acessibilidade Cultural;
Direitos e Cidadania Culturais.
Os editores do dossiê Deborah Rebello Lima, da UFPR e Luiz Augusto F.
Rodrigues, da UFF somam aos oito artigos aqui apresentados, duas entrevistas com
importantes gestores da política pública de Cultura Viva: Célio Turino e Márcia
Rollemberg.
Tem-se, assim, expressivo aporte sobre o Cultura Viva, seja sua trajetória,
exemplos de desdobramentos territoriais, seu transbordamento de fronteira pela
América Latina e a potencialização dos investimentos financeiros nos tempo atuais
com vinculações da Política Nacional Aldir Blanc na Política Nacional de Cultura Viva.
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cultura Viva - 20 anos: uma análise da trajetória entre programa, política e
conceito em políticas públicas de cultura
Deborah Rebello Lima1
Luiz Augusto F. Rodrigues2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.63904
Resumo: Este artigo se volta para uma breve análise histórica da Política Nacional de Cultura Viva
(PNCV) que, em 2024, completa 10 anos de institucionalização. Vale enfatizar que a efeméride tamm
se vincula aos 10 anos de criação do programa de cooperação internacional IberCultura Viva,
construído em inspiração ao modelo brasileiro. Além de representar os 20 anos de operação local do
“conceito Cultura Viva” enquanto ideário de política pública. Parte-se do pressuposto que a análise
desta política, em suas mais variadas frentes, é um elemento importante para compreender o caso
brasileiro. Afinal, é pertinente se debruçar sobre um objeto, um exemplo de política cultural de corte
contemporâneo, que apesar do início tímido e com uma operação não tão complexa, alcançou uma
importância política e uma visibilidade surpreendentes. Este artigo busca refletir em três dimensões. A
primeira mergulha na depuração do conceito cultura viva e suas interlocuções como política pública de
cultura. A segunda perspectiva debate sobre o exercício da Cultura Viva ao provocar” a invenção do
Estado: podemos inferir sobre a experiência de gestão do então programa em proporcionar debates
sobre novos instrumentos e operações de políticas. E, por último, tratamos da dimensão de
arregimentação política, da provocação à cultura política nacional de desarticulação para uma mudança
de 180º e a reivindicação de uma gestão compartilhada. A análise proposta busca enfatizar a
importância da PNCV como uma ão estruturante de uma nova agenda de políticas públicas de
cultura.
Palavras-chave: Política Nacional de Cultura Viva; Pontos de Cultura; Diversidade Cultural
Reconhecimento; Gestão de Políticas; Política Cultural
Cultura Viva (Living Culture) - 20 Years: An Analysis of the Journey Between Program, Policy,
and Concept in Public Cultural Policies
Abstract: This article turns to a brief historical analysis of the National Living Culture Policy (PNCV),
which, in 2024, celebrates 10 years of institutionalization. It is worth emphasizing that this milestone
also connects to the 10 years since the creation of the IberCultura Viva international cooperation
program, built in inspiration to the Brazilian model. Additionally, it represents 20 years of local operation
of the “Living Culture” concept as a public policy ideal. The analysis of this policy, in its various aspects,
1 Deborah Rebello Lima. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Professora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná, Brasil. E-
mail: deborahrebello@ufpr.br - https://orcid.org/0000-0002-4598-5347
2 Luiz Augusto Fernandes Rodrigues. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Professor Titular do Departamento de Arte da UFF e coordenador do Laboratório de Ações
Culturais - LABAC-UFF. E-mail: luizaugustorodrigues@id.uff.br - https://orcid.org/0000-0003-0583-
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
is based on the assumption that it is an important element to understand the Brazilian case. After all, it
is pertinent to focus on an object, an example of contemporary cultural policy, which, despite its modest
beginning and not-so-complex operation, achieved surprising political importance and visibility. This
article aims to reflect on three dimensions. The first delves into the purification of the living culture
concept and its interactions as a public cultural policy. The second perspective discusses the practice
of Living Culture in provoking” the invention of the State: we can infer about the management
experience of the program in providing debates on new instruments and policy operations. Lastly, we
address the dimension of political recruitment, the provocation to the national political culture of
disarticulation for a 180º change and the claim for shared management. The proposed analysis seeks
to emphasize the importance of the PNCV as a structuring action of a new public cultural policy agenda.
Keywords: National Living Culture Policy; Culture Points (Pontos de Cultura); Cultural Diversity;
Recognition; Policy Management; Cultural Policy
Cultura Viva - 20 años: un análisis de la trayectoria entre programa, política y concepto en
políticas públicas de cultura
Resumen: Este artículo se dirige a un breve análisis histórico de la Política Nacional de Cultura Viva
(PNCV) que, en 2024, cumple 10 años de institucionalización. Cabe enfatizar que la efeméride también
se vincula a los 10 años de creación del programa de cooperación internacional IberCultura Viva,
construido en inspiración al modelo brasileño. Además de representar los 20 años de operación local
del "concepto Cultura Viva" como ideal de política pública. Se parte del supuesto de que el análisis de
esta política, en sus más variadas frentes, es un elemento importante para comprender el caso
brasileño. Después de todo, es pertinente centrarse en un objeto, un ejemplo de política cultural
contemporánea, que a pesar de su tímido comienzo y de una operación no tan compleja, ha alcanzado
una importancia política y una visibilidad sorprendentes. Este artículo busca reflexionar en tres
dimensiones. La primera se sumerge en la depuración del concepto cultura viva y sus interlocuciones
como política pública de cultura. La segunda perspectiva debate sobre el ejercicio de la Cultura Viva al
“provocar” la invención del Estado: podemos inferir sobre la experiencia de gestión del entonces
programa en proporcionar debates sobre nuevos instrumentos y operaciones de políticas. Y, por último,
tratamos la dimensión de reclutamiento político, de la provocación a la cultura política nacional de
desarticulación para un cambio de 18 y la reivindicación de una gestión compartida. El análisis
propuesto busca enfatizar la importancia de la PNCV como una acción estructurante de una nueva
agenda de políticas públicas de cultura.
Palabras clave: Política Nacional de Cultura Viva; Puntos de Cultura; Diversidad Cultural;
Reconocimiento; Gestión de Políticas; Política Cultural
Cultura Viva - 20 anos: uma análise da trajetória entre programa, política e
conceito em políticas públicas de cultura
Introdução
O ano de 2024 marca
efemérides importantes para o setor
cultural brasileiro. Marcadamente,
remonta aos 20 anos de existência do
então Programa de Educação e
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cidadania, conhecido como Cultura
Viva e que possibilitou uma ação de
reconhecimento de práticas culturais
comunitárias previstas em território
brasileiro, além de reforçar os 10 anos
de institucionalização e aprovação da
lei 13.018 de 2014 que garantiu a
criação da Política Nacional de Cultura
Viva. Da mesma maneira, o ano marca
os 10 anos de criação do programa de
cooperação internacional IberCultura
Viva, criado sob a inspiração da
experiência brasileira e com o propósito
de fomentar o debate internacional
sobre a política e o conceito. Toda essa
confluência histórica nos coloca em um
exercício de avaliação deste percurso e
de possível mirada para o futuro desta
política e de suas implicações no
campo da cultura no Brasil, mas não
apenas.
Entendemos que o tema, as
múltiplas análises decorrentes no então
programa e da atual política nacional de
cultura viva, foi alvo de diversos
autores, abordagens, áreas de
conhecimento. Num breve esforço de
ilustração de alguns dos principais
estudos sobre a política de Cultura Viva
nos cabe apontar alguns autores que
se debruçaram sobre seu percurso
(SILVA; ARAÚJO, 2010; ROCHA,
2011; LIMA 2013; 2014; RODRIGUES,
2014; CALABRE; LIMA, 2014;
OLIVEIRA, 2018; TURINO, 2023)
Como um ponto de partida
interessante, pode ser pertinente
percorrer a dimensão territorial e
comunitária da política de Cultura Viva,
para tanto, acionamos palavras de
Milton Santos (2001, p. 96):
o território é o chão e mais a
população [...], o fato e o
sentimento de pertencer àquilo
que nos pertence. O território é
a base do trabalho, da
residência, das trocas
materiais e espirituais e da
vida, sobre os quais ele influi.
Quando se fala em território
deve-se, pois, de logo,
entender que se está falando
em território usado, utilizado
por uma dada população.
Para ressaltar mais um pouco a
dimensão territorial a partir da potência
das práticas culturais singulares e
populares, evocamos Jorge Luiz
Barbosa (2017, p. 87) ao “conceber a
cultura como prática significante
inscrita no território, portanto
eminentemente uma relação
intersubjetiva, constantemente
atualizada e reinventada em nossas
atuações de afirmação como sujeitos
sociais”. É, também, em Barbosa que
encontramos a assertiva de que
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
não devemos considerar o
território como um recorte de
chão fechado em si mesmo e
com fronteiras absolutamente
rígidas ou im-permeáveis. O
território deve ser per-cebido e
vivido a partir de franjas
po-rosas, por onde as relações
de troca de ideias, de valores,
de práticas e de objetos se
realizam em intensidades
diversas. Um universo de
abrigos da diferença de vidas
socialmente cons-truídas. Ou
seja, a construção de uma
ordem de proximidades, de
afetivida-des e de conflitos que
fazem a cultura assumir uma
geografia de ações e
in-tenções humanas.
(BARBOSA, 2014, p. 131-132,
grifo do autor)
Chamamos a atenção, também,
para a importância da participação e
compartilhamento da gestão que a
política de Cultura Viva busca reforçar.
Como apontado por Célio Turino (2009)
- criador do Programa Cultura Viva em
2004:
A aplicação do
conceito de gestão
compartilhada e
transformadora
para os Pontos de
Cultura tem por
objetivo
estabelecer novos
parâmetros de
gestão e
democracia entre
Estado e
Sociedade. No
lugar de impor uma
programação
cultural ou chamar
os grupos culturais
para dizerem o que
querem (ou
necessitam),
perguntamos como
querem. Ao invés
de entender a
cultura como
produto, ela é
reconhecida como
processo.
(TURINO, 2009, p.
63)
Compreende-se que o então
Programa Cultura Viva foi uma ação
governamental focada nas dimensões
territoriais das práticas culturais, no
incentivo à autonomia e à participação
social dos sujeitos e agentes. Sua
trajetória, ao longo de seus 20 anos de
existência, proporcionou novos e
pertinentes debates no campo.
Neste sentido, o objetivo deste
artigo é colocar em discussão o
desenho mais ampliado deste então
programa governamental e,
posteriormente, política pública
institucionalizada levando em
consideração três aspectos essenciais:
o conceitual, o de
gestão/operacionalização e o de
arregimentação política. Afinal, que
se problematizar e refletir sobre os
potenciais avanços e recursos
percebidos ao longo de 20 anos de
depuração deste conceito potico no
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Brasil e em vários outros países da
América Latina.
Defende-se que o estudo
aprofundado pela PNCV ainda é uma
necessidade importante para a reflexão
macro das políticas públicas de cultura
em corte contemporâneo exatamente
por colocar em evidência os avanços e
as problemáticas da aproximação do
Estado em grupos sociais. Ainda que
possamos considerar esta temática
uma das mais estudadas pelo cenário
acadêmico brasileiro, especialmente
entre os anos de 2006 e 2012, que
reforçar a importância desta política
como um aprendizado relevante no
aprimoramento das estruturas de
operação e conceituação de políticas
no setor cultural.
Compreende-se, portanto, que
os debates sobre a PNCV são potentes
por reforçar e apontar ganhos
alcançados a despeito de casualidades
políticas. Ela reforça a importância da
institucionalidade, da participação
social, da defesa de agendas
específicas ao campo. Da mesma
maneira, entende-se que seu estudo
aprofundado é um incremento para a
gestão de políticas públicas do setor.
Em alguma medida, o tema ganhou
protagonismo das agendas de
pesquisa por um espaço de tempo e foi,
aos poucos, sendo deixado de lado
como objeto a ser acompanhado,
mesmo com sua institucionalização.
quem defenda que não nada de
novo a ser discutido, ou muito se
problematizou sobre o tema. De fato,
este esforço de pesquisa sinaliza
exatamente o contrário, o apenas
novas conjunturas se somaram à
gestão da PNCV, como a recente
regulamentação da Política Nacional
Aldir Blanc e sua vinculação
orçamentária obrigatória com algumas
condicionantes, como dinâmicas
específicas da noção de
territorialização de políticas culturais,
ou mesmo o tema da diversidade
cultural, como grande pano de fundo
desta política. muito o que se
discutir sobre o tema nacional e
internacionalmente.
Este artigo é uma contribuição
de reflexão em consonância com o
esforço macro de pesquisa e formação
executado pelo Consórcio Universitário
Cultura Viva, uma ação em
colaboração entre Universidade
Federal Fluminense, Universidade
Federal do Paraná e Universidade
Federal da Bahia. Dentre os vários
objetivos inerentes ao trabalho
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
colaborativo entre as três instituições
federais de ensino superior, uma
urgência e uma necessidade de
fortalecimento da agenda de pesquisa
sobre este tema. Levando em
consideração, inclusive, novas
dinâmicas que alteraram a gestão do
mesmo nos últimos tempos, com
especial atenção para a recente
regulamentação proposta pela Política
Nacional Aldir Blanc e o
estabelecimento de recursos mínimos a
serem operacionalizados na PNCV. Da
mesma maneira, as proposições e
reflexões aqui expostas fazem parte do
mergulho vertical de pesquisa feito pelo
projeto intitulado “Cultura Viva - política
e conceito: análise dos 20 anos de
agenda nacional e internacional”,
coordenado pelos autores deste texto e
vinculado ao Laboratório de Ações
Culturais da Universidade Federal
Fluminense, com parceria da
Universidade Federal do Paraná.
1. Um mergulho conceitual na
política e suas contribuições ao
campo de política cultural:
O esforço empreendido aqui
convida a própria comunidade de
pesquisadores sobre este objeto a
ponderar as várias temporalidades e
contextos que atravessaram esse
cenário amplo de 20 anos de existência
do conceito. Não se almeja esgotá-lo,
mas parte de uma de nossas hipóteses
de pesquisa é a percepção do que seria
esse “conceito cultura viva” e como ele
pode ser considerado um divisor de
águas relevante no quadro ampliado de
investimento no campo.
Neste sentido, é desejável
discutir o que seria o conceito cultura
viva como alicerce desta política. É
coerente reforçar que o então
Programa Nacional de Cultura,
Educação e Cidadania Cultura Viva
nasce como um movimento
programático de ampliação do acesso e
de exercício de direitos culturais.
que se problematizar o quanto esse
movimento retórico ganhou
operacionalidade no campo e
proporcionou (ou não) mudanças
estruturais evidentes na forma como o
Estado brasileiro dialoga com o campo.
Em uma chave programática
que questionava qual o entendimento
de cultura deveria ser tomado como
ponto de partida para a gestão de
políticas blicas no setor era também
evidente o reposicionamento do papel
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
governamental na indução da agenda e
o lugar da sociedade civil neste
percurso. O histórico discurso de
Gilberto Gil, então ministro da cultura,
no exercício de posse em seu cargo é
tomado como uma espécie de tratado,
como uma manifestação pública
evidente que demonstra essa
transformação programática e a
alteração evidente em que o Cultura
Viva estaria posicionado
posteriormente. A clássica noção da
alegoria do DO-IN antropológico é a
dimensão simbólica que ancora a
criação dos Pontos de Cultura (principal
ação vinculada ao então programa).
Não cabe ao Estado fazer
cultura, mas, sim, criar
condições de acesso universal
aos bens simbólicos. Não cabe
ao Estado fazer cultura, mas,
sim, proporcionar condições
necessárias para a criação e a
produção de bens culturais,
sejam eles artefatos ou
mentefatos. Não cabe ao
Estado fazer cultura, mas, sim,
promover o desenvolvimento
cultural geral da sociedade.
Porque o acesso à cultura é um
direito básico de cidadania,
assim como o direito à
educação, à saúde, à vida num
meio ambiente saudável.
Porque, ao investir nas
condições de criação e
produção, estaremos tomando
uma iniciativa de
consequências imprevisíveis,
mas certamente brilhantes e
profundas - que a
criatividade popular brasileira,
dos primeiros tempos coloniais
aos dias de hoje, foi sempre
muito além do que permitiam
as condições educacionais,
sociais e econômicas de nossa
existência. Na verdade, o
Estado nunca esteve à altura
do fazer de nosso povo, nos
mais variados ramos da grande
árvore da criação simbólica
brasileira.[...] O Ministério não
pode, portanto, ser apenas
uma caixa de repasse de
verbas para uma clientela
preferencial. Tenho, então, de
fazer a ressalva: não cabe ao
Estado fazer cultura, a não ser
num sentido muito específico e
inevitável. No sentido de que
formular políticas públicas para
a cultura é, também, produzir
cultura. No sentido de que toda
política cultural faz parte da
cultura política de uma
sociedade e de um povo, num
determinado momento de sua
existência. No sentido de que
toda política cultural não pode
deixar nunca de expressar
aspectos essenciais da cultura
desse mesmo povo. Mas,
também, no sentido de que é
preciso intervir. Não segundo a
cartilha do velho modelo
estatizante, mas para clarear
caminhos, abrir clareiras,
estimular, abrigar. Para fazer
uma espécie de do-in”
antropológico, massageando
pontos vitais, mas
momentaneamente
desprezados ou adormecidos,
do corpo cultural do país.
Enfim, para avivar o velho e
atiçar o novo. Porque a cultura
brasileira não pode ser
pensada fora desse jogo,
dessa dialética permanente
entre a tradição e a invenção,
numa encruzilhada de matrizes
milenares e informações e
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
tecnologias de ponta. (GIL;
MINC, 2003, p. 5)
Ainda que este seja um tema
severamente debatido no campo de
estudos de políticas culturais no Brasil,
é especialmente importante vincular o
movimento programático de revisão do
conceito de cultura e do papel do
Estado no campo realizado pela gestão
iniciada em 2003 e materializada no
discurso de posse do então ministro
Gilberto Gil e às dinâmicas propostas
pela ão aqui debatida. Cabe enfatizar
que o movimento representou a
chegada de uma gestão focada na
dimensão do trabalhador no campo
majoritário do país. Pela primeira vez,
um operário, homem do povo, assumia
a presidência da república. Da mesma
maneira, o então ministro, Gilberto Gil,
era outro exemplo da potência e deste
novo olhar. Um artista negro, histórico
militante e defensor da democracia
propunha uma efusiva transformação
no papel do Estado e,
consequentemente, em alguma medida
“convocava” agentes culturais de todo o
país a se levantarem e assumirem o
protagonismo das políticas culturais.
Não apenas em uma dimensão
temática ou de direcionamento de
beneficiários, mas, essencialmente,
como uma nova tipologia de
relacionamento entre Estado e grupos
comunitários. O desafio, atualmente
largamente em debate, é potencializar
a valorização da multiplicidade de
agentes, da diversidade cultural, sem
essencializá-la, tornando-a um fim em si
mesma no desenvolvimento de
políticas. Como pondera Durval de
Albuquerque Jr. (2007, p. 74):
Uma política de gestão cultural
expressará, portanto, a
compreensão do que seja
cultura, o que deve ser nela
valorizado e incentivado pelos
grupos sociais que estejam
diretamente envolvidos no
controle do Estado. Para
contarmos com uma gestão
democrática das instituições
culturais e uma política cultural
inclusiva e pluralista que, ao
mesmo tempo, fuja de qualquer
tentação populista, como
ocorreu em outros momentos
da história do país – populismo
que quase sempre se expressa
através do culto a um povo
folclórico, um povo idealizado,
mas que não tolera o povo com
sua face diversificada,
conflituosa, problemática,
instauradora de
questionamentos, de conflitos
e dissensões, no campo social
e cultural e do mecenato ou
do clientelismo cultural,
atendendo apenas àqueles
ligados aos pequenos grupos
que controlariam a máquina do
Estado, seja em que nível de
governo for, precisamos criar
um Estado aberto às diferentes
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
demandas sociais, inclusive
por formas culturais
divergentes. Estado
atravessado pelos diferentes
interesses que convivem na
sociedade, que possa ser o
mediador entre as diferentes
concepções políticas e
estéticas que se cruzam na
sociedade. Estado aberto à
participação das minorias
sociais, aos grupos
divergentes, que devem ter no
Estado um garantidor de que
suas matérias e formas de
expressão culturais não
hegemônicas possam ter
acesso aos canais de
comunicação, às centrais de
distribuição de sentido.
Este exercício de entendimento
de que uma política pública possui
também função normatizadora e,
consequentemente, de
reconhecimento ou apagamento de
práticas, ações e/ou sujeitos é
essencial. Naquele momento, o então
programa ocupou o lugar de
materialização da alegoria do discurso
do então ministro, levando em conta de
maneira bastante marcante a nova
relação proposta entre Estado e
sociedade civil. Reforçando, inclusive,
o que se convencionaria denominar
como “gestão compartilhada” no
sentido de que o Estado ali entraria com
as condições materiais (os recursos
financeiros) e o grupo cultural
comunitário exerceria sua autonomia
de gasto e estrutura de
operacionalização da proposta, desde
que respeitasse os preceitos mínimos
estabelecidos no que se convencionou
denominar como Ponto de Cultura.
Tratamos, portanto, de uma política que
tinha como primeiro filtro a noção de
que o acesso a práticas, conteúdos,
mas, essencialmente, aos meios de
produção e financiamento era uma
urgência. Essa marca é evidente na
“certidão de nascimento” do programa,
sua portaria de criação publicada em
2004, segundo o trecho: “promover o
acesso aos meios de fruição, produção
e difusão cultural, assim como
potencializar energias sociais e
culturais, visando à construção de
novos valores de cooperação e
solidariedade.” (BRASIL. MINC, 2004,
p. 1)
Este amplo cenário de
atendimento previsto inicialmente
permitiria a reivindicação de
reconhecimento por parte dos sujeitos
quanto à importância de suas práticas
culturais. Em um país historicamente
marcado pelo racismo, pela elitização
de práticas, pelo silenciamento de
vozes é algo que vai além de um
recurso específico. Tratamos de um
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
movimento político considerável e que
permitiu o reconhecimento como este
primeiro degrau importante em busca
da justiça social.
Vale endossar que tal liberdade
temática proposta no programa Cultura
Viva permitia a percepção do amplo
cenário da diversidade cultural
brasileira. E, neste sentido, a Cultura
Viva pode ser considerada uma das
principais políticas de fomento,
promoção e proteção da diversidade
cultural nacional, antes mesmo da
aprovação da convenção da Unesco,
de mesmo nome, aprovada em 2005.
De fato, a iniciativa
governamental não apostou em uma
percepção fechada sobre a noção de
cultura, mas enfatizando,
especialmente, sua pluralidade,
maleabilidade e possibilidade de
oferecer ao ecossistema do programa a
essência do que seria um extrato da
diversidade cultural brasileira. Como
ponderam Silva e Araújo (2010, p. 16),
“não é necessário um conceito
específico de cultura. O problema
levantado pela antropologia, sobre o
reconhecimento de que as culturas são
diversas e plurais, é suficiente e es
contemplado pela Constituição.”
A diversidade era,
essencialmente, um mote. Tal como
outros movimentos de políticas
públicas realizados anteriormente, tal
como a Caravana proposta por Mário
de Andrade, ou a de Paschoal Carlos
Magno. Ali, no começo dos anos 2000,
ainda persistia a percepção macro de
que não se tinha a dimensão efetiva de
nossa diversidade, as políticas do setor
ainda eram, em sua maioria, pensadas
para nichos específicos, para a noção
de arte como prioridade, não para a
percepção mais ampliada do lugar da
cultura na dinâmica dos sujeitos. Em
alguma medida, as chamadas públicas
realizadas faziam esse mapeamento e
uma indexação no mapa. Afinal, as
organizações comunitárias financiadas
pelo recurso passavam a ser chamadas
de Pontos de Cultura.
Este movimento de identificação
da diversidade de práticas culturais
somado ao movimento de ampliação do
acesso seriam uma dupla
especialmente interessante no
percurso de valorização dos direitos
culturais. No entanto, soma-se a isso o
movimento de criação de uma rede de
interlocução dessas organizações
proporcionando uma ampla rede de
Pontos de Cultura espalhados por todo
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
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o país. Tratamos, portanto, de um outro
movimento político e não sobre a
individualização da prática, do projeto
ou do artista, mas da ação colaborativa,
fruto do reconhecimento, da
redistribuição e proporcionando
caminhos para o fortalecimento da
participação social. Como remonta
outro trecho da portaria de criação do
então Programa Cultura Viva:
“potencializar energias sociais e
culturais visando a construção de
novos valores de cooperação e
solidariedade” (BRASIL. MINC, 2004,
p. 1).
Em certo sentido, é pertinente
ponderar que o contexto de criação
deste programa dialoga com a reflexão
proposta por Nancy Fraser sobre a
tríade: reconhecimento - redistribuição
- participação.
Ao invés de simplesmente
endossar ou rejeitar o que é
simplório na política da
identidade, devíamos nos dar
conta de que temos pela frente
uma nova tarefa intelectual e
prática: a de desenvolver uma
teoria crítica do
reconhecimento, que
identifique e assuma a defesa
somente daquelas versões da
política cultural da diferença
que possam ser combinadas
coerentemente com a política
social da igualdade. (FRASER,
2006, p.231)
Afinal, ao tratar da Cultura Viva
como uma política cultural, não lidamos
apenas com a possibilidade de acesso
a fomento para práticas socioculturais e
artísticas nos territórios. Tratamos de
modos de existir, de valorização de
práticas identitárias (muitas vezes
historicamente renegadas). Tratamos
da perspectiva de garantir recursos
para comunidades que nunca tiveram
acesso a fomentos públicos
diretamente e/ou sofriam com um
atendimento complexo de
necessidades básicas. Este percurso
valorativo foi primordial para um
exercício de reconhecimento de si, de
reivindicação de direitos e de maior
engajamento na prática política e no
debate ampliado do setor cultural, mas
não apenas.
Considera-se, portanto, que o
conceito Cultura Viva que nasce com
seu programa em 2004 e vai tomando
forma ao longo desses 20 anos foi
essencial na valorização desta agenda
de diversidade e na provocação da
relação do Estado com a sociedade
civil. Em último aspecto, mas não
menos importante, a sua
internacionalização, por volta de
2010, com os primeiros movimentos
para criação do Programa de
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
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Cooperação IberCultura Viva, mas
essencialmente com o engajamento de
movimentos sociais de outros países
que proporcionaram o grande debate
de Cultura Viva Comunitária colocou na
centralidade a dimensão territorial e
comunitária presente no âmago do
programa.
2. A estrutura de gestão e seus
tensionamentos
Tratar da estrutura de operação
do então programa Cultura Viva até os
dias atuais com a PNCV é um esforço
amplo e com muitas facetas. O então
programa pode ser considerado uma
espécie de fenômeno. Afinal, ao pensar
a operação, relativamente simples, por
uma estrutura de fomento, baseada em
seleção por edital, seu escalonamento
foi rápido e sua ampliação de
importância na agenda política da
mesma forma. Contudo, o percurso de
operação desta ação política não foi
linear ou tranquilo, como poderia
parecer a estrutura estabelecida a priori
no programa. em 2004, falávamos
de uma modalidade de fomento
continuado, por um prazo de 3 anos,
privilegiando a estrutura decisória do
proponente. As únicas exigências eram
a comprovação prévia de no mínimo 3
anos de atuação no território e o fato do
proponente ser uma instituição sem fins
lucrativos. No entanto, naquele
momento, o instrumento escolhido foi o
convênio que, pelo regramento
estabelecido, previa uma divisão
orçamentária da ordem 80/20. O que
isso significava? Que a entidade
proponente deveria comprovar uma
“contrapartida” de 20%, podendo ser
financeira ou não, para a realização das
atividades.
Tal cenário causou um duplo
movimento. Por um lado, permitiu a
acelerada expansão do Programa, que
fora iniciado em um edital com cerca de
40 organizações escolhidas e
rapidamente atingiu meros muito
maiores. Afinal, o escopo de
atendimento era amplo e
potencialmente adaptável para
múltiplas realidades. Por outro lado, o
instrumento utilizado, somado ao perfil
de boa parte deste público prioritário
para a política, proporcionou enormes
entraves de operação e gerenciamento
por parte de seus partícipes. De fato,
recorrendo a análise realizada pelo
IPEA-Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, entre os anos de 2007 e
2008, os enfrentamentos de gestão,
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
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tanto por parte dos Pontos de Cultura,
quanto pelo acompanhamento e
monitoramento pelo próprio Ministério
da Cultura estavam presentes na
avaliação dos Ponteiros (gestores de
organizações), conforme ilustra trecho
abaixo de análise dos grupos focais
realizados na pesquisa do IPEA
naquele momento.
Um dos argumentos
recorrentemente destacados
foi que o programa é
diferenciado por enfocar as
comunidades, valorizando sua
cultura, diversidade e
autonomia mais que a
dependência, uma vez que os
pontos de cultura levam à
construção de cidadania e ao
resgate da autoestima e da
cultura popular. Assinalou-se
com certa veemência que é
preciso tempo para que o
programa se consolide,
inclusive com a necessidade de
mais clareza na definição de
suas estratégias.
Quanto à gestão, o grupo
focalizou o problema da falta de
capacitação para gestão por
parte dos coordenadores dos
pontos de cultura, as
dificuldades na prestação de
contas e para planejar as
atividades a serem
desenvolvidas (apesar da
grande quantidade de reuniões
e de discussões em grupo), e a
falta de pessoal para
desenvolver as ações.
Também chamou atenção o
grande número de
organizações não
governamentais (ONGs) como
proponentes e, em muitos
casos, a dificuldade de
separarem-se os efeitos de
adesão ao programa de outros,
relativos às dinâmicas das
associações.
Outra questão de destaque foi
a possibilidade de o Ministério
da Cultura se converter apenas
em um repassador de recursos,
que as funções de
coordenação, qualificação e
acompanhamento de ações
são frágeis. Dessa forma,
surgiram críticas quanto à falta
de estrutura do MinC,
fenômeno admitido pela
própria SPPC, e foram
apontados problemas e
dificuldades de articulação de
MinC com os pontos. (SILVA;
ARAÚJO, 2010, p. 32))
O descompasso entre o discurso
proposto e a capacidade de operação e
gestão do MinC era latente, o que
causou tensionamentos e desconfortos
entre a própria rede de Pontos de
Cultura. Recuperemos, por exemplo,
mais um dado levantado pela avaliação
do IPEA supracitada, segundo eles:
De acordo com o primeiro
edital, os 45 pontos
conveniados em 2004
deveriam ter recebido as cinco
parcelas do convênio até o final
de 2006, caso não houvesse
atraso algum. Destes, apenas
19 (40%) tinham recebido as
cinco parcelas previstas no
convênio. Os outros 60%
estavam enfrentando atraso de
pelo menos dois anos: 20 com
atraso de uma parcela, três
com duas, e outros três com
três parcelas atrasadas.
Dos 195 conveniados em 2005,
que também deveriam ter
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
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recebido as cinco parcelas,
apenas 19 (10%) tinham
conseguido recebê-las. Outros
65 haviam recebido apenas
duas parcelas, apesar de
estarem conveniados havia
mais de três anos. Vale lembrar
que o edital prevê que o
recebimento da terceira
parcela é condicionado à
prestação de contas das duas
primeiras. (idem p. 99)
De fato, uma análise de impacto
do então Programa Cultura Viva era um
cenário complexo de ser feito e alguns
movimentos importantes foram
realizados neste sentido. A
Universidade Estadual do Rio de
Janeiro efetivou uma primeira análise,
ainda em 2006, mas foi o IPEA o
responsável pelas avaliações de maior
escala e alcance. Realizadas em
temporalidades distintas, todas com o
intuito de apresentar diagnósticos
importantes para o redirecionamento
da ão. Neste sentido, o redesenho,
como se convencionou denominar a
parceria do MinC com o IPEA entre
2011 e 2013 com foco em novas
avaliações e na conformação do
quadro lógico do programa, funcionou
como um novo passo com o intuito de
estruturar seus instrumentos e
possibilitar a correção de problemas de
gestão que estavam impactando de
maneira evidente o seu crescimento.
Analisando em um corte mais
ampliado, é pertinente ponderar que o
exercício de gestão do então Programa
Cultura Viva foi desde o começo uma
espécie de desbravador do campo da
cultura para uma nova agenda e novas
necessidades. Não apenas na
dimensão temática, mas também de
gestão.
O dado da realidade é observar
mais atentamente o quanto a dimensão
conceitual proporcionou questões de
gestão que tiveram que ser enfrentadas
no compasso de desenvolvimento da
política em si. Um elemento importante
neste percurso é reconhecer a
capacidade de redirecionamento e
controle por parte da Cultura Viva ao
longo dos anos. Ou seja, as alterações
possíveis em sua gestão tiveram o
intuito de colaborar na redução de
danos ou em sanar questões
problemáticas que ocorreram ao longo
do percurso. Neste sentido, de forma
mais poética, Célio Turino, gestor
responsável pela criação e
implementação do então programa
compreendeu esta como uma
característica um movimento de
contínua reformulação e
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
acompanhamento, como descrito na
formulação abaixo:
O programa CULTURA VIVA
prevê um processo contínuo e
dinâmico de implementação.
Seu processo de
desenvolvimento é semelhante
ao de um organismo vivo,
devendo desenvolver,
sobretudo, uma articulação
com um conjunto de atores pré-
existentes. No lugar de
determinar (ou impor) ações e
condutas locais, caberá ao
programa estimular a
criatividade, potencializando
desejos e criando situações de
encantamento social.
(TURINO, 2009, p. 76)
Na prática, na ponta, ou melhor,
nos Pontos, existia um descompasso
sentido cotidianamente, entre a prática
finalística da entidade, o movimento de
“reconhecimento” pela política e o
desenvolvimento de ações, em
comparação com a gestão cotidiana, o
uso de recursos, o monitoramento etc.
Não é pertinente romantizar este
percurso, pelo contrário, aqui tratamos
de uma característica importante. O
desenvolvimento do Programa Cultura
Viva e a experiência destas primeiras
gerações de Pontos de Cultura
oportunizaram a transformação do
setor, a criação de novos instrumentos,
a noção de que a gestão Cultura Viva
esteve sempre na vanguarda, na linha
de frente, na necessidade latente de
revisão do Estado brasileiro por razões
óbvias: o arcabouço existentes não
dava conta das novas necessidades
que a agenda contemporânea
colocava. No entanto, esta vanguarda
foi também fruto de muita
problematização e algum impacto
significativo em algumas entidades.
Havia aqui um paradoxo, o Programa
Cultura Viva era o ambiente evidente
de que a transformação da forma de
gerir, oportunizar, fomentar e
operacionalizar políticas públicas de
cultura no Brasil precisava ser revisto e
com urgência.
Em alguma medida, a gestão do
Cultura Viva fazia parte desta grande
agenda de institucionalização do setor
proposta a partir da gestão de Gilberto
Gil. Afinal, era preciso fugir de
abordagens casuísticas em políticas
públicas de cultura, estruturando
frentes de continuidade que
garantissem a escuta e a participação
da sociedade civil e que ofertassem
segurança jurídica aos agentes
culturais e aos gestores públicos que
operacionalizam os instrumentos.
Nesta mesma frequência, mas por
outro lado, outras políticas
estruturantes, tais como o Sistema
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Nacional de Cultura e o Plano Nacional
de Cultura estavam sendo gestados,
construídos em diálogo com a
sociedade civil. Existia essa
necessidade de preparar o arcabouço,
de preparar a estrutura de uma nova
forma de abordagem e operação. O
Cultura Viva pode ser considerado a
versão modelo, teste ou piloto de toda
a estruturação proposta pelo próprio
SNC, a Emenda Constitucional
71/2012 instituiu o SNC como Artigo
216-A da Constituição Federal de 1988
que só fora regulamentada por meio da
lei complementar 14.835 de 2024. Uma
política baseada em gestão
interfederativa, com potencial repasse
de recursos entre os entes,
privilegiando a participação social, com
divisão de responsabilidades entre o
sistema MinC e os entes da federação,
focados em dinâmicas de médio e
longo prazo, fugindo da dimensão
projetual de curta temporalidade.
Em nossa visão, este é um dos
principais “ganhos” da experiência
Cultura Viva ao longo destes 20 anos
de operação no Brasil: instituir, de
modo sucessivo, uma política pública
de base territorial e comunitária,
baseada na gestão em rede, na
diversidade cultural, na interlocução de
saberes e na participação colaborativa
entre governo e sociedade civil.
Instituindo uma nova modalidade de
gestão cultural de base participativa,
territorial e diversa. Tratamos com isso
sobre a importância do Programa não
apenas conceitualmente por lidar com a
diversidade e a base comunitária, mas
por provocar essa “reinvenção” de
gestão do próprio Estado.
Neste sentido, e como esforço
analítico, dividimos as proposições de
gestão apresentadas pelo Cultura Viva
ao campo cultural em três frentes
específicas. A primeira na governança
de atuação e na distribuição de
responsabilidades pelos entes
federados: a federalizão e a gestão
pública compartilhada. A segunda, uma
revisão dos instrumentos de
sustentação e distribuição de recursos:
a criação do TCC (Termo de
Compromisso Cultural - focado na
realização do objeto pactuado) na
institucionalização. A terceira e ainda
em debate e estruturação: o cadastro
nacional como base essencial para o
acompanhamento e direcionamento do
investimento público (gestão baseada
em dados).
A sensação criada na
operacionalização do Cultura Viva era
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
de que ele era um enorme acerto
temático, mas que significativas
mudanças instrumentais precisavam
ser pensadas para dialogar com seu
arco de atuação. A primeira delas veio
da estrutura nacional de operação da
política. Afinal, operar convênios entre
o Ministério da Cultura e organizações
sociais espalhadas em todo o território
nacional diretamente era um esforço
especialmente complexo de
acompanhamento. Soma-se a isso a
histórica precariedade de instrumentos
e pessoal que a pasta enfrenta, o déficit
era inevitável. Portanto, “federalizar” o
programa era mais do que uma
necessidade, era urgente para sua
sobrevivência e tal movimento foi
iniciado em 2007, com o lançamento da
rede de pontos de cultura estaduais da
Bahia.
A federalização ocupava um
triplo movimento. Em primeiro aspecto
visava dar resposta a problemas
transversais de gestão com a latente
falta de possibilidade do MinC continuar
a operacionalização nacional de um
programa em franco crescimento. Em
segundo aspecto, era um primeiro
movimento de colocar em prática o
Sistema Nacional de Cultura que
estava sendo estruturado reforçando o
pacto federativo e a divisão de
responsabilidades. Por último, mas
extremamente relevante, seria um
movimento no intuito de garantir a
continuidade do Programa (que ainda
não estava institucionalizado) frente a
possibilidade de uma mudança
programática com a eleição
presidencial que se aproximava em
2010. Ou seja, federalizar resolveria
gargalos e seria um caminho para a
institucionalização do programa e mais
um aprendizado pedagógico para o
fortalecimento do SNC.
Grandes expectativas foram
depositadas na federalização, mas
como pondera Sophia Cardoso Rocha
(2011), a mais imediata - que seria a
resolução dos problemas de gestão,
não teve o impacto esperado tão
rapidamente. A pesquisadora reforçou,
analisando o percurso pioneiro de
federação do Cultura Viva na Bahia
que:
a estadualização do Cultura
Viva não solucionou os
problemas vivenciados na
esfera federal. Pelo contrário,
houve a tendência de
reproduzir esses impasses e
inaugurar novas tensões com o
ingresso de um novo ente. A
partir da estadualização, os
órgãos públicos de cultura
estaduais passaram a se
articular diretamente com o
46
LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
órgão federal, seguindo as
diretrizes de um Programa
constituído. Daí surgiu outro
desafio, o de integrar a rede de
Pontos de Cultura existente
com a nova rede de Projetos
ligados aos órgãos estaduais.
(ROCHA, 2011, p. 174).
Ainda que tratemos de uma
gestão mais próxima dos agentes que
abordava particularidades territoriais,
os problemas de gestão dos Pontos de
Cultura ainda eram protagonistas. Não
se trata de negar a importância da
federalização, ela foi um movimento
essencial na divisão de
responsabilidades, no fortalecimento
do Sistema Nacional de Cultura e na
própria consolidação do Cultura Viva,
antes de sua institucionalização. Ela
também foi essencial por reforçar a
necessidade urgente da mudança de
instrumentos para lidar com o campo
da cultura e, mais especificamente,
com a diversidade cultural brasileira e a
cultura popular, base estruturante do
Cultura Viva.
Em alguma medida ela
contribuiu para movimentos que foram
sendo melhor direcionados na
aprovação da Lei 13018 de 2014, que
proporcionou a institucionalização do
Cultura Viva, mas que também foi fruto
deste acumulado: novos instrumentos e
novas regulamentações eram
essenciais para garantir uma operação
política com esta natureza.
Nesta chave destacam-se dois
elementos essenciais que se
retroalimentam o debate sobre o
MROSC - Marco Regulatório das
Organizações da Sociedade Civil,
estabelecido na lei 13.019, de 31 de
julho de 2014, que se vincula muito
fortemente com a proposta do Termo
de Compromisso Cultural aprovado na
Lei Cultura Viva (Lei 13.018, de 22 de
julho de 2014), e que coloca o foco das
parcerias entre governo e organizações
da sociedade civil no cumprimento do
objeto pactuado (portanto, bem
diferente da modalidade anterior -
convênios - que demandam muita
ênfase nas operações financeiras e não
no objeto acordado em si). Como
apontado logo na definição inicial do
MROSC:
Estabelece o regime jurídico
das parcerias entre a
administração pública e as
organizações da sociedade
civil, em regime de mútua
cooperação, para a
consecução de finalidades de
interesse público e recíproco,
mediante a execução de
atividades ou de projetos
previamente estabelecidos em
planos de trabalho inseridos
em termos de colaboração, em
termos de fomento ou em
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
acordos de cooperação; define
diretrizes para a política de
fomento, de colaboração e de
cooperação com organizações
da sociedade civil. (BRASIL,
2014b, p. 1)
Ambos acompanham a leitura de
que era preciso repensar a base
regulatória para relações entre Estado
e grupos sociais. Não seria conveniente
deixar essa relação, que é
extremamente desigual e burocrática,
ser trilhada pelos mesmos mecanismos
que orientam grandes empresas,
grandes movimentos licitatórios, como
estabelecia a lei 8.666 de 1993. A base
essencial da proposta do TCC era
alterar a prestação de contas, que a
priori tinha uma centralidade na
dimensão financeira, para observarmos
prioritariamente o cumprimento do
objeto pactuado entre as partes
(Estado e Sociedade Civil). Tal
mudança de enfoque traria respostas
urgentes e daria mais tranquilidade
para a gestão cotidiana dos Pontos e
Pontões de Cultura. De fato,
parávamos de “culpabilizar” a gestão
da sociedade civil pelos erros
apresentados nos projetos para
evidenciar de que era preciso uma
reforma do Estado e de seus
instrumentos. Era mais do que um
movimento técnico, foi um movimento
político de peso.
O terceiro elemento de gestão
de “vanguarda” da experiência Cultura
Viva também é fruto de sua
institucionalização: a criação do
Cadastro Nacional de Pontos e
Pontões de Cultura. Como aponta a lei
13.018 de 2024, o cadastro tem a
importância estrutural dentro da PNCV.
Uma leitura mais superficial e
primeira vincula o cadastro ao seu
movimento em si, o de mapeamento e
identificação de demandas da vasta
diversidade cultural brasileira,
permitindo identificar necessidades de
investimento. Contudo, o potencial do
cadastro como posto pela
institucionalização da PNCV eleva ele a
instrumento de publicização de
atividades e “prestação de contas”,
dando mais transparência ao uso de
recursos e servindo como potencial
arregimentação de entrantes na
política.
Da mesma maneira, os fatos
subsequentes, tal como a ocorrência da
pandemia da Covid-19 ou mesmo as
catástrofes naturais do Rio Grande do
Sul ocorridas ainda em 2024, por
exemplo, reforçaram a necessidade de
bases de dados atuais e em diálogo
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
com a necessidade do campo, tanto
para socorros emergenciais, como os
citados anteriormente, quanto para
servir de acesso a outras políticas
culturais. Em síntese, o Cadastro pode
ser visto como porta de entrada para
outras políticas setoriais e transversais
no campo da cultura, tal como o
CadÚnico, para o campo da assistência
social.
A institucionalização trouxe
ganhos evidentes, como os
supracitados. Contudo, a agenda
macropolítica colocou em pauta alguns
ganhos efetivos que poderão ser
melhor analisados na conjuntura atual.
O primeiro enfoque é perceber a
potencialidade do próprio TCC.
Espera-se que a utilização mais
ampliada dos TCC agora com a
retomada da política de Cultura Viva
neste novo contexto governamental em
nível federal, assim como o novo
decreto (Decreto 11.453, de 23 de
março de 2023), que dispõe sobre os
mecanismos de fomento do sistema de
financiamento à cultura e que visa,
entre outras providências, à
3 Cabe incluir as vinculações de recursos
financeiros à PNCV no contexto da Política
Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura
(PNAB) - lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022.
implementação da PNCV, ofereça um
novo cenário de avaliação sobre os
próprios instrumentos da PNCV.
Da mesma maneira, é possível
ponderar que a institucionalização,
ainda que essencial e importante -
reforçamos mais uma vez, não
ofereceu aporte financeiro obrigatório
ou vinculado à gestão da PNCV. Por
isso, o momento atual de gestão da
Política Nacional Aldir BlanC3
vinculando recursos para o
investimento na PNCV representa outro
momento na consolidação desta
política tão relevante para a agenda
contemporânea. Sobre a vinculação de
percentuais dos recursos da PNAB à
PNCV (conforme estabelece a Portaria
MinC nº 80, de 27 de outubro de 2023)
temos que os estados e Distrito Federal
(DF) deverão aplicar ao menos 10%
dos recursos na política de Cultura Viva
e que os municípios que receberão 360
mil reais ou mais deverão aplicar um
mínimo de 25% na PNCV.
Num levantamento inicial de
dados de pesquisa a partir dos Planos
de Ação lançados pelos entes (estados,
A PNAB traz a garantia de recursos anuais da
ordem de 3 bilhões de reais para a Cultura nos
anos de 2023 a 2027.
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
DF e municípios) lançados na
plataforma transfegov para
recebimento dos recursos da PNAB
temos, para os recursos de 2023, a
alocação de cerca de 90 milhões de
reais a mais do que o previsto para a
PNCV, totalizando cerca de 480
milhões de reais alocados à potica de
Cultura Viva. Esta alocação superior à
previsão inicial ocorreu da seguinte
maneira, em valores aproximados: 40
milhões a mais pelos estados e DF; 20
milhões a mais pelos municípios com
vinculação obrigatória; e 30 milhões
alocados por municípios desobrigados
de vincular recursos da PNAB à
PNCV.4
Tem-se neste novo cenário algo
que a política de Cultura Viva nunca
havia galgado em termos de recursos
financeiros, apontando aportes
mínimos para esta política ao menos
até 2027, o que facilitará o crescimento
da rede de Pontos e Pontões de Cultura
pelo país e a crescente
institucionalização de uma política de
base comunitária.
4 O Consórcio Universitário Cultura Viva
publicou estudos detalhado sobre os recursos
vinculados à PNCV em Boletim n. 1 (junho de
2024), disponível em:
3. Participação social
A terceira chave de análise
deste debate mais aprofundado sobre o
histórico de 20 anos do conceito e de
10 anos da institucionalização da
PNCV remonta ao lugar da participação
social no percurso. Afinal, tratar deste
amplo cenário que aciona a Cultura
Viva é colocar de maneira evidente a
relação entre Estado e Sociedade Civil.
Na conceituação da política, a
categoria utilizada veio com a noção de
gestão compartilhada, enfatizando a
dimensão de que o Estado garantiria os
meios de produção, mas o
protagonismo essencial, o exercício da
autonomia, a mola propulsora da
gestão em rede viriam da sociedade
civil.
Tal arquitetura política
ultrapassou a dimensão operativa da
política pública em si. Considera-se que
transbordou a operação finalística e
alcançou o status de devolutiva ao
campo. Afinal, é pertinente ponderar
que a indução de participação,
instigada pela vivência Cultura Viva,
https://labacuff.wordpress.com/wp-
content/uploads/2024/06/boletim-vivo-n.-1-
consorcio-cv.pdf
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
proporcionou um debate ampliado
sobre cultura política e protagonismo
social que teve na experiência da
política de base comunitária um
alicerce importante, e foi essencial na
estrutura de institucionalização do
campo. Neste sentido, e para recuperar
este percurso de análise sobre o lugar
da participação social e seus efeitos ao
longo destes vinte anos, destacam-se
três eventos/características essenciais.
A primeira percepção é a noção
de que esta participação social tem
uma construção que é dialógica. Ela é
oriunda da própria estrutura operativa
da política blica, afinal, desde a
publicação dos primeiros editais de
seleção de Pontos de Cultura, o
protagonismo da sociedade civil era um
fator essencial. Aqui podemos tratar,
talvez, de uma espécie de
romantização da participação. Em uma
visão reificada do lugar da sociedade
civil.
O percurso operativo indicou,
como reportado nesse breve artigo,
que o Estado brasileiro ainda precisava
avançar largos passos para dar conta
da operacionalização das
necessidades da Cultura Viva. O que
sinalizava que a gestão compartilhada
teria múltiplas nuances. Com isso,
reconhecer o lugar dos gestores de
Pontos de Cultura na reivindicação de
uma estrutura representativa que
representasse esse diálogo é algo
essencial. Assim nasceu a Comissão
Nacional de Pontos de Cultura
(CNPdC), criada em 2006, ainda no
estofo da primeira Teia - Encontro
Nacional de Pontos de Cultura. Ali,
naquele primeiro exercício de
descobrimento e escuta dos próprios
partícipes ficou evidente que, além da
enorme diversidade de práticas e
possibilidades de interlocuções na
rede, inúmeros problemas de gestão os
uniam. Com isso, era preciso
conjugar/forçar um diálogo franco e
direto com o Ministério da Cultura.
Essa dimensão de uma
“participação social reivindicada” como
apontada pela criação na CNPdC
coloca mais uma vez na vanguarda o
lugar da Cultura Viva na agenda de
políticas culturais. Afinal, não se tratou
de uma estrutura decisória que
precisava ser incorporada e ocupada,
pelo contrário. A Comissão Nacional,
como se convencionou denominar, tem
sido uma organização orgânica que
incorporou boa parte dos debates e
necessidades perenes da execução da
política Cultura Viva, desde questões
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
mais operacionais presentes nos
problemas de prestação de contas, que
motivaram sua criação, até
enfrentamentos e disputas de pautas
que contribuíram para a própria
aprovação da lei 13.018 de 2014 com a
institucionalização da PNCV.
Na prática, podemos considerar
que trata-se de uma institucionalidade
que contribuiu para a organização de um
“movimento social” focado na defesa da
base comunitária e do fazer político dos
Ponteiros. Com isso, podemos nos
debruçar sobre o que seria o segundo
movimento neste amplo cenário de
arregimentação da participação social
proporcionado pelo ideário Cultura
Viva. A noção de nação, a nação
Cultura Viva. Para tal, relacionamos
algumas reflexões anteriores de Lima
(2013),
O mais interessante em todo o
processo de implementação do
Programa é a construção
coletiva do conceito. Este
fenômeno ressalta a
capacidade de um grupo de
indivíduos com realidade e
histórias distintas se
identificarem e se associarem
para se submeterem a um
mesmo plano, a um mesmo
organismo. Como um novo
conceito de comunidade
imaginada que, ao invés de
partilhar o único e buscar
esquecer o que não for
relevante para a criação
daquela nação; esta leitura
entende que é construído um
conceito para a interligação de
todos os elementos, mas sem
tentar diminuir suas questões
destoantes, pelo contrário, a
idéia é valorizá-las. Um
conceito de nação que
subverte seu valor universal e
dialoga com a questão
multicultural que toda a
diversidade cultural brasileira
traduz.
Acredita-se então que seja
parecido com o que Benedict
Anderson define como o
processo de formação dos
Estados-nação, usando-o
como paralelo à idéia de
compartilhamento de um
conceito de Programa, de uma
idéia de identidade própria. O
pertencimento a um Ponto de
Cultura cria uma idéia de
Comunidade Imaginada 12 nos
moldes que Anderson define
como raiz do nacionalismo
moderno, ou seja, utiliza-se a
idéia defendida pelo autor, mas
com o devido cuidado de
correlacionar um conceito
específico e utilizá-lo em outra
circunstância. Se o conceito de
Benedict Anderson é
comumente utilizado para
tentar desvendar o processo de
formação de uma nação, a
pesquisa o utiliza como base
teórica, ainda que temporária,
para tentar dar conta do que é
o fenômeno ocorrido dentro do
Programa Cultura Viva. Mais
do que qualquer outra Política
Pública, acredita-se que é a
ação utiliza como matriz
principal o conceito e não a
estrutura; a criação ou
adaptação desta é feita em
função das necessidades que
surgiram (e ainda surgem) no
período.
52
LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Esta reflexão tem o propósito
de demonstrar que (assim
como a atuação dos atores
políticos discutida
anteriormente, o
compartilhamento da gestão do
Programa, a criação de uma
identidade de grupo) a partilha
de um conceito pode ser
apontada como um dos fatores
relevantes na implantação do
Cultura Viva. O processo de
ocorrência disto é bastante
inusitado, por isso a utilização
da idéia de comunidades
imaginadas. [...]
Neste sentido, a comunidade
imaginada de Anderson, é
posta aqui como uma das
leituras do Programa Cultura
Viva, pois ela é imaginável,
afinal, nem todas as pessoas
envolvidas se conhecem
pessoalmente. É limitada e
soberana, pois obedece a, um
mínimo, número de regras e
definições que a constituem. É
assentada na fraternidade
existente entre os integrantes,
pois mesmo sem conhecer
todos os membros têm
dimensão da existência deles e
se reconhecem no momento
que esta identidade é posta em
prova. Têm língua própria, pois
constrói um novo tipo de
discurso dentro da esfera dos
pontos. (LIMA, 2013, p. 52-53)
É possível a noção de nação
para falar do movimento Cultura Viva
Comunitária, a posterior
internacionalização da proposta. Afinal,
defende-se que isso foi possível
fruto do percurso interno vivido pelo
conceito. Um contágio de agenda e de
debate político que contou com a
participação social como principal mola
propulsora. Este movimento
possibilitou que diversos países
operacionalizassem políticas
inspiradas na PNCV, com base na
pressão de grupos sociais locais. Da
mesma forma, a partilha do conceito e
a agenda transversalizada
proporcionou a criação de um
programa de cooperação internacional
- o IberCultura Viva.
Por último, e em se tratando das
potencialidades da arregimentação
social provocada pela PNCV, destaca-
se a própria resistência do setor no
Brasil frente a períodos de
enfraquecimento da estrutura
governamental. Isso indica que mesmo
em contornos em que o governo federal
não aportou recursos significativos na
gestão da política pública, a rede de
Pontos e Pontões de Cultura
permaneceu aguerrida e atuante.
Ofertando espaços de debate e de
disputa sobre o investimento no campo
como um dos elos do direito à cultura.
Conclusão
53
LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Defende-se que o estudo
aprofundado pela PNCV é uma
necessidade importante para a reflexão
macro das políticas públicas de cultura
em corte contemporâneo exatamente
por colocar em evidência os avanços e
as problemáticas da aproximação do
Estado com grupos sociais. Ela
também é potente por reforçar e
apontar ganhos alcançados a despeito
de casualidades políticas. Ela reforça a
importância da institucionalidade, da
participação social, da defesa de
agendas específicas ao campo. Da
mesma maneira, entende-se que seu
estudo aprofundado é um incremento
para a gestão de políticas públicas do
setor.
A PNCV se encontrava
praticamente paralisada na esfera
federal desde a extinção do Ministério
da Cultura (2019) e mesmo a crise
institucional que lhe antecedeu, em
especial a partir de 2016, trouxe
rupturas importantes para esta política.
O Cadastro Nacional de Pontos e
Pontões de Cultura plataforma de
credenciamento e reconhecimento das
práticas culturais instituídas e
institucionalizadas da sociedade civil
brasileira se encontrava inabilitado
para novas certificações. Não houve
mais nenhum edital público, em esfera
federal, nem tampouco conveniamento
com estados e/ou municípios para
editais de apoio e fomento (e chancela)
para novos acordos entre governo
federal e organizações não
governamentais ou entes federados. A
continuidade da PNCV veio se dando
neste anos (2016 a 2022), sobretudo,
por conta de políticas estaduais e/ou
municipais.
Pode-se apontar que a questão
do Cultura Viva ativa dimensões tanto
da diversidade cultural e da
mobilização e participação de agentes
culturais em rede (destaque-se as teias
dos Pontos de Cultura e os fóruns
nacional e estaduais) quanto da
ampliação da inclusão de agentes e do
reconhecimento de práticas até então
pouco atendidos como partícipes de
políticas públicas de cultura, em
especial os mais pobres e
subalternizados.
Defende-se, portanto, que a
análise e o debate de políticas culturais
de chave contemporânea, com especial
exemplo na PNCV, trata de outras
dinâmicas sociais, como reportara
Yúdice (2004). Afinal, a cultura tornou-
se também uma espécie de recurso
que também tem potencial para
54
LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
colaborar com o desenvolvimento
econômico das localidades. O antigo
entendimento de política cultural como
fomento ao fazer artístico e simbólico
está ultrapassado e que que se
observar o potencial de práticas
culturais entrelaçadas com outras
dinâmicas da vida social. Além de
buscar fortalecer e reafirmar a noção de
diversidade cultural e de participação
social presentes na PNCV, reforçamos
aqui duas outras ideias que devem
embasá-la. Primeiro a questão
acionada por Nancy Fraser (2006) ao
chamar atenção para o fato de que as
premissas do reconhecimento
multicultural não são plenas sem justiça
social. Acrescente-se, também, a
concepção sobre desculturalizar a
cultura apontada nas palavras de Víctor
Vich (2022, p. 138): "A proposta de
desculturalizar a cultura implica então
arrancar a cultura de sua suposta
autonomia e utilizá-la como recurso
para intervir na transformação social."
O campo da Cultura é, por si,
interdisciplinar e as políticas de cultura
são (ou devem ser), em especial,
transversalizadas com outras políticas.
O Programa Cultura Viva (e
logicamente a atual Política Nacional
de Cultura Viva) teve sua gênese
assentada na transversalidade de
políticas, e em especial no
reconhecimento e ativação de
processos focados na diversidade
cultural, na ampliação do direito de
acesso aos recursos, do direito a ter
direitos, enfim dos direitos culturais.
Buscar entender limites, potenciais,
repercussões e demandas para melhor
e maior enfrentamento da PNCV e do
reconhecimento dos processos
culturais e dos saberes populares, por
si, implica em transitar no campo da
etnologia e da antropologia, no campo
do processo decisório da política
propriamente dita, das formas de
comunicação intergrupos e
interinstitucional, da percepção e
fomento de práticas artístico-culturais
diversificadas, territorializadas e com
polifonia de agentes, e de ativação de
procedimentos e saberes também do
campo da administração. Trata-se,
portanto, de um debate que se constrói
de diversos lugares de pesquisa e tem
como enfoque essencial a expansão do
debate sobre políticas culturais como
um ambiente eminentemente
multidisciplinar. Neste sentido, discutir
o papel das políticas de cultura no
enfrentamento dos desafios e na
identificação de novas possibilidades e
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LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
alternativas, é fundamental aos
processos nos quais vivemos e
construímos o mundo.
As relações de poder existentes
são resultados e conformam práticas
de atores heterogêneos, as quais são
centrais para o entendimento das
políticas blicas, e devem ser
entendidas como modos interativos de
dizer, de fazer e de pensar coletivos e
correspondem a um agir plural que
precisa ser mapeado. Neste sentido,
as políticas seriam as múltiplas
interações das práticas, que
acontecem “na prática”. Em outras
palavras, as políticas públicas
acontecem em rede, pois dependem
do agir plural dos diversos sujeitos
sociais envolvidos. A política e seus
resultados, bem como seus efeitos
inesperados, podem ser
compreendidos a partir das
performances relacionais dos sujeitos
sociais, indo na direção da construção
de projetos de mundo pela via
democrática (MOUFFE, 1999). Assim,
vislumbra-se importante potencial de
estimular criticamente o campo, seja
junto aos agentes da gestão pública
de cultura, seja junto aos partícipes da
política de Cultura Viva.
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56
LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Cultura Viva – 20
anos: uma análise da trajetória entre programa, política e conceito em
políticas públicas de cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana
de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 29-57, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
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[Estabelece diretrizes complementares
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cultura Viva e o transbordamento de fronteira - entrevista com Célio Turino
Célio Turino1
Deborah Rebello Lima2
Luiz Augusto F. Rodrigues3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.63905
Cultura Viva (Living Culture) and border crossing - interview with Célio Turino
Célio Turino was the creator and manager of the Cultura Viva Program at the Brazilian Ministry of
Culture from 2004 to 2010.
Cultura Viva y cruce de fronteras - entrevista con Célio Turino
Célio Turino fue el creador y gestor del Programa Cultura Viva del Ministerio de Cultura de Brasil de
2004 a 2010.
Cultura Viva e o transbordamento de fronteira - entrevista com Célio Turino
Entrevista com Célio Turino (E) concedida aos pesquisadores Deborah Rebello Lima,
da UFPR, (P1) e Luiz Augusto F. Rodrigues, da UFF, (P2), realizada de modo online
em 23 de abril de 2024 4.
Célio Turino. Graduado e Mestre em História pela Unicamp, Pós-Graduado em
Administração Cultural pela PUCSP e doutor em Humanidades pelo programa
Diversitas, da USP. Autor de diversos livros, publicados no Brasil e no exterior, nos
idiomas espanhol, inglês e italiano. Esteve como Secretário de Cultura e Turismo na
cidade de Campinas (1990/92); Diretor de Promoções Esportivas, Lazer e Recreação
na cidade de São Paulo (2001/04); Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da
Cultura (2004/10). No MinC, foi responsável pela formulação e implantação do
1 Célio Turino. Doutor em Humanidades pelo programa Diversitas, Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP). Integrante do Instituto Casa Comum, São Paulo, Brasil. E-mail:
celioturino65@gmail.com - https://orcid.org/0009-0000-5349-6474
2 Deborah Rebello Lima. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Professora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná, Brasil. E-
mail: deborahrebello@ufpr.br - https://orcid.org/0000-0002-4598-5347
3 Luiz Augusto Fernandes Rodrigues. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Professor Titular do Departamento de Arte da UFF e coordenador do Laboratório de Ações
Culturais - LABAC-UFF. E-mail: luizaugustorodrigues@id.uff.br - https://orcid.org/0000-0003-0583-
9641
4 Algumas referências serão complementadas entre colchetes ou explicitadas em notas de rodapé,
com a indicação NE: (nota do editor).
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Como apontado em seu currículo
Lattes: “É escritor e, desde 2011, viaja pelos rincões do mundo, sobretudo aldeias,
vilas e favelas na América Latina, escutando histórias e escrevendo sobre elas”.
Célio Turino nos concedeu entrevista em diferentes momentos e sobre diversos
temas. Para a edição deste dossiê privilegiamos o transbordamento de fronteiras do
Cultura Viva.
P2 Você considera que mudanças profundas nos conceitos de Cultura Viva no
Brasil e na América Latina?
E – Entendo que sim, principalmente no encontro entre os conceitos de cultura viva e
bem viver, mas é algo que mantém o fio, uma coerência com o marco de construção
conceitual filosófica da cultura viva desde 2004. Cultura Viva é um conceito biológico,
orgânico, e trabalha o sentido de cultura a partir da ideia da biopotência, a potência
da vida; é a biopotência que vai conseguir enfrentar a necropolítica e o biopoder.
Biopoder e a necropolítica se entrelaçam, hoje isso está muito claro, inclusive em
alguns países que estão sendo utilizados como experimento para a necropolítica,
como El Salvador (que eu conheço bem e fui inclusive entrevistado pelo atual
presidente Nayib Bukele, quando ele ainda era jovem comunicador tuiteiro; ele era da
FMLN inclusive5. E no Equador, conheci também o filho de milionário que tentou
assumir a presidência do país algumas vezes, que é o Noboa6, igualmente jovem, na
faixa dos 30 para 40 anos, fala espanhol com sotaque gringo, porque foi criado em
Miami. Hoje esses dois países, El Salvador e Equador são os dois grandes
laboratórios da necropolítica na América Latina. O que conseguirá enfrentar a
biopolítica e a necropolítica, no meu entendimento e cujos elementos já estavam
expressos na formulação do CV, é a biopotência. O conceito da biopotência, da
potência da vida, se desenvolve e se pratica pela cultura viva. Desde 2004 eu
percebia que o Cultura Viva iria definir um marco, que depois se expande. Entendo,
inclusive, que aquela conceituação mais clássica do Canclini - ele coloca dos cinco
modelos de expansão da cultura pela América Latina, que é o modelo biológico-
5 NE: FMLN - Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional - partido político socialista de El
Salvador.
6 NE: Daniel Noboa, atual Presidente do Equador desde 2023. Foi membro da Assembleia Nacional
entre 2021 e 2023; nascido em Miami em 1987.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
telúrico, que pega o cosmoambiente latino-americano; a expansão pelas relações de
Estado, muito a partir das independências no século XIX; a expansão cultural
mercantil; a militar, e que teve presença grande nesses modelos dos governos
militares do anos 1960, 70, a partir do golpe militar no Brasil e vai construindo um
modelo de expansão da cultura em perspectiva autoritária; e o quinto, que ele
classifica como progressista, no sentido do histórico-popular. São esses cinco
modelos. Eu diria que a cultura viva acrescenta (e até conversei com Canclini quando
ele esteve no ano passado, aqui em São Paulo) um sexto modelo, que é o modelo
comunitário, realizando a integração latino-americana por um outro prisma. Ela difere
do histórico popular porque ela não é partidarizada, tendo uma dimensão mais
comunitária, apesar do sentido ideológico (amplo) enquanto cultura política e tomada
de posição descolonizadora. A diferença com o modelo histórico-popular é que ela
emerge de baixo pra cima. Então, acredito que essa é a grande expressão da
convergência e salto provocado pelo transbordamento da cultura viva do Brasil para
os demais países da América Latina.
Recentemente, nesta semana da entrevista com vocês, realizamos um evento
continental em Solidariedade aos Pontos de Cultura na Argentina, por conta dos
retrocessos sob o governo de Milei. Eu que sugeri o evento, e foi feito assim, em cinco
dias de chamada, e reuniu gente de quase todos os países do continente. não
consegui ter pronunciamento de Cuba, porque Cuba não acessa o streamyard, que
foi a ferramenta que utilizamos. Não teve Cuba e Venezuela, e o Chile deu problema
na hora da conexão pela internet. O restante, todos os demais países da América
Latina, estavam presentes. Como você consegue criar um evento de solidariedade
continental em tão pouco tempo e que vai do sul ao norte do continente? Exatamente
porque tem essa liga desse modelo comunitário de baixo pra cima. E que é uma
expressão da biopotência. Entendo que essa é a grande contribuição da cultura viva
enquanto filosofia, enquanto conceito, e prática, do que as formas de gestão, repasse
de recursos, ou planificação governamental.
P2 Seguindo um pouco essa ideia dos conceitos estruturantes do programa, da
política, e as pautas da diversidade, do reconhecimento, da participação? Como você
avalia?
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E Então… eu estou aqui pensando para medir pouco as palavras. Mas, enfim, vamos
direto. No meu entendimento, o Cultura Viva praticado no Brasil entre 2004/10 chegou
a ser o maior programa de identidade e diversidade cultural do mundo; e de tudo o
que eu buscar estudar, olhar, eu não vi nada semelhante, nada na dimensão do que
nós fizemos no Brasil. Quando depois é expandido pela América Latina, ainda mais.
É uma política de diversidade, que tem na diversidade complementar a sua força. É
diferente das políticas de diversidade atualmente apresentadas, por favor, coloquem
entre aspas, a chamada “cultura woke7 , entre aspas também, o “identitarismo”. Eu
não gosto de usar esses termos porque ao tentarem negar as identidades como
ideologia, também criam ideologia. Eu não vejo dessa forma. Mas, por outro lado, o
que tem prevalecido sob a capa de políticas de diversidade, é uma cultura da hiper-
fragmentação, que se constrói a partir da diferença, do que separa. Esse é o mote,
buscar e exacerbar as diferenças e a partir dos recortes de diferença hiper-fragmentar
a diversidade. A cultura viva é o oposto disso. Ela trabalha a diversidade estimulando
os processos de encontro. Então ela… e na América Latina, a gente conseguiu
apresentar e praticar dessa forma. Tem grupos de música erudita se comunicando
com o ancestral, comunitário, popular, uma busca pela raiz ancestral, um ancestral
histórico, que vai reconstruindo ligações, encontros. Por exemplo, no Chile, buscando
costurar com a tradição do pensamento e prática de Emilio Recabarren, que foi o
fundador do Partido Comunista Chileno na década de 1910/20 e que percorria todo o
norte do Chile e depois também o Sul, com os camponeses e mineiros estruturando
centros culturais comunitários. A luta social no Chile, a partir do século XX, veio toda
a partir de ações de identidade e diversidade cultural. Então, veja, não é ideológico no
sentido estritamente partidário, vai além disso. Se pegar ali na história, é Emilio
Recabarren e a esposa dele, Teresa Flores, que era uma feminista, tecendo uma
cultura emancipatória a partir das raízes do povo. É uma identidade que se faz no
processo de diversidade, que é totalmente oposto ao que se vê hoje. Assim, acredito
que… - inclusive na hora que as pessoas perceberem o caminho da diversidade como
força para encontrar um denominador comum, que está no encontro, não na
7 NE: Na gíria norte-americana, ser ou estar woke pode indicar com quais posturas políticas você
mais se identifica. O uso de woke surgiu na comunidade afro-americana. Originalmente, ele queria
dizer "estar alerta para a injustiça racial".
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fragmentação. Quando isso acontecer a biopotência vai se realizar com mais força e
a gente vai conseguir fazer frente a esse ambiente de total domínio sobre as
possibilidades da humanidade, de depressão da potência, coisificando a vida ao
extremo. É nessa dimensão que eu vejo diversidade.
No Brasil foi assim também, por exemplo, lá em São Lourenço do Sul, no Rio Grande
do Sul. É uma cidade pequena. A princípio caberia um ponto de cultura. A cidade
fica às margens da Lagoa dos Patos, tem uma grande colônia de pomeranos - e
pomeranos são os eslavos germanizados, ainda falam pomerano, assim como em
Pomerode em Santa Catarina e no Espírito Santo. A cidade também tem uma
comunidade quilombola. Ambos não conversavam, pomeranos se consideravam de
uma cultura superior, germanófila. A princípio, pelo tamanho da cidade, caberia
apenas um Ponto de Cultura, mas como ter só um? Decidimos pelos dois. Então, eu
não poderia trabalhar, o seria legítimo trabalhar a diversidade com o Ponto de
Cultura. Ou pomerano ou quilombola. A princípio a solução seria escolher os
quilombolas, que foram os mais excluídos e deslegitimados ao longo da história.
Então, para criar um equilíbrio, teria que fortalecer o quilombola. Mas não
estaríamos trabalhando diversidade. Por outro lado, se trabalhasse um Ponto de
Cultura com os pomeranos também não. Até porque se diria “ah, mas eles tem
uma tradição musical germanófilo, grande. Então vem de uma tradição da imigração,
de grupos culturais e tudo mais e é uma raiz legítima do povo brasileiro, assim como
as demais”. Mas também não seria diversidade. Era necessário ter os dois. Quando a
optamos pelos dois, em pouco tempo o que foi possível construir por lá? Um coral
afro-pomerano. Não incentivado pelo governo, mas sabendo que isso possibilitaria a
promoção do encontro. Quando surge o coral afro-pomerano, eles se descobrem de
uma outra forma e aí a diversidade se realiza em toda sua potência, porque sintetiza
uma outra coisa. Eles se descobrem, inclusive, no caso dos pomeranos, como
descendentes de escravizados – pomeranos são eslavos germanizados, e eslavo é a
matriz etimológica para escravo. Essas populações germanizadas, nunca foram
plenamente tratadas enquanto germânicas, eram usadas como infantaria, inclusive na
Segunda Guerra, e para morrer mesmo, como bucha de canhão sob o racismo da
ideologia nazista, e mesmo antes. Então, apesar de estarem ali dentro daquela
ideologia alemã (atualmente poucos Pomeranos na Alemanha, inclusive o idioma
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pomerano é mais falado aqui no Brasil do que na Alemanha) com pensamento
conservador-idealizado, eles tinham essa falsa consciência de se sentirem na
identidade com o germânico. No encontro com os quilombolas e pela aceleração de
processo de diversidade promovida pela Cultura Viva, eles se descobrem muito mais
próximos com os quilombolas. Não sei como está hoje. Creio que com todos os
desmontes que o Ministério da Cultura promoveu ao longo dos últimos 15 anos, talvez,
não sei se tenha prosperado, mas foi uma experiência que sintetiza muito esse sentido
de diversidade como estimuladora do encontro, contida no conceito, na ideia de ponto
de cultura.
P1 Vou pegar uma carona nesse debate, Célio, um pouco para a gente
problematizar exatamente isso. Acho que você discorreu bastante bem das
especificidades do debate de diversidade que a PNCV, que a Cultura Viva estava
circunscrita no começo dos anos 2000, etc. Que hoje a gente escaminhando para
outros acionamentos, em alguma medida, até o questionamento do conceito de
diversidade em si. Tudo isso virou uma marca dessa Conferência que acabou de
acontecer. Essa ênfase na negação, digamos assim, do termo da diversidade. Por
outro lado, a gente pode, em alguma medida, fazer um paralelo que a expansão do
conceito é também fruto desse exercício de alteridade, tanto do movimento do cultura
viva comunitária, dos agentes da sociedade civil, quanto até dos movimentos do
próprio Iber, digamos assim, dos Estados fazendo essa movimentação de diplomacia
cultural etc. Como é que você enxerga isso assim, esse pano de fundo que vai trazer
consequências para o próprio futuro do debate sobre o que é, o que conta desse
guarda chuva amplo da cultura viva?
E – Veja, a expansão da cultura viva, ela se deu por uma ação comunitária a partir de
indivíduos e coletivos comunitários. E daí ela chegou nos governos (então, é por isso
que ela… conversando rápido com Canclini, ele concordou que caberia, sim, ter esse
sexto modelo da expansão comunitária). Ela o se deu por um arranjo entre Estados
primeiro, ela cresceu do comunitário e chegou nos Estados. Mais explicitamente
quando na expansão pela América Latina. O exemplo da Argentina. Argentina foi o
primeiro país a abraçar formalmente a cultura viva. Eu já tinha saído do Ministério, era
ainda em 2010, eu tinha saído recente. eu fui para a convite de grupos
comunitários. Houve uma marcha na Praça de Maio, umas 500 pessoas até a Casa
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Rosada, com os movimentos comunitários pela Cultura Viva, junto com eles eu tive
várias reuniões com deputados e senadores da Argentina. Foi assim que se construiu
o processo, também com a Secretaria de Cultura, que é o equivalente ao Ministério,
sempre acompanhado dessas lideranças locais. Quero citar porque são para mim,
são muito relevantes. Eduardo Balan, Inês Sanguinetti, Emília de la Iglesia, Silvia
Bove, enfim. No início os dois primeiros, que tiveram um papel muito determinante.
Foram a Inês, que era uma bailarina, de elite da sociedade argentina, e o Balan, um
militante comunitário de esquerda peronista da grande Buenos Aires. Por a gente
foi. Ao fazer esse movimento, essas pessoas foram ganhando legitimidade no seu
país. foi assinado o primeiro convênio de acordo entre Estados entre… por proposta
da Secretaria da Presidência da Cultura da Argentina, com o Ministério da Cultura [do
Brasil], isso foi em 2011, ele foi assinado em junho ou julho de 2011. Enfim, vocês
percebam que foi uma construção de baixo pra cima.
No mesmo ano, em agosto, foi aprovada a primeira Lei da Cultura Viva, antes do
Brasil, que foi em Medellín. Foi a partir dos movimentos comunitários de lá. foi
uma outra situação. Fui para encontro com prefeito, secretários, palestra na Câmara
dos Vereadores, intelectuais e coletivos culturais... Depois foi em Lima, foi uma
vereadora de lá, a Lula Martinez. Ela veio a o Paulo - também por estímulo do
pessoal de movimentos comunitários de lá- nos encontramos e ela levou de volta uma
proposta de lei, a Lei Cultura Viva em Lima. E daí depois começou a pipocar em um
monte de lugares pela América Latina. Bem antes da lei brasileira.
Mesmo o movimento IberCultura Viva, ele foi resultado desse processo “de baixo para
cima”. Esse foi um pouco mais construído, mas tem o componente de abaixo. Em
2009 nós organizamos, eu como secretário da Cidadania Cultural, o segundo
Congresso Ibero-americano da Cultura. O primeiro foi no México. Eu estive até para
propor que o segundo congresso fosse no Brasil. No México apresentei a proposta de
forma mais organizada para os presentes, coletivos, intelectuais e gestores, e
governos, a ideia da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura são congressos da SEGIB
- Secretaria dos Estados Gerais Ibero-americanos. O tema escolhido para o
congresso em São Paulo foi Cultura e Transformação Social. Fizemos um catálogo
bem bacana, em português e espanhol. Desse processo iniciado em 2009 resultou a
criação do IberCultura Viva no Congresso da SEGIB (Ibercultura) de 2013, em São
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José, na Costa Rica. A proposta foi do Manuel Beregond, que era ministro da cultura
da Costa Rica e músico, ele que propôs dar o nome de IberCultura Viva. Inicialmente,
o único voto contrário a esse nome, por incrível que pareça, foi do Brasil, mas aí ficou
meio constrangedor e teve outros ministros falando que eles estavam dando esse
nome em homenagem à experiência brasileira, e assim se definiu o nome IberCultura
Viva para o programa. Mas pra chegar nesse momento, em paralelo ao Congresso da
SEGIB, houve o encontro com mais de 500 pessoas de toda América Latina, de pontos
de cultura que começavam a pipocar pelo continente, ao final perto de 1000
pessoas, porque vieram muitos de coletivos da Costa Rica. Assim, nós fizemos a
mobilização. Naquele estágio, em 2013, eu tinha percorrido toda a América Latina
e todos esses lugares. tinha estado com o ministro da Cultura na Costa Rica,
criando relações próximas, de respeito e amizade, bem como com outros. Também
no México, El Salvador, da Colômbia. A Colômbia sempre foi um pouco particular,
pelas condições do país, a Cultura Viva é muito abraçada por lá, mas não pelo governo
central, que, até Petro, eram de direita. Foi muito particular, trilhamos pelas cidades,
Bogotá, em Cali, Medellín. As prefeituras são muito fortes, inclusive no governo do
Gustavo Petro, quando ele introduziu o programa Cultura Viva na Prefeitura de
Bogotá, onde ele foi prefeito. Era pelas prefeituras, não pelo governo central. Quando
chegou no congresso da SEGIB de Cultura na Costa Rica, estava um processo
construído. Notem que sempre foi uma construção comunitária, em todos os lugares,
com agentes locais.
Dou exemplo: na Bolívia. Eu fui na Bolívia, a primeira vez em 2012, perdi a conta de
quantas vezes estive lá. Fui a convite do Ivan Nogales, uma pessoa muito importante
para a cultura viva, querido amigo. Ele que organizou o primeiro Congresso Latino-
americano da Cultura Viva em La Paz com 1300 pessoas, de 17 países. Fiquei
hospedado na casa dele, que é também um centro cultural maravilhoso em El Alto,
são cinco andares, que tem espaço de teatro, um monte de coisas, todo construído
com sucata e materiais de demolição…. Ivan é um criador, era, porque faleceu. E
mais, era assim, um agente comunitário de teatro muito bom, talentoso, pensador,
agitador, escritor, tudo. Mas que não era considerado no país, ao menos pelos
agentes de Estado. Quando eu vou pra lá, haviam passados dois anos da minha
saída do governo, mas mesmo assim eu fui tratado como um “pop rock”, a embaixada
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brasileira deixou um diplomata para me acompanhar, fiz um tour pela Bolívia, de três
semanas, fui nas principais cidades, pueblos, com voo da vice-presidência, foi a vice-
presidência que assumiu tudo essa minha viagem, também editaram meu livro na
Bolívia, com capa bem bonita, e ofereci ao Ivan para escrever o prefácio. Quando
acabou tudo isso, o Ivan Nogales, que era um der comunitário reconhecido e
respeitado pelas autoridades públicas do país, pelo pessoal dos governos municipais.
Ele sai como uma liderança, como um porta voz, a ponto de ter a capacidade de,
no ano seguinte, organizar o Congresso Latino-americano, lá na Bolívia, com poucos
recursos. Quando eu digo que organizamos um congresso latino-americano com
1.300 pessoas de 17 países, com orçamento total de US$ 35 mil (afora o
deslocamento das pessoas), poucos acreditam, mas foi isso mesmo, eu próprio tive
que completar US$ 2.000 do bolso. E a coisa foi feita, maravilhosa. Então, foi assim
em todos os lugares (em El Salvador com orçamento maior, US$ 100 mil, do governo
de lá). Foi desse jeito que virou. Percebam, não pra dizer que a expansão do
Cultura Viva foi uma ação de governos, houve proximidade, apoios, mas sobretudo, é
resultado da potência da articulação comunitária e popular dos pontos de cultura. Veio
dos comunitários exclusivamente? também não diria, foi uma pressão, em alguns
lugares, um pouco de pressão. Na Guatemala, nós fizemos uma comparsa (passeata
festiva) com 1000 pessoas na Cidade da Guatemala, em 2011. Uma coisa linda, do
comunitário, de um jeito que ia estabelecendo processos de diálogo e os governos
centrais ou regionais e municipais, o parlamento, variando um pouco, foram
encampando até virar um programa intergovernamental que é esse da Secretaria
Geral dos Estados Ibero-americanos.
P1 Nos permita também fazer uma provocação, assim… em alguma medida eu
entendo quando você es ponderando essa dimensão do de baixo pra cima, do
agendamento comunitário etc. Mas em alguma medida, isso apaga, entre muitas
aspas, a sua dimensão no processo. Porque nesse percurso a gente pode dizer talvez
assim, fazendo uma analogia, que você fez um esforço, quase de diplomacia cultural.
Ainda que você não tivesse mais no Estado brasileiro, você representava o Estado
brasileiro. Você era a personificação da principal política, de que os grupos
comunitários estavam ali na pressão para os seus governos executarem ações da
mesma direção etc. Então, de alguma forma tem, é sim essa pressão de baixo pra
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cima, mas que talvez ela não alcançaria esse lugar se você não tivesse nesse fator
diplomático, digamos assim, fazendo uma espécie de mediação de processo.
Negociando uma espécie de um agendamento político e ir fazendo uma forma de
representação. O que você acha?
E Você tem razão. É que, pela minha personalidade, meu jeito de ser, estou meio
assim, me desprendendo de muita coisa. Mas você tem razão. Eu diria, se você me
permite, foi o mesmo que talvez eu tenha levado discursivamente no Brasil, mesmo
dos Pontos de Cultura daqui, levando-os a acreditarem que foi totalmente “de baixo
para cima” (às vezes eu reflito sobre isso)... eu falava tanto que: “ o Ponto de Cultura
existia, ele foi potencializado. Esse movimento foi de baixo pra cima”. Eu acreditei
tanto nisso, que talvez eu tenha criado um certo mito, um mito de que tudo foi de baixo
pra cima. Mas o foi, não dá para dizer foi espontâneo. O Estado teve um papel e eu
tive um papel. Eu que eu tenho dificuldade em me colocar dessa forma. Quem me
conhece sabe que que sou muito tímido, tenho hiperfoco e não consigo “jogar
conversa fora”, não consigo ficar nas rodas, menos ainda nas de poder, não gosto de
conversa vazia, assuntos que não me despertam interesse e nutro um quase
desprezo por eles, detesto patota, grupos de interesse, solenidades de poder, prefiro
ficar à parte, só observando. Isso tem vantagens, mas também me traz muitos
problemas. Mas, de fato, se não tivesse havido o Célio Turino, conceituado cultura
viva e ponto de cultura, suas ações, planejamento e execução (e escrevi tudo em duas
noites, antes mesmo de minha nomeação sair no diário oficial), ali no Ministério da
Cultura, naquela composição específica, com Gilberto Gil ministro e Juca Ferreira
tendo me selecionado para trabalhar como secretário e dando o apoio inicial, o Cultura
Viva e os Pontos de Cultura não teriam acontecido. As ações culturais nas
comunidades aconteciam, que não eram vistas por aqueles no poder, esse foi
um mérito do cultura viva, mas não só. Na verdade, Ponto de Cultura é uma qualidade
diferente da ação cultural-comunitária dispersa, ele é resultado da potencialização
daquilo que as comunidades fazem, mas que ganha outro patamar quando se
transforma em Ponto de Cultura e se articula em rede, ele passa a ser uma outra coisa
e isso foi possível pelo conceito, pela filosofia, e isso teve que ser formulado e
executado, e não foi pelo movimento em si. Sabe aquele verso do Gil? “O povo sabe
o quer / mas também quer o que não sabe”, Ponto de Cultura é isso. Na América
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Latina, eu concordo, houve uma demanda originária mais “de baixo para cima”, mas
no Brasil foi preciso surgir primeiro a proposta que veio de mim e encampada pelo
Estado, para depois as comunidades quererem e assumirem. Desculpem a
sinceridade e ao mesmo tempo, obrigado pela oportunidade em poder dizê-lo pela
primeira vez. Na América Latina também seria isso. Mas eu estava mais experiente
então eu fiz de forma deliberada sim, a fortalecer essas lideranças comunitárias, como
no exemplo do Ivan, que é uma grande liderança, excepcional, tenho muito carinho
por ele e fiz o prefácio de um livro dele, Descolonização do Corpo, em retribuição ao
prefácio que ele fez ao meu. Estabelecemos uma relação de irmandade de almas,
fomos na trilha de Che Guevara e tal, muitas histórias que contarei um dia. Sabe que
discutimos sobre isso, inclusive, também sobre o sobre o significado simbólico da
Cultura Viva, nossa intenção era, depois de cobrir toda a América Latina, chegar com
um congresso da Cultura Viva nos Estados Unidos. Trocamos muitas ideias sobre
esse simbolismo. Nós o fomos atoa na trilha do Che Guevara. Dissemos: “Vamos
fazer um movimento revolucionário de uma guerrilha, de uma outra forma”. E fizemos
isso, pela forma cultura, mas sem perder o sentido de radicalidade.
Em cada lugar que eu ia, busquei assim fortalecer e identificar esses pontos de
potência entre os pontos, aquelas pessoas que tinham realmente algo muito, muito
especial para oferecer, e fortalecê-las, dar destaque. No México fiz isso, em El
Salvador, o Júlio Moje e a mulher dele, ex-guerrilheira, no meu livro, Por todos os
caminhos Pontos de Cultura na América Latina eu vou contando a história dessas
pessoas, e articulando com a história dos países e dos movimentos comunitários de
cultura..
Em cada lugar… na Guatemala. Na Guatemala, um pessoal, um casal que tocou a
caixa lúdica, a caja lúdica, eles nem da Guatemala são, são originários da Colômbia
e foram viver lá, agora voltaram às montanhas da Colômbia para o merecido
descanso. Conta a história deles, primeiro foram para a Nicarágua, se desencantaram,
e assim chegaram na Guatemala. E foram, chegaram, então… Valorizo essas
histórias de forma deliberada, porque eu entendo que aqui tem uma combinação entre
o filosófico, conceitual, que é muito de vanguarda que se apresenta no cultura viva e
o do “sentir pensar”, que é o da sensação, da emoção. Sem as pessoas a cultura viv
não existe. Eu procurei praticar isso.
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Passado o tempo as pessoas imaginam que que alguém “foi lá, levou a ideia da cultura
viva, foi no congresso acadêmico, uma reunião governamental. foi jantar com as
autoridades e nisso convenceu”. Não foi assim. Eu ia nos lugares das autoridades e
nas favelas, nas aldeias onde mais gosto de ir, ver e ouvir). Sabe o que é subir
morro em Cusco? Cusco está a 3600 metros. Eu subi morro porque soube que havia
um grupo de jovens que praticava capoeira, de jovens indígenas quéchua e aymará.
Essa era a expressão cultural que eles adotaram: capoeira, que aprenderam de
alguém que passou por lá. Aí eu fui lá conhecer, escrever sobre eles, conversar sobre
eles, entender. Para mim, que tenho bronquite, não é cil. Fui a San Antonio de los
Cobres, 4000 metros de altitude. La Puna, Argentina. Uma coisa difícil em lugar
desolado. Era a cidade com maior índice de suicídio de jovens na Argentina em
relação à população. Eles se atiravam de uma ponte, a ponte das nuvens. Então eu
fui lá, uma agente argentina que foi conosco, ela desmaiou. Por que? Pela altitude. E
fui. E fotografamos, conversamos e vimos filme junto com os jovens, trocamos e-mail;
até poucos anos atrás trocava correspondência com as meninas e conversava... Isso
foi criando uma rede de afeto muito profunda. Isso deu liga. Digo que desconheço
outra política blica que tenha se consolidado assim. E as pessoas vem, se juntam
e se reúnem e fazem. Então, eu acho que teve isso.
P1 Você falou um pouco desse movimento internacional, e que você se preocupou
muito nesse olhar para as lideranças e esse trabalho que é quase antropológico etc.,
que guarda muita semelhança com o que você fez quando você era gestor, fazia a
mesma coisa. Você ia no Ponto pra conhecer, etc. O que você acha que tem/teve de
diferente em relação ao contexto brasileiro? Foi o fator governamental? Foi a perda
de espaço na agenda? O que você acha que é diferente?
E No Brasil foi meio natural, não foi muito pensado, pelo meu jeito de ser; na América
Latina, foi pensado, eu fiz sabendo o que estava fazendo. Eu chegava no lugar
querendo identificar onde que eu ia jogar luz ali, emprestar assim, digamos, o meu
prestígio. Dois anos atrás, fui no Chile, a Irina, esposa do Boric, pede um jantar
comigo, emocionada, leu tudo que eu escrevi. Ela é antropóloga, a primeira dama do
país. A partir desses encontros eu me preocupo em repassar o prestígio para agentes
locais, nas vezes que eu vou. Em alguns lugares, diminui um pouquinho, mas em
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outros continua tendo de uma forma bem grande. No Brasil, eu não estando envolvido
há 15 anos, vou nos lugares que me chamam e os que mais me alegram são os mais
periféricos e esquecidos. No fundo isso faz parte do conceito e da filosofia, a prática
desse sentirpensaragir. Ao menos é algo que me fez bem.
P2 Há também aqueles que acham que o Cultura Viva foi o estopim da participação,
tanto nacionalmente, quanto na própria base comunitária, ou seja, os próprios
territórios mais do que qualquer processo de conferências, qualquer outra coisa que
tenha sido o Cultura Viva, meio que Na Trilha de Macunaíma, meio que o construtor
de uma identidade participativa. Eu acho que vai um pouco nessa perspectiva. Então
eu queria ver se você também acha. E em sendo assim, o que a gente pode esperar
desse movimento participativo enquanto resistência aos processos de desmonte ou
de retrocesso, como com Milei na Argentina, quanto na própria paralisação que teve
no Brasil. Pelo menos até o final do governo Bolsonaro. Se há outros movimentos na
América Latina também de desmanche? Como é que você isso e até que ponto
esse estopim é suficiente ou não é suficiente, uma coisa mais demorada, para fazer
frente a esses desmanches todos, se é que você reconhece o Cultura Viva como esse
estopim da participação efetivamente?
E Eu reconheço, eu acho bom você relembrar o Na Trilha de Macunaíma, que é o
meu mestrado e o meu livro que foi lançado quando eu estava no ministério, inclusive
eu não trabalhei muito a divulgação dele. Eu terminei o livro em 31 de dezembro de
2003, eu assumi o ministério, a secretaria, em 31 de maio de 2004. Estava tudo muito
fresco. Eu me identifiquei muito com Mário de Andrade, um gênio. Eu me identifico
com ele, mentalmente converso com ele até hoje, e o sigo. Quando criamos o estúdio
multimídia, foram três inspirações, três fatores, dois são inspirações que foram muito
explícitas. Teve a missão Folclórica de Mário de Andrade, que era um olhar de fora e
Mário, como diretor de cultura, financiou para fazer o registro da cultura popular.
Agora, com a tecnologia, eu teria a condição de fazer a mesma missão folclórica Mário
de Andrade pelo olhar de dentro, pelos Pontos. Outra inspiração foi o Sérgio Buarque
de Holanda, que eu também tenho assim uma profunda admiração… desde os 11
anos de idade, tive a felicidade de ter por livro didático um livro escrito por ele, imagine,
em escola pública, desde então li tudo. Sérgio Buarque falava que a grande frustração
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dele foi não conseguir construir uma história do Brasil de baixo para cima - é uma
entrevista dele. Então, eu fiquei com isso na cabeça, quando eu uso o subtítulo do
livro Ponto de Cultura - o Brasil de baixo para cima foi lembrando disso, como uma
homenagem. E o estúdio multimídia faz isso. A outra influência foi do pessoal da
cultura digital, o Cláudio Prado. Enfim, foi mais ou menos isso. Por isso é explícito
estar “na trilha de Macunaíma”. Às vezes eu até falo: Quer entender como é que
cheguei na ideia do Ponto de Cultura? Leia esse livro que eu escrevi, que é o Na Trilha
de Macunaíma. Você vai ver que ali estão as pistas para isso.
Voltando ao que a Deborah fala. Enquanto no Brasil foi um processo construído de
forma construtivista, fenomenológica, na América Latina foi mais planejado. Eu sabia
bem onde queria chegar. Nas mais de 50 viagens que eu fiz, muito profundas, indo
para muitos lugares - era muita coisa. Eu sabia exatamente o que eu queria de mim.
E o que eu tinha que entregar para as pessoas, mesmo que as pessoas que estavam
me recebendo não compreendessem bem isso. Foi assim. E tinham ainda outros
diálogos, isso permitiu a criação de uma rede de intelectuais orgânicos.
P2 - Eu quero retomar uma coisa. Pensa comigo. Eu acho assim, quanto a questão
da participação e do Cultura Viva como sendo a potência de um devir, não plenamente
realizado nesse sentido. que uma participação, uma participação não realizada
efetivamente, ela não passa pela formalidade de conferências, de conselhos, uma
participação que nasce e se fortalece meio que na linha do Sérgio Buarque de
Holanda, ali como um “semeador” num mundo cada vez mais “ladrilhador”, cada vez
mais cartesiano. Essa possibilidade, a semente. Eu o sei se foi essa figura que você
trouxe do Raízes do Brasil de Sérgio Buarque, mas eu gosto muito dessa tensão que
ele faz entre o ladrilhador e semeador.
E É, não está explícito. Mas eu acho que você tem razão. Eu acho que está muito
impregnado.
P2 E na perspectiva, ser o semeador de protagonismos, de autonomias, de uma
dimensão político, blico-político dos direitos sociais cada vez menos exercidos na
sua possibilidade, em sua plenitude, então eu vejo um pouco a Cultura Viva como
sendo um pouco a potência de intervir nessa perspectiva.
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E Concordo com você e te agradeço até por colocar. Interessante, inclusive, que o
Sérgio Buarque de Holanda, hoje ele é meio jogado assim, para um índex, mesmo
acadêmico. Eu vejo que ele tinha e tem uma contribuição extraordinária, ele tem
insights muito preciosos para o Brasil. Eu acho que vou começar a assumir mais essa
influência do pensamento Sérgio Buarque na construção de Cultura Viva. Sempre
deixei muito explícito o Mário de Andrade até pela minha identificação com ele. Mas
do Sérgio eu não falei tanto, e eu gosto demais do Visão do Paraíso. Vocês pegaram
bem, e é verdade, isso da semente e do semeador, está sempre presente nos meus
pensamentos, inclusive no título de minha tese é Viagem à Semente. Agora estou
terminando outro livro, um livrinho, curtinho, o título será Sementeira. Então tem, vem,
vem mesmo do Sérgio Buarque.
P2 – Vou seguir aqui mais um pouco e voltar no IberCultura Viva um pouquinho e ver
uma coisa no movimento que surge a partir do Brasil. Protagonismo importante. Como
é que você na sequência desses dez anos do Iber, se o Brasil tem conseguido
protagonizar uma liderança ou não nesse processo?
E O reconhecimento externo ao Brasil ele é muito grande, quanto à efetividade e
formulação. Note que é um paradoxo, porque na medida que o Cultura Viva expandia
pelo mundo ele era desmontado no Brasil, e isso a partir de 2011… aquele curso da
CLACSO, que teve várias turmas de pós em cultura de base comunitária, não
passou tanto pelo Brasil. Foi em 2012, na Rio+20, que conversando com Ivan Nogales
quando ele chegou com a Caravana da Cultura Viva, que saiu de Copacabana, no
Lago Titicaca, foi até Copacabana na Rio+20, no Rio. Eles vieram em um
caminhãozinho desses bem antigos e também um micro-ônibus, desses tipo ônibus
escolar norte-americano, vieram umas 20 pessoas de diversos países. Tramamos
quando da minha primeira ida à Bolívia. Eu que organizei as paradas e foram
recebidos nos pontos, o tinham dinheiro para pagar nem a gasolina da viagem
seguinte. Era uma parada que bancava a seguinte. Funcionou tudo tão bem que deu
tudo certo e aí, na hora de voltar, fizemos uma plenária com pontos de cultura na
Rio+20 e lançamos a proposta de um congresso latino-americano da Cultura Viva.
Inicialmente pensou-se no Brasil, mas eu não fui a favor. Sugeri: Vamos ao coração
da América do Sul, Bolívia, que sempre fica à parte. Aí, na Bolívia, em 2013,
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propuseram: “Ah, vamos fazer no Brasil. O Brasil tem mais recurso”. E o pessoal
de El Salvador pediu e falou: “nós sempre ficamos fora dos circuitos”, e eu os apoiei.
Como eu falava, era meio assim tranquilo, não é impositivo, mas o pessoal
concordava, assim na hora. Então foi em El Salvador e o congresso seguinte foi em
Quito, alguns disseram “Ah, não vamos fazer em Quito, não há muitos Pontos por lá,
estão começando agora”; mas saiu muito bem. Então..., o Brasil perdeu esse
protagonismo, apesar de ter grandes referências.
P2 A escritura do seu livro Por todos os caminhos: Pontos de Cultura da América
Latina”, de 2020. Você foi escrevendo a partir das suas viagens, você fez isso em
memória posterior? Conta pra gente um pouquinho.
E Foi posterior. Esse foi a pedido do Papa. Ele… eu assinei um convênio com o
Vaticano, via o programa Scholas Occurrentes, assinei como pessoa física e o Papa
abençoou o convênio. Foi assim. Me comprometi a escrever um livro mostrando as
histórias na América Latina. Nas diversas vezes que eu estive com o Papa Francisco,
eu falava das histórias, eu entreguei a versão argentina do Punto de Cultura – cultura
viva em movimiento, eu ia contando as histórias das comunidades na América Latina,
aquelas que eu estava visitando, ele: “por que você não faz um sobre a América
Latina?” Por que o Papa ele se interessou pelo Ponto de Cultura? porque tem uma
proximidade muito grande com um conceito desenvolvido por ele a “cultura do
encontro” um conceito que é dele, do Jorge Bergoglio. No livro “Por todos os
caminhos” eu conto a história do desenvolvimento do conceito da cultura do encontro,
pelo então Bispo e depois Arcebispo, Bergoglio. Então foi isso que fez com que ele se
interessasse, gostasse, enfim. Assessores dele procuraram quem havia conceituado
os Pontos de Cultura e me convidaram para dar uma palestra no Vaticano, foi assim,
ele me estimulou a escrever o livro. Numa das vezes que eu fui lá, eu assinei o
convênio de que ia fazer o livro, com esse reconhecimento, consegui apoio de
captação de recursos junto ao Instituto Olga Kos e eles conseguiram o financiamento
pela Lei Rouanet com o Bradesco. Vira e mexe tem alguém que escreve para mim
que foi numa agência do Bradesco e viu o livrão lá. É um livro bonito, e, formato de
livro de arte, saiu com 3.000 exemplares, em 4 idiomas. Ele foi lançado em Castel
Gandolfo que não fica em Roma, mas é território do Vaticano, como Palácio de Verão
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dos Papas, onde passou aquele filme dos papas. Francisco transformou o castelo
em um lugar de encontros. E ele cedeu o espaço para eu lançar o livro lá. Foi em
2018. Foi muito bom porque a Silvana, que é minha companheira, organizou as
viagens para nova escuta, em 11 países: todos os lugares que eu retrato no livro,
quase todos eu já conhecia, já tinha mais ou menos a ideia da história e alguns foram
de descoberta.
Mas algumas foram descobertas nas viagens, como na Guatemala, que para mim foi
um choque, era do Obama, foi o governo dele que definiu (note, não foi no gov.
Trump). Fez com a Guatemala um país para expulsar imigrantes de toda América
Central, deixando-os reclusos em Centros do Imigrante, eufemismo para prisões. Eles
são capturados nos EUA e mandados pra Guatemala, que recebe um dinheiro para
isso. Ali tinha um ponto de cultura, que conheci na viagem, o Frida Kahlo - era com
um casal de artistas plásticos. Eu escrevi uma passagem bonita sobre eles. Eles
fazem o trabalho numa casa de migrantes exclusiva para crianças que eram presas
nos Estados Unidos, separadas dos pais e expulsas do país. E eu conto a história
de três crianças. Três irmãs foram presas no Texas, porque elas estavam fazendo
travessuras na rua. Os pais não estavam presentes e como não eram documentados,
e com origem em El Salvador, por isso não conseguiram resgatá-las. Daí o governo
norte-americano as deportou para ficarem numa prisão que é chamada Casa do
Migrante, em um país estranho. Sem parentes, sem ninguém. O único momento de
humanidade que elas tinham era o trabalho do ponto de cultura que ia lá. Um dia
decidiram pintar nuvens, mas o conseguiam ver o céu para pintar, as grades não
permitiam. Então, enfim... Essa foi uma história que eu descobri lá na viagem, mas o
grosso foi organizado previamente, já sabia onde eu queria ir e tal. Ao todo foram 11
países, creio que em permanência, uns 60 dias, viajando por meses, mas eu ia e
voltava. O livro foi feito assim. Diferente do Ponto de Cultura; Ponto de Cultura, que
eu escrevi de memória, e a quente, no meio das viagens que eu fazia, entremeando
com capítulos conceituais, que também nesse, quando aperfeiçoo e aprofundo
conceitos. Era assim, eu ia para Araçuaí e no aeroporto e avião, abria o laptop e
escrevia, me inspirei na música Notícia do Brasil, do Fernando Brant e Milton
Nascimento, e dialoguei com ela. Outras vezes eu fui escrevendo de memória em
hotéis.
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Esse não, eu fiz planejado. Ele tem até outro nome. O livro que eu lancei em
Castelgandolfo e no Memorial da América Latina em SP, tem o título Cultura a unir os
povos, que em nova edição virou “Por todos os caminhos”, pelo SESC. É que eu não
queria confundir com a edição de arte, né. Então ficou um livro bem bonito e eu fui
com… foi a Silvana e o Mário, que é meu irmão, ele é fotógrafo, grande fotógrafo…
foi muito boa essa viagem, essas viagens…. ele ia fotografando e fazendo os
registros; nesse livro, tem mais fotos, são muitas, fotos grandes, bonitas e muita gente,
eu queria mostrar os rostos… Um pouco dessa coisa de ir consolidando as lideranças.
Foi assim. Esse livro serviu também para isso, tem as fotos das pessoas. Eu conto a
história da pessoa que eu queria destacar, porque são histórias importantes, mas que
sempre ficam esquecidas pelas “grandes” narrativas.
P1 – Quando você estava na gestão, foram feitas muitas publicações sobre a Cultura
Viva. Você tinha muito esse diálogo com os pesquisadores, você chegou a fazer um
conselho consultivo etc. De encontro lá de Pirenópolis e tal. Você tem esse acervo de
tudo que você, que foi publicado na época, que pelo menos você era gestor?
E O que foi publicado? Sim, as atas não. Assim, o material bruto não, mas o que
saiu em catálogo eu tenho, mas deve estar no ministério também guardado, tem não?
P1 – Não tem; isso que é assustador, não tem.
E - Isso tudo estava lá, montei até um museu da Cultura Viva. Museu mesmo, convidei
o Benê Fonteles para a montagem. Na sede da secretaria tinha um espaço que era o
Museu de todo o acervo que eu recebia, presentes, prestações de contas, fotos...
[Célio foi mostrando neste momento da entrevista algumas das publicações que tem
em casa] Esse aqui, esses foram os volumes que saíram da revista Raiz. Ela era feita
com recursos da secretaria e verba do PNUD. A exposição do Emanoel Araújo… eu
chamei Emanoel Araújo para ser curador de uma exposição no Museu AfroBrasil.
Fizemos boas viagens. Fomos juntos, a gente ia ali pelo Cariri… vejam que bonito
catálogo, esse outro é do Bené Fonteles: Não é erudito nem popular? Outra
exposição, feita na Teia de Brasília, no Museu da República. Procurava isso porque
eu… sempre houve essa preocupação com a estética. Fiquei muito preocupado no
começo, de o programa ficar muito nessa ideia de que ele era um programa social de
cultura para a periferia, que as crianças faziam, falando aqui com ironia, “um
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
batuquezinho e tal” e o povo de fora falando: “ai, que lindo, pelo menos não está na
droga, tirou a criança da droga”. Esse tipo de discurso eu abomino. Então sempre teve
essa preocupação estética. E de reflexão. Não foi com intelectuais, inclusive de
fora do país. Paul Heritage, que é da Universidade de Londres e viveu no Brasil, ele
até lançou um livro meu na Inglaterra. Tinha o casal, Maria Benitez e o Bernd Fisher,
do Instituto Vygotsky, ele alemão, ela era argentina. Sempre houve essa
preocupação. A gente criou um conselho internacional na Teia de Fortaleza, pessoal
convidado, vinha, enfim, essa foi uma preocupação exatamente porque eu não via o
programa como uma política pública, como uma política pública, de governo ou
mesmo de Estado. Queria aprofundar no sentido do conceito e filosofia, enfim, e nos
encontros que têm por a fora, eu também sigo tendo contato com muita gente. Povo
de universidade…
P1 Nesse processo de transbordamento de fronteira, ao que você atribui um peso
maior a esse movimento dos pontos de cultura no exterior? Esse interesse acadêmico
pelo tema, pela política? Os eventos como o Fórum Social Mundial, por exemplo? -
que teve uma ocupação dos Pontos de Cultura muito forte nos fóruns e o debate sobre
a política, enfim, a que que você atribui esse movimento?
E – Acho que foi o entrelaçamento no Fórum Social em Belém, em 2009, se tiver que
pegar o marco da expansão para fora, o momento seria aquele. E o encontro, o
Congresso da SEGIB de Cultura Latino-Americana em 2009 em SP. Esses dois, e tem
o terceiro marco, que foi a montagem do Quixote. O Quixote, para mim, foi um
laboratório, assim, muito diferente. Na preparação para o Congresso do IberCultura,
em 2009, eu recebi uma proposta do Pombas Urbanas, querendo uma montagem
continental do Quixote, em que cada país viria com um Quixote e um Sancho Pança,
ao menos, e cada país apresentaria uma cena. Esse espetáculo, ele foi feito para duas
apresentações, apenas. Foi no Sesc Pompéia, custou caro e me criticaram muito por
estar bancando o financiamento disso, fiz em parceria com o Sesc. Nós trouxemos
100 pessoas de grupos de teatro em comunidade da América Latina toda, acho que
foram 13 países, eles ficaram 15 dias no Ponto de Cultura Pombas Urbanas, na
Cidade Tiradentes, preparando - o diretor cubano, o dramaturgo colombiano - e
montamos o espetáculo. Eu diria que a expansão do Cultura Viva, não é que saiu daí
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só, mas aí deu a liga, porque eram todos esses de grande referência, o Caixa Lúdica
da Guatemala, TNT de El Salvador, o Nossa Gente de Medellín. Todo esse povo
passou lá... Aí é que deu a amarração comunitária, foi na montagem do Quixote.
P1 Então você fez um movimento. para dizer que a gente tem um movimento
comunitário e que tem um movimento governamental e um movimento externo…
E E intelectual e acadêmico. Teve isso e fizemos o seminário Pirenópolis, bem
diferente na metodologia. Eles tinham, na minha tese eu usei muito desses anais,
tinha gente que eu nem lembrava ou conhecia direito, um antropólogo italiano que fez
uma percepção muito boa. Eu transcrevi parte dela na minha tese. Eu não o conhecia,
ele veio convidado pelo Máximo Canivate, que morreu, inclusive. Ele morava aqui
no Brasil. Entenda que nunca fomos rígidos e burocráticos, se a ideia era boa e viável,
acolhíamos, que mal em incluir mais gente? Ele convidou esse antropólogo que
estava no Brasil por outros estudos e ele foi. Foi bom porque como antropólogo ele
faz uma análise do que estava vendo, não estava contaminado com nada, nem
conhecia o programa. Como um bom antropólogo ele analisou o encontro. Então, tinha
essa, essa coisa né? Ah, com o George Yúdice também. Tem muita gente que
fomos criando uma teia com o respaldo acadêmico, digamos, a busca pelo respaldo
acadêmico, pelo comunitário, pelo governamental, pelo artístico e sensível, pelas
amizades.
Tentei dar um passo para o o respaldo econômico alternativo, assegurando autonomia
financeira para os Pontos, via a Economia Viva. Inclusive fiz uma negociação com o
Pão de Açúcar [supermercado] para ter a gôndola do Cultura Viva. Eles estavam com
um projeto que era uma gôndola de projetos artesanais. Assim, eu propus uma
gôndola para vender produtos dos Pontos. E também com a Infraero, queria fazer um
quiosque do Cultura Viva nos aeroportos. Mas isso não vingou. Não consegui. Senão
eu teria conseguido dar o salto na autonomia financeira. Pena. Autonomia financeira
é necessária, agora, com a ideia com o Instituto Latinoamericano, a proposta do
Instituto é que ele tenha um streaming Cultura Viva com assinantes, que ele tenha
uma agência de notícias e streaming para lançamento de música. Enfim..., e mais
umas coisinhas aí, que vamos tentar criar para assegurar autonomia. Isso eu fui vendo
pela situação agora da Argentina, para sair, porque todos tem uma sazonalidade.
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TURINO, Célio; LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz Augusto F.
Cultura Viva e o transbordamento de fronteira – entrevista com Célio
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Mesmo na Colômbia, que foi muito bom o financiamento, hoje não está tendo.
Mesmo em Medellín, faz quatro anos que a prefeitura não banca os pontos de cultura
de lá. Tem que ter uma alternativa própria.
P2 – Queria até te perguntar se o marco inicial da internacionalização do Cultura Viva
tinha sido 2008 no México, quando o programa é apresentado no Congresso Ibero-
americano ou antes. Você pegou como referência 2009 em diante. Você acha que
esse congresso foi uma apresentação do programa, não teve uma repercussão
muito grande?
E Não, teve, tanto que eu fui com o objetivo de propor que o Brasil sediasse o
Congresso em função do Cultura Viva e foi aprovado assim. Tinha um problema que
na verdade eu percebi lá, como eixo do Congresso eu propus: “autonomia e
protagonismo sociocultural”. Ocorre que o pessoal do governo da Espanha… e outros,
tem um entendimento diferente de autonomia. As autonomias regionais, ali dos povos
da Catalunha, da Andaluzia, Galicia. Dai tiramos a palavra autonomia e ficou “cultura
e transformação social”. É. Além de 2009 teve esse marco de 2008, no México. Ele
foi um bom reconhecimento. Outro marco que teve também, não é marco em evento,
mas o espalhamento do conceito do programa, o catálogo do Cultura Viva, que no
início em distribuía em word, impresso em sulfite. Esse caderno que lança o Cultura
Viva, conceitos, termos, planejamento. Tem todos os conceitos iniciais, é aquele que
eu escrevi, um pouquinho antes de assumir a secretaria. Tudo: gestão compartilhada,
os conceitos empoderamento, protagonismo, autonomia. Estado Ampliado.
Desenvolvimento Proximal do Vygotsky. Tudo. Nós editamos em português, inglês e
francês, eu tenho uns poucos exemplares em casa, deve ter na secretaria, os
primeiros Pontos recebiam o caderno junto com o convênio assinado, não sei se todos
leram, mas que foi, Em 2005 houve o Ano do Brasil na França, nós levamos lá,
lembro de uma professora da Paris X-Nanterre, Idelete, também a Candace Slater, de
Berkley, nos EUA, que ajudaram muito nas reflexões. Sempre houve a preocupação
de, não só de expandir o programa, mas de expandir o conceito, a ideia.
P1 Eu queria pegar um gancho, um pouco para a gente tentar amarrar esse ciclo
desse transbordamento de fronteira que é um pouco nosso objetivo do papo de hoje.
Pensando nesse movimento que você fez, você foi então para uma outra corrente.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Você foi para o movimento internacional. Assim, como é que é a sua avaliação hoje
em relação a essa apropriação e ressignificação do conceito na América Latina?
Pensando nessa ascensão conservadora, nessa outra percepção do conceito de
diversidade que, como a gente começou no início do nosso papo, tem uma outra
chave de acionamento bem distinta do começo dos anos 2000. Enfim, como é que
você vê até a continuidade desse conceito pra fora?
E – O mundo está numa encruzilhada. Se não assumirmos de novo uma perspectiva
revolucionária, a gente vai entrar no processo de colapso de civilização muito grande.
Essa dimensão política que nunca foi escondida no Cultura Viva, agora penso que
deveria estar ainda mais explicitada, mais radicalizada (de ir à raiz dos problemas),
inclusive de buscar uma unidade estética e de movimento, não uma uniformização,
mas um movimento explicitamente revolucionário, na ética, estética, economia,
educação, engajamento. Isso que vai gerar encantamento. Penso assim. Porém,
ainda está tudo muito fragmentado. Precisamos criar uma estética de superação
desse mundo horrível, desse ambiente de enfrentamento e colapso, ao menos que
conseguisse conversar do México até a Patagônia. Quiçá do mundo. Nessa mesma
linha estética, artística, poética e política. Por isso que também começo a explicitar
mais o conceito de biopotência… O biopoder é aquela disciplinarização dos corpos, a
estruturação do Estado, dominando, não é? Ele esresultando na necropolítica e a
alternativa a isso é a potência da vida. Eu penso que os pontos de cultura ou os
movimentos que se chamarem da forma que quiserem, deveriam assumir isso com
mais, com mais força. Do contrário vão sucumbir. O pessoal ainda fica muito numa
relação de dependência, não me refiro aos recursos que devem ser transferidos do
Estado e que são muito necessários, mas à relação de subordinação.
Hoje em dia meu pensamento radicalizou. Assumo isso. Vai na fusão de Cultura Viva
com Bem Viver, daí com o zapatismo e as autonomias, as experiências no Curdistão,
com movimentos feministas revolucionários, federalismo comunitário. Não que
prescinda do Estado, ao contrário, mas tem que ser um Estado de Novo Tipo, e para
já! Tudo isso tem uma lógica, tem uma estética, tem uma conversa. Na minha cabeça,
eu penso assim.
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ROLLEMBERG, Márcia; LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz
Augusto F. Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros –
entrevista com Márcia Rollemberg. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 78-104,
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros - entrevista com
Márcia Rollemberg
Márcia Rollemberg1
Deborah Rebello Lima2
Luiz Augusto F. Rodrigues3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.63906
Cultura Viva (Living Culture) National Policy: possibilities and futures - interview with Márcia
Rollemberg
Márcia Rollemberg was Secretary of Citizenship and Cultural Diversity at the Brazilian Ministry of Culture
from October 2011 to January 2015 and again from May 2023.
Política Nacional de Cultura Viva: posibilidades y futuros - entrevista con Márcia Rollemberg
Márcia Rollemberg fue Secretaria de Ciudadanía y Diversidad Cultural del Ministerio de Cultura de
Brasil de octubre de 2011 a enero de 2015 y nuevamente desde mayo de 2023.
Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros - entrevista com
Márcia Rollemberg
Entrevista com Márcia Rollemberg (E) concedida aos pesquisadores Deborah Rebello
Lima e Luiz Augusto F. Rodrigues (P) em 22 de maio de 20244.
1 Márcia Rollemberg. Graduada em Serviço Social e em Educação Artística pela Universidade de
Brasília. Especialista em Gestão de sistemas e serviços de saúde pela Unicamp (2005). Secretária de
Cidadania e Diversidade Cultural-SCDC, do Ministério da Cultura (MinC). E-mail:
marcia.rollemberg@cultura.gov.br
2 Deborah Rebello Lima. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Professora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná, Brasil. E-
mail: deborahrebello@ufpr.br - https://orcid.org/0000-0002-4598-5347
3 Luiz Augusto Fernandes Rodrigues. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Professor Titular do Departamento de Arte da UFF e coordenador do Laboratório de Ações
Culturais -LABAC-UFF. E-mail: luizaugustorodrigues@id.uff.br - https://orcid.org/0000-0003-0583-
9641
4 Algumas referências serão complementadas entre colchetes ou explicitadas em notas de rodapé,
com a indicação NE: (nota do editor).
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Augusto F. Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros –
entrevista com Márcia Rollemberg. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 78-104,
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Márcia Rollemberg é graduada em Serviço Social (1982) e em Educação Artística
(2000) pela Universidade de Brasília e com Especialização em Gestão de Sistemas e
Serviços de Saúde pela Unicamp (2005). Foi Coordenadora-Geral de Documentação
e Informação do Ministério da Saúde (1994-2009), Diretora de Articulação e Fomento
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN (2009-2011).
Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural-SCDC, do Ministério da Cultura (MinC)
(out/2011 a jan/2015). Gerente Executiva na Fundação João Mangabeira (fev/2015 a
mai/2023). Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural-SCDC, do Ministério da
Cultura (mai/2023- atual).
P - O que da sua trajetória e formação mais contribui com a gestão da Política Nacional
de Cultura Viva - PNCV.
E Na verdade assim, a minha trajetória se iniciou na área do artesanato. Meu
primeiro emprego foi como instrutora de cerâmica, eu era assistente social, mas
tinha feito uma oficina com a Mestra Maria do Barro, e sempre gostei de arte. E meu
primeiro emprego foi como instrutora de cerâmica. E ali eu assumi uma coordenação
de seis anos com 12 oficinas de artesanato. Comecei a minha carreira, na verdade,
na cultura, trabalhando com produção de formação artesanal. Depois eu fui pra saúde.
Passei 16 anos num momento muito importante da saúde, onde a gente estava
construindo o SUS, consolidando todo esse processo. Eu trabalhava com informação,
encontrei uma área que era a área de biblioteca. A área de arquivo era separada e
a gente foi estruturando uma área que para mim foi um marco muito importante, que
a gente conseguiu fazer a primeira Coordenação-Geral de Documentação e
Informação, no âmbito dos ministérios, eram sempre coordenações sem muita
valorização na época. E a gente conseguiu. Então a gente montou o arquivo, a
biblioteca, uma editora e fizemos depois um Centro Cultural da Saúde. E começamos
a trabalhar com informação como um bem público, um direito do usuário.
Começamos a trabalhar com os direitos dos usuários, a gente tinha uma plataforma
de legislação. Construímos uma biblioteca virtual em saúde, então tínhamos todo um
processo de gestão, de conhecimento, a gente tinha a fonte primária, que era a gestão
arquivística, tínhamos as fontes secundárias, que era a biblioteca, e tínhamos a
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Augusto F. Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros –
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Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 78-104,
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capacidade de produzir e circular a informação pela editora e criar uma política de
distribuição. E ao mesmo tempo, sentíamos falta de abordar aquilo tudo, toda aquela
informação para os usuários de uma maneira mais interessante, mais instigante. E aí
começou todo um trabalho aqui no Rio com relação à descentralização da saúde, à
municipalização dos hospitais e nesses hospitais estava o Hospital Nise da Silveira, o
Instituto Nise da Silveira, na época o Centro Psiquiátrico Pedro II, estava a Colônia
Juliano Moreira e estava ausente o Pinel, e à época - eu gosto sempre de procurar
trabalho, eu acho - e eu falei “gente, cadê a cláusula documental?” Porque o
documento não se municipaliza, era um fundo federal. No máximo você transfere a
guarda e em função disso, eu vim para o Rio de Janeiro, então fazer inventário desses
acervos, e fui me envolvendo com todo esse universo.
E por coincidência, eu quando fiz Serviço Social, o meu primeiro trabalho de fim de
curso foi sobre a Nise da Silveira, eu vim no Rio, tentei entrevistá-la, ainda assisti
reunião do grupo de estudos. E ali eu já me encantava com a psicologia, com a arte,
com essa questão de juntar essas coisas e o Serviço Social dá essa possibilidade de
você estudar em vários cursos. Então foi muito interessante. Com esse trabalho
despertou um pouco a ideia de montar o Centro Cultural da Saúde, porque eu vi ali o
acervo do Bispo [do Rosário]5, o acervo da Nise, que era um acervo precioso, maior
acervo de psiquiatria do mundo, mais de 300.000 imagens. E eu comecei, pelo
Ministério, a apoiar esses acervos. O Ministério, pela primeira vez, começou a
trabalhar preservando acervos. Inclusive o acervo da primeira faculdade de Medicina,
na Bahia, onde a Nise estudou, onde o Juliano Moreira estudou, então, tudo meio se
conectava, eu falava que era o circuito das capitais Salvador, Rio de Janeiro e Brasília
me conectava, falava desse circuito das capitais.
E aí comecei a fazer esse trabalho e isso gerou o Centro Cultural da Saúde, que era
um lugar que surgiu para ser o Centro Bispo do Rosário, no início, o centro de
referência da saúde mental. Mas eu trabalhava com a biblioteca virtual, fazia
áreas temáticas. A gente estava fazendo a área de saúde mental, estava fazendo a
5NE: Arthur Bispo do Rosário (1911 – 1989) foi um artista plástico brasileiro que, por sofrer de
esquizofrenia, residiu em diversas instituições psiquiátricas por quase 50 anos.
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área de artes, e eu falei “porque só saúde mental? Vamos trabalhar a saúde como um
todo”. E fizemos o Centro Cultural da Saúde. Isso me impactou de maneira
profunda.
Fizemos uma rede de Patrimônio Cultural da Saúde e foi daí que eu fui alçada para o
IPHAN. Então fiz uma conexão de arte, cultura e saúde lá na Saúde, com informação.
Esse período foi um período muito rico, porque a gente trabalhava com os direitos dos
usuários, a gente escreveu uma carta sobre os direitos dos usuários, traduzindo esses
direitos para a sociedade. Fizemos uma página na biblioteca virtual que traduzia
aquela legislação pesada. “Quais são os direitos de uma gestante? O direito ao
prontuário”. Coisa simples. E começamos a trabalhar e levávamos isso para as
exposições. Eram mostras culturais que trabalhavam a trajetória de uma política, mas
provocavam ali, por exemplo: Memória da loucura. Trazíamos, na época, 150 anos
da psiquiatria. Hoje seriam 175 anos. Então, e a gente apresentava os acervos do
Arquivo Nacional, do IPHAN, das próprias unidades hospitalares e fazia daquilo ali
uma exposição onde a gente trazia os gestores para falar qual a política
antimanicomial que eles estavam implementando, trazer os usuários, porque na área
de saúde mental a participação dos usuários é fundamental nas oficinas e tudo. E
íamos ali colecionando o acervo que era gerado também pela sociedade, então essa
relação com a sociedade, da participação, do protagonismo, de sempre ter a
sociedade também como um ente que era produtor de conhecimento, que era uma
ativista e que cuidava do país.
Porque eu falava que aqui no Rio, quando a gente fez, por exemplo, a exposição sobre
“Saúde bate à porta”, que era sobre saúde da família, a gente recebeu depoimentos
de pessoas e de ativistas, e situações muito precarizadas, em que a sociedade era ali
a única rede de apoio daqueles daquelas comunidades. Então, foi muito importante
esse trabalho.
E na cultura. E quando eu cheguei no IPHAN, era documentação também, eram
exposições, era essa questão de circulação. Então a experiência no IPHAN foi muito
rica. Uma época em que o IPHAN viveu uma mudança de chave no sentido de pensar
que o patrimônio era o elemento de qualidade, de planejamento urbanístico, de tirar o
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patrimônio daquele lugar engessado e botar o patrimônio num conceito dinâmico de
sociedade, de bem público, enfim.
Então foi um processo rápido e dali eu fui alçada ao Ministério da Cultura pela ministra
Ana de Hollanda num desafio enorme, o Cultura Viva era um programa muito famoso,
mas com muitos problemas. E as pessoas falavam assim: “Mas você tem certeza
que você vai para esse lugar? Você já sabe tanto de processo, o tanto de problema”.
E eu falava assim: “Gente, eu acho que eu gosto carregar caixa”, porque eu
carreguei muita casa no Ministério da Saúde, no sentido de pegar coisas que
estavam ali meio como sem atividade e trazer para cima um pouco como a gente fez
essa ideia dos acervos da psiquiatria, de considerar que aqueles acervos eram
patrimônios, de tombar aquelas 52 coleções do Nise da Silveira. Então, fazer dessas
questões um ativo. E aí, nesse trabalho, eu comecei a enfrentar o processo do Cultura
Viva, e eu acho que o que eu trouxe da saúde foi um pouco o “toc” que eu tenho por
informação. Então eu fui uma pessoa que tentei, nesse processo, organizar um pouco
a informação, desenvolver esse modelo mais lógico de operar política que a gente
trazia da saúde um pouco dessa estrada, de que a política tinha uma tríade, que
era que toda política pública tinha: informação, educação, comunicação - o IEC, que
era uma teoria.
Eu trouxe alguns elementos que me ajudaram muito a pensar, na época, como
estruturar essa política pública. Tanto que a gente, na verdade, acho que a grande
conquista desse período foi, além de buscar sanear, buscar fazer pactuação com
gestores, buscar, por exemplo, a área jurídica. Porque a gente, além de gerar um
passivo no nível federal, a gente tinha um passivo também gerado pelos convênios
no nível estadual e às vezes, alguns municipais. Então, trazer os entes para discutir,
como é que a gente vai enfrentar esse passivo? Como que a gente vai simplificar esse
processo? Era grande volume, mas um valor de recurso pequeno para estar gerando
tanto problema, quando a gente comparava com a área de fomento, com a área de
Rouanet, a gente defendia um pouco a questão da anistia, vamos passar uma régua.
Enfim, enfrentando essas questões, a gente foi se debruçando também nesse
processo de quais eram os instrumentos.
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Augusto F. Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros –
entrevista com Márcia Rollemberg. PragMATIZES - Revista Latino-
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E aí veio o Ipea, já no processo de pesquisa forte. E aí eu me somei com o Frederico
Barbosa e falamos: “Vamos, vamos trabalhar isso e vamos enfrentar e vamos fazer
esse redesenho”. E aí, houve uma grande reação, porque as pessoas achavam que
a gente iria mexer nos conceitos, nas estruturas, na autonomia. E essa não era a
intenção. A intenção, na verdade, era, quando eu falei da dimensão estética, era de
redesenhar os instrumentos porque eles eram inadequados. E isso é parte da política,
que a política vai se experimentando. Então, há uma grande ideia, mas os
instrumentos não são tão avançados quanto aquela grande ideia. E você vai
evoluindo nesses instrumentos.
Eu acho que o grande resultado desse processo foi a lei, porque a lei era uma proposta
parlamentar, mas a gente tinha que dar parecer, a gente tinha que melhorar e a gente
foi ali nesse trabalho, em função de toda essa pactuação de ouvir Estado, ouvir a
sociedade, direto com a Comissão Nacional de Pontos Cultura, direto também com
esse lado muito reativo. Então eu tinha me posicionado de uma maneira muito firme,
porque eu era uma aliada, porque a princípio as pessoas: “Ah porque você tem…”
“Não, gente, se eu estou aqui, eu estou aqui para ajudar vocês, me vejam como uma
aliada.” E foi nesse processo ali que se estabeleceu uma relação de confiança muito
forte, eu acho. E que eu tive ali um crédito, uma confiança por parte da sociedade
nesse enfrentamento. E eles viam resultados, nos prêmios - muito tempo que não
eram pagos -, eu fiz pagar prêmio, só não paguei aquilo que não era possível de fato
pagar. Mas acho que foi somente um prêmio que eu não consegui pagar, fiz outros
prêmios.
Tinha aquela questão da gente: “como é que vocês vão dar conta da pessoa idosa,
da pessoa…?” Quer dizer, todo o processo da diversidade foi uma fase muito difícil,
porque a gente juntou cidadania e diversidade, e aí a cidadania que era a cultura viva,
tinha ali uma proposta. no Brasil Plural, essas propostas estavam sendo
desenhadas, mas a gente não tinha uma estrutura de política assim, muito escrita,
como um grande programa, o Brasil Plural era um programa mais na maneira do
Mamberti lidar com isso do que como uma estrutura como a Cultura Viva. E somar
essas duas áreas que a Ana de Hollanda fez com que as duas secretarias se
somassem. Então o desafio foi trabalhar no campo, que era maior que a Cultura Viva,
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ROLLEMBERG, Márcia; LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz
Augusto F. Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros –
entrevista com Márcia Rollemberg. PragMATIZES - Revista Latino-
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que eu falo que a diversidade, hoje a cultura popular tradicional é maior que o campo
dessa potica. Essa política é uma das formas de acessar os direitos dessas
comunidades e ao mesmo tempo operar o Cultura Viva como uma política macro.
Então, quando virou a lei, veio a lei, foi uma grande conquista e a lei traz elementos
muito novos. Na mesma época se discutiu MROSC6 e, por coincidência, meu marido
era senador e ele era o relator do MROSC. Então havia uma troca também íntima
entre s sobre essas possibilidades. Então fui muitas vezes chamada na
Presidência para discutir um pouco, contribuir para o MROSC e o MROSC bebia um
pouco na ideia do Cultura Viva, dessa relação mais direta, onde a sociedade é que
protagonizava o processo. Enfim, eu acho que a gente alí conseguiu dar um avanço
muito importante quando a gente criou a lei e depois… foi em julho, eu passei seis
meses fazendo a regulamentação, trazendo o TCU, trazendo áreas de fora também,
não só do Ministério, também os entes, para a gente regulamentar o que seria então
aquela daquele TCC - o Temos Compromisso Cultural. E deixei esse trabalho pronto,
infelizmente não foi publicado, quando eu saí, era a Ana Wanzeler, Marta [Suplicy] já
tinha saído, e a Ana ficou receosa de publicar porque ela era uma ministra interina.
Então foi publicado na gestão do Juca [Ferreira]. Mas esse trabalho todo foi gestado
e foram mais de 33 versões. Até a Ivana Bentes quando chegou disse: “mas 33
versões?” Porque foram 33 reuniões e a cada reunião a gente agregava e por isso a
gente deixou esse registro de 33. 33ª versão para mostrar que havia ali um processo,
como diz a minha amiga Débora, de camadas que a gente foi agregando ali, foi
afinando.
Esse foi um processo muito rico e que da saúde eu trouxe ali o direito à saúde como
direito público, amplo, da importância dos usuários, da importância também da
sociedade fazendo. A própria saúde também já abordava esse protagonismo também
na sua participação nos conselhos. Então, toda a proposta de estruturação do SUS,
dessa pactuação, dos instrumentos, dos sistemas de informação, que hoje eu sinto
muita carência na cultura. Então eu trouxe um pouco essa raiz da política pública,
dessa visão de política macro, de política universal, potica que fala de equidade, que
6 NE: MROSC - Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, aprovado no mesmo ano
que a lei Cultura Viva, ou seja a Política Nacional de Cultura Viva, em 2014.
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fala de regionalização, que trazia conceitos muito fortes. E então isso me ajudou
muito no processo com o Cultura Viva.
P - Márcia, você gere a secretaria que mais amplamente abarca a pauta das
diversidades. Nesses 20 anos de convenção, o que você destaca como desafios
distintos na promoção de políticas públicas nessa chave?
E - Olha, primeiro assim, quantas palavras e quantas pessoas… talvez melhor,
quantas pessoas, quantas comunidades cabem dentro dessa palavra?
Então, primeiro, eu acho que de que diversidade estamos falando? Que lupa é essa?
Então assim, a convenção, ela traz a uma linha que é pouco diversa da nossa
interpretação no Brasil. Ela é uma convenção que nasce das indústrias culturais, da
necessidade de circulação de itens diversos e circulação de bens culturais diversos.
E a gente tem a diversidade no Brasil, no campo desse reconhecimento das
comunidades tradicionais, das comunidades indígenas, enfim, e do segmento da
diversidade, alguns deles muito protagonistas, como a pauta LGBT, que é um
movimento que puxa outros movimentos, como a pauta de gênero, o feminismo, o
feminismo negro, enfim. O que eu acho que hoje é o maior desafio, é que a gente dê
conta dessa equidade, dessa capacidade de lidar com as especificidades. Porque, por
mais que tenha, por exemplo, um instrumento hoje ou alguns meios prêmio, bolsa,
Termo de Compromisso Cultural. A gente, cada vez mais, percebe que os
instrumentos devem também ser diversos. E eu já falava isso naquela época, há dez
anos atrás, que a gente não podia lidar com a diversidade sem a diversidade de
instrumentos. Então acho que hoje o grande desafio é a gente conseguir ter essa
abordagem mais direta com as comunidades. Porque muitas vezes esses
instrumentos que a gente acha que são instrumentos democráticos, eles também
exigem uma mediação. Então, hoje a gente pessoas que cobram para fazer o
mestre se inscrever no prêmio, entendeu? Então, o intermediário o tem sentido,
então sim, o instrumento então, em algum momento a gente tem que pensar que esse
instrumento não é o instrumento correto, ou que pelo menos ele não é o correto para
aquele tipo de perfil de comunidade. Então, assim, hoje acho que qualificar e fazer
intersetorialidade. Por quê? Porque é como a gente estava falando com relação às
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culturas indígenas, como separar saúde, alimentação, relação com a natureza... As
comunidades indígenas nos provocam muito de como lidar com elas, o território,
então, exige uma abordagem integral. E o governo não tem essa capacidade. O
Estado não tem essa capacidade. Ele chega por “portinhas", então geralmente pode
bater na porta do quilombo algumas entidades, ou pode bater nenhuma.
Eu acho a intersetorialidade, a integração das informações, eu tenho geração de
informação em vários entes, mas não cruzo essas informações, eu não potencializo,
eu não dou devolutiva dessas informações para a própria comunidade, muitas vezes.
A gente já abordou sobre a questão das pesquisas, a importância dessas devolutivas,
mas a informação pública como um todo.
Acho que o maior desafio, inclusive, para mim, hoje, está no campo das culturas
tradicionais, das culturas indígenas, porque uma reparação histórica muito
profunda e um represamento desse atendimento, da política pública chegar ali.
Então, é um Estado muito lento. Então acho que o tempo de resposta é muito lento
para a urgência do tempo de reparação dessas comunidades. Se a gente não mudar
a chave com a ideia de estar integrando as capacidades para dar uma resposta de
maior volume, a gente ainda vai levar muito mais tempo. Então, eu acho que sim. Uma
chave de mudança de lidar com essa diversidade hoje, por exemplo, no próprio
sistema MinC, eu falo que “a gente tem que integrar, essa matriz da diversidade está
em todos os lugares”.
Mas como é que a gente faz essa integração, com as outras pastas, Saúde, Ministério
do Desenvolvimento Agrário, Cidades? A gente tem feito esse trabalho nas
conferências e tal, mas a gente precisa estar junto na ação. Então, talvez o que eu
tenha visto de mais interessante, mas ainda de uma maneira ainda compartimentada,
foi, por exemplo, a Caravana de Combate à Fome, que a gente vai no território. A
gente estava em 8 a 9 ministérios. Fomos pro Arquipélago do Marajó. E todo
mundo reuniu suas informações, mas ainda é um nível compartimentado. Mas o
fato de estar lá no território fazendo uma relação direta - aquele monte de ministérios,
os assistentes, os profissionais ali atendendo as comunidades diretamente - mostra
que o efeito é diferente, que impacta diferente. O que fica de legado também, que a
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gente vai com: “Quantos CEUs [Centros Educacionais Unificados] vão ser feitos?
Quantas caixas d'água de recolhimento de água da chuva, que faz o saneamento na
escola?” “Ah, são 200?” Então, há uma coisa de materializar o serviço e a entrega do
governo, e uma relação mais direta de falar com a sociedade diretamente. Não tem
intermediário. Então, acho que assim, esses seriam os grandes saltos que a gente
teria que dar. Abrir um pouco essa taxonomia de quem são essas pessoas. Olhar isso
com a lupa um pouco maior. Então falar: “Ah, são comunidades tradicionais.” Mas
comunidades tradicionais hoje são 32. Vamos listar elas num edital, vamos dar nome
porque as pessoas querem ser vistas. Os ciganos, por exemplo, falam: “A gente não
é comunidade tradicional, a gente é cigano. A gente quer ser visto para além deste
primeiro termo.” Diversidade, comunidade tradicional, cigano… vamos abrir esse
leque. Então, essa capacidade de visibilizar esses públicos, a capacidade de integrar
as ações governamentais com respostas mais objetivas e a capacidade de ter uma
relação mais horizontal na sociedade para impactar sem intermediários, para impactar
nesse processo de maneira mais direta.
P - Você falou um pouco sobre a Lei Cultura Viva. Nos conte um pouco da sua
percepção, se você acompanhou a mobilização pela criação da lei.
E - Sim, acompanhei. Estava no ministério. E é isso. Acho que a Rede. O que eu acho
que encanta nesse processo do Cultura Viva, é porque ele fez a sociedade perceber
que - uma coisa que ela já sabia, que conectada e em rede ela é mais forte - mas ela
conectou essas capacidades do ponto de vista dessa potência mesmo, de falar:” Olha
como é que a gente sabe fazer. A gente é importante. A cultura que a gente faz aqui
é importante.” O governo ampliou seu olhar. Então, todas essas manifestações, elas
são uma referência para compor uma cultura maior que a cultura dita nacional. Então,
“olha, a gente também é importante”. Eu acho que essa ampliação desse direito de
acessar o fomento, não precisa ser um grande produtor ou um grande cineasta para
acessar o fomento. Nessa democratização do acesso ao fomento.
E aí eu acho que se conectou uma sociedade que se empoderou, e falou assim: se é
uma autonomia, empoderamento e protagonismo, eles exerceram no processo da lei
isso de maneira muito forte. Eles pressionaram, e a lei veio como uma consequência
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também dessa mobilização e como consequência da experiência tanto da
parlamentar, dos parlamentares com relação à pauta, que é um processo crescente
na cultura, embora lento, e também da gestão, no sentido de quais os instrumentos.
Então, assim, quando a gente incorporou na lei que poderia ter coletivos sem CNPJ,
poderia ser um Ponto de Cultura, aquilo ali era uma mudança de paradigma. A gente
trouxe isso a partir desse diálogo e da percepção de que era possível também ter um
arcabouço normativo que desse consistência àquela condição. O que antes não era.
“Tudo bem, não tem CNPJ, mas ele não vai poder acessar o TCC.” “Não, não vai
poder acessar um Termo de Compromisso.”
Embora isso até possa ser possível, porque eu estou sabendo que no Chile, por
exemplo, existe o termo de compromisso como um termo de compromisso para a
pessoa física. Então, nem o que a gente pensa que não é possível, pode ser possível.
Então, assim, como a gente vai ampliando esses instrumentos e aí a gente introduziu
o prêmio, que era aquela questão de reconhecer sem prestar conta, a questão da
bolsa, a circulação. E trouxemos para dentro da lei as ações estruturantes que podem
ser ampliadas, mas que elas dizem claramente dessa intersetorialidade na cultura,
artistas, conhecimentos tradicionais, cultura digital, mas ela diz também para o campo
intersetorial na política federal, que ela diz cultura e meio ambiente, ela diz cultura e
saúde, ela diz cultura e juventude, o Agente Cultura Jovem, enfim. Então, eu acho que
essa política foi uma grande conquista que somou capacidades. Mas a sociedade, foi
fundamental na aprovação dessa lei, nessa mobilização para fazer isso uma
realidade.
P - Como é gerir uma mesma política em duas temporalidades distintas? Quais os
desafios estavam postos naquele momento? Quais são percebidos agora?
E - Naquele momento, vários eram os desafios. Talvez um dos maiores desafios da
época era a questão dos recursos orçamentários, porque era uma política que se
pretendia, com a lei, ser uma política macro e o orçamento ainda era uma política
programática. Então, ali o desafio para mim é um pouco a questão do orçamento, a
própria estrutura institucional, que hoje é um desafio maior do que foi, porque antes
eu tinha uma equipe maior, tinham sistemas que funcionavam um pouquinho melhor
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e hoje a gente tem uma equipe menor do que tinha. E os sistemas foram depredados,
foram todos maculados no sentido de que a gente não tem as informações que a gente
já teve na secretaria, então houve um apagão de memória. Na época, também existia
uma carência de memória e a gente tentou recuperar essas memórias, fizemos
cadernos temáticos; cadernos da criança - então a gente buscava trazer tudo o que
tinha sido feito -, caderno de cultura indígena, consultorias que a gente estruturou para
poder organizar essas informações, e foi uma das coisas que eu consegui recuperar,
porque os servidores guardaram em algum lugar, porque também não consegui, do
ponto de vista institucional, até esse acervo que a gente gerou, arquivístico que é um
patrimônio público, ele não estava acessível no sistema de arquivo do MinC. Ele está
acessível hoje porque um grupo de servidores guardou. Então, a questão da
informação desde aquela época, ainda é uma questão. Só que hoje ainda eu acredito
que pela dimensão da política, pelo seu financiamento, ele hoje é o problema maior.
A questão dos sistemas, a questão da informação.
Talvez eu fosse mais ingênua 10 anos atrás, e hoje eu posso dizer que eu não sou
tão mais ingênua. A gente vai adquirindo experiência e vai vivendo as coisas. Ao voltar
para o ministério e ver muitas coisas que eu fiz destruídas, dá uma sensação de que
a gente não pode gerar tantas expectativas, e a gente tem que focar nas coisas
essenciais, nas coisas que ficam. Na saúde, deixei alguns legados que até hoje estão
lá, a base de saúde na legislação, a biblioteca virtual que hoje fez 25 anos, o centro
cultural está lá.
A minha sensação na cultura… eu deixei uma lei, deixei um programa e deixei, por
exemplo, 120 pontos cultura indígena que estavam em construção. Eu cheguei, mas
não acho mais os 120 que estavam lá. Não deu certo. Então assim. Como é que a
gente deixa esse legado estruturante, de uma maneira mais institucional, que a gente
busque que ele tenha uma sustentabilidade. Acho que hoje o meu foco é mais
essencial.
Então, por exemplo, eu até falo que eu fiz esse edital dos prêmios e o edital de prêmios
me deu muito trabalho, e desde o ano passado. Estou um ano já. Grande parte
desse processo fiquei dedicada a um trabalho artesanal, fazer esses prêmios, que é
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o fomento direto. É um fomento que impacta pouco. É importante, é indutor, ativa a
rede, mas se eu soubesse das condições reais, eu não teria, por exemplo, dedicado
grande parte do esforço da equipe para um edital como esse. Talvez eu teria pensar
que a estratégia deveria ser uma estratégia mais estruturada, mas quando eu cheguei,
essas coisas estavam colocadas. Eu meio que segui nessa linha. Eu acho que o
ministério carece dessa integração de dados, de investir nessa questão de sistemas.
falei para a ministra Margareth [Menezes], que para deixar um legado, a gente tem
que agregar a tecnologia, de uma maneira muito estruturada e, ao mesmo tempo,
compartilhar essas informações com a sociedade. Porque hoje eu falo que essa
informação pública, ela é da sociedade, ela não pode estar na mão do governo e
do Estado, porque eu gostaria que se tivesse o Estado que mantivesse aquilo, sem a
gente ter nenhum problema de não acessar mais aqueles dados ou aquelas
informações.
Hoje eu tenho uma visão assim, cada vez mais ampla, de que a participação da
sociedade nesse protagonismo ele transcende um pouco essa participação nas
instâncias, essa participação de ter protagonismo nas propostas, ou de fazer o fazer
cultural na sua comunidade. um nível de responsabilidade também de gestão de
informação pública, dessa política, para que a gente possa avançar e não ter tantos
retrocessos a cada troca de governo. Então, se focar no essencial, focar nos
instrumentos, qualificar os instrumentos, ampliar esses instrumentos, ultrapassar
esses instrumentos, porque sonho com uma possibilidade de ter instrumentos em que
a gente possa ter uma relação mais direta com a sociedade.
Por exemplo. Acho que um grande desafio são, por exemplo, as culturas indígenas.
Acho que o Brasil nesse campo e a própria política cultural devem muito ainda, até
porque é na cultura que esses direitos étnicos se estabelecem, se ampliam. Se há um
reconhecimento do território quilombola é por conta de uma descendência étnica, de
uma cultura. Então, como a gente faz a cultura fortalecer esses direitos do território,
os direitos à saúde? Como ela se soma como um processo de esteio, de luta deles?
Então, acho que a cultura tem muito a contribuir. E no campo das culturas indígenas,
por exemplo, a questão do acesso a essas comunidades, a questão linguística, a
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questão de não ser mais um que bate na porta, da gente se somar à saúde, se somar
à Funai, da gente não chegar de maneira isolada.
Eu acho que alguns ensinamentos da primeira etapa para essa que se fortaleceram,
não para trabalhar sem o IPHAN. Da intersetorialidade de chegar junto nas
comunidades, mas chegar com uma estrutura mais formada por caminhos que
foram acessados e respeitar esse processo. Porque muitas vezes… Como é o
fomento para cultura indígena? Tem que chegar lá e dar dinheiro? O que eles querem
realmente? Eu acho que tem que ter uma relação mais direta de como esses
instrumentos, de como esse fomento… O que é esse fomento? É recurso? O
fomento pode ser formação, pode ser circulação... Como é que a gente faz isso
acontecer de fato? Empoderar.
O que eu vejo é que, o Cultura Viva, para o campo das culturas indígenas foi muito
importante, porque eu estive no Xingu, eu vi um Pontão funcionando, o acesso à
internet com energia solar, a produção digital deles, a produção audiovisual… que
nasce muito estimulado pela Rede Cultura Viva. Então, hoje você vê a discussão, por
exemplo, das culturas indígenas no audiovisual. Isso nasce desse contato com a
política de base comunitária, mas é como eu falo: “é uma porta de acesso
democrático, mas não é a única.” E ela dali pode abrir outras portas que são muito
importantes. Então eu acho que é um pouco isso assim, de saber lidar com essas
especificidades.
No caso, por exemplo, da acessibilidade. Há dez anos atrás a gente criou um comi
no MinC que se desdobrou em resultados importantes em todos: Ibram, Ancine, a SAv
- gerou inclusive um manual de acessibilidade para a área de audiovisual. A gente fez
ali um trabalho. Eu cheguei dez anos depois, a pauta da acessibilidade cresceu muito,
A gente falava da rubrica da acessibilidade de territorialidade nos convênios nos
estados. No redesenho, a gente colocou a ideia de que toda renovação de convênio,
considerasse um por cento, no mínimo, para acessibilidade. dez anos atrás, hoje
eu vejo queuma regra para a Política Nacional Aldir Blanc e para LPG [Lei Paulo
Gustavo] também, dizendo que a acessibilidade é uma meta de todos, então cresceu
muito o campo. Mas ao mesmo tempo, o contato com essa população mesmo, de
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pessoa com deficiência, a arte, a cultura deve… ainda há uma carência muito grande
de fomento, formação… Então, assim, ao pé da letra da lei, tem o pé da realidade, o
que a gente vai fazer na prática. E crescer nesse sentido dos protocolos, de como
aplicar esse recurso da acessibilidade, entender o que é essa acessibilidade, as
nuances e as especificidades desses públicos. Porque quando você entra num
espetáculo totalmente acessível de teatro com crianças que têm deficiências, as
múltiplas… uma é cega, a outra tem questão cognitiva então vai ter uma pessoa ali
que vai ajudar ela a compreender... Você o êxtase daquela plateia e as
possibilidades que a arte tem, por exemplo, com as crianças, principalmente com as
crianças, de uma maneira geral, mas com as crianças com deficiência, porque a arte
é um campo muito mais livre desse contato, dessa possibilidade de experimentação,
de fruição. Você que ainda muito o que ser feito. Atender a essas
especificidades. Eu acho que o maior desafio hoje é abrir a lupa para entender um
pouco e se relacionar com essas especificidades.
P - Então, seguindo um pouco esses instrumentos essenciais da política, como é que
você avalia o papel das teias dos pontos de cultura?
E - As teias são o máximo, né!? A teia foi um momento muito bonito. Eu cheguei na
Teia, falei assim: “Ah quando fui fazer minha mala para vim para cá, eu trouxe
esperança. Eu trouxe o desejo de fazer junto… enfim.” E quando eu fechei minha fala
eu disse: “Sim, agora eu estou voltando com a mala cheia de compromissos... E de
muitas riquezas.”
E eu me lembro naquela época o Mestre - acho que foi o Mestre Alcides - e aquela
muita confusão e eu muito apreensiva, e Mestre Alcides falou assim - e eu fazendo o
processo, ainda ali terminando, tinha concluído o redesenho, mas ainda assim o
processo de redesenho é um processo permanente: “Eu sei Márcia assim, você
precisa fazer que nem aqueles quadros que a gente precisa andar dois passos pra
trás para ver a pintura melhor…” Eu disse: “Mais ou menos isso. Precisa botar primeiro
a máscara em você para depois botar no outro, você também…” Quer dizer, então
assim, beber ali na fonte daqueles saberes dos mestres, daquela forma de lidar com
a vida, de compreender a vida, foi muito rica. Os ciganos, as culturas indígena, a pauta
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LGBT. A teia é um grande momento de encontro com os Brasis, os diversos Brasis. E
é muito mágico.
O que é importante na teia é que ela seja um processo, ela não seja um evento. Então
esse é o grande desafio para a próxima teia. Teve uma teia - eu ainda não estava no
programa - que eles falam muito. Eu não sei se foi a segunda teia, não sei qual é a
teia em que eles falam que foi a sociedade que fez e que eles se empoderam, que fez
a economia circular, porque eles investiram na própria rede... Eu acho que o grande
desafio é a gente fazer esse processo da teia ser um processo formativo, um processo
que potencializa a economia circular, porque a gente vai contratar um monte de
serviços. E esses serviços, porque vamos lá para o mercado? A gente não pode estar
resolvendo isso no âmbito da rede, potencializando as capacidades que estão
dadas, essa economia solidária, enfim, uma economia criativa? Mas que o
empreendedorismo forte também.
Então acho que é isso sim. E esse é o desafio fazer desse processo dos 20 anos
retomar e fazer, comemorar e fazer a teia como uma teia mesmo que a gente
tecendo gradativamente para ter aquele momento que ela está dada e a gente pode
circular nela, que ela está ali desenhada. É um grande encontro, e acho que a Cultura
Viva, ela é uma política que traz o DNA da participação. Então, a Comissão Nacional
de Pontos de Cultura estaria como a Comissão Nacional de Políticas Culturais, a
Comissão Nacional e uma instância de participação nessa política como o Conselho
é uma instância maior, ao mesmo tempo, ela se desdobra para o entes, então ela fala:
“ah tem que ter as comissões estaduais e as comissões municipais”, ao mesmo tempo
ela fala que a gestão compartilhada acontece e que vão ter que ter as teias e que são
nas teias que existem os fóruns e os fóruns elegem essas comissões. Então ela meio
desenha todo um processo político de participação que se espelha também no
sistema nacional e é muito rico porque ela está apropriada como um direito já. E a
sociedade com todo esse processo foi colocada pelo professor Canclini. A questão
dos pontos de cultura e a importância dos pontos de cultura, por exemplo, na
aprovação da Aldir Blanc, da LPG, né? Então, esse empoderamento que se somou
de maneira forte de poder ir e reivindicar uma lei, acho que o Cultura Viva fez
perceber de maneira forte esses direitos culturais que são recentes no âmbito da
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sociedade. Então, assim ele faz Abrir: “Olha só, a cultura também é um direito”,
materializado, porque não é só ser colocado na Constituição. Ele deu essa realidade
de que, de fato, a cultura é um direito de todos.
P - Seguindo essa questão da participação, das relações dialógicas como é que você
vislumbra o diálogo com a sociedade civil na PNCV, quais novos rumos, estruturas,
instrumentos podem ser aprimorados ou fortalecidos para o mundo da política?
E - Eu acho que essa resposta é aquela que pode ser pensada na questão da
estratégia dos pontões. Se antes a gente fez um redesenho, chamando ali o IPEA
[Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas], a própria comissão. Hoje a gente está
implementando uma política com financiamento e trazendo essa rede de pontões para
serem os parceiros nessa gestação, nesse momento. Então, a estratégia de trazer a
participação social, a gestão compartilhada. Se cada pontão de cultura tem ali uma
comissão com cinco pontos7, são 42, eu tenho 210 pontos de cultura arrolados nessa
estratégia diretamente. Cada pontão está ali com uma missão de fazer de maneira
articulada numa mesma partitura, esse mapeamento, essa ativação da rede e, ao
mesmo tempo, formar Agentes [Agentes Cultura Viva] nesse processo. Então, cada
pontão territorial tem dez agentes. Cada pontão temático-identitário tem 20. Então são
570 agentes que a gente pode formar nesse processo. Para a gente escalar algumas
questões a gente tem que “embrionar”. Então a gente recuou um pouco no sentido
de conceder bolsas na PNAB nesse momento, focar nos pontos, na ideia de fomentar
os pontos por prêmio ou por termo de compromisso. Fazer dos editais processo de
certificadores, mapeadores e certificadores, agregando um pouco a ideia de que o
edital pode somar a outros campos que não só o fomento direto.
E ao mesmo tempo fazendo isso em rede e somando também a capacidade das
universidades, do Consórcio8 de fazer isso conosco, e de algumas outras
universidades que vem fazendo na estratégia da premiação, como a Unifesp e a
7 NE: A entrevistada está se referindo ao demandado pelo Edital MinC 09/2023 que selecionou 42
Pontões de Cultura, sendo que cada um atuando com um Comitê Gestor envolvendo ao menos
outros cinco Pontos/Pontões.
8 NE: Márcia Rollemberg está se referindo ao Consórcio Universitário Cultura Viva, parceria que
envolve o MinC e as universidades federais Fluminense, do Paraná e da Bahia.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
UFRJ (que é uma grande parceira, inclusive na questão da acessibilidade). Então
assim… eu acho que a estratégia dessa participação se coloca nesse sentido, no
sentido da gente ter reativado a Comissão, a relação com a Comissão Nacional de
Pontos de Cultura, que a própria Comissão interrompeu essa relação com o governo
em 2016, quando teve o afastamento da Dilma, o golpe, e eles resolveram não
fazer essa relação. Então a gente retoma a participação social nessa relação de
gestão compartilhada, de ter reuniões sistemáticas com a comissão. Eles participam,
por exemplo, de toda a teia, dos 20 anos, todo processo de revisão... Então a gente
traz... o próprio Consórcio fez reunião direto para mostrar a metodologia. Vamos ter
um seminário9. Então eu acho que a estratégia da participação, ela é, está sendo
materializada agora, né? Como é que a gente reproduz? Como é que a gente faz
tecnologias, faz metodologias reaplicáveis? Está claro que a gente respeita essas
especificidades, né? Eu falo assim: pode ser uma jabuticaba, mas tem que ter ali uma
questão comum.
Então assim, a participação social... a gente pensar uma política que tem participação
social, que ela se estrutura, e que a estratégia para essa retomada envolvendo esses
pontões ela traz esse princípio de uma maneira muito forte. É pensar o conceito do
Agente, pensar como é a formação desse Agente, as suas atribuições, se é um
agente, se são vários... O agente que vai lidar com a comunidade indígena, das
culturas indígenas, o agente que vai lidar com as comunidades tradicionais, o agente
da acessibilidade. Mas o que é comum nessa prática, é um agente comunitário de
cultura? que tem esse lócus? E se for um gente que quer ser um aprendiz do mestre?
Então, fazer isso junto com os pontões para tentar pensar essas possibilidades, para
trazer as experiências que cada pontão vai somar nesse processo. E esse
reconhecimento dessa geração de conhecimento, dessa geração de metodologias a
partir da sociedade ou em conjunto com a sociedade.
Na época da saúde a gente tinha… A gente fez uma área temática dentro da biblioteca
virtual sobre participação social, porque eu defendia que no processo de participação
9 NE: Referência ao Encontro Nacional Cultura Viva 20 anos, a se realizar em Salvador de 3 a 6 de
julho de 2024.
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ROLLEMBERG, Márcia; LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz
Augusto F. Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros –
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social havia uma geração de conhecimento muito importante, que não era registrado.
E eu acho que assim, esse processo também, ao fazer essa estratégia com os
pontões, a gente busca também essa, essa capacidade de estar registrando esse
conhecimento e de fazer desse conhecimento um ativo de política pública, nesse
sentido, eu acho fundamental e acho que o Cultura Viva é inspirador para muitas
políticas nesse país com relação a essa participação.
P - Com sua ampla experiência na gestão da PNCV, você vivenciou boa parte dos
esforços iniciais de internacionalização dessa temática, dessa política. Nos conte um
pouco a sua avaliação sobre o IberCultura Viva e as suas expectativas em relação ao
programa para os próximos anos.
E - Também é… dez anos depois. O IberCultura Viva fazendo dez anos também, e a
primeira reunião foi na última Teia, em 2014. O que eu vi foi uma ampliação, uma
estruturação muito bacana e muito importante do programa Cultura Viva. Então eu
chego com algumas experiências muito consolidadas10, uma delas é o programa de
formação da Flacso [Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais], com as bolsas
de pós-graduação. E vejo também nas reuniões, o despertar dessa cultura de base
comunitária nos países, como ela vem se implementando, alguns países com um
avanço muito importante, como a Argentina, recentemente o Chile começou a
implementar, na verdade, essa conexão desses movimentos como um movimento
latino-americano que transcende a política. Então, esse encantamento do encontro e
da capacidade de que juntos somos mais fortes, assim, virou mesmo uma cultura
muito forte e que hoje você tem aí uma conexão dos movimentos sociais na América
Latina, trazendo a questão da afro-latinidade, a questão dessa conformação histórica
comum. O Brasil é um país muito afastado nessa visão de ser latino, pertencer a uma
mesma região. Ao mesmo tempo que a gente inspira outros países, esses outros
países inspiram muito o Brasil. É isso que eu sinto nesse momento. São dez anos e,
por exemplo, a gente está agora convidando, por exemplo, a Flacso - que já é dessa
10 NE: O Brasil foi convidado para voltar a presidir o IberCultura Viva em 2024, e Márcia Rollemberg
assume, então, a presidência.
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rede colaborativa - para trazer esses alunos como uma rede, essa coleção gerada de
conhecimento e a gente agora avaliando essas iniciativas da própria IberCultura Viva.
Então, também, - se pra gente é um momento de memória, reflexão, celebração e
futuro, pensar o futuro - também no IberCultura a gente vai seguir essa mesma trilha.
Então a gente está propondo o estudo comparado entre os países, para a gente saber
como cada país esfazendo a gestão dessa potica. Fortalecer o intercâmbio desses
pontos e manter essa mobilidade, de eles poderem estar participando desses
congressos, então os editais de mobilidade - para manter esses editais. E alguns que
são novos, que trabalham com a questão dos sabores, da cultura alimentar, fortalecer
algumas iniciativas também que nos somam como culturas comuns, de traços
comuns. Então é um momento muito importante da gente fortalecer e ao mesmo
tempo... O que foi interessante é que o Brasil ficou muito ausente ou participando de
maneira mais branda nesses últimos seis anos e o IberCultura Viva foi uma das formas
desses movimentos se manterem ativos, de acessarem editais, de poderem circular,
de se fortalecer. Então, um pouco essa sensação de que o programa as mãos e
não deixa ninguém para trás, agora é o momento da gente dar uma mão para
Argentina. Então, acho que o programa acaba superando suas próprias expectativas
em termos de ser só um programa de cooperação, mas de ser também um programa
de resistência, de resistência política, de que a gente está avançando, e como região
a gente tem que se fortalecer e estar adensando essas políticas de direitos, as
políticas de reconhecimento dessa diversidade, e principalmente, uma política que nos
fortaleça nas nossas identidades, que eu acho que a Cultura Viva faz isso, provoca a
pensar as nossas identidades.
P - E qual é a importância do Brasil retomar a presidência nesse contexto?
E - Muito trabalho, é muito trabalho [risos]. Inclusive, quando vieram fazer esse
convite, eu falei assim: “Eu aceito se a gente trabalhar em colegiado, vai ser uma
gestão diferente…”, porque a gente está trabalhando muito no Brasil, a gente tem
uma missão muito grande com o financiamento da Aldir Blanc, com a vinculação e o
piso estabelecido para a Cultura Viva ser essa política de base comunitária, então há
um trabalho muito forte, e reconstruir é mais difícil que construir, então, eu coloquei
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isso como uma pauta, assim, mas ao mesmo tempo eles trazem uma capacidade
também do programa IberCultura Viva se somar ao nosso esforço e agregar e dar
visibilidade para que a gente também possa avançar nessas conquistas no Brasil e
inspirar também os outros países nesse processo. É um desafio muito grande, mas
eu acho que estamos trabalhando de uma maneira mais colaborativa. Então a ideia
de estar envolvendo os países, com, por exemplo, esse panorama de cada país,
lançar uma publicação, provocar que os editais tenham uma participação também
desses países nessa avaliação, a coleção do Cultura Viva... E como é que a gente se
soma com essa avaliação? Como é que a gente avalia as iniciativas? Tem um
processo muito importante na cultura de avaliação dos resultados. Como é que o
programa pode somar nisso? Como é um programa que tem um fundo, como a gente
pode aplicar esse fundo para trazer elementos e instrumentos essenciais nesse
processo de progresso da política? Então, acho que o IberCultura Viva é muito
importante e o Brasil estar assumindo a presidência, nos reposiciona para a gente
estar fortalecendo a cultura de base comunitária na região.
P - Como que você percebe as potencialidades da PNCV em relação ao sistema MinC.
O que na gestão da política pode ser aprimorado, para que ela seja percebida de uma
forma transversal?
E - Essa pergunta é uma pergunta muito importante, e um grande desafio também de
convencimento. Eu falo que o Cultura Viva não é uma política de uma secretaria, ela
é uma política de um sistema. E como cada partícipe dessa gestão federal, “conversa”
com com essa política e interage com essa política. atrás a gente já interagia, com
o IPHAN, porque a gente entendia que todo o plano de salvaguarda, poderia… os
Pontões de salvaguarda. A gente começou a discutir com a [Fundação] Palmares,
naquela época, não avançamos muito, mas avançamos um pouco com os Pontos de
Memória, os Pontos de Leitura, havia uma convergência, os cineclubes na SAv
[Secretaria do Audiovisual, do MinC]. Então, quando eu voltei e a gente buscou fazer
essa “costura” novamente, inicial, então nós estamos aqui costurando. Essa costura
começa pelo Cadastro [Nacional de Pontos e Pontões de Cultura], então eu trago
nesse primeiro momento… a gente primeiro retoma a Comissão de certificação com
a participação social. Ativamos, porque tinham sido desativadas pelo governo
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Bolsonaro as instâncias de participação social, então a comissão que fazia
certificação do cadastro foi interrompida, ficou ali represada e depois os próprios
servidores fizeram um mutirão para botar isso em dia, porque veio a LPG, precisava
do cadastro, foi um primeiro esforço.
Agora a gente ativou a Comissão de Gestão do cadastro, que é uma outra instância,
que discute o instrumento do cadastro como o principal documento da política. A
política tem três instrumentos: o cadastro, o Pontão e o Ponto. Na verdade, o Ponto
e o Pontão são conceitos, o instrumento maior é o cadastro. Então a gente ativou esse
comitê gestor do cadastro e aí a gente tem participação agora da SAv - que não tem
uma base, mas os cineclubes -, do Ibram, que tem uma base maior e ampliada com
500 pontos de memória, uma parte deles são pontos de cultura, então, como é que a
gente faz isso de maneira mais organizada… Os pontos de leitura também não tem
uma base, então a base que a gente tem hoje incorporam vários pontos de leitura,
então a área da SEFLI (Secretaria de Formação, Livro e Leitura, do MinC] também
está aqui participando, a Palmares também com a sua certificação de quilombos. E
hoje a gente descobre que no processo de certificação, cada território desse tem que
ter uma entidade formal, então não teríamos muita dificuldade de adesão por parte
dessas entidades, é um processo de mais comunicação, de formação, acho que eu
falei de todos, enfim. Então estamos costurando nesse momento.
Agora, qual vai ser a segunda etapa? Fazer as pessoas do MinC, esse sistema MinC,
ele vai para um grupo de trabalho, para reuniões bilaterais. A gente vai colocar uma
nova composição desse comitê gestor, trazendo o Fórum de Estados e o Fórum de
Municípios e de Capitais - são três fóruns, eu acho - para que a gente possa fazer
essa concertação com relação ao cadastro intrafederativo, como é que ele vai fazer
essa questão. E para dentro da casa, a gente vai começar a trabalhar essas
questões.
Os Pontões, todos eles falam em alguma medida, menos com a Funarte, porque a
gente não teve o Residências Artísticas. Então a Funarte também é parte desse
processo, e nem tivemos a Economia Criativa, proponente, então, tem duas áreas que
a gente precisa ainda trabalhar. Mas, por exemplo, a gente tem patrimônio e memória,
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temos dois pontões, cultura de matriz africana, teremos dois pontões. Então:
Palmares, Ibram e IPHAN, embora eu veja IPHAN e o Ibram em outras áreas também.
A gente tem um, por exemplo, que fala com acessibilidade… essa matriz dos pontões,
ela já trabalha também essa integração do sistema federal. Trazer a Palmares para o
Pontão de Cultura de matriz africana, discutir como é que a gente faz para que no
processo de certificação de quilombo no processo da Palmares a gente possa
pensar que essa adesão já seja feita ali junto. Eu vou ter outro processo de avaliação
daquela comunidade se o próprio Ministério já fez uma avaliação? Então como é uma
política por adesão, como é que a gente cruza esses caminhos?
No caso da memória, por exemplo, o Ibram, como é que a gente integra esses
cadastros? Um ponto pode ser um ponto de memória, um ponto de cultura e um ponto
de leitura? Pode ter três Certificações? Pode. Nada impede. E pode até ser um
quilombo, né? Como é que a gente agrega isso? O que é importante? O que é
importante é que a gente pense que o Cadastro Nacional de Pontos e Pontões de
Cultura seja uma base qualificada, certificada e que seja porta de acesso para todos
esses grupos da diversidade serem reconhecidos e fomentados. Então falo que é o
nosso CadÚnico, é o nosso cadastro maior, para mim é a grande base. Essa
integração no MinC, para mim, ela se normativamente, porque muitas vezes a
gente pode estar integrando essas iniciativas na norma, que a tecnologia ainda não
nos permite, no segundo momento, pela tecnologia, e que a gente possa desenvolver
um sistema que seja um sistema, não um repositório. Porque eu teria que ter
capacidade de gerenciamento de dados por esses entes que estão aqui no vel
federal e depois pelos entes estaduais e municipais. Então, é uma concertação. Eu
acho que esse é o coração de funcionamento dessa política, no sentido de que é ali
que vai circular o sangue e vai bombar para cima e para baixo, mas vai passar pelo
mesmo espaço, mas ele pode circular o corpo todo. Então assim, é uma analogia. É
fundamental o investimento na tecnologia e essa discussão com relação a esses
procedimentos. Por exemplo, hoje, para você entrar - eu fui ver lá, estudando um
pouco agora, as fichas, os dados - o nível de dados que são ali pedidos, eles são
muito mais uma pesquisa do que um primeiro momento. E ao mesmo tempo, eu não
tenho a possibilidade hoje no cadastro, que seria uma plataforma - a plataforma que
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todo mundo - mas na verdade ela é um repositório ainda, não é um sistema. Porque
eu não tenho a capacidade de atualizar e nem ter agenda, não ter uma interação ativa
com o ponto. Ideal que eu pudesse, como sociedade, entrar ali, saber: “Quais são os
pontos de cultura que estão na minha cidade? O que eles estão fazendo? Qual é a
agenda?” “Ah, se eu quisesse ver, posso ver o povo funcionando online, posso ter ali
o equipamento e olha… eu posso ver a atividade ali funcionando online”.
E digo mais. Digo que o grande salto também, nessa gestão participativa, é quando a
gente puder ter essa certificação, essa validação envolvendo a comunidade, porque
aquela vai ser mais legítima. Então eu provoco muita, a gestão é compartilhada
com o ponto e o ponto tem que ter gestão compartilhada com a comunidade, para a
gente poder fechar esse ciclo com a participação social ampla e mais plena. “Gerando
elites dentro das comunidades, não é o caso”. Então é também esse campo aberto e
o cadastro para mim teria que ser essa grande plataforma de informação e de
interação. Então eu como usuário de um Ponto, poderia chegar ali e falar assim: “olha
a atividade aqui está muito boa aconteceu isso” - ou eu poderia ir ali e fazer uma
denúncia, porque não está funcionando, o ponto existe e não existe.
Quem é que vai dar essa validação? O Brasil? A gente tem essa capacidade de
fiscalizar tudo? Não! Então é o envolvimento da sociedade, da participação social,
essa apropriação dos cidadãos, que aquilo é um direito, que aquele tem um recurso
público e que ele também… compete a ele olhar e acompanhar e participar, e aquele
espaço é um espaço democrático que ele também tem direito.
P - Que lugar a PNCV pode ter dentro de uma agenda contemporânea de políticas
culturais que amalgame a defesa da diversidade, do reconhecimento, da participação
social, mas também da redistribuição de recursos e meios de produção. Ou seja, uma
pauta elencada por alguns teóricos de que a justiça social ela tem que se dar por um
amalgamento de uma pauta identitária, sim, mas também um reconhecimento da
redistribuição de recurso e distribuição de renda, ou seja, não pode se largar uma
pauta em prol da outra, isso às vezes tende a acontecer na pauta identitária um certo
abafamento de uma disputa por melhorias de qualidade de vida etc. Como é que a
PNCV pode atuar nesse duplo?
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E - Um dia desses eu escutei uma ponteira dizendo que várias entidades sociais
estavam virando entidades culturais para acessar o fomento cultural, e que isso era
um problema porque a área social tinha que acessar a política social, e que a gente
estava permitindo que as entidades utilizassem o recurso da cultura.
Aquilo me instigou porque, olha como é que é delicado essa fronteira. Eu acho assim,
que o Cultura Viva ele faz uma questão importante porque ele diz que não é o
direito a consumir a cultura, consumir como um bem, ah, o acesso ao teatro... Ela
coloca que é importante a gente democratizar os meios de fazer política. O grande
salto, a grande mudança de chave que a Cultura Viva faz é que “eu não estou
democratizando o acesso”, eu estou fazendo uma democracia cultural no sentido de
que o acesso aos meios de se fazer a cultura estão mais amplos, estão sendo
desconcentrados, isso é um viés para entender que a gente está trabalhando
com a ideia de estar diminuindo a desigualdade de acesso aos meios de produção.
Quando a gente fomenta essas comunidades, a gente gera ali uma cadeia de
resultados, o fomento que você coloca ali, ele vai, de certa forma, mover a economia
daquele lugar e, muitas vezes, esses grupos participam nessa economia, então eles
são pontos de resistência dessa questão da desigualdade. Eles ali são a primeira
escola de dança, eles são o primeiro contato com a música, com a celebração do
Reisado, do Maracatu. Ali traz não a prática e a formação artística no seu sentido
de ampliar as antenas da percepção, da sensibilidade, mas também da
ancestralidade, das memórias, da noção de pertencimento…
Então eu falo que eles são valores visíveis e valores invisíveis, que essa economia
criativa vai ter que mapear e entender. Porque a gente, muitas vezes, o simbólico, o
campo, ele não tem ali uma maneira da gente mensurar de uma maneira tão
matemática, econômica, e são impactos profundos. Eu acho que o Cultura Viva ele é
uma política que fala diretamente com o campo da desigualdade, porque ele faz com
que os que têm menos acesso acessem, então ele de certa forma ele fala
diretamente. Mas mais que isso, ele fala para os grupos que muitas vezes se veem
empobrecidos pelas questões econômicas, que eles também são ricos, no sentido de
que os ativos simbólicos, de que a maneira de viver e que tudo aquilo que está
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Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 78-104,
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
relacionado em torno daquele campo, ele tem uma importância e uma relevância
muito grande de sobrevivência, de vida plena, de felicidade, enfim...
Até o professor rio Brasil colocando essas questões do FIB [Felicidade Interna
Bruta] que a gente tem que medir pelo índice de felicidade, não pelo índice de
produção - PIB. Então acho que ele muda os paradigmas pra gente olhar um pouco
esse campo e ele fala diretamente com a desigualdade social.
Então, por mais que você tenha aqui uma demanda, às vezes, que o social está se
imbricando com a cultura, é importante também que essas entidades abram esses
campos culturais para perceber que o social também está muito imbricado com a
cultura e eu acho esse encontro muito importante, sem desmerecer o pleito, de que
aqueles que fazem mais cultura do que… acham que fazem menos social, está claro
que você tem essa questão específica.
Mas é muito importante que a gente possa manter essa porta aberta, que a gente
não deixe que essa política seja uma política que faça... Por exemplo, no início desse
processo, quando eu cheguei - “os editais tem que ser para os pontos, que são
pontos”. Nunca. A gente tem que ter sempre uma visão aberta, ampla e democrática.
A gente tem que falar para quem é ponto e para quem não é ponto. E essa porta
sempre tem que estar aberta. Isso é que é o princípio da isonomia. E a gente tem que
garantir isso. Então, evitar também que virem corporações. Então a gente tem que
abrir, está sempre aberto e entender que é uma livre modelagem. Eu acho que isso é
muito bacana também. Não uma receita para ser ponto de cultura, uma
finalidade, há um compromisso de cidadania, e isso é o mais relevante.
P - Algum ponto a mais que você quer explorar?
E - Eu acho que a busca de me alimentar com Esperança e a minha esperança
está nas pessoas, nesse Brasil, nessa sociedade, nesses mestres, nas mestras, nos
jovens - que inovam no hip hop... Eu acho que a capacidade de inovação da
sociedade, muitas vezes, a partir da sua própria tradição, a inovação e ver a tradição
muitas vezes como inovação no mundo de onde a gente abriu mão, de tantos modos
de viver, de tantas tecnologias ditas antigas que hoje são muito atuais, que não usam
energia, que enfim, que são mais sustentáveis. Então, acho que é esse aprendizado.
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ROLLEMBERG, Márcia; LIMA, Deborah Rebello; RODRIGUES, Luiz
Augusto F. Política Nacional de Cultura Viva: possibilidades e futuros –
entrevista com Márcia Rollemberg. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 78-104,
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Eu acho que é Cultura Viva, é um grande aprendizado e esse país nos mostra muitas
vertentes ainda pouco exploradas. É como se a gente tivesse numa mina de ouro e
não soubesse que aquilo era ouro. Então acho que é esse momento do Cultura Viva,
o momento de olhar as nossas pedras preciosas, olhar os nossos ouros vivos, as
nossas mulheres, nossos homens, nossas crianças, nossos jovens, toda comunidade
que é ativa, que acredita nesse Brasil e de fazer a nossa identidade cada vez mais
forte, de ter um país que não tenha medo de ser o que é. O Brasil não pode ter medo
de ser o que ele é.
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
O Programa Arte, Cultura e Cidadania - Cultura Viva: diálogos no tempo
Lia Calabre1
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.60952
Resumo: No presente artigo pretendemos revisitar o Cultura Viva a partir de alguns aspectos
considerados como os diferenciais do Programa, que permitiram a interação e a integração de
diferentes agentes e atores culturais ao longo do território brasileiro - em geral de territórios e
segmentos pouco atendidos pelo Estado. As redes e teias que foram sendo tecidas nos encontros e
desencontros do programa nessas quase duas décadas de existência do mesmo, contribuíram muito
para uma articulação potente que cumpriu um papel fundamental no momento da emergência sanitária,
do Covid 19.
Palavras-chave: Cultura Viva; políticas públicas de cultura; participação social; pontos de cultura.
El Programa Arte, Cultura y Ciudadanía – Cultura Viva: diálogos en el tempo
Resumen: En este artículo pretendendemos revisitar el Programa Cultura Viva a partir de algunos
aspectos considerados diferenciales del mismo. Estos permitieron la interaccíon y la integración de
diferentes agentes y actores culturales en todo el território brasileno, generalmente en territórios y
segmentos poco atendidos por el Estado. Las redes que se tejieron en los encuentros del programa a
lo largo de casi dos década de su existência contribuyeron, em gran medida, a una importante
articulación que jugó un papel fundamental en el momento de la Covid 19.
Palabras clave: Cultura Viva; políticas culturales; participación social; puntos de cultura.
The Program Art, Culture, and Citizenship - Cultura Viva: Dialogues Across Time
Abstract: In this article, we intend to revisit Cultura Viva from some aspects considered as the
differentiators of the Program, which allowed the interaction and integration of different cultural agents
and actors throughout the Brazilian territory—generally from areas and segments underserved by the
State. The networks and webs that have been woven in the encounters and disconnections of the
program over almost two decades of its existence have greatly contributed to a powerful articulation that
played a fundamental role during the sanitary emergency of Covid-19.
Keywords: Cultura Viva; cultural public policies; social participation; cultural points.
1 Doutora em história. Docente junto às pós-graduações PPCult-UFF; PPGMA-FCRB, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: liacalabre@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-7586-7210
Recebido em 15/12/2023, aceito para publicação em 28/03/2024.
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
O Programa Arte, Cultura e Cidadania - Cultura Viva: diálogos no tempo
O Programa Arte, Cultura e
Cidadania Cultura Viva, está quase
completando 20 anos e podemos dizer
que sem perder seu potencial inovador.
O programa manteve sua maior
riqueza, o principal diferenciador, que
é, exatamente, o de chegar a
segmentos da população, que ainda
hoje, o acessam recursos públicos
ou, quando o fazem, é sempre de forma
esporádica. O desenho do Programa,
hoje uma Política, ainda se mantém
causando incômodos e estranhezas
aos órgãos de controle sobre o uso dos
recursos públicos (nos diversos veis
de governo), assim como, em analistas
de políticas públicas que esperam
encontrar ações padronizadas e
homogêneas, quando se trata de
implementação de políticas públicas.
No presente artigo pretendemos
revisitar o Cultura Viva a partir de
alguns desses diferenciais do
Programa, que permitiram a interação e
a integração de diferentes agentes e
atores culturais, ao longo do território
brasileiro, em geral oriundos de
territórios e segmentos pouco
atendidos pelo Estado. Entre esses
diferenciais está também o fato de que
o Cultura Viva chegou a extrapolar as
fronteiras do país, em um processo de
contaminação positiva, dando origem a
uma articulação maior que se
materializa no Programa IberCultura
Viva. Tendo em vista as próprias
limitações de um artigo, esse olhar,
aqui proposto, pretende manter um
sintético diálogo com as
especificidades dos tempos
transcorridos, nesses quase vinte anos,
sem a pretensão de esgotar tais
questões. As redes e teias que foram
sendo tecidas nos encontros e
desencontros do programa nessas
quase duas décadas - não podemos
esquecer dos momentos de crise -,
contribuíram muito para uma
articulação potente que cumpriu um
papel fundamental no momento da
emergência sanitária, do Covid 19.
No relatório de avaliação do
Programa, produzido pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
107
CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
em 2009 2, logo na página 7, na parte
da apresentação da pesquisa, a
pergunta sobre “o que é fazer política
cultural”. Segundo os autores do
relatório, essa não é uma pergunta
retórica, ao contrário, é necessária para
que se possa estabelecer as
especificidades do Programa Cultura
Viva (como é conhecido) e por
conseguinte produzir uma avaliação
adequada.
Partindo dessa provocação
presente no relatório do IPEA, para
começar o diálogo aqui proposto, vou
recorrer a algumas reflexões de Victor
Vich, professor, pesquisador e gestor
peruano. Em sua obra Desculturizar a
Cultura que tem como subtítulo “A
gestão cultural como forma de ação
política”, Vich nos traz uma série de
elementos que podem contribuir para a
elaboração de uma resposta mais
qualificada para a pergunta acima
colocada. Isso sem deixar de remarcar
que estamos trazendo reflexões
publicadas em 2014, para responder a
uma pergunta elaborada em 2009 que,
mesmo tendo sido feita mais de uma
década, não cessou de ser repetida por
2 A pesquisa, que gerou a avaliação contou,
além da equipe do IPEA, com uma equipe da
Fundação Joaquim Nabuco e com alguns
aqueles que pensam as políticas
públicas em moldes padronizados e
homogêneos, afirmando que estas
devem gerar resultados claramente
quantificáveis, em um modelo avaliativo
pouco adequado ao campo da cultura.
Segundo o Víctor Vich: “En primera
instancia, construir políticas culturais
implica constatar la falta de fomento, la
desigualdade en el acceso y la
necesidad de generar mecanismos que
permitan un mayor intecambio de
capitales simbólicos”. (VICH, 2014, p.
14) Seguindo com sua análise, o autor
chama a atenção de que
contemporaneamente, as experiências
que vieram sendo construídas na
América Latina, geraram a percepção
de que uma efetiva necessidade de
se entender e de praticar as políticas
culturais “como dispositivos para
activar nuevos procesos sociales”
(Idem, p. 16)
Não podemos deixar de
assinalar que nessa terceira década do
século XXI, temos vivenciado inúmeros
ataques a liberdade, aos direitos, e a
democracia em si mesma, no caso do
Brasil vivemos uma verdadeira “guerra
professores, pesquisadores e gestores, entre
eles eu mesma.
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
cultural”, onde a disputa pela conquista
dos imaginários sociais pela extrema
direita foi - e continua - intensa.
Retornando a Vich, buscando
construir uma resposta para a questão:
“o que é fazer política cultural?”, dentro
dos princípios democráticos, de
garantia de direitos, temos a afirmativa
de que:
Una política cultural
verdadeiramente democrática
debe proponerse abrir espacios
para que las identidades excluídas
accedan al poder de
representarse a mismas y de
significar su própria condición
política participando como
verdadeiros actores en la esfera
pública. Es decir, las políticas
culturales deben intentar hacer
más visibles aquellas estructuras
de poder que han impedido que
muchos grupos humanos puedan
participar y tomar decisiones en la
vida pública. (VICH, 2014, p. 89)
Quando, em final dos anos 1980,
Néstor García Canclini forjou o conceito
(ou noção como preferem alguns) de
políticas culturais, um dos princípios
dessa política deveria ser a construção
integrada, com a participação do poder
público e da sociedade civil, em um
caminho de mão dupla, com o objetivo
de responder, de satisfazer as
3 Isso porque a relação efetiva entre
representantes e representados, quando se
trata das camadas populares e periféricas fica,
na maioria das vezes, restrita ao momento da
necessidades dessa população.
Entretanto em uma sociedade na qual
as estruturas hierárquicas, oriundas
dos tempos coloniais, mantiveram-se
ativas, onde uma série de identidades
permaneceram subalternizadas, como
participar das decisões da vida pública?
Como contribuir na elaboração de
políticas públicas de cultura?
Historicamente, diversas camadas da
população se mantiveram por longo
tempo despossuídas de direitos no
campo da participação política. Não
detinham o direito à cidadania efetiva.
Ao olharmos para a luta pelos
direitos políticos, verificamos que
somente ao longo do século XX, os
grupos foram, gradativamente, obtendo
o direito ao voto. Ou seja, ainda que
em pleno regime republicano, o país
tardou muito a garantir ao conjunto da
população o direito democrático do
voto. Ao longo do século XX, o único
direito no campo da construção das
políticas era o de, teoricamente,
escolher aqueles que os
representariam no poder3. Foi com a
Constituição de 1988, com o
busca dos votos. Após às eleições esses
segmentos seguem “esquecidos” por esses
políticos.
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
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em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
estabelecimento dos conselhos de
políticas públicas democráticos e
paritários, que teve início um processo
de participação mais efetiva na
construção das políticas públicas. No
caso da cultura, essas experiências
datam somente da primeira década do
século XXI e ainda estão sendo
lentamente experimentadas.
Marilena Chauí, ao tratar da
questão da cidadania cultural4, lista
uma série de princípios que
expressavam o que a secretaria de
cultura de São Paulo, na sua gestão
(1988-1992), deveria considerar e
garantir como direitos. Entre eles
estava o “de participar das decisões
quanto ao fazer cultural” (CHAUÍ, 2006,
p. 70). Segundo Chauí, para
implementar a proposta de cidadania
cultural era preciso trabalhar com uma
definição de “política da cultura pelo
prisma democrático e, portanto, como
direito de todos os cidadãos, sem
privilégios e sem exclusões” (Idem. P.
72), assim como praticar:
- uma concepção alargada de
cultura, que não a identificasse
com as belas-artes, mas a
apanhasse em seu miolo
antropológico de elaboração
coletiva e socialmente
4 Segundo a autora, esse artigo foi
originalmente em 1992.
diferenciada de símbolos, valores,
ideias, objetos, práticas e
comportamentos pelos quais uma
sociedade, internamente dividida
e sob a hegemonia de uma classe
social, define para si mesma as
relações com o espaço, o tempo,
a natureza e os humanos.
(CHAUÍ, 2006, p. 72)
Colocando em diálogo as
reflexões de Chauí e de Vich, podemos
pensar as políticas culturais como
espaço que permite aos cidadãos a
construção de novas imagens sobre si
mesmos, libertando as práticas
culturais locais dos olhares
colonizadores, que historicamente as
subalternizam. As políticas culturais
tem potencial transformador quando
são direcionadas a fomentar e
reconhecer a diversidade cultural, em
especial ao que é produzido nos
territórios e por grupos considerados
periféricos, propiciando um novo olhar
sobre si mesmos. Como afirma Vich:
“Construir un proyecto relevante de
política cultural implica, em especial,
activar la producción de nuevas
identificaciones imaginarias” (VICH,
2014, p. 92).
O Programa Cultura Viva,
historicamente, vem atuando no
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
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em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
sentido de ativar a produção de novos
imaginários, de novas identificações
culturais. É importante destacar que ele
foi potencializado por um conjunto de
outras políticas dos governos Lula
(2003-2010), como a de cotas nas
universidades, a do reconhecimento
das terras e direitos quilombolas ou a
ampliação da demarcação das terras
indígenas, entre outros. Dentro de uma
conjuntura que buscava a construção e
o fortalecimento de novas identidades
culturais, o Cultura Viva cumpriu um
papel fundamental através de
iniciativas como a Ação Griot, os
Pontos de Memória ou os Pontos de
Cultura Indígena. Em momentos de
retração da política, suas redes
serviram como pontos de resistência ao
desmonte completo das políticas
democráticas e de justiça social, que
vieram sendo construídas na busca de
sanar a dívida história da sociedade
brasileira como um todo com diversos
de seus segmentos.
Cultura Viva: Revisitando o tempo e
a trajetória
Na abertura do Catálogo do
Programa Cultura Viva, publicado em
2005, Célio Turino define o Cultura Viva
como um “programa de acesso aos
meios de formação, criação, difusão e
fruição cultural, cujos parceiros
imediatos são agentes culturais,
artistas, professores e militantes sociais
que percebem a cultura não somente
como linguagens artísticas, mas
também como direitos, comportamento
e economia”, afirmando que é preciso
transformar o Brasil e para isso “é
preciso ir além de uma política de
Estado, afinal, o Estado ainda é de tão
poucos” e conclui que “é preciso
transformar o Cultura Viva em política
pública efetivamente apropriada por
seu povo”. (BRASIL, 2010, p. 32-33)
A construção do Programa
Cultura Viva, principalmente em seus
primeiros anos foi muito potente no
acionamento de novos imaginários, na
ideia de redescoberta do Brasil. Os
discursos, os documentos e escritos
desse tempo, em geral, são poéticos e
criativos, em sua maioria provocam,
incitam, convocam a sociedade civil, os
agentes culturais, os pontos de cultura,
a cumprirem um papel transformador.
É muito interessante a reflexão
proposta pelo Célio Turino, de que para
transformar o Brasil é necessário ir
além de uma política de Estado, por ser
a estrutura de Estado vigente
excludente, oligárquica, autoritária e
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
discriminadora. Enquanto no conjunto
das outras políticas o discurso vai no
sentido de transformar as políticas
culturais de governos em políticas de
estado, tentando evitar, assim, o
constante desmonte ao qual são
submetidas as políticas públicas, a
aposta que está na base do Cultura
Viva é a de uma transformação maior
do país, para que o Estado seja de
todos, ou seja, há a necessidade de se
produzir uma nova cultura política. O
Programa propõe a criação de novos
imaginários, alicerçada em novas
relações que o Ministério da Cultura
buscava estabelecer com a sociedade
em geral e com os agentes culturais em
especial.
Em 2005, em um de seus
discursos, o então Ministro da Cultura
Gilberto Gil, enumera alguns dos
objetivos do Programa Cultura Viva
O programa Cultura Viva foi
concebido como uma rede
orgânica de gestão, agitação e
criação cultural, tendo por base de
articulação os Pontos de Cultura.
(...) O Ponto de Cultura expressa
a intenção de construir uma rede
horizontal de articulação e
disseminação de iniciativas e
vontades criadoras; é uma
pequena marca, um sinal, uma
referência, e ao mesmo tempo
uma plataforma.” (GIL apud
ALMEIDA; ALBERNAZ;
SIQUEIRA, 2013, p. 330)
Olhando a trajetória daqueles
inúmeros fazedores de cultura, que
orgulhosamente se apresentavam
como “ponteiros”, nome que se passou
atribuir aos gestores e integrantes dos
Pontos de Cultura, podemos verificar
que tais objetivos foram sendo
razoavelmente cumpridos. A rede se
expandiu, gerando algumas redes
secundárias, como a dos pontos de
cultura rurais em alguns estados. Ou
ainda, formando redes estaduais e
municipais, a partir da descentralização
do Programa. Essa se com o
repasse de recursos e gestão do
programa para estados e municípios.
Parte das redes secundárias seguiram
organizando e participando de
encontros locais, similares ao nacional
as Teias -, assim como se
mobilizando pela manutenção do
programa pelos governos, mantendo-
se em diálogo com os diversos veis
do poder público. Também devemos
ressaltar que as redes se mantiveram
mais ativas e com uma participação
numericamente maior nos momentos
de crise do próprio programa, como
quando da busca de soluções para os
problemas das prestações de contas,
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
atrasos de repasse de recursos, entre
outros.
Antes de seguirmos pelo
caminho da potência dos discursos é
preciso fazer um parêntesis, lembrando
que as propostas de novas formas de
atuação do Estado em relação à
sociedade civil não eram - e ainda não
são - bem compreendidas pelo
conjunto da burocracia do Estado. Ao
longo da história da administração
pública, as áreas de governo
construíram grande parte dessa
estrutura de políticas públicas para
atender as elites, as oligarquias, e, para
a população em geral, sobravam as
ações assistencialistas. A conquista de
direitos básicos se deu à custa de
muitas lutas. Com o campo da cultura
não seria diferente. As resistências de
diversas áreas aos projetos de
ampliação do leque de “atores sociais”
a serem atendidos pelas políticas
culturais se fizeram imediatamente
presentes (dentro e fora da burocracia).
Tais resistências dificultaram os
desdobramentos do Programa, muitas
vezes criminalizando e penalizando
instituições da sociedade civil a partir
do recebimento e uso dos recursos
públicos.
As dificuldades vivenciadas
pelos Pontos de Cultura não é tema
desse artigo, mas é importante deixar
registrado que muito do que foi
proposto nos primórdios do Programa,
vinte anos depois, ainda é plataforma
de luta no campo das políticas culturais.
Célio Turino, no mesmo artigo, de
2005, acima citado, nos informava que:
“Na partida evitamos uma estrutura
fortemente institucionalizada e
hierarquizada, pesada na forma de
gestão e controle, muito comum na
burocracia pública.” (BRASIL, 2010, p.
34) Isso não impediu problemas,
bloqueios e penalizações impostas aos
beneficiários do Programa pelos órgãos
de controle. Os mecanismos de entrada
no Programa foram sendo
simplificados, mas ficaram longe ainda
de serem efetivamente democráticos,
tendo em vista a realidade social. A
complexidade e a rigidez da aplicação
dos processos de prestação de contas
destoavam do espírito de autonomia e
liberdade do Programa. Todo o tempo
trataram os grupos sociais
historicamente subalternizados e
excluídos de cidadania plena, com mais
rigidez, do que integrantes da área
industrial, por exemplo, quando são
subsidiados com verbas públicas e
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diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
muitas vezes anistiados de suas
dívidas com o erário público. Alguns
problemas começavam ainda na
abertura das contas bancárias e
seguiram ao longo do caminho em uma
infinidade de direções.
Retomando o fio do potencial
discursivo do Programa, em 2004, o
Ministro Gilberto Gil afirmava que:
O Programa Cultura Viva é,
sobretudo, uma política pública de
mobilização e encantamento social.
Mais que um conjunto de obras
físicas e equipamentos, ele envolve
a potencialização das energias
criadoras do povo brasileiro. Não
pode ser considerado um simples
‘deixa fazer’, porque parte de uma
instigação, uma emulação, que é o
próprio do-in antropológico, mas os
rumos, as escolhas, as definições
ao longo do processo, são livres. E
os resultados imprevisíveis. E
provavelmente surpreendentes.”
(BRASIL, 2010, p. 37)
O Programa foi crescendo com
base em um processo de diálogo entre
o governo e os fazedores de cultura, a
partir dos insumos que foram sendo
produzidos e do potencial que emergia
do campo cultural. A Ação Griot, por
exemplo, foi uma modalidade surgida a
partir da experiência bem sucedida de
um ponto de cultura do primeiro edital.
Quando o Ministro Gil afirmou, na
citação acima, que o Programa não
poderia ser considerado um “simples
deixar fazer”, ele estava embasado
pela ideia de que o Cultura Viva se
transformaria no “meio de ligação entre
as ações do poder público”, - como
garantidor dos meios de fruição,
produção e difusão cultural “e as
ações da própria comunidade;” assim
como seria, “o meio de ligação entre as
ações culturais das diversas
comunidades articuladas” através do
trabalho em rede. (GIL apud ALMEIDA;
ALBERNAZ; SIQUEIRA, 2013, p. 330)
Ao buscar inverter a lógica da
aplicação dos escassos recursos
orçamentários o Ministério da Cultura,
passou a se empenhar em atender
áreas periféricas que nunca foram
atendidas, tornano-se alvo de críticas,
dentro do próprio setor cultural. Tais
críticas partiram, principalmente, de
artistas consagrados, de
reconhecimento nacional e
internacional. Em uma entrevista
concedida a revista Carta Capital, em
2006, em que o tema eram as políticas
que estavam sendo implementadas, o
Ministro Gil, afirma sobre as críticas
recebidas:
Acho que tem a ver com a
discriminação positiva, digamos
assim, que estamos tentando fazer,
focando áreas que não eram
focadas e, portanto, estabelecendo
um conflito distributivo com esses
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
setores. É um conflito que não
existia nessa intensidade antes,
porque eles tinham acesso aos
recursos que estão sendo
redistribuídos. Estamos tentando
trabalhar com um pouco mais de
atendimento periférico, com os
Pontos de Cultura, as políticas para
museus que estamos
descentralizando. (GIL apud
ALMEIDA; ALBERNAZ; SIQUEIRA,
2013, p. 107)
O Programa Cultura Viva, pode
ser pensado como uma política através
da qual foram feitos os primeiros
experimentos de descentralização de
recursos para estados e municípios em
diálogo com a sociedade civil. A
dimensão nacional que o Programa
alcançou, o crescimento numérico dos
pontos, passou a dificultar tanto o
acompanhamento das atividades,
quanto o conhecimento das múltiplas
experiências realizadas, ou ainda, o
mapeamento da riqueza e da
diversidade de atividades
desenvolvidas. Nos anos de 2007 e
2008, houve o esforço de realização de
uma pesquisa censitária sobre o
Programa. O Ipea, foi contratado para a
realização de tal pesquisa. O corpus
original era de 526 pontos conveniados
até dezembro de 2007, mas ao final
5 Dos pontos apresentados pelo MinC como
conveniados: 7% estava com atividades
suspensas, 5% não havia iniciado as
somente 386 foram considerados.5 Os
Pontos estavam localizados em 203
municípios distribuídos por todas as
Unidades da Federação. O processo de
descentralização de recursos para
estados e municípios do Cultura Viva já
tinha início naquele momento, de
alguma maneira antecipando os
mecanismos que estavam sendo
projetados para o funcionamento do
Sistema Nacional de Cultura, aprovado
somente em 2012.
O potencial de articulação e de
representação do Programa estava
institucionalmente assentado em dois
mecanismos. 1 - A Comissão Nacional
dos Pontos de Cultura, a principal
representante dos pontos nos fóruns e
encontros regionais, órgão de diálogo
constante com o Ministério. 2 - O
Fórum Nacional dos Pontos de Cultura,
criado na Teia de 2007, definido como
instância política dos Pontos de
Cultura. O Fórum:
...reúne representantes dos fóruns
estaduais, das ações nacionais,
além das áreas temáticas e redes
que compõem o programa Cultura
Viva. Tem como objetivo fortalecer
o Sistema Nacional de Cultura,
fomentar a construção de marcos
legais que reconheçam a
autonomia e o protagonismo
atividades, 4% estava desativado e 1% havia
concluído o convênio. IPEA. 2010. P. 64
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
cultural do povo brasileiro, e
debater os avanços e os desafios
na gestão compartilhada do
programa Cultura Viva. (IPEA,
2010, p. 43)
Os debates políticos nas duas
instâncias de representação eram
intensos, fortalecendo o projeto de uma
gestão participativa, com uma presença
mais efetiva dos agentes da sociedade
civil. Havia uma articulação constante,
fazendo na prática a agitação cultural”
a que o Ministro Gilberto Gil havia se
referido anos antes.
Com o fim do governo do
Presidente Lula, ocorreram algumas
mudanças na gestão do Ministério da
Cultura. A Presidenta Dilma nomeou
Ana de Holanda como a nova chefe da
pasta da cultura. A primeira gestão do
MinC (2011-2012) no governo Dilma,
em especial, configurou-se
discursivamente em oposição a grande
parte das ações implementadas nos
oito anos anteriores. No caso da
manutenção do diálogo com a
sociedade civil, este foi conduzido de
maneira muito particular a partir de
cada uma das áreas do MinC. Por
exemplo, logo no início da gestão a
Ministra fundiu a Secretaria de
Identidade e Diversidade (SID) com a
Secretaria da Cidadania Cultural
(SCC), criando a Secretaria de
Cidadania e Diversidade Cultural
(SCDC). A nova secretaria iniciou a
gestão com muitos conflitos com os
Pontos de Cultura, travando muitas
discussões com a Comissão Nacional
dos Pontos de Cultura. A crise foi
sendo aprofundada e teve como
desdobramento a substituição da
secretária da pasta. Com a posse de
uma nova secretária os diálogos com
os integrantes do Cultura Viva foram
sendo retomados lentamente.
E aqui uma observação se faz
importante. A crise de gestão e de
relacionamento com o poder público
federal e os atores envolvidos no
processo e representados pela
Comissão Nacional de Pontos de
Cultura foi sendo intensificada, ao
mesmo tempo em que o programa
aumentava sua escala nacional. Nos
dois últimos anos do governo Lula, com
a gestão do Ministro Juca Ferreira, o
Ministério havia acelerado o processo
de federalização do Cultura Viva,
fazendo dele a principal ação do macro
programa Mais Cultura. Foram
realizados convênios e repassados
recursos preferencialmente para os
estados, mas alguns municípios
também foram beneficiados, visando
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
ao lançamento de novos editais. Nessa
fase o Programa passou a ter parte
significativa de sua gestão sob a
responsabilidade das secretarias
estaduais e municipais.6
Em 2010, com toda a crise
interna, o Programa Cultura Viva
havia ultrapassado as fronteiras
nacionais, era reconhecido
internacionalmente. Desenhos de
outros programas inspirados nele
começavam a ser rascunhados em
várias localidades da América Latina.
Tal processo complexo é um
interessante indicador de algumas
lógicas “perversas” a que ficam
submetidas às políticas públicas.
Segundo Alexandre Santini, essas
redes, desde cedo, extrapolaram os
limites geográficos, as barreiras
territoriais, pois o primeiro contato de
“agentes culturais latino-americanos
com o Programa Cultura Viva e os
Pontos de Cultura foi na primeira TEIA
Nacional, em São Paulo, no ano de
2006” (SANTINI, 2017, p. 143), onde
vários representantes de grupos
teatrais ligados a Rede Latino-
6 Dessa ação resultaram vários
desdobramentos territoriais pois diversos
desses convênios tinham uma previsão do
desdobramento das ações por quatro anos e
Americana de Teatro em Comunidade
participaram do evento. Dentro das
inovações do Cultura Viva estavam as
“Teias”, encontros que deveriam ter
uma periodicidade anual e reunir
representantes e integrantes de todos
os Pontos de Cultura, gerando maiores
interações nas redes. Segundo
Deborah Lima:
As Teias funcionavam como este
espaço de interação entre os
pontos, mas também como
instância política. Afinal a Teia
abriga o Fórum Nacional de Pontos
de Cultura: um colegiado com um
representante por cada Ponto de
Cultura. No Fórum eles se reúnem
em grupos temáticos de reflexão
sobre o Cultura Viva e em cada um
elegem os representantes a
comporem a Comissão Nacional de
Pontos de Cultura. A CNPdC é a
responsável por fazer mediação
entre Pontos e o Minc. (LIMA,.
2013, p. 94)
No mesmo momento em que
vários impasses dentro do governo
brasileiro reduziam a capacidade de
operação do Programa no âmbito do
governo Federal, as relações e
diálogos com o restante da América
Latina se ampliavam. Segundo Albino
Rubim:
muitos tiveram seus prazos de execução
ampliados ou renovados.
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Em contraste com a paralisia bra-
sileira, floresceu na América
Latina a partir de 2010 um
movimento que foi denominado de
Cultura Viva Comunitária. no
ano de 2009, no III Congresso
Ibero-Americano de Cultura,
promovido pela Secretaria Geral
Ibero-Americana (SEGIB), em
São Paulo, aconteceram diálogos.
Mas o marco inicial do processo
ocorreu em Medellín, de 13 a 16
de outubro de 2010, no Encuentro
de Redes Latinoamérica
Plataforma Puente - 100
Organizaciones Socioculturales.
(...)Neste mesmo ano, realizou-se
uma marcha em Buenos Aires e a
entrega na Casa Rosada de pro-
posta de lei Cultura Viva. (RUBIM,
2017, p. 220)
Ainda que estivesse nos planos do
Ministério, o Ministro Juca Ferreira
(2015-2016), que assumiu a pasta da
cultura no segundo governo da
presidenta Dilma Rousseff, o
conseguiu retomar o Programa Cultura
Viva no âmbito do governo federal. O
Programa seguia ativo em alguns
estados e municípios, inclusive na
realização dos encontros locais, das
Teias regionais e temáticas. Mesmo
com os convênios terminados muitas
das iniciativas mantiveram o nome
Ponto de Cultura, fazendo valer a
chancela do governo. A articulação
internacional se mantinha igualmente
intensa.
A partir do golpe contra a
Presidenta Dilma, em 2016, a situação
das políticas de cultura, em todas as
áreas, se agravou. Uma das
medidas do governo Temer foi extinguir
o Ministério da Cultura. Medida
revogada por conta da ampla
mobilização popular que resultou em
ocupação de diversos prédios e sedes
das instituições do Ministério, com
grande repercussão na imprensa. A
recriação do MinC não impediu que o
governo fosse esvaziando as ações,
programas e políticas. Começam pelas
trocas constantes na chefia da pasta,
com sucessivas substituições daqueles
que ocupavam os cargos
comissionados, afetando gravemente a
continuidade da implementação das
políticas e das ações, mesmo as mais
rotineiras. Estas seguidas de cortes
orçamentários e outras estratégicas de
asfixia da área.
O período que se seguiu foi muito
difícil para muitos desses Pontos de
Cultura. Em alguns estados o
Programa foi praticamente extinto. A
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Lei Cultura Viva7 havia sido aprovada
em 2014, mas não foi implementada.
Ela foi fruto de um trabalho vigoroso de
mobilização da sociedade, dos Pontos
de Cultura, na busca de impedir a
descontinuidade do Programa. O
processo de construção da Lei teve por
base a intensa mobilização e parceria
da sociedade civil com o poder
Legislativo, de alguma maneira
demonstrando a importância da
existência e da manutenção da rede de
articulação entre os Pontos de Cultura.
Desde o período da campanha
eleitoral bolsonarista, ficou evidente a
baixa empatia deste grupo político com
a área artística e cultural. Os discursos
de ódio, as fakes news e outros ataques
sistemáticos aos artistas, logo nos
primeiros momentos do governo, eram
indícios claros que tempos bem difíceis
estavam por vir. O ano de 2019 foi
bastante difícil, com bloqueio de
recursos, retirada de incentivos,
paralização de ações e intensa
censura.
Algumas das características
próprias do campo da cultura e das
artes, tais como a visibilidade que parte
7 Ver: Lei nº 13.018, de 22 de julho de 2014.
Institui a Política Nacional de Cultura Viva.
das ações obtém na mídia nacional e
internacional, a capacidade de
articulação de resistência, a habilidade
de provocar deslocamentos, fizeram
desse um campo de ataque sistemático
dos fascistas e conservadores de todas
as vertentes que compuseram esse
governo. As constantes disputas para
que representantes das alas mais
conservadoras tivessem o controle das
instituições vinculadas ao extinto Minc
são reveladoras do projeto político para
a cultura operado pela presidência da
república e seus aliados de extrema
direita.
Chegamos ao início do ano 2020
com uma epidemia de Covid 19 que
assolou o mundo. Como medida
emergencial, para conter o contágio, foi
decretado estado de emergência
sanitária. Logo, todas as atividades
presenciais não essenciais foram
suspensas. Várias áreas e atividades
foram duramente atingidas e talvez a
da cultura tenha sido uma das
principais. Os trabalhadores da cultura
tiveram, de um dia para o outro, todas
as suas atividades suspensas. Os
auxílios emergenciais inicialmente
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
propostos pelo governo federal não
englobavam os fazeres culturais.
A área do executivo federal da
cultura abandonou o conjunto dos
trabalhadores à “sua própria sorte”.
Aqui vale um destaque, o esforço de
uma série de municípios e estados,
alguns logo no início da pandemia, que
criaram editais especiais, auxílios
emergenciais, cadastro para cestas
básicas, pagamento antecipado de
ingressos e outras estratégias para
atender os trabalhadores locais da
cultura.
A situação de emergência, para
a qual toda a sociedade foi levada,
lançou luz sobre os diversos fazeres da
cultura, recompôs muitas das antigas
redes de articulação no campo da
cultura, propiciou a criação de novas
redes, fóruns regionais foram
reativados, assim como ocorreu o
ingresso de novos atores sociais nos
processos de articulação em defesa da
cultura. Como registrado pela
Deputada Benedita e por sua equipe:
A mobilização nacional começou
em março de 2020, período em que
a pandemia exigiu o cancelamento
das atividades com aglomeração de
público. Diante disso, o setor
cultural foi imediatamente
impactado. Ligou-se o sinal
amarelo. Começamos a receber
cartas e manifestos e, com estes
materiais, passamos a elaborar o
PL 1075/2020. A mobilização da
sociedade segue até hoje e deve
permanecer, cumprindo seu papel
republicano e democrático. (SILVA.
2020, p. 2)
A construção da Lei de
Emergência Cultural Aldir Blanc teve
como elemento fundamental a
convocação de encontros e fóruns de
discussão com diversos participantes
da sociedade civil dos mais variados
segmentos da cultura e dos poderes
públicos de estados e municípios,
permitindo que o texto estivesse o mais
ajustado possível aos objetivos
propostos. A complexidade do setor, a
diversidade de funções, atividades e
áreas que ele abrange exigiu um
debate ampliado com representantes
de todo o país. As reuniões virtuais
mobilizaram representantes dos três
níveis de governo, parlamentares,
ativistas, realizadores e trabalhadores
dos mais diversos segmentos e regiões
do país, permitindo o acompanhamento
e a contribuição para a finalização do
texto.
A articulação rápida e o diálogo
intenso com o poder legislativo, em
parte, é tributária da experiência
vivenciada pelos integrantes do
Programa Cultura Viva, dos gestores e
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
legisladores que por mais de uma
década dialogaram com esse
programa.
O Cultura Viva, até a
implementação da Lei Aldir Blanc, era o
Programa de maior capilaridade da
área da cultura, promovendo a chegada
de recursos para os fazedores de
cultura em todas as regiões do país.
Foi, e ainda é, um programa inovador,
que permitiu que os recursos da cultura
chegassem pela primeira vez a alguns
segmentos da sociedade. Esse não é
um programa de simples repasse de
recursos. Ele tem em seu âmbito, como
foi dito anteriormente, o
estabelecimento da rede de Pontos de
Cultura e da realização de encontros
regionais e nacionais as Teias. A
articulação nacional dos Pontos de
Cultura, em diálogo com o poder
legislativo levou a aprovação da Lei
Cultura Viva. Na confecção, difusão e
implementação da Lei Aldir as
experiências das redes dos Pontos de
Cultura tiveram um papel fundamental.
No momento atual, final do ano
de 2023, assistimos à retomada do
Programa Cultura Viva, com o
lançamento de editais para pontos e
pontões. A esperança, o anseio é que
sigamos na direção de efetivar aquilo
que foi dito pelo Ministro Gil em seu
discurso de 2005. Que o Programa
possa;
- Promover pactos com atores
sociais governamentais e não
governamentais locais, visando à
valorização da cultura local.
- Incorporar referências simbólicas
e linguagens artísticas ao
processo de construção de
cidadania.
(...)
- Potencializar energias sociais e
culturais, dando vazão às
dinâmicas próprias das
comunidades para o
desenvolvimento de uma cultura
cooperativa, solidária e
transformadora. (GIL apud
ALMEIDA; ALBERNAZ;
SIQUEIRA, 2013, p. 229)
Ainda parafraseando o Ministro
Gil, que a retomada do Programa
Cultura Viva contribua para a promoção
do reencantamento da sociedade
brasileira, que ajude a liberar as
energias positivas e potentes que
permitirão que a sombra dos
autoritarismos e fascismos deixe de
nos assombrar cotidianamente.
Referências
ALMEIDA Armando; ALBERNAZ, Maria
Beatriz; SIQUEIRA, Maurício (orgs.).
Cultura pela palavra: coletânea de
artigos, discursos e entrevistas dos
Ministro da Cultura 2003-2010/Gilberto
Gil & Juca Ferreira. Rio de Janeiro:
Versal, 2013.
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CALABRE, Lia. O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva:
diálogos no tempo. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 105-121, mar. 2024.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Revisitando o Cultura Viva e os pontos de cultura
João Guerreiro1
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.61238
Resumo: Neste artigo procuro refletir sobre os 10 anos da Lei Cultura Viva e os 20 anos do Programa
Nacional Cultura Viva. Partindo dos debates sobre a criação do Ministério da Cultura, ainda no final do
regime ditatorial vigente entre 1964 e 1985, passo pelas discussões sobre as políticas públicas de
cultura que poderiam ser direcionadas para grupos comunitários, periféricos e fora do eixo Rio-São
Paulo mesmo no governo José Sarney através de uma proposta mais abrangente de utilização da lei
de incentivo federal à cultura apresentada pelo então ministro Celso Furtado. Trago o debate sobre
alternativas às políticas de fomento direto e indiretos para o campo cultural procurando demonstrar que
o caráter excludente dessas políticas não está desatrelado do perfil conservador dos grupos que
privatizam o Estado brasileiro. Com isso busco demonstrar o papel inovador, inclusivo e de alargamento
desse mesmo Estado a partir do Programa Cultura Viva, sem deixar de apontar as necessidades de
aperfeiçoamento do programa, que, em 2014, se transforma em política de estado. Finalizo essas
considerações apontando para os novos desafios que se somam a própria necessidade de se
reconstruir as políticas públicas como um todo, e as de culturas, particularmente.
Palavras-chave: Cultura Viva, Pontos de Cultura, políticas públicas de cultura.
Revisitando Cultura Viva y puntos de cultura
Resumen: En este artículo busco reflexionar sobre los 10 años de la Ley Cultura Viva y los 20 años
del Programa Nacional Cultura Viva. A partir de los debates sobre la creación del Ministerio de Cultura,
aún al final del régimen dictatorial vigente entre 1964 y 1985, paso a discusiones sobre políticas
públicas culturales que podrían dirigirse a grupos comunitarios, grupos periféricos y de fuera el eje Río-
São Paulo incluso en el gobierno de José Sarney a través de una propuesta más integral para utilizar
la ley federal de incentivo a la cultura presentada por el entonces ministro Celso Furtado. Llevo el
debate sobre alternativas a las políticas de promoción directa e indirecta al campo cultural, buscando
demostrar que el carácter excluyente de estas políticas no es ajeno al perfil conservador de los grupos
que privatizan el Estado brasileño. Con esto busco demostrar el rol innovador, inclusivo y expansivo de
este mismo Estado a través del Programa Cultura Viva, sin dejar de señalar las necesidades de mejora
del programa, que, en 2014, se convirtió en política de Estado. Concluyo estas consideraciones
señalando los nuevos desafíos que se suman a la necesidad misma de reconstruir las políticas públicas
en su conjunto, y las políticas culturales, en particular.
Palabras clave: Cultura Viva, Puntos de Cultura, políticas públicas culturales
1 João Guerreiro (João Luiz Guerreiro Mendes). Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Bacharelado em Produção Cultural do IFRJ (Instituto Federal
do Rio de Janeiro), Brasil. Contato: joao.mendes@ifrj.edu.br - https://orcid.org/0000-0003-1788-4132
Recebido em 26/12/2023, aceito para publicação em 28/03/2024.
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PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Revisiting Cultura Viva and points of culture
Abstract: In this article I seek to reflect on the 10 years of the Living Culture Law and the 20 years of
the Living Culture National Program. Starting from the debates about the creation of the Ministry of
Culture, still at the end of the dictatorial regime in force between 1964 and 1985, I move on to
discussions about public cultural policies that could be directed to community groups, peripheral groups
and those outside the Rio-São Paulo axis even in the José Sarney government through a more
comprehensive proposal to use the federal culture incentive law presented by the then minister Celso
Furtado. I bring the debate about alternatives to direct and indirect promotion policies to the cultural
field, seeking to demonstrate that the exclusionary nature of these policies is not unrelated to the
conservative profile of the groups that privatize the Brazilian state. With this, I seek to demonstrate the
innovative, inclusive and expanding role of this same state through the Cultura Viva (Living Culture)
Program, without failing to point out the needs to improve the program, which, in 2014, becames a state
policy. I conclude these considerations by pointing to the new challenges that are added to the very
need to rebuild public policies as a whole, and cultural policies, in particular.
Keywords: Living Culture, Points of Culture, public cultural policies
Revisitando o Cultura Viva e os pontos de cultura
Introdução
Em 2024, o Programa Nacional
de Cultura, Educação e Cidadania
Cultura Viva – completa 20 anos. Entre
idas e vindas, revogações e alterações
de portarias para aperfeiçoamentos até
chegarmos na Lei Cultura Viva (Lei
13.018/14), muito se falou e se fala
sobre esse programa que marcou/vem
marcando as políticas culturais do país
e que, pela sua importância, se
espraiou por diversos países da
chamada América Latina.
A importância do “Cultura Viva”
pode ser medida pela quantidade de
2 Sobre dissertações e teses sobre o Programa Cultura Viva, ver Costa e Rocha (2021).
3 Guerreiro (2011).
artigos, trabalhos de conclusão de
cursos, dissertações e teses2 que o
abordam direta ou indiretamente, mas,
principalmente, pela resistência que os
pontos de cultura a principal marca do
programa - exerceram após o
enfraquecimento das políticas culturais
comunitárias no decorrer da década de
2010 até 2022.
Nesse artigo revisito o programa
Cultura Viva a partir de um olhar
anterior3, tendo em mente o que
vivenciamos até o golpe jurídico-
parlamentar da ex-presidenta Dilma
Rousseff e, posteriormente, com a
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
tentativa de extinção do Ministério da
Cultura pelo ex-presidente Michel
Temer e, a guerra cultural empreendida
pelo ex-presidente Jair Messias.
20 anos da Política Nacional Cultura
Viva um reencontro entre os Brasis
Fruto de uma intensa
negociação realizada pelo então
candidato à presidência da República,
Tancredo Neves, ao montar o que viria
a ser o primeiro governo após os “anos
de chumbo”, o Ministério da Cultura
(MinC) foi criado no dia 15 de março de
1985. Mesmo com a morte de Tancredo
Neves e tendo tomado posse o então
candidato à vice-presidente, José
Sarney, os acordos feitos para montar
o governo de coalisão foram mantidos.
Um dos acordos fechado por Tancredo
Neves foi o de nomear José Aparecido
de Oliveira como Ministro da Cultura.
José Aparecido tinha sido Secretário
Estadual de Cultura de Minas Gerais e
era, na ocasião, presidente da Frente
Nacional de Secretários de Cultura.
Articulador da criação da Frente e da
criação do Ministério, José Aparecido
afirmaria que sua proposta inicial era a
de “mínima interferência do estado nas
atividades culturais” (FGV/CPDOC,
s/d). Essa afirmação se dava em um
contexto em que não havia
unanimidade sobre a necessidade,
importância e papel de um Ministério da
Cultural no momento de
redemocratização do país.
Ferron e Arruda (2019), ao
analisarem os bastidores da criação do
MinC, apresentam um rico painel sobre
as posições dos representantes do
sistema político, artistas e intelectuais
sobre o tema. Relembram que uma das
principais oposições à criação do
Ministério era por se temer uma
possível interferência do Estado na
produção cultural. O caráter autoritário
e centralizador do Estado no período
anterior ainda estava muito presente e,
o que se convencionou chamar de
entulho autoritário ainda não havia sido
removido. Relatam, ainda, que um dos
argumentos era que o caberia ao
Estado produzir ou dirigir a cultura,
que é a sociedade que produz a cultura.
Mas, sustentam que, apesar da
fragilidade que o MinC apresentava no
seu nascedouro, a sua criação era
resultado de uma pressão dos
movimentos sociais por mudanças no
país e pelo surgimento de novos atores
na cena política.
Assim, José Aparecido ao
afirmar sobre um “estado mínimo” na
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
área cultural, apontava para a busca de
parcerias públicas e privadas para
ações de restauração e conservações
de patrimônios culturais como ele
havia empreendido em Minas Gerais.
Por outro lado, a salientada pressão
dos movimentos sociais acaba fazendo
o agora Ministro da Cultura, José
Aparecido, incluir na estrutura do MinC
duas importantes assessorias:
assessoria especial de assuntos da
cultura indígena e assessoria especial
de assuntos da cultura afro-brasileira.
Uma primeira sinalização de uma
política de reparação por parte do
Estado brasileiro tanto para os povos
indígenas, como para a população
afrodescendente. Segundo Mauro
(2019), Marcos Terena, ex-chefe de
gabinete da Funai, vai assumir o cargo
de primeiro assessor da Assessoria de
Assuntos Indígenas, em 1985, e teve
importante papel na assessoria à
Assembleia Nacional Constituinte.
Carlos Moura, militante do movimento
negro, assumiu a assessoria da cultura
afro-brasileira. Em uma entrevista de
2008, Moura, apontou que a criação da
assessoria e, posteriormente da própria
Fundação Cultural Palmares, se deu
como resultado da luta do movimento
negro nas décadas anteriores:
Nascia, no âmbito do Governo
Federal, um mecanismo destinado
a trabalhar os assuntos
pertinentes à cultura afro-
brasileira, a partir da
reinterpretação histórica e da
reivindicação das entidades do
movimento negro.
(...) A Assessoria atuava em
sintonia com as agremiações
negras, com as universidades,
com os governos estaduais.
Procurava ser o agente
catalisador das aspirações
culturais e sociopolíticas afro-
brasileiras (MOURA, 2008, p. 8)
Essas duas estruturas no interior
do MinC apontavam para um olhar em
direção às culturas e às populações
invisibilizadas até então em relação às
políticas públicas. São ões, tímidas,
é verdade, mas que apresentam a
importância do Ministério da Cultura,
desde sua estruturação, como instância
de recepção de demandas de parcela
da população brasileira que nunca foi
objeto de ações de políticas culturais.
É ainda durante o governo de
José Sarney que vamos encontrar uma
nova tentativa de que recursos públicos
pudessem chegar “na ponta”, mesmo
que de forma indireta, visando a não
centralização e concentração de
recursos da cultura para o que se
convencionou chamar de indústria
cultural.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Esse movimento remonta ao
início da década de 1970, quando o
então Senador José Sarney protocolou
um projeto de lei4 que propunha
incentivos fiscais à cultura (1972).
Conhecido como PLS 54/1972, a
proposta versava sobre a criação de
um instrumento fiscal que permitisse a
dedução de Imposto de Renda de
Pessoas Jurídicas e Físicas para fins
culturais, a partir do exercício de 1973,
tendo como ano-base de 1972. Apesar
de o senador fazer parte do partido
político que apoiava o regime militar
(ARENA Aliança Renovadora
Nacional), a área econômica do
governo do então General-Presidente
Emílio G. Médici, tendo à frente o seu
Ministro da Fazenda, Antonio Delfin
Neto, conseguiu bloquear a iniciativa.
Para conseguir esse objetivo a
articulação contou com o apoio do
relator deste projeto de lei, o senador
Arnon de Mello, que viria a ser o pai de
outro futuro presidente da República,
Fernando C. de Mello.
No ano de 1980, o ainda senador
Sarney reapresentaria, pela quinta vez,
sua proposta de criação do Incentivo
4Ver:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/ma
Fiscal para a Cultura sob o número PLS
128/1980. Seguindo os ritos impostos
pelo Regimento Interno do Senado
Federal, o Projeto de Lei do Senado
tramitou nas Comissões Constituição e
Justiça (CCJ), Comissão de Economia
(CE), Comissão de Educação e Cultura
(CEC) e na Comissão de Finanças. Ao
transpor o rito coube, então, ao agora
Presidente da República José Sarney
sancionar a sua lei com o número
7.505, de 2 de julho de 1986. Por esse
motivo a primeira lei de incentivo à
cultura do país leva o nome do ex-
presidente, Lei Sarney.
Um ano após a promulgação da
Lei Sarney, o então ministro da Cultura,
Celso Furtado concedeu entrevista ao
programa Roda Viva (TV Cultura), que
viria a ter uma parte citada em Bolaño,
Motta e Moura (2012). Nesta entrevista,
Furtado disse que a base da Lei Sarney
era a criação de uma possibilidade para
que a sociedade civil, livre das amarras
do Estado, pudesse apoiar projetos
culturais diversos ao que o próprio
Ministério da Cultura estabelecesse
como prioritário. Lembremos que a Lei
Sarney foi promulgada pouco mais de
terias/-/materia/25985. Acesso em: 29 set.
2023.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
um ano após o processo de
redemocratização do país. E como
foi salientando, alguns políticos e
alguns setores da sociedade ainda
apontavam, ressabiados, o histórico da
intervenção dos militares durante a
ditadura em todos os espaços da vida
do cidadão. Neste olhar, a Lei Sarney
seria uma espécie de antídoto às
propensões do dirigismo estatal. E,
mais, com a possibilidade de utilização
de dedução de Imposto de Renda
Pessoa Jurídica de contribuintes que
faziam sua declaração pelo lucro
presumido5, estaria aberta uma janela
de oportunidade de pulverização de
recursos que poderia beneficiar as
atividades culturais em todo o país.
Bolaño, Motta e Moura (op. cit.)
reproduzem este trecho da entrevista
nos ajudando a elucidar o discurso
institucional que permeava a visão do
então Ministro da Cultura. Em um
determinado momento da entrevista foi
feita uma questão relativa à
5 Atualizando os valores para setembro de
2023, teremos que empresas que faturam de
R$ 4 milhões a R$ 78 milhões ao ano podem
fazer sua declaração de Imposto de Renda sob
a forma de lucro presumido. Assim, essa
empresa es dispensada da escrituração
contábil pelo fisco federal, desde que seja
mantido o livro-caixa. A contabilidade é mais
simples e a fiscalização, mais fácil, pois é
preciso apenas conhecer a receita bruta total
para se obter o valor do tributo devido. As
possibilidade de pulverização de
recursos a partir da utilização da
dedução de Imposto de Renda por
parte de um pequeno empresário.
Usou-se um exemplo de um quitandeiro
como um pequeno empresário que
existiria em qualquer cidade do país.
Diante da questão Furtado argumentou
que,
para participar da Lei Sarney é
necessário que a pessoa seja
contribuinte do imposto de renda.
Digamos que esse seu quitandeiro
seja contribuinte [...] Ele precisa,
portanto, ser educado nessa
direção, é preciso que ele
compreenda que uma iniciativa
cultural que diz respeito a sua
própria vida também passa a
depender dele. Se ele está numa
cidade pequena, por exemplo, e
necessita de um espaço cultural
que não existe de uma
biblioteca, de um setor, um lugar
onde, por exemplo, se possa ter
cinema amador, apoiar grupos de
teatro local, qualquer atividade
cultural ele pode tomar a
iniciativa e se reunir com um grupo
de pessoas e contribuir com seus
próprios recursos para a
efetivação desse projeto.
(...) Nós queremos que na cidade
onde está esse quitandeiro, as
pessoas que fazem teatro, as que
empresas que faturam acima de R$ 78 milhões,
que atuam no setor financeiro ou que recebem
capital estrangeiro, ao contrário, estão restritas
ao regime de lucro real. Ao definir que apenas
as empresas submetidas a este último regime
podem beneficiar-se do sistema de incentivos,
a Lei Rouanet exclui justamente as pequenas e
médias empresas que a Lei Sarney pretendia
priorizar (apud Bolaño, Cesar; Motta, Joanne;
Moura, Fabio, op. cit., p.24).
128
GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
se interessam por cinema amador,
as que se interessam por qualquer
forma de vida cultural, que essas
pessoas se organizem,
apresentem seus projetos e façam
uma campanha dentro de sua
própria comunidade como se
diz, “passem um pires” – e digam:
“Olha, você que vive aqui, não
quer melhorar as condições de
vida dessa comunidade? Pois nos
organizemos. (FURTADO, C.
apud BOLAÑO; MOTTA; MOURA,
2012, p. 18-19)
Podemos perceber aqui, duas
questões que estão permeando o
discurso e as intenções da Lei Sarney,
segundo Celso Furtado. Primeiro,
permitir à sociedade civil se articular e
escolher que tipo de atividades
culturais pretende apoiar. Sociedade
civil aqui vista como os empresários
grandes, médios ou pequenos e as/os
fazedora(e)s de cultura. Na verdade, a
proposta não potencializa a
reconstrução da relação Estado e
Sociedade nos moldes que Dagnino
(2004) nos apresentou como sendo
uma resultante dos debates e conflitos
que estariam atravessando esta
década de 1980. Ao invés da busca
pela ampliação dos espaços públicos
de participação, parece-me que uma
tentativa de substituir o Estado, por
6 Cabe salientar que, segundo o Censo
Demográfico de 2023, temos 3.935 municípios
esse não ser confiável para dar conta
da diversidade cultural que não está
atrelada à noção de retorno econômico.
O quitandeiro acabaria exercendo o
“controle social de proximidade”. Ao
patrocinar uma atividade na sua
cidade6, no seu bairro ou mesmo na
sua rua, haveria maior possibilidade de
observar se o recurso estaria sendo
bem utilizado e se o produto cultural
estaria à altura da demanda da
população.
Tendo em vista a experiência
ditatorial que o país tinha acabado de
sair, a busca de mecanismo que
fortalecesse naquele momento as
iniciativas comunitárias era
compreensível e ainda hoje o é.
Remete a um determinado olhar sobre
quais as bases deveriam se assentar
um novo modelo de desenvolvimento
socioeconômico para o país no
momento inicial do processo
redemocratização e que de alguma
forma acabou sendo reproduzida no
Programa Nacional Cultura Viva,
conforme veremos mais à frente.
O segundo, e decorrente desta
visão de que a cultura não pode ser
com 20.000 habitantes ou menos. Isso significa
mais de 70% das cidades do Brasil.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
entendida apenas como economia, é
criar potencialidades de articulação no
nível local buscando sair das amarras
do poder dos grandes oligopólios e das
próprias empresas estatais.
Percebemos que, na prática,
como o próprio Furtado disse, havia
necessidade de se atrair os pequenos
empresários para conhecerem as
possibilidades e se interessarem em
utilizar as deduções fiscais. Por outro
lado, o MinC era um ministério novo,
sem estrutura administrativa, nem
corpo técnico em número suficiente
para acompanhar a utilização dos
recursos via patrocínio. E, a Receita
Federal, órgão responsável pelo
acompanhamento das deduções fiscais
viria alegar também não possuir
condições técnicas para tais ações de
fiscalização.
Assim, na disputa no interior do
governo, a Lei Sarney acabou
permitindo apenas as grandes
empresas utilizarem recursos de
incentivo fiscal para fins culturais. no
que tange aos diversos problemas
resultantes dessa regulamentação do
incentivo fiscal para a cultura muito
7 Para uma discussão sobre o papel da Lei
Sarney na nova forma de financiamento na
foi dito7. Mas, não podemos deixar de
apontar que o discurso contra a
possibilidade do “dirigismo estatal” da
cultura acabou se alinhando ao
discurso do mercado como o melhor
alocador dos recursos. Entra em cena,
com a lei Sarney, o empresariado
travestido de mecenas e o Estado inicia
o seu processo de renúncia ao seu
papel de indutor e fomentador de
qualquer projeto inerente à uma política
pública de cultura que ficará mais
evidente durante a gestão de Francisco
Weffort à frente do MinC durante todo o
governo Fernando Henrique Cardoso
(1995/2002).
Mas, o que me levou à reflexão
sobre a perspectiva de Celso Furtado
em relação às possibilidades que a Lei
Sarney poderia criar de impacto na
cultura, foi a de que tivemos mais uma
oportunidade de pulverizarmos os
recursos para a cultura propiciando o
fazer cultural de forma descentralizada
e com controle social. Cabe sublinhar
que o “quitandeiro furtadiano” é uma
metáfora do controle social. Seria ele
que através da política de proximidade
de apoio às produções culturais
Cultura, ver Rubim (2007), Nascimento (2008)
e Sarcovas (2008), entre outros.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
comunitárias, teria condições objetivas
de verificar a realização das produções
e atestar os impactos na comunidade.
O quitandeiro furtadiano poderia vir a
ser o personagem que avalizaria a
importância de um determinado grupo
cultural comunitário. Personagem este
que virá a ser necessário no
reconhecimento de um ponto de cultura
nos editais produzidos pelo MinC a
partir de 2.004.
Resumindo: mesmo utilizando o
instrumento de incentivo fiscal, o
debate sobre como o recurso poderia
chegar nas periferias e pequenos
municípios do país já existia na década
de 1980. E, a política pública de cultura
poderia ter incluído um papel indutor e
de fomento ao fazer cultural
desconcentrado mesmo a partir do
fomento indireto.
O que veio depois foi a
cristalização da vaga neoliberal
ensejada no “ovo da serpente” da Lei
Sarney que possibilitou o desmonte do
Ministério da Cultura, no governo Collor
de Melo, e a sua confirmação, mesmo
com a retomada do Ministério da
Cultura, no governo Fernando Henrique
Cardoso, e seu ministro da Cultura,
Francisco Weffort. A máxima adotada
pelo discurso do MinC de que a “Cultura
é um grande negócio” reforçava a
entrega da política cultural para os
departamentos de marketing cultural
das grandes empresas. A periferia e os
pequenos municípios continuavam fora
das políticas públicas de cultura, assim
como a fazer cultural ali produzido.
É só no início do Século XXI que
teremos um programa no interior do
Ministério da Cultura que vai fazer o
recurso finalmente chegar nas
periferias brasileiras. E, agora, não
como fomento indireto, mas através de
editais blicos. E não apenas na forma
de pulverização, mas como um
processo de política pública de cultura
com objetivo de fortalecer, fomentar,
reconhecer e formar agentes, redes e
multiplicadores de saberes tradicionais.
Programa Nacional de Cultura,
Educação e Cidadania – Cultura Viva
O ano é de 2003. Já no discurso
de posse do novo Ministro da Cultura,
Gilberto Gil, vemos uma guinada no
que viria a ser o papel do MinC. Falas
como “quem produz cultura é a
sociedade e não o governo” e que, com
isso, o papel de um Ministério seria o de
ativar as forças adormecidas
(invisibilizadas?) de uma produção
cultural potente, pulsante e existente
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
em todo o território nacional através de
um do in antropológico” mostram
mudanças. Cultura como algo comum e
ordinário em contraponto a uma visão
elitista de quem tem um dom ou quem
produz algo que possa ser considerado
cultura, traz para o centro do debate,
pela primeira vez, o tão falado, mas
esquecido povo.
Sem muito exagero podemos
dizer que foi a primeira vez que se viu
um Ministro de Estado falar em política
pública discricionária para a periferia
que não fosse a partir de uma política
de segurança e seus “caveirões”8
invadindo esses territórios.
Como marca desse olhar sobre a
cultura podemos observar três
dimensões: a simbólica, marcada pela
produção cultural que representa a
subjetividade, experimentação e forma
de se expressar de um povo, um grupo
ou uma comunidade; uma dimensão
cidadã, onde todo mundo tem direito à
cultura, à sua produção, fruição e
distribuição; e uma dimensão
econômica, que vai olhar para a cultura
e sua produção para além da
constituição de ativos econômicos,
8 Caveirão é o nome popular dado ao veículo
blindado, no formato de um tanque de guerra,
utilizado pela Polícia Militar do Estado do Rio de
independentemente de sua origem,
suporte ou escala, essa última que
sempre marcou a produção da cultura
de forma industrial e pelas/através das
regras do mercado.
um alargamento do que é
econômico ao se falar de cultura. Passa
a incluir as potências das festas
populares, artesanatos e toda produção
fora da lógica mercantil. É a cultura
produzida nos territórios
subalternizados favelas, periferias e
bairros populares - denominadas como
zonas opacas por Milton Santos (1997),
que eram, até então, invisíveis à lógica
financeira e ao Estado. Ou, como
demonstrado nas poucas, mas
significativas tentativas anteriores aqui
apresentadas, não alcançadas por
políticas públicas que pudessem
fomentá-las e/ou fortalecê-las.
No discurso oficial, nos
deparamos com novas premissas que
serviriam como bússolas para a
elaboração das políticas públicas de
cultural. Caberia ao Estado reconhecer
as necessidades de incluir nas
políticas, a posse de recursos e
garantias que pudessem assegurar às
Janeiro, para invadir os territórios periféricos e
entradas das favelas.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
comunidades e grupos culturais locais
iguais possibilidades de acesso aos
bens culturais, invertendo prioridades.
Reconhecer, ao invés do direito
desigual de igualdade, o direto à
diferença e busca por isonomia. Ou
seja, passar a reconhecer o “outro”
como um sujeito de direitos
(MARQUES; GUERREIRO, 2023).
Era o discurso da passagem
pela ponte da busca pela
universalização da atuação do Estado
na política cultural em contraponto à
focalização dos recursos comandada
pelos empresários travestidos de
mecenas, através da renúncia fiscal,
via mercado e sob os ditames do
marketing cultural.
A imagem do do in
antropológico” foi reitera pelo Ministro
Gilberto Gil no Encontro Nacional dos
Pontos de Cultura Teia 2007
ocorrido em Belo Horizonte/MG. Ele
veio a explicar que o do in antropológico
remetia a um processo de ativamento
de pontos irradiadores da política.
Utilizando a concepção da medicina
chinesa, percebia que esses pontos,
depois denominados Pontos de
Cultura, teriam o poder de dar
capilaridade às ações que
aconteciam nos territórios. Na imagem
da rede de significações, os Pontos de
Cultura seriam os “nós” dessa rede
realizando as interconexões. Esta
mesma imagem informava que a
abrangência da política ocorreria na
parceria com estes pontos que, em
última instância estariam na ponta para
serem energizados e energizadores
pela/da política e produtores desta
mesma política. Tempos depois, com a
criação dos Pontões de Cultura, estes
passam a ser os responsáveis pela
articulação dos pontos de cultura em
redes e, assim, passam a ser
cogestores da política cultural.
Revisitando o Cultura Viva
Em 2004, através da Portaria
Interministerial 156 foi criado o
Programa Cultura, Educação e
Cidadania - Cultura Viva. Como um
programa que visava atender um
público até então às margens do
Estado brasileiro, vem, desde sua
implementação sofrendo alterações,
aperfeiçoamentos, descontinuidades e,
finalmente, vai se tornar a Lei Cultura
Viva (2014). Se em 2024, o Programa
Nacional Cultura Viva comemora 20
anos, neste mesmo ano a Lei Cultura
Viva irá comemorar seus 10 anos.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Porém, são comemorações e
momentos diferentes. Se no caso do
Programa, antes de se converter em
Lei, tivemos diversas modificações na
sua modelagem, alcance e parcerias, a
Lei sofreu de um mal que muitos
ouvimos falar: uma lei que não pegou.
Não, ainda!
O Programa Cultura Viva
quando foi criado em 2004, partiu de
uma premissa simples, mas
extremamente potente: reconhecer a
produção cultural cotidianas pré-
existente nos territórios periféricos e de
exclusão realizadas por grupos
culturais e que passam a ser
consideradas “ponto de cultura” após
usa institucionalização. Mesmo que no
decorrer do tempo tenham sido
agregados novos sentidos e ações aos
pontos de cultura, essa é a espinha
dorsal do “Cultura Viva”: reconhecer,
desesconder9 e positivar fazeres
culturais que diversas vezes
eram/foram/são vistos como marginais,
para além do sentido de estar à
margem.
9 Segundo Célio Turino, um dos idealizadores
do programa, nós “precisamos desesconder o
Brasil, mostrá-lo para nós mesmos e para o
mundo. Precisamos entender o Brasil; no lugar
de conceitos rígidos, noções líquidas, no lugar
Além dos Pontos de Cultura,
completavam o Programa Cultura Viva,
a ação Cultura Digital, que tinha como
objetivo democratizar a produção de
programas colaborativos para
computadores, estabelecer
interconexões e debates sobre a
cultura no suporte digital e permitir a
geração de produtos culturais digitais.
Tínhamos, também, a Escola Viva, que
visava a integração entre os pontos de
cultura e as escolas. Para possibilitar a
participação dos jovens de baixa renda
nas oficinas dos pontos de cultura,
tivemos as bolsas destinadas a esses
jovens, denominados Agente Cultura
Viva e, completando o quarto eixo do
Programa, a Ação Griô. Essa ação era
de reconhecimento de mestres e
aprendizes “contadores de histórias”,
artesãos, representantes da cultura
afro-brasileiras e demais atores sociais
que adquiriram, reelaboram e que
possam repassar seus conhecimentos
para os mais jovens e recebem uma
bolsa pelo período de um ano. Nesse
da reta, a curva. Precisamos nos fundir com o
Brasil, tomar um banho em suas águas, que
são muitas”. (TURINO, 2005, p. 135).
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
período os griôs eram acompanhados
por esse jovem aprendiz10.
No caso dos Pontos de Cultura,
os grupos culturais concorriam ao edital
público federal organizado e divulgado
pelo MinC, apresentavam seus planos
de trabalho, a comprovação de
existirem pelo menos 3 anos e, se
selecionados, receberiam R$ 180 mil
divididos em 3 parcelas anuais de R$
60 mil. O que, na prática, dava algo em
torno de R$ 5 mil/mês.
A utilização do edital público
como uma das formas de fazer com que
uma das modalidades de políticas
públicas de cultura chegassem ao
público beneficiário gerou controvérsia.
Inicialmente, críticos apontaram para a
falta de fomento e indução de
prioridades do governo junto aos que
se tornariam “ponto de cultura”. Na
verdade, o edital exigia que se
apresentasse um plano de trabalho do
que seria realizado nos três anos
posteriores à seleção pública. Porém,
esse plano de trabalho não estava
relacionado a diretrizes do MinC. Uma
das críticas era, portanto, sobre qual
seria o papel do MinC na formulação de
10 Os quatro eixos de ação do Programa Cultura
Viva foram apresentados anteriormente. Ver
Guerreiro (2011).
uma política pública de cultura:
pulverizador de recursos ou
indutor/fomentador de ações pré-
definidas como prioritárias para o
desenvolvimento sociocultural do país?
Cabe lembrar que, antes do
gestor Célio Turino estar à frente da
Secretaria de Programas e Projetos
Culturais11 (SPPC), órgão responsável
pelo Programa, havia, segundo Santini
(2017) uma preferência do então
presidente da república, Luís Inácio
Lula da Silva, por um projeto de
edificações de espaços culturais nas
principais periferias brasileiras. Falando
sobre o cenário que Turino encontrou
ao chegar à SPPC, Santini diz:
Sua chegada na equipe do MinC,
aconteceu em um momento de
impasse sobre a implementação do
que deveria ser o principal
programa de cidadania cultural e
democratização do acesso à
cultura. As Bases de Apoio à
Cultura (BACs) seriam,
inicialmente, a grande marca do
governo Lula na democratização do
acesso à cultura nas comunidades
e territórios populares. As BACs
foram concebidas como grandes
infraestruturas, equipamentos
culturais de 1.300 metros
quadrados, implementadas
inicialmente em 50 localidades do
país a um custo total de R$ 70
Milhões de reais, em valores de
11 Posteriormente a Secretaria passa a ser
denominada de Secretaria de Cidadania
Cultural (SCC).
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
2004. Promoveriam o acesso à
cultura, a realização de atividades
artísticas e estariam interligadas em
rede por meio de ferramentas
tecnológicas e digitais (SANTINI,
2017, p. 60).
Inclusive Santini salienta que o
custo inicial de manutenção das BACs
seria, segundo Turino, de R$ 5 mil reais
por mês. Valor esse que vai marcar o
repasse do MinC para os Pontos de
Cultura através dos editais, R$ 5
mil/mês, R$ 60 mil/ano, R$ 180 mil
reais em três anos.
A concepção dos pontos de
cultura inova em relação à concepção
dos BACs, pois busca fortalecer
iniciativas culturais existentes e que
são reconhecidas pela sociedade. É
um formato de cogestão de políticas
culturais com as comunidades e grupos
culturais. Ao invés de se construir uma
estrutura oca que precisaria ser
preenchida com atividades e
concepções de cultura provavelmente
de fora dos territórios beneficiados, o
Ponto de Cultura seria o
reconhecimento do que vinha sendo
feito nestes territórios. Ou como disse,
12 Para um debate sobre as concepções de
patrimônio cultural material e imaterial, ver
Oliveira (2008).
13 As teias são os fóruns de discussões entre
os pontos de cultura. Tivemos 4 Teias
Célio Turino, não cabia ao Estado dizer
o que a comunidade quer fazer, mas
como querem fazer (2009). Se tratava,
principalmente, do fortalecimento do
comum, do cotidiano e da cultura
ordinária, como apregoado pelo
ministro Gilberto Gil. Afastava-se, desta
forma, da lógica da “pedra e cal” tão
cara aos debates sobre patrimônio
cultural no país12.
No decorrer dos anos tivemos
diversos aperfeiçoamentos que foram
se concretizando em portarias, projetos
de lei e normativas. Seja em termos de
seleção púbica (editais através da
oralidade, editais para grupos
minoritários específicos etc.), seja em
termos de gestão (parcerias com
estados e municípios, criação das
redes de pontos e pontões de cultura),
os aperfeiçoamentos alargaram as
possibilidades do Programa Cultura
Viva. Debates como os que ocorreram
entre os pontos de cultura durantes as
quatro edições das Teias Nacionais13
também foram importantes momentos
de trocas para os ajustes.
Nacionais: 200,2007, 2008, 2010 e 2014. Para
uma análise do papel das Teias na gestão
compartilhada do Programa Cultura Viva, ver
Lima (2013)
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Uma das importantes mudanças
no Cultura Viva foi a busca de repasse
da gestão do programa aos demais
entes federativos. A forma de repasse
das atribuições e recursos se deu
através da política de fomento à adesão
dos entes federativos. E, uma das
ações previstas era a criação de redes
municipais e estaduais de Pontos de
Cultura. Afinal, a meta 23 do Plano
Nacional de Cultura14 (PNC) aponta(va)
para a criação de 15 mil pontos de
cultura “em funcionamento,
compartilhados entre o Governo
Federal, as Unidades da Federação
(UFs) e os municípios integrantes do
Sistema Nacional de Cultura (SNC)”
(BRASIL, 2010, p. 75).
Até o lançamento do PNC, em
2010, tínhamos um pouco mais de 3 mil
pontos de cultura no país. Assim, meta
a ser atingida, em 2020, apontava para
a centralidade dos pontos de cultura, de
memória e de cultura indígena na
execução de uma política pública de
cultura gerida em parceria entre os
entes federativos e as organizações da
sociedade civil. Buscava-se um
espraiamento das ações de
reconhecimento e de fortalecimento da
14 Emenda constitucional nº 48/2005.
diversidade cultural por todo o território
nacional. A ousada meta de
reconhecimento dos grupos culturais
pelos poderes públicos, possibilitaria
que esses grupos obtivessem outras
formas de subvenção/patrocínios para
seus funcionamentos.
Mas, a eleição de 2010, por mais
contraditório que poderia parecer à
época, viria trazer importantes
modificações na gestão do MinC. A
restruturação no MinC apontou para o
não reconhecimento dos ganhos das
duas últimas gestões do ministério que
ampliou a base social do governo ao
“trazer” os fazedores e fazedoras
culturais das favelas, interior do país e
da periferia para o interior do lócus de
discussão sobre o Estado através do
Programa Cultura Viva. No redesenho
institucional, a Secretaria de Cidadania
Cultural, responsável pela execução do
Programa Cultura Viva, e a Secretaria
da Identidade e da Diversidade Cultural
são extintas. No lugar de ambas, é
criada a Secretaria Cidadania e
Diversidade Cultural. e a Secretaria da
Cidadania Cultural. Os dois eixos que
estruturavam o protagonismo da visão
alargada de cultura – a diversidade e a
137
GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
cidadania– e do próprio Cultura Viva
perde força. A opção adotada foi a de
apostar na dimensão econômica da
cultura através da criação da Secretaria
de Economia Criativa. Mais uma janela
de oportunidade se perderia, agora
com um acúmulo de 7 anos de ações
direcionadas à grupos culturais antes
alijados dos espaços de tomada de
decisão e das políticas públicas de
cultura.
Não havia dúvidas sobre alguns
problemas que deveriam ser superados
no Programa. Bezerra e Barbalho
(2015), entre outros, aponta que
problemas com o,
modelo de gestão, entraves
burocráticos e a comunicação
entre os Pontos e o Ministério, e
até mesmo a pouca vontade
política, foram os principais
impasses na implantação da
Ação. Os grupos tiveram que se
apropriar de gidas regras,
mecanismos de gestão e normas
de um sistema legal inadequado e
universalista, algo que não era
familiar às organizações sociais e
que não se adequava a demandas
e realidades tão distintas das
culturas brasileiras. Isso
provocou, nos anos iniciais da
Ação, uma série de dificuldades e
problemas, como descontinuidade
e interrupção de atividades. Em
síntese, a prática mostrou que
uma gestão que tenta ser
democrática e popular, buscando
romper hierarquias e narrativas
tradicionais, se confrontou com
uma estrutura estatal ainda elitista
e conservadora, e, portanto,
profundamente excludente
(BEZERRA; BARBALHO, 2015,
p.78).
Assim, de um lado, um Estado
historicamente a serviço de uma classe
que sempre dele se beneficiou, não
estava/não está preparado para uma
democratização da sua forma de
gestão que abarcasse/abarque os
beneficiários do Programa Cultura Viva.
Por outro, temos os grupos culturais
que necessitavam/necessitam de
políticas de formação em gestão
cultural e de políticas de inclusão
social. Afinal, era necessário e preciso
ir além de uma política de Estado,
afinal, o Estado ainda é de tão poucos
(TURINO, 2006).
Como vimos no início deste
texto, essa contradição não é recente
pelo menos em relação ao campo
cultural. Vimos surgir, a partir do
processo de redemocratização e mais
explicitamente a partir de 2003, uma
esfera pública não estatal, denominada
por Gramsci, como sociedade civil, e
que fez com que o Estado precisasse
negociar com esta “sociedade civil” e,
assim, se ampliasse. Segundo
Coutinho (2007), o Estado ampliado
gramsciano não pode se legitimar
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 122-143, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
apenas pela coerção/repressão. Ele
precisa gerar alguns consensos e, para
isso, precisa atender outros segmentos
sociais que não apenas os da classe
dirigente. Esse processo vem sendo
vivenciado desde meados da década
de 1980 e, nos últimos 20 anos, fez
alargar ainda mais os demandantes de
políticas blicas de cultura e, em
última instância, de poder político.
Vimos, porém, que a ampliação
da esfera de ação do Estado no sentido
gramsciano e o surgimento de novos
atores sociais na relação de poder
dentro deste mesmo Estado e no
interior desta sociedade civil (aqui
representada pelos grupos culturais
que por si também são
heterogêneos) não garantem avanços
em direção a uma
radicalização/universalização da
cidadania. Este movimento é também
heterogêneo e um processo de
avanços e recuos. Vivenciamos esses
retrocessos durante o período
democrático entre 2011 e 2016 e que
se amplificou no período pós-golpe
jurídico-parlamentar.
Paralelo a esse contexto de
refração nas políticas públicas de
15 Lei nº 13.018/2014.
cultura direcionadas aos grupos
culturais periféricos a partir de 2011,
tivemos a continuidade da busca pela
institucionalização do Programa
Cultura Viva pela via legislativa. O
projeto de lei que tornava o programa
uma política de estado, iniciou sua
tramitação em 2011 e, em 2014, se
tornaria a Lei Cultura Viva15, último ano
da primeira gestão da presidenta Dilma
Rousseff.
A Lei Cultura Viva, que criou a
Política Nacional Cultura Viva, não
avançou na regulamentação dos
instrumentos de flexibilização dos
repasses e prestação de contas para os
grupos culturais e comunitários,
conforme já salientado. Houve avanços
no sentido de garantir a
regulamentação da execução da uma
das formas de políticas públicas de
cultura através da modalidade de
financiamento através de editais e
chamadas públicas e de forma
plurianual – até 3 anos. Porém, nove
anos após a promulgação da Lei
Cultura Viva, com o Decreto
11.453/2023 (chamado de Decreto do
Fomento) tivemos a simplificação e
desburocratização, seja da prestação
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
de contas, seja dos repasses aos
pontos e pontões de cultura16.
Entretanto, decreto não é lei. está
ocorrendo interpretações controversas
por parte de procuradores gerais de
estados em relação ao verdadeiro
poder regulador do Decreto do
Fomento. Porém, isso é ponto para
outra discussão.
Como pudemos observar no
decorrer deste texto, desde a sua
promulgação, a descontinuidade das
ações do Cultura Viva é a sua marca.
Isso aponta que, em se tratando de
grupos com menos poder de pressão e
reconhecimento pelo Estado capturado
pelas forças conservadoras, o basta
a institucionalização das ações como
política de Estado para que essas não
sejam descontinuadas. Novas e
inovadoras ações serão necessárias
para territorializar políticas e ampliar o
apoio da sociedade para esses
produtores e produtoras de cultura.
16 Apesar do atraso, finalmente há uma
regulação dos mecanismos de fomento direto
e indireto, no âmbito do governo federal, que
também joga luz sobre a forma de celebração
de acordos entre os demais entes da
federação com os grupos culturais. Por definir
que o fomento à cultura não é prestação de
serviço e, portanto, não pode ser regido pela
Observações finais
Vivenciamos nesses 20 anos do
Cultura Viva diversas fases da política
pública de cultura no país e o
reconhecimento da diversidade cultural
brasileira como uma das marcsa da
nossa identidade. Mas, também, o
reconhecimento de que diversidade em
um ambiente de desigualdade social
pode nos levar a criação de um novo
mito sobre democratização e
contribuição igualitária dos diferentes
na formação das identidades.
A busca pelo alargamento das
práticas do Estado para que grupos
culturais e comunitários possam
dialogar e ser objeto de políticas
públicas continuam a ser a nossa meta.
A criação de uma política nacional
deste mesmo Cultura Viva com objetivo
de garantir e ampliar o acesso da
população brasileira ao conjunto dos
direitos culturais brasileiros, se faz mais
necessária do que podíamos imaginar
há 10 anos.
Lei de Licitações, possibilita que a prestação
de contas dos grupos culturais, como os que
gerem pontos de cultura, possa se dar sob
outros parâmetros. Ver
https://www.sjp.pr.gov.br/wp-
content/uploads/2023/06/Decreto-11.453-
2023-Decreto-do-Fomento.pdf.
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GUERREIRO, João. Revisitando o Cultura Viva e os pontos de3 cultura.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Ao mesmo tempo, passamos por
gestões diferenciadas no Ministério da
Cultura desde o início do programa
Educação, Cultura e Cidadania, em
2004, até a promulgação da Lei Cultura
Viva, dez anos depois. Tivemos dois
ministros afinados com o programa
idealizado por Celio Turino e que
apoiaram diversos aperfeiçoamentos
desde o início do programa Gilberto
Gil e Juca Ferreira. Que viveram
também, problemas na execução e,
principalmente, entraves em relação à
formalização da relação
Estado/Sociedade no âmbito de um
aparelho de estado pouco afeito a
grupos não formalizados ou
formalizados, mas o objeto de
políticas desse mesmo estado.
Contraditoriamente,
vivenciamos, em um governo que
aparentava uma possível continuidade
e aprimoramento nas políticas públicas
de cultura, uma descontinuidade no
diálogo com esses grupos logo no início
da gestão federal em 2011. Como
resultado tivemos uma mudança de
enfoque e concepção de cultura que se
refletiu no enfraquecimento da
dimensão cidadã da cultura e dos
ganhos de democratização que esta
dimensão havia trazido para o interior
do Ministério.
A promulgação da Lei Cultura
Viva ficou carente de regulamentação
das ações preconizadas por ela. Mas,
os grupos culturais e comunitários
continuaram suas atividades e
produções cotidianas, pois o Cultura
Viva apenas reconhecia o que era
existente, potente e diverso. Mesmo
sem o apoio governamental, tais
grupos foram fundamentais na
resistência à derrotada imposta pela
guerra cultural que se seguiria a partir
de 2019. As críticas ao programa foram
substituídas por ataques ao próprio
Ministério da Cultura que veio a ser
extinto.
Vivemos um momento de
reconstrução do MinC e das estruturas
de gestão do país. As políticas públicas
de cultura estão sendo remontadas,
temos editais e chamamentos públicos
para estados e municípios garantidos
até 2027 e os debates democráticos
retornaram.
A Política Nacional Cultura Viva
foi reativada, em setembro de 2023,
com o lançamento de dois editais
Cultura Viva de base comunitária
premiando agentes e grupos culturais
comunitários e pontões de cultura. O
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cultura Viva está voltando com
regulamentação dos repasses e das
prestações de contas, essas agora sob
a égide do “Decreto do Fomento”. É um
grande avanço, mas novos desafios se
avizinham.
A expectativa agora é sobre o
federalismo cultural. Qual o papel do
MinC frente a descentralização dos
recursos via Política Nacional Aldir
Blanc de fomento à Cultura para
estados e municípios? Como se dará a
indução da política cultural? Ou não
haverá indução e sim observância das
escolhas dos grupos culturais? E as
políticas blicas de cultura além dos
editais, como se darão? E as políticas
de formação e ações transversais junto
aos demais ministérios, como o da
Educação?
Essas são as novas questões
que o momento nos coloca. O MinC
voltou. E novos desafios também.
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Acessibilidade Cultural de Base Comunitária - Desafios para o Programa
Cultura Viva
Patrícia Silva Dorneles1
Claudia Reinoso Araújo de Carvalho2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.60470
Resumo: Embora o direito à cultura esteja presente na nossa Constituição, formulada em 1988,
observa-se que nos últimos quinze anos a pauta da cidadania cultural das pessoas com deficiência tem
desafiado as políticas públicas de cultura à efetivação desse direito, de forma emancipatória e
anticapacitista. Com o processo de democratização do país, gestões públicas progressistas do campo
da esquerda brasileira, no início dos anos 90, avançaram também nos processos de democratização
cultural. Como resultado, verifica-se, ao longo do tempo, ainda que com período de retrocesso na pauta,
a emergência das políticas culturais de base comunitária, de cidadania e de diversidade cultural. Este
artigo tem como objetivo refletir sobre o contexto da pauta da acessibilidade cultural para pessoas com
deficiência. Discutem-se aqui iniciativas para qualificar a agenda de direito cultural dessa população,
bem como estratégias para comprometer os diferentes agentes do campo da cultura com a qualificação
do capital cultural das pessoas com deficiência. Destacam-se a parceria entre a Universidade Federal
do Rio de Janeiro - UFRJ - e o Ministério da Cultura MinC, entre 2013 e 2019, a partir das vagas
ofertadas aos Pontos de Cultura no Curso de Especialização em Acessibilidade Cultural - CEAC - e
outras ações que atuam na sensibilização dessas iniciativas de base comunitária, na agenda da
cidadania cultural das pessoas com deficiência. O processo histórico de exclusão, invisibilidade e
preconceito ainda é uma barreira a ser enfrentada. Verifica-se ainda que a condição sociocultural da
população com deficiência no Brasil e no mundo se apresenta como pauta significativa, tendo em vista
o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável. Concluiu-se que as iniciativas culturais de base
comunitária são fundamentais para a promoção da cidadania cultural de pessoas com deficiência e em
vulnerabilidade social. Dessa forma, destaca-se a importância do Programa Cultura Viva e seu forte
compromisso com os desafios sociais previstos na Agenda 2030, que implica a atualização da pauta
da cidadania cultural das pessoas com deficiência numa perspectiva anticapacitista.
Palavras-chave: Acessibilidade Cultural; Cultura; Pessoas com Deficiência; Direitos Culturais;
Cidadania Cultural
1 Patrícia Silva Dorneles. Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Docente na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Contato:
patriciadorneles@medicina.ufrj.br - https://orcid.org/0000-0003-3440-7549
2 Cláudia Reinoso Araújo de Carvalho. Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz. Docente na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Brasil. Contato: claudiareinoso73@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4105-9191
Recebido em 07/11/2023, aceito para publicação em 28/03/2024.
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
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Accesibilidad cultural comunitaria: desafíos para el programa Cultura Viva
Resumen: Si bien el derecho a la cultura está presente en nuestra constitución formulada en 1988, se
observa que en los últimos quince años la agenda de ciudadanía cultural de las personas con
discapacidad ha desafiado las políticas públicas culturales para implementar este derecho, de manera
emancipadora y anticapacismo. Con el proceso de democratización del país, las administraciones
públicas progresistas del campo de izquierda brasileño, a principios de los años 90, también avanzaron
en los procesos de democratización cultural. Como resultado, con el tiempo, aunque con un período de
regresión en la agenda, se produce el surgimiento de políticas culturales de base comunitaria, de
ciudadanía y de diversidad cultural. Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el contexto de la
agenda de accesibilidad cultural para personas con discapacidad. Discutimos aquí iniciativas para
calificar la agenda de derechos culturales de esta población, así como estrategias para comprometer a
diferentes agentes del campo de la cultura en la calificación del capital cultural de las personas con
discapacidad. Se destaca la alianza entre la Universidad Federal de Río de Janeiro - UFRJ y el
Ministerio de Cultura - MINC, entre 2013 y 2019, a partir de las vacantes ofrecidas a Pontos de Cultura
en el Curso de Especialización en Accesibilidad Cultural - CEAC y otras acciones en acciones para
crear conciencia sobre estas iniciativas comunitarias en la agenda de ciudadanía cultural de las
personas con discapacidad. El proceso histórico de exclusión, invisibilidad y prejuicios aún son barreras
que enfrentar. También se verifica que la condición sociocultural de la población con discapacidad en
Brasil y en el mundo se presenta como una cuestión significativa, de cara al objetivo de promover el
desarrollo sostenible. Se concluyó que las iniciativas culturales de base comunitaria son fundamentales
para promover la ciudadanía cultural de las personas con discapacidad y en vulnerabilidad social. De
esta manera, destaca la importancia del Programa Cultura Viva y su fuerte compromiso con los desafíos
sociales previstos en la Agenda 2030, que pasa por actualizar la agenda de ciudadanía cultural de las
personas con discapacidad desde una perspectiva antidiscapacidad.
Palabras clave: Accesibilidad Cultural; cultura; personas con deficiencia; derechos culturales;
ciudadanía cultural
Community-Based Cultural Accessibility: Challenges for the Cultura Viva Program
Abstract: Although the right to culture is present in our constitution formulated in 1988, it is observed
that in the last fifteen years the agenda of cultural citizenship of people with disabilities has challenged
public cultural policies to implement this right, in an emancipatory and anti-ableism way. With the
country's democratization process, progressive public administrations from the Brazilian left field, in the
early 90s, also advanced in the processes of cultural democratization.As a result, over time, although
with a period of regression on the agenda, there is the emergence of community-based cultural policies,
citizenship and cultural diversity. This article aims to reflect on the context of the cultural accessibility
agenda for people with disabilities. We discuss here initiatives to qualify the cultural rights agenda of
this population, as well as strategies to commit different agents in the field of culture to qualifying the
cultural capital of people with disabilities. The partnership between the Federal University of Rio de
Janeiro - UFRJ and the Ministry of Culture - MINC, between 2013 and 2019, stands out, based on the
vacancies offered to Pontos de Cultura in the Specialization Course in Cultural Accessibility - CEAC and
other actions in actions to raise awareness of these community-based initiatives in the cultural
citizenship agenda of people with disabilities.The historical process of exclusion, invisibility and
prejudice are still barriers to be faced. It is also verified that the sociocultural condition of the population
with disabilities in Brazil and around the world presents itself as a significant issue, with a view to the
objective of promoting sustainable development.It was concluded that community-based cultural
initiatives are fundamental for promoting the cultural citizenship of people with disabilities and those in
social vulnerability. In this way, the importance of the Cultura Viva Program and its strong commitment
to the social challenges foreseen in the 2030 Agenda stand out, which involves updating the agenda of
cultural citizenship for people with disabilities from an anti-disability perspective.
Keywords: Cultural Accessibility; culture; disabled people; cultural rights; cultural citizenship
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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Acessibilidade Cultural de Base Comunitária - Desafios para o Programa
Cultura Viva
Introdução
O processo de abertura potica
no Brasil e as conquistas advindas da
democracia potencializaram as
diferentes iniciativas culturais que
surgiram na periferia das cidades
brasileiras, as quais têm se
denominado nos últimos tempos, no
âmbito das políticas culturais, como
“cultura de base comunitária”. As
novas estratégias de ações ligadas aos
movimentos sociais e populares, e até
mesmo no âmbito das poticas públicas
culturais, construíram um novo olhar
sobre formas de produção cultural.
Observa-se que houve, no final da
década de 80 e início da década de 90,
o investimento em políticas de
democratização cultural,
principalmente em gestões públicas
progressistas, administradas por
partidos de esquerda. Entre elas, a
política cultural de “Descentralização
da Cultura”, durante a gestão petista de
Olívio Dutra, na Administração Popular
da cidade de Porto Alegre, bem como a
perspectiva da “Cidadania Cultural”, na
cidade de São Paulo, sob o comando
de Luiza Erundina. A ampliação de
iniciativas culturais, como a oferta de
oficinas de artes em comunidades de
periferia, apontaram como caminho
possível o deslocamento e a
emergência de novos espaços de
produção cultural, a partir de uma visão
marcada pela valorização da
pluralidade da produção cultural, com
capacidade de organizar novos
territórios. Esses territórios emergentes
em suas distintas formas de
organização; de produção; de
reapropriação dos espaços da cidade e
da periferia, entre outros vêm
construindo estratégias de afirmação e
resistência que, alimentadas por uma
ética de solidariedade e por uma
política da amizade, fomentam
identidades inventivas e desejantes e
são fortalecidas por meio dos
intercâmbios de experiências com
capacidade de respostas à formação
de redes e de novas ações e corredores
culturais (DORNELES, 2011).
As políticas de base comunitária
têm o objetivo de satisfazer as
necessidades culturais da população e
promover o desenvolvimento de suas
representações simbólicas, tendo como
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
protagonista a comunidade, o coletivo e
as minorias culturais. Nesse sentido,
Porto (2009) relata que uma política
cultural de base comunitária não tem
como principais destinatários artistas e
produtores, mas sim a comunidade. Do
mesmo modo, é importante ressaltar
que a experiência estética vivida como
fruição artística potencializa novas
identidades inventivas gerando agentes
criativos no âmbito da cadeia cultural
local (DORNELES, 2011). Esses
agentes atuam em diferentes áreas do
fazer artístico e cultural do território e
fora dele, com capacidade de
intercâmbio e interlocução de trocas e
formação de redes culturais, a fim de
constituírem e participarem de
processos culturais mais amplos.
Foi a partir dessas experiências
de base comunitária que o Ministério da
Cultura, durante o governo Lula e a
gestão do ministro Gilberto Gil,
implementou o Programa Nacional de
Cultura, Arte e Cidadania Cultura Viva
/ Pontos de Cultura, instituído em 06 de
julho de 2004, pela Portaria 156. O
Programa Cultura Viva - PCV, por meio
da certificação de diferentes iniciativas
de base comunitária identificadas, a
partir do fomento do MinC, como
Pontos de Cultura, enfrentou o desafio
de promover no âmbito nacional uma
ação ampla de política cultural que,
amparada em pressupostos de
participação e descentralização, se
comprometeu em revigorar as ideias e
os ideais até então operados de modo
mais local. Em 2010, no fim do governo
Lula, contabilizou-se o impacto do
Cultura Viva com 3.500 Pontos de
Cultura, beneficiando mais de 8
milhões de pessoas, sendo estes, em
sua maioria, jovens de regiões mais
afastadas e vulneráveis, moradores de
favelas, aldeias indígenas e
quilombolas. Contabilizou-se também
cerca de 30 mil postos de trabalho em
ações comunitárias que dialogam com
a cultura digital, inovação e tradição
cultural. Como expressão de política
pública de cultura nacional de base
comunitária, o PCV tornou-se
referência internacional que tem
servido de modelo para a constituição
dessas políticas públicas em diferentes
países da América Latina. Em 2014, a
Lei Cultura Viva (Lei 13.018, de 22
de julho de 2014) institucionalizou a
política cultural de base comunitária e
ampliou seu compromisso com os
diferentes entes federados.
No âmbito do Programa Cultura
Viva, vale ressaltar que, embora até
148
DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
2014 não houvesse uma ão
específica de fomento a iniciativas que
se desenvolviam para o público com
pessoas com deficiência, foi no V
Encontro Nacional de Pontos de
Cultura TEIA, por meio da
constituição de novos Grupos de
Trabalho GT - do programa, que se
criou o GT de Pontos de Cultura e
Acessibilidade Cultural. Parte dessa
articulação foi resultado da formação
em acessibilidade cultural realizada
pela UFRJ, por intermédio da iniciativa
do CEAC e do Encontro Nacional de
Acessibilidade Cultural - ENAC.
A baixa escolaridade e a
precariedade de vida das pessoas com
deficiência são preocupações para a
Organização das Nações Unidas
ONU. Em todos os países, grupos
vulneráveis, como mulheres, pessoas
no limiar de pobreza extrema e pessoas
idosas apresentaram incidências
superiores de deficiência. Para todos
esses grupos, a taxa é superior nos
países em desenvolvimento. A
prevalência da deficiência nos países
de renda mais baixa, entre pessoas
com idades de 60 anos ou mais, por
exemplo, foi de 43,4%, enquanto
totaliza 29,5% nos países com renda
mais elevada (Relatório Mundial sobre
deficiência, 2011). A agenda 2030,
plano global para atingirmos em 2030
um mundo melhor para todos os povos
e nações, equilibra as três dimensões
do desenvolvimento sustentável: a
econômica, a social e a ambiental. A
Agenda 2030 é constituída por 17
Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável - ODS - e 169 metas. As
políticas públicas e as diversas
iniciativas visando ampliar o capital
cultural das pessoas com deficiência
são cruciais para que os objetivos e
metas da Agenda 2030 sejam
alcançados e são igualmente
importantes no enfrentamento das
desigualdades sociais inerentes a essa
população.
Para o enfrentamento desses
fenômenos sociais, defendemos as
estratégias que visam ao fortalecimento
do capital cultural das pessoas com
deficiência, sobretudo que sejam
pautadas em políticas culturais de base
comunitária. Dessa forma, propõe-se
aqui a discussão de iniciativas para
qualificar a agenda de direito cultural
das pessoas com deficiência, bem
como ações para comprometer os
diferentes agentes do campo da cultura
com a qualificação do capital cultural
dessa população. Nesse sentido,
149
DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
fazemos também um convite ao Cultura
Viva, que, atento às ações de base
comunitárias e privilegiando processos
de emancipação e cidadania, espaços
de resistência e identidade coletiva, se
comprometa com a construção de uma
sociedade anticapacitista.
Capital Cultural e Pessoas com
Deficiência
Estudiosos da população com
deficiência têm destacado a existência
de um círculo vicioso entre a pobreza e
a deficiência. As pessoas pobres têm
maior risco de adquirir uma deficiência,
devido, entre outras coisas, à falta de
acesso à boa alimentação, aos serviços
de saúde, saneamento etc.
(DORNELES; CARVALHO; MEFANO,
2018).
No Brasil, a análise dos dados
do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE (2010) retrata uma
estreita relação entre deficiência,
pobreza e precárias condições de vida.
Na população acima de 15 anos de
idade com, pelo menos, uma
deficiência investigada, verificou-se
que: 61,10% não têm instrução
nenhuma ou possuem o ensino
fundamental incompleto; 14,20% têm
fundamental completo e médio
incompleto; 17,70% têm ensino médio
completo e superior incompleto; 6,70%
têm superior completo; e 0,40%
indeterminado. Um estudo mais
recente da Pesquisa Nacional de
Saúde, realizada em parceria com o
IBGE (2019), demonstra que este
quadro não mudou. Observa-se que a
pesquisa realizada, que analisou a
distribuição do percentual das pessoas
com mais de 18 anos com deficiência,
constatou que 67,6% dessa população
não tem instrução e possui ensino
fundamental incompleto; 10,8% têm
ensino fundamental completo e médio
incompleto; 16,6% têm ensino médio
completo e superior incompleto; e 5,0%
têm superior completo.
Não se pode deixar de
considerar que a classe social, o local
de moradia, a religião, a sexualidade, a
idade, a raça e o gênero exercem
efeitos sobre os indivíduos nas diversas
esferas. Nesse sentido, insere-se o
conceito de deficiência também sob a
lente da interseccionalidade. O termo
interseccionalidade é definido por
Crenshaw (2002) como as “várias
formas de subordinação que refletem
os efeitos interativos das
discriminações de raça e gênero”
(CRENSHAW, 2002, p. 171). Segundo
150
DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
a autora, existe um tipo de
discriminação que tem rebatimentos
em todas as esferas da vida social e
laboral e que se apresenta em uma
forma de subordinação diretamente
relacionada a questões de gênero e
raça. A “discriminação interseccional”
considera que grupos sociais não são
homogêneos, seja de mulheres ou
negros, e que existem também outras
características e experiências pessoais
presentes, tornando-os diferentes e
múltiplos em suas particularidades.
Como destacado anteriormente,
a baixa escolaridade e a precariedade
de vida das pessoas com deficiência
são preocupação para a ONU e estão
pautadas na agenda 2030. Gehre e
Resende (2019, s/p) fazem algumas
críticas à Agenda 2030 que devem ser
consideradas. Os autores apontam que
o “sentimento de positividade que
parece nortear a Agenda 2030 e os
ODS na medida em que ‘busca
fortalecer a paz universal com mais
liberdade’, contrasta com a realidade
vivida em muitos lugares do planeta”. A
falta de reconhecimento das múltiplas
dimensões da pobreza e a ideia de sua
erradicação reduzida a uma visão
econômica expressam os traços e
evidências de uma visão liberal. Apesar
da interseccionalidade - relacionada a
temas como gênero, raça e
sexualidades - ser abordada, os
autores criticam que as jovens e
meninas em situação de
vulnerabilidade não encontram eco nas
metas estabelecidas globalmente.
De acordo com Dorneles (2021),
entre os objetivos da Agenda 2030, o
ODS 4, que versa sobre o acesso a
uma educação “inclusiva, equitativa e
de qualidade”, parece se apresentar
como uma porta de entrada para a
pauta da cultura para pessoas com
deficiência, visto que, tradicionalmente,
é por meio de diferentes iniciativas de
educação formal que a maioria das
crianças e jovens acessa pela primeira
vez os espaços culturais dos diferentes
tipos: museus, centros culturais,
teatros, salas de exposição das artes
visuais e cinemas, entre outros.
Algumas iniciativas de ação educativa
comprometidas em buscar soluções
para a promoção de acessibilidade
cultural para pessoas com deficiência
acontecem no país, ainda que em
pequena escala no contexto dos
espaços culturais. Portanto, dignificar o
capital cultural das pessoas com
deficiência em nível mundial e erradicar
a pobreza são fundamentais para um
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
mundo sustentável. Assim, se é
urgente romper com a existência do
círculo vicioso entre a pobreza e a
deficiência, questiona-se: qual o papel
da cultura e das políticas públicas
culturais?
A Agenda 2030, em seu ODS 8,
aponta também para a importância de
se promover o crescimento econômico
inclusivo, o que demanda a
necessidade de sensibilizar os gestores
de cultura no sentido de que incluam as
pessoas com deficiência em suas
equipes. Quem atua na pauta da
acessibilidade cultural reconhece que
os melhores consultores e mediadores
para as ações de acessibilidade cultural
nos ambientes e projetos culturais são
as próprias pessoas com deficiência
(DORNELES, 2021).
A ampliação da participação
ativa das pessoas com deficiência nos
diferentes programas, projetos e ações
culturais acessíveis nos últimos anos
tem provocado a construção de novos
paradigmas no campo cultural, a partir
da emergência de novos conceitos. É
fundamental que as iniciativas de
gestão e políticas culturais estejam
comprometidas com a pauta
anticapacitista.
Para Dias (2013), “a concepção
central expressa por capacitismo pode
ser associada com a produção de
poder pela narrativa social, relacional
com a temática do corpo e ao padrão
corporal perfeito, dito normal e
normativo” (DIAS, 2013, p. 5). Para
Régis (2013), “a discriminação baseada
na deficiência [é] decorrente da crença
de que as pessoas com deficiência são
inferiores” (REGIS, 2013, p. 120). Mello
(2020) aponta que “as lutas
anticapacitistas e anticapitalistas estão
do mesmo lado da trincheira” (MELLO,
p. 99), mas, para isso, deve-se romper
com a narrativa hegemônica da
deficiência como uma experiência
individual, que tem sido pautada pela
perspectiva do modelo médico da
deficiência e compreender como o
processo de desenvolvimento do
sistema capitalista e seus princípios de
competição, trabalho especializado e
obtenção de lucro máximo impactam a
discriminação socioeconômica, sendo
uma das principais formas de opressão
das pessoas com deficiência.
As políticas públicas e as
diversas iniciativas visando ampliar o
capital cultural das pessoas com
deficiência são cruciais para que os
objetivos e metas da Agenda 2030
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
sejam alcançados e são igualmente
importantes no enfrentamento das
desigualdades sociais inerentes a essa
população.
Com base em Bourdieu (2007),
compreende-se capital cultural como o
conjunto das qualificações intelectuais
transmitidas pela família (primário) ou
produzidas pelo sistema escolar
(secundário) e que existem sob três
formas. São elas: o estado incorporado
- sob a forma de disposições duráveis
do organismo e quando sua
acumulação está ligada ao corpo,
exigindo incorporação, demandando
tempo e pressupondo um longo
trabalho de inculcação e assimilação; o
estado objetivado - sob a forma de bens
culturais (quadros, livros, dicionários,
instrumentos, máquinas)
transmissíveis de maneira
relativamente instantânea quanto à
propriedade jurídica; e o estado
institucionalizado - consolidando-se
nos títulos e certificados escolares que,
da mesma maneira que o dinheiro,
guardam relativa independência em
relação ao portador do título.
Ainda com o apoio de Bourdieu,
podemos pensar que, no Brasil, a lei
das cotas, que garante reserva de
vagas nas instituições de ensino para
as pessoas com deficiência, é uma
iniciativa que favorece o acúmulo do
capital cultural em seu estado
institucionalizado. As iniciativas de
base comunitária - a cultura de bairro -,
por outro lado, podem estar
potencialmente relacionadas a outros
dois estados do capital cultural: estado
incorporado e objetivado.
As iniciativas culturais de base
comunitária, como um Ponto de
Cultura, podem ser a primeira
oportunidade de convivência
sociocultural de pessoas com
deficiência, portanto, se desde cedo
elas forem expostas aos ambientes
culturais, o capital cultural em seu
estado incorporado será favorecido.
Isso ocorre porque a acumulação de
capital cultural sob essa forma exige
uma incorporação que pressupõe um
trabalho de inculcação e de assimilação
e custa tempo, que deve ser investido
pessoalmente. Sendo pessoal, o
trabalho de aquisição é um trabalho do
"sujeito" sobre si mesmo, e as vivências
culturais desde a infância são
fundamentais. a perspectiva a longo
prazo, que é geracional. Se os pais
forem, desde sempre, frequentadores
desses espaços, tendem a levar seus
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
filhos, sejam eles pessoas com
deficiência ou não.
O capital cultural no estado
objetivado é o mais instantaneamente
transmitido, visto que está apoiado nos
suportes materiais, tais como escritos,
pinturas, monumentos etc., logo, é
transmissível em sua materialidade. Os
bens culturais podem ser objeto de uma
apropriação material ou simbólica, o
que pressupõe o capital cultural. Logo,
ao se ampliar as oportunidades de
acesso a esses suportes materiais, por
meio das políticas culturais de base
comunitária, abarca-se a perspectiva
da cidadania cultural em sua
diversidade, agenciada pela lógica
horizontal dos processos educativos e
de ação cultural. E estes encontram-se,
em sua maioria, nas iniciativas de
Pontos de Cultura, articulando diálogos
entre cultura popular, erudita, de povos
tradicionais e culturas emergentes,
entre outros. No processo dos
intercâmbios culturais entre os Pontos
de Cultura, por meio das ações das
redes, as relações interculturais são
vivenciadas.
Acessibilidade Cultural e Pontos de
Cultura
Como apresentado, o Curso
de Especialização em Acessibilidade
Cultural CEAC - e o Encontro
Nacional de Acessibilidade Cultural -
ENAC, ambos desenvolvidos pela
UFRJ em parceria com o MinC, foram
fundamentais para a constituição do
GT Pontos de Cultura e Acessibilidade
Cultural, do então Programa Cultura
Viva.
O CEAC é uma iniciativa do
Laboratório de Arte, Cultura e
Acessibilidade Cultural - LACAS - do
Departamento de Terapia Ocupacional
da UFRJ. Tal iniciativa acompanha um
conjunto de ões do MinC de
promoção à cidadania cultural das
pessoas com deficiência, como
resultado da Oficina Nacional de
Indicações de Políticas Públicas
Culturais para a inclusão de Pessoas
com Deficiência, realizada em 2008
pela então Secretaria de Identidade e
Diversidade Cultural - SID/MinC e pelo
Laboratório de Estudos e Pesquisas em
Saúde Mental e Atenção Psicossocial,
da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz
(DORNELES, 2013).
O LACAS tem atuado
ativamente na construção da potica
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
pública de cultura para a promoção da
cidadania cultural das pessoas com
deficiência. Criado em 2010, o
laboratório tem como principal objetivo
desenvolver pesquisa, ensino e
extensão, de forma indissociável,
articulando conceitos e práticas e
desenvolvendo conteúdos e reflexões
em diálogos interdisciplinares entre as
áreas de arte, cultura, acessibilidade e
saúde. Desde a sua criação, e com o
objetivo de apoiar o MinC na promoção
da política blica cultural acessível, o
LACAS, inicialmente por meio da SID e
depois pela Secretaria de Cidadania e
Diversidade Cultural - SCDC,
desenvolve um conjunto de projetos
que atendem às proposições das ações
e diretrizes da Oficina Nada sobre s
sem Nós e das metas e diretrizes do
Plano Nacional de Cultura PNC, do
Sistema Nacional de Cultura.
A participação ativa das
iniciativas do LACAS na constituição da
rede a qual denominamos Rede de
Articulação, Fomento e Formação em
Acessibilidade Cultural - RAFFACULT -
e sua atuação no estabelecimento das
metas 3.18 e 3.11 da III Conferência
Nacional de Cultura - CNC - destacam-
se como orientações para qualificar a
promoção da cidadania cultural das
pessoas com deficiência e o
compromisso das políticas públicas
culturais, bem como as conquistas que
se expressam na institucionalização da
política pública cultural acessível nas
Instruções Normativas 05/17 da Lei
Rouanet e 116/2014, 132/2017 e
145/2018 da Agência Nacional de
Cinema - Ancine.
O CEAC é o primeiro curso de
pós-graduação na América Latina com
a temática da acessibilidade cultural
que visa à promoção da cidadania
cultural das pessoas com deficiência. O
ENAC, por sua vez, é um dos primeiros
encontros nacionais sobre o tema.
Atualmente, quando nos
debruçamos sobre a trajetória do
CEAC, constatamos que ele se firmou
como um instrumento de formação,
articulação e fomento na pauta da
acessibilidade cultural. Para além do
curso em si, o CEAC agregou
iniciativas com o objetivo de ampliar a
formação sobre o tema, de forma
comprometida com a dimensão
continental do país e com os diferentes
atores do campo no nível nacional. Seu
objetivo inicial foi apoiar o MinC a
impulsionar a política pública de
acessibilidade cultural em todo o
território brasileiro.
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
O CEAC é oferecido para
funcionários públicos em cargos de
gestão cultural, docentes de
universidades públicas, pessoas com
inserção nos Pontos de Cultura, além
de outros segmentos da sociedade
civil. O curso, dessa forma, transcende
a formação e torna-se um sustentáculo
de parcerias entre aqueles que se
identificam e se comprometem em
difundir e implementar políticas
públicas na área de cultura. Discentes
egressos comumente se envolvem e,
fomentando o engajamento nos
movimentos sociais relacionados à
temática, concretizam ações
multiplicadoras a partir de distintas e
inovadoras iniciativas.
O curso foi proposto tendo em
vista as demandas surgidas inspiradas
na necessidade de capacitação e
formação em acessibilidade cultural,
que foram identificadas por meio das
ações e das diretrizes da oficina Nada
Sobre Nós Sem Nós. A proposta do
CEAC atende à ação 1.2 da diretriz 1
de acessibilidade cultural, que se refere
à promoção da capacitação dos
gestores, técnicos e avaliadores dos
editais públicos, considerando a
Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência; a meta 1.3
da diretriz 1 de Fomento, que enfatiza a
questão da formação continuada de
profissionais, com ou sem deficiência,
com relação à área de cultura, arte e
informação para atuar com pessoas
com deficiência na área cultural; e a
ação 2.1 da diretriz 2 de Difusão, que
menciona a criação de cursos de
formação/capacitação para artistas e
gestores. Ademais, relaciona-se, de
forma indireta, às outras diretrizes e
ações propostas na mencionada
oficina (AMARANTE; LIMA, 2009).
O CEAC contribui diretamente
para a consolidação das metas do
PNC, em especial das metas 35 e 36,
que apontam, respectivamente, para a
necessidade e o desafio de
capacitação de gestores em 100% dos
equipamentos das instituições culturais
e para a capacitação de gestores de
cultura e conselheiros em cursos
promovidos ou certificados pelo MinC
em 100% das Unidades da Federação
e 30% dos municípios, dentre os quais
100% dos que possuem mais de 100
mil habitantes. Ou seja, as diversas e
diferentes ações inerentes à formação
que foram implementadas surgiram a
partir da especialização e
proporcionam às pessoas capacitadas
a expansão de suas iniciativas em
156
DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
diferentes áreas de ações da
Acessibilidade Cultural. Dessa forma, o
curso contribui ainda em prol da meta
número 29, que nos desafia a garantir
que 100% de bibliotecas públicas,
museus, cinemas, teatros, arquivos
públicos e centros culturais atendam os
princípios previstos na legislação
pertinente aos requisitos legais de
acessibilidade e ao desenvolvimento de
ações visando a promoção da fruição
cultural por parte das pessoas com
deficiência. Destacamos ainda as
metas 28 e 34. A primeira aponta para
o aumento de 60% no número de
pessoas que frequentam museu,
centros culturais, cinemas, espetáculos
de teatro, circo, dança e música, e a
segunda indica a necessidade de
modernização e melhoria das
instalações na ordem de 50% para
bibliotecas públicas e museus
(BRASIL, 2012).
O curso orienta-se pela
metodologia da implicação, que
convoca discentes e pares a atuarem
como multiplicadores do conhecimento
de forma ativa junto das políticas
culturais, ampliando o compromisso de
todos com a cidadania cultural das
pessoas com deficiência. Nas três
edições do curso, desenvolveu-se um
conjunto de ações culturais como uma
contrapartida dos discentes ao
investimento público oferecido pela
formação gratuita. Esse compromisso
com a difusão da pauta sempre esteve
destacado nos editais, comprometendo
o candidato a ser multiplicador do tema
após a conclusão de sua formação
oferecida pela pós-graduação. Nesse
sentido, um bom exemplo foi a proposta
de um curso de extensão na
modalidade EAD, realizado em parceria
com a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS, no qual os
discentes da segunda turma,
organizados em duplas, tiveram a
oportunidade de atuar como tutores,
mobilizando e mediando os conteúdos
para 420 inscritos. Essa experiência,
além de ser, por si só, um rico
aprendizado e uma oportunidade de
aprofundamento dos conteúdos, serviu
como modelo para que os próprios
discentes pensassem em suas
estratégias para multiplicar o
conhecimento adquirido.
A metodologia da implicação é
baseada na pedagogia da implicação
apresentada por Fagundes (2006). O
teórico traduz os desafios de uma
formação inédita como dispositivo de
suporte de inauguração e construção
157
DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
de uma política pública também inédita.
Para isso, faz-se necessário articular
diferentes estratégias que contemplem
os diferentes atores envolvidos no
campo: gestores públicos,
organizações do terceiro setor,
universidades e profissionais e
indivíduos da sociedade civil envolvidos
com o tema, como temos realizado. A
pedagogia da implicação configura-se
“como gestão de processos de
mudança de si e dos entornos”
(FAGUNDES, 2006a, p. 21), o que
requer que os métodos transcendam a
tradicional habilitação técnica, novas
formas de gestão e administração, bem
como elementos disparadores de
desejos de processo de mudança,
“mobilizando atos e estratégias de
políticas no interesse de acolhimento
de pessoas em projetos de vida e de
presente, da democracia, cidadania e
autoria” (FAGUNDES, 2006 b, p. 543).
Como o CEAC foi desenvolvido
com o apoio da SCDC, responsável
pelo Programa Cultura Viva, era
importante capacitar as iniciativas de
base de cultura comunitária ligadas ao
programa, como os Pontos e Pontões
de Cultura. Além disso, é importante
considerar que grande parte dessa
população à margem da sociedade se
encontra na linha da miserabilidade,
sem acesso à educação e à cultura.
Assim, as iniciativas culturais de base
comunitária, como temos destacado,
podem ser o primeiro acesso para este
público a uma experiência artística e
cultural. Essas vagas oferecidas aos
Pontos e Pontões de Cultura também
tinham como objetivo fomentar
multiplicadores nas redes dos Pontos
de Cultura e constituir, junto com o
programa, o GT Pontos de Cultura e
Acessibilidade Cultural, consolidado no
II ENAC e no V TEIA.
Assim como o CEAC, o ENAC
destaca-se por ser um encontro
pioneiro no país que debate o tema da
acessibilidade. O ENAC foi uma
demanda do MinC que se tornou
atividade associada ao projeto do
CEAC e atende muitas metas
apontadas nas diretrizes da Oficina
Nada sobre Nós sem Nós, entre elas as
metas 3.1, 5.2 e 5.3 das diretrizes 3 e 5
da temática do GT Patrimônio; as
metas 3.1, 3.2 e 3.3 da diretriz 3 do GT
sobre Difusão; e a meta 2.5 da diretriz
2 do GT Acessibilidade.
O ENAC é, também, o grande
instrumento da articulação da
RAFFACULT e constitui uma rede
sólida de universidades parceiras,
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
como, por exemplo, a UFRGS, a
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte UFRN - e a Universidade
Federal de Pelotas - UFPel.
Atualmente, em fase de organização de
sua IX edição, inclui-se a Universidade
do Estado do Rio de Janeiro - UERJ,
por intermédio do Laboratório de
Acessibilidade Cultural, como uma
parceira ativa na coordenação
executiva desde a sua oitava edição.
No ano de 2019, o ENAC ofereceu
dezesseis cursos de capacitação,
ampliando a rede de universidades e
instituições parceiras. Entre elas,
destacam-se a Fiocruz, o Instituto
Federal do Rio de Janeiro - IFRJ, a
Universidade Federal do Ceará - UFC,
a Universidade Federal do Piauí - UFPI
- e a Universidade Federal da Paraíba -
UFPB. Entre os parceiros que têm
acompanhado as últimas edições,
destacam-se o Instituto Politécnico de
Leiria, em Portugal, e as instituições do
terceiro setor: Escola de Gente/RJ e
Mais Diferenças/SP.
A programação do ENAC
contempla minicursos, oficinas,
seminário, apresentação de trabalhos,
rodas de conversas, circuito cultural e
espetáculos artísticos culturais
acessíveis. No ano de 2023
comemorou-se os 10 anos de ENAC e
lançou-se a Rede Interuniversitária de
Acessibilidade Cultural - RIACult,
inicialmente composta pela UFRJ,
UFRN, UFRGS, além da Universidade
do Amapá - UNIFAP - e da
Universidade de Brasília – UnB, que se
somam ao grupo.
Junto com o I ENAC e realizou-
se o Seminário Nacional de
Acessibilidade em Ambientes Culturais-
III SENAAC promovido pela UFRGS,
em abril de 2013 como inauguração
da primeira turma do CEAC –, realizou-
se também a I Conferência Livre de
Acessibilidade Cultural - CLAC, por
solicitação da SCDC, que resultou em
90 propostas para a III Conferência
Nacional de Cultura, realizada entre 27
de novembro e 01 de dezembro de
2013.
O resultado da sistematização
das proposições da CLAC gerou a
aprovação da proposta 3.18 entre as
quatro primeiras do eixo Direitos
Humanos e Cultura, na CNC,
indicando, assim, a promoção da
política de acessibilidade cultural para
pessoas com deficiência como uma das
políticas públicas a ser implementada
como prioritária. Essa proposta
convoca a muitos compromissos para a
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
sua implementação, qualificando a
política de acessibilidade cultural para
pessoas com deficiência. Entre eles,
destaca-se que é por meio de
capacitação e qualificação de recursos
que se avança na implementação das
políticas de acesso das pessoas com
deficiência, incapacidade temporária
e/ou mobilidade reduzida à produção,
circulação e fruição de bens e serviços
culturais.
Nessa perspectiva, entre tantas
tarefas, estão as metas (d) e (e). A
primeira aponta para a necessidade de
promover a capacitação para a Plena
Acessibilidade Cultural e Artística dos
agentes culturais, movimentos sociais e
entidades culturais públicas e privadas,
atuantes na área de educação e
cultura; a segunda, para a promoção e
a capacitação dos mediadores,
gestores, técnicos e avaliadores dos
editais públicos, tendo como condição
sine qua non a participação da pessoa
com deficiência para a validação do
processo. Os discentes do CEAC,
envolvidos e articulados com as
políticas culturais, participaram das
conferências municipais e alguns se
elegeram como delegados para as
conferências estaduais, levando
adiante a temática da política cultural
acessível a pessoas com deficiência.
Na CNC, de um grupo de cerca de 30
representantes da pauta, cinco
pertenciam ao grupo do CEAC e foram
articuladores em diferentes regiões do
país. Registra-se também a aprovação
da proposta 3.11, que, diferentemente
da referida 3.18, não tinha o status
prioritário.
O II ENAC, por solicitação
novamente da SCDC do então MinC,
realizou-se em maio de 2014 na cidade
de Natal, capital do Rio Grande do
Norte, no âmbito do V Encontro
Nacional de Pontos de Cultura. A
realização do II ENAC UFRJ e do III
SENAAC UFRGS aconteceu em
parceria com professores
colaboradores da UFRN. Nessa
segunda edição do encontro,
incorporamos oficinas à programação e
criamos o GT Nacional de Pontos de
Cultura e Acessibilidade Cultural no
âmbito do PCV. Nesse evento foi
lançado o abaixo-assinado para a
inserção dos recursos de
acessibilidade na produção do cinema
nacional hoje legislação –, e
inserimos a UFRN na rede de
universidades parceiras. O ENAC
tornou-se uma agenda importante para
quem está envolvido com o tema.
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
No total das três edições do
CEAC (2013, 2015 e 2018), formaram-
se diversos representantes de Pontos
de Cultura. As vagas para os Pontos
acompanhavam a distribuição do edital,
sendo uma vaga por região, recebendo
apoio para as aulas concentradas do
curso, que aconteciam de forma
presencial na cidade do Rio de Janeiro.
Além da formação ofertada na pós-
graduação, por meio da parceria com a
UFRGS, na segunda edição do CEAC
desenvolvemos o curso de extensão
Acessibilidade em Ambientes Culturais.
Os estudantes do CEAC de Pontos de
Cultura, assim como os outros
estudantes da pós, foram qualificados
para se tornarem multiplicadores por
meio da mediação do curso de
extensão oferecido para os Pontos de
Cultura de todo o país. Da mesma
forma, observamos a dificuldade, na
época, dos Pontos de Cultura aderirem
às vagas ofertadas, percebendo-se
também uma dificuldade de
responderem o mapeamento que
realizamos com o objetivo de conhecer
os Pontos de Cultura do Brasil que
atuavam com pessoas com deficiência.
A qualificação dos Pontos de
Cultura nesta pauta sempre foi uma
prioridade. Como demonstrado
anteriormente (Dorneles, 2011),
projetos culturais de base comunitária
estão muito mais próximos das
pessoas com deficiência, devido à
grande parte desta população viver nos
territórios de vulnerabilidade social. E
uma iniciativa como a dos Pontos de
Cultura pode ser uma primeira
possibilidade de educação não formal
no campo das artes e da cultura para
esta população.
No lançamento da chamada do
curso percebeu-se uma dificuldade de
adesão dos Pontos de Cultura para as
inscrições. Assim, com o apoio da
antiga SCDC, reforçamos a
mobilização e ampliamos o prazo para
que preenchessem as vagas
destinadas a este grupo. Observou-se,
na ocasião, a menor participação da
região Centro-Oeste e 28,46% de
desistentes, de forma geral.
Como apresentado em
estudos anteriores, muitas vezes fica
difícil a participação dos Pontos de
Cultura em pesquisas e capacitações,
pois geralmente este trabalho depende
de uma dedicação voluntária e um
conjunto de colaboradores que se
dividem em diferentes horários para dar
prosseguimento às atividades do
Ponto. Desse modo, nem sempre é
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
possível dispor de carga horária além
do trabalho realizado. Observou-se
ainda que no período do curso havia
uma baixa cultura de qualificação em
formato EAD, e a fragilidade dessas
instituições em relação à qualidade de
rede e de equipamentos deve ser
considerada na avaliação de um
número significativo de desistentes.
A participação da UFRGS na
segunda edição do CEAC também teve
como função auxiliar na ação de
mapeamento dos Pontos de Cultura e
Acessibilidade. O objetivo desse
mapeamento foi de levantar dados
sobre a atuação dos Pontos de Cultura,
de forma geral, sobre acessibilidade
cultural para pessoas com deficiência,
e ele serviu como base para diferentes
qualificações de ações comunitárias
para a pauta da acessibilidade cultural
para pessoas com deficiência.
A equipe da UFRGS apresentou
no III ENAC o esboço de um pequeno
mapeamento realizado nos Pontos de
Cultura de Porto Alegre como um
estudo de caso. Entre as maiores
dificuldades apresentadas estava o
retorno dos Pontos de Cultura sobre o
questionário que era enviado por e-
mail. Essa dificuldade é tema registrado
em muitas teses e dissertações sobre o
programa. Entre as observações
registradas nesses estudos e outros
relatórios do próprio Programa Cultura
Viva, encontramos:
1) A falta de tempo para
participar de pesquisas. É importante
destacar que, naquele período, em sua
grande maioria, as atividades dos
Pontos eram desenvolvidas por um
grupo de colaboradores voluntários que
as dividiam com suas rotinas pessoais.
Dessa forma, muitas vezes, participar
das pesquisas e mapeamentos
realizados pelo próprio MinC não era
visto como prioridade para a
manutenção das atividades. Cabe
lembrar que nessa fase também se
iniciavam os processos de construção
de indicadores culturais para as
políticas blicas culturais, que se
renovaram com a gestão dos ministros
Gil e Juca Ferreira, bem como para o
próprio Programa Cultura Viva e sua
inovação.
2) Um comportamento de
resistência crítica por se tornarem
objetos de estudo, com pouco retorno
do compartilhamento dos resultados.
3) A dificuldade de endereços de
contatos atualizados dos Pontos.
Embora as Regionais do MinC sempre
buscassem manter as planilhas de
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
contatos dos responsáveis atualizadas,
muitas vezes o Ponto de Cultura
trocava a gestão e a pessoa de
referência sem atualizar o MinC sobre
tal iniciativa. O fato de os e-mails de
contato muitas vezes serem pessoais e
não institucionais dificultava o acesso e
o retorno de diferentes pesquisas e
mapeamentos sobre os Pontos e suas
ações. Dessa forma, na exposição da
equipe da UFRGS no III ENAC, essa
dificuldade foi apresentada.
Assim, o GT de Pontos de
Cultura, que se encontrava e se
expandia no evento com os novos
integrantes da segunda turma do
CEAC, tornou-se parceiro e mobilizador
do mapeamento. Novas sugestões
sobre o questionário e a forma de
mobilização foram construídas com os
integrantes do GT. O uso da plataforma
Corais foi uma delas, que a rede de
Pontos de Cultura se utilizava dessa
plataforma para muitas atividades
desse tipo.
Iniciou-se a partir daí um novo
formato de mobilização, que seguiu até
2017, com o objetivo de mapear o
máximo possível de informações sobre
os Pontos, a fim de, no futuro, oferecer
formações e intercâmbios entre os GT
de Pontos de Cultura e Acessibilidade
Cultural e aqueles Pontos de Cultura
que não atuavam com pessoas com
deficiência. Outro objetivo era qualificar
a ação dos Pontos de Cultura para que
pudessem receber também, em suas
atividades, pessoas com deficiência, de
sua comunidade, para ampliar o próprio
GT.
O GT Acessibilidade, criado no
ano de 2014 na cidade de Natal/RN, no
âmbito do Encontro Nacional dos
Pontos de Cultura - Teia Nacional da
Diversidade, teve em sua formação
uma representatividade colegiada,
composta por doze integrantes de
Pontos de Cultura de todo o território
nacional. A programação teve como
marcos políticos estratégicos o Fórum
Nacional dos Pontos de Cultura, o II
Encontro Nacional de Acessibilidade
Cultural - UFRJ e o IV Seminário
Nacional de Acessibilidade em
Ambientes Culturais - UFRGS.
O GT Acessibilidade teve por
missão buscar, com os demais agentes
culturais, uma cultura de acessibilidade
em que todas as pessoas com
deficiência e mobilidade reduzida
tivessem as mesmas oportunidades de
acesso e participação em eventos
culturais, assim como potencializar o
protagonismo de sujeitos com
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
deficiência em ambientes culturais para
que eles pudessem ter a oportunidade
de desenvolver e utilizar seu potencial
criativo, artístico e intelectual, não
somente em benefício próprio, mas
também para o enriquecimento da
sociedade, conforme preconiza o artigo
30 da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo, promulgada no
Brasil pelo Decreto Lei n.º 6.949/2009
(Brasil, 2009).
Nesse contexto, no ano de 2015,
o projeto do Mapeamento de
Acessibilidade Cultural nos Pontos de
Cultura foi inicialmente construído,
como demanda da participação da
equipe da UFRGS e do CEAC - UFRJ,
em parceria com o GT de
Acessibilidade e a Comissão Nacional
dos Pontos de Cultura, com o propósito
de auxiliar o encaminhamento do
mapeamento sobre acessibilidade
cultural a ser aplicado na Rede de
Pontos de Cultura.
A Rede de Pontos de Cultura do
Brasil é composta por núcleos que
englobam a diversidade cultural de todo
o território nacional e que, por falta de
informação e investimento, têm a
questão da acessibilidade realizada de
maneira tímida ou quase nula.
O mapeamento teve muitas
dificuldades de ser desenvolvido com
uma maior participação dos Pontos.
Essa dificuldade de engajamento dos
Pontos de Cultura no mapeamento já
foi apresentada anteriormente e
sempre é relatada em experiências de
pesquisa e de mapeamentos sobre os
Pontos de Cultura e o Programa
Cultura Viva. No entanto, no caso do
mapeamento da Acessibilidade Cultural
com os Pontos de Cultura, a equipe
registrou: um excesso de contatos
inválidos de e-mail; a insegurança de
responderem as questões por certo
receio de receberem algum processo
do Ministério Público ou outras
instituições de controle, por não terem
os recursos de acessibilidade; a
dificuldade de acessar a plataforma
Corais; e muito desconhecimento sobre
o tema, a ponto de acharem irrelevante
a sua participação, que não recebiam
pessoas com deficiência.
Assim como as Representações
Regionais - RR - do MinC apoiaram o
mapeamento divulgando nos seus
boletins e nos repassando as planilhas
de contatos dos Pontos por região, a
Comissão Nacional dos Pontos de
Cultura e o GT de Acessibilidade
também apoiaram a mobilização da
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
participação. Com o objetivo de atingir
um maior número de participantes, a
equipe do CEAC utilizou-se de
estratégias de participações
presenciais em alguns encontros de
Pontos de Cultura ou TEIAS regionais,
encontros nacionais com distribuição
física dos questionários, contatos
diretos com consulta por ligação
telefônica e sistematização dos dados
na plataforma Corais dos questionários
físicos, por meio do trabalho de
bolsistas que atuaram para finalizar
essa sistematização. O mapeamento
que foi ressignificado e iniciado a partir
do III ENAC com mais vigor atravessou
o projeto como um todo, no sentido de
cada vez mais acessar os Pontos de
Cultura e construir no futuro estratégias
de capacitações. Ao todo, foram 183
Pontos de Cultura mapeados. O retorno
do mapeamento apresenta dados
interessantes.
Observou-se a forte participação
no mapeamento dos Pontos de Cultura
do Sudeste e Nordeste. A região
Centro-Oeste, no período, não tinha
uma representação regional, sendo o
trabalho articulado por meio da sede do
MinC, em Brasília. A falta de uma RR
na região, com um trabalho específico
para a divulgação e articulação da
política cultural local e do governo
federal impactaram o resultado.
Diferente de outras regiões que tinham
a presença de uma RR, a região
Centro-Oeste não recebia boletins
informativos, por exemplo. Os boletins
das RR formam um grande instrumento
para divulgação de diferentes
atividades do MinC, como o próprio
mapeamento. A região Norte, mesmo
com suas diferentes dificuldades,
principalmente aquelas de escala
territorial e dificuldade de acesso à
internet, que tínhamos muitos Pontos
de Cultura de floresta, teve maior
participação no mapeamento.
A questão sobre o espaço da
sede teve como princípio verificar as
possibilidades de implementação de
acessibilidade física. Como
demonstrado, e como sabíamos,
muitos Pontos de Cultura, na época,
atuavam em espaços cedidos. Uma
sede própria tem mais chance de ser
acessível no que diz respeito à
acessibilidade arquitetônica ou ao
investimento em reformas para tal.
As três últimas questões da
pesquisa revelaram aspectos curiosos.
A equipe que atuou no mapeamento da
UFRGS, da UFRJ e do GT de
Acessibilidade da Rede dos Pontos de
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cultura suspeitou que havia muitas
respostas afirmativas no que se refere
à aptidão de receber pessoas com
deficiência. Esses dados, bastantes
positivos, acerca da atenção às
pessoas com deficiência nos Pontos de
Cultura, talvez fossem uma resposta
dada pelo constrangimento de negar a
viabilização de acesso a todas as
pessoas em seus projetos e locais de
atuação. Também se observou que
havia uma pequena diferença nos
números entre aqueles que se diziam
atender e os que se declararam aptos a
atender. Nas respostas subjetivas,
tornou-se compreensível que a boa
vontade, ou o desenvolvimento da
abordagem atitudinal - considerada
uma dimensão de acessibilidade, foi
considerada uma forma de acolher as
pessoas com deficiência nos Pontos de
Cultura. A ausência de respostas no
quesito sobre recursos apontou uma
dificuldade de revelá-los, talvez por
falta desse conhecimento. Uma
quantidade menor de respostas sobre a
relação da disponibilidade de recursos
e de se considerar aptos a atender
pessoas com deficiência reafirmou a
acessibilidade atitudinal como um
caminho de acolhimento dessa
população nas atividades dos Pontos.
Ao nos debruçarmos sobre as
respostas subjetivas encontramos nove
iniciativas que anunciam o espaço
físico adaptado, principalmente para
receber pessoas que fazem uso de
cadeiras de rodas e mobilidade
reduzida. Desses nove, apenas um
possui todos os recursos de
acessibilidade arquitetônica
implementados, tais como: uso de piso
tátil, comunicação e sinalização em
braille, entre outros. Embora a
acessibilidade arquitetônica seja um
grande recurso, ela por si não
garante que pessoas com outras
deficiências tenham acesso à fruição
cultural de produtos artísticos e
atividades culturais do Ponto.
Um conjunto de onze respostas
declarou que os recursos que possuem
são profissionais da área da saúde ou
ciências humanas, como o caso da
psicologia. Esses Pontos de Cultura
anunciam médicos, psicólogos e outros
profissionais da assistência e da saúde
como sendo os recursos que dispõem
para atender as pessoas com
deficiência. Essas respostas podem
nos levar a muitas reflexões. A primeira
é que o Ponto de Cultura atua com
pessoas com transtorno mental. A
segunda reflexão é que o Ponto de
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cultura pode ainda interpretar que a
deficiência é doença, paradigma
ultrapassado na área, o que dificulta a
compreensão do modelo social da
deficiência, tão necessário para
avançar nas políticas públicas para
essa população e conquistado a partir
da Convenção Internacional das
Pessoas com Deficiência. De resto, e
de modo geral, encontramos uma ou
outra iniciativa que de fato atua com
instrumentos e recursos de tecnologia
assistiva para facilitar a mediação da
ação educativa do Ponto com a
população com deficiência atendida.
Uma ou outra iniciativa tem, de fato, um
corpo técnico qualificado na promoção
da pauta da acessibilidade cultural para
as pessoas com deficiência. E, no mais,
observou-se um conjunto de respostas
sem nenhuma objetividade e relação
com a apresentação dos recursos
acessíveis para as pessoas com
deficiência. Dessa forma, denotou-se
uma grande fragilidade nas ações
acessíveis para pessoas com
deficiência nos Pontos de Cultura.
Entre os TTCs da II turma do
CEAC, três dedicaram-se ao tema da
Acessibilidade Cultural e dos Pontos de
Cultura, justamente para qualificar o
mapeamento e dar também pistas
importantes para a qualificação de
iniciativas de base comunitária na
promoção da acessibilidade cultural.
Foram eles: Ações de Acessibilidade
Cultural para Pessoas com Deficiência
no Sistema MinC e a Colaboração dos
Pontos de Cultura no Processo de
Inclusão desse Segmento, de Sandra
Cipriano Chaves; Acessibilidade na
Rede de Pontos de Cultura de São
Paulo, de Bruna Bucket; e
Acessibilidade Cultural nos Pontos de
Cultura da Região Metropolitana de
Belo Horizonte - Minas Gerais, de
Vânia Cuenca.
Desafios da Política Cultura Viva
para uma cultura anticapacitista
É importante compreender que o
capacitismo está para as pessoas com
deficiência tal como o racismo para as
pessoas negras, o machismo para as
mulheres e a LGBTfobia para as
pessoas LGBTQIA+.
Se o anticapacitismo deve ser
compreendido como a luta contra o
preconceito que sofrem as pessoas
com deficiência, pela cultura
capacitista, a partir das reflexões
decoloniais é possível pensar de que
forma as experiências de base
comunitária podem atuar para a
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
promoção da cidadania cultural das
pessoas com deficiência.
Em estudo anterior sobre as
ações de base comunitária (Dorneles,
2011) demonstra-se que as
experiências estéticas desenvolvidas
em espaços de acolhimento, afeto, de
formação engajada e com capacidade
de criação coletiva potencializam
hermenêuticas instauradoras que se
traduzem em ações culturais pautadas
na construção do bem comum.
Dessa forma, faz-se necessário
que as iniciativas de base comunitária
conheçam e se apropriem das mais
recentes discussões e das novas
pautas apresentadas pelas pessoas
com deficiência, tais como:
capacitismo, teoria Crip e abordagem
da PesquisaCOM, que, entre outras,
têm nos provocado a dialogar com
novas perspectivas epistemológicas.
A Teoria Crip é proposta por
Robert McRuer (2006) a partir dos
pressupostos da Teoria Queer. Assim
como a abordagem da PesquisaCOM,
ela questiona, critica e provoca, ao
mesmo tempo, os mecanismos
socioculturais de poder que conformam
e compartilham sua posição radical
frente aos conceitos de normalidade e
à obrigação de seguir as regras da
heteronormatividade e integridade
corporal compulsória (KOLÁROVÁ,
2010). Do inglês cripple, que significa
aleijado, o termo crip não é mais restrito
às pessoas com deficiência física.
Atualmente, abrange também as
deficiências sensoriais e intelectuais e
pode ser também um posicionamento
político (como o uso do termo queer) de
pessoas sem deficiência (MISKOLCI,
2016). As questões em busca de
“aleijar o mundo” têm se baseado em
referenciais teóricos importantes, como
Butter, Haraway e Braidotti entre
outros, buscando romper com
binarismos culturais e politicamente
hierarquizados, e, ao contrário disso,
propõe a compreensão da vida de
forma relacional, não unitária e de
enfoque antiessencialista. A
perspectiva da teoria Crip é trazer
visibilidade às identidades dissidentes
e questionar as bases do patriarcado e
do capitalismo, atuando na perspectiva
da corponormatividade, o que implica a
desnaturalização das identidades
(HARAWAY, 2009).
Como apontam Magnabosco e
Souza (2019), a Teoria Crip tem um
posicionamento mais radical e
contestatório, pois se revela identitária
ao afirmar a deficiência com o objetivo
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
de fortalecer e reconhecer as lutas
políticas da categoria pela ampliação
de seus direitos, mas é também
simultaneamente contraidentitária, pois
se recusa a engessar-se em limites e
definições preestabelecidas. É nesse
sentido que o primeiro princípio da
Teoria Crip apresentado por McRuer
(2006) é a busca de conexões com
outras formas de sofrimento, sem
deixar de abordar a deficiência. O
segundo é a reivindicação da condição
dissidente, assim como na perspectiva
Queer, de composição de uma
coletividade em uma ação política. O
terceiro princípio parte de uma visão
que inclui as questões das
acessibilidades, até mesmo uma visão
mais global, que aponta para o
combate ao neoliberalismo e seus
impactos em relação à redistribuição de
renda. O quarto princípio é a premissa
de que um mundo com deficiência é
possível e desejável e que se faz
necessário “aleijar” os movimentos que
não consideram a deficiência, por meio
de seus silenciamentos e da
propagação de ideias normalizantes. E,
por fim, como quinto princípio tem-se:
questionar as concepções e a
materialização em esferas públicas e
privadas das culturas capacitistas e das
deficiências.
No encontro com pessoas com
deficiência, não raro nos deparamos
com a narrativa da falta e do déficit ou
com a ideia de que existem heróis e
heroínas que superaram seus limites e
vivem bem com a deficiência. Ambas
as concepções o marcas do
capacitismo, que é o preconceito contra
pessoas com deficiência, ou seja,
quando se considera uma pessoa
inferior porque ela tem uma deficiência
ou se exalta sua capacidade de
superação. O capacitismo, assim como
o racismo e o machismo, ao mesmo
tempo que aparece em nossas ações e
pensamentos singulares, também
estrutura a nossa sociedade. Ao
compreender que a falta e o déficit não
estão nas pessoas com deficiência,
mas sim no ambiente no qual vivemos,
deslocamos a noção de deficiência.
Compreender isso, entretanto, não
retira de nós as responsabilidades
singulares de mudar nossas ações e
práticas cotidianamente, mas permite
perceber que, se quisermos viver numa
sociedade mais justa, ela precisa ser
mais acessível, assim, é nossa tarefa
engajar-nos também nessa luta. É
preciso que pensemos e busquemos
estratégias, considerando que somos
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 144-172, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
subjetivados numa sociedade
capacitista, quer dizer, uma sociedade
que não prevê a presença de pessoas
com deficiência nos espaços onde
circulamos (SILVEIRA, 2023). Dessa
forma, faz-se necessário um maior
compromisso com a visão
anticapacitista, o que requer situar a
deficiência na perspectiva
interseccional; atuar no processo
emancipatório do lugar da pessoa com
deficiência nas lutas anticapacitistas; e
fortalecer as trajetórias de lutas por
reconhecimento das pessoas com
deficiência e por políticas sociais.
No que diz respeito às pesquisas
com pessoas com deficiência, a
chamada PesquisaCOM tem nos
convocado à atenção de uma
metodologia implicada na ideia de que
o outro exige que sejamos dignos do
trabalho que fazemos juntos COM eles
e não SOBRE eles (MORAES, 2010).
Ou seja, dentro de um paradigma
emancipatório que tem como finalidade
principal fazer a pesquisa ser
socialmente relevante para a vida das
pessoas com deficiência,
potencializando a sua capacidade de
agência. Deve-se ter disponibilidade
para escutar essas histórias,
considerando as experiências das
pessoas com deficiência, levando em
conta o referencial do outro. Os
encontros mistos implicam riscos e
colocam-nos a todos e todas,
pessoas com e sem deficiência sob
os riscos de não saber ao certo o que
fazer para lidar com as diferenças que
nos articulam, por outro lado, eles
também nos ofertam a possibilidade de
nos refazer das concepções
preconcebidas de deficiência (ALVES;
MORAES, 2018; SILVEIRA, 2023).
Nessa perspectiva, em todos os
projetos é preciso haver disposição
para incluir as pessoas com deficiência
no planejamento, criar espaços de
avaliação das ações de acessibilidade
e partilhar histórias e experiências com
as pessoas com deficiência, que devem
ser incluídas nos projetos como
consultores, pois somente elas podem
falar sobre a efetividade das ações
propostas e como melhorar a
experiência cultural. É necessário agir
de forma comprometida com o lema
das pessoas com deficiência “Nada
sobre Nós sem Nós”.
Considerações finais
A partir das reflexões propostas,
buscou-se abordar as possibilidades e
contribuições dos Pontos de Cultura na
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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elaboração das políticas públicas
culturais de acessibilidade cultural de
base comunitária. Relatou-se um
período de investimento do MinC na
relação da Política do Programa
Cultura Viva com a agenda da
promoção da cidadania cultural da
pessoa com deficiência. Partiu-se da
premissa de que o fortalecimento das
estratégias no sentido de promover o
acúmulo do capital cultural das pessoas
com deficiência pode desempenhar um
papel fundamental na compreensão e
promoção da cidadania cultural dessa
população. Nesse sentido, as
iniciativas de base comunitária
parecem-nos fundamentais. Ao
considerar o capital cultural, que
compreende os recursos culturais
acumulados por indivíduos e grupos, as
iniciativas de base comunitária podem
buscar reconhecer e valorizar as
diferentes bagagens culturais trazidas
pelos diversos públicos. Por outro lado,
ao incorporar as novas discussões do
campo, que trazem a questão da
interseccionalidade, do capacitismo,
das teorias Queer e Crip e da
PesquisaCOM, a política cultural de
base comunitária mostra-se
comprometida com os novos desafios e
lutas das pessoas com deficiência.
Dessa forma, entre os desafios
da pauta da acessibilidade cultural em
diálogo com as práticas dos Pontos de
Cultura, é importante repensar de que
forma atuar na construção de novas
narrativas, auxiliando na consolidação
de uma sociedade anticapacitista.
Mapear e fazer a busca ativa de
pessoas com deficiência em ações
culturais de base comunitária tornam-
se fundamentais para que outras
histórias dos territórios possam ser
contadas a partir de outras
perspectivas. Valorizar a presença das
pessoas com deficiência é provocar a
vida em permanente experiência de
diversidade. Atuar de forma crítica à
perspectiva dos corpos normativos e
agenciar ações culturais a favor do
“aleijamento do mundo” é
comprometer-se com a construção de
novas concepções culturais. Ampliar o
protagonismo das pessoas com
deficiência como agentes culturais de
seus territórios é qualificar o capital
cultural de uma sociedade como um
todo. Convocamos, assim, que a
política Cultura Viva e os Pontos de
Cultura impliquem o fortalecimento da
pauta do direito cultural da pessoa com
deficiência, qualificando a política
nacional de cultura.
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DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A. de. Acessibilidade Cultural de Base
Comunitária – Desafios para o Programa Cultura Viva. PragMATIZES -
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6
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
173-202, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
A dimensão econômica solidária na Política Nacional Cultura Viva
Carolina Freitas1
Juliana Caetano da Cunha2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.62767
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar um debate sobre a economia da cultura a
partir da dimensão econômica solidária de experiências culturais comunitárias do estado de Santa
Catarina, com ênfase em suas características organizacionais e considerando a problemática do
desenvolvimento e das contradições da cultura como política de desenvolvimento e da cultura como
commodity. Igualmente, busca identificar elementos que compõem a construção da Política Nacional
Cultura Viva fundamentando-se nos princípios da economia solidária, na perspectiva comunitária, na
produção e articulação em rede como estratégia emancipatória para a cultura. Nesse contexto, a
Política Nacional Cultura Viva busca uma alternativa para os trabalhadores da cultura, e a economia
solidária se apresenta como uma possibilidade de geração de trabalho e renda que combina
autogestão, cooperação e solidariedade.
Palavras-Chave: Economia da cultura; economia solidária; Programa Cultura Viva; desenvolvimento.
La dimensión económica solidaria en Política Nacional Cultura Viva
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar un debate sobre la economía de la cultura a
partir de la dimensión económica solidaria de las experiencias culturales comunitarias en el estado de
Santa Catarina, con énfasis en sus características organizativas y considerando las cuestiones del
desarrollo y las contradicciones de la cultura como política de desarrollo y la cultura como mercancía.
Asimismo, busca identificar elementos que conforman la construcción de la Política Nacional de
Cultura Viva basada en los principios de la economía solidaria, la perspectiva comunitaria y la
producción y articulación en red como estrategia emancipadora de la cultura. En este contexto, la
Política Nacional de Cultura Viva busca una alternativa para los trabajadores culturales, y la
economía solidaria se presenta como una posibilidad de generación de trabajo e ingresos que
combina la autogestión, la cooperación y la solidaridad.
Palabras clave: Economía cultural; economía solidaria; Programa Cultura Viva; desarrollo.
1Carolina Gonçalves de Freitas. Chefe de Divisão da Articulação da Cultura Viva da Secretaria de
Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura. Mestre em Desenvolvimento Regional
pela Universidade Regional de Blumenau - FURB/Brasil. E-mail: carola.freitas19@gmail.com -
https://orcid.org/0000-0001-7888-3518
2Juliana Caetano da Cunha. Coordenadora de Planejamento da Cultura Viva da Secretaria de
Cidadania e Diversidade Cultural no Ministério da Cultura. Doutora em Letras (Estudos de Literatura)
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS/Brasil. E-mail: julianacae@gmail.com -
https://orcid.org/0000-0001-9377-1979
Recebido em 20/04/2023, aceito para publicação em 28/04/2024.
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
The solidarity economic dimension in National Policy Living Culture
Abstract: This article aims to present a debate on the economy of culture based on the solidarity
economic dimension of community cultural experiences in the state of Santa Catarina, with an
emphasis on its organizational characteristics and considering the issues of development and
contradictions of culture as a policy of development and culture as a commodity. Likewise, it seeks to
identify elements that make up the construction of the National Policy Living Culture based on the
principles of solidarity economy, a community perspective, and network production and articulation as
an emancipatory strategy for culture. In this context, the National Policy Living Culture seeks an
alternative for cultural workers, and the solidarity economy presents itself as a possibility for
generating work and income that combines self-management, cooperation and solidarity.
Keywords: Cultural economy; solidarity economy; Living Culture Program; development.
A dimensão econômica solidária na Política Nacional Cultura Viva
1 Introdução
Este texto objetiva contribuir
com o debate em torno da política
nacional de cultura, com ênfase na
articulação com a temática da
economia da cultura e do
desenvolvimento, dando continuidade
à análise anteriormente realizada
sobre a dimensão econômica na
política nacional de cultura e sua
aproximação com a economia solidária
(cf. FREITAS; SCHIOCHET, 2021).
A cultura se apresenta como
centralidade enquanto commodity, na
condição de produto a ser
comercializado e, nesta condição, a
economia da cultura foi identificada
como indústria criativa ou economia
criativa. No entanto, na busca por
políticas culturais democráticas e
populares para o Brasil, a partir de um
entendimento da cultura como
dimensão simbólica, cidadã e
econômica, o Brasil “inaugurou” uma
nova concepção da relação entre
cultura e economia. Esta aproximação
da cultura com o desenvolvimento
social e sustentável e da economia
solidária presente no Plano Nacional
de Cultura (BRASIL, 2010) e na
Política Nacional Cultura Viva
(BRASIL, 2014), é possível identificar
elementos para a análise de
experiências culturais concretas, a
exemplo das experiências solidárias
culturais em Santa Catarina. Para
contextualizar a análise, destacamos
as contradições existentes na
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
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construção das concepções que
fundamentam apolítica pública cultural.
A história recente mostra um
conceito mais consolidado a partir de
1988, “Década Mundial de
Desenvolvimento Cultural”. A
UNESCO, em 1998, reconheceu a
necessidade de entender a cultura de
forma abrangente, ampliando o
conceito de cultura, fazendo referência
à proteção e promoção da diversidade
cultural e distanciando-se da
concepção industrial de cultura. A
cultura passa a fazer parte da
integração das políticas para o
desenvolvimento sustentável e a
transversalizar as demais políticas
públicas.
É nesta contextualização que as
expressões indústria criativa e
economia criativa surgem. A
Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) publica o primeiro relatório
internacional da economia criativa
Creative Economy Report (2008),
relacionando economia, cultura e
criatividade; no campo desta
discussão, estão as indústrias
criativas. A UNCTAD tem a
preocupação de diferenciar as
atividades reconhecidas como
tradicionais das relacionadas à
criatividade, mas identificadas à lógica
mercantil. A maior centralidade da
agenda da cultura nas políticas
governamentais vem acompanhada
desta concepção que envolve a
contribuição econômica e industrial da
cultura para o desenvolvimento
nacional na perspectiva do mercado.
Isto orientou, por exemplo, o
debate em torno da propriedade
intelectual, no qual a proteção aos
direitos do autor está relacionada aos
interesses das grandes corporações,
da indústria fonográfica, de software e
da indústria audiovisual. Assim, o
modelo de desenvolvimento neoliberal
se apropria da criatividade como
matéria-prima para a criação e a
expansão de mercados culturais.
Em contraposição a esta
concepção, o diálogo e a interlocução
com a sociedade civil na construção
das políticas públicas, ocorrido nas
gestões dos Ministros da Cultura
Gilberto Gil e Juca Ferreira, a partir de
2003,ao valorizar e reconhecer as
culturas populares numa perspectiva
não economicista, ampliou as
potencialidades de relacionar a política
cultural e o desenvolvimento,
abandonando uma visão elitista e
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
discriminadora de cultura. Este olhar
está demarcado nas reiteradas
manifestações destes ministros de que
o público prioritário da atuação do
Ministério é a sociedade brasileira e os
criadores culturais, e o somente os
interesses econômicos que permeiam
a cultura. Esta foi a inspiração para a
construção de uma política cultural que
se propôs a construir, no campo
cultural brasileiro, o reconhecimento
da diversidade cultural (RUBIM, 2010,
p. 15).
É neste contexto que a relação
que envolve a economia solidária nas
políticas culturais ganha sentido. A
economia solidária se propõe como
estratégia emancipatória para a cultura
popular, para o protagonismo de
grupos historicamente excluídos, a
exemplo dos povos quilombolas e dos
povos e comunidades tradicionais que
podem fortalecer seus modos de vida
por meio da organização em redes de
cooperação no fortalecimento das
atividades de produção e
comercialização dos bens culturais.
2 Estratégias de organização em
redes de cooperação da produção
cultural
Em 2004, o Ministério da
Cultura criou o Programa Nacional de
Cultura, Educação e Cidadania
Cultura Viva (MINC, 2004), com o
objetivo de promover o acesso aos
meios de produção, difusão e fruição
cultural e potencializar energias sociais
e culturais, visando à construção de
novos valores de cooperação e
solidariedade. Este programa ficou sob
a coordenação da Secretaria de
Programas e Projetos Culturais, à
época sob a gestão do ex-Secretário
Célio Turino, idealizador do Programa.
O próprio Turino afirma que o objetivo
do Programa é o de “desesconder o
Brasil, firmar pactos e parcerias com
os de baixo”. O Programa nasceu para
incentivar, preservar e promover a
diversidade cultural brasileira ao
contemplar iniciativas culturais locais e
populares que envolvem comunidades
em atividades de arte, cultura,
educação, cidadania e economia
solidária. Como ação prioritária do
Programa Cultura Viva, nasceram os
Pontos de Cultura, a base do
Programa Cultura Viva entidades
sem fins lucrativos, de caráter cultural
177
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
173-202, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
e social, existentes em seus
territórios. São organizações culturais
da sociedade que ganham força e
reconhecimento institucional ao
estabelecer uma parceria. Como um
elo na articulação em rede, o Ponto de
Cultura não é um equipamento cultural
do governo, nem um serviço para as
pessoas, mas uma forma de
organização das pessoas, um
organizador da cultura local, que atua
como um ponto de recepção e
irradiação de cultura. Seu foco não
está na carência, na ausência de bens
e serviços, e sim na potência, na
capacidade de agir de pessoas e
grupos, “quanto mais articulações em
redes houver, mais sustentável será o
processo de empoderamento social, a
potência do programa se realiza
plenamente quando articulado em
rede” (TURINO, 2009). O Programa
buscou confrontar com a fragmentação
da vida contemporânea e
individualização em que vivemos por
meio do conceito de articulação em
rede.
Em abril de 2006, foi realizada a
primeira “Teia de Cultura, Educação,
Cidadania e Economia Solidária:
Venha ver e ser Visto”. Segundo
Turino, o primeiro momento em que os
pontos de cultura puderam se ver
como movimento; foi uma decisão
simbólica com intenção de ocupar um
espaço nunca antes ocupado pela
cultura periférica brasileira. A Teia foi
realizada no prédio da Bienal da
cidade de São Paulo. A intenção era
começar pelo centro econômico e
financeiro do País. O objetivo foi
desconstruir o acesso do povo
brasileiro pela “porta dos fundos” na
história do Brasil (cf. TURINO, 2009, p.
106). Realizada no Pavilhão da Bienal,
como eixo conceitual, apresentou o
tema Economia Solidária, uma
parceria entre Ministério da Cultura e
Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), onde esteve a Secretaria
Nacional de Economia Solidária
(SENAES).
Nessa primeira Teia, integrada
a esse movimento cultural, foi
realizada a I Feira Nacional de
Economia Solidária. O encontro seguiu
com o tema “Cultura, economia
solidária e estratégias de
desenvolvimento sustentável".
Estiveram presentes representantes
do Fórum Brasileiro de Economia
Solidária e da Secretaria Nacional de
Economia Solidária. A conversa
envolveu pontos de cultura que se
178
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
173-202, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
organizam de modo solidário e
experiências de organização dos
integrantes da economia solidária
como possibilidade de um novo
modelo de desenvolvimento, pensando
a produção de bens e serviços
culturais e a convergência com a
economia solidária.
O Programa Cultura Viva,
lançado em 2004, veio se
consolidando com os conceitos mais
definidos e fortalecidos na medida em
que ações concretas foram realizadas.
Entretanto, a dimensão econômica da
cultura no Programa Cultura Viva foi
construída a partir dos princípios da
economia solidária: “a dimensão
econômica da cultura foi concebida de
acordo com a perspectiva e o conceito
de economia solidária” (VILUTIS,
2015, p. 100), pois buscou promover a
produção “comunitária, popular e
solidária”. No ano de 2010, aconteceu
o primeiro Edital Economia Viva
(MINC, 2010), contemplando a
transversalidade à qual se propôs. O
edital buscou fomentar iniciativas de
economia solidária e comunitárias que
tinham como base ações culturais,
“gestão democrática, o comércio justo,
a preservação do meio ambiente e o
uso de tecnologias livres” (VILUTIS,
2015, p. 100).
Para a Secretaria Nacional de
Economia Solidária, havia fortes
motivos para a aproximação entre a
economia solidária e a dimensão
econômica cultural, como o fato de
reconhecerem empreendimentos
econômicos que fazem parte da
produção de bens e serviços culturais
e que demandam apoio para a
melhoria da organização econômica,
mas também por reconhecerem os
esforços de políticas públicas nas
organizações que utilizam práticas,
princípios e valores da economia
solidária. Essa ideia vai ao encontro da
compreensão de que os desafios da
economia solidária enquanto
proposição de um novo modelo de
desenvolvimento implicam em
mudanças profundas em várias
dimensões da vida social, em especial,
na dimensão cultural, projeta o
desenvolvimento de políticas
estruturantes e emancipatórias para
um setor importante dos
empreendimentos culturais
organizados com base na
solidariedade, na cooperação, na
autogestão (MTE, 2010, p. 8).
179
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
173-202, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
A SENAES se propôs a articular
políticas públicas para promover
condições propícias à produção e
comercialização de bens e serviços
culturais para superar a exclusão
causada pelos mecanismos da
indústria cultural. As feiras, festivais
independentes, linhas de crédito, apoio
àformação de redes de
empreendimentos, estrutura de
cadeias solidárias de setores
produtivos culturais constam como
exemplo de ações elencadas como
esforços para promover a “economia
da cultura da solidariedade e da
cooperação” (MTE, 2010, p. 9).
A Conferência Nacional da
Economia Solidária da Cultura foi mais
um passo significativo na elaboração,
pelos sujeitos sociais envolvidos, de
propostas e estratégias de
desenvolvimento que acumulam na
elaboração de novos paradigmas,
novas oportunidades para a
construção de um país sem miséria,
com vida digna e liberdade criadora
para seus cidadãos e cidadãs,
dimensões nada desprezíveis para a
emancipação e realização humana
(MTE, 2010, p. 20).
Da Conferência, é lançada a
“Carta de Osasco” com orientações
para: Políticas Públicas de fomento à
Economia Solidária da Cultura;
Propriedade Intelectual e os Direitos
Autorais; Cultura Digital e
Comunicação; Organização do
Trabalhador da Arte e Incubação de
Empreendimentos de Cultura;
Finanças Solidárias, Redes e
Comercialização; Coletivos e Redes e
Etnodesenvolvimento.
Entre as propostas das
contribuições para a Conferência que
valem destacar está a consolidação da
Ação Economia Viva do Programa
Cultura Viva, que considera os Pontos
de Cultura como empreendimentos
econômicos solidários e enquanto
política estratégica de articulação da
produção cultural colaborativa em
rede, do Grupo de Trabalho (GT) do
Fórum Paulista de Economia Solidária
e Fórum de Ponto de Cultura de
Economia da Cultura.
Nesse contexto, foi lançado o
Edital Prêmio Economia Viva pelo
Ministério da Cultura (MinC) e o
Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), em 08 de março de 2010, com
objetivo de premiar iniciativas que
desenvolvam soluções criativas de
produção, escoamento em rede e
articulação dos elos de sistemas
180
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
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produtivos nos diversos segmentos
culturais. O prêmio contemplou ações
práticas e modelos de negócios que
promovessem articulação em rede,
desenvolvimento sustentável e
comércio justo. Foram premiadas 12
iniciativas com prêmios de 100 (cem)
mil reais. A ação teve por finalidade
apoiar e possibilitar a articulação de
pontos rizomáticos nos mais variados
sistemas produtivos da cultura e nas
mais diversas manifestações e
expressões de linguagens artísticas. O
caráter social aplicado à economia e a
opção pela economia colaborativa e
sustentável.
A proposta foi criar um sistema
alternativo ao da indústria cultural,
propiciando a diversidade e não a
homogeneidade da cultura. Cultura
como vetor de geração de renda, mas
com autonomia de grupos e
indivíduos, consolidando uma
perspectiva de autonomia financeira,
fortalecimento de processos coletivos
culturais e a economia em rede. Com
valor de R$100 mil para cada prêmio,
foi lançado o edital de premiação das
experiências bem sucedidas na
geração de renda com as atividades
culturais, cujo foco não são as grandes
empresas, nem as indústrias culturais.
O público beneficiário foi a base
produtora da cultura no país, evitando
a centralização e consolidação dos
grandes centros.
O MinC e o MTE, com intenção
de fomentar a comercialização,
solicitaram que fosse apresentado um
plano de negócios, no intuito de
analisar a capacidade de
comercialização dos produtos e
serviços dos pontos de cultura. Um
projeto que tentou reunir redes de
comercialização e produção, e
promover a autonomia dos grupos
culturais tão presente nos objetivos do
Cultura Viva, como bem aponta Vilutis
(2015, p. 208), fomentando o caráter
social da economia como fundamento
da proposta do Prêmio Economia Viva.
As organizações selecionadas
foram avaliadas segundo critérios
como comercialização de produtos ou
serviços, economia solidária,
economia colaborativa e em rede,
sustentabilidade financeira,
criatividade na solução de problemas
do sistema produtivo e grau de
benefícios para a cadeia produtiva. O
edital (MINC, 2010) selecionou
projetos reconhecendo povos
tradicionais, indígenas, quilombolas,
ciganos, povos de terreiro, irmandades
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solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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de negros, agricultores tradicionais,
pescadores artesanais, sertanejos,
entre outros. São organizações de
base comunitária com diversidade de
atividades econômicas e
características de atuação em rede,
com projetos voltados para diferentes
setores, entre as atividades estão
artesanato, bordado, comunicação,
confecção, crédito, música, padaria
comunitária, tecelagem, turismo de
base comunitária.
Entre os selecionados, es o
Projeto da Agência Popular de
Fomento à Cultura Solano Trindade,
da Associação União Popular de
Mulheres do Campo Limpo e
Adjacências. O objetivo do projeto foi
fomentar a linha de crédito oferecida
pelo Banco Comunitário União
Sampaio para produtores culturais,
promovendo a articulação de grupos e
coletivos da periferia em Campo
Limpo/SP. A Agência Solano Trindade
foi projetada como uma estratégia de
ação em rede para incentivar a
articulação de um sistema produtivo
cultural solidário no Campo Limpo e
região. A expectativa também era
organizar e dinamizar o funcionamento
da linha de crédito voltada à cultura
existente no Banco, contribuindo com
o fomento da produção cultural, a
geração de renda e a organização de
artistas, grupos e coletivos em rede,
com três frentes de atuação: fomento,
produção e comercialização. A frente
de fomento a empreendimentos
culturais previu uma atuação conjunta
com a linha de crédito cultural do
Banco União Sampaio, a proposta era
criar a carteira de crédito e fortalecer
as ões do Banco com foco no
desenvolvimento da economia da
cultura local (VILUTIS, 2015, p. 288).
O Banco Comunitário União Sampaio
oferece microcrédito a moradores e
empreendedores, o dinheiro pode ser
retirado em Reais ou na moeda social
“Sampaio”.
Com a criação da Agência
Solano Trindade para fomentar a
cultura local, começou a funcionar um
espaço alugado, uma sede com
espaço aberto para usar computador,
consultar um advogado ou mesmo
disponibilizar produtos na loja
colaborativa. A diferença, para os
responsáveis, está na forma que o
banco se relaciona com as pessoas da
comunidade, o empréstimo é avaliado
por lideranças comunitárias, por meio
da confiança, e contribui para o
desenvolvimento local. Além de
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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diferentes atividades, a Agência
promove o Festival Percurso, realizado
na Praça do Campo Limpo, com
músicos reconhecidos, feira de
economia solidária, onde se vende
comida, artesanato, e oferta outros
produtos, atraindo a cidade para a
periferia. Para a pesquisadora Vilutis,
o edital Economia Viva promoveu a
ressignificação de valores, produção
de saberes locais, convivência e troca
entre os diferentes, que representaram
avanços significativos para a
articulação em rede e a
territorialização das ões culturais,
assim, podemos identificar nas
iniciativas o sentimento de
pertencimento comunitário e de
valorização da identidade cultural
local. A inserção social e a integração
produtiva aliadas à promoção da
identidade e da diversidade cultural
contribuem para o desenvolvimento
local e comunitário, como revelam
algumas experiências reconhecidas
pelo Economia Viva (VILUTIS, 2015, p.
258).
Podemos constatar que a
Política Nacional Cultura Viva busca
uma alternativa para os trabalhadores
da cultura, com isso, a economia
solidária se apresenta como uma
alternativa de geração de trabalho e
renda que combina autogestão,
cooperação e solidariedade que se
enquadram nas propostas do setor
cultural.
Veremos a seguir uma proposta
de repensar a dimensão econômica
com o objetivo de compreender os
princípios da economia solidária e os
motivos da aproximação entre a
economia solidária e o setor cultural.
3 Economia da Cultura e Economia
Solidária
No plano internacional, ganhou
destaque a constatação da
importância da cultura enquanto
mercado global de bens e serviços
simbólico-culturais. Segundo as
estimativas do Banco Mundial, o setor
contribui com 7% do produto interno
bruto (PIB) mundial, tendo alta
representatividade dos países, entre
os quais se destacam os Estados
Unidos e a Inglaterra, mas também
países em desenvolvimento, como o
Brasil, contando com a sua produção
televisiva (MIGUEZ, 2009, p. 60).
A partir dos anos 2000,
observamos um contexto de
aproximação alternativa entre cultura e
economia, com a inclusão de
183
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
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mediações que evidenciaram a
temática do desenvolvimento
(sustentável, local, inclusivo) e, de
maneira mais específica, a articulação
entre economia da cultura e economia
solidária. Considerando os objetivos
de orientação conceitual para a
observação e análise de experiências
culturais comunitárias, vamos neste
capítulo abordar os temas da
economia da cultura e sua relação
com a problemática do
desenvolvimento e da economia
solidária, com ênfase em suas
características organizacionais e
abordagem fundamentada na reflexão
de Karl Polanyi sobre a economia, que
tem sido utilizada em especial por
José Luiz Coraggio e Genauto França
Filho para analisar as especificidades
do fenômeno da economia social e
solidária.
Importante trazer algumas
reflexões e autores que fazem da
cultura um debate central, como setor
relevante para o desenvolvimento
econômico e social. Mas de que
desenvolvimento estamos falando? É
mister o próprio cenário de
transformações do conceito de
desenvolvimento ao integrar a cultura
ao processo histórico de
reconhecimento do campo cultural
como fator relevante do processo de
bem-estar humano. Para tanto,
consideramos pertinentes as reflexões
do economista Ladislau Dowbor com o
tema Economia Solidária da Cultura no
encontro “Economia Solidária da
Cultura e Cidadania Cultural”, em
2016, organizado pela Universidade
Federal do ABC (UFABC).Durante o
encontro, o autor destacou que
estamos vivendo outra faceta da
economia, a do acesso aberto, do
fluxo mais livre de informação. Leva-
nos a pensar no sistema que
enfrentamos, na lógica do bem comum
em detrimento da lógica do poder e do
sucesso individual. Além da questão
ambiental, o autor destaca a questão
da desigualdade, de como destinar os
recursos existentes para viabilizar uma
sociedade mais solidária, possuímos
um modo de vida onde o patrimônio
individual tem mais importância do que
usufruirmos de saúde, educação e
lazer de forma universalizada. Que tipo
de desenvolvimento poderia fazer
frente a este desafio de Dowbor?
De Dowbor, é importante
destacar três conceitos:
desenvolvimento local, economia da
sustentabilidade e democracia
184
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solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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econômica. Ao abordar o conceito de
desenvolvimento local, o autor traz a
cidade como espaço de processos
articulados e integrados,
reconhecendo uma unidade básica de
organização política, econômica, social
e cultural. A partir desta base, estão
todas as condições de pensar o
desenvolvimento local, aproximando o
cidadão do espaço de participação das
decisões; uma democracia inclusiva,
na qual os poderes para administrar os
problemas seriam manejados
localmente, possibilitando a
participação comunitária por meio do
seu envolvimento direto nos assuntos
da gestão racional dos recursos
localmente disponíveis. A qualidade de
vida da comunidade representa, em
última instância, o resultado que se
quer do desenvolvimento. Para ele, os
mecanismos participativos
complementam e constituem uma
condição importante de eficiência num
modelo de gestão, caracterizando
outra forma de gestão social. Sobre a
teoria econômica da sustentabilidade e
democracia econômica, Dowbor faz
uma comparação com as práticas da
teoria econômica dominante. A teoria
econômica da sustentabilidade se
interessa em propor novos rumos para
a teoria econômica dominante e
incentiva a reorientação necessária,
uma visão sistêmica de longo prazo.
Enquanto a economia neoliberal
insiste em mostrar a produção (PIB)
sem mostrar a descapitalização do
planeta, escondendo a exclusão social
causada por ela e a desarticulação
entre os recursos e o social, a teoria
da sustentabilidade insere o meio
ambiente como proposta para devolver
à ciência econômica os seus rumos.
Na visão do autor, é a democracia
participativa que vai garantir a inclusão
de diversos interesses, e é preciso
incentivar os espaços locais, os
saberes locais, os conhecimentos e
habilidades, preservando a cultura e
as tecnologias populares, reforçando a
democracia pela base (DOWBOR,
2016, p. 78).
Outra abordagem crítica sobre o
desenvolvimento capitalista é
apresentada por Paul Singer ao
introduzir o conceito de
desenvolvimento solidário para
analisar o desenvolvimento das forças
produtivas e das relações de produção
para promover um desenvolvimento
sustentável. Para Singer (2004, p.07),
o desenvolvimento capitalista tem sua
predominância com base nas forças
185
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solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
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produtivas via disputa de mercado e
melhores condições tecnológicas
visando ao lucro. Nas palavras dele, o
desenvolvimento solidário é o
desenvolvimento que tem por base a
economia solidária; o desenvolvimento
solidário é o desenvolvimento
realizado por comunidades de
pequenas firmas associadas, ou por
cooperativas de trabalhadores, guiado
pelos valores da cooperação e ajuda
mútua.
4 Economia solidária Dimensão
Autogestionária e Coletiva das
Organizações Econômicas
Segundo Singer (2002), a
economia solidária surge como uma
experiência de trabalhadores em
contraposição aos efeitos da
Revolução Industrial. Práticas como a
exploração nas fábricas, jornada de
trabalho exaustiva e exploração de
crianças no ambiente de trabalho
representam o início do século XIX,
tendo como consequência um alto
índice de mortalidade. Na contramão,
como formas de resistência à dinâmica
excludente do capitalismo, surgem
iniciativas de luta e cooperativismo dos
operários, que têmRobert Owen como
um deseus principais precursores do
movimento. Entre várias iniciativas,
propuseram leis de proteção aos
trabalhadores, limite da jornada de
trabalho e proibição à exploração
infantil (SINGER, 2002,p. 24).
O desenvolvimento solidário
tem um caráter de classe, pois tem
sua origem no movimento operário,
responsável pelo surgimento de tipos
diferenciados de associação, partidos,
sindicatos, cooperativas e todas as
organizações associativas para a
promoção de transformações sociais,
econômicas e políticas (SINGER,
2018). O autor destaca as
cooperativas cujos princípios
impregnados na sua identidade m
origem histórica numa cooperativa de
operários em 1848, na cidade de
Rochdale, na Inglaterra, com
mutações por meio de reformulações
feitas nos quadros da Aliança
Cooperativa Internacional (ACI) nas
décadas de 30, 60 e 90 do século XX,
no entanto, não romperam com sua
matriz inicial, uma soma do movimento
cooperativo com o movimento
operário. Recentemente, em 1995, a
ACI textualizou os valores
cooperativos “autoajuda,
responsabilidade individual,
democracia, igualdade, equidade e
186
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solidariedade. Fiel à tradição dos
fundadores, os membros das
cooperativas assumem os valores
éticos da honestidade, transparência,
responsabilidade social e altruísmo”
(SINGER, 2018, p. 99).
Na economia solidária, uma das
principais características organizativas
é a autogestão. Segundo Daniel Mothé
(2009), a autogestão é um projeto de
organização democrática que privilegia
a democracia direta. Na democracia
direta, os cidadãos debatem questões
importantes em assembleias, sem
intermediários, diferentemente da
democracia representativa, que elege
mandatários remunerados incumbidos
de representá-los em instâncias
decisórias, sendo uma forma atenuada
de autogestão. Para Mothé, a
autogestão se de forma integral na
democracia radical, o que chama de
forma ampliada de autogestão, onde
todos os cidadãos podem e devem
debater e votar sobre leis e regras
administrativas que lhes digam
respeito; como consequência, o
cidadão teria seu poder aumentado, e
a margem de manobra de seus
representantes também estaria
reduzida.
O conceito aparece em 1950
pelo partido comunista iugoslavo,
atraindo a participação dos cidadãos
depositários de conhecimentos
técnicos, pensando assim em
modernizar o país. Mais tarde, o
sentido de autogestão aparece na
década de 1960,opondo-se ao regime
stalinista e voltando-se a Marx, e ao
socialismo na sua origem. O termo
autogestionário teria também ação dos
empresários, agindo nas cooperativas
operárias de produção, nas
associações e em comunidades,
instituindo formas de democracia
direta sem participar dos debates
ideológicos. No início do século XX, o
trabalho manual deixou de ser
considerado uma força, o
entendimento passou a ser outro;
assim, na década de 1970,o
conhecimento prático dos assalariados
passou a ser indispensável para
melhorar os processos de produção.
Experiências de grupos autônomos de
produção substituíram o trabalho em
linha de montagem. O indivíduo
passou a ser valorizado. A relação de
gabinete foi substituída pela
participação dos usuários na solução
de seus problemas, isto como exemplo
do que se buscava. E, no século XXI,
187
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
foi identificado o conceito de coletivo
autogestionário. Os princípios
individualistas liberais reconhecendo o
indivíduo como cidadão soberano
(MOTHÉ, 2009, p. 26-28).
As organizações autônomas, ou
práticas autônomas dos trabalhadores,
são identificadas de diferentes formas
organizativas durante o século XIX
como resistência ao sistema
capitalista. As associações,
sociedades mutualistas, organizações
cooperativas de consumo e produção
demonstram práticas concretas de
“auto-organização” com intenção de
uma nova estruturação de realidade
social. Propostas de unificação das
lutas e reforço dos laços de
solidariedade de classe ampliando
objetivos econômicos. A autogestão
aparece como associações operárias
em que a supressão da competição
pela solidariedade, da fragmentação e
da passividade substituída por
coletividade e atividade. A
emancipação social é vislumbrada por
meio desses “organismos de coalizão
pelos trabalhadores”, então, o que
seria um meio passa a ser
transformado em fim, ou seja, é
refundar a vida social baseada na
solidariedade.
5 Outra economia. Uma economia
substantiva enraizada na sociedade
Para além das características
organizacionais das atividades
econômicas, temos uma importante
contribuição para a reflexão sobre a
economia a partir das contribuições
teóricas de Karl Polanyi. O
pensamento de Polanyi tem sido uma
importante referência para teóricos da
economia solidária. Um deles é o
argentino José Luis Coraggio.
Para analisar as economias
alternativas e a economia solidária,
Coraggio (2012) propõe uma teoria
sobre a realidade econômica, com
base em investigações antropológicas,
históricas e políticas. Parte de duas
concepções a respeito do econômico:a
concepção hegemônica na sociedade
moderna, que ele denomina “economia
formal”; e uma concepção mais
universal, que denomina “economia
substantiva”, considerando os
sistemas de princípios, as instituições
e as práticas econômicas.
A partir da existência de
diferentes formas de organização em
diferentes sociedades, as práticas
econômicas também são diferenciadas
e assim abrem espaço para uma
aproximação entre economia e cultura,
188
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ou para a necessidade de
imbricamento da economia na
sociedade e na cultura.
Coraggio identifica dois
princípios que orientam a economia na
sociedade. Um é o princípio da
liberdade individual irrestrita, e o outro
o do desenvolvimento da vida com o
reconhecimento do outro.O
neoliberalismo propõe que cada
indivíduo deva ser uma entidade
isolada e os outros como recurso
ou como obstáculo. Por outro lado, no
que Coraggio define como “economia
substantiva”, predomina o princípio do
reconhecimento do outro e de
verdadeira garantia da reprodução da
vida (CORAGGIO, 2012, p. 26).
Este entendimento sobre as
diversas abordagens sobre o
econômico também está presente nas
reflexões de Genauto França Filho, um
dos principais teóricos da economia
solidária no Brasil. Genautotem
abordado o tema da economia
solidária a partir da tradição do
pensamento francês da teoria da
dádiva, da reciprocidade, de Marcel
Mauss e do Movimento Antiutilitarista
nas Ciências Sociais, e da economia
plural de Jean Louis Laville. Em um
texto recente,o autor (FRANÇA FILHO,
2019) procura articular o debate que
envolve “Economia e
Desenvolvimento” a partir desta visão
de economia.
Tema complexo, recheado de
apropriações históricas nas quais são
expressões correntes que o uso rejeita
inconscientemente essa variedade de
significados. Em geral, a palavra
“economia” está carregada de um
significado espefico, que se conhece
como racionalidade mercantil.
Portanto, e não poderia ser de outra
forma, pois somos iludidos pela lógica
predominante do pensamento
econômico, o desenvolvimento estaria
ligado a este significado econômico.
França Filho parte do pressuposto de
que o modo como analisamos e
interpretamos o econômico pode
contribuir para a compreensão da
diversidade de práticas e visões do
desenvolvimento. Desse modo,
repensar alternativas sustentáveis de
desenvolvimento conduz a repensar
paradigmas de compreensão acerca
do que é o econômico. Como objetivo,
propõe refundar as bases de
compreensão do que é o econômico
para propor novas possibilidades de
sustentabilidade no desenvolvimento.
O desenvolvimento e o território
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
devem ser pensados a partir de uma
dependência entre si, pensar o
crescimento econômico num
determinado espaço territorial e uma
distribuição equitativa naquela
sociedade (FRANÇA FILHO, 2019, p.
16).
A crise econômica, e, portanto,
social e política dos anos 1980 e 1990
possibilitou observarmos a emergência
de preocupações que exigiram uma
qualificação do debate do
desenvolvimento; é o que está
presente, por exemplo, nas
concepções de desenvolvimento
sustentável, de ecodesenvolvimento,
de desenvolvimento local. Percebe-se
que o conceito de desenvolvimento
local aparece como uma forma de
resposta aos problemas causados pela
crise na década de 70 e
posteriormente em 90, pelas correntes
neoliberais, princípios economicistas e
pela desregulação do mercado. Os
modelos (de economia, de
industrialização, de tecnologias, de
ensino, etc.) de que eram portadores,
em vez de promoverem processos de
autonomização e desenvolvimento,
colocavam uma série de problemas,
nomeadamente: a) ignorar as
necessidades efetivamente sentidas
pelas comunidades locais, bem como
os seus recursos e capacidades; b)
desprezar os seus valores, identidades
e saberes, considerando-os primitivos
e subdesenvolvidos; c) estimular a
dependência e a subordinação em
relação “ao que vem de fora”; d) criar
novos problemas (econômicos,
sociais, culturais e ambientais)
(AMARO, 2009, p. 109 apud FRANÇA
FILHO, 2019, p. 23). Nasce o
paradigma de um desenvolvimento a
“partir de baixo”, endógeno, e
posteriormente a proposta de que o
equilíbrio se daria entre forças “de
fora” e “de dentro”. No entanto, o autor
se pergunta se o desenvolvimento
local estaria condenado a ser um
amortecedor ou uma possibilidade de
repensar outras formas de
globalização.
Para tanto, é importante
considerar que existem tensões e
contradições entre os processos locais
e territoriais de desenvolvimento e o
processo de globalização econômica.
Nesta questão, Genauto faz referência
à financeirização da economia. Termo
que significa um deslocamento
econômico e uma subordinação das
bases produtivas da economia ao
mundo das finanças.
190
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Com o surgimento do
capitalismo, o mercado autorregulado
foi o fator desencadeador da “grande
transformação” na sociedade, quando,
então, a economia de mercado se
impôs, o mercado buscou se
desenraizar das relações sociais,
políticas e culturais. Portanto, para
Polanyi, a grande questão diz respeito
ao processo de enraizamento ou
incrustação (embeddedness) da
economia na sociedade e à grande
transformação operada pela economia
de mercado.
A indissociabilidade entre o
econômico e o social constituiu a
norma da organização da vida em
sociedade, ao longo da história, pelo
simples fato de não se conhecer
sistema econômico algum que fosse
independente ou que não estivesse
submetido às próprias regras
elementares da vida social (Polanyi,
2012). É o fenômeno do enraizamento
do econômico no social.
Em contradição às definições
de economia formalística, Polanyi têm
a definição substantiva do econômico,
a partir de estudos de diferentes
sistemas de organização. Ao longo da
história, o significado substantivo
provém da flagrante dependência do
homem em relação à natureza e aos
seus semelhantes para sobreviver. Ele
sobrevive graças a uma interação
institucionalizada com o meio natural;
isso é economia, que lhe fornece os
meios de satisfazer suas necessidades
materiais (POLANYI, 2012, p. 63, apud
FRANÇA FILHO, 2017, p.47).
É neste sentido que se deseja o
entendimento de que é improvável a
reprodução das condições de
existência ou que a sociedade
sobreviva “desenraizada ou deslocada
da economia”. A economia se institui
na diversidade da vida em sociedade.
Polanyi (1980) apresenta ainda três
princípios de comportamento
econômico, são eles: reciprocidade,
redistribuição e troca. O importante é
considerar que este aporte conceitual
de Polanyi auxilia na análise de
experiências econômicas da cultura
comunitária e popular. Para tanto, a
cultura não pode ser vista como um
fato econômico, pois o próprio
econômico deve ser visto como algo
incrustado ou enraizado na cultura.
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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6 A dimensão econômica solidária
de experiências culturais em Santa
Catarina
Abordamos cada uma das
experiências culturais enquanto forma
de organização econômica,
identificando elementos que
aproximam a dimensão econômica da
cultura na perspectiva da economia
solidária. Neste sentido, vamos nos
concentrar na observação de algumas
categorias: autogestão, dimensão
coletiva e cooperativa, horizontalidade
organizativa e geração de renda. Tais
categorias devem ser vistas como
expressões das contradições de uma
economia substantiva, inseridas numa
sociedade hegemonizada por relações
mercantis.
6.1 Coletivo de Teatro (Grupo Teatro
em Trâmite/Centro Cultural Casa
Vermelha)
O coletivo pesquisado está
localizado na ilha de Santa Catarina,
no município de Florianópolis, e foi
pesquisado durante o mês de maio a
junho de 2019. Nosso primeiro contato
foi com o fundador do coletivo e gestor
do espaço cultural. O coletivo atua no
espaço Micro Centro Cultural Casa
Vermelha, localizado na região central
de Florianópolis, sediado na parte
histórica da cidade, um conjunto
arquitetônico açoriano. A gestão do
espaço é do Grupo Teatro em Trâmite,
atualmente formado por quatro
integrantes. O Grupo Teatro em
Trâmite foi fundado em 2004, por, na
época, estudantes do curso de Artes
Cênicas da Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC). O Grupo
surgiu com o objetivo de pesquisar
mais sobre a dramaturgia, espaço e
interpretação. Buscavam a experiência
em espaços cênicos não
convencionais.
Com o objetivo de dialogar com
as linguagens e experiências de outros
grupos, surge a necessidade de ter um
local para receber e oferecer
pequenas apresentações, além de
construir um espaço que pudesse se
integrar ao programa Cultura Viva, o
Grupo Trâmite inaugurou, em 2013, a
Casa Vermelha. Em seguida,
conquistaram a chancela de Ponto de
Cultura: no ano de 2015, o espaço
cultural foi reconhecido por meio do
Cadastro Nacional de Pontos de
Cultura, como Ponto de Cultura.
A Casa Vermelha consegue se
manter pelas contribuições dos
participantes, pelos investimentos nas
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mensalidades dos alunos, pelos
ingressos e público em geral. Cabe
salientar que os preços das
apresentações são populares e
acessíveis. Durante as entrevistas (cf.
FREITAS, 2020)3, ficou evidente que
os participantes se identificam e se
reconhecem como experiência cultural
coletiva no desenvolvimento das
diversas atividades. Assim, o coletivo
se organizou da seguinte forma: iniciou
com o Grupo Trâmite em 2004,
conquistou o espaço Micro Centro
Cultural Casa Vermelha em 2013.
Nesse espaço, das aulas de teatro,
surgiu o grupo “O Bando”, que
pretende absorver alunos da Casa
Vermelha. E também um Conselho
não formalizado está na estrutura do
coletivo. O Conselho é formado por
pessoas da mesma área profissional
que transitam no espaço e que
dialogam compartilhando ideias. Foi
uma forma que o Grupo Trâmite
encontrou de agregar pesquisadores,
voluntários, apoiadores e parceiros.
Em entrevistas com os diferentes
integrantes, foi identificado o grupo
3 Todas entrevistas mencionadas neste artigo
são aquelas realizadas no âmbito da pesquisa
de mestrado de Carolina Freitas (2020), cuja
dissertão consta nas referências.
Bando como fruto de um projeto
especial da Casa. Para o entrevistado,
o Grupo Bando tem uma característica
especial, que integra a estética do
coletivo compartilhando a mesma
pesquisa;desde o início,há um
comprometimento que extrapolou os
limites da sala de aula. Ele também
como uma forma de absorver a
comunidade, pois são moradores de
diferentes bairros, mas que usufruem
dos serviços do centro da cidade de
Florianópolis enquanto espaço urbano
mais amplo, com histórias de vida
diferentes,porém, com interesses
muito parecidos.
O Grupo Teatro em Trâmite,
Casa Vermelha, Grupo Bando e
Conselho possuem diferenças nas
funções, mas cooperam no objetivo de
manter o espaço cultural, de manter o
coletivo, formam um grupo com
dimensão coletiva e cooperativa, de
horizontalidade organizativa.
a) Autogestão/participação, dimensão
coletiva e cooperativa, horizontalidade
organizativa
As reuniões com os integrantes
do coletivo acontecem às segundas-
feiras. Segundo o entrevistado (1) (cf.
FREITAS, 2020), o processo é
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participativo,consistindo em diálogo
construído a partir das ideias
propostas por todos, com decisões
construídas coletivamente, em que
todos podem argumentar e decidir
juntos. O que mais interessa não são
somente os resultados, mas a maneira
de organização para as conquistas do
coletivo.
O coletivo se fortalece nesse
contexto da interação, da rede, do
movimento em parcerias, enriquece o
processo de identidade enquanto
coletivo e abre possibilidades de
trabalhos, geração de renda e
enfrentamento das dificuldades do
mercado de trabalho.
Um grupo de teatro é uma
organização complexa, possui divisão
de trabalho, o Trâmite faz a gestão do
Grupo, mas também do espaço Casa
Vermelha. A diferença do Grupo
Trâmite está na prática da gestão
coletiva. Os princípios econômicos não
estão voltados para o resultado,
uma ênfase no processo, no
envolvimento, na participação,
aderente aos princípios de
organização de um empreendimento
solidário. O coletivo da Casa Vermelha
se define pela negação ao capitalismo,
embora reconheça, e não negue, o
contexto em que está envolvido. Não
estão interessados em lucrar, sem
minimizar a necessidade em gerar
renda para o coletivo.
b) Geração de renda, distribuição dos
resultados
Analisando o conteúdo das
entrevistas (cf. FREITAS, 2020),
entendemos que, para manter as
atividades funcionando, a Casa
Vermelha é responsável pelos custos
de manutenção de equipamentos
técnicos, luz, ar condicionado, pintura,
equipamentos de segurança, água e o
aluguel. Os professores/oficineiros que
ministram as aulas e oficinas não
recebem pagamento, os recursos
recebidos são destinados à Casa
Vermelha, principalmente para o
aluguel do espaço. Os recursospara
manter o Centro Cultural Casa
Vermelha provêmdas atividades
realizadas no espaço, as aulas, os
eventos e as apresentações; mas ficou
claro que, para o pagamento do
aluguel, o custo mais alto do mês, a
principal fonte, são as aulas. Por
necessidade em ter um salário fixo, os
integrantes desempenham outras
atividades, como ser professor de
artes no sistema de ensino tradicional.
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O dilema em que vivem reflete a
precarização do trabalhador enquanto
ator. Não um equilíbrio entre o
serviço de professor e o trabalho de
artista, dupla condição, educador e
artista, dar aulas e apresentar
espetáculos. Os integrantes do
coletivo oferecem seus serviços
basicamente para organizações
públicas, não estão no mercado
privado ou no circuito marcado pela
indústria cultural.
O dilema enfrentado pelo artista
é uma histórica tensão entre a arte e a
economia; a economia no sentido
restrito, identificada como a própria do
sistema capitalista que visa ao
lucro.Esses valores que se
contrapõem pois a arte é identificada
com valores simbólicos, imateriais e
também materiais –à própria questão
econômica.
c) Articulação com movimentos
(cultura e economia solidária),
articulação com políticas públicas
Segundo o fundador do Grupo
Trâmite, sempre articulação com
outros coletivos, movimentos que
representam e fortalecem o setor
teatral. Ele faz parte da Federação
Catarinense de Teatro (FECATE), pela
terceira vez como membro da diretoria,
além de envolver-se nas ações,
debates e discussões com a Setorial
de Teatro de Florianópolis. Isto mostra
a participação do coletivo em esferas
mais amplas, com objetivos de se
fortalecerem e enfrentarem a lógica do
mercado.
Importante trazer o trabalho
desenvolvido pela FECATE, uma
associação sem fins lucrativos que tem
como função agregar diversas
iniciativas, com objetivo de expandir e
fortalecer o teatro catarinense. A frente
da defesa dos direitos culturais
mobiliza e atua como articuladora de
uma rede de entidades, coletivos,
pessoas, grupos, movimentos e
companhias teatrais.
Cabe destacar a semelhante
proposta da FECATE e da Cooperativa
Paulista de Teatro (CPT), que afirmam
a necessidade do processo associativo
para o fortalecimento do setor teatral.
Segundo a pesquisadora Laura
Haddad (2018), a CPT pode ser
caracterizada antes de tudo como uma
grande agregadora de grupos e de
produção cultural, uma organização
fundada em 1979, em pleno período
militar, hoje com 39 anos de história,
que teve como objetivo criar condições
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para o exercício de atividades de seus
associados. A CPT tem como
propósito que seu cooperado se
“reconheça como ente participativo da
sociedade e que possa respeitar e
valorizar a diversidade e a importância
da força coletiva da comunidade
artística que pertence” (HADDAD,
2018, p.32).Para isto, cabe destacar a
proposta do trabalho cooperativo de
articulação e mobilização como um
dos fundamentos da economia
solidária.
6.2 Coletivo de artesanato urbano
(Empreendimento Enloucrescer)
O coletivo pesquisado está no
município de Blumenau.A Associação
de Familiares, Amigos e Usuários do
Serviço de Saúde Mental de Blumenau
Enloucrescer foi fundada em 1998 e
atua com trabalhos de reabilitação
psicossocial e integração comunitária.
Com o objetivo de inclusão social, sua
principal defesa é por serviços
públicos de saúde que não excluam as
pessoas com sofrimento psíquico do
seu convívio social.
As cadas de 1950 e 1960
foram marcadas na Grã-Bretanha por
Ronald Laing e David Cooper.Com a
experiência Pavilhão 21, eles
questionaram a intervenção clínica
psiquiátrica. Mais tarde, na Itália,
Franco Basaglia implementou a
Reforma Psiquiátrica.No lugar do
hospital psiquiátrico, dos hospícios,
propôs novas estratégias de cuidado
com o sujeito em sofrimento mental,
assim, novos dispositivos foram
inseridos, entre eles, ateliê de artes,
centro de cultura e lazer, oficinas de
geração de renda, residências
assistidas, cooperativas de trabalho,
entre outros.
Segundo as pesquisadoras
Faria e Schneider (2009), como
construção política e social complexa,
a Reforma Psiquiátrica tem avançado
com iniciativas legislativas, políticas
governamentais, universidades e
importantes instituições; mas, uma das
principais ferramentas deste processo
é o aumento da rede dos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS). Os
CAPS têm um papel estratégico como
ponto articulador da Rede de atenção
psicossocial, por ser ao mesmo tempo
acolhedor e gerador de autonomia,
com o objetivo de levar o usuário ao
protagonismo do seu tratamento, uma
estratégia na produção da saúde
mental, que se articulade forma
coletiva, comunitária e territorial.
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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No Brasil, a luta pela reforma
psiquiátrica nasceu com o Movimento
da Reforma Sanitária na cada de
1970; em 1987, tem origem a criação
do Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial. Foi a partir da Lei
10.216/2001, considerada a Lei da
Reforma Psiquiátrica no Brasil
(BRASIL, 2001), que surgiram
diferentes ações para o enfrentamento
dos desafios para a implantação da
rede de serviços em saúde mental
visando o tratamento em liberdade. O
tema saúde mental e economia
solidária tem se articulado como uma
política pública intersetorial de inclusão
social pelo trabalho. Um tema
relativamente novo no Brasil, que teve
como marco principal para a política
intersetorial a I Oficina Nacional de
Experiências de Geração de Renda e
Trabalho de Usuários de Serviços de
Saúde Mental, realizada em 2004, por
meio do Ministério da Saúde
Coordenação de Saúde Mental, Álcool
e Outras Drogas, e do Ministério do
Trabalho e Emprego Secretaria
Nacional de Economia Solidária. Dois
importantes dispositivos são criados, a
Rede Brasileira de Saúde Mental e
Economia Solidária e o Cadastro de
Iniciativas de Inclusão Social pelo
Trabalho.
Reconhecida pelo trabalho
solidário, a Associação foi premiada
como referência em práticas de
economia solidária pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), em
2015. Com cinquenta e dois
associados, entre usuários do CAPS,
familiares e amigos, orienta-se pelos
princípios da economia solidária, como
autogestão, cidadania, comércio justo
e solidário. É assessorada pelo
Programa de Extensão Incubadora
Tecnológica de Cooperativas
Populares da Universidade Regional
de Blumenau ITCP/FURB. São
diversas atividades culturais
desenvolvidas como: artesanato,
teatro, brechó, customização,
cerâmica, tear, e a participação em
feiras como uma das formas de
geração de renda.
a) Autogestão/participação, dimensão
coletiva e cooperativa, horizontalidade
organizativa
Com um cronograma de
atividades durante a semana toda, os
associados, frequentam as oficinas de
inclusão digital, pintura em tela,
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
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cerâmica, teatro e artesanato. Para
não fugirem do foco da Associação,
realizam grupo de mútua ajuda,
especificamente terapêutico, como
uma forma de assistência para as
subjetividades próprias do transtorno.
Também participam das reuniões
administrativas.
A Enloucrescer surgiu como
forma de lutar pelos direitos dos
associados, são conquistas como
direito ao transporte público,
alimentação, proteção social e renda
como forma de inclusão
socioeconômica de pessoas que
buscam na economia solidária, não a
renda “em si”, mas a inclusão
socioeconômica como forma de vida.
Perguntando para os
entrevistados (cf. FREITAS, 2020)
como se relacionam, como as
decisões são tomadas e de que forma
resolvem os problemas, não houve
dúvidas nas respostas: o coletivo
trabalha em reuniões, as decisões são
por meio da votação, onde o grupo
todo deve participar e ser ouvido. O
coletivo demonstra preparo para o
objetivo com o qual se comprometem,
a proposta de autogestão.
Se existem divergências, o
grupo aproveita como possibilidade de
exercitar a comunicação entre si.Uma
conversa entre o coletivo, para que
todos possam compreender o que está
acontecendo e, assim, aprendem
como agir numa situação
parecida.Desta forma, o grupo todo
pode se fortalecer e se ajudar,
podendo ser uma situação pessoal ou
referente ao próprio coletivo.
Interessante salientar que, durante as
entrevistas (cf. FREITAS, 2020), os
entrevistados não optaram por um
lugar reservado.Ao contrário, tudo foi
tratado de forma muito transparente,
com o objetivo de compreensão e
participação de todos.
A parceria com as Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas
Populares (ITCP) nas universidades e
institutos federais é mais um exemplo
das conquistas das políticas
implementadas. As ITCPs possuem
grande atuação em formação,
orientação e informações aos
empreendimentos de geração de
trabalho e renda para os usuários da
rede de saúde mental. O trabalho das
ITCPs consiste em conduzir os
empreendimentos com base na
interface da economia solidária e da
saúde mental, orientando, trazendoos
conceitos das práticas solidárias e
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FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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ajudando na elaboração de projetos de
geração de trabalho em renda.
Por exemplo, a oficina de teatro
foi uma decisão de inserir no
cronograma de atividades uma
proposta de trabalhar a inclusão social
dos associados em diferentes
espaços. O teatro faz parte do
processo de economia solidária. No
início, quando começaram a fazer
parte da incubação pela FURB/ITCP,
fizeram uma reflexão em grupo sobre
gerar renda ou inclusão social, assim,
optaram pela oficina de teatro, porque
pode contemplar os dois objetivos,
mas o principal é a inclusão social. Os
associados conseguem estar em
diferentes espaços comunitários mais
independentes, por isto, a importante
possibilidade de inserção em
diferentes espaços e também de
romper com a “incapacidade, da
pessoa não ser capaz” (Entrevistado 1,
2019; cf. FREITAS, 2020).
Importante entender a luta pelo
reconhecimento e valorização, uma
outra forma de mostrar o que querem
é na maneira como desejam ser
reconhecidos.No CAPS, são
chamados de usuários do CAPS, mas
na Associação não aceitam serem
chamados por usuários, e querem ser
chamados por associados.Para eles,
uma condição de reconhecimento,
emancipação e autonomia.
Os associados definem a
Enloucrescer como a porta de saída
do Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS).O principal objetivo do coletivo
é resgatar o convívio em cidadania,
para isto o caminho é a associação de
reabilitação Enloucrescer. Como
avanços, os associados apontam a
autonomia, a independência e a
possibilidade de serem reconhecidos
na sociedade. Para eles, que têm
transtornos psíquicos, enfrentar o dia a
dia, a dinâmica da sociedade é uma
tarefa difícil, por isto, a importância do
coletivo, que funciona como uma
“alavanca”; de mãos dadas
conseguem juntos, com mais
segurança. A amizade que
construíram no coletivo, a doação dos
voluntários, também contribuem.
Dessa forma, eles encaram a terapia
com a certeza de que estão cada vez
melhores, e de que, portanto, se
ajudar é ajudar o colega, é uma rotina
do convívio saudável.
b) Geração de renda, distribuição dos
resultados
199
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
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O artesanato é o principal
produto comercializável que o coletivo
desenvolve. Entre eles, é conhecido
como grupo de “geração de renda”.A
produção é comercializada nas feiras
de economia solidária, que acontecem
na FURB, na feira no bairro Fortaleza,
e os produtos podem ficar expostos na
Vitrine da Economia Solidária,
loja/espaço que funciona como projeto
da economia solidária da ITCP/FURB.
Durante as aulas de cerâmica,
conseguiram desenvolver o “carro-
chefe”, o difusor de ambiente, o
principal produto, após dois anos de
pesquisa, com auxílio de profissionais,
é o produto mais vendido nas feiras
artesanais. Com apelo visual, para que
as pessoas quisessem comprar, com
baixo custo de produção.
O recurso arrecadado com as
vendas é dividido pelo grupo
participante da oficina, independente
do “desempenho” da produção, se o
associado estava no grupo e participou
ele vai receber, como fala o
entrevistado “por exemplo, no papel
tem uns que picam papel, não tem
aquela habilidade, mas veio, ele
recebe” (cf. FREITAS, 2020). O
recurso recebido representa o
reconhecimento, a confiança e o
incentivo em participar das atividades.
A comercialização é feita nas
feiras e trabalham com encomendas.
O período de fim de ano, no Natal, é
um exemplo, sabem que vão
receber pedido de empresa para
presentear funcionários. No entanto,
perguntado se eles querem mais
espaços para vender os produtos, a
resposta foi que o objetivo o é a
lógica do mercado, para vender devem
produzir mais e este não é o objetivo.
c) Articulação com movimentos
(cultura e economia solidária),
articulação com políticas públicas
Além das atividades exercidas
para manutenção do coletivo, está
também o processo ativo de
mobilização e articulação com outros
coletivos, isto inclui a Rede de Saúde
Mental, Rede e Fórum de Economia
Solidária, Coletivos da Economia
solidária, Conselho Municipal de
Saúde, Conselho Municipal de
Entorpecentes, a participação e
organização no Dia Nacional da Luta
Antimanicomial para debater políticas
de saúde com o objetivo de
conscientizar a população para que as
pessoas em sofrimento mental sejam
200
FREITAS, Carolina; CUNHA, Juliana Caetano da. A dimensão econômica
solidária na Política nacional Cultura Viva. PragMATIZES - Revista
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re-inseridas na sociedade. Além da
participação em núcleos como o
Centro de Defesa de Direitos
Humanos, estão articulados com
movimentos como o Grito dos
Excluídos promovido pelo Fórum dos
Trabalhadores e o Conselho Municipal
da Juventude.
O trabalho de formação e de
orientação ao coletivo Enloucrescer é
evidente, e por esta formação os
associados sabem o valor em
participar ativamente dos debates,
encontros e articulações em rede de
saúde mental e economia solidária.
Existe um cuidado entre os associados
de não deixar as políticas serem
transformadas apenas numa mudança
de modelo assistencial, por isso estão
lutando por meio do direito ao trabalho,
direito à condição de cidadão e pela
conquista da autonomia.
7 Considerações finais
O texto apresentou a dimensão
econômica solidária na Política
Nacional Cultura Viva. Como política
pública, apresentou o fomento à
“economia viva”, as estratégias de
organização em redes de cooperação
da produção cultural, identificadas no
Edital Economia Viva. Como
referencial teórico, apresentou o
surgimento da economia solidária, a
dimensão autogestionária e coletiva
das organizações econômicas e uma
economia substantiva enraizada na
sociedade. Por fim, apresentou a
dimensão econômica solidária de
experiências culturais em Santa
Catarina.
Referências
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203
PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
A Rua Como Palco de Cultura Viva: Entrevista com Alexandre Santini
Miriane Peregrino1
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.59704
Resumo: Entrevista com o gestor cultural, dramaturgo e pesquisador, Alexandre Santini, realizada, de
forma remota, no âmbito do projeto “Performances em falares portugueses”. O presente texto apresenta
a relação do entrevistado com o teatro de rua, discutindo o conceito de cultura viva e o contexto da
produção cultural durante a pandemia de 2020.
Palavras-chave: Cultura viva; Arte pública; Tá na rua; Teatro; Pandemia.
La Calle como Escenario de la Cultura Viva: Entrevista con Alexandre Santini
Resumen: Entrevista con Alexandre Santini, gestor cultural, dramaturgo e investigador, realizada a
distancia como parte del proyecto " Performances en lengua potuguesa". Se presenta la relación del
entrevistado con el teatro de calle y se debate el concepto de cultura viva y el contexto de la producción
cultural durante la pandemia de 2020.
Palabras clave: Cultura viva; Arte público; Tá na rua; Teatro; Pandemia.
The Street as a Stage of Living Culture: Interview with Alexandre Santini
Abstract: Interview with the cultural manager, play wright and researcher, Alexandre Santini, carried
out, remotely, within the scope of the project "Performances in Portuguese speaks". This paper
presentes the interviewed's relationship with street theater, discussing the concept of living culture and
the contexto of cultural production during the 2020 pandemic.
Keywords: Living culture; Publicart; It's on the street; Theatre; Pandemic.
1 Miriane Peregrino. Doutora em Letras pela UFRJ. Jovem Pesquisadora Fluminense da
FAPERJ/UFRJ. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: miriane.peregrino@gmail.com
- https://orcid.org/0000-0002-4410-347X
Recebido em 27/08/2023, aceito para publicação em 28/03/2024.
204
PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
A Rua Como Palco de Cultura Viva: Entrevista com Alexandre Santini2
“Performances em falares portugueses” com Alexandre Santini (Brasil)
Alexandre Santini é formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO, com mestrado em
Cultura e Territorialidades pela UFF. Foi diretor de Cidadania e Diversidade Cultural
no Ministério da Cultura (2015/2016), diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer
(2017/2021) e Secretário das Culturas de Niterói (2022-2023). Santini é autor do livro
“Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina”. É
também fundador e docente da Escola de Políticas Culturais. Contribuiu ativamente
na formulação das Leis Cultura Viva e Aldir Blanc 1 e 2. Professor convidado em
programas de pós-graduação da FLACSO (Argentina) e da Universidade Andina
Simón Bolívar (Equador), participou, como palestrante, conferencista e artista, de
encontros, seminários e congressos no Chile, México, Nicarágua, Costa Rica,
Portugal, França, Holanda, Reino Unido, entre outros. Atualmente é presidente da
Fundação Casa de Rui Barbosa.
MP: Bom dia! Aqui é Miriane Peregrino e está no ar o Cabe Mais 1, o podcast do
Jornal Literatura Comunica. E hoje nós iniciamos a série “Performance em falares
portugueses”, onde discutiremos as múltiplas formas de se fazer e pensar a arte da
palavra em Países de Língua Portuguesa. Essa série de Podcast também é uma
maneira de divulgação científica da minha pesquisa acadêmica sobre arte
performativa nessas primeiras décadas do século XXI. Nosso primeiro Episódio, A rua
como palco de cultura viva, tem como convidado Alexandre Santini, diretor do Teatro
Popular Oscar Niemeyer, em Niterói, estado do Rio de Janeiro, Brasil. (…) Alexandre
2 A entrevista aqui transcrita faz parte do projeto “Performances em falares portugueses” que consiste
numa série de entrevistas iniciada em 2021 e fez parte da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida
entre 2020 e 2021 no Portugiesisch-Brasilianisches Institut da Universität ZuKöln, Alemanha. Além de
Santini, também foram entrevistados Alvim Cossa (Moçambique) e Elisângela Rita (Angola). No
formato áudio, as entrevistas são divulgadas no Podcast Cabe Mais 1:
https://www.audacy.com/podcast/podcast-cabe-mais1-c93e4/episodes . A entrevista com Alexandre
Santini, em áudio, está no EP 08 que foi ao ar em janeiro de 2021. A presente transcrição foi
realizada por Vitor Manoel Fortunato dos Santos, graduando em Letras pela UFRJ e bolsista de
iniciação científica no projeto “A expansão dos campeonatos de poetry slam em países de língua
portuguesa” que coordeno no âmbito do Programa de Apoio ao Jovem Pesquisador Fluminense da
FAPERJ (E_40/2021).
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PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Santini, seja muito bem-vindo! É um prazer ter você aqui, nesse podcast, com a gente.
E muito obrigada, mais uma vez, por ter aceito o convite. Gostaria de começar
perguntando como foi o seu encontro com o teatro, mais especificamente, com o teatro
de rua e com o grupo Tá na rua.
Alexandre Santini: Bom, Miriane, primeiro eu fico muito feliz de te reencontrar e ver
você nesse momento, nessa pesquisa, tendo feito essa trajetória, né? É muito bacana,
acho que tem muito a ver com o que a gente também viveu e construiu atrás, desde
o na rua, o Cultura Viva, tudo isso que de certa maneira permeou a minha trajetória
até aqui e, em grande medida, vejo que a sua também. Então, isso é muito bacana,
a gente poder compartilhar essas experiências a partir dessa perspectiva comum. É…
e o meu encontro com teatro, ele se deu antes do… propriamente da entrada do
na rua. Eu cheguei no grupo em dezembro de 2001, mas antes disso a minha trajetória
sempre tinha sido muito pautada pelo teatro, desde muito cedo, e também pela
questão política, desde muito cedo. Eu venho de uma família politizada. Eu, muito
cedo, comecei a me envolver também com movimento estudantil, desde Grêmio,
entidades estudantis… Então foi nessa construção também, sempre entre a política e
o teatro, assim, que eu fui construindo a minha vida. E aí, é, eu fui fazer faculdade na
UNIRIO, de Artes Cênicas, mas eu não me encontrava muito ali naquela formação de
teatro muito voltada pro teatro realista, pra uma certa profissionalização mais no
campo do teatro comercial e tudo. Não era muito o que eu buscava, o que eu gostava,
com o teatro, mas… E comecei a fazer também, aí, umas experiências de
performance, arte pública, na própria UNIRIO também, em alguns festivais que eu
participei no México, trabalhando com a questão dos desaparecidos políticos da
América Latina. Mas me faltava uma certa linguagem mesmo, quer dizer, como fazer.
Ainda era uma experiência muito, assim, que a gente fazia de forma empírica, mas
sem uma formação específica pra esse trabalho de rua, da ocupação cultural dos
espaços públicos. E aí a chegada ao na rua que, em princípio, se deu como ator,
como brincante, ali, daquele teatro de rua, daquelas manifestações sob a liderança,
ali, do Amir [Haddad], mas certamente o na rua me ensinou muito mais do que o
teatro ou a partir do teatro que se ensina ali. A gente pôde olhar pra outras questões
do mundo. Eu acho que o Amir, o na rua, tem muito essa característica também
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PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
porque, a partir do teatro, observando as relações com a cidade, com a sociedade, de
um modo geral, com as questões políticas da atualidade e tal… Então a gente, eu
pude, no na rua, de certa forma, exercitar, todo esse trabalho de atuação pública
no sentido mais amplo mesmo. Tanto a dimensão política, ali, da constituição da
política pública, das lutas pela própria manutenção, ali, do espaço do na rua. A
questão, depois veio a lei das Artes públicas. Quando você olha a trajetória, você
percebe que também, a partir dali, do na rua se criou e se mantém toda uma
articulação, todo um movimento. Então, isso aí, isso me influenciou decisivamente.
Inclusive, a opção por ir pro caminho mais da gestão cultural, acabou acontecendo no
próprio Tá na rua, com o Pontos de Cultura, que foi esse projeto que você conheceu,
participou… Vivenciamos porque o Cultura Viva abriu, descortinou também pra
mim, um outro caminho, novo e que… do qual eu ainda sigo, que é pensar as políticas
culturais, as políticas públicas de cultura, essa relação também com a América Latina.
Tudo isso que foi se construindo aí nos últimos anos, e que ainda se mantém apesar
do momento difícil que a gente vive no Brasil.
MP: Santini, eu estava aqui te escutando e passou um filme na minha cabeça. Eu
lembro que antes de ser Agente Cultura Viva, no na rua, eu e um grupo de
colegas da faculdade, nós fomos assistir o “Dar o Dói, o que Dói é Resistir”, que
vocês encenavam no Largo da Carioca, toda sexta-feira. Isso lá pra 2005, 2004, mais
ou menos. E foi um espetáculo que eu assisti, até participei algumas vezes também,
que me marcou muito na época, Era uma reelaboração da história do Brasil, da
ditadura militar na rua, né? Era muito impressionante. E, de lá pra cá, apesar desses
avanços que a gente teve, aí, na política, a gente também caiu num grande
negacionismo histórico, num conservadorismo, aí, da extrema direita. É um salto muito
complexo, difícil de entender, de digerir, mas, é… voltando aqui ao nosso tema, eu
gostaria também que você falasse um pouco sobre o seu livro, "Cultura Viva
Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina", que você publicou pela
ANF Produções, em 2016. Eu sei que esse livro, ele nasceu da sua atuação como
gestor cultural e da sua dissertação de mestrado na UFF, mas eu queria de saber
como você trabalha esse conceito e quais são os pontos de aproximação ou de
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PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
diferenças aí entre a Cultura Viva Comunitária no Brasil e em outros países, que você
pesquisou, trabalhou, enfim.
Alexandre Santini: Você se refere, aí, ao espetáculo “Dar não Dói, o que Dói é
Resistir”, que a gente fez no na rua, de 2003 a 2010, mais ou menos, porque depois
ele foi sendo adaptado de outras formas. E era interessante porque era uma
abordagem parecida com a do teatro de revista, que é contando episódios históricos,
de uma forma, evidentemente, irreverente, bem-humorada, como é próprio do teatro
de rua. Chegamos a levar esse espetáculo pra França, enfim, pra várias praças do
Brasil também. E era de fato um momento aonde o Brasil estava, vamos dizer assim,
poderíamos dizer que, naquele período estávamos vivendo o governo Lula, a gestão
do Gilberto Gil no Ministério da Cultura, o início ali também do Cultura Viva, dos Pontos
de Cultura, né? Então a gente podia falar que havia um clima de reencontro do Brasil
consigo mesmo, algo muito diferente do que a gente experimenta nos dias de hoje
[2021]. E, nesse contexto, foram produzidas políticas culturais emancipatórias, dentre
elas, o Cultura Viva, os Pontos de Cultura, particularmente com o qual, a partir dali,
daquele momento ali do na rua, fui tendo uma relação, uma participação muito
intensa, chegando mesmo a participar da gestão do programa, em alguns momentos.
A aproximação com a América Latina, ela se deu inicialmente pelos próprios agentes
culturais, grupos, organizações culturais comunitárias de outros países que
começaram a conhecer e a entender que aquela política pública poderia ser efetiva
também nos seus contextos e realidades nacionais. Teve um momento importante
disso que foi o Fórum Social Mundial, em 2009, realizado em Belém, onde vários
grupos de países como Argentina, Colômbia, Peru e tal tomam contato com a
experiência dos Pontos de Cultura de uma forma mais sistematizada. Teve um
seminário, um debate sobre esse tema [no Fórum]. E você começa a ter
movimentações pela sociedade civil e, depois, governos fazendo, criando políticas.
Interessante essa mudança de status, do conceito, porque, na América Latina, se
incorporou esse nome “Cultura Viva Comunitária”, se incorporou essa dimensão aí do
“comunitário” porque, de fato, havia, antes mesmo dos Pontos de Cultura, de isso
surgir como política pública no Brasil, havia esse conceito da Cultura Comunitária
bastante desenvolvido na América Latina. O teatro comunitário… existe uma rede
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PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
latino-americana de teatro comunitário. O conceito de Cultura Comunitária, ele é
mais… ele vem das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), em alguns países como
na Colômbia, na América Central, né? Então havia esse conceito de Cultura
Comunitária desenvolvido e a questão da Cultura Viva Comunitária foi um conceito
que acabou unificando. É o que eu chamo de um repertório comum pra pensar as
políticas culturais na América Latina, e que é o que eu trato no livro basicamente,
reconstituindo uma linha do tempo desse processo no Brasil e, também, como se deu
isso na América Latina. O livro aborda de forma mais detida esse processo aí,
histórico, essa linha de tempo que foi sendo construída. E acho que hoje, quer dizer,
existe, de fato, na América Latina, uma compreensão comum, a vários países. Hoje
existe um programa intergovernamental que integra mais de 11 países também,
que é o IberCultura Viva, um programa da SEGIB - OEI, Organização dos Estados
Ibero-Americanos, Secretaria-Geral Ibero-Americana. Então, acho que, nesse
sentido, aquilo que foi plantado lá atrás deu frutos, ainda que no Brasil a gente esteja
vivendo um contexto de retrocesso [2021], muito grande, em vários sentidos, na
questão democrática, mas também, particularmente, na questão das políticas
culturais.
MP: Alexandre, nós tivemos, aí, uma grande interrupção da arte na rua ao longo desse
último ano de 2020 por conta do Corona, mas muito já se produziu e muito ainda está
pra ser produzido nas ruas. E você, que vive e sente a rua como um palco para as
artes, também para as artes políticas... Qual a importância dessa ocupação das ruas
pra você, não pelo teatro, mas também pela música, pelos slams? Gostaria que
você falasse um pouco disso, da importância da ocupação da rua pela arte.
Alexandre Santini: Então, eu acho que a arte de rua, ela foi afetada como toda a
manifestação artística, todo o setor cultural foi afetado pela pandemia, né? Não é algo
específico em relação a arte de rua. Afeta os teatros, os cinemas, afeta a indústria
cultural, afeta tudo. Mas, evidentemente que a arte de rua fica prejudicada também
nesse contexto. Ao mesmo tempo, acho que o espaço público, no sentido mais geral
(aí, não estamos falando especificamente das artes performativas, mas também), ele
permite possibilidades de utilização artística dele pra além de outras possibilidades de
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PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
utilização, que os espaços, teatros, galerias, cinemas etc. e tal, não têm. Eu estou
vendo, por exemplo, um fortalecimento ou uma expansão do muralismo, por exemplo.
No caso, aqui, no Brasil, tenho percebido que os recursos, que seriam aplicados em
artes performativas ou em eventos, estão sendo, em alguns casos, repassados pra
experiências de pinturas gigantes em fachadas de prédio. Acho que tem um espaço
aí pra pensar intervenções no espaço público, instalações. Coisas que dialoguem ou
que interpelem as pessoas na rua, até sobre a situação mesmo real, de uma forma
que mantém a distância, que não gere aglomeração. Acho que essas coisas que estão
sendo feitas, por exemplo, nas varandas, nas casas, nas janelas das casas… isso
tudo é arte pública. De uma certa forma também é a intervenção artística cultural no
espaço público… Acho que isso também, é… tem uma coisa que essa pandemia
do coronavírus também nos deve ter resgatado, de alguma forma, ou deveria nos
resgatar, de alguma forma, é o sentido de coletividade, de que somos todo mundo
parte da mesma humanidade, nós estamos na mesma viagem, nesse tempo histórico.
Então, se a gente perceber, eu acho que esses movimentos que desencadeiam ações
numa lógica de rede e que estão acontecendo de uma forma ou de outra em todo o
mundo, eles são bastante interessantes também do ponto de vista de se pensar uma
arte dos espaços públicos. E não estou me referindo especificamente a teatro ou
slam ou qualquer coisa, estou falando de como, artisticamente e culturalmente, você
consegue interferir no cotidiano através de uma coisa que rompa com o meramente
normal ali, quando você rompe ali aquele cotidiano de alguma forma.
MP: Alexandre, eu estou muito feliz em te ouvir. Estou muito feliz que você topou
participar e eu acho que a gente pode terminar essa conversa falando um pouco sobre
o Teatro Popular Oscar Niemeyer. Eu tenho um carinho muito grande por esse teatro.
Ele fez parte do meu cotidiano durante muitos anos ali, porque eu morei justamente
na rua São João, bem em frente, né? A minha janela era bem em frente ao terminal
João Goulart, e também, logicamente, em frente ali ao Teatro Popular Oscar
Niemeyer. Era uma paisagem que fazia parte do meu cotidiano e o teatro, ele traz um
movimento, ele tem uma beleza do movimento ali já na imagem daquela bailarina que
ilustram os azulejos do teatro, também naquele painel gigante que tem na entrada, o
pátio do teatro, que é gigante. Vocês realizam muitas atividades ali no pátio também.
210
PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
E o teatro também tem um palco reversível, que dá pra movimentar pra área externa,
não é isso? Ele vira, se eu não me engano, pra área externa. Fora isso, o próprio
teatro carrega “popular” no nome, então eu queria que você falasse um pouco pra
gente sobre o teatro de rua a partir do Teatro Oscar Niemeyer. Será que é possível a
gente dizer que o Teatro Popular Oscar Niemeyer é um teatro de rua? Obviamente
que ele não é, mas ele é voltado pra rua, o que você acha?
Alexandre Santini: Olha, realmente, ter tido a oportunidade, nesses quatro anos, de
dirigir o Teatro Popular Oscar Niemeyer, pra mim, foi muito significativo e eu tenho
uma memória muito bonita porque eu estudava… Quando era estudante secundarista,
eu estudei no Pedro II, no ensino médio, e eu morava em Niterói. Minha mãe, né,
sempre morou em Niterói. Eu ficava entre a casa dela, em Niterói, e a do meu pai, no
Rio. Então eu vi aquele teatro sendo erguido. Isso era final da década de 90, começo
dos anos 2000… não, final da década de 90. [Eu] era secundarista ainda, 96/97… Eu
via ele sendo erguido, as fundações e tal, foi uma construção também que demorou
bastante tempo… e o próprio funcionamento dele a pleno, acabou vindo a
acontecer poucos anos atrásMas é justamente pelas características que ele tem,
quer dizer, que ele traz a rua pra dentro do teatro de uma certa forma, né? O próprio
teatro enquanto espaço de circulação. Então é… ele tem aquele foyer inferior, foyer
superior… a sala de espetáculo, ela tem um janelão, quer dizer, ela é aberta. A ideia
de um teatro, realmente, é voltado pra fora. E acho que isso tem tudo a ver com a
vocação que a gente procurou dar ao teatro, na gestão dele mesmo, no que a
gente pensou a curadoria e tal. Inclusive, tive a oportunidade também de a gente fazer
uma homenagem ao Amir Haddad, ao na rua, no Festival Niterói em Cena, que
aconteceu no ano passado, 2019. E, justamente, obviamente, ele utilizou aquela porta
do teatro aberta pra, em duas ocasiões, tanto usando a praça, ali chamada Praça do
Povo que é pra onde se abre o palco ali, como área cênica, como também no momento
que fez o espetáculo dentro dum palco, utilizou com a porta reversível ali aberta. Então
o teatro, ele tem essa característica. Eu tenho pensado e tenho falado muito também
agora nesse momento (saiu até uma matéria recentemente no Segundo Caderno do
Globo) sobre como que aquele teatro pode ser interessante como lugar pra se pensar
a retomada das atividades culturais no pós-pandemia. De fato, a gente teve agora
211
PEREGRINO, Miriane. A Rua como Palco de Cultura Viva: Entrevista com
Alexandre Santini. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 203-211, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
algumas experiências de fazer, retomar a programação, no mês de novembro, com
presença de público, com 30%, uma presença muito limitada de público, mas o teatro,
ele é absolutamente adequado, na medida em que existe uma amplitude de áreas
externas com circulação, com ventilação, que permite que, evidentemente com todos
os protocolos e cuidados, com máscaras e tal, você consiga ter pessoas ali, sem
aglomerações. De qualquer forma, eu acho que ele é um teatro pensado mesmo pra
essa abertura, e a gente procurou trabalhar a nossa concepção de programação, de
curadoria, de ação no teatro, tendo em mente essa dimensão, também da arquitetura
de um teatro, pensando mesmo que seria um teatro popular. Então, do ponto de vista,
é de explorar bastante, na programação, as áreas externas e o entorno. Uma série de
iniciativas que foram feitas ao longo desse período de quatro anos que a gente estava
à frente do teatro, que levou em consideração talvez toda essa trajetória aí que você
conhece… do na rua, dos Pontos de Cultura, do Cultura Viva no Brasil, na América
Latina. De certa forma, isso também permeou a nossa gestão e a nossa atuação
no teatro. Tá bom? Acho que por aí a gente vai bem. Obrigado!
MP: Eu que te agradeço, Santini. Foi muito bom te escutar, ter esse momento de
partilha com você, depois de tanto tempo, né? A gente se conheceu no Tá na rua, há
15 anos atrás, como você disse, eu fui Agente Cultura Viva lá e depois, realmente, eu
mergulhei na literatura e só recentemente eu tenho revisitado o teatro, agora com um
olhar mais interdisciplinar, por conta dessa pesquisa sobre artes performativas. (…)
Esse episódio, ele teve apresentação e pesquisa minhas, edição e mixagem de
Thiago Kobe, design do Anísio Borba. A gente escutou, na abertura, "Carioca bags",
de Thiago Kobe com participação da Marcela Velon, e a gente fecha, agora, com
"Café" da banda El Efecto. Até a próxima, gente!
212
BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cultura Viva e seus desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres1
Alexandre Barbalho2
Ernesto Gadelha3
Alexandre Fleming Vale4
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.60091
Resumo: O artigo analisa o desdobramento da Política Nacional de Cultura Viva em outros programas
tendo como foco a ão “Escolas Livres da Cultura” implementada pelo Governo do Ceará e
observando os elementos programáticos comuns e a atuação prática dessas organizações. A pesquisa
tem um vetor avaliativo e para tanto, além de pesquisa bibliográfica e documental, aplicou-se
questionário com gestores das instituições e precedeu-se a um estudo de caso, o da Edisca.
Palavras-chave: Política Cultural; Política Nacional de Cultura Viva; Escolas Livres da Cultura; Ceará
.
Cultura Viva y sus desarrollos: una evaluación de las “Escolas Livres”
Resumen: El artículo analiza el despliegue de la Política Nacional de Cultura Viva en otros programas,
centrándose en la acción Escuelas Libres de Cultura” implementada por el Gobierno de Ceará y
observando los elementos programáticos comunes y las acciones prácticas de estas organizaciones.
La investigación tiene un vector evaluativo y para ello, además de la investigación bibliográfica y
documental, se aplicó un cuestionario a directivos de las instituciones y se realizó un estudio de caso,
el de Edisca.
Palabras clave: Política Cultural; Política Nacional de Cultura Viva; Escuelas Libres de Cultura; Ceará
1 Este artigo faz arte do projeto “Cultura, inovação e inclusão social no Ceará” do Programa Ciência e
Inovação em Políticas Públicas no estado do Ceará Cientista Chefe financiado pela Fundação
Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP. Os autores agradecem a
colaboração dos/as técnicos/as da Coordenadoria de Formação, Livro e Leitura da Secretaria da
Cultura do Ceará, em especial da Janete Venâncio.
2 Alexandre Almeida Barbalho. Doutor pela UFBA. Professor do curso de História da UECE e
professor permanente dos PPGs em Sociologia e em Políticas Públicas da UECE e em Comunicação
da UFC, Brasil. Contato: alexandrealmeidabarbalho@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4612-
6162
3 Ernesto de Souza Gadelha Costa. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará. Atua como professor, pesquisador,
curador, artista e gestor na área de dança. É analista de gestão cultural na SECULT-CE., Brasil.
Contato: ernestogadelha@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-9949-5458
4 Alexandre Fleming Câmara Vale. Doutor em Antropologia pela UFC. Professor Coordenador do
Núcleo de Estudos em Antropologia Visual, Gênero e Oralidade (LEO) da Universidade Federal do
Ceará, Brasil. Contato: acamaravale@gmail.com
Recebido em 01/10/2023, aceito para publicação em 28/03/2024.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
“Cultura Viva” and its developments: an evaluation of “Escolas Livres”
Abstract: The article analyzes the developments of the National Policy “Cultura Viva” in other programs,
focusing on the Escolas Livres da Cultura” action implemented by the Government of Ceará and
observing the common programmatic elements and the practical actions of these organizations. The
research has an evaluative vector and for this purpose, in addition to bibliographical and documentary
research, a questionnaire was applied to managers of the institutions and a case study was carried out,
that of Edisca.
Keywords: Cultural Policy; Culture Policy “Cultura Viva”; “Escolas Livres da Cultura”; Ceará
Cultura Viva e seus desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres
1.Introdução
Com a recriação do Ministério da
Cultura (MinC) no novo governo Lula,
observa-se retomada de agendas que
foram extintas ou enfraquecidas
durantes os governos Temer e
Bolsonaro, além de novas propostas de
políticas, programas e ações que estão
sendo implementadas ou desenhadas
pela ministra Margareth Menezes e sua
equipe. Exemplar, no que se refere ao
retorno de políticas que marcaram as
gestões petistas no setor, é o caso da
Política Nacional de Cultura Viva
(PNCV), sob responsabilidade da
Secretaria de Cidadania e Diversidade
Cultural (SCDC), cuja titular é Márcia
Rollemberg, quetinha ocupado esse
mesmo cargo entre 2011 e 2014,
durante as gestões das ministras Ana
de Hollanda e Marta Suplicy no primeiro
governo Dilma.
Em entrevista concedida ao
Observatório da Diversidade Cultural,
Rollemberg aponta o lugar central da
PNCV na atual gestão ao defini-la como
“a base mais sólida para garantir o
avanço, tanto para a diversidade e,
consequentemente, para a cultura
popular” (ROLLEMBERG, 2003, n.p.).
Nesse mesmo depoimento, a secretária
elenca as prioridades da SCDC, entre
as quais está ativar, a curto prazo e da
maneira mais ampla possível, a Rede
Cultura Viva. Para tanto, está
previsto um edital voltado para os
Pontões de Cultura, bem como a
revisão da Instrução Normativa No.
8/2016, que regulamenta a PNCV,
objetivando “fortalecer os mecanismos
de descentralização orçamentária para
os municípios e estados, para facilitar o
acesso aos recursos de fomento pelos
Pontos e Pontões de Cultura”
(ROLLEMBERG, 2003, n.p.). Outra
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
prioridade destacada por Rollemberg é
a criação de um programa de formação
por meio de bolsas para os agentes do
Cultura Viva.
Se a SCDC é o locus
institucional da PNCV no novo governo,
por conta do grande alcance
conquistado por essa política e sua
principal ação, os Pontos de Cultura
(PCs), desde que ela foi lançada como
Programa Nacional de Cultura,
Educação e Cidadania Cultura Viva
(PCV), em julho de 2004, é de se
esperar, por conta de sua estrutura
intersetorial, que sua base
programática tenha se espalhado por
outros espaços institucionais do MinC.
Desse modo, é possível identificar o
DNA da PNCV no recém-lançado
Programa Olhos d’Água (POD’A) -
Edital Escolas Livres de Formação em
Arte e Cultura pela Secretaria de
Formação Cultural, Livro e Leitura
(SEFLI), que tem como gestor Fabiano
Piúba.
O objetivo do POD’A é “estimular
e promover a descentralização dos
5 Disponível em https://www.gov.br/cultura/pt-
br/centrais-de-conteudo/sala-de-
imprensa/pautas-e-releases-1/ministerio-da-
cultura-lanca-programa-olhos-d2019agua-na-
fundacao-bienal-de-sp. Acesso em:
01.set.2023.
processos de formação no campo
artístico-cultural no território nacional” e
“fomentar atividades formativas
realizadas por espaços de educação
não formais e aquelas propostas por
artistas independentes, coletivos e
grupos da sociedade civil”5. O
Programa sustenta-se na mesma lógica
dos PCs, ou seja, nas iniciativas
artístico-culturais em curso na
sociedade, que o foco é o de
experiências em formação. Na
avaliação de Piúba, “existe em nosso
país um número expressivo de
instituições culturais da sociedade civil
que atuam com formação nas mais
diversas linguagens e segmentos
culturais”, instituições essas
“companhias, grupos e coletivos de
teatro, dança, circo, literatura,
audiovisual e de culturas indígenas e
afro-brasileiras” que “desenvolvem
tecnologias socioculturais e educativas
com conceitos, metodologias,
experiências e práticas”6. Essas
instituições, uma vez selecionadas pelo
edital, devem se organizar e atuar em
6 Disponível em: https://www.gov.br/cultura/pt-
br/centrais-de-conteudo/sala-de-
imprensa/pautas-e-releases-1/ministerio-da-
cultura-lanca-programa-olhos-d2019agua-na-
fundacao-bienal-de-sp. Acesso em:
01.set.2023.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
uma rede nacional. Quem está
familiarizado com a PNCV e a prática
dos PCs7 reconhece facilmente a
ligação entre estes e as futuras Escolas
de Cultura.
Por sua vez, o POD’A é o
desdobramento, em âmbito nacional,
de uma ação que Piúba implementou
no Ceará no período em que foi
secretário Estadual de Cultura, entre
2016 e 2022, denominada de Escolas
Livres da Cultura (ELC). Até o
momento, a Secretaria de Cultura do
Ceará (SECULT) lançou dois editais da
ação ELC, o primeiro em 2016, e o
segundo em 2022, envolvendo
dezenas de experiências espalhadas
pelo estado.
A partir do contexto apresentado
acima, a proposta deste artigo é
analisar o desdobramento da PNCV
com foco nas ELC, observando os
elementos programáticos comuns e a
atuação prática dessas organizações.
A pesquisa tem um vetor avaliativo e
para tanto, além de pesquisa
bibliográfica e documental, aplicamos
um questionário com alguns dos/as
7 A esse respeito, ver a sistematização
programática do PCV e dos PCs feita por Célio
Turino, responsável pela implementação deste
Programa quando foi secretário da Cidadania
gestores/as das Escolas Livres e
trazemos um estudo de caso, o da
Escola de Desenvolvimento e
Integração Social para Criança e
Adolescente - Edisca. A escolha se
justifica pelo fato da instituição apesar
de não ser certificada como PC pela
SECULT, ainda que seja reconhecida
como tal pelo MinC ter sido
contemplada no primeiro Edital dos
PCs lançado em julho de 2004 e ter
sido selecionada nos dois editais da
ação ELC.
Nós partimos do pressuposto
teórico-metodológico de que as ideias e
os elementos cognitivos estão
fortemente relacionados com as
mudanças da ação pública e, portanto,
do Estado. A mobilização de novos
ordenamentos de retóricas e de lógicas
políticas mais amplas por parte de um
novo grupo à frente de um governo tem
o potencial de transformar não as
crenças, mas também os
comportamentos dos agentes de um
setor da política pública. Como defende
Carla Tomazini, “a construção de
sentidos produz novas correlações de
Cultural do MinC entre 2004 e 2010, em
especial o livro Pontos de Cultura - O Brasil de
baixo pra cima (TURINO, 2009).
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
forças e desloca lugares de poder”.
Dessa perspectiva, quando “um
referencial que se torna dominante
especifica não somente a direção a ser
tomada por uma dada política pública,
mas indica também os atores que se
tornam centrais” (TOMAZINI, 2012, p.
203).
Não se está negando o lugar
decisivo de um agente que dispõe de
recursos e posição privilegiada na
hierarquia do metacampo estatal
(BOURDIEU, 2012) pelo contrário,
considera-se, inclusive, o
conhecimento que esse formulador de
políticas tem sobre o novo contexto e
como traça estratégias para dar conta
dele , mas afirmando, de modo
complementar, que determinadas
propostas têm mais chances se estão
afinadas com as “estruturas ideacionais
existentes” que, por sua vez, fortalecem
os seus defensores, às vezes até
contra interesses historicamente
dominantes. Nesses casos se destaca
a atuação dos “mediadores”, agentes
que “participam ativamente da
articulação entre o referencial global e
os referenciais setoriais, definem a
configuração de expressão de
interesses sociais e, ao mesmo tempo,
constroem uma imagem e um papel
para si próprios” (TOMAZINI, 2012, p.
204).
No caso desta abordagem,
defendemos que a PNCV é uma “ideia
forte” gestada no âmbito do governo
federal que, além de influenciar outros
programas e ações do MinC, foi
incorporada por estados e municípios
e, o que é mais significativo, pelos
agentes do campo cultural. A nova
correlação de forças permitida por essa
política implicou em sua continuidade,
ainda que despotencializada, tanto no
âmbito federal, quanto nos governos
subnacionais, durante as gestões de
Temer e de Bolsonaro. Também
entendemos que a PNCV, ao valorizar
os saberes dos PCs, possibilitou aos
gestores públicos aprendizados e
conhecimentos, produzindo uma
“virada cognitiva” para usar o termo
utilizado por Daniel Benamouzig e
Olivier Borraz (2021). Incorporar esses
conhecimentos produzidos, que antes
seriam descartados por conta de uma
sua suposta ineficácia, é hoje um dado
fundamental para “projetar formas de
organização flexíveis, mais autônomas
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
e, portanto, mais eficazes”
(BENAMOUZI; BORRAZ, 2021, p. 82)8.
O artigo está estruturado em três
seções, fora essa introdução e as
considerações finais. Na primeira,
apresentamos a PNCV, ressaltando o
papel da formação em sua proposta e a
sua efetivação no Ceará. A segunda
seção se debruça sobre o POD’A do
MinC e, em especial, a ação ELC da
SECULT. Na terceira, analisamos, em
perspectiva avaliadora, a atuação das
ELC selecionadas no primeiro edital, a
partir do ponto de vista de seus/suas
gestores/as e por meio do estudo de
caso da Edisca.
2. A cultura é viva no Brasil e no
Ceará
Como exposto na introdução, a
PNCV é o desdobramento do Programa
Nacional de Cultura, Educação e
Cidadania – Cultura Viva, que no seu
título coloca o aspecto formativo como
central. O Programa foi constituído por
meio da Portaria 156/2004 do MinC e
entre seus objetivos encontra-se:
8 Destacar esse processo não implica
desconhecer como os saberes práticos e, em
grande medida, baseados em relações
horizontais o incorporados pelo capital
estabelecendo novas formas de controle e de
burocratização, que Luc Boltanski e Ève
Chiapello (2020) denominaram de “novo
estimular a exploração, o uso e
a apropriação dos códigos de
diferentes meios e linguagens
artísticas e lúdicas nos
processos educacionais, bem
como a utilização de museus,
centros culturais e espaços
públicos em diferentes
situações de aprendizagem e
desenvolvendo uma reflexão
crítica sobre a realidade em
que os cidadãos se inserem
(BRASIL, 2005, p. 18-19
itálicos nossos).
O Programa era constituído por
cinco ações, sendo a principal a dos
PCs. Entre as outras quatro,
encontrava-se a Escola Viva, que tinha
como objetivo “integrar os Pontos à
escola de modo a colaborar para a
construção de um conhecimento
reflexivo e sensível por meio da cultura”
(BRASIL, 2005, p. 26). A ação poderia
se dar de duas formas: 1.
“transformando as experiências
inovadoras das escolas em Pontos de
Cultura” e 2. “transformando o Ponto
em uma escola de cultura brasileira”
(BRASIL, 2005, p. 27).
espírito do capitalismo”. Tais procedimentos
não são exclusivos da esfera privada, mas
também são incorporados pela gestão blica,
inclusive em nome da governança e da
transparência.
218
BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Em seu livro Pontos de cultura.
O Brasil de baixo para cima, que pode
ser considerado a narrativa mais
influente sobre o PCV, Célio Turino,
que foi o responsável pela
implementação da proposta quando era
secretário de Programas e Projetos
Culturais do MinC, inicia seu relato do
alto da chapada do Araripe, sertão do
Cariri, na encruzilhada entre Ceará,
Paraíba, Pernambuco e Piauí. É neste
“vale do silêncio” que o gestor encontra
o lugar ideal para começar a falar sobre
os PCS, experiências diversas que
desejam “desesconder o Brasil”, mas
que, em sua maioria, segundo o gestor,
realizam cursos e oficinas culturais.
Sobre a ação Escola Viva, Turino
afirma que cada escola poderia ser um
PC, mas isso não ocorre porque essa
instituição de ensino estaria “presa a
padrões antigos de aprendizagem,
fechadas em si mesmas e repetidoras
de pedagogias desconectadas da vida”
(TURINO, 2009, p. 94). Daí o papel da
Escola Viva de articular escola e
comunidade, tendo a cultura como
elemento transversal.
Diante da receptividade positiva
do PCV, em julho de 2014, o Programa
vira a PNCV, por meio da Lei No.
13.018 e fundamentada no Art. 215 da
Constituição, onde está expressa a
cultura como direito fundamental. Ainda
que a Escola Viva não esteja mais entre
as ações da Política, o papel da
formação continua central de modo
implícito ou explícito. Tanto que, entre
seus objetivos, eso de “estimular a
exploração, o uso e a apropriação dos
códigos, linguagens artísticas e
espaços públicos e privados
disponibilizados para a ação cultural”
(BRASIL, 2014, n.p.) e uma de suas
ações estruturantes denomina-se
“cultura e educação”.
Dos instrumentos previstos para
a PNCV, os Pontões de Cultura se
caracterizam por serem “entidades com
constituição jurídica, de
natureza/finalidade cultural e/ou
educativa e têm como um de seus
objetivos formar redes de capacitação
e de mobilização”. De modo geral, para
serem reconhecidos como pontos e
pontões de cultura, os grupos e
entidades devem priorizar, entre outras
ações, a capacitação e formação
continuada dos trabalhadores da
cultura” e a “promoção de programas
de capacitação e qualificação do
acesso às tecnologias da informação
para a produção e difusão culturais”
(BRASIL, 2014, n.p. – itálicos nossos).
219
BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
A trajetória da PNCV no Ceará,
por sua vez, se inicia com o primeiro
edital de PCs lançado pelo MinC em
2004, quando 40 propostas do estado
foram selecionadas. Três anos depois,
segundo o depoimento de Mirna Carla
Oliveira Sousa (2019), produtora
cultural, ponteira9 e que integrou a
Comissão Cearense dos Pontos de
Cultura, os PCs cearenses começaram
a se organizar e a pautar a Secult para
a estadualização do Programa. Desse
modo, em 2007, foi lançado o I Edital de
Pontos de Cultura do Ceará que
selecionou 100 iniciativas. Em 2009,
em parceria do governo estadual com o
federal, foi lançado o II Edital para mais
100 organizações. Com isso, o estado
implementou a segunda maior de rede
de PCs do país, com 240 organizões
conveniadas.
Nesse ínterim, em 2008, ocorreu
o I Fórum Cearense dos Pontos de
Cultura; em 2010, o II Fórum e a
realização em Fortaleza da Teia dos
Pontos de Cultura – Tambores Digitais;
em 2014, o III Fórum; em 2018, o IV
Fórum; e, em 2019, a Teia Cearense
de Pontos de Cultura. A respeito do IV
9 Ser ponteira/o é uma classificação nativa
utilizada pelos agentes que atuam nos PCs
Fórum, ocorrido já no governo Temer –
que reorientou a política cultural da era
petista para um foco liberal e voltado
para a economia criativa (BARBALHO,
2018) –, Sousa relembra que foi “uma
conquista da Rede dos Pontos de
Cultura do Ceará, considerando todo
processo de desarticulação do
Programa Cultura Viva, no cenário
político nacional” (SOUSA, 2019, p.
39).
Em 2018, o Governo do Ceará
sancionou a Lei 16.602, que institui a
Política Estadual Cultura Viva do Cea
(PECVC). Na avaliação de úba,
então secretário estadual de Cultura, a
PECVC foi “um passo importante para
a institucionalização e fortalecimento
do Programa” ao estabelecer
“objetivos, instrumentos, eixos,
certificação, integração de políticas e
os meios de fomento” (PIÚBA, 2019, p.
50). Para o gestor, esse instrumento
resultou do movimento político-cultural
que se expressou, por exemplo, na
Conferência Estadual de Cultura de
2013 e na atuação da Rede Estadual do
Cultura Viva, o que se insere em um
movimento mais amplo de politização
para se autoidentificarem como integrantes
desse “movimento”.
220
BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
do campo cultural brasileiro que vinha
se dando desde 2003 (BARBALHO,
2022). Para fins desse artigo,
destacamos que a referida lei, além de
reproduzir os dispositivos expressos na
lei federal, incluindo a relação com a
educação e o processo formativo, em
suas Disposições Gerais dispõe que
“os Pontos e Pontões de Cultura
poderão estabelecer parceria e
intercâmbio com as escolas e
instituições da rede de educação
básica, do ensino fundamental, médio e
superior, do ensino técnico e com
entidades de pesquisa e extensão
(CEARÁ, 2018, n.p. – itálicos nossos).
Piúba, que possui doutorado em
Educação, identifica o papel central dos
processos formativos nos PCs e,
portanto, na PNCV. Na sua avaliação,
isso decorre do fato da recorncia de
práticas de educação e de arte-
educação nas instituições voltadas
para ações socioculturais com foco em
crianças e jovens em situações de
vulnerabilidade social10. O
interessante, na sua avaliação, é que
“essas experiências são marcadas pela
10 Esse respeito ver o resultado do seminário
“Formação artística como objeto de políticas
públicas: pensar a formação em arte para além
das epistemologias e políticas vigentes”
diversidade de metodologias, práticas,
conteúdos, conceitos e de percursos
formativos”, revelando, desse modo,
“que o modelos únicos e
totalizantes para formação, muito
menos nos campos das artes e da
cultura”. Não é à toa que o então
secretário enfatiza a dimensão
formativa “como uma prática que deve
ser cada mais ampliada e aprimorada,
pois, em muitas ocasiões, o único
ambiente de formação técnica, artística
e de repertórios culturais que podemos
encontrar em certas comunidades é
justamente aquele promovido pelos
Pontos de Cultura” (PIÚBA, 2019, p.
45-46).
Para finalizar esta seção,
recorremos ao relatório que Analúcia
Sulina Bezerra produziu, a partir de sua
inserção etnográfica no PC Afro-Música
Alágba, para uma avaliação qualitativa
do ainda Programa Cultura Viva
realizada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada. O PC, sediado
em Fortaleza, era ligado à associação
Alàgba, fundada em 2006, que “surgiu
em parte da necessidade do
promovido pela SECULT (BARBALHO;
GADELHA, 2022).
221
BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
movimento negro no Ceará e das
comunidades de terreiro trabalhar com
educação, arte e inclusão para ampliar
e concretizar ações em torno da cultura
negra” (BEZERRA, 2011, p. 98 – itálico
nosso). Com esse propósito, a Alàgba
foi contemplada pelo edital da Secult de
2009 e alcançou, em seu primeiro ano,
120 jovens por meio de formações de
dança afro-contemporânea, percussão
e produção de instrumentos. A ideia
dessas formações, que se baseavam
no dialogismo, sem incorporar um
modelo pronto, segundo relata Bezerra,
“é a mesma da aprendizagem pela
oralidade, da transmissão pela
narração. Assim, com a cooperação
dos participantes, são concebidas
formas, gestos, conteúdos e ritmos. Há,
nesse sentido, espaço à criatividade, às
vivências e às inserções que cada um
traz” (BEZERRA, 2011, p. 107).
A Afro-Música Alágba visava,
por meio de suas ações, à
profissionalização e ao mercado de
trabalho, tendo a pesquisadora
identificado a inserção de alguns jovens
em profissões relacionadas às
capacitações recebidas. Esse aspecto,
contudo, não retirava da formação seu
papel de fomentar “sujeitos conscientes
e ativos no processo de construção de
sua cidadania cultural”. (BEZERRA,
2011, p. 104). O que converge com a
finalidade do PC que era “propor aos
jovens da periferia uma formação
humana de modo que possam construir
outros caminhos que não o da exclusão
social” (BEZERRA, 2011, p. 105-106
itálico nosso). Bezerra exemplifica a
atuação do Alágba a partir do
minicircuito cultural que se estabeleceu
com as atividades de percussão:
Então, a primeira etapa desse
circuito é a produção do
instrumento, constituindo-se de
um momento de formação e
transmissão de um saber-
fazer. A segunda etapa se
constitui igualmente de um
aprendizado, agora para
trabalhar os sons do
instrumento. Nesse momento,
todos os envolvidos exploram
as potencialidades sonoras e,
mesmo que se venha a
desenvolver maiores
habilidades para um
instrumento, os participantes
devem se iniciar em todos eles,
ou seja, na caixa, no repique,
no surdo ou nas alfaias. Em
uma terceira etapa, agora
lapidados, os instrumentos
circulam nas redes de relações
do ponto de cultura não como
produto a ser vendido, mas
para ser apreciado pelo som
que produz. É com esses
instrumentos e com a música
neles trabalhadas que os
jovens do Ponto de Cultura
Afro-Música garantem uma
visibilidade e se enchem de
autoconfiança, transformando
assim suas vidas. (BEZERRA,
2011, p. 106).
222
BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Se a PNCV e os PCs, como
visto, possuem a dimensão formativa
como estruturante de sua proposta e
que, de fato, essa dimensão é
valorizada nas práticas das instituições
da sociedade civil envolvidas com essa
política, a próxima seção vai explorar o
desdobramento desse referencial
conceitual e pragmático com formação
em uma nova ação pública, as das
Escolas Livres.
3. As Escolas Livres daqui (do
Ceará) e d’acolá (do Brasil afora)
Em agosto de 2023, o MinC, por
meio da SEFLI, lançou o edital “Escolas
Livres de Formação em Arte e Cultura”
voltado para Organizações da
Sociedade Civil (OSCs) que se
proponham a executar projetos de
formação em arte e cultura tendo “como
base a democratização do acesso aos
processos educativos em artes e
cultura, como dimensões vitais para
inserção social, acessibilidade,
promoção da cidadania e diversidade
cultural” (BRASIL, 2023, n.p).
Esse edital, como dito, é a
implementação em âmbito federal de
uma política da SECULT, o Programa
Escolas da Cultura (PEC). A pauta da
formação como política cultural
começou a ganhar maior
institucionalidade no âmbito da
Secretaria a partir de 2016, com a
implementação, em seu organograma,
de uma coordenadoria especialmente
dedicada às ações e programas
relacionados à formação e ao
conhecimento, a Coordenadoria de
Conhecimento e Formação (CCFOR).
Por sua vez, o plano do segundo
governo Camilo Santana (2019-2022),
intitulado “Os 7 Cearás Propostas
para o Plano de Governo”, previa a
“criação de 13 escolas de tempo
integral na cultura com currículo de
artes inovador”. (CEARÁ, 2014). É a
partir desta demanda que surge o PEC,
que compreende várias modalidades
de ação formativa. De acordo com o
documento de apresentação do
Programa, sua premissa é
composta pela interface entre
arte, cultura, educação e
inovação para formação
profissional e desenvolvimento
de experiências estéticas e de
capacidades para a vida em
sociedade, numa perspectiva
de formação dialógica, criativa,
construtiva, autônoma,
colaborativa, transdisciplinar e
como processos de mão dupla
entre as instituições formativas
e seus públicos (CEARÁ, s.d.,
n.p.).
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
O mesmo documento apresenta
um referencial conceitual que traz
elementos significativos para a análise
ora realizada:
o escopo conceitual do
Programa Escolas da Cultura
não consiste em estabelecer
modelos únicos e totalizantes.
Pelo contrário, seu arcabouço
conceitual parte do
reconhecimento de que os
percursos formativos são
diversos, assim como são
diversas as abordagens
teóricas, metodológicas,
didáticas, práticas e
modalidades existentes nos
processos educativos e de
formação. Daí a proposta de
incorporar ao Programa uma
noção que abrange a escola
para além do espaço físico e de
sua formalidade. Não se trata,
portanto, da construção ou
criação de 13 escolas com
modelos únicos para
implantação no Estado.
Expandimos a ideia do
Programa para uma
pluralidade de modalidades de
Escolas da Cultura (8 no total),
considerando a multiplicidade
de experiências e de percursos
formativos, tanto no campo
formal e informal, como de
instituições públicas e da
sociedade civil, contemplando
de cursos livres passando
pelos técnicos e
profissionalizantes ao
acadêmico. Dessa forma, ao
mesmo tempo em que
percebemos que o Programa
deve estar inserido
substancialmente na formação
profissional de jovens do
ensino médio, com toda a
estrutura, capilaridade e
perenidade da educação
formal, ele também abriga os
projetos de formação livre
desenvolvidos por instituições
da sociedade civil.” (CEARÁ,
s.d., n.p.)
Embora o PEC abranja também
instituições de ensino formal, no trecho
acima descrito, chama atenção um
aspecto referente ao arcabouço
conceitual que fundamenta a proposta.
Este diz respeito ao intuito de evitar
modelos totalizantes no que tange às
perspectivas metodológicas e
epistêmicas, abraçando propostas
formativas na diversidade das
acepções que hoje são praticadas para
além dos espaços físicos da rede de
ensino formal. Dessa forma, distancia-
se do propósito de criar/construir novas
escolas, concebidas, implantadas e
conduzidas pelo Estado, para fomentar,
em uma das modalidades previstas no
Programa, as Escolas Livres, iniciativas
de formação gestadas por OSCs.
Trata-se, portanto, de uma
opção político-pedagógica que prioriza
projetos formativos existentes ou
ainda por serem criados. A
fundamentação da parceria entre o
Estado e as OSCs pautou-se no
princípio de que poder blico e
sociedade civil podem (e devem) se
associar para gerar sinergia na
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
execução de políticas públicas e que
essas parcerias trariam um diálogo e
conexão mais orgânicos dos projetos
com os territórios e seus respectivos
públicos. Além de ir ao encontro da
proposta de fomentar a pluralidade
epistêmica e metodológica, valorizando
saberes e fazeres de várias ordens, o
PEC faz eco a um clamor histórico e
represado da parte de agentes culturais
por políticas cujas ações sejam
descentralizadas, alcançando mais
amplamente os municípios do interior
do Ceará.
Uma análise mais detalhada das
consequências dessa escolha para a
política de formação em arte e cultura,
em virtude da restrição de espaço, não
será feita aqui, porém, ela se torna um
dos pilares da política blica de cultura
do Ceará. Para uma melhor
compreensão do PEC, expomos, no
Quadro 01, as oito modalidades
originalmente previstas.
Quadro 01: Modalidades do Programa Escolas da Cultura
MODALIDADE
DESCRIÇÃO
1. Escolas Estaduais de
Educação Profissional
Esta modalidade seria voltada para o eixo tecnológico produção cultural e
design, porém não foi efetivamente implementada
2. Escolas Estaduais de
Tempo Integral
Esta modalidade foi implantada por meio do projeto Artista, Presente!”, que
cadastra artistas para realizar atividades artísticas e culturais nos
componentes curriculares eletivos. Encontra-se atualmente em sua terceira
edição
3. Escolas Livres de
Formação Artística e Cultural
Foi implementada por meio de edital, que selecionou, em sua primeira
edição, trinta projetos formativos de organizações da sociedade civil.
Encontra-se, atualmente, em sua segunda edição, com mais trinta projetos
selecionados
4. Escolas de Ensino
Superior
Esta modalidade previa cursos de extensão, graduação e pós-graduação
em parceria com universidades parceiras. Até o presente momento, ainda
não foi efetivada
5.Escolas dos
Equipamentos Culturais
São as ações formativas realizadas pelos equipamentos da Secretaria da
Cultura do Estado
6. Escolas Públicas da
Cultura equipamentos das
secretarias municipais de
cultura do Estado
Esta modalidade será realizada pela primeira vez em 2024, levando ações
formativas para dez municípios do Ceará
7. Escolas com os Mestres
da Cultura
Esta modalidade teve duas edições realizadas, nos mesmos moldes da
modalidade 2. Interrompida em função da pandemia da Covid, deve ser
retomada em 2024
8. Espaços bridos de
mediação cultural e de
formação de público
Esta modalidade, até o presente momento, ainda não foi efetivada
Fonte: CEARÁ, s.d.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Importante mencionar que o
PEC foi institucionalmente formalizado,
com algumas modificações em relação
à proposta original e exposta no quadro
acima, por meio da lei 18.299, de
dezembro de 2022. Além disso, figura
como Programa associado do Sistema
Estadual da Cultura do Ceará, instituído
por lei também em 2022 (CEARÁ,
2022).
A primeira edição da modalidade
Escolas Livres de Formação Artística e
Cultural, que ficou conhecida como
Escolas Livres de Cultura (ELC), objeto
de nossa discussão, aconteceu em
2016. O primeiro edital foi dividido em
três categorias com valores distintos
(Quadro 02) que contemplaram
propostas formativas existentes e
com atuação consolidada, mas também
ações inéditas, concebidas
especialmente em função do Edital.
Foram aprovados 15 projetos
provenientes da capital e 15 de outros
municípios, abrangendo as linguagens
do audiovisual, artes visuais, circo,
dança, música e teatro, além de
projetos de artes integradas.
11 O advento da pandemia atingiu fortemente
as atividades de todas as Escolas Livres nos
anos de 2020 e 2021, não impedindo,
entretanto, que essa ação tivesse e continue
Uma inovação que a inciativa
das ELC trouxe foi a de fomentar os
projetos ininterruptamente, por três
anos seguidos, abrindo uma
possibilidade de continuidade para os
processos formativos. Tal diferencial
deu-se em razão da compreensão do
caráter processual das ações de
ensino-aprendizagem, que muitas
vezes constituem percursos que
facilmente extrapolam a duração de um
ano apenas11.
A segunda edição do Edital foi
lançada em 2022, dessa vez com
financiamento previsto para dois anos.
Os valores das Categorias 1 e 2 foram
ampliados para 190 mil e 130 mil
respectivamente, enquanto a Categoria
3 permaneceu com o mesmo valor de
80 mil reais (Quadro 02).
Quadro 02: Valores investidos pelos editais
Escolas Livres de Formação Artística e
Cultural
ANO 2016
VALOR EM REAIS
Categoria 1 180 mil
Categoria 2 120 mil
Categoria 3 80 mil
ANO 2023
VALOR EM REAIS
Categoria 1 190 mil
Categoria 2 130 mil
Categoria 3 80 mil
Fonte: Coordenadoria de Formação, Livro e
Leitura/SECULT
tendo uma grande repercussão no âmbito das
políticas de formação.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Na segunda edição, uma parcela
expressiva dos recursos foi destinada a
projetos ainda não consolidados ou
inéditos, com o intuito de fomentar tanto
iniciativas que apresentavam potencial
de desenvolvimento, como projetos que
existiam e que, no entanto, não
haviam sido fomentados com recursos
da política de formação. Às linguagens
contempladas no primeiro edital,
somaram-se projetos voltados para
escolas de carnaval, patrimônio, cultura
afro, arte drag queen, produção
cultural, cultural popular e tradicional.
No momento da feitura deste artigo, as
30 escolas, sendo 15 do interior e 15 de
Fortaleza, encontram-se em pleno
funcionamento.
Somando a primeira e segunda
edições, o Escolas Livres da Cultura
beneficiou 49 projetos, abrangendo 23
municípios do Ceará. Nessa
perspectiva, o Programa busca cumprir
vários propósitos importantes para a
política pública de formação da
SECULT, entre os quais destacamos
três. O primeiro deles remete à
descentralização das ações formativas,
considerando que são iniciativas
reconhecidas e fomentadas pelo poder
público. O segundo propósito diz
respeito ao acolhimento e à valorização
de distintas formas de saberes, bem
como de sua transmissão e ensino,
como elementos relevantes para a
formação cultural no estado,
fortalecendo uma rede o formal de
ensino em arte e cultura. O terceiro
aspecto remete à convergência
sinérgica da política de formação
materializada pelas Escolas Livres com
a política dos PCs, como dito.
Exemplo claro é o fato de que dos 49
projetos fomentados, 26 são pontos
de cultura certificados pela SECULT
(Quadro 03). Denota-se que os
conceitos político-culturais que
fundamentam ambas as políticas se
alinham e se desdobram de forma
convergente.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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Quadro 03: ESCOLAS LIVRES DA CULTURA (I E II EDITAIS) / PONTOS DE CULTURA
(CERTIFICADOS ATÉ AGOSTO/2023)
NOME
LINGUAGEM
MUNICÍPIO
EDITAL
1 ASSOCIAÇÃO VIDANÇA - COMPANHIA DE DANÇA
DO CEARÁ
DANÇA
FORTALEZA I EDITAL
2 GRUPO FORMOSURA DE TEATRO TEATRO FORTALEZA I EDITAL
3 FUNDAÇÃO SOCIAL RAIMUNDO FAGNER MÚSICA FORTALEZA I EDITAL
4
ASSOCIAÇÃO CULTURAL SISTEMA
INTERESTADUAL BRASILEIRO DE BANDAS E
ORQUESTRAS (SINFONIA.BR)
MÚSICA FORTALEZA I EDITAL
5 CENTRO EDUCACIONAL DA JUVENTUDE PADRE
JOÃO PIAMARTA MÚSICA FORTALEZA I EDITAL
6 FUNDAÇÃO EDUCACIONAL SILVESTRE GOMES ARTES
INTEGRADAS
FORTALEZA II EDITAL
7 ASSOCIAÇÃO EDUCATIVA CULTURAL TEATRO DA
BOCA RICA TEATRO FORTALEZA II EDITAL
8 COMÉDIA CEARENSE TEATRO FORTALEZA II EDITAL
9 COMPANHIA PRISMA DE ARTES TEATRO FORTALEZA I E II
EDITAL
10
GRUPO BAILARINOS DE CRISTO AMOR E
DOAÇÕES DANÇA FORTALEZA I E II
EDITAL
11
CIA TEATRAL ACONTECE TEATRO FORTALEZA I E II
EDITAL
NOME
LINGUAGEM
MUNICÍPIO
EDITAL
12
ASSOCIAÇÃO DAS MULHERES INDÍGENAS
JENIPAPO KANINDÉ AUDIOVISUAL
AQUIRAZ I EDITAL
13
ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA ARTE - AAMARTE MÚSICA PINDORETA
MA I EDITAL
14
ASSOCIAÇÃO CULTURAL CANOA CRIANÇA CIRCO ARACATI I EDITAL
15
INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ARTÍSTICO E
CULTURAL DO CEARÁ – INDACE AUDIOVISUAL
CAUCAIA II EDITAL
16
INSTITUTO TAPUIA DE CIDADANIA, CULTURA,
MEIO AMBIENTE E TURISMO
ARTE E CULT.
DIGITAL MERUOCA II EDITAL
17
ASSOCIAÇÃO DAS LGBTQIA+ DE MASSAPÊ CE ARTE DRAG
QUEEN MASSAPÊ II EDITAL
18
GRUPO / ASSOCIAÇÃO RETRATORES DA
MEMÓRIA DE PORTEIRAS
PATRIMÔNIO
MATERIAL E
IMATERIAL
PORTEIRAS II EDITAL
19
ASSOCIAÇÃO LIBERTÁRIA DE
DESENVOLVIMENTO E EDUCAÇÃO INTERATIVA
AMBIENTALMENTE SUSTENTÁVEL – ALDEIAS
CULT. POP. E
TRADIC. CRATO II EDITAL
20
PONTO DE CULTURA PROCEM / CASA LUZ ARTES
INTEGRADAS
CRATO II EDITAL
21
ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL E
CULTURAL CAPOEIRA ARTE E TRADIÇÃO –
ARTES
INTEGRADAS
BARBALHA II EDITAL
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
TERREIRO
22
ASSOCIAÇÃO DE BRINCANTES DA COMPANHIA
VATÁ - ABCVATA DANÇA JATI II EDITAL
23
CIEDS - CENTRO INTEGRADO DE ESTUDOS E
PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
ARTES
INTEGRADAS
PACAJUS I E II
EDITAL
24
ASSOCIAÇÃO DE ARTES CÊNICAS DE ITAPIPOCA -
AARTI DANÇA ITAPIPOCA I E II
EDITAL
25
ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA ARTE DE
GUARAMIRANGA
ARTES
INTEGRADAS
GUARAMIRA
NGA
I E II
EDITAL
26
SOCIEDADE CORAÇÃO DE MARIA AUDIOVISUAL
MERUOCA I E II
EDITAL
Fonte: Coordenadoria de Formação, Livro e Leitura/SECULT
A ação ELC, passados quase
oito anos do lançamento de seu
primeiro edital, parece tornar-se uma
política que tende a perdurar e que, tal
como no PPA 2020-2023, está prevista
também no PPA 2024-2027. Tanto na
esfera estadual, quanto na nacional,
com o Programa Olhos D’Água, trata-
se de um case de política pública cujas
reverberações merecem ser
cuidadosamente avaliadas. A próxima
seção vai se debruçar sobre esse
aspecto, com foco no programa
estadual em sua edição de 2016, e
mais especificamente no que diz
respeito ao propósito listado acima de
reconhecer e valorizar distintas formas
12 Ver nota 01. Para um panorama sobre a
pesquisa “Cultura, inovação e inclusão social
no Ceará” ver ALMEIDA; BARBALHO;
AZEVEDO JÚNIOR, 2023.
de transmissão e ensino de saberes
diversos.
4. As Escolas Livres sob o olhar de
seus gestores
No âmbito da pesquisa “Cultura,
inovação e inclusão social no Ceará”12,
estamos avaliando a implementação da
ação ELC13. Entre os instrumentos
utilizados, um deles foi um questionário
voltado para os gestores das OSCs
selecionadas pelo I Edital. Nesse
sentido, questionados se a política
potencializa a atuação da instituição, os
gestores foram unânimes em destacar
a importância do edital, ainda que em
graus diferenciados entre muito,
13 Para uma análise mais detalhada dessa
etapa da avaliação ver BARBALHO;
GADELHA, 2023.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
satisfatoriamente e razoavelmente
(Figuras 01 e 02).
Figura 01
Figura 02
Sobre o papel dessas
instituições para a promoção da
cidadania cultural, perguntamos se as
ações formativas democratizavam o
acesso à formação, à fruição e à
produção artística e cultural e se
promoviam o valor do trabalho coletivo,
a sensibilidade para as artes e a
cultura, a reflexão crítica, a sensação
de empoderamento e pertencimento
democrático e a abertura para o novo e
para novas significações sobre o
mundo social. Os itens mais
destacados foram: 1. Democratiza para
seus beneficiários o acesso à formação
artística e cultural (100%); 2.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Democratiza para seus beneficiários o
acesso à produção artística e cultural
(100%); 3. Promove em seus
beneficiários a sensibilidade para as
artes e a cultura (100%) (Figura 03).
Figura 03
Outro dado importante era saber a reverberação das ELC na produção cultural
da comunidade onde está inserida, uma vez que, conforme a pesquisa do IPEA
(2011), um dos resultados dos PCS foi possibilitar minicircuitos culturais nos territórios
de atuação. Todos os respondentes foram unânimes em afirmar que o projeto
potencializa, de modo no mínimo razoável, a dinâmica do circuito cultural e artístico
de suas comunidades (Figura 04).
Figura 04
231
BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
No que se refere ao aspecto
propriamente formativo, nos
interessava saber em que medida as
ELCs propiciaram a aplicação de
pedagogias inovadoras. Também
nesse quesito, houve unanimidade em
apontar a potencialidade do projeto
(Figura 05), dado que se completa com
os depoimentos colhidos durante a
aplicação do questionário (Quadro 04).
Figura 05
Quadro 04: Depoimentos dos gestores sobre as experiências pedagógicas inovadoras
implementadas com o projeto Escola Livre
EXPER
NCIAS
PEDAGÓ
GICAS
INOVADO
RAS
Isso ocorre a partir da sistematização de práticas artístico - pedagógicas que são mapeadas pela
coordenão da escola Maloca das Artes. Além disso, cada educador busca dentro das reuniões
pedagógicas criar um plano de aula articulado com seu território e oportunidades, dinamizando assim
o seu fazer pelo olhar coletivo.
Programa de educão musical baseado em pesquisa bibliográfica e em loco sobre o nivelamento
das turmas de banda e orquestra considerando os parâmetros técnicos adotados mundialmente por
bandas e orquestras pedagógicas nos EUA e na Europa. Isso foi adaptado à nossa realidade e é a
base de nosso programa de educação musical.
A forma e o conteúdo o dimicos e portanto é satisfatoriamente porque tem que estar em todo
momento se adaptando aos contextos em uma realidade interiorana onde os estudos em arte e
cultura não visam necessariamente uma carreira.
A Escola prima por uma formação ampla e eficiente da daa, com metodologia de ensino própria,
mas seguindo os pametros dos espaços de formação profissionalizante.
se tinha a prática de um modelo pedagógico através da vivência, do contato com o outro e um
resgate da cultura e sua valorização.
Através da assessoria de uma coordenadora pedagógica, a instituição planeja, elabora e executa
planos de aula que possuem atividades de acordo com a realidade da instituição e de seus
educandos, pois procuram alinhar vivências e experiências de ambos
Se apropriam de metodologias variadas para atingir ao máximo todos os alunos, com o objetivo de
melhorar a relação ensino-aprendizagem.
Percebe-se que o teatro tinha muito que aprender com a tradição porque a gente tem uma formação
muito eurontrica quando se trata das artes da cena. E a tradição vem com um misto, com uma
pluralidade e diversidade muito forte. E que tem todos os elementos que eso contidos no teatro. E
é novo nesse sentido: para repensar esses códigos de formação da atriz e do ator. Se pensarmos
essa formação eurocêntrica e colonial que a gente tem, que a gente muito mais direcionado para
os mestres do teatro europeu, a nossa formão é toda codificada por teóricos, por mestres que a
gente nunca teve acesso de fato. E o que a gente tá querendo promover é o entrelaçamento em que
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
a gente reconha a potência dos mestres e mestras da tradão popular do Cariri e suas diversas
brincadeiras como um espaço de formação para ator e atriz. E aí esses elementos que a gente tanto
trabalha no teatro como presea, corporeidade, voz, energia… tudo fortemente presente na
tradição. Então é um lugar de aprendizagem que por conta dessa nossa cultura que nos afasta da
nossa identidade cultural, da própria relação com o terririo, dado a globalização, informatização de
tudo, é olhar para o que s temos como potência. A partir da tradição popular. Dos saberes da
tradição popular.
A gente parte do princípio da escola. Se a gente for revisitar o PPP da escola, a gente vai entender
primeiro esse conceito de Escola Livre. Que é esse território que é aberto porém não é um livre que
é solto. É algo organizado. Existe uma sistematicidade, mas é algo que também permite criação. A
gente traz aí um processo de autonomia. Seja a autonomia do aluno, mas também a autonomia do
professor. Embora a gente tenha as ementas de cada curso, os professores, eles têm essa
possibilidade de trazer o novo, de criar uma nova possibilidade. Testar uma nova ferramenta. Um
novo discurso pedagógico. Eno isso é muito livre assim, para o educador. De testar às vezes [...]
até mesmo com alguma dificuldade e dentro da reuno pedagica que é feita mensalmente ou a
em conversas individualizadas comigo, a gente vai ajustando assim um novo percurso. "Ai, que tal,
vem por aqui", "Que tal a gente utilizar essa nova abordagem?", o é? "Trazer essa determinada
temática?". Eno a gente vai ajustando isso [inaudível] total...[...]. E através deste processo a gente
reflete, não é, sobre a prática. É um processo de reflexão.
O formato do curso inovou porque o existia uma proposta semelhante voltada para o seu blico
alvo. O curso também promoveu a formação de novas redes entre os professores, fora das redes já
existentes na cidade. O curso potencializou ainda a perspectiva de formão continuada na área aos
seus alunos/as/es.
Também são relevantes os
desdobramentos que a formação
propiciou ao público e sua família. Na
avaliação dos gestores, no que diz
respeito aos discentes (Figura 05),
destacam-se: 1. o acesso a novos
conhecimentos, tanto teóricos quanto
práticos (96,4%); 2. o estímulo à
sensibilidade, à imaginação e à
inteligência dos discentes (96,4%); 3. a
promoção da reflexão, da memória e de
uma visão crítica do mundo social
(96,4%); 4. o desenvolvimento da
sensação de empoderamento e
pertencimento democrático (96,4%); e
5. a construção de um sentido coletivo
para o trabalho (92,9%).
Figura 05
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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26, p. 212-238, mar. 2024.
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No que diz respeito às famílias, entre as transformões identificadas pelos
gestores, destacam-se a ampliação do repertório cultural da família (92,9%) e a
inclusão social (82,1%) (Figura 06).
Figura 06
O questionário nos permitiu ter
uma visão mais generalista das ELCs,
contudo, dentro da proposta da
pesquisa de acessarmos o aspecto
cognitivo da ação pública, aplicamos o
questionário com alguns gestores
acompanhado de uma entrevista. Na
próxima seção, apresentamos o
resultado dessa técnica a partir da
experiência da Edisca, no diálogo que
estabelecemos com Andrea Soares,
coordenadora de Elaboração e
Acompanhamento de Projetos da
instituição.
A Escola de Desenvolvimento e
Integração Social para Criança e
Adolescente (Edisca) é uma OSC
criada em 1991 e sediada em
Fortaleza. Tendo como eixo central a
formação em dança, a Escola atende
um público em situação de
vulnerabilidade social. Dessa forma,
além da formação artístico-cultural,
atua em outras áreas, como na
educação, na capacitação profissional
e geração de renda e na saúde. Pelo
conjunto de suas atividades, a Edisca
recebeu em 2012 do MinC a Ordem do
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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26, p. 212-238, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Mérito Cultural14. A sustentabilidade
principal da Edisca vem dos recursos
obtidos via leis de incentivo, em
âmbitos estadual e federal, mas a
instituição participa de editais, inclusive
de outras áreas que não a cultura.
No que diz respeito à sua
atuação com ELC, e respondendo ao
questionário apresentado na seção
anterior, Soares, em relação à pergunta
“Em que medida as ações afirmativas
realizadas por seu projeto são
potencializadas graças aos recursos
provenientes do edital escolas livres da
cultura?”, respondeu muito
potencializados” e justificou pelo papel
desempenhado pela SECULT diante da
redução de verbas para o setor no
governo Bolsonaro e o recuo dos
empresários no uso da Lei Rouanet
com a criminalização desse
instrumento feita pelo bolsonarismo15.
No que se refere “em que
medida o edital Escolas Livre beneficia
a sua instituição como um todo?”, a
resposta da gestora foi “beneficia
14 Para maiores informações sobre a Edisca,
consultar seu site:
https://edisca.org.br/noticias-e-publicacoes/.
15 Para uma análise da atuação da SECULT-
CE durante a retração da atuação federal no
setor cultural nos governos Temer e,
principalmente, Bolsonaro ver BARBALHO,
muito”, pois, argumenta, embora
contemplasse apenas um eixo de
atuação da Edisca, que é o da
formação em dança, ele é o “carro-
chefe”, é o que atrai o público-alvo, pois
“as crianças vêm para pra dançar,
elas não vêm para fazer aula de
português e matemática, nem vem pra
discutir direitos e deveres, a
expectativa é dançar”16.
Como desdobramento dessa
questão, perguntamos à gestora como
ela observava a formação e o lugar da
arte na experiência das crianças qu e
entravam para a Edisca. Andrea
apontou que era “fundamental”, pois
são
muito encantadas com a dança
porque é um universo delas (...)
quando eles [adolescentes]
vão adolescendo aqui (...) [o]
espetáculo quem vai construir
são os adolescentes; eles que
vão fazer a coreografia, que
vão ensaiar, que vão conceber
vários processos. A construção
do espetáculo em si é deles,
(...) eles que administram os
conflitos da turma (...) quando
eles entram no processo de
construção existe um
deslocamento do pensar como
2023. Para uma análise dessa situação em
outros estados do país ver BARABALHO;
CALABRE; RUBIM, 2023.
16 Entrevista para a pesquisa “Cultura,
inovação e inclusão social no Ceará”
concedida na sede da Edisca em 12 de maio
de 2022.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
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26, p. 212-238, mar. 2024.
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bailarina individualista ou
artista pra pensar a formação
do outro artista, e não apenas
do outro artista, porque não é
mais um só, é um coletivo.
Questionada se as ações
formativas realizadas pela Edisca
promoviam a cidadania cultural, Soares
respondeu afirmativamente todos os
quesitos e ressalta os pontos “acesso à
formação” e “fruição”. Em relação ao
primeiro, ela aponta que “a gente tanto
forma, tem a fruição e tem a produção,
que, assim, todo mundo tem aula de
dança aqui, todos”. Em relação ao
segundo, chama atenção que a fruição
acontece nos próprios espetáculos,
além da ida das crianças para
exposições na cidade, mas também no
programa de fortalecimento do ensino
formal por meio da exibição e análise
de filmes, e de sua aplicação nas áreas
de português e matemática.
No que diz respeito ao papel da
Edisca na dinamização do circuito das
artes e da cultura no território onde
atua, avalia que é “satisfatoriamente
potencializada”, pois esse não é um
objetivo da Escola, mas identifica que
esse processo ocorre como
consequência das atividades de
formação, se espalhando por vários
bairros da cidade. Quanto à promoção
de novos formatos pedagógicos, a
resposta foi “razoavelmente”, porque,
na avaliação da gestora, ainda que haja
uma percepção por parte da direção da
necessidade de inovar, depois de
tantos anos de atuação, por mais que
se inove um “núcleo duro” que
permanece. Ela reconhece que houve
melhorias ao longo do tempo, mas a
partir de dentro, sem que isso
implicasse em novos formatos
pedagógicos
Em relação aos benefícios
oriundos das ações formativas junto
aos egressos, Soares destaca a
capacitação para o mercado de
trabalho em arte e cultura embora,
como ressalta, esse não seja um
objetivo da Edisca, mas é “notório”, em
seu entendimento, que depois da
formação muitos egressos entraram no
mercado de trabalho da dança. Por fim,
sobre as transformações junto às
famílias dos alunos, a gestora destaca
os efeitos de inclusão social. Na sua
percepção,
quanto mais tempo passa aqui
dentro [os alunos e as alunas],
mais muda, quebra o ciclo da
pobreza (...) vo vai ver que
esse grupo que passou mais
tempo é o grupo que deu uma
superada, deu uma mobilidade
social mesmo! É incrível,
assim, como é evidente, muitos
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
deles não necessariamente
estão na dança, mas alguns
estão vinculados à dança (...)
ou em outros universos (...)
lógico que quando tem um ente
que sai, que faz essa
mobilidade, a família toda não
vai junto não, mas muda, muda
a perspectiva17.
Considerações finais
A análise feita das Escolas
Livres de Cultura evidenciou a
influência do arcabouço conceitual-
programático da PNCV, desde que ela
se tornou uma ação pública em 2004,
em outras políticas, para além,
inclusive, do âmbito federal.
Sobrevivendo a conjunturas
desfavoráveis em âmbito federal nos
governos anteriores, a retomada da
PNCV pela atual gestão de Margareth
Menezes, reativa um capital simbólico e
um conjunto de comportamentos e
procedimentos que estavam vigentes
ou latentes em governos estaduais e no
campo cultural, como exemplifica o
caso cearense.
Por sua vez, o fato da
experiência das Escola Livres da
SECULT ser adotada pelo MinC, com a
ida do ex-gestor estadual de cultura
Fabiano Piúba para o Ministério
17Entrevista para a pesquisa “Cultura,
inovação e inclusão social no Ceará”
atuando, assim, como um mediador ao
articular níveis diferentes da federação
–, reforça, em um movimento circular,
as ideias e os elementos cognitivos
próprias à marca “Cultura Viva” que,
diga-se de passagem, rompeu as
fronteiras nacionais e hoje é uma
proposta presente em vários países da
América do Sul. Podemos especular,
desse modo, que no atual momento a
PNCV volta a operar como uma forte
estrutura ideacional, no sentido de
legitimar seus defensores, seja no
MinC, seja nos órgãos gestores
estaduais de cultura, seja no campo
cultural.
Quanto à dimensão
propriamente avaliativa do nosso
artigo, a pesquisa junto aos gestores
das ELC revelou a importância da
política para potencializar as ações
desenvolvidas pelas OSCs, bem como
sua relevância ao promover a cidadania
cultural, a formação de minicircuitos
culturais nas comunidades, a
experimentação nas práticas
formativas e o empoderamento não
apenas dos alunos, alunas e alunes,
mas também de suas famílias.
concedida na sede da Edisca em 12 de maio
de 2022.
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BARBALHO, A.; GADELHA, E.; VALE, A. F. Cultura Viva e seus
desdobramentos: uma avaliação das Escolas Livres. PragMATIZES -
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n.
26, p. 212-238, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Temos consciência dos limites
da avaliação que a aplicação do
questionário com os gestores impõe.
Mas tentamos superar o dado
quantitativo tanto com a possibilidade
dos respondentes trazerem seus
depoimentos sobre as possíveis
inovações pedagógicas implementadas
por sua Escola Livre (Quadro 04),
quanto com as entrevistas, feitas no
momento de aplicação do questionário,
que nos permitiu explorar nuances do
processo, como ilustrado com o caso
da Edisca. Outro limitador foi o fato de
termos nos restringido aos
responsáveis pela execução da
proposta selecionada pelo edital.
Contudo, estamos, com a continuidade
da pesquisa, escutando tanto os
docentes, quanto os discentes,
recorrendo a técnicas quanti-quali, bem
como à etnografia, nos próprios
espaços onde se dão os processos
formativos, o que contribuirá para
qualificar a análise avaliativa dessa
ação pública.
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emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Cultura Viva entre o emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede
Mineira de Pontos de Cultura
Luana Vilutis1
José Márcio Barros2
Ana Paula do Val3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.60471
Resumo: As reflexões aqui tecidas são baseadas nos dados gerados pelo Mapeamento e Diagnóstico
realizado pelo Observatório da Diversidade Cultural-ODC junto à Rede Mineira de Pontos de Cultura
de Minas Gerais em 2021. Apresentaremos de forma geral a metodologia e uma breve caracterização
dos Pontos de Cultura de MG, no que tange suas institucionalidades, atuações, distribuição territorial e
infraestruturas. Também evidenciaremos duas dimensões que nos parecem emblemáticas desta
realidade, simultaneamente regional e nacional: a vitalidade econômica dos Pontos de Cultura e a
importância da Lei Aldir Blanc I no fortalecimento da organização em rede de entidades culturais
comunitárias.
Palavras-chave: Pontos de Cultura; Lei Aldir Blanc I; Rede Mineira de Pontos de Cultura.
Cultura Viva entre lo emergencial y lo emergente: El mapeo de la Red de Puntos de Cultura de
Minas Gerais – Brasil
Resumen: Las reflexiones aquí expuestas se basan en los datos generados por el Mapeo y Diagnóstico
llevado a cabo en 2021 por el Observatorio de la Diversidad Cultural-ODC Brasil en colaboración con
la Red de Puntos de Cultura de Minas Gerais. Presentaremos de manera general la metodología y una
breve caracterización de los Puntos de Cultura en Minas Gerais, centrándonos en sus estructuras
institucionales, actividades, distribución geográfica e infraestructuras. También destacaremos dos
dimensiones que parecen emblemáticas de esta realidad, tanto a nivel regional como nacional: la
vitalidad económica de los Puntos de Cultura y la importancia de la Ley Aldir Blanc I en el fortalecimiento
de la organización en red de entidades culturales comunitarias.
Palabras clave: Puntos de Cultura; Ley Aldir Blanc I; Red de Puntos de Cultura de Minas Gerais.
1 Luana Vilutis. Pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural (ODC), Belo Horizonte/MG.
Doutora em Cultura e Sociedade pela universidade Federal da Bahia, Brasil. Contato:
luanavilutis@gmail.com - https://orcid.org/0009-0003-2299-1837
2 José Márcio Barros. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Professor da UEMG e da PUC
Minas e pesquisador do Observatório da Diversidade Cultural, Brasil. Contato:
josemarciobarros2013@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-3058-5236
3 Ana Paula do Val. Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Pesquisadora do
Observatório da diversidade Cultural. Contato: anap.doval@gmail.com - https://orcid.org/0009-0003-
9278-7807
Recebido em 07/11/2023, aceito para publicação em 28/03/2024.
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Living Culture between the emergency and the emerging: The mapping of Culture Points
Network of Minas Gerais - Brazil
Abstract: The reflections presented here are based on the data generated by the Mapping and
Assessment conducted in 2021 by the Observatory of Cultural Diversity-ODC Brasil in collaboration with
the Culture Points’ Network of Minas Gerais. We will provide a general overview of the methodology
and a brief characterization of the Culture Points in Minas Gerais, focusing on their institutional
structures, activities, geographical distribution, and infrastructure. We will also highlight two dimensions
that appear emblematic of this reality, both regionally and nationally: the economic vitality of the Culture
Points and the significance of the Aldir Blanc Law I in strengthening the network organization of
community cultural entities.
Keywords: Culture Points; Aldir Blanc Law I; Culture Points’ Network of Minas Gerais.
Cultura Viva entre o emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede
Mineira de Pontos de Cultura
Introdução
A Pandemia do COVID 19
trouxe, para além da contabilização de
mais de 15 milhões de mortos pelo
mundo afora e cerca de 705 mil no
Brasil dados de setembro de 2023
algumas evidências que se apresentam
como grandes desafios para a
compreensão de nossa realidade. Se
para muitos é uma inexorável prova de
que colhemos as consequências dos
paradoxos criados a partir dos modelos
de desenvolvimento e sociabilidade
inaugurados na modernidade, para
outros a saída para esse real impositivo
se curva às diferentes realidades
políticas, econômicas, sanitárias e
culturais, tornando tudo tão evidente,
mas ao mesmo tempo tão difícil de ser
alterado.
Uma das dimensões evidentes
e desafiadoras refere-se ao campo
cultural, entendido aqui como um
conjunto heterogêneo de sujeitos,
práticas, instituições e representações
simbólicas. A forma como a pandemia
e seu enfrentamento por meio do
isolamento social se impôs à cultura,
consagrada pelo refrão primeira a parar
e última a voltar, é emblemática: a
necessidade de se reinventar o
mercado cultural e a urgência em se
recuperar e atualizar as políticas
públicas de cultura.
O horizonte, para além de
ações paliativas, apontou para o fato de
que, os trabalhadores e os negócios da
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
cultura enfrentaram e continuam
enfrentando graves problemas em
decorrência dos efeitos do isolamento
social. Uma realidade que ainda poderá
ser pior, caso a busca pelo “novo
normal”, expressão cunhada ao longo
desses perversos meses de pandemia,
se exclusivamente centrada na
recuperação econômica,
descomprometida com a questão da
sustentabilidade, entendida aqui como
um conjunto de ações que assegurem
a continuidade da vida.
Sustentabilidade como aquilo que
agencia passado e presente de tal
forma, a garantir a existência de um
futuro com dignidade, participação,
saúde e equidade.
A bem da verdade, no Brasil,
para o campo cultural a crise existia
desde 2016 com o desmonte das
políticas culturais iniciado no Governo
de Michel Temer e radicalizado no
Governo de Jair Bolsonaro. Neste
sentido, a pandemia da COVID-19 não
apenas instaurou o caos e a desordem,
mas também evidenciou a fragilidade
das relações entre o modelo de
desenvolvimento global e a
incapacidade das políticas blicas
garantirem direitos e bem estar.
Mas é preciso reconhecer que
emergiu uma consciência coletiva cada
vez mais alargada sobre a necessidade
de se operar mudanças na busca por
sustentabilidade, o que demanda uma
efetiva articulação entre a ciência, a
arte, a política e a economia e o
fortalecimento de práticas ancoradas
nos valores da solidariedade e empatia.
Com essa perspectiva, a
atenção dada à dimensão emergencial
da Lei Aldir Blanc I, deve se fazer
acompanhar pelo reconhecimento da
dimensão emergente, que tanto a crise
quanto o dispositivo de enfrentamento
de seus efeitos, desencadearam. O
cotejamento entre o emergencial e o
emergente revela o aparecimento de
algo novo no campo público da cultura,
que tanto recupera e atualiza questões
políticas e institucionais existentes e
interrompidas entre 2016 e 2022, mas
também aponta para inovações.
E assim, quem sabe, se
vislumbre um avanço no estado de
crise em que as políticas culturais no
Brasil se encontravam mesmo antes
da própria pandemia. Se concentrar
apenas na dimensão do emergencial
pode significar a negação ou
secundarização do emergente. Isso
poderá nos garantir sobreviver a essa
242
VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
crise, mas não nos preparará para
evitar ou superar as próximas.
Este artigo, a partir de um
trabalho de Mapeamento realizado pelo
Observatório da Diversidade Cultural-
ODC junto à Rede Mineira de Pontos de
Cultura de Minas Gerais, busca
evidenciar como a LAB I foi além do
socorro emergencial a artistas,
trabalhadores, espaços, grupos e
empresas do campo cultural. Revelou
uma inédita e potente articulação entre
setores da sociedade civil, poder
legislativo e poder executivo (estadual
e municipal), além de oportunizar
práticas inovadoras e o desvelamento
de potências e carências na gestão
cultural.
A Rede Mineira de Pontos de
Cultura articula cerca de 200
instituições presentes em todo o
território mineiro e em mais de 120
municípios. O Mapeamento buscou
compreender a situação dos pontos de
cultura no estado, a partir de um retrato
dos alcances e desafios enfrentados
entre 2019 e 2021. Por meio de projeto
aprovado na Lei Aldir Blanc-Edital
02/2020, o Observatório da Diversidade
Cultural foi selecionado pela Rede
Mineira para coordenar a realização do
mapeamento e consequente
diagnóstico da realidade dos Pontos de
Cultura de MG. Por meio de uma
metodologia participativa e colaborativa
de mapeamento e diagnóstico, e a
despeito dos limites impostos pela
pandemia, o uso de tecnologias de
informação e comunicação garantiu
uma expressiva participação. O
Mapeamento integrou um interessante
e estratégico movimento da Rede. Os
editais da Lei Aldir Blanc-LAB I no
estado, permitiram que a quase
totalidade dos Pontos de Cultura
tivessem acesso a recursos financeiros
para sua manutenção. Mas para além
das necessidade individuais, a Rede
elegeu 3 prioridades coletivas que
foram financiadas de forma
consorciada por todos os Pontos: a)
assessoramento jurídico; b) realização
do Mapeamento e Diagnóstico da
realidade; c) organização de um Portal
da Rede Mineira de Pontos de Cultura
(https://pontosdeculturamg.org.br/).
Tal iniciativa inédita e
inovadora, permitiu o fortalecimento
das ações coletivas dos Pontos de
Cultura, marca histórica e política
desde o início do Programa Cultura
Viva em 2005, mas também, a partir de
processos colaborativos e dialogais,
trouxe à tona potencialidades e
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
desafios existentes em Minas Gerais,
que seguramente se fazem presentes
em todos os demais estados da
federação.
Desta maneira,
apresentaremos de forma geral a
metodologia e uma breve
caracterização dos Pontos de Cultura,
no que tange suas institucionalidades,
atuações, distribuição territorial e
infraestruturas. Também
evidenciaremos aqui duas dimensões
que nos parecem emblemáticas desta
realidade, simultaneamente regional e
nacional: a vitalidade econômica que os
Pontos de Cultura mobilizam e a
importância da Lei Aldir Blanc I no
fortalecimento da organização em rede.
Apontamentos do processo de
mapeamento e diagnóstico
O processo de construção do
mapeamento dos Pontos de Cultura de
MG se deu de forma participativa,
dialógica e colaborativa. Contou com o
envolvimento ativo da Comissão
coordenadora e de diversos integrantes
da Rede Mineira de Pontos de Cultura
nas oficinas, reuniões de trabalho e
mutirões de orientação e coleta de
dados online. A intenção de ouvir o que
se esperava do mapeamento e
diagnóstico acerca dos Pontos de
Cultura foi fundamental para definir a
intencionalidade, o escopo e o
direcionamento do mapeamento.
A composição plural do
conceito de sustentabilidade foi
trabalhada no diagnóstico com o
objetivo de abarcar a diversidade de
atuação dos Pontos de Cultura. Para
poder responder às perguntas relativas
à situação dos Pontos, foi preciso partir
da complexidade de aspectos que
constituem sua realidade atual. A
complementaridade desses aspectos
aponta para uma sinergia de ações
culturais, sociais, econômicas,
ambientais, políticas e de
comunicação.
Vale ressaltar que também
buscamos realizar um levantamento
dos impactos gerados pela pandemia
de COVID-19 e pela LAB I. O
diagnóstico não foi composto apenas
por percepções, mas resultou de dados
disponíveis e da própria produção de
conhecimento, que constituiu um
processo pedagógico e formativo, e
uma oportunidade dos pontos de
cultura realizarem uma reflexão acerca
de sua própria atuação, seus alcances,
limites e potencialidades.
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
O mapeamento de dados
articulou informações distintas, as
quais foram mediadas por um
formulário online (questionário) de 86
questões, organizado em três módulos
de informações: Cadastro (inserção de
informações cadastrais), Portfólio
(inserção de informações e mídias) e
diagnóstico (inserção de informações
via perguntas fechadas).
O módulo diagnóstico se
configurou a partir de três conjuntos de
dados, sendo o primeiro desenhado
para caracterizar os Pontos de Cultura,
com informações acerca da
institucionalidade, distribuição
territorial, áreas de atuação, acesso,
infraestrutura e fomentos dos Programa
Cultura Viva, dentre outros. No
segundo conjunto de dados abordamos
assuntos ligados às dimensões da
sustentabilidade dos pontos:
mobilização de recursos, participação e
articulação em redes, infraestrutura e
serviços prestados pelos pontos de
cultura, diversidade biocultural e
comunicação. O último conjunto de
dados se refere à Lei Aldir Blanc I no
contexto da pandemia. São
informações que buscam arrolar como
os pontos participaram deste processo
de acessar e executar os projetos e de
certa maneira garantir a sobrevivência
dos espaços e de suas ações. Além
disso, buscou levantar dados como o
alcance de públicos, municípios, e
pessoas remuneradas direta e
indiretamente, dentre outros aspectos.
Características gerais dos pontos de
cultura mineiros
Formalização e natureza
institucional
O mapeamento e diagnóstico
foi respondido por 170 Pontos de
Cultura de MG. Deste total, 156
(91,8%) se configuram como Pessoa
Jurídica e 14 (8,2%) como Pessoa
Física, denotando um alto grau de
formalização. Com relação ao status de
funcionamento dos pontos, 164
(95,9%) encontram-se ativos e
somente 7 (4,1%) inativos, por o
terem acesso a recursos para manter
as atividades.
Quanto à natureza institucional
dos Pontos de Cultura, é importante
ressaltar, que os arranjos detectados
foram: pontos de cultura com a mesma
razão social e pontos de cultura
vinculados a outras razões sociais. No
mapeamento, a grande maioria
estavam vinculados a instituições que
desenvolviam atividades
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
anteriormente. Além disso, ficou
evidenciado o caráter multidisciplinar
da grande maioria. Embora 116
(68,2%) pontos de cultura estivessem
ligados à organizações de natureza
cultural, é significativo o número de 54
(31,8%) que contemplavam diversas
áreas na sua natureza institucional,
ressaltando o caráter multidisciplinar
destas entidades que transitam entre
os campos da assistência social,
educação, meio ambiente, direitos
humanos, comunicação, entidades
religiosas e associações (mulheres,
comunitárias, moradores e etc), dentre
outros.
Este dado revela um forte
diálogo do universo cultural com as
outras áreas apontadas, o qual vem
sendo apropriado de diversas formas
pelas entidades, seja como instrumento
de mediação sociocultural ou por meio
de atividades de formação,
preservação e difusão cultural, dentre
outras ações.
Distribuição territorial e áreas
de atuação
4Fomento via Fundo Estadual de Cultura MG,
por meio de editais específicos do programa
A distribuição territorial chama
a atenção por sua capilaridade em
diversos municípios e regiões do
Estado de MG. A maior recorrência de
Pontos de Cultura está na região
Central (70) do estado, sendo que Belo
Horizonte computa 15 pontos de
cultura. Esta concentração é previsível
devido à alta densidade populacional
na capital e região metropolitana e por
haver maior quantidade de
organizações da sociedade civil
inscritas nesta região. Contudo, merece
destaque o fato de haver pontos de
cultura atuando em quase todas as
regiões do Estado. A forte
expressividade do fomento estadual de
pontos de cultura4, se revelou um
indicador que contribuiu para essa
capilarização do programa Cultura Viva
no território mineiro.
Merece destaque o fato de
haver pontos de cultura atuando em
todas as regiões do Estado, embora o
mapeamento não tenha conseguido
adesão dos pontos de Alto Paraíba. As
regiões da Mata (22), Triângulo (18) e
Jequitinhonha Mucuri (14) foram as
maiores concentrações com uma
Cultura Viva Estadual, contemplaram 41 pontos
de cultura entre 2016 e 2017.
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
média de 20 espaços. Com exceção da
região Norte, os demais territórios
registram atividades de 09 ou mais
pontos de cultura, o que é muito
significativo.
Além da distribuição territorial
por região, o mapeamento buscou
captar as atuações dos Pontos de
Cultura. Esse cruzamento nos permitiu
espacializar os tipos de atuações
principais dos pontos por regiões.
Assim, foi possível identificar que os
pontos cujas atuações principais são as
linguagens artísticas, artesanato,
culturas populares e educação não
formal, além de serem o maior número,
também estão presentes em todas as
regiões mapeadas. Contudo, vale
destacar que o artesanato e as culturas
populares são presenças fortes nas
regiões Noroeste, Jequitinhonha-
Mucuri, Central e Triângulo. As práticas
de comunicação e mídia estão mais
concentradas na Central, mas tem
alguns pontos no Jequitinhonha-
Mucuri, Rio Doce, Mata, Rio Doce e Sul
de Minas. Os pontos que têm o
Patrimônio como atuação principal
estão mais localizados na região
Central. As outras atuações mapeadas
como culturas éticas, tradicionais,
gênero, culturas alimentares, pessoas
com deficiência e terceira idade
encontram-se em grande maioria na
região Central, Mata e Rio Doce.
Mapa 1: Distribuição territorial dos Pontos de Cultura por área de atuação no Estado de MG
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Pontos por Região: Alto Paranaíba (s/i); Central (70); Centro Oeste (11); Jequitinhonha / Mucuri (14);
Mata (22); Norte (9); Noroeste (4); Rio Doce (10); Sul de Minas (12) e Triângulo (18). Fonte: DO VAL;
VILUTIS, 2021.
No que se refere às áreas de
atuação principal dos 170 Pontos de
Cultura, as linguagens artísticas
predominaram com 35,3% (60); as
culturas populares tiveram 16,5% (28);
o artesanato 12,9% (22); a educação
não formal 11,2% (19); a comunicação
e mídia 7,6% (13) e o patrimônio 6,4%
(11). Outras nove áreas foram
destacadas, contudo, somadas
chegaram a 9,9% (17), envolvendo
culturas alimentares (2), culturas de
gênero (1), culturas étnicas (5), culturas
tradicionais (3), esporte e lazer (0),
meio ambiente (1), pessoas com
deficiências (2), práticas da mente e do
corpo (0) e terceira idade (3).
Para além da atividade
principal, também buscamos
compreender quais outras atividades
secundárias eram incorporadas na
atuação e mediação com os territórios.
Este exercício evidenciou o caráter
multidisciplinar e multifacetado dos
Pontos de Cultura, revelando uma
realidade rica de práticas e de trocas de
conhecimentos de diversos campos do
setor cultural e de outras áreas. A
exemplo, práticas de culturas
alimentares ou culturas tradicionais, ou
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
ainda esporte e lazer, dentre outras,
são inexpressivas enquanto atividades
principais, contudo, ao verificarmos
estas atuações como atividades
secundárias, elas têm uma presença
significativa dentre as atividades
desenvolvidas. Esta constatação é
muito importante, pois ela demonstra
que para além da atividade principal, as
atividades secundárias são igualmente
presentes e importantes na relação de
cada Ponto de Cultura com o território
onde atua. Além de potencializar sua
multidisciplinaridade e diversidade de
atuação, uma complementariedade
entre essas atividades.
Gráfico 1: atuações principais e secundárias dos Pontos de Cultura
Fonte: DO VAL; VILUTIS, 2021.
Infraestruturas, serviços
prestados e participação social
Consultados acerca da
infraestrutura disponível para uso
público e comunitário, foram
identificadas salas para oficinas
artísticas e culturais, em condições de
acolher trabalhos com corpo, artes,
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
leitura e outros, disponíveis em 89 dos
Pontos de Cultura mapeados. Do total,
86 possuíam salas de reuniões com
cadeiras e mesas para uso comunitário
e 82 possuíam equipamentos de som e
audiovisual (microfone, câmeras,
filmadoras, caixas de som, mesa de
som, mesa de iluminação) à
disposição. Espaços para
apresentações artísticas, como
auditórios, teatros de bolso, lonas de
circo, etc. foram marcados por 66
pontos de cultura, enquanto 59
afirmaram ter bibliotecas disponíveis
para uso comunitário e 57 dispunham
de cozinhas. Apenas 11 Pontos de
Cultura (6,5%) informaram não ter
espaços disponíveis dentre um
conjunto amplo e diverso de
infraestrutura indicadas nas respostas.
Como é possível inferir, a
infraestrutura existente e disponível
para uso comunitário é muito
significativa e importante, superando
muitas vezes a disponibilidade de
espaços geridos pelo poder público e
iniciativa privada. O dados revelam a
contribuição do Cultura Viva na
constituição do comum, daquilo que
refere-se às práticas coletivas, assim
como à gestão e ao uso compartilhado
de recursos, bens e serviços, por meio
de valores e práticas democráticas que
se realizam na solidariedade e no
compromisso social constitutivo.
O diagnóstico também
procurou identificar quais serviços eram
oferecidos às comunidades e as
respostas reforçaram a importância da
atuação dos Pontos de Cultura no
campo da educação não formal, além
de sua contribuição no fortalecimento
comunitário. A intersecção entre cultura
e educação apareceu com muita força
nos 129 Pontos de Cultura que
afirmaram realizar formações artísticas
e culturais. 122 pontos informaram
oferecer ações culturais de
fortalecimento dos laços de
pertencimento da população, as quais
são estimuladas a partir de atividades
ligadas às formações artísticas e
culturais que atuam de forma
transversal e complementar à
dimensão do pertencimento local. As
práticas de educação patrimonial (48);
memória e identidades (86); leitura e
formação de leitores (50), são ações
que reforçam o viés da cultura viva
comunitária praticado pela Rede
Mineira de Pontos de Cultura.
Ações comunitárias
transversais também se apresentam de
forma significativa, especialmente nas
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
atividades imbricadas com assistência
social (69); formação cidadã (82);
desenvolvimento local (87); bem estar e
saúde (39); preservação e
responsabilidade ambiental (50);
acolhimento, empatia e espiritualidade
(49); e ajuda emergencial na pandemia
(62), o que evidencia claramente a
grande capilaridade social e de ões
de caráter intersetorial desenvolvidas
pela Cultura Viva. Isso nos permite
afirmar que os Pontos de Cultura
constituem uma rede de espaços
ancorados nos territórios onde se
localizam e estabelecem um fértil
diálogo com a população, além de
interagir com seus modos de vida e seu
cotidiano.
Ao analisar as respostas
relativas à atuação nos espaços de
participação social, fica evidente o
engajamento político local existente,
uma vez que 48 dos Pontos de Cultura
confirmaram participar nos Conselhos
Municipais de Política Cultural e 37
participam de Conselhos Municipais de
Patrimônio Cultural. Além disso, os
espaços de participação e coletivização
organizados pelo próprio Cultura Viva,
a TEIA estadual e nacional, contaram
com participação direta de cerca de
30% do total dos Pontos de Cultura de
MG. A Comissão Nacional de Pontos
de Cultura CNPdC contava com a
atuação de 9 Pontos de Cultura de
Minas Gerais. A Rede Nacional de
Pontos de Cultura Rurais, a Rede
Mineira de Pontos de Cultura, o Comitê
Gestor da Política de Cultura Viva e a
Comissão Estadual de Pontos de
Cultura, são outros espaços de
participação social revelados pelo
mapeamento, o que reforça sua
expressividade no Estado e
representatividade no âmbito da
Política Nacional de Cultura Viva.
O caráter transversal dos
Pontos de Cultura de Minas Gerais
também se evidencia na dimensão da
participação social em instâncias como
o Fórum Mineiro de Economia Popular
e Solidária, integrado por 11 Pontos de
Cultura, além do Comitê Mineiro do
Fórum Nacional pelo Direito à
Comunicação - FNDC; Plataforma do
Marco Regulatório das Organizações
da Sociedade Civil MROSC;
Federação do Artesanato Mineiro;
Fórum Mineiro de Entidades Negras
FOMENE e Minas Ninja. Em âmbito
municipal, os Pontos de Cultura
mencionaram participar de conselhos
de políticas públicas diversas, tais
como: Assistência Social; Igualdade
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Racial; Criança e Adolescente;
Turismo; Juventude; Direito à Mulher;
Meio Ambiente; Esporte e Lazer;
Educação; Pessoa Idosa; Saúde;
Conselho de Fomento e Colaboração
de BH CONFOCO; Conselho Gestor
da Praça CEU e Conselho Consultivo
do Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu.
Apesar de haver 43 pontos mapeados
(25%) que o revelaram um
engajamento significativo em tais
espaços de participação social, os
dados demonstram enfaticamente a
forte incidência social dos pontos em
políticas blicas das mais diversas
áreas e esferas.
As estratégias e a vitalidade
econômica dos pontos de cultura
Na dimensão econômica da
sustentabilidade, o Diagnóstico buscou
investigar as principais fontes de
recursos dos pontos de cultura e
compreender a recorrência do fomento
público, do incentivo privado, do acesso
a mercados e da mobilização de
recursos não monetários, orientados
por práticas solidárias de trocas diretas
e ajuda mútua.
Os gráficos que seguem
abaixo, ilustram a diversidade de
arranjos econômicos mobilizados para
manter a Rede de Pontos de Cultura
nos territórios.
Gráfico 2: Acesso a recursos públicos Gráfico 3: Acesso a mercados
Fonte: DO VAL; VILUTIS, 2021. Fonte: DO VAL; VILUTIS, 2021.
Gráfico 4: Solidariedade Gráfico 5: Acesso a recursos privados
252
VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
Fonte: DO VAL; VILUTIS, 2021. Fonte: DO VAL; VILUTIS, 2021.
Acesso a recursos públicos
No que diz respeito ao acesso
a recursos públicos entre 2019 e 2021,
como vimos, a Lei Aldir Blanc foi a ação
pública mais recorrente no conjunto dos
pontos de cultura que integram a
amostra deste mapeamento. Segundo
as respostas ao formulário do
Diagnóstico, os editais estaduais
(inciso III) foram os mais acessados,
contemplando 112 pontos de cultura, o
que representa mais de 65% do
universo mapeado. No âmbito
municipal, 19 pontos informaram terem
recebido recursos municipais da LAB I
voltados à manutenção de espaços
culturais (inciso II) e 25 pontos
confirmaram o acesso aos editais
municipais da Lei.
Ao comparar o fomento à
cultura nas três instâncias, maior
recorrência de acesso a recursos
estaduais e menor alcance dos
recursos federais. Enquanto 10 pontos
de cultura acessaram emendas
parlamentares estaduais, apenas 2 o
fizeram em âmbito federal. Em termos
do incentivo fiscal, apesar da
proximidade de respostas, novamente
se repete a maior incidência de
mobilização de recursos públicos
estaduais. A Lei Estadual de Incentivo
à Cultura de Minas Gerais (LEIC) foi
acessada por 17 pontos de cultura
mapeados, enquanto 16 mobilizaram
recursos da Lei Rouanet. Em termos
federais, esse indicador é o segundo
mais expressivo, o que reforça o
impacto da LAB I e a baixa incidência
do fomento público federal aos pontos
de cultura no período pesquisado.
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
No âmbito municipal, entre
2019 e 2021 o acesso a recursos
públicos pelos Pontos de Cultura
ocorreu prioritariamente por meio de
convênios, assinalados por 38 pontos
de cultura. Essa modalidade possuía
diversos instrumentos: termo de
colaboração, termo de fomento, acordo
de cooperação ou ainda a própria
denominação de convênios. No que diz
respeito ao fomento público municipal,
embora com menor incidência, o
acesso ao incentivo fiscal e a fundos
municipais de cultura também foi
realizado pelos pontos de cultura.
Embora com uma diferença pequena
de 1 inscrição, houve maior recorrência
de incentivo fiscal (7 pontos de cultura)
do que de acessos a fundos municipais
de cultura (6 pontos). Merece destaque
a mobilização de recursos de outros
fundos municipais e de editais de
outras secretarias, como é o caso do
Fundo Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente, editais da
Secretaria de Desenvolvimento Social
e do Conselho Municipal da Criança e
do Adolescente. Essas informações
reforçam a intersetorialidade da
atuação cultural dos pontos e o
potencial existente no fomento público
transversal às suas ações.
Acesso a mercados
Apesar da ênfase ao
financiamento público, outras fontes de
recursos foram mobilizadas pelos
pontos de cultura mapeados, das quais
merece destaque a comercialização de
produtos e serviços, prática realizada
por 57 pontos de cultura de MG que
responderam ao formulário.
Foi possível mapear que a
destinação dos recursos obtidos com
as vendas de produtos e serviços
voltou-se prioritariamente para o
custeio das despesas obtidas com a
própria ação cultural comercializada.
Também resultou muito frequente a
utilização desses recursos na
manutenção do Ponto de Cultura, de
seu espaço, atividades e equipe, bem
como na realizão de investimentos
em infraestrutura, como reformas,
compra de equipamentos, etc. Repartir
os recursos obtidos com as vendas
entre os participantes dos pontos de
cultura e pagar cachês foram práticas
regulares. Apesar de haver casos de
utilização desses recursos para custeio
de itens básicos como alimentação,
moradia e energia elétrica, também foi
possível compor um fundo de caixa e,
com menor expressividade de
254
VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
respostas, realizar investimentos
financeiros com o recurso das vendas.
O mapeamento revelou que 65
pontos de cultura não ofereciam
nenhum tipo de produto e serviço para
comercialização. Contudo, foi possível
identificar uma maior oferta de serviços
do que de produtos na Rede Mineira:
enquanto 57 pontos de cultura
ofereciam serviços, haviam 48 que
dispunham de produtos para
comercialização; desse universo, 29
pontos de cultura possuíam tanto
produtos, quanto serviços disponíveis
para venda.
Em termos dos serviços
prestados, foi possível organizá-los em
6 categorias: serviços de educação;
apresentações artísticas e eventos
culturais; gestão e produção cultural;
locação de espaços e equipamentos;
serviços audiovisuais e serviços de
confecção, reforma e bazar. Os
serviços educativos foram os mais
frequentes, sendo oferecidos por 35
pontos de cultura, em uma oferta
significativamente diversa, como
oficinas, cursos, palestras, workshops,
apoio escolar, capacitações e serviços
de elaboração de materiais
pedagógicos. As temáticas das ações
educativas ofertadas eram tão variadas
e vastas quanto às áreas de atuação
dos Pontos de Cultura e seus suportes,
dentre eles foram mencionados, e-
books com processos educativos
desenvolvidos pelo ponto de cultura;
livros biográficos de personalidades
locais; apostilas culturais; aulas de
capoeira; aulas de idiomas, dentre
outras ações.
Apresentações artísticas e
eventos culturais também foram os
outros serviços mais oferecidos pelos
pontos de cultura no período
pesquisado, reunindo 33 ocorrências.
Embora teatro e música fossem os
mais recorrentes, houve espetáculos e
eventos em todos os segmentos
artísticos e culturais, tais como dança,
circo, contação de história, eventos
literários, cinema, poesia, dentre
outros. 14 pontos de cultura informaram
oferecer serviços de gestão e produção
cultural, o que envolveu elaboração de
projetos; mobilização social; captação
de recursos; suporte para a criação de
organizações comunitárias; produção
executiva, cultural e de conteúdo;
assessorias técnicas, consultorias e
mentorias variadas. Outros serviços
oferecidos correspondiam à locação de
espaços e equipamentos (8 pontos de
cultura); serviços audiovisuais diversos
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
(7 pontos de cultura) e serviços de
confecção, reformas e bazar (5 pontos).
No que diz respeito aos
produtos oferecidos, houve maior
recorrência para artesanato e produtos
artísticos, haja visto que 34 pontos de
cultura afirmaram produzir artesanatos
dos mais diversos materiais (tecido,
palha, bambu, taquara, espuma, MDF,
dentre outros) e tipos de bordados,
cestarias, bonecas, estandartes,
acessórios diversos, além de produtos
artísticos como quadros, esculturas em
cerâmicas e pinturas. 11 pontos de
cultura produziam itens diversos de
vestuário, como uniformes, figurinos,
camisas, camisetas, turbantes, saiotes,
faixas, coroas, sapatilhas, dentre
outros. Produtos musicais como CDs,
DVDs, álbuns, instrumentos musicais e
seus acessórios eram oferecidos
também por 11 pontos de cultura.
Produtos educativos, como livros,
apostilas, materiais didáticos, catálogos
e cartilhas foram realizados por 8
pontos de cultura. Também houve 8
pontos de cultura que informaram
produzir alimentos beneficiados, ervas,
produtos agroecológicos e hortaliças.
Solidariedade
No que se refere à mobilização
de financiamento colaborativo no
período deste mapeamento, foi
expressiva a recorrência de
recebimento de doações pelos pontos
de cultura. As doações foram
organizadas tanto por meio de
campanhas locais, realizadas por 31
pontos de cultura mapeados, quanto
por meio de plataformas virtuais,
prática de 10 pontos de cultura. As
plataformas virtuais utilizadas com mais
frequência foram a Benfeitoria e
Vakinha sendo que a Doare e o Prosas
também foram mencionados. Outras
formas de arrecadação de doações
também ocorreram, como a realização
de campanhas próprias, a elaboração
de carta de solicitação de doações e a
utilização de plataforma própria, como
o Quitanda Solidária. A obtenção de
recursos para iniciativas de interesse
coletivo contou ainda com a realização
de rifas (19 pontos de cultura), festas
(16) e bingos (10).
O diagnóstico também
procurou identificar a economia não-
monetária mobilizada, ou seja, as
ações econômicas de produção e
distribuição que não se realizaram por
meio do uso de dinheiro e sim pela
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
reciprocidade e por relações de
solidariedade. O trabalho voluntário foi
a iniciativa mais recorrente, sendo
praticado por 129 pontos de cultura do
universo mapeado. Ações de ajuda
mútua, como mutirões, iniciativas
beneficentes, ações comunitárias, etc.
foram realizadas por 102 pontos de
cultura. Doações e empréstimos de
equipamentos, espaços, mobiliários,
vestuários, dentre outros foram
desenvolvidas por 69 pontos de cultura
durante os anos de 2019 e 2021.
Trocas diretas de produtos e serviços
foi a modalidade menos praticada, mas
mesmo assim 42 Pontos de Cultura
afirmaram ter realizado esse tipo de
iniciativa.
Outras ões de reciprocidade
foram mencionadas espontaneamente,
como a articulação em rede, o que
envolveu desde a participação em
redes de desenvolvimento local e
economia solidária, à mobilização de
redes temáticas e ideológicas para
contribuições coletivas. Parcerias
técnicas e pedagógicas também foram
realizadas com relativa frequência
dentre o universo mapeado, por meio
de auxílios na elaboração e execução
de projetos; apoio técnico a eventos
culturais; estágios não remunerados
nas áreas de educação e comunicação;
serviços de pesquisas, consultas e
impressão; aulas gratuitas de música e
desenho para crianças e jovens.
Acesso a recursos privados
A modalidade menos
recorrente de acesso a recursos no
período de 2019 e 2021 pela Rede
Mineira do Cultura Viva foi o patrocínio
privado de empresas e instituições
empresariais, mobilizado por 41 pontos
de cultura, com maior recorrência para
editais de instituições privadas (36).
Dentre as instituições financiadoras,
por meio de leis de incentivo e
patrocínios diretos, constam com maior
ocorrência empresas de metalurgia,
mineração e bancos.
A Lei Aldir Blanc I no contexto dos
pontos de cultura de MG
Apresentadas as principais
características da realidade dos Pontos
de Cultura de Minas Gerais entre os
anos 2019 e 2021, algumas evidências
sobre a Lei Emergencial Aldir Blanc I
podem ser aqui destacadas.
Apropriada e utilizada de forma
coerente com seus princípios de
diversidade e equidade, permitiram a
emergência de uma ação solidária e
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
fortalecedora da organização em rede
dos Pontos. O reconhecimento das
singularidades e das regularidades
entre os diferentes Pontos, oportunizou
uma práxis emergente,
simultaneamente reveladora de uma
realidade vivida por todos, com o
fortalecimento de laços e o
desenvolvimento de práticas
colaborativas.
Em um cenário marcado pela
descontinuidade e desmontes
progressivos das políticas culturais no
âmbito federal, iniciados ainda em 2016
e radicalizados entre 2019 e 2022,
operacionalizados por meio de ataques
sistemáticos e pela criminalização do
setor e das suas instituições, a LAB I
provocou uma contra narrativa. Se por
um lado, ficou evidente, mais uma vez,
a necessidade de investimentos
(financeiros, humanos, técnicos)
permanentes para a área cultural, é
inequívoca também a importância e a
força da atuação sistêmica e em rede,
de forma descentralizada,
comprometida e complementar entre as
diversas instâncias que atravessam o
campo da cultura e especialmente os
Pontos de Cultura.
Ainda que a Lei tenha
escancarado as evidências e os
problemas reincidentes no campo da
cultura as crises institucionais e
estruturais que antecederam a crise
provocada pelos efeitos da pandemia –
ela possibilitou uma ampla mobilização
que implicou e responsabilizou
conjuntamente diversos atores sociais
na construção política do campo
cultural. Foi possível identificar
dimensões estratégicas que apontaram
para a rearticulação de todo um
sistema que envolve a política pública
da cultura, a partir da experiência com
a LAB I, tendo os pontos de cultura
como agentes mobilizadores e
comunitários.
A LAB I além de contribuir para
a reativação dos componentes do
Sistema Nacional de Cultura, reanimou
as bases conceituais que orientaram de
forma determinante a construção das
políticas culturais no Brasil entre 2003 e
2015. Entre o emergencial e o
emergente, diante de uma conjuntura
mundial sem precedentes, o processo
de elaboração, aprovação e
implementação da Lei Aldir Blanc,
ainda que cheio de entraves e
limitações, colocou-nos forçosamente
em estado de mobilizão e avaliação,
e demonstrou efetivamente uma
conquista histórica do setor que
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
reconhece os direitos culturais e aponta
para o papel da cultura na afirmação da
democracia.
A análise quantitativa dos
dados da LAB I coletados até o início de
julho de 2021 no diagnóstico junto à
Rede Mineira revelou números
expressivos, referentes às atividades
previstas pelos Pontos de Cultura com
os recursos da Lei Aldir Blanc: 1842
atividades artísticas e/ou culturais
foram realizadas a partir dos editais da
Lei, envolvendo um público total
estimado em mais de 1 milhão de
pessoas, entre os participantes
presenciais e as visualizações das
ações nas plataformas e redes sociais.
4305 pessoas foram remuneradas
indiretamente e 2341 foram
remuneradas diretamente com
recursos provenientes dos projetos
apresentado na LAB I e respondido por
135 pontos, como se pode observar no
gráfico abaixo.
Gráfico 6: Quantitativos de atividades previstas pelo Ponto de Cultura com recursos da Lei Aldir Blanc
I.
Fonte: DO VAL; VILUTIS, 2021.
Sobre a remuneração direta e
indireta de pessoas com recursos da
LAB I, 38 pontos de cultura afirmaram
terem remunerado diretamente entre
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
11 e 20 pessoas, o que representa a
maior recorrência de respostas nessa
questão. A remuneração indireta de até
5 pessoas foi a alternativa de maior
ocorrência dentre o universo mapeado,
sendo assinalada por 46 pontos de
cultura.
A quantidade de municípios
alcançados pelos Pontos de Cultura
com as atividades realizadas no âmbito
da LAB também foi expressiva e chama
a atenção para a característica da
mobilização em rede estimulada pela
pandemia e as iniciativas online
realizadas. Apuramos que em 72
Pontos de Cultura, suas ões culturais
envolveram participantes de até 5
municípios e 28 pontos afirmaram
terem mobilizado pessoas oriundas de
6 a 10 municípios. 2 pontos de cultura
chegaram a alcançar mais de 100
municípios no desenvolvimento de
seus projetos da LAB, isso reforça o
caráter territorial predominante das
ações culturais realizadas pelas
organizações integrantes da Rede
Mineira de Pontos de Cultura.
Ao comparar os dados da LAB
I com aqueles relativos a todos os
outros fomentos, vemos que há poucas
variações. Apesar da quantidade de
atividades artísticas e culturais
realizadas a partir dos outros fomentos
ser maior e alcançar a marca de mais
de 3 mil atividades, é fundamental
relembrar que esse dado corresponde
a mais de 2 anos de atividades e a um
conjunto muito mais amplo de fomentos
acessados. No que diz respeito ao
público mobilizado para as ações
culturais da LAB I e dos outros
fomentos, a diferença é muito pequena,
de apenas 1% a mais de participantes
no total dos outros fomentos.
A LAB I, por sua vez,
proporcionou a remuneração direta e
indireta de mais pessoas do que o
conjunto dos demais fomentos
acessados pelos Pontos de Cultura
entre os anos de 2019 e 2021. Mais
precisamente, o mapeamento permitiu
identificar que, por meio da LAB I, foram
contratadas 722 pessoas a mais do que
os demais fomentos acessados durante
os últimos anos e a LAB também
viabilizou a remuneração indireta de
mais 1764 pessoas em comparação
aos outros fomentos mobilizados pelos
pontos de cultura no mesmo período.
Esses dados reforçam o impacto da
LAB, situando a importância e a
centralidade dessa ão pública
emergencial não apenas no contexto
da pandemia, mas também no contexto
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VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
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(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
social, político e econômico enfrentado
nos últimos anos, com o retrocesso das
políticas culturais, a crise econômica e
o refluxo dos direitos sociais
conquistados.
O emergente para além da
emergência
Fizemos aqui uma breve
seleção dos dados reunidos no
mapeamento da Rede Mineira de
Pontos de Cultura realizado pelo
Observatório da Diversidade Cultural
em 2021. Mesmo sendo um recorte
pequeno, ele nos permite identificar a
relevância social, cultural, política e
econômica dos Pontos de Cultura e a
necessidade da Lei Aldir Blanc se
consolidar como uma política nacional
permanente e contínua. Da experiência
aqui mapeada emerge a
expressividade da Cultura Viva como
política de base comunitária ao
promover vínculos sociais, mobilizar
economias, articular redes e incentivar
a participação política intersetorial.
Em um contexto de crise
civilizatória em que vivemos, estimular
a diversidade cultural, fortalecer a
democracia e difundir valores
enraizados em práticas de convivência,
solidariedade, empatia e respeito às
diferenças são aspectos chaves e
emergenciais. São ações como essas
que emergem da atuação comunitária
dos Pontos de Cultura e cabe às
políticas culturais fomentar, promover e
incentivar.
Esta experiência também nos
permite reafirmar a importância da
pesquisa em políticas culturais e da
centralidade do mapeamento para
projeção de ações públicas de cultura.
O levantamento e a sistematização de
informações, além de serem
necessários para acompanhar,
monitorar e avaliar ações públicas, são
profundamente formativos e
mobilizadores. Emerge aqui também o
caráter pedagógico do mapeamento
que pode contribuir para a articulação
em rede dos Pontos de Cultura e para
a troca de produtos e serviços entre
essas entidades culturais,
potencializando sua vitalidade
econômica.
Referências
DO VAL, Ana Paula. VILUTIS, Luana.
Mapeamento e diagnóstico dos pontos
de cultura de Minas Gerais. Belo
Horizonte: Observatório da Diversidade
Cultural, 2021. Disponível
em:https://pontosdeculturamg.org.br/st
orage/attachments/9w376kJz0cdKZr6h
261
VILUTIS, L.; BARROS, J. M.; DO VAL, A. P. Cultura Viva entre o
emergencial e o emergente: O mapeamento da Rede Mineira de Pontos
de Cultura. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 239-261, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Cultura Viva: do Programa à Lei – questões estruturantes no
Brasil e demais políticas de Cultura Viva Comunitária")
zHh5Un4FoO62ZSy8OjZpiGP6.pdf.
Acesso em 06 nov. 23.
VASCONCELOS-OLIVEIRA, Maria
Carolina; DO VAL, Ana Paula;
OLIVEIRA, Danilo Júnior. Fortalecendo
redes culturais: relatório final. São
Paulo: CEBRAP, 2019. Disponível em:
https://cebrap.org.br/wp-
content/uploads/2018/10/Rel_Fortalec
endoRedesCulturais_12out.pdf.
Acesso em: 06 nov. 23.
VILUTIS, Luana. Economia Viva:
Cultura e Economia Solidária no
trabalho em rede dos Pontos de
Cultura. [Doutorado em Cultura e
Sociedade] Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2015. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/
30703/1/Tese_LuanaVilutis_UFBA.pdf.
Acesso em: 06 nov. 23.
262
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
Pensamento latino-americano e criação de alternativas de
desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Fluxo contínuo)
Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade. Pensamento latino-
americano e criação de alternativas de desenvolvimento1
José Guadalupe Gandarilla Salgado2
Tradução por: Sebastião Guilherme Albano3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.59246
“El capitalismo ha conseguido siempre en el
pasado superar sus crisis recurrentes, pero
dejando siempre la tierra abonada para que
emerjan otras n peores. Sean cuales hayan
sido los medios empleados para limitar o
corregir el daño provocado, millones de
personas han sufrido las consecuencias nocivas
tanto de la enfermedad como de en su
tratamiento”
Ellen Meiksins Wood
Resumo: A crítica à noção de desenvolvimento pode ser arredondada quando os pensamentos
periféricos, ou com a capacidade de incorporá-lo como uma exterioridade, lograram revelar os segredos
(espaciais) da lógica global do capital. Das primeiras formulações entre os anos 1950 e 1970 até as
posteriores houve um salto qualitativo com um discurso capaz de explicar tanto as críticas do
desenvolvimento da técnica, como do determinismo e do progresso; também passou da crítica do
capitalismo à modernidade/pós-modernidade, das tecno-ciências e da complexidade. O que há de
permeio neste avanço explicativo (localização da agência enunciativa de “dentro” do desenvolvimento
para “fora” da modernidade, é um interregno de hegemonia neoliberal que agora figura como uma crise
na dominação que se posicionou como cataclismo e catástrofe (os macro incêndios regionais em várias
esquinas do mundo e a crise pandêmica global são apenas sintomas em série).Talvez hoje estejamos
diante de uma das principais características do início do século XXI devido à inédita persistência das
1 Tradução do texto de José Guadalupe Gandarilla Salgado, intitulado “De la crítica del desarrollo a la
crítica de la modernidad. Pensamiento latinoamericano y creación de alternativas”.
2 José Guadalupe Gandarilla Salgado. Doctor en Filosofía Política, por la Universidad Autónoma
Matropolitana/UAM – Iztapalapa, México. Investigador Titular C, Definitivo, del Centro de
Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades. Recientemente ha sido electo como
integrante, por México, del Comité Directivo de CLACSO. E-mail: joseg@unam.mx -
https://orcid.org/0000-0001-5241-6276 .
3 Sebastião Guilherme Albano. Doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília. Professor
adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil. E-mail:
albanoppgen@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-6059-7409
Recebido em 11/07/2023, aceito para publicação em 22/09/2023.
263
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
Pensamento latino-americano e criação de alternativas de
desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
transformações climáticas, da biodiversidade ecológica do mundo que acompanha o ansiado
crescimento dos índices de lucro econômico no quadro da acumulação global do neoliberalismo. A
tendência a buscar na temporalização econômica a criação de espaço (s) se torna um vetor indicativo
e orientador, sempre que os limites físico-materiais, geográficos, possam se precipitar como marco
definidor ou mesmo bloquear a acumulação mesma. Se não encontrar alternativas a esses dilemas
estaremos em perigo iminente de que a crise do capitalismo se modifique (e perversamente procure
suas soluções) na crise da humanidade.
Palavras-chave: Crítica, Pensamento, América Latina.
De la crítica del desarrollo a la crítica de la modernidad. Pensamiento latinoamericano y creación
de alternativas.
Resumen: La crítica a la noción de desarrollo se pudo redondear en el momento en que diversos
pensamientos periféricos, o que tuvieron la capacidad de incorporar esa exterioridad, fueron capaces
de revelar los secretos (espaciales) de la lógica global del capital. De aquellas formulaciones, de las
dos décadas siguientes al corte del médio siglo XX, se ha logrado pasar a un discurso que ha sido
capaz de dar un salto explicativo de la crítica del desarrollo a la crítica de la técnica, el determinismo y
el progreso; y de la crítica del capitalismo a la crítica de la modernidad/posmodernidad, las
tecnociencias y la complejidad. Lo que se encuentra en el medio de ese salto explicativo (ubicación de
la agencia enunciativa desde un “adentro” del desarrollo hacia un “afuera” de la modernidad) es un
intervalo de hegemonía neoliberal, que ahora se extiende como interregno de crisis de la dominación
neoliberal misma, lo que ha puesto al mundo enterro en condición de cataclismo y catástrofe (los macro
incêndios regionales en varias esquinas del mundo, y la crisis pandémica global, no son sino síntomas
escalonados). Hoy, quizás estemos en presencia del inicio histórico del siglo XXI, toda vez que los
tiempos climáticos, biodiversos y ecológicos del mundo no parecen resistir la aceleración que
acompaña al ansiado crecimiento de las tasas de ganancia económica en el marco de la acumulación
mundial propiciada por el neoliberalismo. La tendencia a buscar en el desbocamiento de la temporalidad
económica la creación de espacio(s), se vuelca como vector indicativo y orientador, toda vez que los
límites físico-materiales, geográficos, pueden precipitarse como el limite definitorio o el bloqueo
paralizante de la acumulación misma. De no encontrar alternativas a estos dilemas estamos en el
peligro inminente de que la crisis del capitalismo se transmute (y así, perversamente, busque sus
soluciones) em crisis de la humanidad. El pensamiento, la teoría social y la filosofía que se hace desde
América Latina tiene mucho que aportar a una genuína comprensión de estos aspectos, pero más
relevante aún al señalamiento de los rumbos alternativos.
Palabras clave: Crítica, Pensamiento,, América Latina.
From the critique of development to the critique of modernity. Latin American thought and
creation of alternatives.
Abstract: The critique of the notion of development could be rounded off at the moment when various
peripheral thoughts, or those that had the capacity to incorporate that exteriority, were capable of
revealing the (spatial) secrets of the global logic of capital. From those formulations, from the two
decades following the cutoff of the mid-20th century, it has been possible to move on to a discourse that
has been capable of making an explanatory leap from the critique of development to the critique of
technique, determinism and progress; and from the critique of capitalism to the critique of
modernity/postmodernity, technosciences and complexity. What is found in the middle of this
explanatory leap (location of the enunciative agency from an "inside" of development to an "outside" of
modernity) is an interval of neoliberal hegemony, which now extends as an interregnum of crisis of the
neoliberal domination itself, which has put the entire world in a condition of cataclysm and catastrophe
(the regional macro fires in various corners of the world, and the global pandemic crisis, are but
staggering symptoms). Today, perhaps we are in the presence of the historic beginning of the 21st
century, since the climatic, biodiverse and ecological times of the world do not seem to resist the
acceleration that accompanies the long-awaited growth of economic profit rates within the framework of
264
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
Pensamento latino-americano e criação de alternativas de
desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Fluxo contínuo)
global accumulation promoted by neoliberalism. The tendency to search for the creation of space(s) in
the runaway economic temporality, turns as an indicative and guiding vector, since the physical-material,
geographical limits can precipitate as the defining limit or the paralyzing blockade of the accumulation
itself. If we do not find alternatives to these dilemmas, we are in imminent danger of the crisis of
capitalism becoming transmuted (and thus perversely looking for its solutions) into a crisis of humanity.
Thought, social theory and philosophy from Latin America have much to contribute to a genuine
understanding of these aspects, but even more relevant to pointing out alternative directions.
Keywords: Criticism, Thought, Latin America.
Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade. Pensamento latino-
americano e criação de alternativas de desenvolvimento
Introdução histórica
Dois fatos concorreram para o
rompimento da lógica do sistema quase
ao mesmo tempo. Refiro-me ao 11 de
setembro de 1973 (Santiago de Chile,
golpe de Estado e bombardeio sobre o
Palacio de La Moneda) e, cerca de três
décadas à frente, 11 de setembro de
2001 (Nova York, atentado no centro
financeiro do mundo, queda da Torres
gêmeas). Pode-se afirmar que esses
dois eventos foram pontos de inflexão
para duas conjunturas do concerto
mundial.
Com efeito, o primeiro caso
poderia ser apontado como o ponto de
partida do projeto global de imposição
do neoliberalismo, devendo-se a um
processo que medrava muito tempo.
O que ocorreu no Chile foi uma reação
(da parte dos atores significativos dos
sistemas globais de poder) à possível
aquisição de consciência crítica das
condições de avanço do denominado
desenvolvimento econômico (que para
nossa região latino-americana foi
operada por intermédio da Aliança para
o Progresso, instrumento ativado pelos
temores norte-americanos de que os
valores da Revolução cubana de 1959
se espraiassem a outras nações), o
esclarecimento das razões do
subdesenvolvimento e suas razões
históricas, socioeconômicas culturais
da dependência da América e do
Caribe. Devido ao diagnóstico dos
cientistas sociais acerca dos
obstáculos ao desenvolvimento ou das
razões explicativas do drama latino-
americano, todas vinculadas com a
persistência das condições históricas
herdadas pelas imposições das
relações coloniais, cujos núcleos
articuladores estavam embasados na
265
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
Pensamento latino-americano e criação de alternativas de
desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
transferência de riqueza aos centros
metropolitanos e à perpetuação do
trabalho forçado, da escravidão, do
racismo e da exclusão de populações
(uma obra publicada quase meio
século aventou magistralmente tal
diagnóstico (Las venas abiertas de
América Latina, do uruguaio Eduardo
Galeano). Diante da tentativa de se
obter condições para a autonomia, a
autodeterminação e a libertação
nacional a resposta do imperialismo
norte-americano mostrou-se
implacável, com a imposição de
ditaduras de segurança nacional e a
instrumentalização(desde a Comissão
Trilateral) de uma democracia
amordaçada que afiançaria as políticas
de governabilidade, juntamente aos
grilhões impostos ou auto impostos do
endividamento externo, criara as
condições para que, nos anos 1980 do
século passado, experimentássemos
uma “década perdida” na região; a
partir daí os países latino-americanos e
do Caribe, com tão estreitas margens
de negociação aceitaram qualquer
coisa e a imposição de todo tipo de
reformas (neoliberais, de primeira ou
segunda geração, neocoloniais, da vida
inteira). Era uma história conhecida.
Ao longo de suas constituições nossos
países sempre encontraram
dificuldades para se separar das
supracitadas condições coloniais
começando quando o fizeram mediante
processos de longo alcance e de
espectro amplo, ao início do século XIX
na revolta do Haiti (1791-1804) até as
revoluções hispano-americanas contra
o domínio colonial da Espanha (1808-
1830) e que, neste caso, prolongaram-
se até a guerra entre Cuba, Espanha e
os Estados Unidos, quando houve
agressão militar sem precedentes. Sem
antever o assédio externo o
imperialismo foi suplantado por criollos
e favoráveis ao império e seus
processos de conformação de exíguas
repúblicas latino-americanas aos que
deram razão para descrever a
arquitetura das relações de construção
social de uma ordem (de incompleta e
simulada democracia e excessiva
teatralização de seus rituais) sem que
vingassem condições de colonialismo
político (insustentável na conjuntura
atual), mas da “colonização do poder”,
entramado propício para que
mediadores e não intervencionistas
mantivessem as lógicas racistas de
dominação que transcrevem códigos
de domínio socioeconômico e cultural.
266
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
Pensamento latino-americano e criação de alternativas de
desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Fluxo contínuo)
Daí privilegiarmos argumentos
alternativos de descolonização do
conhecimento.
Com relação ao chamado
segundo onze de setembro (a tão
comentada destruição das torres
gêmeas por aviões de passageiros
operados como máquinas contra
instituições financeiras hegemônicas),
observou-se uma reação ao
colonialismo e ao imperialismo que os
Estados Unidos praticavam na Ásia
Central e em certos países árabes
produtores de petróleo logo da queda
do muro de Berlim(1989),os dirigentes
norte-americanos, a nação/império,
unilateralmente decidiram desarticular
todo o espaço vital soviético (1991). O
evento de Manhattan foi prenunciado
dez anos antes, por exemplo, com o
assassinato dos jesuítas em El
Salvador e a guerra do Golfo, mais
precisamente com a “Tormenta do
deserto”. O atentado ao World Trade
Centero freou o ânimo imperial, mas
reativou de imediato o discurso
“antiterrorista” que justificava a
agressão ao Iraque e ainda ampliava
movimentos bélicos no território do
Afeganistão (cuja invasão prolongou-se
por mais de um decênio, entre 2003 e
2014), enquadrando essa configuração
geopolítica para ensaiar um rol de
métodos de extermínio para liquidar o
“eixo do mal”, guia para ações em
outros rincões do planeta em que
houvesse oposição às políticas
estadunidenses: apreciou-se a
potencialização da tecnociência para
tornar mais eficiente os alvos letais,
uma amplificação “racional” e planejada
para que o dano se concentrasse nos
estados antes soberanos e depois
reduzidos à condição de teatro de ação
de apropriação colonial. O feito dos
Estados Unidos no Oriente Médio foi
replicado inclusive por Israel na
Palestina e até pela Organização das
Nações Unidas (ONU) no Haiti.
A partir da guerra do Vietnam a
potência agressora não se permitia
equívocos; caso os houvesse, com
soldados americanos ou israelenses
abatidos, seria retrucado com violência
mortal do lado contrário com centenas
de vítimas. As incursões militares foram
acompanhadas pela televisão,
desenhadas nos computadores como
um jogo de guerra, as redes noticiosas
transmitiam em tempo real as baixas do
adversário, vaticinavam tendências e
calculavam os danos com o que
enalteciam o interesse nacional norte-
americano (ou reafirmavam o sionismo
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GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
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(Fluxo contínuo)
distanciando-o dos valores
civilizadores); em pouco tempo esses
expedientes foram atualizados. Os
mecanismos de contrainsurgência se
revelaram ainda mais efetivos,
aperfeiçoando as ofensivas por
intermédio de drones e com ataques
militares cirúrgicos. O supostos “novos
agressores” para a doutrina da “guerra
preventiva” (nada mais que um
“humanismo militar”, ensaiado na
guerra dos Bálcãs) substituíram a
encarnação clássica do “inimigo
comunista” por um enxame de novas
representações do que na verdade se
interiorizou nos países do norte como
islamofobia ou, em certos países, como
remoçadas respostas fascistas ante
todo tipo de estrangeiros, deslocados,
refugiados ou migrantes (basta
observar o nativismo xenófobo, ou o
tratamento que a diáspora africana
merece por parte dos europeus ou os
hispanos por parte dos norte-
americanos). Com o ataque de 11 de
setembro o congresso dos Estados
Unidos aprovou a Lei Patriótica (USA
Patriotic Act), cujo espírito perdurou até
a subscrição do acordo trinacional com
o qual iniciaram a potica do ASPAN
(Aliança para a Segurança e a
Prosperidade da América do Norte),
instrumentos que renovaram toda a
política de segurança nacional dos
Estados Unidos e a partir de então
qualquer pessoa, grupos
(narcotraficantes, terroristas,
fundamentalistas, populistas etc.)
poderia ser classificada de inimigo,
suscetível de extradição sem
obediência aos protocolos
internacionais, e todo espaço nacional
poderia ser alvo de “ataques
preventivos”. O subtexto apontava para
uma escalada da divisão global Norte-
Sul e a ativação do marco jurídico
transnacional que resultava favorável
ao capital corporativo multinacional.
Portanto, contrário ao discurso da
globalização, a desigualdade não foi
remediada, mas de acordo com
estudos, encontrou novas lógicas para
se enraizar mais profundamente em
determinadas regiões (PIKETTY,
2014). No mundo ocidental polarizou-
se ainda mais as diferenças de
ingresso e riqueza, entre os núcleos
econômicos subordinantes (zona do
Atlântico Norte) e as partes
subordinadas (África, parte da Ásia,
América Latina e Caribe); enquanto
isso, no Oriente a chamada
globalização ganhou outros contornos,
maior grau de dinamismo econômico
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GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
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(Fluxo contínuo)
entre as partes desenvolvidas e suas
zonas de influências alcançando um
efeito de maior distribuição da riqueza,
com o qual houve tendência a arrefecer
a polarização econômica. O corolário
tanto no Oriente e no Ocidente foi o
enorme custo ambiental do
desenvolvimento econômico industrial
e a relocalização geográfica que
demandou o avanço das tecnologias
informacionais (e os novos materiais
que essas demandaram); e no caso da
China parte do crescimento econômico
se deveu à deterioração ecológica das
zonas em que se instalaram grandes
empresas multinacionais a fim de
estabelecer uma política de salários
mais baixos, e pessoal de alta
qualificação e competitivo.
De outro ângulo podemos
apreciar um efeito diverso da revolução
tecnológica em curso ao passo que a
revolução industrial do século XIX
favoreceu o enriquecimento do
Ocidente. a revolução
eletro-informática, das novas
tecnologias da informação e a
comunicação operou uma
convergência rentista em
amplas zonas do planeta por
meio do enriquecimento da
Ásia (MILANOVIC, 2020, p.
22).
4 Tal fue también, en cierto modo, la sospecha en el
último libro de Giovanni Arrighi (2007).
Um resultado ainda mais
interessante desses estudos,
paradoxalmente, nos sugere que tais
tendências de redução da
desigualdade global (entre Oriente e
Ocidente, recordemos), assinalam que
la ascensión de Asia a
diferencia de la ascensión del
capitalismo a la supremacía
global, tiene un precedente
histórico e nel sentido de que
vuelve a situar la distribución
de la actividad económica de
Eurasia más o menos en una
posición que se daba antes de
la Revolución industrial”
(MILANOVIC, 2020, p. 15).
Constata-se então a hipótese de
André Gunder Frank (2008, 2015) ao
detectar tal condição planetária
sintetizada na alegoria cunhada no
termo Re-Orient cuja perspectiva
desalentadora sugere que o regime
capitalista seria o único4com a
consigna “el lucro no sólo es
respetable, sino que es el objetivo más
importante de la vida del individuo”
(MILANOVIC, 2020, p. 9). Ainda com as
respectivas diferenças todos
ganharíamos significado pela
predominância do capital: “vivimos en
un mundo en el que todas las personas
siguen las mismas reglas y entienden el
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GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
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(Fluxo contínuo)
mismo lenguaje de la obtención de
beneficios” (MILANOVIC, 2020, p. 10)
Mas a vitória global do capitalismo se
desdobra em duas frentes, um projeto
meritocrático liberal descentralizado, no
Ocidente, e o capitalismo político e
autoritário, típico do Estado em países
como a Rússia e a China; destarte
Branko Milanovic, em sua análise
weberiana concluía que “es bastante
improbable que, suceda lo que suceda
en la competición entre capitalismo
liberal y capitalismo político, un solo
sistema acabe dominando todo el
planeta” (MILANOVIC, 2020, p. 14).
Sem ser explícito uma tal inclinação
pela multipolaridade teria um efeito
secundário no
el reequilibrio económico del
mundo no es sólo geográfico;
es también político [con lo
cual se estaría]… poniendo fin
a la superioridad militar, política
y económica de Occidente, una
superioridad que ha sido dada
por descontada durante los dos
últimos siglos” (Milanovic,
2020, p. 17).
Em resumo, como disse
recentemente um filósofo ao analisar a
atualidade sob categorias da tragédia
ética “los imperios saben que su
apogeo ha terminado y vivimos en un
estado de guerra constante”
(CRITCHLEY, 2020, p. 14). Nos
bastidores dessa guerra incessante
situa-se na insolúvel crise da
justaposição das esferas do
capitalismo, um conflito que o sistema
econômico arrasta por meio século,
entre o “neo-liberalismo de paz” e “neo-
liberalismo de guerra” acirrando as
rusgas do capital contra o trabalho, do
Norte contra o Sul, do Ocidente contra
o Oriente, aprofundando contradições
vivas e atuantes. Ainda nos
encontramos nesta fase.
Estas duas grandes tendências
que remarcamos confluem em que: “el
dominio único que ejerce nel
capitalismo y el renacimiento
económico de Asia constituy em
desarrollos muy notables, que quizá
estén relacionados” (MILANOVIC,
2020, p. 7). Portanto não apenas
encontraríamos razões para
reconsiderar as teses hegelianas da
história universal, avançando em
direção à descolonização das
economias materiais da periferia
capitalista para explorar em chave
transnacional e altamente conflitivas,
as exigências de avançar com a
desocidentalização do mundo, e talvez
recuperar e combinar (atualizar e
completar) as velhas propostas de
Samir Amin quando se pronunciava por
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GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
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(Fluxo contínuo)
uma política da “desconexão” (Amin,
1989), com a mais recentes propostas
de Enrique Dussel e suas propostas de
transmodernidade (DUSSEL, 2015).
Ameaças reais (sobre o entorno e os
seres humanos) em tempos de
guerra permanente ou o porquê de
uma guerra permanente ou da crítica
da modernidade.
Em trabalhos esparsos mas
referenciais da dimensão ou lastro da
crise do capitalismo como em episódios
como a crise financeira, imobiliária e da
dívida em 2008 e suas sequelas; dois
dos nosso mais importantes
pensadores sociais, Pablo González
Casanova e Franz Hinkelammert
apontaram o significado da época que
se abre com esse dado. Para ambos
não mais se trata de um choque
econômico qualquer ou uma catástrofe
cíclica do neoliberalismo, em um
momento de explícita ameaça à
sobrevivência da humanidade. Esses
artigos curiosamente publicados em
2020, o ano da peste, aparecem
também como reflexões premonitórias
para o que o mundo da
ultramodernidade nos tinha reservado
(pandemia e pós-pandemia), e
aventuram algumas linhas sobre o perfil
que as alternativas assumem no
contexto na qual estamos submersos,
nos dão uma perspectiva que
dimensiona o que se tornou o
emergente “capitalismo pandêmico”.
Com relação ao ensaio de
González Casanova sobressai, em
primeiro lugar, seu objetivo de oferecer
uma aproximação crítica não apenas
“para quiene sy a están convencidos,
sino para quienes, teniendo
lacapacidad de decidir, no tienen
lacapacidad de percibir y resolver
problemas que amenazan su propia
vida y la de la especie humana”
(GONZÁLEZ CASANOVA, 2019, p.
21), exerce, devido a que as pessoas
envolvidas com o poder, genuínas
“personificações do capital” (como
disse Marx), uma completa
desresponsabilização por seus atos e
desproporção de sus consequências,
ainda mais por redesenhar e inviabilizar
sua participação, ao encobrir como
uma mera função dentro de um marco
institucional ou esquema
organizacional que, além de tudo, elide
toda punição dentro de uma ordem
jurídica, posto que, no mundo
contemporâneo, os grandes complexos
de organização do capitalismo soem
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GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
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(Fluxo contínuo)
obter ainda mais poder que os Estado
que os disciplinam. Portanto, a tese
mais influente do sociólogo mexicano é
simples, mas rigorosa:
las decisiones de quienes
están a la cabeza del ‘modo de
dominación y acumulación
capitalista’ conducen a una
situación en que llega a ser
imposible la supervivencia
humana (GONZÁLEZ
CASANOVA, 2019, p. 21).
Nessa mesma tese pode ser
anunciada ao se vincular com outros
elementos:
es imposible la supervivencia
humana de continuar
dominando el capitalismo y su
lógica suprema: la
maximización de utilidades y la
defensa de los valores e
intereses de las fuerzas
dominantes (GONZÁLEZ
CASANOVA, 2019, 23).
Desde logo uma tese dessa
natureza será desqualificada de
diversas maneiras por intermédio da
razão ou desconfirmada
empiricamente. Acerca do primeiro
caso, os grupos de poder se munem de
um exército do “saber especializado”
para desprestigiar racionalmente, por
exemplo, neguem as tendências de
colapso climático (ORESKESE
CONWAY, 2018); de outro lado, com a
estratégia de não confirmar a influente
tese para desconectar as causas dos
efeitos (dois exemplos: a relação do
consumo de transgênicos com a
enfermidade do câncer ou outros
padecimentos; o uso de aditivos
químicos (glifosato) na agroindústria e
na proliferação de males tanto para os
produtores como para a recuperação
dos solos e o declínio da diversidade de
cultivos) ou reduzir a magnitude das
consequências da crise do
capitaloceno. Não haveria necessidade
de recorrer aos artíficios negacionistas
anteriores, pois a lógica do sistema se
impõe por sua normalização,
interiorização de seus princípios no
cidadão corrente, daí que se afirme,
junto com Fredric Jameson, que resulta
“más fácil imaginar el findel mundo que
el fin del capitalismo” (JAMESON,
2003,. p. 103), o que não exprime mais
que um conformismo, o hábito
“realismo capitalista”, isto é,
lai de a muy difundida de que el
capitalismo no solo es el único
sistema económico viable, sino
que es imposible incluso
imaginarle una alternativa
(FISHER, 2016, p. 22).
O que desejamos indicar é o
seguinte: não deveria nos resultar
surpreendente que o “homem de
empresa” se submeta ao princípio de
272
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(Fluxo contínuo)
cálculo ou diante do raciocínio de
custo-benefício, não seria impor uma
lógica quantitativa sobre a qualitativa (a
do lucro por cima da vida humana e não
humana na terra); o traço perverso do
sistema transforma a “metafísica do
empresário” em procedimento
cotidiano: qualquer pessoa que
mantenha tacitamente a possibilidade
de intervir “livremente” sobre o mundo
da vida (glorificando a não
intencionalidade da ação) aprovaria a
reprodução do mecanismo sistêmico.
Com esse argumento não um
passo do macro (o mundo competitivo
do empresário e a “grande corporação”)
ao micro (o sujeito proprietário privado
que, para sobreviver, produz e
consome), em que o hiato se projeta
como “una crisis de la razón
instrumental o una esquizofrenia que
nos están llevando a la destrucción del
mundo” (GONLEZ CASANOVA,
2019, p. 25), encontrar saída para a
encruzilhada está comprometendo
tanto forças macro, que caminham para
autodestruição, como micros (até os
que empurram a articulação de
movimentos) que lutam por construir de
outro modo o mundo, e acreditam que
isso seja factível. A proposição que
finaliza o artigo do sociólogo mexicano
que vai ao encontro desses
contingentes e detecta um novo
horizonte (distópico) que se abriu com
o capitalismo ostensivo que estabelece
indefinições (como corresponde a todo
um sistema complexo) tanto nos
objetivos como nas estratégias em
meio às urgências (entrópicas) do
presente. Donde se conclui:
Hoy, en las alternativas y
decisiones no sólo se plantea
impedir la autodestrucción de
quienes en sus esfuerzos por
defender al sistema están en
realidad llevando a la
destrucción del mundo, sino
también la construcción del
camino a una democracia, una
liberación y un socialismo
redefinidos. (GONZÁLEZ
CASANOVA, 2019, p. 34).
A partir daí confluímos com as
observações de Franz Hinkelammert
(2020) e que parece nos iluminar um
ângulo igualmente pertinente. O
dramático do assunto é talvez o ser
suficiente observar sob novas
perspectivas a dialética do
esclarecimento e a correlata destruição
e autodestruição atribuíveis à
decolagem progressiva da “razão
instrumental”, ou sinalizar os esforços
progressivos (legítimos) para redefinir
os esquemas das lutas anteriores;
talvez seja necessário dar um passo
273
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
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desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
mesmo dentro do horizonte crítico,
dirigi-la do capitalismo a seu núcleo
fundante, a modernidade. Esse
deslocamento cognitivo parece relevar
que o fundo desta não está na razão
instrumental, mas no complexo mais
inalcançável e invisível e pode ser
acessível como capas da realidade
onde despontam a razão mítica que a
anima: o verdadeiro fundamento da
modernidade, e que pareceria
assegurar seu eterno predomínio. Para
Hinkelammert uma genuína crítica (da
modernidade e de sua labiríntica
disposição) exige mudar os termos da
discussão, recompor o repertório de
categorias com as que até hoje
trabalhamos nas teorizações críticas, e
os marcos epistêmicos das categoriais
contemporâneas. Para Hinkelammert
reconstituir esse discurso significou
uma série de deslocamentos para
assinalar os limites da razão
instrumental das virtudes de uma
racionalidade produtiva (da vida) para
desviar dos limites da economia
(HINKELAMMERT; MORA, 2001);
ademais, nossa atenção deveria ser
redirigida não apenas o
desenraizamento das questões que
envolvem a causalidade meio-fim como
base da razão instrumental mas
aprofundar na crítica da razão mítica
(as imagens transcendentais geradas
pela modernidade), por intermédio da
inclusão dos disjuntiva vida-morte
como o verdadeiro pano de fundo para
uma filosofia e uma ética plenamente
emancipadora. Apenas com o segundo
deslocamento advertimos algo de
relevante, a modernidade se edifica
quando se segue uma racionalidade
irracional: o que pensamos como
exercício da nossa libertação não foi
mais que o sentimento do outro e da
alteridade em si, a imposição da
escravidão, o despojamento, a
destruição do meio ambiente.
Hinkelammert conclui:
concebir la auto-realización del
ser humano como una relación
de dominación: me realizo al
dominarte: Yo soy, si no
eres. La prueba más
convincente de la libertad es en
consecuencia, mostrar que uno
tiene un esclavo. Tengo
esclavos, por tanto soy libre.
(HINKELAMMERT, 2020, p.
37)
Ocorre que de fato, literalmente,
os teóricos da tolerância, os fundadores
do liberalismo, eram proprietários de
escravos (LOSURDO, 2007), não
podiam se aventurar em uma crítica
que fosse nessa direção, de uma
dissolução da estrutura de poder que
274
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
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(Fluxo contínuo)
edificou a modernidade a partir de suas
bases mais obscuras: a colonização, o
racismo, a escravidão e o descaso com
a questão feminina; idêntica relação de
domínio e devastação que operaram
(os “novos senhores” do moderno-
colonial-capitalista) com a insolente
ideia de uma natureza barata e
inesgotável (MOORE, 2020).
Portanto, para Hinkelammert,
encontrar saída ao crescente labirinto
da modernidade deveria ser
considerado a partir de uma genuína
racionalidade emancipadora, tal como
«Eu sou, se você é»:
ahora la prueba de la libertad
es la prueba de haberse
liberado de su esclavitud o
liberado a sus esclavos. El
criterio de racionalidad liberada
dice ‘yo soy, si eres’, el
criterio de racionalidad
irracional dice “yo soy, si te
derrot”. (HINKELAMMERT,
2020, p. 38)
Hinkelammert aposta em outros
princípios éticos, que se mantêm
resguardados fora de certos complexos
civilizadores, que não se submetem
plenamente ao império do sistema
mundo-moderno colonial, e que
igualmente se apresentam na noção
africana de muntu e da espiritualidade
ubuntu, que no perspectivismo
amazônico e as ontologias de relação
própria dos povos originários da Nossa
América, que no humanismo semita e a
ética heteronômica das religiosidades
hebraicas (RABINOVICH, 2018), e que
nosso autor, retomando uma
argumentação do sul-africano
Desmond Tutu, propõe apresentar nos
termos de uma insurgência espiritual
que remova a subjetividade (egoísta e
utilitária)onde encarna essa ilusão
ocidental (do Homo œconomicus) que
pretende impor-se como natureza
humana universal (SAHLINS, 2011), e
que se transfere (como diría Gramsci)
aos grandes sistemas filosóficos, às
cosmovisões ou elencos de categorias
da ciência e da prática dos modernos,
mundanidade que atravessa cada
instância ou campo prático (Dussel
dixit) para uma versão do que é
transcendental, dos novos deuses e
fetiches e fetiches (as noções do
progresso, a técnica ou o mercado
etc.). Hinkelammert não nos propõe
uma volta ao antigo, nem um
retrocesso impossível ao passado, mas
um novo relacionamento com o outro e
com a alteridade a partir de outros
princípios éticos que se enuncia “Eu
sou, se você é” (viável também para
romper a estrutura patriarcal do modo
de ser moderno), e que ele acredita
275
GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
Pensamento latino-americano e criação de alternativas de
desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
estar embasada na disjuntiva vida-
morte que se conhece pela consigna
“de um mundo onde caibam muitos
mundos” e assim se integre em uma
emergente “espiritualidade de ão”, do
humanismo da práxis.
Conclusão
no prefácio de sua obra
escrita com Henry Mora (Hacia una
economía para la vida. Preludio a una
segunda crítica de la economía
política), Franz Hinkelammert detectou
que nas últimas décadas do século XX
irrompeu dramaticamente o tema do
presente e do porvir da humanidade,
pois os antes considerados «problemas
modernos» “se fueron transformando
em verdaderas amenazas globales
sobre la existencia de la vida en el
planeta y las obrevivencia de los seres
humanos” (HINKELAMMERT; MORA,
2014, p. 11). No mesmo prefácio os
autores idearam uma imagem dos
extremos que pareciam não se tocar
mas iam em direção oposta,
premonitória de uma situação que pôde
e pode acontecer ao longo da
pandemia global em que ainda nos
encontramos. Assim o prefiguravam: “el
sistema no puede seguir creciendo sin
provocar una crisis ecológica de
dimensiones apocalípticas, pero
tampoco puede decrecer sin originar
una crisis económica y social de
enormes proporciones”
(HINKELAMMERT; MORA, 2014, p.
12). Assim concorreram os fatos:
rendição ao fetiche do crescimento e a
consequente crise ecológico-climática
com a devastação de vastas áreas
silvestres e resultados desastrosos
como o ciclo que até agora não parece
haver concluído com as novas
variantes de vírus e suas enfermidades
zoonóticas associadas (a Covid-19 e
suas variantes e a quase certeza de
que haverá novas formas da gripe
aviária); por outro lado, eis uma
articulação inusitada nesta situação
inusitada em curso, como corolário da
proporção alcançada pelo fenômeno
(sua literal planetarização) se
implemento uma disposição ou
declaração (entre outras, mas em
alguns lugares é quase única) de que
tempos essas calamidades
irrompem na humanidade, medida
instrumentada como paliativo ao
aumento progressivo dos contágios: o
confinamento (estrito, relaxado,
obrigatório ou persuasivo). A economia
mundial teve de diminuir o ritmo e
experimentar processos automáticos e
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GANDARILLA SALGADO, José Guadalupe; ALBANO, Sebastião Guilherme
(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
Pensamento latino-americano e criação de alternativas de
desenvolvimento. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
involuntários (mais que publicamente
orientados ou geridos ou autogeridos)
de uma certa experiência com o
“declínio”. O que aconteceu durante a
pandemia não foi uma prometida
redução (salvo uma certa temporada da
suavização dos impactos ambientais da
atividade econômica e uma mudança
favorável nas paisagens, ou ao retorno
da fauna que se considerava extinta ou
pôde caminhar livremente distante do
assédio humano, em momentos de
desolação citadina), ao ser
primordialmente o resultado de uma
agudização do quadro recessivo com
que eram afetados diversos setores e
ramos da economia.
O domínio indisputado da
modernidade madura, que começou
historicamente no século XIX,
fundamentou uma expressão do
Ocidente como colosso indisputado
que se muniu com peças integradas na
projeção de processos de totalização
em cada um dos campos práticos nos
quais foi-se impondo uma determinada
univocidade ou monocultura (como
prefere Boaventura de Sousa Santos).
A economia capitalista e o maquinismo
industrial, a política sob a geocultura do
liberalismo e sua democracia
representativa e instrumental, na
questão de gênero com o predomínio
do patriarcado e sua cultura do corpo
sexuado, no tratamento com a
alteridade, sob o racismo persistente,
de relação avassaladora com a
natureza por uma hybris extrativista na
era do capital fóssil (como
argumentaram Andreas Malm e Jason
W. Moore), de relação entre culturas
com um horizonte limitado que não
propicia o reconhecimento das
diferenças e as sacrifica por uma
homogeneização dos códigos do
Atlântico norte. A modernidade madura
é a configuração civilizadora dessa
dialética totalizadora e progressiva,
uma totalidade irrefreável de
totalidades, de inteira desmesura cujo
resultado não poderia ser outro que a
multidimensionalidade de uma crise
civilizadora, uma verdadeira ameaça
para a humanidade em seu conjunto e
para a vida da terra.
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(tradutor). Da crítica do desenvolvimento à crítica da modernidade.
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em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 262-277, mar. 2024.
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uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
Diversidade socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no
Brasil: uma análise de insumo-produto
Lília Vitória Oliveira dos Santos1
Danyella Juliana Martins de Brito2
Marcus Vinícius Amaral e Silva3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.61080
Resumo: O setor da cultura representa um eixo relevante para a economia brasileira em termos de
fomento e desenvolvimento econômico, por conseguinte, este trabalho visa examinar como este
segmento está dividido em relação aos diferentes perfis familiares de consumo. Os grupos familiares
são categorizados de acordo com gênero, cor da pele e renda. Adicionalmente, observa-se o impacto
no setor cultural, e em toda a economia, de um choque positivo na demanda final do setor, em termos
de emprego, produto e renda, através da abordagem de insumo-produto. Os principais resultados
mostram que o grupo familiar de renda alta, a despeito de compreender um número relativamente
menor de indivíduos, é responsável por mais da metade do consumo de bens e serviços culturais e
artísticos. Ademais, dentro desse grupo de alta renda, o perfil que mais consome é o das famílias de
principal responsável homens brancos. O grupo familiar de renda média, apesar de possuir pouco mais
da metade dos indivíduos, representa apenas 36,5% do consumo em cultura. O grupo de renda baixa,
representando o menor percentual dos três grupos de renda, constitui somente 7,25% do consumo
total. No que concerne ao choque positivo na demanda final do setor cultural, houve um acréscimo de
R$ 1,025 bilhão no segmento cultural e de R$ 1,593 bilhão em toda a economia, em termos de
produção. Em relação aos postos de trabalho, tal choque positivo na demanda final do setor cultural é
responsável por gerar 29.191 novos empregos no setor da cultura, e 33.076 empregos adicionais na
economia como um todo. No que tange a variação dos rendimentos do setor cultural, houve um
aumento de 324 milhões, e na economia a adição foi de 439 milhões. Por fim, no que diz respeito a
relevância para a economia, e para o setor cultural, das doze tipologias de famílias, foi constatado que
em termos de produção e emprego, os consumos mais expressivos são os das famílias de principal
responsável homens brancos de renda alta, e os menores são observados entre as famílias de principal
responsável mulheres brancas de renda baixa.
Palavras-chave: setor cultural; consumo; insumo-produto.
1 Lília Vitória Oliveira dos Santos. Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de
Pernambuco - Campus Acadêmico do Agreste. Estagiária da Prefeitura Municipal de Caruaru,
Pernambuco, Brasil. E-mail: lilia.oliveira@ufpe.br
2 Danyella Juliana Martins de Brito. Doutora em Economia pelo CEDEPLAR-UFMG/Universidade
Federal de Minas Gerais. Professora do PPGECON/UFPE/CAA/Universidade Federal de
Pernambuco, Brasil. E-mail: danyella.brito@ufpe.br - https://orcid.org/0000-0002-9630-2577
3 Marcus Vinícius Amaral e Silva. Doutor em Economia pelo PPGE/UFJF/Universidade Federal de
Juiz de Fora. Professor do PPGECON/UFPE/CAA/ Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. E-
mail: marcus.silva@ufpe.br - https://orcid.org/0000-0002-9361-9448
Recebido em 18/12/2023, aceito para publicação em 19/03/2024.
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SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
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(Fluxo contínuo)
Diversidad socioeconómica en el consumo y la renta del sector cultural en Brasil: un análisis
input-output
Resumen: El sector cultural representa un eje relevante para la economía brasileña en términos de
promoción y desarrollo económico, por lo que este trabajo tiene como objetivo examinar cómo se divide
este segmento en relación a los diferentes perfiles de consumo familiar. Los grupos familiares se
clasifican según género, color de piel e ingresos. Adicionalmente, se observa el impacto en el sector
cultural, y en toda la economía, de un shock positivo sobre la demanda final del sector, en términos de
empleo, producto e ingresos, a través del enfoque input-output. Los principales resultados muestran
que el grupo familiar de altos ingresos, a pesar de estar compuesto por un número relativamente menor
de personas, es responsable de más de la mitad del consumo de bienes y servicios culturales y
artísticos. Además, dentro de este grupo de altos ingresos, el perfil que más consume es el de familias
con hombres blancos como cuidadores principales. El grupo familiar de ingresos medios, a pesar de
contar con poco más de la mitad de los individuos, representa sólo el 36,5% del consumo cultural. El
grupo de bajos ingresos, que representa el porcentaje más bajo de los tres grupos de ingresos,
constituye sólo el 7,25% del consumo total. En cuanto al shock positivo en la demanda final del sector
cultural, hubo un aumento de R$ 1.025 mil millones en el segmento cultural y de R$ 1.593 mil millones
en toda la economía, en términos de producción. En relación con el empleo, un shock tan positivo en
la demanda final del sector cultural es responsable de generar 29.191 nuevos empleos en el sector
cultural, y 33.076 empleos adicionales en el conjunto de la economía. En cuanto a la variación de los
ingresos en el sector cultural hubo un aumento de 324 millones, y en la economía la incorporación fue
de 439 millones. Finalmente, en cuanto a la relevancia para la economía, y para el sector cultural, de
los doce tipos de familias, se encontró que en términos de producción y empleo, los consumos más
significativos son los de las familias siendo el principal responsable los hombres blancos que tienen
ingresos altos, y los más bajos se observan entre familias con mujeres blancas de bajos ingresos como
cuidadoras principales.
Palabras clave: sector cultural; consumo; entrada y salida.
Socioeconomic diversity in cultural sector consumption and income in Brazil: an input-output
analysis
Abstract: The culture sector represents a relevant axis for the Brazilian economy in terms of promotion
and economic development, therefore, this work aims to examine how this segment is divided in relation
to different family consumption profiles. Family groups are categorized according to gender, skin color
and income. Additionally, the impact on the cultural sector, and on the entire economy, of a positive
shock on the final demand of the sector, in terms of employment, product and income, is observed,
through the input-output approach. The main results show that the high-income family group, despite
comprising a relatively smaller number of individuals, is responsible for more than half of the
consumption of cultural and artistic goods and services. Furthermore, within this high-income group, the
profile that consumes the most is that of families with white men as the main caregiver. The middle-
income family group, despite having just over half of the individuals, represents only 36.5% of cultural
consumption, while the low-income group, representing the smallest percentage of the three income
groups, constitutes only 7.25% of total consumption. Regarding the positive shock in the final demand
of the cultural sector, there was an increase of R$ 1.025 billion in the cultural segment and R$ 1.593
billion in the entire economy, in terms of production. In relation to jobs, such a positive shock in the final
demand of the cultural sector is responsible for generating 29,191 new jobs in the cultural sector, and
33,076 additional jobs in the economy as a whole. Regarding the variation in income in the cultural
sector, there was an increase of 324 million, and in the economy the addition was 439 million. Finally,
with regard to the relevance for the economy and the cultural sector of the twelve profile typologies, it
was found that in terms of production and employment, the most significant consumer profile is that of
high-income white men and the lowest relevance is that of low-income white women.
Keywords: cultural sector; consumer profile; input-output.
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SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
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(Fluxo contínuo)
Diversidade socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no
Brasil: uma análise de insumo-produto
1 Introdução
A relação entre cultura e
desenvolvimento econômico desperta
questionamentos a respeito do quão
importante a cultura é, de fato, para a
economia e suas variáveis econômicas.
Inquietação que justifica-se no longo
tempo em que o setor da cultura
permaneceu escamoteado pelos
economistas, por considerarem os
bens culturais como sendo bens não
econômicos e cujos valores não são
mensuráveis, julgando seu consumo
como um luxo dispensável (TOLILA,
2007).
Conforme Benhamou (2016), o
patrimônio cultural é formado por
diversos tipos de bens que
compartilham a característica de fazer
alusão à história e à arte, podendo
assumir formatos tangíveis e
intangíveis. É fruto das interações
sociais, constituindo-se, portanto, como
mutável ao longo do tempo.
evidências da potencialidade do setor
cultural em difundir investimentos feitos
nele para toda a economia, resultando
em desenvolvimento socioeconômico
(TOHMO, 2005; TOLILA, 2007; LLOP;
ARAUZO-CAROD, 2012; VIVANT,
2012).
inúmeros processos
econômicos envolvidos nas relações de
produção e venda dos bens culturais.
Um sistema de comércio que engloba
consumidores, fornecedores, críticos e
instituições é observado, constituindo
um mecanismo natural de interações
econômicas de oferta e demanda
(MARTINS et al., 2015).
O setor da cultura possui
relevância não apenas no sentido de
propagar investimentos, elevando
indicadores como o quantitativo de
empregos, de rendimentos e de
produto da economia, mas também
dispõe da capacidade de proporcionar
experiências que aprimoram e elevam
a própria existência humana,
permitindo a vivência e a observação
de valores imateriais. Dessa forma, a
presença de artistas e um ambiente
cultural efervescente são fatores
apontados como capazes de elevar a
qualidade de vida e criar ambientes
favoráveis à criatividade e ao
estabelecimento de empresas
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SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Fluxo contínuo)
inovadoras (TOHMO, 2005; VIVANT,
2012).
O setor cultural está interligado
às outras esferas da economia, onde os
setores se conectam dentro de suas
cadeias produtivas de forma direta e
indireta. Portanto, este estudo fará uso
da metodologia insumo-produto para
compreender de forma minuciosa as
contribuições do setor da cultura para a
economia brasileira e a estrutura da
sua demanda, através da análise do
impacto de um investimento adicional
de um bilhão de reais no setor da
cultura brasileiro e da compreensão do
perfil de seus consumidores. O
investimento citado foi anunciado pelo
Ministério da Cultura e se deu por meio
do descongelamento de recursos
arrecadados através da Lei de
Incentivo à Cultura, conhecida como
Lei Rouanet, criada em 1991 com o
objetivo de fomentar o segmento
cultural brasileiro.
A Lei de Incentivo à Cultura
consiste em captar recursos de
pessoas físicas e jurídicas através da
dedução de porcentagens do imposto
de renda que são direcionadas para o
setor cultural no formato de doação ou
patrocínio. Os valores arrecadados e
destinados ao setor da cultura,
possuem uma característica de
inclusão social, na medida em que os
projetos abarcados pelo patrocínio
precisam ofertar ingressos ou produtos
culturais de forma gratuita ou a preços
inclusivos, assim como propiciar
capacitações e formações às
comunidades carentes.
Deste modo, este trabalho visa,
especificamente, examinar de maneira
fragmentada por gênero, cor da pele e
renda o perfil dos consumidores de
cultura, bem como mensurar o impacto
causado pelo investimento público no
setor cultural e na economia brasileira,
com o objetivo de captar melhor as
características intrínsecas dos
consumidores de cultura e a potência
econômica do segmento cultural. Tal
análise faz-se importante pois tem o
potencial de subsidiar políticas públicas
de incentivo à cultura direcionadas a
grupos familiares específicos.
Com base nos dados da matriz
de insumo-produto para o ano de 2015
e na Pesquisa de Orçamentos
Familiares (POF) de 2017-2018, ambas
disponibilizadas pelo IBGE, pretende-
se responder os seguintes
questionamentos: O setor da cultura
possui uma demanda representativa e
inclusiva em termos de gênero, cor da
282
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Fluxo contínuo)
pele e renda? Variações positivas na
demanda final atingem o setor cultural
de qual forma, em termos de produção,
emprego e renda? Considerando as
desigualdades que assolam a
sociedade brasileira desde a sua
formação, qual o perfil dos
consumidores de cultura?
O procedimento metodológico
de insumo-produto foi utilizado na
economia da cultura por Tohmo (2005)
para examinar o festival de música
folclórica de Kaustinen, ocorrido na
Finlândia, Llop e Arauzo-Carod (2012)
que investigam as repercussões na
economia regional advindas do Centro
Gaudí, na Espanha, e Silva e Brito
(2019), Machado et al. (2022) e Pereira,
Silva e Brito (2023) que examinam o
setor cultural brasileiro. O diferencial da
presente pesquisa está na análise
minuciosa do perfil dos consumidores
de bens culturais no Brasil, observando
não apenas a importância do setor para
a economia como um todo, mas
também se o acesso à cultura é
igualitário.
A presente pesquisa es
dividida em cinco seções, com essa
introdução. A segunda seção apresenta
uma breve revisão de literatura, que faz
um apanhado dos estudos que
utilizaram o método de insumo-produto
para compreender o setor cultural. Na
terceira seção é apresentada a
metodologia empregada. A quarta
seção apresenta os resultados obtidos,
e a quinta, e última seção, traz as
principais conclusões desse estudo.
2 Revisão de literatura
O setor cultural possui uma
potencialidade em difundir
investimentos feitos nele e transformá-
los em desenvolvimento econômico,
aumentando o nível de renda, emprego
e produto de toda uma sociedade
(TOHMO, 2005; TOLILA, 2007; LLOP;
ARAUZO-CAROD, 2012; VIVANT,
2012). Apesar da potência observada
no segmento cultural, é necessário
conhecer o perfil do consumidor dos
bens e serviços culturais e artísticos
para examinar se a renda gerada pelo
setor da cultura é difundida de forma
igualitária na sociedade brasileira
(BERSANI, 2018; GONÇALVES, 2018;
JULIÃO; DIB; OLIVEIRA, 2021).
Segundo Amestoy (2009), a
satisfação individual que os bens
culturais proporcionam muda de acordo
com o nível de capital cultural dos
indivíduos. Logo, a identificação da
importância do bem cultural é dada
283
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
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(Fluxo contínuo)
através das circunstâncias as quais o
indivíduo está inserido, que formam o
capital humano e o capital cultural.
Diante disso, a razão de haver
diferentes valores concebidos para os
mesmos bens culturais fica mais clara,
pois o caráter singular das escolhas e
preferências atreladas a este segmento
é perceptivo. Para Ponte e Mattoso
(2014) uma propensão em
determinadas pessoas a proximidade
com a cultura, tornando-as mais
suscetíveis ao seu consumo. Assim, os
indivíduos que possuem alguma
familiaridade com as atividades
artísticas e culturais seja devido ao
contato com parentes inseridos no
mercado de trabalho do referido setor,
ou devido ao elevado nível de
escolaridade –, apresentam uma
propensão maior ao consumo e fruição
de bens e serviços culturais (PONTE;
MATTOSO, 2014; ALMEIDA; LIMA;
GATTO, 2020; PEREIRA, 2022).
No que tange trabalhos sobre o
impacto econômico de eventos e
atividades culturais, que usaram a
metodologia da matriz insumo-produto,
é possível destacar alguns estudos
internacionais. Tohmo (2005) observou
o impacto do festival de sica
folclórica de Kaustinen, ocorrido na
Finlândia. O artigo utilizou tabelas
regionais de insumo-produto para as
regiões Finlandesas de 1995 e
questionários aplicados no festival em
1994, para realizar a análise. Em seus
resultados, constatou que, em termos
de produção houve um aumento de 1,7
milhões de euros, onde o impacto direto
foi 1,6 milhões de euros e o indireto
61.984 euros. Em relação a emprego e
renda, ocorreu o acréscimo de 27
funcionários e o rendimento líquido das
famílias teve o incremento de 262
milhares de euros. O festival aumentou
a arrecadação dos impostos regionais
em torno de 66.000 euros, valor que
representa 163,5% do montante
máximo investido pela cidade para
custear anualmente o evento. Esses
resultados demonstram que o festival
de música folclórica de Kaustinen é um
potente estímulo para a economia local
e um excelente vetor de propagação de
renda e desenvolvimento em termos de
retorno de investimentos.
Os autores Llop e Arauzo-Carod
(2012), em seu trabalho sobre as
repercussões na economia regional
advindas do novo museu Centro Gaudí,
buscaram compreender o quanto de
movimentação econômica a
implementação deste centro provocou.
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SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
Por meio do método de insumo-
produto, constatam que, em relação à
demanda direta do museu, o setor de
serviços realmente é superior,
representando 99,7% do total,
enquanto o setor de não-serviços
representa 0,3%. Porém, em relação ao
impacto total, a representação do setor
de serviços diminui para 68,4% do
aumento total da produção e a do setor
de não-serviços aumenta para 31,6%.
Assim, Llop e Arauzo-Carod (2012)
constatam a potencialidade do setor
cultural em fomentar diversos outros
setores da economia, e não apenas os
diretamente ligados a ele.
Na literatura nacional, Silva e Brito
(2019) buscam compreender a
importância do setor cultural na
economia brasileira e a repercussão de
choques neste segmento, em termos
de emprego e renda. Para observar de
forma mais pontual esse impacto,
aplicaram um choque hipotético de
10% a menos na demanda final deste
setor. Eles constatam que a redução
em 10% no consumo de atividades
culturais, gera uma diminuição de R$
2,7 bilhões na produção total deste
setor e, em relação ao produto total
brasileiro, um recuo de R$ 4,2
bilhões. O setor de serviços é o mais
atingido pelo choque. Por exemplo, as
atividades imobiliárias sofreram uma
contração de R$ 239 milhões, sendo a
mais atingida pelo choque após o
próprio setor de atividades artísticas,
criativas e de espetáculos. No que
tange a questão da mão de obra, são
77.176 trabalhadores a menos no setor
da cultura e 87.447 na economia como
um todo.
A fim de analisar as
adversidades trazidas para a economia
da cultura através da pandemia da
COVID-19, Machado et al. (2022)
utilizaram a metodologia da matriz
insumo-produto para examinar essas
perdas para o setor. Os autores
consideram um choque de demanda
correspondente a paralização na
procura por atividades artísticas
durante cinco meses, e constatam uma
redução de R$ 18,5 bilhões em termos
de produto da economia, considerando
a interrupção das atividades culturais
fora do domicílio. Em relação ao setor
cultural, em específico, houve uma
queda de 21,2% no valor da sua
produção total.
Em abordagem semelhante,
Pereira, Silva e Brito (2023) investigam,
por meio da metodologia insumo-
produto, o setor da cultura através da
285
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
distribuição de seus consumidores em
diferentes grupos de renda, e também
mensuram o impacto sofrido pelo setor
em decorrência da pandemia da
COVID-19. Considerando que a queda
sofrida na demanda do setor de
atividades artísticas e culturais trazida
pela COVID-19 foi de 30,8%, e
analisando esse choque de forma
isolada, Pereira, Silva e Brito (2023)
constatam um efeito direto de R$ 8,3
bilhões a menos no produto do setor
cultural, e o efeito indireto de menos R$
12,9 bilhões na produção da economia
em geral. A esfera mais atingida,
tirando o próprio setor em específico,
foi o de atividades imobiliárias, que
representou 6% do recuo total, em
conformidade com o encontrado por
Silva e Brito (2019). No que se refere a
mão de obra, foram perdidos 237.701
postos de trabalho no setor da cultura e
31.635 no restante dos setores. No
tocante à distribuição da demanda do
setor cultural por renda, os autores
constataram que o grupo de renda mais
alta, que corresponde apenas a 3% da
população, é responsável por 22% da
demanda cultural. Resultado que revela
o caráter desigual do acesso aos bens
e serviços culturais, e reforça o que fora
observado previamente por Almeida,
Lima e Gatto (2020), Paglioto e
Machado (2012) e Amestoy (2009).
um alto potencial nos eventos
culturais em difundir renda de forma
direta e indireta nos locais onde eles
ocorrem. Dentro do setor cultural,
encontros como festivais musicais,
espetáculos e exposições são
importantes para a economia e o
turismo. Eventos realizados,
especialmente, em épocas como o
carnaval, a Páscoa, o São João, o
réveillon e até mesmo em estações do
ano, como no caso dos festivais de
inverno funcionam como uma injeção
de liquidez na economia local. O
comércio ganha com o consumo dos
turistas, que são atraídos para as
cidades sedes e desfrutam de
alimentação, hospedagem, transporte,
entre outros serviços. Ademais, os
próprios residentes do local têm gastos
atípicos com salões de beleza, roupas,
transporte, bebidas, etc., fomentando o
desenvolvimento local, especialmente,
a curto prazo. Em relação aos efeitos
indiretos de longo prazo é possível
citar: a apreciação do valor de imóveis
em território de alta significação cultural
e artística; a atração de empresas com
potencial para investir no setor cultural;
o aprimoramento da capacidade do
286
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
local em abrigar novos habitantes; e,
por fim, a criação de uma identidade
cultural e emocional dos residentes
com a região (ALMEIDA;
ROSSIGNOLI, 2019).
A literatura sobre o setor cultural
é abrangente no sentido de investigar
os fatores inerentes ao consumo da
esfera cultural, como o valor cultural e
artístico, que se difere do valor
econômico usual (KLAMER, 2003;
DINIZ; MACHADO, 2011; ALMEIDA,
2017). Também há uma vasta literatura
que examina o caráter intrínseco da
valorização ou desvalorização da
cultura e dos bens culturais, e as
tendências no consumo individual dos
bens culturais e artísticos (AMESTOY,
2009; PONTE; MATTOSO, 2014;
ALMEIDA; LIMA; GATTO, 2020;
PEREIRA, 2022). Ademais, conforme
discutido, diversos autores
investigam a importância do setor da
cultura em difundir renda e
desenvolvimento (TOHMO, 2005;
LLOP; ARAUZO-CAROD, 2012;
SILVA; BRITO, 2019; MACHADO et al.,
2022; PEREIRA; SILVA; BRITO, 2023).
No entanto, ainda uma lacuna na
literatura no que se refere ao exame
dos diferentes perfis de consumo pelo
setor cultural, principalmente no que diz
respeito a gênero, cor da pele e renda
(PAGLIOTO; MACHADO, 2012;
PONTE; MATTOSO, 2014; ALMEIDA;
LIMA; GATTO, 2020; PEREIRA;
SILVA; BRITO, 2023). Desse modo,
apesar dos estudos citados serem
relevantes para a análise do consumo
individual dos bens e serviços culturais,
este trabalho possui o diferencial de
realizar uma análise agregada a
respeito dos perfis dos consumidores
de cultura no Brasil.
3 Metodologia
3.1 Dados
Os dados utilizados neste
trabalho são da matriz insumo-produto
2015 nível 67 setores, elaborada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) através das Tabelas
de Recursos e Usos (TRU), os
resultados advindos dessa matriz são
capazes de mostrar o quanto os
setores econômicos estão ligados uns
aos outros e o quanto uma variação na
demanda final impacta toda a estrutura
produtiva analisada. Adicionalmente,
este estudo também utiliza dados da
Pesquisa de Orçamentos Familiares
(POF) de 2017-2018. Através do perfil
dos gastos e rendimentos das famílias
brasileiras obtidos pelos dados da POF
287
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
2017-2018, é possível traçar o
consumo desses domicílios em bens e
serviços culturais. O setor cultural é
representado, neste trabalho, pelas
atividades artísticas, criativas e de
espetáculos que representam um dos
sessenta e sete setores da matriz
insumo-produto 2015 utilizada nesta
análise.
Para proporcionar uma análise
mais eficaz do perfil dos consumidores
dos bens e serviços culturais no Brasil,
o presente estudo utiliza os dados da
POF 2017-2018 para dividir a demanda
do setor em termos de renda, gênero e
cor da pele. Em relação aos grupos de
renda observados, a delimitação de
três perfis domiciliares: renda baixa (1),
renda média (2) e renda alta (3). O perfil
de renda baixa considera domicílios
com uma renda mensal inferior a R$
477 reais, domicílios com renda média
engloba aqueles na faixa de renda
entre R$ 477 e R$ 1.908, e a última
classificação inclui domicílios com
renda igual ou acima de R$ 1.9084
(NERI, 2020; PEREIRA, 2022). O
estudo também divide a amostra em
homens e mulheres, e em pessoas
brancas e não brancas. A classificação
4 O salário mínimo no ano de 2015 era de R$
788,00 reais.
de pessoas brancas engloba indivíduos
autodeclarados brancos e amarelos, e
a classificação de pessoas não brancas
engloba pessoas autodeclaradas
pardas e pretas. Por conseguinte, ao
combinar cada característica individual
em grupos com três atributos, por
exemplo, homens não brancos de
renda baixa representaria um perfil e
mulheres brancas de renda média
configuraria outro, doze perfis distintos
são criados e utilizados para examinar
se tendências no consumo da
cultura no Brasil.
3.2 Composição da matriz insumo-
produto
A matriz insumo-produto é uma
ferramenta para análise de uma
estrutura produtiva, pois permite
observar os fluxos de bens e serviços
de determinados setores econômicos e
suas relações de oferta e demanda de
insumos com outros setores da
economia. A estratégia empírica tem
por base Silva e Brito (2019), Machado
et al. (2022) e Pereira, Silva e Brito
(2023).
A matriz insumo-produto foi
elaborada por Wassily Leontief e é
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socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
representada por um conjunto de
equações lineares e não homogêneas.
Para utilizá-la, é necessário a coleta de
dados das transações de bens e
serviços entre os setores da economia
a ser analisada e da demanda final,
composta pela demanda dos produtos
finais externos ao segmento produtivo.
Dessa forma, o conjunto de equações
(1) expressa a composição da matriz
insumo-produto, onde 𝑥 representa a
produção total dos setores da
economia, 𝑧 retrata o somatório das
movimentações de compra e venda de
insumos, representando as transações
entre cada setor 𝑖 para cada setor 𝑗, e 𝑦
equivale a demanda final das
atividades5.
𝑥
=
𝑧
+
𝑧
+
+
𝑧
+
𝑦
𝑥
=
𝑧
+
𝑧
+
+
𝑧
+
𝑦
𝑥
=
𝑧
+
𝑧
+
+
𝑧
+
𝑦
(1)
Na estrutura de estudo da
metodologia insumo-produto, as trocas
intersetoriais entre os setores 𝑖 e 𝑗
dependem do volume de produção de
𝑗. Dessa maneira, por haver uma
5 Essa subseção é baseada em Grijó e Bêrni (2006);
Guilhoto (2011) e Pereira, Silva e Brito (2023).
relação fixa entre a produção dos
setores e a utilização dos seus
insumos, o modelo considera retornos
constantes de escala. A equação (2)
abaixo representa esta dinâmica e
intitula-se como coeficiente técnico.
𝑎

=
𝑧

𝑥
Destrinchando a equação acima,
(𝑎) é dado pela razão entre 𝑧 - que
representa as movimentações
econômicas entre os setores
vendedores (𝑖) e os setores
compradores (𝑗), e 𝑥 - que representa
a produção total de (𝑗). Considerando
esta última equação (2), é possível
substituir 𝑧, por 𝑎 𝑥 no sistema de
equações (1):
𝑥
=
𝑎

𝑥
+
𝑎

𝑥
+
+
𝑎
𝑥
+
𝑦
𝑥
=
𝑎

𝑥
+
𝑎

𝑥
+
+
𝑎

𝑥
+
𝑦
𝑥
=
𝑎
𝑥
+
𝑎
𝑥
+
+
𝑎

𝑥
+
𝑦
Reescrevendo o sistema de
equações (3) em formato matricial,
obtém-se:
𝐱
=
𝑨
𝐱
+
𝒚
289
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socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
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(Fluxo contínuo)
A equação (4) acima também
pode ser descrita como:
𝐱
=
(
𝑰
𝑨
)
𝒚
(5)
Nesta última equação, é possível
notar a relação direta entre a produção
total da economia, ditada por 𝐱, e a
demanda final 𝒚 para cada setor. Dessa
maneira, quando mudança na
demanda final, os efeitos diretos e
indiretos são vistos através de cada
elemento da matriz (𝑰 𝑨) ,
conhecida como Inversa de Leontief.
No caso dos efeitos diretos, são
verificados no próprio setor de análise
após a variação na demanda final, e no
caso dos efeitos indiretos, são notados
a partir das mudanças nos setores
ligados ao setor em foco, em
decorrência das variações na demanda
final.
O multiplicador de produção é
uma ferramenta que permite verificar os
efeitos diretos em termos de produção
em um determinado setor de um
choque na demanda, e os efeitos
indiretos nos outros setores da
economia. Através da equação (5) é
possível realizar essa análise setorial
dos impactos na produção no setor
afetado e nos demais, a equação (6)
abaixo representa a fórmula para obter
o multiplicador de produção:
𝑀𝑃
=
𝑏

Onde 𝑀𝑃 representa o
multiplicador de produção do j ésimo
setor, e 𝑏 é dado pelo ij ésimo
elemento da matriz inversa de Leontief.
O multiplicador de emprego segue
linha similar ao de produção, também é
utilizado para mensurar o impacto de
choques na demanda de um setor e
seus efeitos diretos e indiretos no setor
analisado e nos demais setores da
economia. Esta análise é possível
através da equação (7) abaixo:
𝑀𝐸
=
𝐺𝐸
𝑐𝑒
Onde 𝑀𝐸 representa o
multiplicador de emprego, que é dado
pela razão entre 𝐺𝐸, o gerador de
empregos, e 𝑐𝑒 que constitui o
coeficiente direto de emprego.
O multiplicador de renda permite captar
os efeitos de variações na demanda de
um determinado setor, neste e nos
demais setores da economia em
termos de mudanças nos seus
290
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socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
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(Fluxo contínuo)
rendimentos. É obtido através da
equação (8) abaixo:
𝑀𝑅
=
𝐺𝑅
𝑐𝑟
(8)
Onde 𝑀𝑅 é o multiplicador da
renda, obtido através da razão entre
𝐺𝑅, o gerador de renda, e 𝑐𝑟, o
coeficiente de renda. Os coeficientes
de produção, emprego e renda foram
utilizados neste trabalho para examinar
as repercussões do choque positivo de
um bilhão de reais na demanda final do
setor da cultura, no próprio setor
cultural e artístico e nos demais setores
da economia.
4 Resultados
Os objetivos deste trabalho
foram analisar o consumo dos bens e
serviços culturais e artísticos de acordo
com os seus diferentes perfis
consumidores, mais precisamente, por
gênero, cor da pele e renda, assim
como investigar as repercussões do
choque positivo na demanda final do
setor cultural e artístico, de modo a
verificar a sua repercussão neste e nos
demais setores da economia. Para isto,
6 Para mais detalhes sobre os bens e serviços
que compõem a despesa com cultura ver Silva
e Brito (2019).
foram utilizados os dados da POF
2017-2018, para destrinchar os perfis
dos principais responsáveis dos
domicílios brasileiros; e os dados da
matriz insumo-produto referente ao ano
de 2015, para examinar o consumo
desses perfis de acordo com os setores
produtivos e elaborar os resultados do
choque na demanda final.
O Quadro 1 mostra as doze
tipologias de famílias, investigadas de
acordo com o número de indivíduos, a
quantidade de famílias, a renda média
salarial, o desvio-padrão da renda
média, a despesa6 e os rendimentos
com cultura em cada grupo. Conforme
mencionado, os doze perfis utilizados
neste trabalho são divididos através
das seguintes classificações: renda
baixa (1), renda média (2), renda alta
(3), homem (1), mulher (2), branco (1),
não branco (2).
Em relação a quantidade de
indivíduos por grupos de renda, são
59.045.513 na faixa de baixa renda,
109.177.747 na renda média, e
38.798.234 indivíduos em domicílios de
alta renda, representando,
respectivamente, 28,5%, 52,7% e
291
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socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
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(Fluxo contínuo)
18,7% do total. No que tange a questão
da renda média, a faixa de renda baixa
apresenta média de R$ 263,20, o grupo
de renda média R$ 999,80 e a parcela
de renda alta R$ 4.438,50.
É válido ressaltar que, dentre os
quatro perfis de renda baixa, os
domicílios onde o principal responsável
é um homem não branco e uma mulher
não branca possuem os maiores
números de indivíduos, constituindo
73,28% desse grupo. Na classe de
renda média, o perfil que mais possui
indivíduos são os chefiados por
homens não brancos, equivalendo a
33,45%. No grupo de renda alta, o perfil
que se sobressai em relação ao
número de indivíduos é o composto por
homens brancos, retratando 42,15% do
total desse grupo.
Quadro 1 - Distribuição das doze tipologias de famílias, considerando gênero, cor da pele e renda do
principal responsável
Grupos
familiares
Número de
indivíduos
Número de
famílias
Renda
média
R$
Desvio
padrão
R$
Despesa
no
setor cultural
(R$ milhões)
Rendimento
no
setor cultural
(R$ milhões)
111 8.656.981 2.332.145 287 127 384 83
112 22.950.484 5.853.161 265 126 732 649
121 6.384.810 1.771.831 273 131 206 129
122 20.320.488 5.141.489 255 128 470 320
211 28.462.432 9.359.184 1.102 380 2.920 1.436
212 36.520.314 12.103.774 999 366 2.891 1.631
221 17.441.188 6.514.947 1.077 376 1.380 961
222 25.781.678 9.112.524 968 358 1.830 1.127
311 16.353.915 6.361.583 5.382 6.961 6.836 1.941
312 8.507.117 3.445.492 3.919 3.007 2.841 978
321 8.920.116 4.250.577 4.754 4.204 3.007 1.074
322 4.705.004 2.174.747 3.793 3.317 1.218 647
Fonte: Elaboração própria.
Nota: 111- famílias na categoria de baixa renda de principal responsável homem branco; 112- famílias
na categoria de baixa renda de principal responsável homem não branco; 121- famílias na categoria de
baixa renda de principal responsável mulher branca; 122- famílias na categoria de baixa renda de
principal responsável mulher não branca; 211- famílias na categoria de renda média de principal
responsável homem branco; 212- famílias na categoria de renda média de principal responsável
homem não branco; 221- famílias na categoria de renda média de principal responsável mulher branca;
222- famílias na categoria de renda média de principal responsável mulher não branca; 311- famílias
na categoria de renda alta de principal responsável homem branco; 312- famílias na categoria de renda
alta de principal responsável homem não branco; 321- famílias na categoria de renda alta de principal
responsável mulher branca; 322- famílias na categoria de renda alta de principal responsável mulher
não branca.
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(Fluxo contínuo)
No tocante ao consumo dos
bens e serviços culturais e artísticos de
acordo com os três perfis de renda
domiciliar, o Quadro 1 mostra que
apenas 7,25% do consumo em cultura
é usufruído pelo grupo de renda baixa,
a parcela mais pobre da população. Os
perfis dentro da classificação de renda
média, que representam 52,7% dos
indivíduos, são responsáveis por 36,5%
do consumo cultural. Por outro lado, o
grupo de renda alta, que tem a menor
porcentagem de indivíduos entre os
três grupos de renda, constitui 56,25%
do total do consumo de bens e serviços
culturais e artísticos. Tais resultados
deixam evidente a desigualdade de
acesso aos bens culturais no Brasil.
No que concerne as doze
tipologias de famílias, é possível notar
uma diferença no nível de consumo das
famílias chefiadas por homens brancos
e não brancos de renda média, em
relação ao consumo das famílias
chefiadas por mulheres brancas e não
brancas também de renda média, no
primeiro caso o consumo de bens
culturais corresponde a 64,42% do total
consumido pela classe média e no
segundo caso representa apenas
35,58%. Com relação a classe de renda
alta, apesar de tais famílias
representarem mais da metade do
consumo dos bens culturais e
artísticos, o cenário é bastante distinto
entre os quatro perfis que o compõe.
Nesse contexto, as famílias chefiadas
por homens brancos constituem
49,17% do total consumido de bens
culturais dentro do grupo de renda alta,
o consumo das famílias com principal
responsável homens não brancos e
mulheres brancas são semelhantes
nessa faixa de renda, equivalendo a
20,44% e 21,63%, respectivamente. O
perfil que mais se afasta do referido
patamar é o das famílias com principal
responsável mulher não branca de
renda alta, correspondendo apenas a
8,76% do total consumido dentro do
grupo.
Ainda que as porcentagens de
consumo dos bens culturais
mantenham uma linha similar de baixa
inserção na classe de renda baixa, a
menor participação dentro do grupo é
observada nos perfis de mulheres
brancas, com 11,51% do total
consumido pela faixa de renda baixa,
enquanto que a maior participação é
observada nos perfis de homens não
brancos, constituindo 40,85% do total
consumido pelo grupo. De acordo com
os resultados obtidos, o consumo dos
293
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(Fluxo contínuo)
bens e serviços culturais e artísticos se
mostrou desigual ao considerar a sua
distribuição pelas doze tipologias de
famílias observadas neste estudo.
Acerca dos rendimentos do setor
cultural de acordo com os doze grupos
familiares, o Quadro 1 mostra os
valores de acordo com cada tipologia.
Em relação aos três grupos de renda,
os principais responsáveis pelo
domicílio que estão inseridos na renda
baixa, representam apenas 10,76% dos
rendimentos do setor cultural. Por outro
lado, o grupo familiar de renda média,
corresponde a 46,96% da renda do
segmento cultural e artístico; e as
famílias na classe de renda alta
equivalem aos 42,28% restantes do
rendimento cultural.
As famílias de principal
responsável homens brancos de renda
baixa auferem a menor porcentagem
do rendimento no setor cultural, com
0,75% do total. Dentro do grupo de
renda baixa, as famílias de principal
responsável homens o brancos têm
a maior participação no rendimento do
setor cultural, com 5,91% do total dos
rendimentos no setor. Na classe de
renda média, as famílias de principal
responsável homens brancos e não
brancos têm as maiores participações,
constituindo 13,08% e 14,86% do total
da renda do setor, respectivamente.
Por último, assim como acontece no
caso do consumo cultural, o perfil
familiar que possui a maior participação
nos rendimentos do segmento cultural
e artístico é o de principal responsável
homem branco de renda alta,
representando 17,68% do total.
Em relação ao perfil familiar com
menor participação nos rendimentos
culturais dentro do grupo de renda alta,
também de forma semelhante ao que
acontece no consumo, as famílias de
principal responsável mulheres não
brancas constituem a menor
participação, com apenas 5,9% do total
dos rendimentos do setor cultural e
artístico. Ao se entender quais os perfis
dos trabalhadores do segmento cultural
e artístico brasileiro, é possível
compreender melhor as estruturas do
setor da cultura e de seus
consumidores, pois o fato de que as
disparidades por tipologias de família
são semelhantes no nível de consumo
e de rendimentos do setor cultural,
ressalta tendências pontuadas por
autores que defendem o capital cultural
e o capital humano como fatores de
inclinação ao consumo cultural
(AMESTOY, 2009; PONTE;
294
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Fluxo contínuo)
MATTOSO, 2014; ALMEIDA; LIMA;
GATTO, 2020; PEREIRA, 2022).
Ao considerar os recursos
advindos da Lei de Incentivo à Cultura
que foram desbloqueados pelo setor
público como uma política de incentivo
ao consumo cultural, constituindo um
choque de cerca de um bilhão de reais
na demanda final do setor cultural, este
trabalho observa as repercussões
deste aumento em termos de produto,
trabalho e renda na economia como um
todo, de acordo com a matriz insumo-
produto. A Lei de Incentivo à Cultura de
nº 8.313, conhecida como Lei Rouanet,
foi sancionada no dia 23 de dezembro
de 1991 e instituiu o Programa Nacional
de Apoio à Cultura (Pronac), assim
como delimitou providências para
garantir o cumprimento do objetivo da
Lei de Incentivo à Cultura, que fora o de
fomentar os investimentos em Cultura
no Brasil de forma igualitária (Lei
8.313/1991). A Lei Rouanet consiste
em captar recursos para atividades
culturais através da dedução de parte
do imposto de renda, de maneira em
que recursos investidos no segmento
cultural por doação ou patrocínio de
empresas e pessoas físicas podem ser
deduzidos do valor total ou parcial do
imposto de renda (BRASIL, 1991;
BRASIL, 2023).
No tocante aos recursos obtidos
através da Lei de Incentivo à Cultura,
parte das arrecadações estavam
bloqueadas desde o início de 2022 por
questões referentes a decisões
políticas, por conseguinte, os recursos
não chegavam até os agentes culturais
para a realização efetiva dos projetos,
travando as operações. Contudo, no
início de 2023 o Ministério da Cultura
anunciou o desbloqueio de cerca de um
bilhão de reais em recursos travados e
a liberação desta verba para os
agentes de atividades culturais
(BRASIL, 1991; BRASIL, 2023). Dessa
maneira, o presente trabalho examina o
acréscimo desse valor de cerca de um
bilhão de reais no segmento cultural
como um choque na demanda final do
setor da cultura. A justificativa do
exame de tal choque está na relevância
desse valor, em termos de fomento ao
setor cultural e à economia como um
todo, além do fato de representar uma
política pública recente de incentivo ao
consumo cultural e cujo impacto ainda
não foi mensurado.
O Quadro 2 mostra o impacto do
choque positivo de um bilhão de reais
adicionados na demanda final do setor
295
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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mar. 2024.
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(Fluxo contínuo)
cultural em termos de produção. O
setor cultural e artístico obteve um
aumento de 1,025 bilhão na sua
produção decorrente do incentivo fiscal
implementado, representando 64,37%
do aumento total na economia, que foi
de 1,593 bilhão. Após o segmento
cultural, o setor mais impactado com o
choque foi o de atividades imobiliárias,
constituindo 5,67% do aumento total na
produção da economia. Esta
interligação entre os setores é
esperada, devido a tendência do setor
cultural de realizar locações de
espaços para apresentações, ensaios,
shows, aulas de dança, entre outros.
Tal resultado também condiz com o
encontrado na literatura (SILVA;
BRITO, 2019; PEREIRA; SILVA;
BRITO, 2023).
Quadro 2 - Setores econômicos mais impactados pelo choque na demanda final em termos de
produção
Setores
Aumento da
produção
(R$ milhões)
Aumento da
produção (%)
Atividades artísticas, criativas e de espetáculos 1.025 64,37%
Atividades imobiliárias 90 5,67%
Outras atividades profissionais, científicas e técnicas 49 3,08%
Intermediação financeira, seguros e previdência complementar 44 2,74%
Energia elétrica, gás natural e outras utilidades 40 2,51%
Atividades jurídicas, contábeis, consultoria e sedes de empresas 38 2,39%
Outras atividades administrativas e serviços complementares 36 2,28%
Comércio por atacado e varejo 36 2,25%
Fonte: Elaboração própria.
O Quadro 3 mostra o impacto do aumento na demanda final do setor cultural
em termos de empregos gerados na economia7. O choque de um bilhão de reais na
demanda final do setor cultural tem o potencial de criar 33.076 novos postos de
trabalho em toda a economia, dos quais 29.191 vagas dentro do próprio segmento
cultural. Em segundo lugar, ficou o setor de outras atividades administrativas e
serviços complementares, com 719 postos de trabalho adicionais. Devido ao referido
segmento realizar trabalhos administrativos relacionados a diversas demandas
7 Na matriz de insumo produto, os postos de trabalho englobam empregos formais, informais e por
conta própria.
296
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
culturais e, portanto, prestar muitos serviços para o setor, é justificável a alta geração
de empregos observada neste segmento e condiz com o encontrado na literatura
(SILVA; BRITO, 2019; PEREIRA; SILVA; BRITO, 2023).
Quadro 3 - Setores econômicos mais impactados pelo choque na demanda final em termos de
geração de empregos
Setores
Quantidade
de empregos
gerados
Quantidade de
empregos
gerados (%)
Atividades artísticas, criativas e de espetáculos 29.191 88,25%
Outras atividades administrativas e serviços complementares 719 2,17%
Comércio por atacado e varejo 616 1,86%
Atividades jurídicas, contábeis, consultoria e sedes de empresas 346 1,05%
Outras atividades profissionais, científicas e técnicas 261 0,79%
Transporte terrestre 210 0,64%
Atividades de vigilância, segurança e investigação 142 0,43%
Confecção de artefatos do vestuário e acessórios 130 0,39%
Fonte: Elaboração própria.
O Quadro 4 mostra o impacto do
choque de um bilhão de reais na
demanda final do setor cultural em
termos de rendimentos adicionados na
economia. O choque positivo na
demanda final do setor da cultura tem o
potencial de adicionar 0,324 bilhão no
segmento cultural, e 0,439 bilhão na
economia como um todo. O segundo
setor mais afetado pelo choque de um
bilhão na demanda final em termos de
rendimentos, é o de outras atividades
administrativas e serviços
complementares com 0,017 bilhão de
aumento, representando 3,96% do total
adicionado. O setor de outras
atividades administrativas e serviços
complementares esteve entre os
segmentos mais afetados em termos
de produção e emprego, por
conseguinte, o aumento relevante
observado em seus rendimentos condiz
com os demais resultados.
297
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
Quadro 4 – Setores econômicos mais impactados pelo choque na demanda final em termos de
rendimentos
Setores
Aumento na
renda (R$
milhões)
Aumento na
renda (%)
Atividades artísticas, criativas e de espetáculos 324,95 74,02%
Outras atividades administrativas e serviços complementares 17,37 3,96%
Comércio por atacado e varejo 11,24 2,56%
Intermediação financeira, seguros e previdência complementar 10,87 2,48%
Atividades jurídicas, contábeis, consultoria e sedes de empresas 10,62 2,42%
Outras atividades profissionais, científicas e técnicas 5,83 1,33%
Administração pública, defesa e seguridade social 4,75 1,08%
Atividades de vigilância, segurança e investigação 4,64 1,06%
Fonte: Elaboração própria.
Os resultados que evidenciam a
relevância da demanda pelo setor
cultural e artístico nas distintas
tipologias de famílias são apresentados
no Quadro 5. A análise é feita através
da redução hipotética do consumo de
cada uma das doze tipologias de
famílias a zero, buscando medir através
do impacto na produção e no emprego
a importância de cada grupo para o
segmento cultural e para a economia
como um todo. Ao observar a redução
da produção do setor cultural de acordo
com os grupos de tipologias de
famílias, é possível notar que a maior
redução é causada pela ausência do
consumo das famílias de renda alta
com principal responsável homens
brancos, representando o recuo de
7,008 bilhões no setor da cultura.
Resultado análogo é constatado para
redução do produto total da economia
considerando o referido grupo familiar,
constituindo 10,887 biles a menos na
produção. A tipologia que representa o
menor impacto em termos de redução
da produção, tanto no setor da cultura
quanto na economia por completo, é o
das famílias de principal responsável
mulheres brancas de renda baixa, cujo
perfil reduz a produção do setor cultural
em apenas 212 milhões, e a produção
da economia em 329 milhões.
298
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
Quadro 5 – Efeitos do multiplicador da queda no consumo familiar por tipologias de famílias e em
termos de produção e emprego
Grupos
familiares
Consumo
cultural
(R$
milhões)
Rendimento
cultural
(R$
milhões)
Variação
na
produção
do setor
cultural
(R$
milhões)
Variação
na
produção
da
economia
(R$
milhões)
Variação
no
emprego
do setor
cultural
Variação
no
emprego
da
economia
111 384 83 -394 -612 -11.213 -12.706
112 732 649 -751 -1.166 -21.376 -24.220
121 206 129 -212 -329 -6.025 -6.827
122 470 320 -482 -748 -13.712 -15.537
211 2.920 1.436 -2.994 -4.651 -85.253 -96.599
212 2.891 1.631 -2.963 -4.603 -84.378 -95.608
221 1.380 961 -1.414 -2.197 -40.270 -45.629
222 1.830 1.127 -1.876 -2.915 -53.421 -60.531
311 6.836 1.941 -7.008 -10.887 -199.542 -226.098
312 2.841 978 -2.912 -4.524 -82.927 -93.964
321 3.007 1.074 -3.083 -4.790 -87.788 -99.472
322 1.218 647 -1.248 -1.939 -35.548 -40.279
Fonte: Elaboração própria.
Nota: 111- famílias na categoria de baixa renda de principal responsável homem branco; 112- famílias
na categoria de baixa renda de principal responsável homem não branco; 121- famílias na categoria de
baixa renda de principal responsável mulher branca; 122- famílias na categoria de baixa renda de
principal responsável mulher não branca; 211- famílias na categoria de renda média de principal
responsável homem branco; 212- famílias na categoria de renda média de principal responsável
homem não branco; 221- famílias na categoria de renda média de principal responsável mulher branca;
222- famílias na categoria de renda média de principal responsável mulher não branca; 311- famílias
na categoria de renda alta de principal responsável homem branco; 312- famílias na categoria de renda
alta de principal responsável homem não branco; 321- famílias na categoria de renda alta de principal
responsável mulher branca; 322- famílias na categoria de renda alta de principal responsável mulher
não branca.
A redução do emprego no setor
da cultura e na economia, medida pela
redução hipotética do consumo de cada
uma das tipologias de famílias
examinadas, também é apresentada no
Quadro 5. É possível observar que,
assim como acontece com a produção,
o perfil que mais reduz o quantitativo de
empregos no segmento cultural e na
economia é o de agregados familiares
compostos por principais responsáveis
homens brancos de renda alta,
representando 199.542 e 226.098
empregos a menos, respectivamente,
no segmento cultural e na economia
por completo. De maneira similar, o
grupo familiar de principal responsável
mulheres brancas de baixa renda
reduz, em apenas, 6.025 empregos
culturais e artísticos, e em 6.827 os
empregos gerais da economia.
299
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Fluxo contínuo)
Em suma, os resultados obtidos
são sugestivos da forte desigualdade
em termos de consumo dos bens e
serviços culturais e artísticos. O grupo
de renda alta possui domínio em
termos das porcentagens de consumo
e rendimentos do setor cultural, assim
como os agregados familiares de
principal responsável homens
apresentam uma vantagem em
comparação as de principal
responsável mulheres. Ademais,
principalmente no grupo de renda alta,
observa-se uma diferença considerável
entre os níveis de consumo e de
rendimentos entre agregados
familiares chefiados por indivíduos
brancos e não brancos. Desse modo, é
necessário que mais ações de incentivo
à cultura sejam implementadas, dando
ênfase a implementação de políticas
públicas que busquem dissipar as
disparidades referentes a gênero, cor
da pele e renda ainda presentes no
setor cultural e artístico brasileiro.
Conclusões
Este trabalho analisa o consumo
dos bens e serviços culturais e
artísticos no Brasil, especificamente
verificando o impacto do
descongelamento de um bilhão de
reais, em recursos adquiridos através
da Lei de Incentivo à Cultura, em
termos de produção, renda e emprego
para o setor cultural e para a economia
como um todo. O exame empírico é
conduzido através da metodologia da
matriz insumo-produto.
Os principais resultados da análise dos
consumidores de bens e serviços
culturais por diferentes grupos
familiares, demonstraram que apesar
do grupo de renda média representar
52,7% do total de indivíduos, seu
consumo cultural é de apenas 36,5%.
Por outro lado, o grupo de renda alta,
que representa apenas 18,7% do total
de indivíduos, configura 56,25% do
consumo dos bens e serviços culturais
e artísticos. Em relação às famílias na
classe de renda média, uma
diferença considerável entre o nível de
consumo das famílias de principal
responsável homens e mulheres, tanto
entre principais responsáveis brancos,
quanto entre não brancos.
Dentre todos os grupos
familiares observados, o que
apresentou menor participação nas
despesas com consumo cultural foi o
das famílias de principal responsável
mulheres brancas de renda baixa; e o
que demonstrou maior participação foi
300
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
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(Fluxo contínuo)
o de famílias de principal responsável
homens brancos de renda alta. Vale
ressaltar que dentre os quatro perfis
que integram o grupo de renda alta, o
que possui menor participação nas
despesas de consumo com bens
culturais é o das famílias de principal
responsável mulheres não brancas.
A respeito da análise do impacto
econômico de um choque positivo de
um bilhão de reais na demanda final do
setor da cultura brasileiro, foi
observado o aumento de 1,593 bilhão
em termos de produto na economia
como um todo, e de 1,025 bilhão no
setor cultural. O segundo segmento
mais afetado pelo choque em termos
de produção, foi o de atividades
imobiliárias com um aumento de 90
milhões. No que tange a criação de
postos de trabalhos, foram observados
29.191 novos empregos no setor da
cultura e 33.076 na economia como um
todo. O segmento de outras atividades
administrativas e serviços
complementares representou 2,17%
dos postos adicionais, configurando-se
como o setor mais afetado após o
segmento cultural. Em relação ao
aumento na renda decorrido do choque
na demanda final, foi constatado a
adição de 324 milhões no setor cultural,
e de 439 milhões na economia por
inteiro. Assim como no quantitativo de
empregos, o setor de outras atividades
administrativas e serviços
complementares foi o segundo mais
impactado pelo choque, com 17
milhões a mais em seus rendimentos,
constituindo 3,96% do aumento total
observado.
No que concerne a análise da
participação relativa de cada tipologia
observada em termos de produto e
empregos do setor cultural e de toda a
economia, através da extração
hipotética de cada tipologia de família
na demanda final, observou-se um
elevado grau de relevância do consumo
das famílias de renda alta com principal
responsável homens brancos, tanto no
que tange o nível de produção quanto à
quantidade de empregos. Tais
resultados demonstram que há, de fato,
desigualdades no consumo cultural a
serem superadas. Portanto, a
implementação de políticas públicas de
incentivo ao consumo de bens e
serviços culturais por determinadas
tipologias familiares, que apresentaram
menor participação no consumo e nos
rendimentos do setor cultural e
artístico, representa uma alternativa
301
SANTOS, L. V. O.; BRITO, D. J. M.; SILVA, M. V. A. Diversidade
socioeconômica no consumo e rendimento do setor cultural no Brasil:
uma análise de insumo-produto. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 278-302,
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para reparar as desigualdades
observadas no setor cultural brasileiro.
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KUSPIOSZ, Douglas Meurer. A metrópole da ilusão: o teatro social de
Uberaba de 1940 [Resenha de: A metrópole imaginária, de André
Azevedo da Fonseca]. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de
Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 303-306, mar. 2024.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Resenha)
A metrópole da ilusão: o teatro social da Uberaba de 1940
Douglas Meurer Kuspiosz1
Resenha de: FONSECA, André Azevedo da. A metrópole imaginária. Curitiba: Ed.
UFPR, 2020.
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v14i26.59293
Em A Metrópole Imaginária, o historiador André Azevedo da Fonseca
apresenta uma complexa discussão sobre o imaginário local da cidade de Uberaba
(MG) entre os anos de 1940 e 1950, partindo da percepção de que a imprensa atuou
como como principal difusor dos ideários de civilização formulados pelas oligarquias
locais.
Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Fonseca
atualmente é professor associado no Departamento de Comunicação da Universidade
Estadual de Londrina (UEL). A Metrópole Imaginária é um dos resultados do seu
processo de doutoramento.
1 Douglas Meurer Kuspiosz. Mestrando em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná,
Brasil. E-mail: douglas.meurer@uel.br - https://orcid.org/0000-0001-9181-9035
Recebido em 21/07/2023, aceito para publicação em 01/10/2023.
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KUSPIOSZ, Douglas Meurer. A metrópole da ilusão: o teatro social de
Uberaba de 1940 [Resenha de: A metrópole imaginária, de André
Azevedo da Fonseca]. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de
Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 303-306, mar. 2024.
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(Resenha)
Dividido em quatro capítulos, o livro realiza uma análise dos processos sociais
de encenação social das elites do interior de Minas Gerais na primeira metade do
século XX. Para isso, emprega como fontes as colunas sociais da imprensa da época,
observando a manipulação das regras de etiqueta como forma de distinção e de
violência simbólica contra quem ameaçava o imaginário da modernidade.
Em uma crítica à perspectiva memorialista da produção histórica financiada
pelos poderes públicos locais, Fonseca atualiza a história da cidade e aponta os
fatores que a levaram ao apogeu e à decadência econômica, quando os coronéis
foram acionados para disciplinar os trabalhadores locais e criminalizar a “vadiagem”.
Contudo, na década de 1930, no contexto da criação de um novo imaginário de
modernização, civilização e cultura nos termos do Estado Novo, o controle e a
disciplina pela violência dos coronéis deu lugar a um controle social mais sutil,
empreendo pela teatralização da vida social.
O livro apresenta as várias artimanhas utilizadas pela elite uberabense para
manter a aura de superioridade e sustentar seu poder simbólico. Um desses pontos
era a encenação do próprio requinte, em contraste com a estrutura urbana precária
da cidade. Fonseca lança mão do conceito de “teatrocracia” de Georges Balandier
para mostrar como, a partir dos imaginários sociais, a coletividade constrói uma
representação de si. A partir dessa perspectiva, ele observou que, na cada de 1940,
a imprensa de Uberaba servia, acima de tudo, para estabelecer um palco para a elite
local. Se por um lado a cidade era caracterizada pela pobreza generalizada, por outro
impunha-se a narrativa, através dos jornais, de uma terra próspera e civilizada,
povoada por uma elite instruída e avançada. Assim, o jornal Lavoura e Comércio teve
papel fundamental na construção da imagem da elite distinta e elegante da cidade
empobrecida. Fonseca destaca que as melhorias urbanas da época contribuíram para
sustentar esse imaginário. Mas a realidade concreta do município era diferente da
fantasia encenada nas páginas de jornais.
Entre as táticas adotadas por esses atores sociais está o que o historiador
chama de “circuitos de amabilidade”. Em suma, esses uberabenses tidos como
distintos trocavam elogios efusivos entre si. Um exemplo trazido no livro é o caso do
diretor do departamento de eletricidade da época: se por um lado o serviço era
reconhecidamente ruim, por outro esse personagem era descrito como “ilustrado”,
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KUSPIOSZ, Douglas Meurer. A metrópole da ilusão: o teatro social de
Uberaba de 1940 [Resenha de: A metrópole imaginária, de André
Azevedo da Fonseca]. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de
Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 303-306, mar. 2024.
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(Resenha)
“idôneo” e “culto” nas páginas dos jornais. Outra forma de distinção era fazer parte de
clubes e associações, que inflacionavam a importância social dos personagens e
garantiam elogios superlativos na imprensa. Mais além, a obra destaca os louvores
circulares entre esses atores sociais que se adulavam e, naturalmente, esperavam
reciprocidade dos pares: aos jornais cabia moldar a reputação dessas elites.
O historiador aponta como a elite uberabense portava-se de formas distintas
para obter poder; uma das formas eram as ações caridosas voltadas às crianças de
rua e às classes marginalizadas, encenando uma imagem piedosa e misericordiosa.
Mas, ao mesmo tempo, a imprensa criava uma representação assustadora das
crianças em situação de rua e dos mendigos leprosos, descrevendo-os como criaturas
ameaçadoras. Já as elites agrárias tinham, por um lado, fortuna e poder; e, por outro,
a presença na imprensa para firmar uma certa mitologia no imaginário social.
Nos anos 1940, os grupos de status locais se empenhavam não apenas para
garantir consideração pública, mas para convencer a cidade de que as lideranças
deveriam ser veneradas e cultuadas. Nesse sentido, o domínio de regras de etiqueta
era fundamental para o exercício do controle social por meio de violência simbólica.
Assim, a elite uberabense, que buscava se associar à ideia de caridade, mantinha
mecanismos repressivos para civilizar o município pela força. Naturalmente, as
violências mais eficazes eram conduzidas de forma polida e refinada.
Um dos problemas sociais mencionados pelos jornais da época, aponta
Fonseca, dizia respeito aos mendigos leprosos, que com o tempo criaram um
paradoxo moral naquela sociedade: enquanto eram um público-alvo para a
publicidade caridosa daqueles atores sociais, por outro ameaçavam a cidade devido
à possibilidade de contágio involuntário. Para justificar a repressão e o expurgo
dessas pessoas, a imprensa disseminou uma representação social que as associava
a criaturas monstruosas e subumanas. Depois de um longo processo de
estigmatização, as pessoas portadoras da doença foram presas em leprosários e
banidas do convívio social.
Outro aspecto abordado é o exagero em relação ao protagonismo da cidade.
Esse ufanismo, sempre projetando o potencial uberabense para o futuro, marcou os
discursos das elites locais. Essa teatralização, pontua Fonseca, era plenamente
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KUSPIOSZ, Douglas Meurer. A metrópole da ilusão: o teatro social de
Uberaba de 1940 [Resenha de: A metrópole imaginária, de André
Azevedo da Fonseca]. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de
Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 14, n. 26, p. 303-306, mar. 2024.
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(Resenha)
consciente por parte das elites locais - elas aceitam essas aparências e deixam-se
enganar por elas, pois essas pessoas se beneficiavam com a fabulação.
O último capítulo do livro, Cinderela ou cida, narra o alvoroço social que
marcou a visita da Miss Brasil Jussara Márquez, a “Cinderela do Sertão”, a Uberaba.
No início de 1950, as elites da metrópole imaginária viram uma oportunidade de ouro
para se associar à imagem da celebridade. Os jornais destacaram várias edições para
notificar a visita de Jussara - frustrada em várias ocasiões. Fonseca ressalta a forma
como políticos tentavam se apropriar da mitologia de Márquez para fins eleitorais.
Segundo o historiador, essa excitação com a presença dessa celebridade evidencia a
carência de símbolos daquela magnitude na cidade. Essa ansiedade também
denunciava uma intenção política manifestada no campo das relações sociais: no
teatro social de Uberaba, cultuar a visita da miss era evidenciar a própria cidade.
Atualmente, Uberaba é o maior de Minas Gerais. Os palacetes dos
pecuaristas, que monumentalizaram um ideal de prestígio no passado, foram quase
todos desconfigurados. Outros símbolos do imaginário metropolitano também ruíram
com o tempo. E a cidade cresce como qualquer outra, sem muita organização. Nesse
contexto, o livro A Metrópole Imaginária oferece uma contribuição interessante, nos
campos da História e da Comunicação, sobre as estratégias de teatralização social
mobilizadas por elites interioranas para impor um determinado imaginário coletivo de
progresso. Nessa leitura, colunas sociais deixam de ser interpretadas como um
maneirismo inofensivo, pois se revelam como espaços eminentemente políticos, onde
personagens disputam distinção social. A perspectiva teórica e metodológica da
imaginação social pode contribuir para outras pesquisas no campo da historiografia e
da comunicação.