Vozes Afro Latinas:
A omissão da esquerda
e a insurgência do movimento negro
Voces Afrolatinas:
La omisión de la izquierda
y la insurgencia del movimiento negro
DANIELA FERNANDA GOMES DA SILVA
Você é Sertão?
Marcel Mauss, a Ciência Política
e o Sertão de Guimarães Rosa
¿Usted es Sertão?
Marcel Mauss, la Ciencia Política
y el Sertão de Guimarães Rosa
FLÁVIA LAGES DE CASTRO
Pedra Bonita:
A poética arquitetônica
como elemento de resistência cultural
Pedra Bonita:
La poética arquitectónica
como elemento de resistencia cultural
LUIZ CARLOS ROCHA DE OLIVEIRA
O alienígena e o embate entre Veja versus MEC
El alienígena y la pelea entre la revista Veja
y el Ministerio de Educación de Brasil (MEC)
ADRIANA SANTIAGO ROSA DANTAS
Formação e prossionalização
do setor cultural:
Caminhos para a institucionalidade
da área cultural
Formación y profesionalización
del sector cultural:
Caminos a la institucionalidad del área cultural
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
Do Pessoal do Ceará
ao Movimento Cabaçal:
O “local” e o “global” na música cearense
Del Pessoal do Ceará al Movimiento Cabaçal:
El “local” y el “global” en la música de Ceará
JANE MEYRE SILVA COSTA
Ano II nº 3 - setembro 2012
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano II nº 3 - setembro 2012
Editores:
Flávia Lages (UFF/Produção Cultural)
Italo Bruno Alves (UFF/Artes)
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Editora de texto (espanhol e inglês):
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PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano II nº 3, (SETEMBRO 2012). – Niterói, RJ: [s. N.], 2012.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário
EDITORIAL 05
ARTIGOS
Vozes Afro Latinas: A omissão da esquerda
e a insurgência do movimento negro
DANIELA FERNANDA GOMES DA SILVA 07
Você é Sertão? Marcel Mauss, a Ciência Política
e o Sertão de Guimarães Rosa
FLÁVIA LAGES DE CASTRO 17
Pedra Bonita: A poética arquitetônica
como elemento de resistência cultural
LUIZ CARLOS ROCHA DE OLIVEIRA 24
O alienígena e o embate entre Veja versus MEC
ADRIANA SANTIAGO ROSA DANTAS 39
Do Pessoal do Ceará ao Movimento Cabaçal:
O “local” e o “global” na música cearense
JANE MEYRE SILVA COSTA 50
Formação e prossionalização do setor cultural:
Caminhos para a institucionalidade da área cultural
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES 63
5
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Com muito prazer lançamos
esta terceira edição de PragMATI-
ZES – Revista Latino Americana de
Estudos em Cultura.
Cada vez mais evidente a ne-
cessidade de fortalecimento do se-
tor cultural - não somente entre no
país, mas na América Latina como
um todo - faz com que a articula-
ção de pesquisadores e fortaleci-
mento da pesquisa em cultura seja
um dos objetivos almejados por
todos os que realizam pesquisas
nesta área.
Neste sentido apresentamos
a revista PragMATIZES como um
dos meios privilegiados de inter-
secção de ideias e reflexões so-
bre cultura, gestão cultural, polí-
tica cultural etc. E alegramo-nos
em perceber o movimento de pes-
quisadores em cultura no sentido
de criar ainda mais espaços para
reflexões acerca destes temas. As-
sim, mister destacar o I Encontro
fluminense e capixaba dos pesqui-
sadores em cultura que aconteceu
no Rio de Janeiro nos dias 23 e 24
de agosto veio atender esta neces-
sidade latente que coincide com a
rede de formadores no campo da
gestão cultural que contou com
professores da Europa e América
Latina reunidos em São Paulo nos
dias 1 a 3 de agosto durante o En-
contro Internacional Formação em
Gestão Cultural, promovido pelo
Centro de Pesquisa e Formação do
SESC SP.
Nesta edição encontramos o
texto que apresentou – entre outras
questões - dados do curso de Pro-
dução Cultural da Universidade Fe-
deral Fluminense apresentados por
um dos integrantes da comissão
executiva de PragMATIZES bem
como o artigo “Do Pessoal do Ceará
ao Movimento Cabaçal” que propõe
uma importante discussão acerca
dos movimentos artístico-culturais
no campo musical no Nordeste e,
especificamente, no Ceará.
Temos também artigo atua-
líssimo, “O alienígena e o embate
entre Veja versus MEC”, que bus-
ca demonstrar o embate ocorrido
na mídia brasileira por causa da
distribuição pelo Ministério da Edu-
cação (MEC) de um livro didático
para educação de jovens e adultos.
O artigo “Pedra Bonita: a poética
arquitetônica como elemento de re-
sistência cultural” no qual investi-
ga-se as possibilidades intrínsecas
ao patrimônio arquitetônico histó-
rico situado na cidade de Itaboraí,
no Estado do Rio de Janeiro.
O artigo “Você é Sertão? -
Marcel Mauss, a Ciência Política e
o Sertão de Guimarães Rosa” pre-
tende através da imortal obra de
Editorial
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Rosa, Grande Sertão: veredas, tra-
balhar os aspectos intrínsecos que
possibilitam uma reflexão, a partir
da teoria de Mauss, de perspecti-
vas da ciência política, percebendo
o Sertão como personagem.
O movimento negro é debati-
do no artigo “Vozes Afro Latinas - A
omissão da esquerda e a insurgên-
cia do movimento negro” partindo
da indiferença da esquerda acer-
ca das necessidades e lutas que o
movimento engendra.
Aproveitamos a oportunida-
de para uma correção de créditos:
a Carta do seminário internacional
Panorama da Organização da Cul-
tura da América do Sul (Brasil, 2011)
contou com tradução feita pela pro-
dutora cultural Maria Mendes.
Na busca de contribuir com
estas iniciativas de reflexão e for-
mação, apresentamos mais uma
edição de nossa revista.
Flávia Lages
Editora
7
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Vozes Afro Latinas –
A omissão da esquerda e a insurgência do movimento negro
1
Voces Afrolatinas
La omisión de la izquierda y la insurgencia del movimiento negro
Afro-Latin Voices –
The omission of the left and the insurgency of the black movement
Daniela Fernanda Gomes da Silva
2
Resumo:
Este artigo tem como objetivo observar a criação e o crescimento do
movimento negro no Brasil e na América Latina a partir da indiferença
presente no pensamento da esquerda local, que priorizou em
determinado momento a teoria crítica europeia. Esse afastamento por
parte da esquerda foi propiciado pelo pensamento de que apenas a
extinção do capitalismo seria suciente para acabar com o racismo, o
que se provou infundado. Em contrapartida, o ideal da igualdade social
se fez presente na base do movimento negro e margeou muitas de
suas conquistas. Utilizo como metodologia a pesquisa bibliográca, por
meio de livros, artigos e websites.
Palavras chave:
Movimento negro
Afrodescendentes
Esquerda
América Latina
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo observar la creación y el crecimiento
del movimiento negro en Brasil y Latinoamérica a partir de la indiferencia
presente en el pensamiento de la izquierda local, que en un dado
momento le dio prioridad a la teoría crítica europea. Ese alejamiento
de la izquierda fue propiciado por la idea de que apenas la extinción
del capitalismo sería suciente para terminar con el racismo, la cual
resultó ser infundada. Por otro lado, el ideal de la igualdad social estuvo
presente en la base del movimiento negro y sirvió como una margen
a muchos de sus logros. Utilizo como metodología la investigación
bibliográca, a través de libros, artículos y sitios web.
Abstract:
This article aims to observe the creation and the growth of the black
movement in Brazil and Latin America from the indifferent position of
the local left’s thinking, which had prioritized the European critical theory
in a certain moment. This separation of the left was encouraged by the
thought that only the extinction of the capitalism would be enough to
end racism, which was proved unfounded. In contrast, the ideal of social
equality was present on the base of the black movement and guided
many of its achievements. Methodologically, a bibliographical research
was done, using books, articles and websites.
Palabras clave:
Movimiento negro
Afrodescendientes
Izquierda
Latinoamérica
Keywords:
Black movement
Afro-descendants
Left
Latin America
9
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Vozes Afro Latinas -
A omissão da esquerda
e a insurgência do movimento negro
Nos mais de 300 anos em que
perdurou o tráco negreiro, cerca de 5,7
milhões de africanos, sequestrados em
seu continente de origem, chegaram aos
portos latino-americanos como escra-
vos. A história seguiu seu curso e essa
massa populacional deu origem aos
quase 150 milhões de afrodescendentes
que representam hoje cerca de 30% da
população total do continente. A subju-
gação desses povos no passado gerou
em nossa sociedade uma exclusão que
permanece até os dias de hoje, onde as
vítimas são os descendentes daqueles
que foram escravizados.
Essa herança de desigualdade
faz com que traços do sistema colonia-
lista ainda possam ser encontrados na
sociedade atual, entre estes a capaci-
dade descrita por Darcy Ribeiro (2007,
p. 71) de disseminar e generalizar seus
conceitos, como sendo os únicos dignos
de serem adotados.
Dessa maneira, o pensamento
racial brasileiro foi estruturado segundo
uma característica comum ao colonia-
lista descrita pelo antropólogo, a de se
autodignicar e explicar as agruras vi-
vidas pelas camadas subalternas como
sendo fruto de suas características ra-
ciais e não da exploração que as vitimiza
(IDEM, p. 74).
Dessa maneira, nem mesmo a pre-
sença massiva de cidadãos Afro Latinos
nas Américas, garantiu, (mesmo em países
em que esses são maioria), que no perío-
do pós-abolição da escravatura os direitos
dessa população fossem garantidos por leis
e ações armativas que tivessem como ob-
jetivo a inclusão desse grupo na sociedade.
Em seus diferentes contextos, os
países que compõe a América Latina,
dentre eles o Brasil (último país a abolir
a escravidão no mundo) tiveram a parti-
cipação negra praticamente abolida de
sua história ocial, seja por meio do mito
da democracia racial, que valoriza a mes-
tiçagem, caso em que se inclui o Brasil
e outros países como a Venezuela, por
exemplo, até mesmo pela invisibilidade
histórica dos afrodescendentes, como no
caso argentino.
Dessa maneira, o m da escravi-
dão e a inserção como cidadão, que não
teve seus direitos garantidos dentro de
um sistema capitalista, leva a população
negra, a permanecer à margem da socie-
dade. Sendo assim “responsável por sua
pessoa e por seus dependentes, embora
não dispusesse de meios materiais e mo-
rais para realizar essa proeza nos quadros
de uma economia competitiva” (FERNAN-
DES, 2008, p. 29).
Inseridos em um contexto de ra-
cismo e exclusão social, os povos ne-
gros na América Latina foram esquecidos
não apenas pela direita, que vê na mes-
tiçagem um caminho para esquecer seu
“passado negro”, mas também por parte
da esquerda, que importa o conceito de
luta de classes europeu e esquece-se do
contexto diaspórico na América Latina.
Sem uma representação, surge
neste cenário, a voz da população negra
latino americana, que se torna perceptí-
vel por meio da criação dos movimentos
afrodescendentes em toda a região, em
diferentes épocas, desde o início do sécu-
lo 20, intensicando-se no nal deste e no
início do século 21.
Nesse contexto, esse artigo utiliza
o pensamento de autores como Boaventu-
ra Souza Santos (2010), Héctor Diaz Po-
lanco (2005), Pablo González Casanova
(2006), Anibal Quijano (2000), Darcy Ri-
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
beiro (2007), Kabengele Munanga (2008),
além de outros pesquisadores do movi-
mento negro no Brasil e na América La-
tina, para apontar o surgimento do movi-
mento negro no continente.
VOZES AFRO LATINAS
Da mesma maneira que a socie-
dade brasileira, grande parte dos de-
mais países da América Latina tiveram
incutido na formação de sua sociedade,
o pensamento racial que via na mestiça-
gem um fator que os afastaria da negri-
tude e os colocaria em uma melhor con-
dição social.
Segundo Kabengele Munanga
a propagação do mito da democracia
racial exaltou
a ideia de convivência harmoniosa entre
indivíduos de todas as camadas sociais
e grupos étnicos, permitindo às elites do-
minantes dissimular as desigualdades e
impedindo os membros das comunida-
des não-brancas de terem consciência
dos sutis mecanismos de exclusão da
qual são vítimas na sociedade. (MU-
NANGA, 2008, p.77).
A estrutura de exclusão criada pelo
sistema escravocrata no continente e do
pensamento de extinção da negritude por
meio da mestiçagem, persistentes até os
dias atuais, caracterizam o pensamento
de Anibal Quijano (2000, p. 349) de que
“a capacidade e a força que fazem com
que um grupo se imponha a outros, não
é suciente para articular histórias hetero-
gêneas”, ou em outras palavras garantem
a manutenção do sistema.
Apesar das adversidades conse-
quentes da estrutura dominante e do mito
da sociedade perfeita formada em torno
da mestiçagem que por muitos anos fez
parte do senso comum no continente, com
a ruptura com este pensamento que se de-
senvolveu com o nal da Segunda Guer-
ra Mundial, a luta da população negra na
América Latina ganhou novas proporções
nas últimas décadas do século 20 e nos
primeiros anos do século 21.
Dentre essas manifestações, está
a criação de entidades em defesa dos di-
reitos da população negra em diferentes
países, que buscam tanto o m da discri-
minação racial, a valorização da cultura e
o respeito à diversidade, quanto inclusão
social, dos povos que foram historicamen-
te desfavorecidos.
No Brasil, embora as primeiras or-
ganizações da população negra tivessem
um caráter político de direita, como no
caso da Frente Negra Brasileira
3
, duran-
te a ditadura militar, as discussões raciais
eram inibidas por serem consideradas
antipatriotas ao apontarem a questão do
racismo, considerado um problema ine-
xistente no Brasil. Esse fator aproximou
essas entidades do pensamento de es-
querda e permitiu que muitos ativistas que
zeram parte da criação do movimento ne-
gro tivessem também uma ligação com a
esquerda e os movimentos de resistência
no país, entre eles o Partido Comunista, a
Liga dos Camponeses, o PCdoB e a UNE
(ALBERTI, 2007, p. 105).
Dois casos de racismo de grande
repercussão
4
corroboraram no surgimento
do Movimento Unicado Contra a Discri-
minação Racial (MUCDR), que mais tarde
foi intitulado apenas como Movimento Ne-
gro Unicado (MNU). A criação do MNU,
em 1978 é um marco tanto do surgimento
do movimento negro, como organização,
quanto de uma aproximação dos militan-
tes negros ao pensamento da esquerda.
Segundo o depoimento de Sueli
Carneiro, ao CPDOC, a criação do MNU
pode ser considerada um marco entre a
integração da luta contra discriminação
11
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
racial e o processo da luta de classes.
Nas palavras da ativista, “O MNU traz um
nível de politização maior para o debate
racial e situa o movimento negro em uma
perspectiva mais de esquerda” (ALBERTI,
2007, p. 148) e seria, segundo ela, uma
inuência na formação de toda uma gera-
ção de militantes negros.
Essa aproximação entre pensa-
mento de esquerda e luta antirracista
pode ser justicada pela participação de
membros da liderança do movimento na
Convergência Socialista
5
. A formação de
esquerda fazia com que esses membros
entendessem que o racismo só seria ex-
tinto com o m do capitalismo, já que esse
alimentava o sistema racista. (DOMIN-
GUES, 2007, p. 112).
Outra justicativa se encontra na
tendência explicitada por Anibal Quijano
(p.344, 2000), que arma que o período
pós Segunda Guerra é marcado por um
afastamento do pensamento intelectual
na América Latina do modo eurocêntrico
de produção de conhecimento, os pensa-
dores passam então a tentar trazer aos
conceitos teóricos, uma perspectiva mais
condizente com a realidade nacional.
Como uma via de mão dupla, sur-
gem nesse contexto nomes como Flo-
restan Fernandes, que a partir de uma
proposta da Organização das Nações Uni-
das, passa a revisitar o pensamento racial
brasileiro, levando a academia brasileira
em especial de pensadores da esquerda
a dialogar com os ativistas negros.
Marco inicial desta relação, o Pro-
jeto Unescoenvolveu nomes com Fernan-
do Henrique Cardoso e Roger Bastide e
denunciou ao mundo a falácia do mito da
democracia racial, preconizado por Gil-
berto Freyre.
Outro exemplo dessa proximidade
positiva entre essa linha da esquerda e a
resistência negra no Brasil, se evidencia
na fala do professor Kabengele Munanga
(2008, p.85), que relata o fato do mesmo
Florestan Fernandes ter escrito o prefácio
do livro O genocídio do negro brasileiro,
de Abdias do Nascimento, primeiro sena-
dor negro brasileiro e uma das maiores
referências ao se tratar da cultura e políti-
ca afro-brasileira.
Porém, ainda que ocorrências
como as citadas anteriormente tenham
acontecido e que em muitos casosas
vozes Afro Latinas tenham se juntado
ao coro dos que denunciavam a luta de
classes na sociedade, as mãos de alguns
pensadores de esquerda, preocupados
exclusivamente com a luta de classes,
não se estenderam às vítimas do racismo
nesses países.
Nesse contexto, o mito da demo-
cracia racial, no caso brasileiro, ou as
teorias da importância da mestiçagem,
nos demais países da América Latina ga-
nham prioridade no pensamento desses
membros da esquerda local, que impor-
tam conceitos da teoria crítica europeia.
Fazendo assim com que, o arquétipo do
mestiço acabe sendo recorrido pela es-
querda “como uma categoria de arma-
ção de uma singularidade nacional, que
legitima um projeto nacional e de con-
traposição ao imperialismo” (OLIVEIRA,
2010, p. 5).
Esse pensamento de que a mesti-
çagem foi privilegiada pela esquerda, não
se apresenta apenas como uma prerroga-
tiva brasileira, mas está presente também
na fala do ativista afro-venezuelano, Je-
sus “Chucho” García (2005, p. 29), para
quem a chamada Modernização com Et-
no-Exclusão, se faz presente não apenas
em seu próprio país, mas em todo o con-
tinente e seria responsável pela segunda
exclusão étnica dos afrodescendentes,
que foram deixados de lado dos discursos
da modernidade.
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Em outras palavras, o mito da de-
mocracia racial preconizado por autores
como Gilberto Freyre entre outros, aju-
dou a formar também a mentalidade da
esquerda não apenas no Brasil, mas em
toda a América Latina, o que fez com que
estes se afastassem dos movimentos de
militância negra.
De acordo com Boaventura Souza
Santos (2010, p. 28), esse pensamento
se manifesta principalmente naqueles
que fazem parte da vertente da tradição
crítica que acredita que com os movimen-
tos de independência e o m do colonia-
lismo, o único objetivo político que se le-
gitima, seria o movimento anticapitalista,
deixando de reconhecer a validade da
luta étnico-racial.
Dentro dessa visão encontra-se,
por exemplo, a ideia disseminada de
que após a revolução cubana de 1959,
a igualdade racial no país teria sido atin-
gida, junto com a igualdade social, o que
atualmente recebe contestação tanto por
parte de antirrevolucionários, que ar-
mam que a revolução foi conduzida por
uma classe média branca, quanto por in-
telectuais que reconhecem a diminuição
da desigualdade racial, mas não negam
a existência de manifestações racistas
no país. (FUENTE apud MALACHIAS,
1996, p. 63).
Porém o esquecimento por parte
de alguns membros da esquerda intelec-
tual, não foi suciente para que a resis-
tência negra no continente tivesse suas
ações limitadas ou interrompidas. Os
ganhos da luta contra a discriminação
racial e pela inclusão da população ne-
gra na sociedade se intensicaram nos
últimos 30 anos.
No Brasil, por exemplo, a luta do
movimento negro, em especial das en-
tidades que surgiram após a criação do
Movimento Negro Unicado (MNU), trou-
xe avanços, que devem ser valorizados,
ainda que não seja o ideal.
De acordo com Evelina Dagni-
no (2004, p. 95) a Constituição de 1988
pode ser considerada um dos marcos do
processo de participação da sociedade
civil na democracia. No que se refere à
resistência negra brasileira, este pensa-
mento se corrobora, pois esta marca a
celebração dos 100 anos da abolição da
escravatura e pela primeira vez traz em
um dos seus artigos a criminalização da
prática do racismo, o que apesar de não
ter inibido totalmente as práticas racistas
no país, deu voz para as denúncias por
parte dos cidadãos negros vítimas de dis-
criminação e até mesmo agressões con-
sequentes do racismo.
Em 1995, ano em que se comple-
tavam os 300 anos da morte do líder ne-
gro Zumbi dos Palmares, o movimento
negro levou no dia 20 de novembro (ani-
versário da morte de Zumbi), cerca de 30
mil pessoas ao Palácio do Planalto para
a realização de manifestações políticas
e culturais. Dentre as atividades, a pauta
contava também com um encontro entre
as lideranças negras e o então presiden-
te, Fernando Henrique Cardoso, a quem a
comunidade negra entregou uma série de
reivindicações e propostas.
No cenário do novo milênio, a bus-
ca por ações armativas, em especial por
cotas em diferentes áreas, como educa-
ção, funcionalismo público, instituições -
nanceiras e até mesmo em propagandas
na televisão passam a ganhar coro e a tra-
zer novas perspectivas para a inclusão da
população negra brasileira.
Uma das conquistas das entidades
negras na ocasião foia inclusão de Zumbi
dos Palmares no hall dos heróis nacionais,
o que anos depois culminaria na ocialida-
de do dia da Consciência Negra em 2005
e na criação do feriado de 20 de novem-
13
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
bro, que foi adotado em 2010, por mais de
750 municípios e oito estados brasileiros
(SEPPIR, 2009).
Outra conquista signicativa foi a
criação de secretarias voltadas para a
questão racial em governos municipais
e estaduais e da Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEP-
PIR), criada em 2003 pelo governo fede-
ral. No âmbito legal, o movimento con-
seguiu ainda, em 2003, a aprovação da
Lei 10639, que institui o ensino de his-
tória da África e história Afro-brasileira
nas escolas e, em 2010 a aprovação do
Estatuto da Igualdade Racial, que ainda
que em uma versão diferente da criada
pelo movimento negro, garante a defe-
sa dos direitos da população negra e o
combate à discriminação.
Evelina Dagnino (2004, p. 100)
afirma que uma das principais carac-
terísticas da redefinição da noção de
sociedade é o crescimento acelerado
das Organizações Não Governamen-
tais e sua associação com o concei-
to de sociedade civil. Essa afirmação
traduz uma das características mais
marcantes da luta negra no Brasil.
Além dos organismos oficiais, o país
acompanhou nos últimos 30 anos a
criação de ONGS, que com trabalhos
diferenciados se levantaram em defe-
sa dos direitos da população negra. O
trabalho dessas organizações garantiu
grandes avanços com respeito à edu-
cação e inclusão no Ensino Superior,
com relação à saúde e os direitos das
mulheres negras e também às denún-
cias de racismo.
Essas organizações são responsá-
veis também pelo crescimento da mídia
étnica, com veículos de comunicação vol-
tados especicamente para a causa, que
suprem o décit deixado pela mídia con-
vencional, onde a população negra não
consegue se ver reetida.
Embora o Brasil seja responsável
por grande parte da presença negra na
América Latina (considerando-se que o
censo realizado em 2010 contabilizou
cerca de quase 100 milhões de brasi-
leiros negros, o que representa 51% da
população), as manifestações negras
ocorridas no país não estão isoladas
no continente.
Na Venezuela, por exemplo, a cria-
ção em 2000 da Red de Organizaciones
Afrovenezolanas (Rede de Organizações
Afro-venezuelanas), agrega mais de 20
organizações do movimento negro, que
denunciam a exclusão da população afro-
descendente no país.
Dentre as denúncias do movimento
Afro-venezuelano, está a ausência de leis
antirracistas, pois ainda que a Constitui-
ção Venezuelana contenha artigos contra
a discriminação com base em raça, sexo,
credo e condição social e preveja medidas
favoráveis às vítimas de discriminação,
não houve segundo a liderança nenhuma
punição para os casos de discriminação
no país e não há nenhuma política de in-
clusão desse grupo na sociedade (GAR-
CÍA, 2005, p. 36).
As principais reivindicações do mo-
vimento negro naquele país são: a con-
tagem dos afro-venezuelanos pelo censo
(considerando-se que não existem dados
ociais que possam determinar a por-
centagem de cidadãos negros no país);
o ingresso das comunidades negras no
sistema educacional e a elevação do ín-
dice de escolaridade, além da inclusão da
temática racial nos currículos escolares;
a inclusão da participação negra no pro-
cesso histórico venezuelano; a criação de
leis antirracistas; e a criação de entidades
governamentais que garantam o direito da
população negra (idem, p. 44).
Na argentina, a busca por visibili-
dade para a população afrodescendente,
14
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
se tornou pauta entre o nal do século 20
e o início do século 21. Dentre as entida-
des tem destaque nesse processo a ONG
África Vive, que foi criada em 1997, com o
objetivo de romper a invisibilidade do ne-
gro no país, ajudar na promoção social e
reivindicar a posição do negro na história
e na sociedade argentinas (FRIGERIO,
2008, p. 130).
No Paraguai, os afrodescendentes
lutam hoje, para recuperar a imagem do
negro que cou perdida na história para-
guaia, desde os tempos coloniais até os
dias de hoje, por conta da valorização da
mestiçagem. A luta desse grupo foi im-
pulsionada pelo fortalecimento dos movi-
mentos negros no continente e conta com
o apoio de instituições negras de outros
países, como o Uruguai, por exemplo (TE-
LESCA, 2008, p. 170).
Outro exemplo, da priorização da
luta de classes sobre a questão racial, o
México, acabou excluindo a presença do
negro em sua luta contra a desigualdade.
Porém, as discussões em torno da temá-
tica negra se intensicaram nas últimas
décadas e estão centradas principalmente
em estudos acadêmicos, desenvolvidos
por pesquisadores preocupados em re-
cuperar a história dos povos afrodescen-
dentes, como uma terceira raiz, do povo
mexicano (FERNÁNDEZ, 2008, p. 201).
Também no Peru, a academia tem
tido um papel fundamental na recupera-
ção da história e cultura afro-peruana, sob
perspectivas das ciências sociais. Essa
releitura tem início ainda na década de
1940, com foco principalmente na cultura
negra e no folclore, temática que perpassa
a segunda metade do século 20, até que
na década de 1990, passam a ser aborda-
das temáticas diferenciadas relacionadas
ao tema. (RIO, 2008, p. 214).
Outro exemplo que pode ser con-
siderado um divisor de águas na história
da resistência negra no continente é a par-
ticipação em massa das instituições afro-
-latinas na Conferência Mundial contra o
Racismo, que aconteceu em Durban, na
África do Sul em 2001.
Apoiada pelas denições contidas
na Declaração de Durban (documento
criado durante o evento em cooperação
entre a Organização das Nações Unidas
(ONU) e as entidades representantes da
sociedade civil), a partir da conferência a
agenda da resistência negra, ganha refor-
ços, como por exemplo, luta por políticas
de ações armativas que atuem como re-
paração aos sofrimentos causados duran-
te a escravidão.
Esse conjunto de dados (ainda
que simplistas, por tomarem como exem-
plo apenas alguns países) exemplica o
avanço da luta negra na América Latina,
apesar de uma omissão que priorizou a
luta contra o capitalismo deixando de lado
a inclusão de grande parte da população
do continente.
Essas conquistas trazem uma nova
visibilidade para a questão identitária no
continente, o que permite que alguns pen-
sadores e teóricos da esquerda, passem
a ver a temática com outros olhos, o que
a inclui nos debates realizados pelo gru-
po. Dentre os temas propostos para a
análise está, por exemplo, a preocupação
em adaptar a teoria crítica marxista fun-
damentada no contexto europeu, à re-
alidade latino americana. Sendo assim,
a denúncia do racismo, estaria presente
em uma revisão nos conceitos de justiça
social e de inclusão, que passariam a ser
alinhados ao reconhecimento da diferença
(SANTOS, 2010, p. 131).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se neste artigo que o
pensamento de transformação por meio
15
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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da luta de classes e da busca por justiça
social na América Latina, deixou de lado
uma parcela importante da sociedade ao
adotar o conceito de mestiçagem e ignorar
as questões identitárias que faziam parte
do contexto histórico pós-colonialista.
Embora especialmente no Brasil, a
militância negra tenha caminhado aliada ao
pensamento de esquerda, a discussão do
racismo, foi delegada a segundo plano e
passou a ser reivindicada pelas instituições
afrodescendentes em todo o continente.
Em cada país, essa luta tem ca-
racterísticas particulares, sem deixar de
apresentar como característica comum, a
busca por uma maior visibilidade de uma
população que foi esquecida pelo mito da
democracia racial e da mestiçagem.
Assim, a questão identitária que a
cada dia se faz mais presente na pauta,
tanto na mídia como na criação de políti-
cas públicas, traz a tona a importância de
se agregar o tema a questão da luta de
classes e ao mesmo tempo de se adequar
a teoria crítica da luta de classes europeia,
à realidade do continente.
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Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm - Aces-
sado em 27/05/2011
1
Este artigo foi inicialmente criado para a disciplina Pers-
pectivas Críticas Latino Americana e os Estudos Culturais,
ministrada pela Profª. Drª. Vivian Grace Fernández-Davilla
Urquidi junto ao mestrado em Estudos Culturais da USP.
2
Jornalista formada pela Universidade Metodista de São
Paulo. Especialista em Mídia, Informação e Cultura pela
Universidade de São Paulo. Mestranda em Estudos Cul-
turais pela Universidade de São Paulo, sob orientação
do Prof Livre Docente Mauro de Mello Leonel Junior.
3
A Frente Negra Brasileira foi a entidade negra mais im-
portante da primeira metade do século 20 no Brasil. Fun-
dada 1931 funcionou até 1937, tornando-se partido polí-
tico em 1936. Foi responsável por inúmeras conquistas
dos afrodescendentes, como por exemplo, a entrada de
soldados negros na Guarda Municipal. (BARBOSA, 1998)
4
Mesmo com todas as manifestações de racismo exis-
tentes na história até o momento, os casos que impul-
sionaram a criação do MNU foram a proibição feita pelo
Clube de Regatas Tietê de que quatro jovens negros
participassem de um time de vôlei e o espancamento
e morte do pai de família negro Robson Silveira da Luz,
dentro de um distrito policial em Guaianazes.
5
Organização com forte orientação trotskista, que após
anos daria origem ao Partido Socialista dos Trabalhado-
res Unicados (PSTU).
Contato:
Daniela Fernanda Gomes da Silva
- danielagomes@usp.br
- http://afroatitudes.blogspot.com.br
Artigo recebido em agosto de 2011
Artigo aprovado em maio de 2012
17
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Você é Sertão? –
Marcel Mauss, a Ciência Política e o Sertão de Guimarães Rosa
¿Usted es Sertão? –
Marcel Mauss, la Ciencia Política y el Sertão de Guimarães Rosa
Are you Sertão? –
Marcel Mauss, the Political Science and the Sertão of Guimarães Rosa
Flávia Lages de Castro
1
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo discutir as visões do personagem-
lugar “Sertão”, apresentado na obra de João Guimarães Rosa: Grande
Sertão: Veredas. Através das possibilidades interpretativas, debatem-se
as modalidades simbólicas do Sertão tendo por base a teoria de Marcel
Mauss, buscando perceber de que forma o raciocínio pautado neste
autor, aplicado ao Sertão – criado e apresentado por Guimarães Rosa –,
pode ser utilizado para uma percepção de uma análise política. Restam
claras as múltiplas possibilidades interpretativas do personagem-lugar
assim como a sua utilidade na reexão histórico-social da política a
partir das ideias e denições de Mana que Mauss criou.
Palavras chave:
Guimarães Rosa
Mauss
Mana
Ciência Política
Simbolismo
18
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El presente artículo tiene por objetivo discutir las visiones acerca del
personaje-lugar “Sertão” (Sertón), presentado en la obra de João
Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas (Gran Sertón: Veredas). A
través de las posibilidades interpretativas, se debaten las modalidades
simbólicas del Sertão, tomando como base la teoría de Marcel Mauss,
buscando percibir de qué forma el raciocinio con base en este autor,
aplicado al Sertão – creado y presentado por Guimarães Rosa –,
puede ser utilizado para una percepción de un análisis político. Restan
evidentes las múltiples posibilidades interpretativas del personaje-lugar
como también su utilidad en la reexión histórico-social de la política
a partir de las ideas y deniciones de Mana las que Mauss ha creado.
Abstract:
The aim of the present paper is to discuss the views on the character-place
“Sertão”, presented in the work of João Guimarães Rosa: Grande Sertão:
Veredas (The Devil to Pay in the Backlands). Through the interpretive
possibilities, the symbolic modalities of Sertão are debated based on
Marcel Mauss’s theory, seeking to understand how the thinking process
founded on this author, applied to Sertão created and presented by
Guimarães Rosa –, can be used for perceiving a political analysis. The
multiple interpretative possibilities of the character-place remain clear,
as well as its utility in the social historical reection of politics from the
ideas and denitions of Mana, which were created by Mauss.
Palabras clave:
Guimarães Rosa
Mauss
Mana
Ciencia Política
Simbolismo
Keywords:
Guimarães Rosa
Mauss
Mana
Political Science
Symbolism
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Você é Sertão? -
Marcel Mauss, a Ciência Política
e o Sertão de Guimarães Rosa
1 - INTRODUÇÃO
“Você é o Sertão?” Perguntou Rio-
baldo a um vulto no m de uma peleja
2
.
Personicado, eivado de poder e gana de
querer, o Sertão de Rosa é algo mais que
um lugar, algo menos que um espaço físi-
co, algo entre amigo, patrão e vilão e, por
isso, muitos estudos buscam aproximar
teorias à criação magistral de Guimarães
Rosa em “O Grande Sertão: veredas” ou,
sentido oposto, tomam o “Grande Sertão”
e conduzem-no na direção de teorias das
mais variadas origens.
Por fato pode-se apontar a criati-
vidade de Guimarães Rosa em cultivar
possibilidades capazes de causar de es-
tranhezas positivas à teorias das mais re-
buscadas. Neste sentido, outro escrito do
autor, o conto “A terceira margem do rio”
3
,
é paradigmático, visto que, a tridimensio-
nalidade da disposição dos personagens,
emoções, possibilidades, enredo, demons-
tram a amplitude da criatividade de Rosa.
Este artigo, de pequena preten-
são, tem por objetivo traçar linhas reexi-
vas sobre a relação das ideias de Mauss,
o Sertão de Rosa – principal lugar/perso-
nagem do livro e a ciência política emara-
nhada nas ideias de poder dos persona-
gens e do tempo histórico que o romance
alinhava representações.
2 - O SERTÃO POR RIOBALDO
O personagem-narrador da estó-
ria de Rosa dá o tom dos poderes pos-
tos do personagem-lugar, o Sertão. De
pronto, percebe-se que, a reexão da
questão política através de “Grande Ser-
tão: veredas” perpassa a noção de po-
der regional e transcende do poder local
para o poder “do” local.
Assim sendo, tem-se Riobaldo ar-
mando que sequer Deus é capaz de sem
armas – ser mais forte que o Sertão: “O
senhor sabe: sertão é onde manda quem
é forte, com as astúcias. Deus mesmo,
quando vier, que venha armado!”
4
Ao mesmo tempo, mesmo “o mais
forte” é inferior ao próprio Sertão, mais
que um lugar, menos que um ser sobre-
natural, pois revestido de poder em si e
com disputas de poder dentro de si, ainda
assim não pode ser domado porque:
Rebulir com o sertão, como dono?
Mas o sertão era para, aos poucos e
poucos, se ir obedecendo a ele; não
era para à força se compor. Todos que
mal montam no sertão só alcançam
de reger em rédea por uns trechos;
que sorrateiro o sertão vai virando ti-
gre debaixo da sela.
Para Riobaldo, é algo a ser domado,
senão na realidade, ao menos em pensa-
mento, como forma de sobrevivência: “(...)
sertão é onde o pensamento da gente se
forma mais forte que o poder do lugar.
5
Isto porque, o Sertão de Riobaldo,
tem por característica a violência: “Sertão é
o penal, o criminal. Sertão é onde o homem
tem de ter a dura nuca e mão quadrada.”
6
Porque sinônimo – em algumas passagens
do livro – de jagunço e este, como braço
armado do poder local, é apresentado ro-
manticamente até por estar em vias de ex-
tinção
7
, antônimo de urbanidade porque:
“(...) cidade acaba com o sertão. Acaba?”
8
3 - MANA, MAUSS E O SERTÃO
Segundo Lévi-Strauss, para Mauss
todos os fenômenos sociais podem ser
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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assimilados à linguagem, assim, expres-
sões como Mana tem função semântica,
“cujo papel é permitir ao pensamento
simbólico exercer-se apesar da contradi-
ção que lhe é própria.”
9
O mana, portanto, nos é dado como
algo não apenas misterioso, mas tam-
bém separado. Em resumo, o mana
é primeiramente uma ação e um cer-
to gênero, isto é, a ação espiritual à
distância que se produz entre seres
simpáticos. É igualmente uma espé-
cie de éter, imponderável, comunicá-
vel, e que se espalha por si mesmo.
Além disso, o mana é um meio, ou,
mais exatamente, funciona num meio
que é mana. É uma espécie de mundo
interno e especial, onde tudo se passa
como se ali somente o mana estives-
se em jogo. É o mana do mágico que
age pelo mana do rito sobre o mana
do indalo, o que põe em ação outros
manas, e assim por diante.
10
Desta forma, entender o Sertão de
Rosa como Mana é vê-lo como a maneira
pela qual o autor conseguiu expressar se-
manticamente um conjunto múltiplo - por-
tanto não elencável em uma solitária ca-
tegoria explicativa/narrativa - que abrange
do sentido físico ao psíquico, passando
pelo poder, pelo amor e tantas outras pe-
quenas nuances possíveis que Rosa co-
locou na boca do personagem-narrador
Riobaldo.
11
Por outro lado a questão da Magia
e sua relação com o Sertão em O Grande
Sertão: Veredas é explícito já que, segun-
do Maria Luiza de Arruda o pacto com o
diabo é a “obsessão central” do narrador
Riobaldo bem como variadas possibilida-
des religiosas vistas de forma ímpar ou
emaranhadas no discurso do ex- jagunço.
A existência desse compromisso,
e, principalmente, a dúvida quanto
à sua validade, angustia o herói, a
tal ponto que ele procura de todas
as maneiras chegar a uma verdade.
(...) Sem a certeza do compromisso
assumido, sem comprovação do fato
de “ter diabo”, Riobaldo apega-se a
todas as religiões (...).
A possibilidade do mágico e do
irracional alinhavam a trama contada
pelo narrador dando-lhe forma, ao mes-
mo tempo que demonstram a intimidade
de Riobaldo com o que conta e o moti-
vo pelo qual o faz. Isto é feito pelo autor
quando coloca sob sua narrativa mais
que indicações realistas do ser e viver
de um lugar determinado.
Neste sentido o Sertão, persona-
gem-mana, pode ser entendido de várias
maneiras: de maneira mais óbvia como
mana em si, conforme propõe Sylvia Schia-
vo
13
, ou como símbolo do inconsciente ten-
do por par a vereda, a consciência.
14
Esta última interpretação parece
ter tido – pelo menos por algum tempo –
a aquiescência de Guimarães Rosa haja
vista a armação de Ronái:
O sertão acaba sendo caos ilimita-
do de que uma parte ínma nos é
dado conhecer, precisamente a que
se avista ao longo das veredas, tê-
nues canais de penetração e comuni-
cação. Assim, o sinal -:- entre os dois
elementos do título teria valor adver-
sativo, estabelecendo a oposição en-
tre a imensa realidade inabrangível
e suas mínimas parcelas acessíveis.
[...] E também, segundo me conr-
mou certa vez o próprio Autor, entre o
inconsciente e o consciente.
15
Martins vai além, extrapolando o
simbólico percebe arquétipos alquímicos:
(...) o Sertão é o terreno da eternidade
e da solidão, onde se fala a língua me-
tafísica, onde o homem é o eu que não
21
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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encontrou ainda o tu; por isso são os
anjos ou os diabos que manuseiam a
língua. As forças arquetípicas prepon-
deram descontaminadas.
A guisa de análise e exercício in-
telectual, ao ler-se a obra de Rosa como
um todo e, Grande Sertão: veredas es-
pecicamente, o lugar, ou melhor, os lu-
gares trabalhados por ele, vistos de ma-
neira simplista ou como mana ou como
símbolos de consciente e inconsciente,
não dão conta das múltiplas e ímpares
possibilidades plurais que o “persona-
gem” Sertão apresenta enveredando-se
nos personagens humanos tanto quan-
to estes nele. Assim, se deve pensar de
ângulos múltiplos as numerosas arestas
que este é apresentado.
A arquitextualidade
17
- uma das pos-
sibilidades de buscar visualizar mais que
duas dimensões da questão rosiana, leva
a uma necessidade – indicada de maneira
geral por Philippe Willemar de haver se-
paração entre escritor e autor: o primeiro
sendo a entidade pessoal, física e psíquica
e o segundo o escritor transmudado quan-
do “manipulando sabiamente a língua, pra-
tica uma espécie de feitiçaria”.
18
O autor Guimarães Rosa é então
– e indiscutivelmente – um “mestre feiti-
ceiro” porque busca não somente usar a
língua como parte de um todo que preten-
de construir mas, principalmente, constrói
cada palavra, como quem erige tijolo por
tijolo e pedra por pedra para depois alocá-
-los em um edifício. Neste sentido Rónai
arma: “fez, em suma, Guimarães Rosa,
em relação à linguagem, o que todos os
ccionistas fazem da realidade, sua maté-
ria prima: desagregam-na e reconstituem-
-na a seu bel prazer (...)”.
19
Somando à arquitextualidade a
intertextualidade
20
, (se tratar-se de re-
alização magistral) um escrito torna-se
atemporal, na medida que consegue tra-
tar de algo que mantêm distância segu-
ra de algozes moralistas e de guardiões
raivosos do status quo, enquanto desla
sem pudores as mazelas que deseja dis-
cutir sem censura.
Isto não é exclusivo dos tempos
modernos. Assim o fez Plauto
21
na Roma
Antiga, com meios, nomes e locais gregos
para abordar assuntos incomodamen-
te romanos e contemporâneos aos seus
que, de outra maneira, não seriam aceitos
sequer pela audiência. Assim se mostra
Rosa que, separando autor e escritor, fala
de jagunços que nunca foi e de um amor
estranho à luz do dia. Como um feiticeiro
mostram, esses artíces da arquitextuali-
dade e da intertextualidade, sem mostrar
e fazem surgir à vista de todos algo que
não cabia antes.
4 - CONCLUSÃO
A contribuição de Mauss, visto
através das lentes de Guimarães Rosa
em Grande Sertão: veredas, para a ciên-
cia política é a possibilidade de se com-
preender o poder sem a existência do
mesmo, tanto como um vácuo coberto
pela crença religiosa ou mágica, quanto
pelo uso do mágico – mana – como forma
de alcançar o poder.
É este o caminho escolhido e tri-
lhado pelo personagem Riobaldo, o uso
do mana para obter poder: para vencer
o mal ele associa-se ao mal e entrega o
belo em sua vida, o objeto de seu amor,
em contrapartida.
Sob este ponto de vista, o coro-
nel, o poder local, é visto por Rosa como
um devedor do Sertão, este sim senhor
de tudo e todos que estão nele. Percebe-
-se então que, em se considerando esta
interpretação como provável, os regiona-
lismos e os poderes regionais, tomados
como categoria, merecem ser percebidos
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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além dos indivíduos porque, das forças
políticas atuantes, segundo esta possível
interpretação de Rosa, é inescapável a
inserção do lugar como força primordial,
ainda que mítica.
Não obstante, muitas são as pos-
sibilidades de interpretação de textos
magistrais como este – e outros – de
Guimarães Rosa que, até por não po-
derem ser denitivas, servem para ree-
xões interessantes.
Mesmo porque, permitindo-nos
um exercício de imaginação... Se pos-
sível e provável o senhor João ape-
nas seguiu instintos objetivando realizar
de forma palpável seu inegável talento,
resta-nos ainda algo positivo, a possibili-
dade sorrir das centenas (milhares?) de
intelectuais (de nós mesmos?) que pas-
saram, passam e passarão a vida a se
amonar com intenções e objetivos que
o cérebro rosa de Guimarães não che-
gou a perceber, pois seu dom e coração
bombearam rápido demais sua criativi-
dade para o papel.
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lida no rmamento da razão”. Goiania, Sociedade
e Cultura, Universidade Federal de Goiás, a. 10, n
001, pp. 41-44.
1
Mestre em História Social. Professora do Curso de
Produção Cultural – UFF – Niterói.
2
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 591.
3
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 1.ed.
especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006
4
ROSA, Grande Sertão... op. cit. ,p.19.
5
Ibidem, p. 25. (grifo nosso).
6
Ibidem, p. 110.
7
Para José Murilo de Carvalho pode-se localizar o m
do coronelismo: “(...) o coronelismo é, então, um sistema
político nacional, baseado em barganhas entre o governo
e os coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o
poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais,
sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos,
desde o delegado de polícia até a professora primária.
O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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forma de votos. Para cima, os governadores dão seu
apoio ao presidente da República em troca do reconhe-
cimento deste de seu domínio no estado. O coronelismo
é fase de processo mais longo de relacionamento entre
os fazendeiros e o governo. O coronelismo não existiu
antes dessa fase e não existe depois dela. Ele morreu
simbolicamente quando se deu a prisão dos grandes co-
ronéis baianos, em 1930. Foi denitivamente enterrado
em 1937, em seguida à implantação do Estado Novo e
à derrubada de Flores da Cunha, o último dos grandes
caudilhos gaúchos.” CARVALHO, José Murilo de. Man-
donismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão
Conceitual. Dados [online]. 1997, vol.40, n.2. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0011-52581997000200003&lng=en&nrm=i
so>. Acesso em 30 mar 2012.
8
ROSA, Grande Sertão..., op. cit. , p. 167.
9
LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel
Mauss. IN: MAUSS, Marcel, op.cit., p. 23
10
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São
Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 74.
11
Poderíamos ter apontado Riobaldo como persona-
gem-narrador-protagonista, mas a narrativa de Rosa
nos leva a crer que o protagonista é o Sertão em todas
as possibilidades de signicado e interação com os ou-
tros personagens que o autor achou por bem expor em
sua obra.
12
ARRUDA, Maria Luiza. O medo e o sertão: a travessia
da vida e o encontro com o desconhecido. IN: BERRINI,
Beatriz (org.). Convivendo com Guimarães Rosa: Gran-
de Sertão: veredas. São Paulo: EDUC, 2004, p. 19s.
13
SCHIAVO, Sylvia. Sertão uno e múltiplo ou “lua pálida
no rmamento da razão”. Goiania, Sociedade e Cultura,
Universidade Federal de Goiás, a. 10, n 001, pp. 41-44.
14
LIPPOLIS, Enrico. Grande Sertão: veredas: o sertão
como símbolo do inconsciente. Lorena, Revista Ângulo,
n. 115, out-dez 2008, pp. 73-81.
15
RONÁI apud LIPPOLIS, op. cit., p. 74.
16
MARTINS, José Maria. Guimarães Rosa: o alquimista
do coração. Petrópolis, Vozes, 1994, p. 57.
17
Relação “muda” que articula uma menção paratextual
de pertencimento taxionômico.
18
WILLEMAR apud LEONEL, Maria Célia. Guimarães
Rosa: magma e gênese da obra. São Paulo: UNESP,
2000, p. 68.
19
RÓNAI, Paulo. Vastos espaços [ensaio]; IN: ROSA,
João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de janeiro:
Nova Fronteira, 2005, p. 32.
20
No sentido estrito designa a transposição de um (ou
vários) sistema(s) de signos noutro e desta forma colo-
camo-lo aqui neste texto (em contraposição ao uso “sen-
so comum” que indica somente como crítica de fontes).
21
Tese central de Marilda Ceribelli em “Teatro Romano e
as Comédias de Plauto” de 1995.
Contato:
Flávia Lages de Castro
- avialages@id.uff.br
Artigo recebido em março de 2012
Artigo aprovado em julho de 2012
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Pedra Bonita:
A poética arquitetônica como elemento de resistência cultural
Pedra Bonita:
La poética arquitectónica como elemento de resistencia cultural
Pedra Bonita:
The architectural poetics as an element of cultural resistance
Luiz Carlos Rocha de Oliveira
1
Resumo:
Este trabalho é um desdobramento de nossa dissertação de mestrado
na qual buscamos estudar a cidade de Itaboraí e a poética de seu
patrimônio cultural como um viés de formação e/ou desenvolvimento
da identidade cultural de seus moradores. Nosso objetivo é investigar
as possibilidades intrínsecas ao patrimônio arquitetônico histórico
situado na cidade de Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro, para que
ele possa se constituir como um elemento de resistência cultural para
os que tenham experiências sensíveis e didáticas com a estética e a
história por ele narradas. Para que a identidade cultural possa se opor
à transitoriedade da identicação cultural, é necessário irrigá-la com
elementos que transmitam valores para aos indivíduos que sofrem
assédios constantes por culturas estrangeiras. A arquitetura, além de ser
uma expressão estética, traz consigo o poder de ensinar ao manter viva
a história local que permite o conhecimento da constituição do espaço
e, em consequência, a formação de vínculos afetivos e identitários com
ele, podendo dessa forma se estabelecer um lugar.
Palavras chave:
Patrimônio arquitetônico
Identidade cultural
Resistência cultural
Itaboraí
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este trabajo es un desdoblamiento de nuestra tesis de maestría en
la que buscamos estudiar la ciudad de Itaboraí y la poética de su
patrimonio cultural como un ramo de formación y/o desarrollo de la
identidad cultural de sus habitantes. Nuestro objetivo es investigar las
posibilidades intrínsecas del patrimonio arquitectónico histórico en la
ciudad de Itaboraí, en el estado de Río de Janeiro, para que ese se
pueda constituir como un elemento de resistencia cultural a los que
tengan experiencias sensibles y didácticas con la estética y la historia
por él narradas. Para que la identidad cultural se pueda oponer a la
transitoriedad de la identicación cultural, es necesario regarla con
elementos que transmitan valores a los individuos que sufren constantes
asedios por culturas extranjeras. La arquitectura, además de ser una
expresión estética, trae consigo el poder de enseñar al mantener viva la
historia local que permite el conocimiento de la constitución del espacio
y, en consecuencia, la formación de vínculos afectivos y de identidad
con él, pudiendo así establecerse un lugar.
Abstract:
This work is an outgrowth of our masters thesis in which we seek to study
the city of Itaboraí and the poetics of its cultural heritage as a bias of the
formation and/or development of its residents’ cultural identity. Our goal
is to investigate the intrinsic possibilities of the historical architectural
heritage in Itaboraí, in the state of Rio de Janeiro, so it can be an
element of cultural resistance for those who have sensitive and didactic
experiences with the aesthetic and the history that it tells. So the cultural
identity can be opposed to the transience of the cultural identication, it
is necessary to ll it with elements that transmit values to the people who
are constantly offended by foreign cultures. The architecture, besides
being an aesthetic expression, has the power of teaching as it keeps
the local history alive, which permits the knowledge of the constitution of
space and, consequently, the formation of emotional and identity bonds
with it. As a result, a place can be established.
Palabras clave:
Patrimonio arquitectónico
Identidad cultural
Resistencia cultural
Itaboraí
Keywords:
Architectural heritage
Cultural identity
Cultural resistance
Itaboraí
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Pedra Bonita: a poética arquitetônica
como elemento de resistência cultural
1 - INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é pers-
crutar as possibilidades inerentes ao pa-
trimônio arquitetônico histórico situado na
cidade de Itaboraí no Estado do Rio de
Janeiro, para que ele possa se constituir
como um elemento de resistência cultural
para os que o vivenciam.
Para restringir nosso objeto de
análise, nos limitaremos a tecer consi-
derações somente em relação às obras
arquitetônicas com mais de um século de
existência. São estes exemplares que a
nossa denição de patrimônio arquitetô-
nico histórico abrange.
O que nos motiva profundamente
para o desenvolvimento desta investiga-
ção é que a arquitetura possui o poder de
ensinar (TUAM, 1983, passim), transmitin-
do conhecimentos históricos nela deposi-
tados para os que possam experienciá-la.
Essa característica é que será salientada
em nosso estudo; justamente, para que os
moradores conheçam a história da cidade
de Itaboraí e associem a identidade cultu-
ral a esta e ao patrimônio arquitetônico.
Entendemos que a cidade de Itabo-
raí, com seus encantos de cidade do in-
terior, possui características estéticas que
a denem como obra de arte (ARGAN,
1995, passim). O patrimônio arquitetônico
histórico amalgamado à mesma produz
acréscimos que permitem à população
manter com ela uma constante relação de
conhecimento, denindo a identidade cul-
tural e vinculando o sujeito ao lugar.
Nessa concepção, os prédios his-
tóricos devem ser valorizados não como
simples abrigos administrativos, e nem
tampouco como templos sagrados inaces-
síveis ao grande público, mas como obras
de arte, com o seu devido valor, e que
devem estar inseridos no cotidiano da po-
pulação formando a cidade e contribuindo
para estruturação da identidade cultural.
Assim, importa vericar as carac-
terísticas que o patrimônio arquitetônico
histórico possui para narrar a história do
espaço e a de seu povo, para que este o
torne elemento constante de irrigação de
sua identidade cultural. Ou seja, fazer uso
do patrimônio arquitetônico para o desen-
volvimento e a manutenção da identidade
cultural daqueles que habitam a cidade,
permitindo-lhes resistir ao assédio das
culturas estrangeiras e cambiantes (HAR-
VEY, 2001, passim), responsáveis pelas
transitórias identicações culturais que se
mostram comuns na contemporaneidade.
2 - GÊNESE E CONFIGURAÇÃO ATUAL
A cidade que contemplamos neste
trabalho, o município de Itaboraí, palavra
de origem tupi que signica “pedra bonita”,
“ita” é igual à pedra e “boraí” bonita (FER-
REIRA, 1992, p. 26-27), encontra-se situ-
ada em uma região conhecida geograca-
mente como Recôncavo da Guanabara,
que abrange parte das terras da Baía da
Guanabara e da Serra do Mar (LAMEGO
FILHO, 1964).
A origem do município de Itaboraí
está ligada a uma doação de sesmaria rea-
lizada no século XVI, mais especicamen-
te no ano de 1567, quando da doação de
uma sesmaria a Miguel de Moura (LAME-
GO FILHO, 1964). Nessa sesmaria, uma
capela foi erguida originando um povoado,
que no século XVII foi elevado à categoria
de Vila de Santo Antônio de (LAME-
GO FILHO, 1964). A atual conguração
do município tem sua origem relaciona-
da à construção de uma igreja no século
XVIII, no espaço que corresponde hoje ao
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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atual centro administrativo do município. A
Vila de Santo Antônio de Sá estava situ-
ada em meio a rios e vários alagadiços,
o que propiciou uma epidemia de febres
no século XIX que dizimou grande parte
da população local; os que sobreviveram,
xaram residência no entorno da igreja de
São João Batista, no que é hoje o Centro
da atual cidade (FERREIRA, 1992).
Um rápido passeio pelo topo da
colina em que ca situada a igreja matriz
de São João Batista, nos revela o valor e
a função aglutinadora das igrejas nos sé-
culos XVII e XVIII. O centro administrativo
da cidade e também algumas residências
foram construídos de forma circular no en-
torno dessa igreja. Ali, encontramos além
da igreja citada, o prédio da Secretaria
Municipal de Educação, a Casa de Cultura
Heloísa Alberto Torres, o Teatro Municipal
João Caetano do século XIX, a igreja de
Nosso Senhor do Bonm do século XVIII,
o prédio da maçonaria, o prédio da Câma-
ra de Vereadores do século XIX e o prédio
da Prefeitura Municipal do século XIX.
Em meio à gênese do município e
a esse deslocamento da população, as
obras arquitetônicas deixadas nesses lo-
cais constituem um testemunho para a
história do espaço e da arquitetura, e evi-
denciam um registro dos povos que ali
habitaram. O patrimônio arquitetônico que
será objeto de estudo, e que compõe a ci-
dade, foi construído ao longo dos séculos
XVII, XVIII e XIX.
A base da economia do município
esteve, até a primeira metade do século
XX, fundamentada na atividade agrária.
Diversos latifúndios foram criados na re-
gião, com funções primário-exportadoras.
A cana-de-açúcar foi o primeiro produto
agrícola em larga escala a ser plantado
na região. Para isso, extensas fazendas
eram utilizadas, mantendo como suporte
de produção o braço escravo na lavoura
e nos engenhos de açúcar; o açúcar era
um produto muito apreciado na Europa à
época e que alcançava elevados preços
em seu mercado.
As fazendas existentes no Recôn-
cavo, e inclua-se Itaboraí, foram paulati-
namente sendo reduzidas a loteamentos
para atender a procura por locais de habi-
tação próximos a capital do estado. A citri-
cultura, última grande produção agrícola
da cidade de Itaboraí, cedeu as terras em
que nelas orescia para os lotes acessí-
veis aos trabalhadores que entendiam por
bem evitar as aglomerações urbanas do
Rio de Janeiro e de Niterói, construídas
por pessoas de baixo poder aquisitivo,
que funcionam como células iniciais para
as favelas. A necessidade de construção
de novos loteamentos para favorecer as
camadas menos privilegiadas da socie-
dade teve início ao nal da primeira me-
tade do século XX, “quando aos poucos
a expansão urbana valorizando cada vez
mais a terra, foi destruindo as fazendas
por um retalhamento simultâneo à eleva-
ção do índice demográco” (LAMEGO FI-
LHO, 1964, p. 203). A zona a esta época
semi-rural que era o Recôncavo atendia
às necessidades de moradia daqueles
que trabalhavam no centro administrativo
e nanceiro do estado.
Em Itaboraí, “muitas fazendas fo-
ram retalhadas cedendo lugar a lotea-
mentos” (FERREIRA, 1992, p. 40). Pre-
senciamos a existência de extensos sítios
no município de Itaboraí até por volta de
1980, quando estes não mais resistiram
aos imperativos imobiliários e foram ven-
didos com a nalidade de sua transforma-
ção em lotes e/ou condomínios; estes são
muito frequentes na região.
Embora hoje o município apresen-
te um aspecto tipicamente urbano, vamos
encontrar, em seu desenvolvimento, ca-
racterísticas agrárias que atuam na con-
temporaneidade, construindo uma ima-
gem simbólica do local, ainda associada a
28
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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interior, roça, área rural. Essa construção
simbólica acontece em função do papel
desempenhado pelo município nos pri-
meiros séculos da colonização da terra,
como assinala Osvaldo Luiz Ferreira “as
fazendas desenvolveram papel preponde-
rante na formação do município, como sa-
bemos, Itaboraí, no passado foi um muni-
cípio essencialmente agrícola e sua maior
base da economia era a cana-de-açúcar,
laranja e café” (1992, p. 39).
O espaço antes ocupado pelos
latifúndios cedeu ante a elevação demo-
gráca e destina-se hoje a loteamentos,
cujos moradores em geral, são imigran-
tes oriundos de outros estados brasileiros
que residem na cidade, pela sua proximi-
dade com os centros que possuem maior
poder de absorção de mão-de-obra, Nite-
rói e Rio de Janeiro.
Os moradores de Itaboraí em ge-
ral não são naturais da cidade. A recente
conguração urbana é responsável por
atrair imigrantes de outras regiões do es-
tado e do Brasil, interessados na aquisi-
ção de lotes nanceiramente acessíveis
e próximos aos grandes centros comer-
ciais. A cidade, sendo satélite de Nite-
rói e Rio de Janeiro, centros maiores de
empregabilidade prossional, atua como
nicho operário, cujos moradores subme-
tem-se diariamente a migrações pendula-
res com destino aos pólos de maior atra-
ção de mão-de-obra, especializada ou
não. As relações por estes estabelecidas
com o local são de simples moradia, suas
relações identitárias permanecem tendo
como referências suas terras natais, suas
culturas e seus povos. Os berços desses
moradores são seus referenciais identitá-
rios e afetivos de lugar.
Nesse sentido, encontra-se como
residente citadina uma população tipi-
camente operária que utiliza o município
como dormitório e foi atraída para o local
em função dos baixos custos dos lotes
destinados às residências. Essa popula-
ção nova no município (caráter urbano a
partir da segunda metade do século XX),
aparentemente não possui vínculos afeti-
vos e identitários com a cidade, e utilizam-
-na apenas como moradia.
3 - O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO
TRANSMISSOR DA HISTÓRIA
Para se compreender a importân-
cia do patrimônio arquitetônico histórico
situado na cidade de Itaboraí, primeiro
faz-se necessário visitar um conceito de
pólis que é balizador para este estudo. Bo-
bbio (1999, p. 949) a dene como o que se
entende por uma cidade autônoma e so-
berana, cujo quadro institucional é carac-
terizado por uma ou várias magistraturas,
por um conselho e por uma assembléia de
cidadãos. Esta delimitação restringe-se
ao campo administrativo. Ampliando este
conceito, podemos armar que a pólis é
o espaço que concentra as manifestações
artísticas, dentre elas a arquitetura. Nesse
sentido a cidade se apresenta constituída
por diversas formações; entenda-se por
formações as manifestações artísticas, os
ecossistemas e os variados estilos arqui-
tetônicos que permitem ao homem esta-
belecer residência.
As edicações que resistiram ao
tempo, no caso deste estudo as que pos-
suem mais de um século, constituem um
patrimônio útil para a coletividade conhe-
cer o espaço que as abrigam.
Convém entender o signicado de
patrimônio. Para Muniz Sodré, a palavra
patrimônio possui o signicado etimológi-
co de herança: “É um bem ou conjunto de
bens que se recebe do pai (pater, patri).
Mas é também uma metáfora para o le-
gado de uma memória coletiva, de algo
culturalmente comum a um grupo” (1988,
p. 50, grifo do autor). Este signicado nos
permite armar que o patrimônio arquite-
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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tônico pode se congurar como um ele-
mento transmissor da história do espaço
para um grupo especíco. Pode, assim,
o patrimônio arquitetônico ser o encarre-
gado pela transmissão da memória de um
povo, fazendo essa memória presente e
ativa no cotidiano dos indivíduos. As obras
componentes do patrimônio arquitetônico
que outrora, de forma isolada, represen-
tavam os estilos em voga à época de sua
construção, hoje são úteis do ponto de
vista informativo e contribuem para a sin-
gularização do espaço de existência, con-
trapondo-se à arquitetura contemporânea,
cuja linearidade estética aproxima todos
os espaços visualmente.
A arquitetura modernista, em sua qua-
lidade de estilo internacional, produ-
ziu, por meio da feição arquitetural e
urbanística de bairros e cidades, uma
dessemantização dos territórios ver-
naculares e a redução de todos eles
a um mesmo denominador comum ge-
rado não por um comportamento dire-
to de grupos e indivíduos, vindos de
baixo, mas por um código arquitetôni-
co abstrato, elitista, com pretensões
universais (COELHO, 1999, p. 355).
Convém destacar que a perma-
nência da obra arquitetônica histórica
não deve ser confundida com uma ope-
ração de guarda ou simples retirada de
circulação, a obra com características
imutáveis deve ser inserida no patrimô-
nio; porém, deverá permanecer com uti-
lidade para a população, para que esta
possa auferir os conhecimentos nelas
incrustados e deleitar-se nos aspectos
estéticos de suas construções. Deve-
mos salientar que seu poder de instru-
ção somente é expresso de forma com-
pleta quando os indivíduos estabelecem
um contato direto com as obras. Uma
cidade detentora de exemplares arqui-
tetônicos representativos de determi-
nados períodos da História da Arte não
pode estabelecer políticas de preserva-
ção que primem pela guarda. As obras
devem ser preservadas; mas, sem ex-
cluir a população local do contato direto
com as mesmas, pois o uso determina a
ampliação do conhecimento e alimenta
a identidade.
O patrimônio deverá sempre ser
percebido como parte de nosso presente
contínuo, alimentando culturalmente as
sociedades onde se encontram localiza-
dos, para que seus membros possam tê-
-los como aliados na formação de suas
identidades.
A cidade possui o poder de narrar
a história local. Os fatos exteriorizados
por ela, se aproveitados devidamente,
constituem-se em partes estruturais da
identidade. Os exemplares do patrimônio
arquitetônico presentes na cidade são re-
latos históricos, que permitem a fruição e
o conhecimento, pois, “desde o início, a
arquitetura foi o protótipo de uma obra de
arte cuja recepção se dá coletivamente,
segundo o critério da dispersão. As leis de
sua recepção são extremamente instruti-
vas” (BENJAMIN, 1994, p. 193). A arquite-
tura atende duplamente às necessidades
para formação e/ou desenvolvimento da
identidade, sua recepção é coletiva, e sua
linguagem prima pela instrução.
A cidade é um campo construído
por variadas personalidades, sejam elas
representadas na arquitetura, linguagem
artística precípua para a sua existência, ou
nas diferentes manifestações artísticas e
sociais que a compõem. Destarte, convém
à sociedade estabelecer mecanismos que
possibilitem uma integração entre ambas,
com a nalidade de trazer à luz a histó-
ria da formação espacial da cidade, jun-
tamente com as nuances estéticas desta
e das formas artísticas que nela existem.
Essa integração possui o poder de formar
cidadãos conscientes da história de seu
local de moradia; contribuindo assim, para
enriquecer a identidade do grupo, e/ou in-
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dividual, tornando o indivíduo mais seguro
frente às culturas alheias ao seu espaço.
Podemos dizer que a história da
cidade de Itaboraí é contada através das
edicações nela existentes. Os estilos ar-
quitetônicos colocam o morador ou sim-
ples transeunte em contato com as minú-
cias da formação do espaço, e, através
desta experiência que propicia a fruição,
o espectador passa a conhecer a socie-
dade que precedeu a atual, pois a arqui-
tetura ensina. Entendemos que o poder
de transmissão de conhecimento intrín-
seco à arquitetura torna tal espaço um
elemento de elevado poder de atuação
para a formação ou desenvolvimento da
identidade cultural dos que o vivenciam.
O patrimônio arquitetônico não deve ser
preservado somente por suas caracterís-
ticas estéticas, ele deve ser atuante no
cotidiano a ponto de permitir que os in-
divíduos extraiam dele os conhecimentos
necessários para enriquecer suas vidas e
suas culturas, que, “uma vez termina-
do o edifício ou o complexo arquitetônico
torna-se, então, um meio ambiente ca-
paz de afetar as pessoas que nele vivem.
O espaço construído pelo homem pode
aperfeiçoar a sensação e a percepção
humana” (TUAM, 1983, p.114). O aperfei-
çoamento ao qual o autor se refere é útil
aos habitantes citadinos para o conheci-
mento do espaço urbano e das relações
sociais existentes ou que existiram quan-
do da sua construção. O espaço arquite-
tônico é o testemunho da estrutura social
que nele habitou e pode contribuir para
as sucessivas gerações alicerçarem suas
identidades a partir dos conhecimentos
que dele emanam.
O uso do espaço patrimonial arqui-
tetônico se constitui como uma das formas
de aproximar os moradores da cidade, da
história local; fazendo assim que a mesma
seja uma fonte perene de conhecimentos
aos quais os indivíduos possam vincular
suas identidades. As obras arquitetônicas
individuais que constituem a cidade, quan-
do amalgamadas, conseguem exteriorizar
as nuances da formação do espaço urba-
no. Devemos enfatizar que a preservação
do patrimônio arquitetônico deve aconte-
cer pelo uso, para que os indivíduos pos-
sam usufruir suas potencialidades de for-
ma plena; pois, as obras componentes do
acervo patrimonial possuem o poder não
de instruir mas, de polir o indivíduo; “o
meio ambiente construído, como a lingua-
gem, tem o poder de denir e aperfeiçoar
a sensibilidade. Pode aguçar e ampliar a
consciência. Sem a arquitetura, os senti-
mentos sobre o espaço permanecem di-
fusos e fugazes” (TUAM, 1983, p. 119). O
espaço arquitetônico permite ao indivíduo
xar-se e desenvolver seus sentimentos
nos núcleos urbanos. As obras arquitetô-
nicas contidas na cidade, quando somen-
te contempladas, se conguram como ele-
mentos que auxiliam no desenvolvimento
da sensibilidade humana; aliás, este é um
dos papéis da arte. Porém, se a relação
que o indivíduo mantiver com elas for de
proximidade, utilizando-se não de seu
conteúdo estético, mas, também histórico,
as contribuições por ele auferidas, ligar-
-se-ão à sua identidade, e, este terá no
espaço arquitetônico um refúgio contra as
culturas veiculadas na mídia.
A arquitetura para Tuam é a exte-
riorização do conhecimento humano a
serviço da própria espécie e que permite
a integração da coletividade:
O espaço arquitetônico – uma casa,
um templo ou uma cidade – é um mi-
crocosmo que possui uma clareza que
falta aos aspectos naturais. A arquite-
tura é uma continuação do esforço hu-
mano para aumentar o conhecimento
através da criação de um mundo tan-
gível que articula as experiências, tan-
to as sentidas profundamente como
aquelas que podem ser verbalizadas,
tanto as individuais como as coletivas
(1983, p. 112).
31
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Percebemos assim, que os espa-
ços arquitetônicos contidos na cidade de
Itaboraí possuem dupla função: são obras
de arte que permitem a fruição e também
depositários de conhecimentos intrínsecos
à história local. Dessa forma os indivíduos
que deles se aproximarem poderão formar
ou desenvolver suas identidades a partir
da história que neles se faz presente.
4 - TERRITÓRIOS FORMADORES DE
IDENTIDADE CULTURAL
O patrimônio arquitetônico consti-
tuído por suas características instrutivas
que permitem aos indivíduos que expe-
rienciá-lo conhecer a história local, possui
elementos intrínsecos que possibilitam a
formação de territórios e de identidades
culturais.
O território é um espaço social
detentor de devida especicidade que o
distingue dos outros espaços e da socie-
dade de um modo geral (SODRÉ, 1988,
p. 50). A partir desta denição podemos
analisar o patrimônio arquitetônico histó-
rico como um território para os morado-
res da cidade de Itaboraí, desde que eles
se aproximem das obras históricas com o
objetivo de extrair conhecimentos delas.
A especicidade que atua como elemento
denidor do território pode estar na paisa-
gem, nas manifestações artísticas exis-
tentes na cidade, ou em seu patrimônio
arquitetônico.
Muniz Sodré nos diz que “na ver-
dade, o patrimônio, qualquer patrimô-
nio, pode mesmo ser concebido como
um território (1988, p.50, grifo do au-
tor). Possuir o patrimônio arquitetônico
atuante na formação do território permi-
te a utilização dele como fonte de infor-
mação histórica para as sucessivas ge-
rações que habitam a cidade. Surge daí
a necessidade de preservar os núcleos
que abrigam tal patrimônio; mas, “essa
ação não pode ser apenas defensiva ou
inibidora, pois está claro que os tecidos
antigos não podem ser conservados se
tiverem perdido todas as suas funções
e, cortados do dinamismo urbano, cons-
tituam uma espécie de temenos envol-
vido pela desordem e pelo barulho da
cidade moderna” (ARGAN, 1995, p. 77-
78, grifo do autor).
Conservar os núcleos antigos equi-
vale a conferir-lhes a função de alimentar
a sociedade local com a substância histó-
rica intrínseca à arquitetura e ao seu poder
de informação. Entendemos que a partir
do conhecimento da formação espacial, o
sujeito possa estabelecer e se aproximar
de seu território mantendo os fatos históri-
cos como aliados.
Conforme já salientado, a popu-
lação de Itaboraí em regra não é origi-
nária do município. O uso do patrimônio
arquitetônico para conhecer a história da
cidade se mostra como uma alternativa
para ela delimitar o território no novo es-
paço de moradia.
A utilização de estilos arquitetôni-
cos que expressem linguagens estéticas
representativas de períodos históricos
pode atuar na sociedade como um cam-
po, onde o indivíduo possa delimitar o seu
território. Na cidade contemporânea pre-
domina uma linguagem arquitetônica pla-
nicada, cuja diferenciação dos territórios
se torna obliterada diante de uma fala que
assume ares globalizantes.
Devemos então salientar a impor-
tância dos núcleos antigos nas cidades, e
o caráter destes enquanto obras de arte
que permitem ao indivíduo associar a
formação e/ou, desenvolvimento de sua
identidade possuindo como alicerce a his-
tória incrustada nos exemplares arquitetô-
nicos representantes de períodos históri-
cos signicativos do espaço, bem como as
características estéticas de tais prédios.
32
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Destarte, o patrimônio arquitetô-
nico se apresenta como uma alternativa
para que o indivíduo possa encontrar-se
na cidade e estabelecer o seu território.
A partir do conceito de identidade
cultural explicitado por Teixeira Coelho
que adotamos, aponta para “um sistema
de representação [...] das relações entre
os indivíduos e os grupos e entre estes e
seu território de reprodução e produção,
seu meio, seu espaço e seu tempo” (1999,
p. 201), vericamos que o patrimônio ar-
quitetônico possui características que per-
mitem aos indivíduos formarem, e/ou, de-
senvolverem suas identidades.
Com o advento da globalização e
o desenvolvimento dos meios de comu-
nicação de massa, as distâncias entre as
diversas partes do mundo foram “reduzi-
das”. O indivíduo contemporâneo pode
acessar um amplo leque de culturas sem
ao menos necessitar sair de casa. Este
fenômeno pode fragmentar intimamente
o indivíduo que era visto como um sujei-
to unicado. As antigas identidades que
estabilizavam os indivíduos e o mundo
entraram em declínio e abriram caminho
para uma “crise de identidade” que “é vista
como parte de um processo mais amplo
de mudança, que está deslocando as es-
truturas e processos centrais das socie-
dades modernas e abalando os quadros
de referência que davam aos indivíduos
uma ancoragem estável no mundo social”
(HALL, 2001, p. 07).
Diante desta situação, o patrimô-
nio arquitetônico na medida em que se
constitua como um território para os ha-
bitantes da cidade de Itaboraí pode in-
fluenciar em suas identidades trazendo
um sentimento de segurança, enquan-
to múltiplas culturas povoam o espaço
contemporâneo veiculadas na mídia.
Stuart Hall assinala a concepção “inte-
rativa” da identidade e do eu, enfatizan-
do que de acordo com esta, a identida-
de se forma a partir da “interação” entre
o eu e a sociedade (2001, p. 11). Assim,
estando a identidade sempre “sendo
formada” associar tal processo ao patri-
mônio arquitetônico, possibilita ao indi-
víduo vivenciá-lo como fonte e alimento
para essa que é balizadora das condu-
tas sociais dos homens.
Podemos dizer que a identidade se
forma com a herança cultural e através da
experiência que o indivíduo possui com
o espaço. A experiência, elemento chave
entre o indivíduo e a obra arquitetônica,
ou entre este e o espaço, “ocorre conti-
nuamente, porque a interação da criatura
viva com as condições que a rodeiam está
implicada no próprio processo da vida”
(DEWEY, 1958, p. 89).
Para o indivíduo que se encon-
tra imerso em um tempo de identidades
cambiantes, o patrimônio arquitetônico
com seus conhecimentos intrínsecos per-
mite formar um aparato de defesa frente
às frenéticas culturas alheias que lhe são
por assim dizer, impostas. Nessa propos-
ta ele deve ser vivenciado como o alicer-
ce identitário, pois, “o sujeito ainda tem
um núcleo ou essência interior que é o
“eu real”, mas este é formado e modica-
do num diálogo contínuo com os mundos
culturais “exteriores” e as identidades que
esses mundos oferecem” (HALL, 2001,
p. 11). A mutabilidade é uma caracterís-
tica desse “eu real”, mas, se ele sofre as
inuências das identidades que lhe são
alheias, existe assim, a possibilidade de
substituí-las pela história que o patrimô-
nio arquitetônico traz consigo. Ou seja, o
patrimônio arquitetônico oferece ao indi-
víduo, ampla diversidade de elementos
para a estruturação de sua identidade
sem que outras culturas sejam necessá-
rias para isso. Mesmo assim, não importa
a relevância dessas culturas; o indivíduo
ao experienciar o seu mundo social, trava
um contato direto com elas, e, estas ten-
dem a modicar o seu “eu real”.
33
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Se hoje encontramos na sociedade
indivíduos com identidades cambiantes,
ao contrário do passado, quando estas se
mostravam perenes; convêm então bus-
carmos elementos de valor para que tais
indivíduos possam associar suas identida-
des; entendemos que o patrimônio arquite-
tônico, reúne uma gama de valores que se
forem utilizados podem atuar estruturan-
do um território com conseqüente forma-
ção de identidade; além de proporcionar o
gozo estético dos que o vivenciam. Visua-
lizar o patrimônio arquitetônico como meio
de formação identitária, abre portas para
a cultura local se tornar evidente, opondo-
-se àquelas que os indivíduos recebem
através da mídia. Admitindo-se a identida-
de contemporânea como cambiante, per-
cebemos que o indivíduo é suscetível às
mais diversas identicações, seja com a
cultura local ou aquela innitamente remo-
ta que ele recebe pelo televisor.
O patrimônio arquitetônico sendo
um território pode contribuir para que
os indivíduos não percam seus núcle-
os identitários; lugar de existência da
tradição oral, da religião e dos compor-
tamentos coletivos formalizados (COE-
LHO, 1999, p. 201). Não podemos ar-
mar que esses elementos componentes
da identidade permanecerão intactos
diante das identidades e culturas com as
quais o indivíduo entra freqüentemente
em contato; embora sejam eles que me-
nos se desbastam através dos tempos
(COELHO, 1999, p. 201). Mas, existe a
possibilidade desses elementos frearem
o impacto dos mundos externos com um
território; já que este é um espaço social
que se diferencia dos demais, pelas re-
lações e sentimentos ali depositados.
A contribuição citadina para a for-
mação da identidade ocorre no momento
em que o indivíduo passa a reconhecer
o seu território; ou seja, quando este,
para o indivíduo se apresenta distinto
dos demais e dos outros espaços, pela
existência de elementos íntimos ao in-
divíduo, e/ou, pelas características do
espaço arquiteturado. Dessa forma, a
história revelada pela linguagem arquite-
tônica existente no espaço urbano apa-
rece como um dado que eleva o valor do
espaço de formação identitária. O indiví-
duo que possui sua identidade moldada
nesse espaço é antes de tudo conscien-
te da história intrínseca ao local e a do
seu povo, o que transforma esse espaço
em um lugar dotado de signicação.
5 - RESISTÊNCIA CULTURAL NA
NARRATIVA ARQUITETÔNICA
Diante dos contatos freqüentes
com outras culturas vivenciadas através
dos veículos midiáticos os indivíduos ten-
dem a fragmentar suas identidades so-
frendo inuências constantes, pois elas
não são estáticas.
Estabelecer mecanismos que lhes
possibilitem resistir culturalmente é algo
necessário para que não sofram as cons-
tantes identicações culturais que são
transitórias e responsáveis pela produção
de ausências de identidades culturais.
Convém buscar em Teixeira Co-
elho uma definição para resistência
cultural: “consideram-se de resistência
cultural os modos culturais de popula-
ções subjugadas politicamente, cultu-
ralmente ou pela força, e por intermédio
dos quais essas comunidades cultuam
suas tradições e sua identidade” (1999,
p.337, grifo do autor).
Dialogando com este conceito,
podemos armar que o patrimônio ar-
quitetônico por suas características es-
téticas e em razão de possuir a histó-
ria do espaço, pode se constituir como
elemento de resistência cultural para as
pessoas que venham a utilizá-lo manten-
do com ele uma experiência de fruição e
34
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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de aprendizagem que possa alimentar a
identidade cultural.
No caso dos moradores de Itaboraí,
o patrimônio arquitetônico para eles, além
de apresentar a possibilidade de ser um
conjunto de resistência cultural, pode se
constituir como um elemento de formação
da identidade cultural, pois são em grande
parte imigrantes que necessitam conhecer
do ponto de vista histórico o espaço que
utilizam para residir.
É tema recorrente nos debates,
que o espaço, com o advento da glo-
balização, se tornou pequeno, quando
relacionado ao tempo necessário para
percorrê-lo de forma sonora e imagética;
os sistemas de comunicação permitem
ao homem estabelecer “contato” com os
mais remotos espaços e povos, transfor-
mando a superfície terrestre em um cam-
po análogo ao destinado à sua moradia
(HARVEY, 2001, passim). Culturas e há-
bitos antes restritos a determinados gru-
pos humanos, hoje estão acessíveis em
lojas, restaurantes e fundamentalmente
na mídia, que se ocupa em exteriorizar
as formas de vida e relações dos vários
pontos do planeta. Destarte, a identida-
de por não ser xa, se torna cambiante
com as diversas culturas que são postas
em contato com o sujeito pós-moderno.
Este mote do importante trabalho de
Hall, na esteira dos cultural studies, as-
sinala, basicamente, o descentramento,
o deslocamento e a fragmentação da
identidade (HALL, 2001, p.8). Touraine
ao fazer a leitura de Giddens, alavancou
instigante discussão entre a questão do
espaço, da globalização e da realização
do indivíduo. Mostra que as ssuras e
descentralizações identitárias permitem
acentuar a diferença entre as gerações
ocorridas num mesmo território. (TOU-
RAINE, 1994, p.311-312).
O indivíduo que antes vivenciava
sua cultura de forma plena, com sua iden-
tidade formada por esta; agora se depara
com uma multiplicidade cultural originá-
ria dos mais remotos espaços mundiais
que chega a sua residência diariamente
através de satélites que se propõem a in-
tegrar as culturas e as autonomias nacio-
nais, ou seja, uni-las nesse processo de
tendência global. Destarte, a formação
do território ca sem elementos balizado-
res; a arquitetura, assim como a cultura
passa a seguir os paradigmas mundiais.
A identidade é facilmente substituída pela
identicação pois: “em situações de des-
territorialização e atemporalidade, pode-
-se experimentar sensações e emoções
as mais distintas sem que o indivíduo
tenha de empenhar-se para tanto, física
ou intelectualmente” (COELHO, 1999, p.
185, grifo do autor).
O patrimônio arquitetônico visua-
lizado sob os variados aspectos que lhe
são inerentes se apresenta como uma
alternativa para o sujeito pós-moderno
associar sua identidade e ser menos sus-
cetível aos imperativos culturais (capitalis-
tas) veiculados cotidianamente, aos quais
não pode furtar-se; mas, resistir, por apre-
sentar inuências identitárias vinculadas
ao seu espaço natal e ou, de moradia. Os
exemplares que compõem o acervo pa-
trimonial com suas histórias e estéticas
associadas à formação da identidade do
sujeito que o vivencia, passa a ser um ele-
mento estruturador para a conguração
do lugar que este necessita para sentir-se
seguro diante das acelerações de tempo
e espaciais contemporâneas. Trata-se de
um problema complexo, e dotado de forte
marca coletiva diante do que Castells de-
nomina de “novas condições” ditadas pela
globalização. Ou como acentuou o autor:
As comunidades de resistência de-
fendem seu espaço e seus lugares
diante da lógica estrutural desprovi-
da de lugar no espaço de uxos que
caracterizam a dominação social na
era da informação. Elas reivindicam
35
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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sua memória histórica e/ou defendem
a permanência de seus valores con-
tra a dissolução da história no tempo
intemporal e a celebração do efême-
ro pela cultura da virtualidade real
(2000, P.422).
Contrapondo-se à efemeridade das
culturas veiculadas pela mídia podemos
armar que os prédios erguidos com as
características de escolas estéticas inscri-
tas na História da Arte fornecem informa-
ções contínuas sobre as condições sociais
durante a formação da história do espaço.
Nessa perspectiva eles contribuem para a
formação de um território que devidamen-
te estruturado assume uma perenidade
que se opõe à transitoriedade das identi-
cações culturais veiculadas na mídia.
O patrimônio arquitetônico, que traz
como característica intrínseca, um legado
de história e conhecimentos acerca do
povo e do local onde está inserido revela-
-se uma forma de resistência, às cada vez
mais freqüentes, identicações culturais.
Assim, o núcleo antigo da cidade
que em regra abriga os prédios histó-
ricos não é histórico somente por defi-
nição, os prédios que o compõe, e que
mesmo isolados em uma área de pre-
servação, trazem incrustados em seus
corpos a história da formação espacial
que culminou na cidade que ora é obri-
gada a retirá-los do circuito utilitário e
os insere em seus bens tombados. O
núcleo histórico possui o poder de infor-
mar aos atuais moradores os aspectos
relacionados à história da população
que se ocupou de erguê-lo e inscreveu
nele os seus dados de ocupação do es-
paço bem como as relações públicas e
privadas existentes à época.
Importa destacar, que o núcleo an-
tigo da cidade deve ser retirado das listas
de possíveis supressões. A partir deste é
possível conhecer a história da formação
espacial contemporânea, que tende a pri-
vilegiar a conguração urbana mutante. A
história relatada pela parte antiga da cida-
de gera segurança aos moradores para
que possam empreender as constantes
mudanças que modelam os setores onde
bruscas alterações são permitidas. Assim,
“a cidade moderna não pode se agregar
e funcionar a não ser à custa, pelo me-
nos em parte, da cidade antiga” (ARGAN,
1995, p. 77). O patrimônio arquitetônico
se constitui então, em um conjunto de co-
nhecimentos e tradições, cuja nalidade é
manter os indivíduos em estado de harmo-
nia com o espaço e, também lhes permitir
a determinação de seus territórios, para
que suas identidades sejam constante-
mente alimentadas pelo legado de valores
culturais, que resiste às efêmeras identi-
cações sugeridas ou mesmo impostas
pela globalização.
Inserido no conceito de patrimônio
cultural, o patrimônio arquitetônico dos
conjuntos urbanos, erguidos ao longo de
séculos, nos revela o tempo capturado na
cidade. Ele é o testemunho dos estilos es-
téticos que existiram no local e, mas que
isso, traz em seu corpo o poder de transmi-
tir a história local; fator de relevância para
a identidade dos moradores. O conheci-
mento do patrimônio cultural não pode ser
percebido pelos indivíduos como passa-
tempo, há que lhes mostrar a força que ele
possui para a estruturação da identidade.
Neste ponto as práticas existentes pouco
tocaram: “as políticas culturais patrimo-
nialistas lidaram, na ampla maioria, com a
ideia da descoberta de uma identidade a
ser preservada ou restaurada e pouco (ou
nada) aderiram ao conceito oposto, o da
invenção de uma identidade” (COELHO,
1999, p. 288, grifo do autor).
Essa invenção da identidade pode
estar associada ao patrimônio. Se antes
todos os caminhos levavam a um pro-
cesso de preservação e restauração da
identidade; ora o patrimônio se apresenta
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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como um conjunto artístico que além de
permitir a fruição e estruturar territórios,
possibilita aos órgãos patrimonialistas
empreenderem políticas junto aos mora-
dores, que visem à criação de uma iden-
tidade diretamente ligada a ele. De início
dois pontos apresentam-se como positi-
vos e aliados de tais órgãos, são eles: a
estética e a história. A primeira por reve-
lar os aspectos da formação espacial, já
a segunda por elucidar as características
do povo e das tradições locais.
O que se mostra relevante na
ideia de descoberta da identidade é que
a mesma “traz consigo uma noção-re-
boque, a da imutabilidade ou, em todo
caso, permanência da obra: a identida-
de surge como algo, se não perene, pelo
menos constante durante largos inter-
valos, o que justica a ação patrimonia-
lista” (COELHO, 1999, p. 288). Castells
considera que identidade é “um proces-
so de construção de signicado com
base em um atributo cultural, ou ainda
em um conjunto de atributos culturais
inter-relacionados o(s) qual(is) prevale-
cem sobre outras fontes de signicados”
(CASTELLS, 1999, p.22).
Dessa forma, percebemos o patri-
mônio arquitetônico como um espaço de
resistência às identicações freqüentes
na sociedade contemporânea. Ele pos-
sibilita ao indivíduo estruturar seu terri-
tório, que é condição para a existência
de identidade cultural, elemento de base
para o desenvolvimento de um povo.
CONCLUSÃO
O presente trabalho tem como ob-
jetivo principal investigar as possibilida-
des inerentes ao patrimônio arquitetôni-
co histórico da cidade de Itaboraí para
que ele possa se congurar como um
elemento de resistência cultural para os
que o experienciam.
Vericamos que a arquitetura possui atri-
butos que permitem a ela ensinar. Os co-
nhecimentos nela existentes revelam a
história do espaço que a abriga e a histó-
ria do povo que o ocupou. Para os habi-
tantes que passam a conhecer a história
da cidade por meio dos prédios históricos,
pode-se admitir que tais exemplares ar-
quitetônicos se constituem como instru-
mentos didáticos para a manutenção da
identidade cultural deles.
Assim, o patrimônio arquitetônico
pode ser um lugar único, dotado de uma
característica peculiar que alimenta a
identidade dos que o vivenciam. Para os
moradores de Itaboraí que em regra são
oriundos de outros estados brasileiros,
não possuindo vínculos afetivos com o es-
paço e tendo ausência de conhecimento
da história da cidade, importa destacar,
que a narrativa das obras arquitetônicas
históricas é um relevante elemento de irri-
gação da identidade cultural. A identidade
por não ser estática, do nosso ponto de
vista, necessita de acréscimos constan-
tes que tornem o indivíduo seguro diante
das acelerações cotidianas. O patrimônio
arquitetônico uma vez estruturado como
um lugar, passa a alimentar a identidade
cultural dos que o utilizam e a frear as fu-
gazes identicações culturais.
A resistência cultural está direta-
mente vinculada à existência de um modo
cultural de um povo que o utiliza para se
manter coeso e harmônico diante das cul-
turas que lhe são impostas. A estética do
patrimônio arquitetônico e a história nele
contida podem ser elementos de resis-
tência em razão de permitir a fruição e a
constante aquisição de conhecimentos
históricos acerca de um espaço. No caso
do patrimônio arquitetônico encontrado na
cidade de Itaboraí, pode-se dizer que nele
a história da cidade está gravada. Os pré-
dios históricos foram construídos ao longo
dos séculos, XVII, XVIII e XIX, apresen-
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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tando-se como testemunhos das relações
sociais e políticas que permitem compre-
ender a atual conguração da cidade.
Por m, destacamos que na con-
temporaneidade, faz-se necessário haver
um mecanismo de resistência cultural para
os indivíduos que mantêm contato ininter-
rupto com diversas culturas, acessíveis
cotidianamente através dos veículos midi-
áticos que podem gerar as identicações
culturais que são transitórias em oposi-
ção à identidade que tende a ser perene.
Nesse sentido, o patrimônio arquitetônico
exteriorizando estética e história deve ser
usado para minimizar as identicações e
enriquecer a identidade cultural.
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experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.
1
Mestre em Ciência da Arte – Universidade Federal Flu-
minense/UFF. Bacharel em Produção Cultural UFF.
Bacharel em Direito Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Produtor cultural da Universidade Federal do
Rio de Janeiro
Contato:
Luiz Carlos Rocha de Oliveira
- luizrochaoli@hotmail.com
Artigo recebido em maio de 2012
Artigo aprovado em julho de 2012
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O alienígena e o embate entre Veja versus MEC*
El alienígena y la pelea entre la revista Veja
y el Ministerio de Educación de Brasil (MEC)
The alien and the clash between Veja
and the Brazilian Ministry of Education (MEC)
Adriana Santiago Dantas**
Resumo:
Este ensaio tem por objetivo demonstrar o embate ocorrido na mídia
brasileira por causa da distribuição pelo Ministério da Educação
(MEC) de um livro didático para educação de jovens e adultos. Como
representante midiática contrária à proposta do livro foi escolhida uma
edição da revista Veja. Para análise, foi realizada uma contextualização
da Sociolinguística a partir da metáfora do alienígena, representando
o argumento do MEC; e a explicitação do argumento da revista Veja
que teve como pano de fundo a defesa da “cultura”. A partir desta
análise, foram utilizados os conceitos da Ordem do Discurso de
Foucault para concluir que o embate representou uma disputa pela
“vontade de verdade”, segundo conceitua o autor.
Palavras chave:
Sociolinguística
Foucault
MEC
Veja
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este ensayo tiene por objetivo demostrar la pelea ocurrida en la media
brasileña a causa de la distribución por el Ministerio de Educación
(MEC) de un libro didáctico para la educación de jóvenes y adultos.
Como representante mediática contraria a la propuesta del libro fue
elegida una edición de la revista Veja. Para el análisis, fue realizada
una contextualización de la Sociolingüística a base de la metáfora del
alienígena, representando el argumento del MEC; y la explicitación del
argumento de la revista Veja, el que tuvo como trasfondo la defensa de
la “cultura”. A partir de esto, fueron utilizados los conceptos del Orden
del Discurso de Foucault para concluir que la pelea representó una
disputa por la “voluntad de verdad”, según conceptúa el autor.
Abstract:
This essay aims to demonstrate the conict that occurred in the
Brazilian media as a result of the distribution of a textbook for youth
and adult education by the Ministry of Education (MEC). An issue of
Veja magazine was chosen to represent the opposition to the book
in the media. For the analysis, a sociolinguistic contextualization was
carried out based on the alien metaphor, representing the argument of
MEC; and the clarication of Veja’s argument which had a backdrop
in defense of “culture”. From this analysis, the concepts of Foucault’s
Order of Discourse were utilized to conclude that the clash represented
a battle over the “will of truth”, according to the author.
Palabras clave:
Sociolingüística
Foucault
MEC
Veja
Keywords:
Sociolinguistics
Foucault
MEC
Veja
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Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O alienígena
e o embate entre Veja versus MEC
O livro didático Por uma vida me-
lhor distribuído pelo Ministério da Educa-
ção (MEC) causou uma grande polêmica na
sociedade a partir da mídia brasileira, por
ter como referencial teórico estudos da So-
ciolinguística. Este ensaio tem por objetivo
discutir um momento histórico na educação
brasileira à luz dos Estudos Culturais usan-
do a análise do discurso a partir de Michel
Foucault. Pretende-se demonstrar ao longo
do texto como essa polêmica é uma dispu-
ta pela “vontade de verdade”, conceito fou-
caultiano, e também como se dá essa dis-
puta. Para representar parte da polêmica,
foi escolhida uma edição da revista Veja por
sua abrangência nacional como “formadora
de opinião”. O artigo está dividido nas se-
guintes partes: 1. o alienígena, uma metáfo-
ra sobre os estudos linguísticos para discutir
a questão do MEC versus Veja; 2. o MEC,
comentário sobre o livro e seu referencial
teórico; 3. a Veja, o discurso da revista so-
bre a polêmica; 4. Nos Estudos Culturais, a
análise a partir da abordagem dos Estudos
Culturais e 5. Considerações Finais.
1 - O ALIENÍGENA
Suponha que um alienígena espe-
cialista em língua aterrissasse na Terra
sem saber nada sobre como os terráque-
os se organizam em sociedade. Especi-
camente, sua nave espacial chega ao Bra-
sil. Esse alienígena entende que língua é
um código convencional de comunicação
que os terráqueos usam para sua intera-
ção social. Com todos os seus recursos
tecnológicos, ele descobre que dentre
os muitos idiomas falados no Brasil, o de
maior incidência é o português brasileiro.
Em sua análise, ele percebe que há varia-
ções em todo o território brasileiro que ele
previamente delimitou para a sua análise.
Descobriu alguns livros que normatizavam
uma forma de falar da qual nenhum falan-
te se apropriava totalmente. Havia alguns
poucos que se aproximavam daqueles li-
vros, mas ele decidiu desconsiderar esse
fato, visto que a maioria dos brasileiros uti-
lizavam uma outra variação da língua bra-
sileira. Por exemplo, o alienígena constata
que sintaticamente a maioria dos falantes
usa o plural apenas no artigo e não no
substantivo e no verbo que o acompanha:
“os menino canta bem”. E um número me-
nor de brasileiros fala: “os meninos can-
tam bem”. E o curioso é que as duas fra-
ses tinham o mesmo sentido. Por essas e
outras análises, ele resolve usar a forma
que a maioria dos brasileiros usa para se
comunicar e acha até mais interessante e
se pergunta: por que esses poucos colo-
cam o plural no substantivo e verbo se o
artigo dene isso? Assim, ele termina
sua análise com essa pergunta em mente.
Como falantes do português, sabe-
mos que a lógica do alienígena não funcio-
naria na sociedade se ele desejasse usar
uma variação da língua mais aceita social-
mente. Neste ponto, não indico como lógi-
ca o uso da maior variante linguística, mas
indico a lógica de pensar que a maneira de
falar da maioria deveria ser a mais acei-
ta. Essa aceitação é tão estranha social-
mente que para um leigo em Linguística
entendê-la é preciso trazer esta metáfora
esdrúxula, para saber em que local o uso
dessa variação faz algum sentido.
O pai da Linguística Ferdinad Saus-
sure
1
instaurou uma nova abordagem para
se estudar a língua ao descrever suas es-
truturas internas, a sincronia, e não apenas
sua evolução ao longo do tempo, a diacro-
nia, como eram os estudos sobre a Língua
desde então. Fundou-se assim o Estrutu-
ralismo que historicamente se situa no Mo-
dernismo quando as Ciências Humanas se
propuseram a produzir conhecimento cien-
tíco com ferramentas parecidas das Ciên-
cias Naturais. Dentre as muitas críticas que
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a abordagem da Linguística Estruturalista
recebeu dos pós-modernos e pós-estrutu-
ralistas, a metáfora do alienígena poderia
representar uma delas. Isto é, o alienígena
descreve a estrutura da língua sem con-
siderar outros aspectos como a situação
social, as circunstâncias em que ocorrem
os enunciados, dentre outros. No entanto,
esta metáfora pode servir também para
um aspecto positivo na discussão aqui pro-
posta: o do distanciamento social e político
para entender o funcionamento da língua.
A metáfora do alienígena tem esta função,
representaria a “neutralidade” do funciona-
mento da língua a partir de sua estrutura
interna representada pelo Estruturalismo.
Esse entendimento é importante, pois a
partir dessa abordagem é que foi possível,
mais tarde, explicitar que os julgamentos
de valor de certo e errado nos estudos da
linguagem eram de outra ordem e não es-
trutural. Parte dessa denúncia se dá nos
estudos da Sociolinguística. Armo, assim,
que o estruturalismo e pós-estruturalismo
não possuem apenas uma relação dialéti-
ca, mas também de complementaridade.
Foucault (2009), de escola pós-es-
truturalista, arma que determinados
procedimentos no discurso que devem
ser considerados, como o de exclusão.
Dentro da exclusão, o autor indica seus
desdobramentos como a interdição
2
, que
dita que nem tudo pode ser dito. Como no
nosso caso, a aceitação da variação lin-
guística da maioria só pode ser dita por
um alienígena. O autor também desdobra
a interdição pela vontade de verdade, que
tem por trás de si o desejo e o poder. Essa
explicação foucaultiana está profunda-
mente ligada com o susto social que esse
alienígena teria ao criar para si essa lógica
para o português que será melhor explici-
tado ao longo do ensaio.
Assim, os conceitos desenvolvidos
por Foucault serão usados como referen-
cial teórico para concluir a argumentação a
respeito da polêmica que envolveu o livro
didático distribuído pelo MEC. Parte deste
livro aborda o ensino da Língua Portugue-
sa a partir do ponto de vista da Sociolin-
guística, que parte do conhecimento cien-
tíco estrutural da Língua para explicitar os
desdobramentos sociais sofridos pelas va-
riações linguísticas do português brasileiro.
2 - O MEC
O livro didático Por uma vida me-
lhor destinado ao Ensino de Jovens e
Adultos (EJA) distribuído pelo Ministério da
Educação (MEC) cou nacionalmente co-
nhecido devido à polêmica levantada pela
mídia sobre o conteúdo “não educativo”
que este trazia. O Ministério da Educação
(BRASIL, 2011) defendeu sua posição no
sítio ocial da instituição. O então ministro
da educação Fernando Haddad defendeu
a escolha ao informar que foram especia-
listas de universidades públicas que derem
os pareceres a respeito do livro didático.
Na mídia, apareceu apenas o texto fora do
contexto e neste último, os especialistas
têm toda uma construção teórica que leva
para uma questão política e ideológica que
tem como pano de fundo o poder, o qual é
tomado neste ensaio como conceitua Fou-
cault no discurso. Isto é importante salien-
tar, pois o embate se dá nesse nível e não
no que apareceu no discurso midiático.
Façamos então parte da reconstru-
ção teórica. Especicamente, o capítulo 1
denominado “Escrever é diferente de falar”
(2011) do livro didático foi o alvo dos ata-
ques por trazer impresso frases que não
correspondem às regras das gramáticas
normativas e sim da fala popular. Frases
estas que o alienígena constataria que
boa parte da população brasileira domina.
Nesta parte, ensina-se sobre a di-
ferença entre a escrita e fala, introduzindo
o conceito de variação linguística estuda-
do dentro do escopo da Sociolinguística.
O livro é destinado ao EJA, portanto não
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tem como alvo o público infantil e sim jo-
vens de 15 anos, adultos e idosos. Devi-
do a este contexto especíco, parte-se do
pressuposto no livro de que as pessoas
de destino não dominariam a norma culta,
mas outra variante, a norma popular. Há
uma discussão no livro a respeito dessas
duas variantes, que toma a questão do
poder como peça-chave da legitimação da
norma culta em detrimento da popular:
Essas variantes também podem ser
de origem social. As classes sociais
menos escolarizadas usam uma va-
riante da língua diferente da usada
pelas classes sociais que têm mais
escolarização. Por uma questão de
prestígio — vale lembrar que a língua
é um instrumento de poder —, essa
segunda variante é chamada de varie-
dade culta ou norma culta, enquanto
a primeira é denominada variedade
popular ou norma popular.
Contudo, é importante saber o seguin-
te: as duas variantes são ecientes
como meios de comunicação. A classe
dominante utiliza a norma culta princi-
palmente por ter maior acesso à esco-
laridade e por seu uso ser um sinal de
prestígio. Nesse sentido, é comum que
se atribua um preconceito social em
relação à variante popular, usada pela
maioria dos brasileiros. (idem, p.12)
O autor que desenvolveu o concei-
to “preconceito lingüístico” utilizado no livro
didático foi o professor da Universidade de
Brasília, doutor em Filologia, Marcos Bagno.
O autor publicou o livro Preconceito Lin-
güístico. O que é, como se faz (BAGNO,
1999) e em pouco menos de 10 anos, che-
gou à 50ª edição em 2008. Na introdução
da 50ª edição, o autor faz a seguinte hipóte-
se para explicar o sucesso da publicação:
De fato, parece que existia uma lacu-
na importante na bibliograa brasileira
sobre questões de linguagem: livros
escritos de forma acessível aos não
especialistas (e a futuros especialis-
tas) que explicitassem, com a máxi-
ma franqueza, opiniões divergentes
da ideologia linguística dominante em
nossa cultura – uma ideologia antibra-
sileira, repressora e autoritária, as-
sumida e divulgada por gente que vê
“erros” por todo lado e que acredita no
mito da existência, num passado lon-
gínquo, de que uma “época de ouro”
da língua, quando todos falavam “cer-
to” e ninguém “corrompia” a mística
“língua de Camões” (Idem, p. 09-10)
Para Bagno, o que determina o
“certo” e o “errado” na língua é de ordem
ideológico-político e não estrutural. Ele le-
vanta a questão de que se toma a língua
incorruptível em momento histórico e a par-
tir daí, têm-se esse modelo como o padrão.
Para o autor, língua pura é um mito. Se
pensarmos na linha diacrônica da língua,
tenho que concordar com o autor, pois o
português brasileiro já é uma variação do
português europeu. Este, por sua vez, foi
uma mudança que surgiu a partir do latim,
não do clássico e sim das diversas varia-
ções do latim vulgar. Nossa língua sofreu
variação linguística até ocorrer a mudança
como ilustra o nosso caso: latim clássico
latim vulgar português. Processo seme-
lhante aconteceu com outras línguas româ-
nicas como o francês e o espanhol que tam-
bém vieram da norma menos valorizada do
Latim, o vulgar que, por sua vez, foi uma
variação do latim clássico. (ILARI, 1999).
E no momento sincrônico em que o Latim
clássico e vulgar eram falados, este último
sofreu o que Marcos Bagno chama hoje
de preconceito lingüístico. Discutir a língua
dessa forma, segundo o autor, trouxe muita
aceitação do público, mas também:
É claro que também chegaram (e conti-
nuam chegando) reações grosseiras e
furiosas da parte de gente que não es-
conde seu ideário político conservador,
elitista e autoritário. (...) É claro que o li-
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vro podia e continua podendo ser critica-
do, mas a crítica perde todo o seu efei-
to saudável quando se transforma em
ataque pessoal e deixa explícito o sen-
timento da intolerância, a maior inimiga
da humanidade em todos os tempos, e
hoje mais que nunca. (op. cit., p. 10)
Por isso, Bagno ressalta que o que
está por trás desta questão, não é a estru-
tura da língua e sim uma “ideologia linguís-
tica dominante”, em outras palavras, o po-
der. Quando o debate em torno da questão
torna-se pessoal e não acadêmico, a crítica
acaba não tendo um bom efeito demons-
trando o que ele defende: o preconceito
lingüístico de ordem ideológico-político que
tem como motor o conservadorismo de seu
status quo. O livro didático do MEC ousou
em romper com esse conservadorismo,
imprimindo em suas páginas construções
tidas como “erradas” independentemente
do contexto em que se aborda a questão.
Mesmo explicado este posicionamento te-
órico no capítulo em que as frases foram
impressas praticamente não se levantou
esse debate, a crítica mostrou toda a into-
lerância a respeito do assunto.
Assim, tendo como pano de fundo
essa construção teórica é que se pode
entender a escolha dos especialistas do
MEC em distribuir esse livro didático den-
tre as pessoas que estão fazendo parte
da Educação Básica numa fase adulta da
vida. Pouco apareceu na mídia essa cons-
trução teórica e sim a discussão de um
livro didático ter frases escritas de forma
“errada”. Para ilustrar como se deu essa
construção por parte midiática foi escolhi-
da uma revista nacional de grande porte
para representar parte dessa vertente do
embate, a revista Veja.
3 - A VEJA
A polêmica em torno do livro didá-
tico do MEC alcançou várias vertentes
midiáticas: jornais impressos, revistas,
matérias televisivas e internet. Para este
ensaio foi escolhida como um exemplo da
repercussão a revista Veja por se posicio-
nar claramente contrária à distribuição do
livro, permitindo uma análise mais con-
tundente do embate. Evidentemente, ela
não é representativa da opinião total da
mídia do Brasil, mas por ter um posicio-
namento contrário e emblemático, por ser
uma revista de grande porte de alcance
nacional, a edição de 25 de maio de 2011
é uma boa escolha para analisar como
se dá o embate aqui proposto a ser dis-
cutido. Nesta edição, a revista destacou
diretamente três artigos sobre o tema. O
primeiro foi a seção Carta ao Leitor, com
o título “Preconceito Contra a Educação”
(VEJA, 2011, p.14). O segundo destaque
foi um artigo de Lya Luft (2011, p.26) in-
titulado “Chancela para a ignorância”.
Por m, o artigo principal chamado “Os
adversários do bom português” (BETTI ;
LIMA, 2011, p. 86-87).
Na seção “Preconceito contra a
educação”, o autor começa o texto infor-
mando que o livro fornecido pelo MEC
prega que não há certo e o errado no em-
prego da língua, defendendo que a norma
culta é mais uma forma de emprego da
língua. O autor arma que a “norma cul-
ta urbana” é categoricamente entendida
como “o modo correto de falar e escrever”.
Ele também argumenta que comunicar-se
eciente entre os “incultos” (sic) não está
em questão e sim a falta de inclusão des-
ses mesmo “incultos” à losoa, ciência e
literatura só proporcionada pela produção
do “universo lingüístico” que a norma cul-
ta urbana tem a possibilidade de realizar.
Para o autor, uma desqualicação das
regras gramaticais do “bom português”.
Por trás, de tudo isso, segundo o autor, há
uma ideologia perversa de não permitir o
acesso a educação àqueles que mais pre-
cisam, impedindo-os que alcançarem uma
vida melhor. O autor cita que este tipo de
estudo faz parte da Sociolinguística, mas
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de maneira secundária, no sentido de
pouca relevância, e que nunca deveria ter
saído do “porão acadêmico”.
Lya Luft, no seu ensaio, indica seu
assombro em vericar que o livro do MEC
“promove o não ensino da língua-padrão,
que todos os brasileiros, dos mais simples
aos mais sosticados, têm direito de conhe-
cer e usar”. Outro argumento que a autora
usa é de que falar em “preconceito lingüís-
tico” leva à conclusão de que não se deve
ensinar nada a ninguém para que não se
que humilhado e não deseje melhorar. A
autora concorda que há variedades do uso
da linguagem de acordo com a situação,
Luft chama isso de “adequação”. O proble-
ma para a autora é ignorar a língua-padrão,
pois todos têm o “direito” de conhecê-la.
Ela chama isso de discriminação, pois co-
loca os menos privilegiados num lugar de
permanência de seu lugar, sem acesso ao
conhecimento. A autora termina seu artigo
amenizando a responsabilidade do MEC,
pois entende que diante de “montanha de
trabalhos que ali se empenham” o livro
deve ter passado despercebido. Mas uma
vez notado o problema, cumpre as autori-
dades de retirá-lo de circulação.
O artigo principal intitulado “Os ad-
versários do bom português” tem como
subtítulo “doutrinar crianças com a tese ab-
surda de que não existe certo ou errado no
uso da língua é afastá-las do que elas mais
precisam para ascender na vida”. Não só
nos títulos, mas todo o artigo é caracteri-
zado por adjetivos binários – bom e ruim
- demonstrando a parcialidade da opinião
da revista, a respeito da Sociolinguística
desqualicando-a para atingir a escolha
do MEC deste tipo de referencial teórico.
O texto demonstra os ânimos alterados
provocados pela escolha do MEC. O co-
nhecimento dos estudos sociolingüísticos
é chamado de doutrinação, chamada de
tese absurda. Também argumenta no sen-
tido de que o conhecimento sociolinguístico
impede as pessoas de ascensão na vida.
O texto do artigo principal começa
no tom apaixonado de perplexidade para
explicar que o assunto do artigo é o livro
didático Por uma vida melhor. O livro não
é destinado para crianças, como informa
o subtítulo, indicando uma manipulação
estilística para aumentar o teor emocional
da chamada. Depois de expor a proposta
do livro negativamente, as autoras se sur-
preendem que a proposta da “ignorância
prospera sobre a chancela ocial” em uma
crítica direta ao MEC. Depois desqualica
a Sociolinguística de forma pessoalizada
“um dos expoentes dos talibãs da linguísti-
ca no Brasil é um certo Marcos Bagno, pro-
fessor da Universidade de Brasília (UnB),
hoje o grande madraçal da ortodoxia dessa
estupidez” (idem, p 87). As autoras se utili-
zam de guras orientais de forma negativa
para fazer o ataque pessoal, usando a pa-
lavra talibã e madraçal, como bem previu
Bagno na introdução do seu livro. Depois
chama de escandaloso o fato de a popu-
lação brasileira pagar tanto imposto e um
dos seus ns ser o de nanciar estudiosos
como Marcos Bagno. Por m, chama o
processo de crime reescrevendo o depoi-
mento de uma procuradora que concorda
com o posicionamento da revista.
Assim, a crítica da revista ca no
campo político-ideológico e pessoal e não
às conclusões dos estudos cientícos da
Sociolinguística. Esta, quando abordada,
foi pessoalizada em Marcos Bagno, quali-
cando seus estudos de secundário, sem
de fato explicar a teoria que referencia os
conceitos deste autor. Há uma “política do
silêncio” como conceitua Orlandi (1990,
p.49-52) que proíbe alguns sentidos de
circularem porque a linguagem tem uma
direção política. É um silêncio que não é
apenas negação ou ausência de lingua-
gem, mas um fato histórico, que indica
signicação. Assim, o silêncio da revista
é uma estratégia de signicação. Ignora-
-se a discussão, parte-se para a desqua-
licação usando como argumento que a
detenção da norma culta pode libertar os
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“incultos” dos males sociais. A partir daí é
possível trazer a discussão para o campo
dos Estudos Culturais.
4 - NOS ESTUDOS CULTURAIS
A dicotomia do “Bom Português” e do
“Português Ruim” pode ser comparada à dico-
tomia “Cultura Erudita” e “Cultura Popular”. Ao
fazer essa comparação, tenho como objetivo
situá-la no contexto dos Estudos Culturais.
Stuart Hall (2009) indica o período
1957-1963 como o “momento propício” de
ruptura para um novo paradigma de se expli-
car a História e de emergência dos Estudos
Culturais tendo como marca a publicação
dos livros As utilizações da cultura de Hog-
gar em 1957, Cultura e Sociedade de Willia-
ms em 1958 e A formação da classe operá-
ria de Thompson em 1963. Nestas obras, “a
‘cultura’ era o local de convergência” (idem,
p.126) a partir de uma abordagem diferente,
caracterizando pois o momento de ruptura.
Este momento é propício porque
permitiu mudanças ao lidar com uma an-
tiga problemática, a questão da cultura e
que tipos de respostas foram dadas por
estes autores que trouxeram à baila novos
paradigmas epistemológicos tanto para a
história, sociologia, as artes, etc. De forma
geral, as décadas de 1950 e 1960 serão
tomadas como esse momento histórico
nas Ciências Humanas e Sociais propício
para algumas mudanças epistemológicas.
Para Hall, a obra de Hoggar trouxe
um desvio radical para a dicotomia alta e
baixa cultura ao ler a cultura da classe tra-
balhadora para sua metodologia de análi-
se. Williams deniu uma nova tradição
em instituir a unidade entre esses dois con-
ceitos, sociedade e cultura. O trabalho de
Williams analisou diversos autores consi-
derados de “alta cultura”, a partir de suas
obras e reconceitou o que seria “cultura”,
questionando o paradigma ideologicamen-
te construído de “alta cultura”. E por m,
Thompson estava utilizando a história de
movimentos populares da Inglaterra, con-
siderados como bárbaros, para demonstrar
que a classe operária foi formada a partir
destas pessoas, rompendo com o paradig-
ma marxista de quando foi formada a clas-
se operária inglesa, destacando questões
culturais para a historiograa e do agencia-
mento da classe não hegemônica. Estes
autores, de certa forma, trouxeram o não
hegemônico, para a ordem de discussão
a partir da cultura. E essa foi uma grande
contribuição para as Ciências Humanas e
Sociais porque promoveu um tempo de re-
pensar o que já estava sedimentado.
Ao fazer esse resgate histórico,
tenho como objetivo resgatar uma carac-
terística singular dos Estudos Culturais
europeus: o de desmisticação do estan-
dardizado pelo senso comum como ver-
dade ou em outras palavras, esse estan-
dardizado é uma ideologia que se tornou
“verdade”. Essa ruptura do que é ou não
“alta cultura” é bem propícia para anali-
sar essa situação especíca brasileira em
relação o que é ou não “bom português”
para chegar à conclusão do que está em
jogo nesse embate é de ordem ideológica
se valendo de uma manifestação estrutu-
ral da língua, por isso recorro à metáfora
do alienígena para entendê-la como ferra-
menta para contribuir na análise. Para se
distanciar do senso comum é necessário
um olhar alienígena também.
Nesse ponto, chega-se ao que Fou-
cault chamou de vontade de verdade no dis-
curso. Para defender a sua vontade de ver-
dade, a revista Veja, nos três artigos, utiliza
como um dos argumentos discursivos o do
direito ao acesso à norma culta. Segundo
os autores, esse acesso é importante, pois
é através dele que se consegue o sucesso
prossional, além de proporcionar as con-
dições de conhecer produções da “norma
culta”, que podem ser entendidas como os
produtos culturais da Filosoa, Ciência e Li-
47
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teratura. Assemelha-se com a reivindicação
de Antonio Cândido (2004) ao direito à lite-
ratura como parte dos direitos humanos. De
forma bem simplista é dizer que apropriar-
-se da norma culta levará a pessoa para um
lugar social melhor, por isso deve ser direito
de todos, para que todos tenham acesso
às mesmas condições e possam “evoluir”
socialmente. Não cabe nesse ensaio refa-
zer essa discussão sociológica, no entan-
to, considero que esta visão é ideológica e
está estandardizada no senso comum.
No entanto, a argumentação com
esse viés do direito, no caso especíco da
revista Veja a respeito da “norma culta”,
acaba tropeçando no que defende em vá-
rios pontos. Se for verdade que a “norma
culta” dá acesso ao entendimento mais
apurado da ciência, tem-se um problema
no caso Veja versus MEC. Considerando
que os escritores da Veja são os represen-
tantes da norma culta, eles demonstraram
muitas diculdades semânticas para inter-
pretar o livro didático, argumentando que
o livro faz algo que não faz, como pregar
que não se deve ensinar a “norma culta”.
O texto principal generaliza a questão, ar-
mando que crianças serão ensinadas por
esse viés, quando o livro didático é des-
tinado para jovens e adultos. Outro pro-
blema diz respeito ao acesso à Ciência,
no caso da Sociolinguística, que a revista
também tropeçou no entendimento.
Por outro lado, partindo do pressuposto
de leitura correta dos representantes da “nor-
ma culta”, os escritores da Veja sabiam que ti-
nham o poder de transformar em verdade uma
não verdade, isto é, por isso armaram em
vários momentos que o texto do livro didático
armava algo que não armava. Se a crença
de que a “norma culta” é capaz de fazer exa-
tamente o que a revista apregoa, conclui-se,
pois, que eles entenderam a proposta do livro,
da Sociolinguística e também o argumento do
MEC ao se defender. E decidiram pelo silêncio
político e a uma estratégia de desqualicação
a partir do senso comum estandardizado.
Um dos fragmentos mais emblemá-
ticos dos três artigos para se demonstrar
essa hipótese, está no trecho retirado da
seção “Carta ao Leitor”, o artigo que abre
a discussão na revista:
A discussão arcana sobre o “falar po-
pular” ocupa um escaninho secundá-
rio na sociolinguística e seria um enor-
me favor aos brasileiros que estudam
e trabalham se nunca tivesse deixado
seu porão acadêmico. Mas deixou, em
prejuízo de alunos já tão pouco predis-
postos ao estudo da gramática e atola-
dos em um sistema educacional que,
ao nal do ensino básico, produz 62%
de jovens que mal sabem ler e 89%
que não sabem fazer as operações
aritméticas básicas (idem, p.14)
Primeiramente, arma que a dis-
cussão da Sociolinguística sobre o “falar
popular” é arcana, mesmo com um dos ex-
poentes brasileiros apontados na revista,
o professor Marcos Bagno, ter chegado à
52ª edição do seu livro em 2009 com mais
de 200 mil cópias vendidas exatamente
sobre o conceito de “preconceito linguísti-
co”. Também arma que essa abordagem
ocupa o escaninho secundário na Socio-
linguística e deveria continuar no porão
acadêmico. O jornalista toma para si a
discussão de uma ciência, a Sociolinguís-
tica, desqualicando-a, dando a entender
que essa visão prejudicou alunos já sa-
cricados por um sistema de ensino de-
citário. Dá-se tal poder à Sociolinguística
na construção fraseológica que a própria
construção diz que ela não tem. Ele se uti-
liza indiretamente da metáfora do alieníge-
na ao dizer que a “discussão arcana” nem
deveria ter deixado o “porão acadêmico”.
Seu discurso de desqualicação, em nome
da vontade de verdade foucaultiana, tem
como objetivo interditar outro discurso.
No caso brasileiro, o que está em
jogo é o testemunho histórico do momento
do embate entre a institucionalização da
48
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
vontade de verdade de uma vertente da
Sociolinguística a partir do MEC e a von-
tade de verdade já consolidada do que se
denomina “norma culta” denunciada pela
primeira vontade de verdade de discurso
hegemônico. É o que Foucault diz:
Enm, creio que essa vontade de ver-
dade assim apoiada sobre um suporte
e uma distribuição institucional tende
a exercer sobre os outros discursos
– estou sempre falando de nossa so-
ciedade – uma espécie de pressão e
como que um poder de coerção (FOU-
CAULT, 2009, p. 8)
No caso brasileiro a questão é a
institucionalização que o MEC proporciona
aos trechos que foram selecionados aci-
ma, tanto do texto do livro didático quanto
do livro de Bagno sobre o poder da norma
culta em detrimento da norma popular, por
isso a indignação dos autores da revista
sobre o MEC permitir tal “absurdo”, isto
é, a institucionalização. Por outro lado, a
proposta de Bagno é a “democratização”
linguística. Portanto, há uma disputa de
poder em jogo. Enquanto a discussão
estava no terreno acadêmico e não se ul-
trapassava essa linha, segundo a revista,
não teria tanto problema. Mas ultrapassar
a linha é disputar o poder, de quem detém
a verdade sobre o assunto.
Podemos vericar a vontade de ver-
dade do discurso foucaultiano do jornalista
se nos distanciarmos e entendermos a fun-
ção estrutural da língua (a metáfora do alie-
nígena de forma positiva), para entender a
manobra do jornalista em desqualicar exa-
tamente o processo (usando indiretamente a
metáfora do alienígena como crítica), o qual
desvenda sua manobra. As paixões cam
tão acirradas neste momento que somente
o distanciamento permite enxergar o recurso
utilizado para interdição foucaultiana do dis-
curso da Sociolinguística por causa da von-
tade de verdade de validação da “norma cul-
ta” como representante do “bom português”.
E por que toda essa manobra é
acalorada e cheia de paixões? Mais uma
vez Foucault explica que as exclusões do
discurso estão relacionadas ao desejo e
ao poder. Quando a “norma culta”, que
poucos a dominam, torna-se um objeto
de desejo de muitos, que não a domi-
nam, esses poucos possuem um poder
diante desses poucos que a desejam.
Não é a toa que o jornalista arma: “O
pano de fundo dessa fraude intelectual é
a concepção ideológica segundo a qual
só o povo é detentor do verdadeiro co-
nhecimento” (op. cit., p. 14). Eis aí des-
vendado o poder. E o autor continua na
frase seguinte: “o lado perverso desse
desvario é que, com isso, se justica o
não fornecimento, às pessoas que mais
precisam deles, dos códigos que lhes
permitiriam alcançar uma vida melhor”.
Eis aí revelado o desejo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se perceber, nesta análise,
que não está em discussão o “bom ou mal
português”. A escolha do MEC torna-se
um discurso “perigoso”, pois desvendados
os estudos sociolingüísticos para aqueles
que não os conhecem, esvazia-se o poder
daqueles que os conhecem. A estratégia
para a interdição é de desqualicação da
autenticidade cientíca da Sociolinguística
e não os estudos cientícos em si.
Esse episódio relacionado ao MEC
desvenda a disputa de discursos contro-
versos, utilizando a estrutura da língua,
para preservação de um lugar de poder
de poucos, perpassado pelo desejo de
muitos de obter esse lugar privilegiado,
que legitima o lugar do poder. Enquanto
essa disputa continua acirrando os âni-
mos, a língua continua destemidamente
sua variação, até chegar a uma mudança
no futuro, como sempre ocorreu na linha
diacrônica de todas as línguas, como bem
atestaria o alienígena.
49
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
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Paulo: 25 maio, 2011.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística
Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
* Agradeço a bacharela e mestra em Línguística Claudia
Dourado de Salces pela leitura e sugestões. Este ensaio
foi realizado para o trabalho nal da disciplina História e
Teorias dos Estudos Culturais do Programa de Mestrado
Acadêmico em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ci-
ências e Humanidades (EACH) da Universidade de São
Paulo (USP).
* Bacharela em Linguística pela Universidade Estadu-
al de Campinas (Unicamp) e mestranda do programa
de Estudos Culturais da EACH-USP sob orientação de
Profª. Dra. Graziela Serroni Perosa. Bolsista Capes.
1
Para conhecer a obra organizada por seus alunos ver
Saussure (2006).
2
Os conceitos foucaultianos foram destacados em itáli-
co nessa parte inicial.
Contato:
Adriana Santiago Rosa Dantas
– novadrica@gmail.com
Artigo recebido em Setembro de 2011
Artigo aprovado em Maio/2012
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Do Pessoal do Ceará ao Movimento Cabaçal:
O “local” e o “global” na música cearense
Del Pessoal do Ceará al Movimiento Cabaçal:
El “local” y el “global” en la música de Ceará
From Pessoal do Ceará to the Cabaçal Movement:
The “local” and the “global” in the music of Ceará
Jane Meyre Silva Costa
1
Resumo:
Neste artigo me proponho a discutir três movimentos artístico-
culturais no campo musical no Nordeste e, especicamente, no Ceará.
A “música nordestina” se traduz como uma manifestação cultural
de músicos cearenses, caracterizados pelo hibridismo cultural,
congurando uma “nova” estética musical, que utiliza uma linguagem
plural, realizando a mistura de ritmos. De uma maneira geral, esses
movimentos podem signicar tanto a busca de uma “identidade
local” em meio ao processo de globalização cultural, através do
diálogo com a “cultura popular nordestina”, quanto a possibilidade de
articular novos sentidos, estilos de vida, valores e comportamentos
que estabelecem um diálogo entre a música “local” e “global”.
Palavras chave:
Música
Cultura
Nordeste
51
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Palabras clave:
Música
Cultura
Nordeste
Resumen:
En este artículo me propongo discutir tres movimientos artístico-
culturales en el campo de la música en el Nordeste y, especícamente,
en Ceará. La “música del Nordeste” se traduce en una manifestación
cultural de músicos de Ceará, caracterizados por el hibridismo
cultural, congurando una “nueva” estética musical, la que utiliza un
lenguaje plural, realizando la mezcla de ritmos. En general, esos
movimientos pueden signicar tanto la búsqueda de una “identidad
local” en el proceso de la globalización cultural, a través del diálogo
con la “cultura popular del Noreste”, como la posibilidad de articular
nuevos sentidos, estilos de vida, valores y comportamientos que
establecen un diálogo entre la música “local” y “global”.
Abstract:
In this article I propose to discuss three artistic and cultural movements
in the music eld in the Northeast and, specically, in Ceará. The
“northeastern music” translates into a cultural manifestation of
musicians from Ceará, characterized by the cultural hybridity, setting
up a “new” musical aesthetic, which uses a plural language, carrying
out the mix of rhythms. Generally, these movements can mean both
the search for a “local identity” in the process of cultural globalization,
through the dialogue with the “northeastern popular culture”, and the
possibility of articulating new meanings, lifestyles, values and behaviors
that establish a dialogue between the “local” and the “global” music.
Keywords:
Music
Culture
Northeast
52
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Do Pessoal do Ceará ao Movimento
Cabaçal: O “local” e o “global” na
música cearense
Fortaleza, no decorrer das décadas,
vêm despontando como pólo cultural for-
mador de personalidades da música como
Humberto Teixeira, Luis Assunção, Fagner,
Belchior, Ednardo, entre outros, que se tor-
naram ícones da música cearense no espa-
ço nacional.
Na atualidade, esta cidade não ca
atrás na representatividade com a música.
Após dois movimentos que despertaram
Fortaleza, para atividade artístico-musical,
nos anos 70 com Massafeira e Pessoal do
Ceará, vem o Movimento Cabaçal, reali-
zando uma discussão diferenciada em tor-
no da música, “cultura nordestina” e sua
hibridação cultural.
Este artigo abordará então, esta
efervescência cultural que teve início em
meados da década de 1970, no Ceará e
culminou com o Movimento Cabaçal nos
anos 2000.
1 - O “PESSOAL DO CEARÁ”
Este movimento representou um
novo momento na música popular brasilei-
ra na década de 1970, apesar deste nome
não ter sido escolhido pelos próprios parti-
cipantes do movimento (Rogério, 2008), e
sim, por uma indústria fonográca que ne-
cessitava rotular estes artistas provenien-
tes do Ceará, signicou uma geração de
artistas que abriu caminhos para a música
produzida no nordeste.
Apesar de existirem objetivos dife-
renciados dos diversos integrantes, o que
os unia era a proposta de um processo
de prossionalização artística no Ceará,
tendo em vista um conhecimento e reco-
nhecimento do público. Signicou a parti-
cipação de mais de cem artistas cearen-
ses, que deu origem ao disco denominado
“Pessoal do Ceará: meu corpo, minha em-
balagem todo gasto na viagem”.
O ingresso dos compositores cea-
renses no mercado fonográco se originou
devido uma fase propícia pós-tropicalista
2
(PIMENTEL, 2006), para o desenvolvi-
mento de novos compositores e musicali-
dades. A “música regional” neste momento
emergia como força de expressão, o que
trouxe consequentemente uma rotulação
de expressões para os músicos originá-
rios do Nordeste.
Da mesma forma que na década
de 1980 ocorreu uma explosão de bandas
de rock, na década de 70 ocorre o mesmo
com a “música nordestina”, traduzido des-
ta forma pela indústria fonográca, visan-
do um amplo mercado em expansão.
Carvalho (2005) comenta sobre a
indústria fonográca em formação, que
apóia e investe neste mercado cultural por
achar que representa um novo artigo em
expansão. Apoiadas por muitas gravado-
ras, o falar do nordeste e o sotaque são
contundentes na identicação das chama-
das “bandas regionais”.
A estratégia é tentar resistir ao tempo
com a agilidade do improviso, a musi-
calidade da rima, a camisa de força da
métrica, o forte sotaque nordestino, a
voz anasalada da herança medieval e
toda a riqueza de uma tradição popular
que se apropria da indústria do entre-
tenimento. (CARVALHO, 2005, p. 69)
Na realidade, o sistema capitalis-
ta tem grande inuência em toda essa
transformação que está ocorrendo, espe-
cicamente na música. Por ser bastante
multifacetado, se adapta a todas as ma-
nifestações, desde que lucrativas para o
empreendedor. O mercado encara essas
53
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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“novas” manifestações como um produto
inédito para o consumo de pessoas que
não se adequaram ao mercado exis-
tente. Canclini (1997) comenta sobre este
fato dando, assim, quatro alternativas prin-
cipais para o que está acontecendo:
01. A impossibilidade de incorporar toda
a população à produção industrial urbana;
02. A necessidade de o mercado incluir
as estruturas e os bens simbólicos tradicio-
nais nos circuitos massivos de comunica-
ção, para atingir mesmo as camadas po-
pulares menos integradas à modernidade;
03. Ao interesse dos sistemas políticos
em levar em conta o folclore a m de forta-
lecer sua hegemonia e sua legitimidade;
04. A continuidade na produção cul-
tural dos setores populares. (CANCLINI,
1997: p.215)
O autor descreve, ainda, sobre a
necessidade desse tipo de indústria cultu-
ral que se ocupa, também, dos consumi-
dores resistentes ao consumo uniforme,
diversicando a produção de meios para
se adaptar a todos os estilos e anseios.
Com isso, o tradicional/regional/popular é
transformado, interagindo com o moder-
no/urbano/globalizado, e demonstrando,
assim, que o mercado cultural também
tem que se apropriar dos consumidores
em busca de novos valores culturais.
A partir desta concepção de “músi-
ca cearense”, Pimentel (2006) desenvol-
ve em seu estudo uma série de aspectos
que revela serem distintivos e identica-
dores da música local. O primeiro aspecto
é a urbanidade como código referencial e
existencial, trazendo consigo as diversas
inuências culturais da cidade para suas
músicas e composições. O segundo é a
relação com a contemporaneidade. Em
sua análise, a maioria das músicas vin-
das do Ceará representa uma visão do
cotidiano de cada compositor, que traz
um olhar universal à sua música, falando
de seu tempo e das transformações his-
tóricas ocorridas:
Os compositores cearenses revela-
ram a necessidade de assumir um
compromisso com sua realidade: o
compromisso de uma geração frente
aos impasses e contradições próprias
do momento histórico advindos com
as transformações culturais operadas
não só em nível nacional como em
nível mundial, que colocaram em evi-
dência a revolução dos costumes, dos
padrões sexuais e morais. (PIMEN-
TEL, 2006, p. 161)
Dentre esses compositores a au-
tora cita Belchior, que denuncia em suas
letras um olhar crítico sobre a juventude
de seu tempo. Com o trecho da música
Velha roupa colorida: “E o que em algum
tempo, era jovem e novo, hoje é antigo,
e precisamos todos rejuvenescer (...)”, ela
exemplica que um dos segmentos utiliza-
dos para caracterização da denominada
“identidade cearense” é sua relação com
os movimentos contraditórios da socieda-
de. No trecho que citei acima, quando Bel-
chior fala em “rejuvenescer”, indaga sobre
a mudança de tempo, vinculando, assim,
sua relação com os movimentos contradi-
tórios da contemporaneidade.
Segundo Mary Pimentel (1995),
esse movimento representou um marco
na incursão dos novos compositores ce-
arenses dentro do mercado fonográco,
tendo como alguns de seus participantes
o cantor e compositor Raimundo Fagner.
Essa geração buscou a valorização da
música popular cearense, que começava
a apontar para o Sudeste - no eixo Rio-
-São Paulo - ainda que através de traba-
lhos individualizados.
Por último, como terceiro traço dis-
tintivo da música cearense, temos a rela-
54
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ção amorosa entre o artista e seu lugar de
origem. Segundo a autora, “sem levantar
bandeiras ou apelar para ufanismos ou
bairrismos, o compositor cearense extra-
vasa-se numa lúcida emoção ao mostrar a
realidade cearense.” (2006:164).
A autora utiliza como exemplo ca-
racterizador da música cearense um tre-
cho da música Terra, de Ednardo, “Eu
venho das dunas brancas, onde eu que-
ria car (..) meu céu é pleno de paz, sem
chaminés ou fumaça”. Vericamos que é
evidente a demonstração de orgulho do
compositor por sua terra de origem. Pro-
curou mostrar seu ambiente como exem-
plo de paz e tranqüilidade, para onde ele
desejaria permanecer. O artista cearense,
também, foi um dos grandes mentores de
outro movimento que surgiu no Ceará, no
nal da década de 1970: o Massafeira.
Não percebo, em suas músicas,
uma característica peculiar pelo fato de
serem realizadas no Ceará, o que eles
buscam é descrever a realidade vivida na
região. Os três elementos tratados pela
autora para descrever este movimento,
como a urbanidade, a relação dos artistas
com a contemporaneidade e, nalmente,
a ligação ao local de origem, estão pre-
sentes, também, nas diversas canções
do Movimento Cabaçal, o qual me deterei
posteriormente.
A globalização, sem dúvida, carrega
esse embate, que faz com que a “cultura
nordestina” absorva as mudanças do mun-
do atual, em constante transformação, não
no campo econômico, mas em toda a
produção artística. É um ponto crucial a ser
discutido, na tentativa de apontar os possí-
veis efeitos que esse mundo venha susci-
tar nos modelos já xados da tradição.
No nal da década de 1970, no-
vos caminhos para a música cearense se
abriam para outros artistas e composito-
res, e assim nasce o Massafeira Livre.
2 - MASSAFEIRA LIVRE
Um movimento cultural no nal da
década de 70 expressa muito bem a veia
artística dos jovens músicos cearenses
em busca de uma recriação estética e sua
expansão no decorrer das décadas, o Mo-
vimento Massafeira.
O Massafeira Livre foi o nome do
evento que ocorreu 33 anos, de 15 a
18 de março de 1979, no Theatro José de
Alencar, onde aconteceu o último movi-
mento artístico cearense coletivo que teve
um certo destaque no Brasil.
Originados em grandes encon-
tros de músicos, compositores, poetas,
artistas plásticos, escritores, cineastas,
e tantas outras áreas ligadas às artes e
diversas gerações de artistas do nordes-
te, este evento reuniu desde os artistas
plásticos, passando pelos poetas até os
músicos em quatro dias, “como se fos-
se o carnaval mudando de data e mais
verdadeiro” como está impresso na con-
tra capa do álbum homônimo, na pers-
pectiva de “som, imagem, movimento e
gente” como anunciava o criativo cartaz
do evento idealizado pelo letrista e ar-
quiteto Brandão
3
.
Em uma entrevista cedida ao jor-
nal O Povo, Ednardo
4
, um dos integrantes
do Massafeira e remanescente do Pesso-
al do Ceará, armou que este evento foi
uma espécie de Woodstock tupiniquim, e
pela primeira vez se assisti as mais varia-
das performances artísticas no palco. De
todas as apresentações, além dos shows
musicais, a que mais marcou na época
foi o recital de Patativa do Assaré
5
, como
relata Ednardo em outra entrevista para o
jornal, O Globo em 1982:
Guardadas as proporções de divul-
gação nacional, o enfoque e abor-
dagens, Massafeira é um projeto
coletivo tão importante e revolu-
55
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cionário como a Semana de Arte
Moderna de 1922, ou o Tropicalis-
mo. todo uma proposta estética
nova ali, um projeto coletivo amplo,
que o diferencia de outros também
importantes
6
.
Ednardo, então, descreve o evento
Massafeira como:
A Massafeira foi uma das mais ousa-
das e seminais iniciativas de mostrar
ao país o que estava acontecendo em
termos de arte contemporânea espon-
tânea e enraizada. Foi uma grande
feira cultural que juntou música, artes
plásticas, literatura, teatro, dança, ci-
nema, artesanato e culinária. Eram
mais de 300 artistas reunidos no The-
atro José de Alencar, em março de
1979. Depois, foram mais de 200 -
sicos na gravação do disco duplo no
Rio de Janeiro. Em seguida, mais de
150 artistas se juntaram para lançar o
disco duplo no Theatro José de Alen-
car, em outubro de 1980. Muito pouco
se falou no Ceará e no Brasil da impor-
tância da Massafeira
7
.
Com isso, percebe-se o desejo
desde décadas atrás, de artistas cearen-
ses em revolucionar o espaço cultural do
estado. Apesar da pouca repercussão
nacional, o evento Massafeira Livre re-
presentou a transformação no cenário ar-
tístico cearense e pôde com isso originar
seguidores que apesar de não terem par-
ticipado ou até mesmo nascido nesta épo-
ca, têm a mesma proposta do encontro: o
desejo de renovação da música cearense
e o diálogo com seu local de origem.
O principal objetivo do Massafei-
ra era consolidar uma produção artísti-
ca no Estado, não somente no campo
musical, mas nas artes em geral. Seu
desejo era sair do Sudeste, de onde
tinha migrado na época de sua partici-
pação junto ao Pessoal do Ceará, que
é onde centram as principais produções
artísticas do país, e encontrar mercado,
aqui, no Ceará. A propósito disso, é que
mais de duas centenas de artistas cea-
renses chegaram a ser reunir no Thea-
tro José de Alencar, no ano de 1979, na
busca da consolidação de uma música
cearense que dialogasse com o mundo
contemporâneo.
Este movimento trouxe uma nova
proposta para a música e compositores
originários do Ceará, onde não sentiram
a necessidade de sair do Ceará e migrar
para o eixo Rio-São Paulo para apresen-
tar suas canções. Implicou neste sentido a
abertura e descentralização na música.
Percebo a necessidade destes dois
movimentos originários no Ceará, da dis-
cussão sobre o diálogo entre referências
“locais” e “globais”. Cada um com sua es-
pecicidade musical pretendeu abrir uma
discussão sobre a referenciada “música
nordestina” tomada pela indústria fonográ-
ca, como “regional”, em contraposição a
música do eixo Rio-São Paulo tida como
“nacional”.
A linguagem da música é universal,
não podemos restringi-la a apenas ele-
mentos tipicadores de uma região em es-
pecíco, e foi isso que estes movimentos
quiseram discutir a partir de suas produ-
ções. Para fazer música no Nordeste, não
necessitamos obrigatoriamente falar so-
bre seca, saudade, sertão pois estes ele-
mentos dialogam com a cultura “global”,
novos elementos da cidade contemporâ-
nea se entrelaçam a estas representações
trazendo um novo olhar para a música
construída no Nordeste.
E é desta forma, que estes movi-
mentos ocorridos nas décadas de 70-80
inuenciam, jovens nos anos 2000, que
revigoram esta discussão, trazendo um
olhar global aos elementos locais da cul-
tura cearense, o Movimento Cabaçal.
56
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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NOS ANOS 2000: NASCE O MOVIMENTO
CABAÇAL
O Movimento Cabaçal iniciou-se
em 2001, encabeçado por jovens cea-
renses da zona urbana do Estado, tendo
como proposta fundamental a valorização
da “cultura regional nordestina”. Uma de
suas características principais é a utiliza-
ção de instrumentos e ritmos provenientes
de bandas cabaçais
8
, como o pífano, a za-
bumba, as sanfonas e as alfaias, aliados
a sons e a instrumentos do universo pop
rock, próprios da cultura contemporânea,
como guitarras, baixos e baterias.
Junto à opinião pública, a impres-
sa local, à época, fez grande menção aos
grupos, com matéria realizada pelo jornal
O Povo
9
, publicada logo após os eventos
no Dragão do Mar, referindo-se a um dos
shows que mais reuniu o maior número de
público, no que diz respeito aos artistas
cearenses, como se vê:
Foi justamente do encontro de inte-
grantes do Jumentaparida e DZenha,
num estúdio de televisão, que se deu
o início de uma conversa que aca-
bou gerando o Movimento Cabaçal.
O nome surgiu em homenagem às
bandas cabaçais do Cariri, que pre-
servam uma sonoridade característi-
ca. Rapidamente, bandas e artistas de
outras manifestações artísticas-teatro,
dança, artes plásticas, literatura etc
foram se engajando ao movimento,
numa série de shows do Cabaçom,
que acabaram por reunir ainda Ju-
mentaparida, DZenha, mais Soul Zé
e a caririense Dr. Raiz. De o Movi-
mento se expande. O maior deles,
na praça Almirante Barroso, ao lado
do Centro Dragão do Mar, as bandas
reuniram o maior público para artistas
cearenses naquele local (três mil pes-
soas), segundo a produção do Centro
Cultural. (site www.noolhar.com/opo-
vo/vidaearte)
O jornal tece, ainda, comparações
com o Pessoal do Ceará
10
, movimento de
amplitude nacional que, trinta anos atrás,
revolucionou o cenário cearense. A saber:
Pavimentando a ponte musical que
liga essas duas gerações da música
cearense estão o resgate e a valo-
rização de elementos da cultura re-
gional sob um prisma universal. Mas
além desse pressuposto que foi utili-
zado tanto por Ednardo, Fagner e cia,
quanto pela bandas e artistas que hoje
compõem a estética cabaçal, ambos
os movimentos têm um disco síntese.
(jornal O Povo; 2003).
As bandas chamavam-se DZe-
nha, SoulZé, Jumenta Parida e Dr Raiz.
A proposta seria aliar ao seu estilo musi-
cal característico - o hardcore, o soul - o
baião, coco, e o teatro popular, além do
uso de instrumentos típicos de bandas
cabaçais
11
como a zabumba, o pífaro, as
alfaias, triângulo, pandeiros, derivando daí
a origem do Movimento em si.
Um dos elementos referentes ao
tradicional, aos quais os jovens se refe-
rem, e que gerou a própria denominação
do Movimento Cabaçal, é a banda Caba-
çal dos Irmãos Aniceto
12
.
A união destas bandas originou
um cd, em abril de 2002, intitulado CABA-
ÇOM, A Mostra de Música do Movimen-
to Cabaçal que tem em sua composição,
quatro músicas de cada banda (Dzenha,
Jumentaparida, SoulZé e Dr Raiz) dando
início a uma série de eventos culturais.
É importante entendermos a “mun-
dialização” cultural como um termo indis-
pensável na compreensão da proposta
do Movimento Cabaçal. Com base nesse
conceito, percebo, através da leitura de al-
guns estudiosos sobre o tema, uma nova
forma de conceber a cultura dentro da
sua proposta: a “desterritorialização”. Ao
57
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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mesmo tempo em que os jovens artistas
procuravam valorizar a “cultura nordes-
tina”, se “desterritorializam” do seu local
de origem para que possam dialogar com
a cultura mais “globalizada”. O termo se
ajusta, portanto, à saída do espaço indivi-
dualizado, para conquistar outro, de senti-
do mais abrangente.
Os autores Canclini (1997), Hall
(2003) e Ortiz (2001), que pesquisaram
sobre a fusão entre diversas esferas cultu-
rais, tratam do termo “desterritorialização”
não como sendo um afrouxamento da
cultura de seu local de origem. Apesar de
manter sua gênese, será cada vez mais
difícil sustentá-la integralmente devido ao
processo globalizante e suas conuências
com outras culturas.
Com a “desterritorialização” elimi-
na-se, portanto, o enorme peso que as
raízes e a tradição exercem sobre a socie-
dade, permitindo que haja uma mobilidade
dos elementos culturais. Essa é a maneira
pela qual a cultura se “esvazia” de seus
conceitos particulares.
Canclini (1997), fazendo um estudo
comparativo, discorre sobre a existência
de uma tensão entre os processos de “ter-
ritorialização” e “desterritorialização”, isto
é, entre as perdas das referências com
relação aos aspectos tradicionais e a con-
guração de encadeamento cultural. Essa
última é geradora de uma gama de possi-
bilidades, no que se refere à articulação
entre a urbe e o processo de mundializa-
ção, o que margem a uma nova con-
guração cultural.
O conflito referido pelo autor está
presente na mentalidade dos jovens en-
volvidos no Movimento Cabaçal, visto
que, ao mesmo tempo em que alguns se
voltam para temas universais, referem-
-se ao Nordeste e ao Ceará, em particu-
lar, como fontes que devem se manter
preservadas.
A “mundialização” maximiza esse
conito. Ao mesmo tempo em que o ho-
mem contemporâneo tem necessidade de
estar aberto às novidades tecnológicas
embora haja os mais resistentes a toda e
qualquer mudança - existe um outro ponto
a se questionar, que é o da busca por algo
que o “identique” como único, em meio a
uma diversidade cultural. Penso ser esse
o motivo principal do surgimento de gru-
pos como o Movimento Cabaçal.
A primeira banda, denominada Dr.
Raiz, originária de Juazeiro do Norte, em
1998, tem como alvo principal a fusão de
elementos do rock com os da chamada
“cultura popular nordestina”. Quanto ao
nome, foi idéia do próprio vocalista Júnior
Boca, devido a um cordel de Patativa do
Assaré, em que ressalta um personagem
com essa denominação:
A gente estava procurando algo
que tivesse a ver com “raízes”, e a gente
lembrou do cordel do Patativa do Assaré,
e da própria gura do Dr. Raiz. trata-se de
um personagem que vive nas feiras livres,
vendendo ervas medicinais, às pessoas. A
gente achou legal, levou lá...e todo mundo
aceitou. (Júnior Boca, Dr. Raiz)
A Banda Dr Raiz lança um CD, no
ano de 2006, intitulado Cariri.Ce.Brasil,
trazendo uma seleção de 17 músicas. Sua
fonte de inspiração, segundo eles, são as
manifestações culturais populares, como
os reisados, as lapinhas, os pastoris, o rit-
mos das bandas cabaçais, o forró pé-de-
-serra, o maracatu, o coco, o maneiro-pau,
a embolada e a cantoria. Assim como a
banda Dzenha, Dr.Raiz também utiliza
performances teatrais em seus shows.
Em uma das músicas intitulada Caldeirão,
o cantor Júnior Boca se veste de Beato
José Lourenço
13
e realiza uma pequena
encenação no palco.
Os integrantes que constituem a
banda Dr.Raiz, em sua maioria, são pro-
58
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
venientes da cidade de Juazeiro do Nor-
te, talvez seja por esse motivo que apesar
da inuência sobre a Banda de elemen-
tos da cultura rock
14
, em suas composi-
ções melódicas, percebemos a caráter
inuenciador da terra de origem, Juazeiro
do Norte localizado na região do Cariri no
Ceará. Local este, que tem uma grande
expressão cultural de seus artistas, além
de enorme presença de manifestações
artísticas e folguedos nordestinos. Traz
assim para a banda o caráter híbrido pre-
sente em suas composições.
A segunda banda, também nasci-
da no interior do estado do Ceará, Banda
Dzenha, originária de Itapipoca, apare-
ceu no cenário cearense em 2001. Vem
com uma proposta de integrar música e
teatro, devido aos espetáculos de rua, na
cidade. Em suas apresentações realiza
uma interação com a platéia através de
brincadeiras e “contações” de histórias e
“causos” populares.
Da experiência teatral dos três
irmãos – Orlângelo Leal, Paulo Orlan-
do e Ângelo Marcio - que tinham, ante-
riormente, uma companhia de teatro no
início da carreira migraram para outra
linha artística: a música. Levaram consi-
go a “performance” corporal adquirida no
teatro, verdadeiro diferencial da banda:
“O teatro na música”.
A Banda lançou no mercado o pri-
meiro Cd intitulado Cantos e Causos. O
álbum compõe-se de 12 faixas musicais.
Sua vendagem já foi esgotada. Tem como
freqüente em suas músicas, neste primei-
ro CD, segundo os próprios integrantes, a
presença de três elementos principais: o
cômico, rítmico e a dança popular.
O segundo CD intitulado Zenha
Vai à Feira vem com uma proposta, a
meu ver, bastante diferente da anterior.
Pelo próprio título criado, Orlângelo Leal
explica o objetivo desse segundo traba-
lho “A feira que batiza o cd é exatamente
uma metáfora para o mundo. Para apa-
recer em meio à turba provocada pela
globalização, marcada pelo consumismo
desenfreado, é preciso também entrar no
jogo do mercado. Globalização é se ofer-
tar para o mundo.”
15
As duas bandas cujos integrantes
eram da cidade de Fortaleza, eram: Ju-
mentaparida e SoulZé. A primeira banda,
fundada em 1998, era reconhecida como
sendo o Hardcore Regionalista, por ter
uma preponderância mais intensa da cul-
tura rock. A constante presença das gui-
tarras e da bateria faz seu diferencial den-
tro do Movimento Cabaçal.
A banda Jumentaparida era uma
das mais bem cotadas em termo de públi-
co. A juventude identicava-se muito com
sua música, talvez por seu caráter mais
próximo do rock. Conseguiu realizar um
clipe na casa de show Hey How, na cidade
de Fortaleza, e lançar um CD homônimo,
em sua curta trajetória musical.
Em seu CD, único lançado pela
banda, constam 14 músicas, cujas letras
apresentam estrofes mais longas. Estão
divididas, em sua maioria, em três ou
quatro. A melodia prima por um som em
que predominam as guitarras, os baixos
e as baterias.
A canção Jumentaparida, que
carrega o mesmo nome da banda, apre-
senta em sua letra uma proposta muito
clara acerca da realidade do Nordeste:
o sertão e o êxodo rural. Nesta banda,
observa-se também a fusão de elemen-
tos regionais com aqueles da cultura do
rock, com destaque para o timbre des-
torcido da guitarra: Então, a Jumenta
hoje, desembestou/ E o sertão vai ouvir
rock”nroll/ Ecoando de todos os lados/
Trazendo o recado para o povo mandou/
Resolvi, bem cedinho me mandei pro
sertão/Na paisagem encontro a inspira-
59
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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ção/ A guitarra misturei com o fole/ Pe-
guei hardcore e misturei com o Baião.
A referida banda e Soulzé, entre as
quatro aqui pesquisadas, não deram con-
tinuidade a seu trabalho, desfazendo-se
em 2005. A falta de apoio estatal foi o mo-
tivo gerador, segundo seus integrantes, do
m do grupo, que se sentiu desmotivado
em seguir a carreira artística.
E, nalmente a última, SoulZé, cria-
da em 1997, originária de Fortaleza, tinha
como característica a mistura a levada da
música soul aos elementos nordestinos,
carregando uma batida diferente das ou-
tras às quais me referi anteriormente. Pas-
seiam, também, pelos gêneros samba-
-funk e o drum’n’bass, na busca por um
som diferencial.
Atualmente o Movimento Cabaçal
não se encontra mais no cenário mu-
sical cearense. Nos shows não mais
referência a ele e as bandas não mais
se encontram, seguindo, assim, uma traje-
tória solitária, da produtora Caldeirão das
Artes, que ainda faz menção às bandas
Dzenha e Dr. Raiz.
Ao se referirem às suas músicas,
se intitulam como Beat Pesado, por beber
na fonte da música nordestina e pregar
a heterogeneidade cultural. A origem das
composições resulta desde mistura do
baião até os ritmos contemporâneos. “O
jungle se abaioniza e o rock se anordesti-
na nas densas levadas percussivas ”.
16
Na letra da canção Cyber Canga-
ceiro
17
, ocorre a fusão do meio tecnológico
com o universo nordestino, além da própria
proposta da banda em sua denominação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mudanças em todo o mundo aca-
baram por interferir nas artes e, sobretudo,
na cultura de um povo. No caso do Brasil,
especicamente, os extremos se acentu-
am, destacando as regiões Norte e Sul, o
que incitou cada vez mais o estudo dos
regionalismos. A nação passou a ser vista
dividida, buscando captar o todo, através
do qual se chega a uma totalidade.
O Nordeste “nasce”, então, para o
país, em meio a essa dicotomia regional.
Segundo a estudiosa Vieira (2000), foi
redenida a questão do espaço regional,
com a existência de programas e políti-
cas voltadas diretamente para o Nordes-
te, o que consolidou sua imagem, por
conta da riqueza de crenças, costumes e
atitudes peculiares.
Sem dúvida que os meios de comu-
nicação na época principalmente os jor-
nais - contribuíram para a construção do
imaginário coletivo. O Nordeste manteve
uma imagem de região predominantemen-
te inferior, devido às calamidades naturais
que lhe aferraram, como a seca de 1919,
em contraste com a modernização urba-
na de São Paulo, grande pólo econômico
e social. Alastra-se, até os dias atuais, a
visão de que os estados nordestinos são
atrasados, principalmente nas áreas ru-
rais, mais castigadas pelo agelo da seca.
A “música nordestina”, após o pro-
cesso de construção de um imaginário
coletivo que, por longos anos, insistia
em deni-la como inferior, agora apa-
rece sob um novo cenário: a cidade. As
inuências trarão uma nova roupagem à
música, que passará a não representar
somente o universo rural, mas terá olhos
para o mundo futuro.
Percebemos que cada uma destas
expressões musicais ocorridas no Ceará
apesar de uma proposta singular, havia
um objetivo comum: realizar uma música
popular, relacionando-a com elementos
da modernidade, em seus ritmos, letras
e performances.
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Para estes músicos a canção pro-
posta, apesar de ter suas origens e ca-
racterísticas ncadas no Nordeste, não
se propõe a identicar-se apenas como
música regional, como muitas vezes é di-
fundida na própria mídia e nos meios de
comunicação. A música, segundo eles, é
universal. É assim a maneira com a qual
os jovens assimilam essa “nova” forma de
perceber e se identicar com a “música
nordestina”.
Bibliograa:
ANJOS, Moacir dos. Local/Global: arte em trânsito.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2005.
BRANDÃO, Antônio Carlos/ Duarte, Milton Fer-
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Paulo: Editora Moderna, 1990.
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dução: Renee Muringa. Fortaleza: Proaudio Stu-
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CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: Es-
tratégias para entrar e sair da modernidade. São
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tora Iluminus, 2003.
_______. Consumidores e cidadãos: conitos mul-
ticulturais de Globalização. Rio de Janeiro: Editora
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CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma explo-
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CARVALHO, Gilmar de. Tramas da Cultura – Comu-
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-Graduação em Antropologia Social. Ano 1, n.1
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-culturais no Ceará: uma interpretação do Movi-
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DR. RAIZ. Cariri.Ce.Brasil. Arranjos: Grupo Dr.
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audio Studio, 2006.
DZEFINHA. Cantos e causos. Produção Execu-
tiva: Thais Andrade. Direção musical: Orlângelo
Leal. Fortaleza: Proaudio Studio, 2002.
DZEFINHA. Zenha vai à feira. Produção Execu-
tiva: Caldeirão das Artes- Thais Andrade. Direção
musical: Orlângelo Leal. Fortaleza: Proaudio Stu-
dio. 2005/2006.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e
Medições Culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003.
_______. A identidade cultural na Pós-Modernida-
de. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
JUMENTAPARIDA. Jumentaparida. Produção:
Moisés Veloso e Jumentaparida. Fortaleza: MV
Estúdio, 2002.
VIEIRA, SULAMITA. O sertão em movimento: a
dinâmica da produção cultural. São Paulo: Anna-
blume, 2000.
1
Graduada em Serviço Social e Mestra em Políticas
Públicas pela Universidade Estadual do Ceará. Atual-
mente é professora substituta do curso de serviço social
pela referida universidade. Este artigo representa parte
da pesquisa de dissertação de Mestrado apresentado
em 2007, pela Universidade Estadual do Ceará.
2
A Tropicália foi alvo de muitas críticas. Por suas atitu-
des provocadoras foi odiada pela direita, e por não ter um
61
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
caráter de protesto também foi criticada pela esquerda.
Seu desfecho se deu no nal da década de 60. Brandão e
Duarte resumem esse período histórico, de engajamento
da juventude na cultura e na política brasileira: “Nesse
contexto, a cultura jovem dos anos 60, no Brasil, chegou
ao nal da década enfrentando duas novas questões. De
um lado, a tentativa de manter uma produção cultural
engajada, motivada pela idéia de revolução e transfor-
mação social, tal como fora equacionada até 1964 (...),
de outro lado, a participação na indústria cultural, identi-
cada como uma espécie de “traição” à cultura nacional,
pois era tida como uma forma de cooptação utilizada pelo
regime militar ao capital estrangeiro. A esse impasse, o
Tropicalismo tentou responder de forma original. Entre
a exigência de uma cultura politizada e a solicitação de
uma cultura de consumo, optou pela tensão que poderia
ser estabelecida entre esses dois pólos de concepção
estética e política” (Brandão e Duarte, 1990:74). Apesar
de compreender que o hibridismo vem-se instalando na
música brasileira muito tempo, foi através da gura
desse movimento que houve uma explosão no Brasil em
termos de experimentação musical, trazendo à tona uma
nova forma de criar música. Desapegado de valores tra-
dicionalistas, a Tropicália surge com a proposta de fundir
gêneros e estilos musicais, trazendo para a época novos
conceitos e tendências e aliando o tradicional ao moder-
no. O Tropicalismo representou uma nova linguagem da
música popular brasileira, partindo da “tradição” da mú-
sica, aliada a elementos da modernidade. Essa iniciativa
de unir elementos foi bastante criticada na época pelos
que apostavam num movimento para a construção de
uma identidade nacional.
3
Este depoimento foi retirado do jornal O Povo, do dia 14
de março de 1999, através do site www. noolhar/vidaearte
4
Músico cearense, José Ednardo Costa Soares, nasci-
do em Fortaleza em 1945, ajudou a organizar o evento
Massafeira em Fortaleza, e autor de uma das músicas
mais importantes para armar a fusão da música com a
literatura de cordel “Pavão Misterioso”. Retirado do jor-
nal O Povo, no dia 14 de março de 1999, disponível em
http//www.noolhar.com.br/vidaearte.
5
Poeta cearense.
6
Retirado do Jornal O Globo, entrevista realizada por
Ana Maria Bahiana, em 1982, com a atemática “Uma
Luz no fundo das trevas”.
7
Entrevista concedida ao jornal O POVO no dia 12 de
abril de 2004, disponível em http// www.noolhar.com.
br/vidaearte.
8
É o conjunto musical mais típico do interior cearense,
especialmente na região do Cariri. Tem origem perdida
no tempo, mas se desenvolveu e adquiriu peculiaridades
próprias entre o povo do Cariri. também uma inu-
ência indígena, devido ao uso de instrumentos típicos
como os pífanos (ou pífaros). A Banda compõe-se de
quatro elementos, que tocam zabumba, pífaros e uma
caixa. A mais conhecida é a Banda Cabaçal dos Irmãos
Aniceto, localizada no Crato. Toca quase toda espécie
de música popular: antiga, regional, religiosa e carna-
valesca. O ritmo é o baião, característico dos pés-de-
-serra do Cariri. Apresenta-se, em geral, em festividades
de cunho cultural, artístico e religioso. Disponível no site
http://www.turismo.ce.gov.br/atrativos_folclore.htm.
9
Referente ao dia 25 de agosto de 2003
10
Assunto sobre o qual me deterei de uma forma mais
aprofundada posteriormente.
11
Também chamada Banda de Couro, é o conjunto mu-
sical mais típico do interior cearense, especialmente
na região do Cariri. Originou-se no meio dos escravos
africanos, mas se desenvolveu e adquiriu peculiarida-
des próprias entre o povo do Cariri. também uma
inuência indígena, devido ao uso de instrumentos de
características indígenas (pífanos e pífaros). A banda
compõe-se de 4 elementos tocando zabumba, pífaros
e uma caixa. A mais conhecida é a Banda Cabaçal dos
Irmãos Aniceto, localizada no Crato. Toca quase toda
espécie de música popular: antiga, regional, religiosa e
carnavalesca. O ritmo é o baião, característico dos pés-
-de-serra do Cariri. Apresenta-se, em geral, em festivida-
des de cunho cultural, artístico e religioso. Disponível no
site http://www.turismo.ce.gov.br/atrativos_folclore.htm.
12
A Banda, originária do Crato, é composta por cin-
co integrantes de uma mesma família: a Lourenço da
Silva. São dois pifeiros, Raimundo e Antônio, o za-
bumbeiro Adriano, lho de Antônio, Jeová na caixa, e
Cícero nos pratos. Segundo Assumpção essa Banda
representa a “tradição” oral perpertuada pelas diferen-
tes gerações, descendente direto dos índios Cariri.
Tem uma relação muito estreita com os elementos da
natureza, em virtude de sua própria origem, os índios
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Contato:
Jane Meyre Silva Costa
- janemsc@yahoo.com.br
Artigo recebido em Abril de 2012
Artigo aprovado em Julho de 2012
Cariris. Além dessa formação musical, apresentava-
-se através de movimentos performáticos, imitando
animais, em seus shows por todo o país. Iniciavam
os eventos, em algumas participações, nos shows do
Movimento Cabaçal. Disponível no site http// www.re-
vistaangulo.com.br em 15.jan.2004
13
Aos 20 anos de idade chegava à cidade de Juazeiro
o paraibano José Lourenço Gomes da Silva, em bus-
ca de orientação do padre Cícero. Este recomendou
que zesse uma penitência durante algum tempo e
que depois voltasse. No seu retorno disse que tinha
uma missão. Mandou que se situasse no sítio Baixa
Dantas, onde o padre mandaria os romeiros mais des-
validos, fugitivos de perseguições. O beato tornou-se
pessoa de grande conança de Padre Cícero. Após
vários problemas, Padre Cícero perde o sítio e loca
José Lourenço e seus seguidores na fazenda Caldei-
rão. Em pouco tempo é fornecedor de mão- de-obra,
além de fertilíssima propriedade. Após a morte de Pa-
dre Cícero, Caldeirão é atacado por ociais da polícia,
devido ao receio de sua expansão. O local é saquea-
do e incendiado. (Souza:1994)
14
Segundo entrevista do vocalista Júnior Boca para esta
pesquisadora.
15
Entrevista concedida pela Banda ao Jornal O Povo
de 14 de Junho de 2007, tendo como título da matéria
“O balaio (High Tech) da Zenha”, de Amanda Queirós.
16
Retirado do site da banda www.soulze.com.br no dia
06/09/2006.
17
Cyber Cangaceiro (Retirado do site da banda www.
soulze.com.br no dia 06/09/2006).
63
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Formação e prossionalização do setor cultural -
caminhos para a institucionalidade da área cultural
1
Formación y profesionalización del sector cultural -
caminos a la institucionalidad del área cultural
Education and professionalization of the cultural sector
ways to institutionalize the cultural eld
Luiz Augusto F. Rodrigues
2
Resumo:
O texto apresenta diferentes terminologias utilizadas para designar os
prossionais que atuam no campo da organização e gestão da cultura,
discute suas atuações e conceitua aspectos do campo cultural. Traz,
também, resultados de mapeamento nacional sobre os espaços de
formação e prossionalização do setor cultural, em suas diferentes
inserções: cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, e
cursos de graduação (bacharelados e graduações tecnológicas). Por
m, o artigo detalha o curso de graduação em Produção Cultural da
Universidade Federal Fluminense e os caminhos prossionais de
seus alunos egressos.
Palavras chave:
Formação no setor cultural
Gestão cultural
Prossionalização e
institucionalização
da área cultural
64
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El texto presenta diferentes terminologías usadas para designar los
profesionales que actúan en el campo de la organización y gestión
de la cultura, discute sus actuaciones y conceptúa aspectos del
campo cultural. Muestra, también, resultados de un levantamiento
nacional acerca de los espacios de formación y profesionalización
del sector cultural, en sus diversas formas: cursos de posgrado lato
sensu y stricto sensu, y cursos de graduación (licenciaturas y grados
de asociado). A modo de conclusión, el artículo detalla el curso
de graduación en Producción Cultural de la Universidad Federal
Fluminense y los caminos profesionales de sus alumnos egresados.
Abstract:
The text presents different terminologies used to describe the
professionals who act in the organization and management areas
of culture, discusses their performances and conceptualizes some
aspects of the cultural eld. It also shows the results of a national
mapping of spaces destined to the education and professionalization
of the cultural sector, in its different types: lato sensu and stricto sensu
postgraduate courses, and graduate courses (bachelor’s degrees and
associate degrees). Finally, the article details the graduate course
in Cultural Production at the Federal Fluminense University and the
professional paths of its former students.
Palabras clave:
Formación en el sector
cultural
Gestión cultural
Profesionalización e
institucionalización
del área cultural
Keywords:
Education in the cultural
sector
Cultural management
Professionalization and
institutionalization of the
cultural eld
65
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Formação e profissionalização do
setor cultural -
caminhos para a institucionalidade da
área cultural
Primeiro, é preciso reforçar que es-
tamos num campo do conhecimento em
que as denominações dos prossionais
são utuantes ou mesmo ambivalentes,
e cujos sentidos diferem conforme o mo-
mento histórico e conjuntural do país. Ve-
jamos algumas das terminologias em uso,
ou já utilizadas pelo setor cultural.
Animador Cultural (usada para in-
dicar a mediação entre indivíduos e mo-
dos culturais -nos anos 80 Darcy Ribeiro
criou a gura do Animador Cultural junto à
rede pública estadual (RJ) de Educação-,
hoje a expressão está mais associada à
promoção do lazer).
Promotor Cultural (responsável
pela divulgação e promoção de produtos
artísticos e culturais).
Mediador Cultural (usada para in-
dicar o prossional que exerce a aproxi-
mação entre indivíduos e manifestações
da cultura e da arte).
O setor cultural é ainda um cam-
po recente em relação a certas sistema-
tizações e formalizações prossionais.
Talvez possamos identicar três termi-
nologias que vêm sendo utilizadas mais
recentemente.
Agente Cultural, de cunho mais
comunitário; um viabilizador e estimulador
de práticas culturais locais junto aos dife-
rentes grupamentos sociais.
Produtor Cultural, de cunho mais
operacional e executivo junto à mediação
entre a produção e a fruição dos bens e
produtos culturais.
Gestor Cultural, de cunho mais
formulador e propositor de políticas e pro-
gramas culturais, viabilizando uma maior
articulação entre as diferentes etapas da
cadeia produtiva da cultura.
No entanto, estas últimas nomencla-
turas também não dão conta da realidade
se analisarmos, por exemplo, o curso de
graduação em Produção Cultural da Uni-
versidade Federal Fluminense, lócus da mi-
nha fala neste ensaio. Formamos o Bacha-
rel em Produção Cultural, prossional cujos
eixos de formação trilharam disciplinas de
três grandes campos conceituais e práti-
cos: Fundamentos dos meios expressivos
e linguagens artísticas; Teorias da Arte e da
Cultura; Planejamento e gestão cultural.
A natureza dos mecanismos de pro-
dução e circulação de informação e dos
bens e serviços culturais, a complexidade
social das camadas populacionais e o tipo
de relação que mantêm com outras redes
sociais, os novos esquemas de relações ter-
ritoriais, os deslocamentos e trocas culturais
e artísticas, as novas formas e valores dos
objetos e signos da cultura material e ima-
terial, as tensões e disputas no e a partir do
campo cultural exigem novos olhares sobre
esta realidade, através dos quais a articula-
ção das disciplinas tradicionais possa ser re-
vista para dar lugar a outros instrumentos e
outras abordagens teóricas e instrumentais.
Este é um dos desaos da academia hoje.
Pode-se, sumariamente, estabe-
lecer diferenciações entre conceitos que
circulam junto e este campo na contempo-
raneidade. Administração cultural, Gerên-
cia cultural, Planejamento cultural, Gestão
cultural, como estabelecer contornos en-
tre tais noções?
Por Administração podemos entender
as atividades daqueles que executam planos
segundo interesses traçados externamente -
por uma instituição cultural por exemplo -; ou
ainda: pautadas por ações, pontuais.
66
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Na Gerência podemos estender o
conceito à participação na formulação de
tais planos, embora ainda segundo inte-
resses externos. Ou ainda: gerencia-se
por meio de estratégias, gerais.
Por Planejamento podemos consi-
derar a formulação dos planos e progra-
mas de ação.
A Gestão Cultural pressupõe a for-
mulação dos planos e também dos con-
ceitos que os norteiam. Neste processo
atuam concretamente planejadores e usu-
ários, buscando garantir a sustentabilida-
de das ações. Na gestão trabalha-se por
meio de políticas, estruturais e integradas.
Como aponta Rubens Bayardo,
Entendemos a gestão cultural como
uma mediação entre os atores, as dis-
ciplinas, as especicidades e os domí-
nios envolvidos nas diversas fases dos
processos produtivos culturais. Essa
mediação torna possível a produção,
a distribuição, a comercialização e o
consumo dos bens e serviços culturais,
articulando os criadores, os produtores,
os promotores, as instituições e os -
blicos, conjugando suas diversas lógi-
cas e compatibilizando-as para formar
o circuito no qual as obras se materiali-
zam e adquirem sentido na sociedade.
3
O autor traz uma importante contri-
buição ao chamar atenção para todas as
etapas envolvidas no sistema de produ-
ção cultural para as quais os mediadores
culturais devem voltar sua atenção e seus
cuidados prossionais, além de reforçar a
ideia de uma necessária articulação entre
os diferentes agentes e da mediação entre
o fazer e o fruir de bens culturais.
A questão da nomenclatura de de-
signação destes diversos agentes inseri-
dos na mediação cultural é trazida tam-
bém por Rubim:
Denominações as mais distintas são
acionadas para intitular o momento da
organização da cultura e os prossio-
nais responsáveis por seu tratamento.
Assim, a denominação de gerentes
e administradores culturais predomi-
na nos Estados Unidos e na França;
a noção de animadores e promotores
culturais possui uma importante tra-
dição na Espanha; em muitos países
da América Latina fala-se em traba-
lhadores culturais e em outros países
podem ser utilizados termos como
mediadores culturais, engenheiros
culturais ou cientícos culturais. Em
Portugal, também se aciona a expres-
são programadores culturais para dar
conta da esfera da organização da
cultura. Mas recentemente a noção de
gestão cultural vem ganhando grande
vigência em diversos países, inclusive
ibero-americanos [...].
4
Volto ao campo da gestão cultural
por entendê-lo como a esfera mais ampla
dos processos de mediação, e é sempre
bom destacar que a própria noção de cul-
tura vem se largando bastante nas últi-
mas décadas.
Pode-se entender CULTURA como
um processo de sedimentação de memó-
rias, a longo e médio prazo, e que opera
com as diferenças de toda a sociedade.
Entendida desta forma seus propósitos
são contrários aos das lógicas de imedia-
tismo e da estandartização.
Se o agente da cultura for exclusi-
vamente o Estado, tende-se a desenvolver
políticas culturais marcadas por um “patri-
monialismo estadista” ou por um “dirigismo
estatal”. Se o agente for exclusivamente o
Mercado, culminaria em um “mercantilismo
cultural” ou “privatização da vida cultural”.
A história da modernidade buscou regi-
mentar a esfera estatal como representan-
te única da esfera pública. Pensamentos
contrários buscam articular a todo indiví-
67
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
duo três atuações básicas: pública, privada
e íntima. Deste modo, as políticas culturais
sendo da esfera pública estão afetas tanto
ao Estado quanto à sociedade inteira.
Segundo o pensador português
Boaventura de Souza Santos
5
assiste-se,
hoje, a uma hiperpolitização estatal e uma
despolitização da vida cotidiana. Podemos
entender como ação pública aquilo que de
nós pertence ou está voltado aos demais,
dependendo mais do espaço em que se
desenvolve. Não há, portanto, como dis-
sociar a ação cultural de noções ligadas à
cidadania, à justiça social, à armação de
sociedade civil e da ação pública, e à ética.
E os processos culturais estão cada
vez mais complexos no mundo contempo-
râneo, onde as trocas culturais se mos-
tram cada vez mais ampliadas. Segundo
Alain Touraine
6
, por multiculturalidade po-
demos entender a manutenção da unida-
de social reconhecendo a pluralidade de
culturas e tendo-as em permanente inter-
câmbio entre atores sociais com visões de
mundo diferenciadas (algo que está além
da mera coexistência ou convivência).
Tal noção rechaça a desigualdade entre
culturas: superior, avançada, primitiva ou
subdesenvolvida e substitui a noção de
preservação cultural pela de equiparação
entre diversas culturas.
Ainda segundo o autor, multicultura-
lidade pode ser identicada com: a defesa
das minorias e seus direitos (porém o
risco de aceitá-las, mas apartadas entre
si); o respeito à diferença (novamente o ris-
co de preservar grupos, mas mantendo-os
intactos, isto é, bolsões apartados e gre-
gários); a coexistência indiferenciada (na
qual, de novo pode-se tê-las sem coexis-
tência ou interação); a negação das cultu-
ras ocidentais (apologia oriental ou latina).
Por m, o conceito correlaciona-se
ao reconhecimento do outro sem a obses-
são pela própria identidade, isto é, reco-
nhecer em cada cultura ou grupo seus va-
lores próprios e os universais.
O conceito de interculturalida-
de pressupõe aceitar que os diferentes
modos culturais não são fatos isolados
nem se produzem espontaneamente; o
que ocorre é o interrelacionamento entre
eles. Observa-se neste processo duas
tendências: relações de dominação e
não de reconhecimento, o que leva ao
desaparecimento de fatos originários; re-
lações de diálogo e interação signicati-
va, levando à interação.
Cabe a consideração de que mul-
ticulturalidade e interculturalidade são
questões que às vezes se imbricam, ou-
tras vezes não. que se rearmar que
são conceitos complexos e cujos resulta-
dos são perpassados pelos processos de
globalização, nos quais interagem simul-
taneamente atividades econômicas e cul-
turais (mensagens, produtos e bens sim-
bólicos consumidos) dispersas e geradas
por um sistema de múltiplos centros, onde
o que importa não é a origem geográca e
sim a velocidade com que se dá esta inte-
ração. Como consequências pode-se ob-
servar: crescente mobilidade de indivíduos
ou grupos; explosão de atores e circuitos
internacionais; crise do modelo estatal
(fragilidade da noção de Estado-Nação;
perda de autonomia dos Estados Nacio-
nais); crescentes reivindicações regionais
e de culturas subjugadas; busca de iden-
tidades supranacionais; predomínio de in-
formações e/ou relações massicadas em
prejuízo de relações interpessoais.
Conforme Garcia Canclini
7
, a glo-
balização na ibero-américa resultou em, a
partir dos anos 70: predomínio dos meios
eletrônicos em detrimento das formas mais
tradicionais de produção e circulação de
cultura (popular ou erudita); esvaziamento
dos equipamentos culturais (cinemas, tea-
tros, bibliotecas, centros culturais etc.); di-
minuição do papel das culturas locais, re-
68
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
gionais ou nacionais (ligadas a territórios
e histórias particularizadas) e substituição
por mensagens geradas e distribuídas por
circuitos transnacionais; redistribuição das
responsabilidades entre Estado e iniciati-
va privada, em relação à produção, nan-
ciamento e difusão dos bens culturais.
Por outro lado, e em reação a uma
homogeneização cultural (predominante-
mente de base norte-americana), a globa-
lização tem ensejado o fortalecimento de
políticas culturais locais e regionais: fortale-
cer o “local globalizado” em substituição ao
“global indiferenciado”. Lembrando, como
apontou Fernand Braudel, que as frontei-
ras culturais nem sempre (ou quase nunca)
se justapõem às fronteiras políticas.
Tenho apresentado em alguns tex-
tos e palestras a preocupação que a ideia
da gestão cultural passa muito mais pela
compreensão da complexidade dos pro-
cessos e pela efetividade das ações do
que por meros procedimentos administra-
tivos e tecnicistas.
Daí argumentar-se que a capacita-
ção para atuar na área cultural não pode
restringir-se ao aprendizado propiciado
pelo próprio fazer. Hoje, isto não é mais
satisfatório. É necessário reforçar o cam-
po da reexão como base para as ações
de gestão na área da cultura, de modo a
não reproduzir certos consensos que ar-
bitram para a cultura ideias fora do lugar.
Em especial no novo quadro da institucio-
nalização de políticas públicas.
Lia Calabre aponta reexões so-
bre a I Conferência Nacional de Cultura,
realizada em 2005, na qual a
questão da formação dos prossionais,
sejam eles das áreas de gestão ou das
linguagens e práticas artísticas, está
presente em praticamente todos os ei-
xos [os cinco eixos temáticos com pro-
postas para discussão na Conferência].
A discussão varia entre a premência do
reconhecimento formal de determina-
dos saberes, a necessidade de amplia-
ção de alguns cursos existentes nos
diversos níveis de ensino e a preocupa-
ção com a necessidade de criação de
cursos de formação em novas áreas.
8
Na II Conferência Nacional de Cul-
tura, realizada em 2010, pude constatar
que a questão da formação apareceu em
várias das diretrizes prioritárias aprova-
das. Formação em vários níveis, e com
diferentes objetivos: gestores, produtores,
técnicos operacionais, artistas.
O grande dilema passa, hoje, por
identicar nomenclaturas adequadas e
conteúdos a serem aprofundados nas di-
versas e diferentes propostas curriculares
de formação para a prossionalização do
setor. O texto de Barbalho; Rubim & Costa
é esclarecedor quanto à terminologia des-
tes prossionais no âmbito das leis.
Para uma comparação com os termos
de referência ocial no Brasil, apresenta-
mos a seguir os dados da Classicação
Brasileira de Ocupações (CBO). Neste
documento, “Produtores artísticos e cul-
turais” constituem a família de número
2621. [...] Nessa família, por exemplo,
estão presentes o “Produtor Cultural”,
o “Produtor cinematográco”, o “Produ-
tor de teatro” e os tecnólogos formados
nesta área. [...] Em relação à formação
prossional, o documento arma que
“essas ocupações não demandam nível
de escolaridade determinado para seu
desempenho, sendo possível que sua
aprendizagem ocorra na prática” (MTE,
2010, p. 399
9
), mas destaca que “seguin-
do a tendência de prossionalização que
vem ocorrendo na área das artes, (...),
cada vez mais será desejável que os
prossionais apresentem escolaridade
de nível superior” (MTE, 2010, p. 399). A
CBO não indica, entre suas ocupações,
a gura do gestor cultural trazendo
69
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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apenas o gestor público ou o gestor de
eventos, ligado a área do turismo.
10
Os autores apresentam, também
segundo o CBO, que os produtores de
rádio e TV são regulamentados pela Lei
6.615/78 e decreto 84.134/79, e vin-
culados ao Sindicato dos Radialistas. Por
sua vez, os produtores de cinema e teatro
são regulamentados pela Lei º 6.533/78,
e vinculados ao Sindicato dos Artistas e
Sindicato dos Trabalhadores da Indústria
Cinematográca (Sindicine). o registro
prossional de tecnólogos em Produção
Cultural e de Eventos é dado através do
Conselho Federal de Administração (Re-
solução Normativa nº 374/2009).
Coloquei no início deste texto que
meu posicionamento é oriundo de meu lugar
prossional enquanto professor junto ao ba-
charelado em Produção Cultural da Univer-
sidade Federal Fluminense (UFF). Criamos
o curso em 1995 no intuito de proceder, a
partir de uma universidade pública, à crítica e
reexão sobre as formas de ação no campo
cultural. Naquela época, a produção cultural
era uma atividade prossional corrente e for-
talecida pela lógica de projetos incentivados
através de renúncia scal: Lei Mendonça
(1990, cidade de São Paulo); Lei Rouanet
(1991, âmbito federal); Lei do ICMS (1992,
estado do Rio de Janeiro); e Lei do Audiovi-
sual (1993, âmbito federal). Víamos, a partir
do Departamento de Arte da UFF, que a ges-
tão dos projetos e políticas na área cultural
encontrava-se muito a reboque da iniciativa
privada, embora nanciados com recursos
públicos. As críticas e posicionamentos que
viemos desenvolvendo junto ao curso, des-
de então, apontavam o entendimento amplo
da cultura e a necessidade de que as po-
líticas culturais (públicas ou não) deveriam
contemplar os diversos segmentos da socie-
dade, potencializando suas possibilidades
de criação e de fruição cultural.
Os caminhos abertos pela UFF (ba-
charelado em Produção Cultural) e pela
Universidade Federal da Bahia (que criou
uma habilitação em Produção em Comu-
nicação e Cultura, junto à graduação em
Comunicação Social) foram seguidos pela
Universidade Cândido Mendes, no Rio de
Janeiro (habilitação em Produção e Polí-
tica Cultural, junto à graduação em Ciên-
cias Sociais), e –bem mais recentemen-
te- pela Universidade Federal do Pampa,
que criou o bacharelado em Produção e
Política Cultural (oferecido no Campus do
Jaguarão) e, junto ao curso de Relações
Públicas, uma habilitação com ênfase em
Produção Cultural (ministrada no Campus
de São Borja).
Desenvolvi, em 2010 (atualizado até
abril/2012) um Mapeamento
11
da formação
na área, em parceria com a ABGC Associa-
ção Brasileira de Gestão Cultural, cujos resul-
tados passarei esquematicamente a tratar.
70
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O mapeamento desenvolvido em
2010 (e atualizado até abril/2012) resul-
tou em 89 incidências. Levantamos ape-
nas os cursos de graduação (9 bacha-
relados e 42 cursos tecnológicos) e de
pós-graduação (6 stricto sensu e 32 lato
sensu), deixando de fora outras modali-
dades como cursos livres ou cursos de
extensão universitária, por exemplo. To-
mamos como recorte áreas de formação
em gestão e produção cultural, e tam-
bém de gestão de eventos, estes –em
sua grande maioria- cursos de graduação
tecnológica (46,6% do total). Outra mo-
dalidade que se mostrou expressiva foi a
de cursos de pós-graduação lato sensu
(35,5% do total geral), sendo que a maio-
ria deles com abertura de turmas condi-
cionada a existência de demanda (30%
deste universo especíco). Na modali-
dade PG Lato Sensu encontrou-se dois
cursos de EAD (Educação à Distância);
foram as únicas incidências de EAD em
todo o mapeamento.
Ressalte-se que a expressiva
maioria dos cursos pertence a institui-
ções privadas. As exceções acontecem
quando avaliada a PG Stricto Sensu, na
qual 50% dos cursos são em instituições
públicas, e quando se avalia os cursos
de graduação com bacharelados especí-
cos (Produção Cultural, na UFF; Produ-
ção e Política Cultural, na UNIPAMPA),
neste caso tem-se 100% dos cursos em
universidades públicas.
Quanto à regionalização, seguem
os dados.
A pós-graduação stricto sensu
12
permite, pelo seu pequeno quantitativo,
maior detalhamento. Os cursos são em
Patrimônio Cultural e em Bens Culturais,
além do mestrado/doutorado da UFBA em
Cultura e Sociedade. Dos seis existentes,
três estão na região Sudeste (todos na ci-
dade do Rio de Janeiro) e dois na região
Sul (Santa Maria/RS e Joinville/SC).
Já a pós-graduação lato sensu tem
áreas bem diversas de formação: direi-
to, gestão e produção do entretenimento;
gestão e produção cultural; patrimônio e
bens culturais; gestão de políticas, de pro-
jetos, de organizações culturais, do tercei-
ro setor – ou seja, muitos são focados em
gestão institucional; e organização e ges-
tão de eventos. Quanto à regionalização,
tem-se o gráco abaixo.
71
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Os bacharelados foram detalha-
dos anteriormente, cabendo agora algu-
mas informações sobre as graduações
tecnológicas. Dos 42 cursos, apenas
oito são em gestão e produção cultural;
os demais (34 cursos) são em gestão e
produção de eventos. Quanto ao primei-
ro caso, daqueles oito apenas três são
em instituições federais. São os casos
dos cursos dos Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
de Janeiro (em Nilópolis), do Rio Grande
do Norte (em Natal) e Sul Riograndense
(em Sapucaia do Sul), respectivamen-
te IFRJ, IFRN e IFSul. Afora esses, os
demais cursos são dois em São Paulo e
três na região sul.
Quanto aos cursos de tecnologia
em eventos (34 do total de 42 cursos tec-
nológicos). Sua regionalização se dá con-
forme a seguir:
Como detalhamento desta regio-
nalização referente aos cursos tecnológi-
cos em eventos, temos que: a) os dois da
região norte são em Boa Vista/RR e em
Belém/PA; b) os do nordeste estão em Re-
cife, Aracaju e outros três em Salvador; c)
os sete do centro oeste estão assim distri-
buídos dois em Brasília, três em Goiânia,
um em Campo Grande e um em Cuiabá;
d) os cinco da região sul estão localizados
em Curitiba, Foz do Iguaçu, Joinville e dois
em São José/SC. A concentração aconte-
ce, sobretudo, na região sudeste, com 15
das incidências (ou seja, 44%), e mesmo
assim dez delas no estado de São Paulo
(isto é, 66,6% dos cursos da região). Ti-
rando as de SP, têm-se uma no Rio, três
em Belo Horizonte e uma em Vitória.
AVALIANDO A TRAJETÓRIA DO BACHARE-
LADO EM PRODUÇÃO CULTURAL DA UFF:
A estrutura da graduação em
PRODUÇÃO CULTURAL da UFF está
apoiada em três blocos básicos que
norteiam as diferentes disciplinas: Fun-
damentos das artes; Teorias da Arte e
da Cultura; e Planejamento e gestão
cultural. Assim como nas demais uni-
versidades, o curso busca se estruturar
a partir de um tripé baseado na indis-
sociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão universitária.
Atualmente, a estruturação do
curso encontra-se em fase de ajustes
curriculares.
72
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Hoje o curso é integralizado a partir de
2655 horas, sendo 2025 horas em disciplinas
OBRIGATÓRIAS (sendo 390 referente ao
trabalho Final I e II); 570h em disciplinas OP-
TATIVAS (o Colegiado de curso estabelece o
rol de disciplinas entre as quais o aluno pode
optar cursar. Deste total, 120h podem ser
computadas em Atividades Complementares
–conforme detalhamento a seguir); e 60h em
disciplina(s) ELETIVA (o aluno elege o que
cursar, dentro do rol de toda a universidade).
A grade curricular é complementada
pela possibilidade do aluno incorporar suas
práticas em diferentes campos, através das
chamadas ATIVIDADES COMPLEMENTA-
RES AC, que integralizam até 120h do
currículo e estão divididas em 5 categorias:
Atividades de Ensino (participação em pa-
lestras, congressos, monitorias entre ou-
tras); Atividades de Pesquisa (participação
em projetos de iniciação cientíca, sob a tu-
toria de professor doutor); Atividades de Ex-
tensão (englobam cursos de extensão,e/ou
participação em projetos extensionistas);
Atividades de Estágio Prossional (esta ca-
tegoria precisa estar necessariamente for-
malizada na Coordenação de Curso, e de
acordo com a legislação pertinente; o Es-
tágio não é obrigatório); Outras Atividades
(podendo ser: Visitas Técnicas / intercâm-
bios artístico-culturais; assistência a teatro,
cinema, concertos, espetáculos...; Cursos
livres (dança, artes, teatro, música...).
Algumas alterações signicativas
estão sendo implementadas a partir deste
semestre. São elas: alterações na perio-
dização de algumas disciplinas; transfor-
mação de três obrigatórias em optativas
(Arte e pensamento; Estética e cultura I;
Direção de arte III) e inclusão de quatro
novas obrigatórias. Obrigatórias incluí-
das em 2012: Projetos experimentais em
Produção Cultural; História do Patrimônio
Cultural; Economia da Cultura; e Métodos
de planejamento em pesquisa cultural.
VER A GRADE CURRICULAR
ANEXA AO FINAL DESTA EDIÇÃO
A partir de março de 2012 iniciamos
um mapeamento dos alunos egressos do
curso de Produção Cultural da Universidade
Federal Fluminense. De um total de 325 for-
mados de 2001 a 2011, os dados a seguir
se baseiam na participação de 89 ex-alunos,
portanto nosso universo de análise repre-
senta 27% dos egressos. O questionário foi
bem abrangente, e buscou identicar os prin-
cipais caminhos destes prossionais, assim
como avaliações sobre a formação em si.
73
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Os dados sobre o tempo de per-
manência no curso desmistificam uma
impressão inicial. O curso tem duração
de 8 semestres (4 anos), podendo ser
prolongado até 12 semestres (6 anos),
sendo que o aluno ainda pode trancar
a matrícula por outros 2 anos. Tínha-
mos a impressão de que nosso alunato
demorava muito tempo para se formar,
e que isto se dava por conta da am-
pla possibilidade de estagiar durante a
formação. Os índices, entretanto, não
corroboram essa ênfase, pois 70% se
forma em até 5 anos.
Outro dado esclarecedor é sobre
a vinculação regional dos alunos. Como
visto, são ainda poucos os cursos de
formação nesta área existentes no país,
portanto os quase 30% de alunos que ti-
veram que mudar de cidade para fazer
o curso é um reexo desta situação. Em
relação ao local de residência anterior,
69% dos que vieram de fora da região
metropolitana do Rio de Janeiro são
oriundos do interior do estado. Os outros
31% dos migrantes vieram dos estados
de SP, ES, MG, GO e RN. Em relação
aos mais de 70% oriundos da região me-
tropolitana do Rio de Janeiro, a grande
maioria vem da própria capital.
Em sendo uma graduação muito
recente, alguns alunos optam por uma
dupla formação. Do universo trabalha-
do, 15% fizeram também outra gra-
duação além do bacharelado em Pro-
dução Cultural. Durante o curso, 31%
dos alunos participantes da pesquisa
participaram de projetos de iniciação
à pesquisa científica e/ou de exten-
são universitária, principalmente esta
última modalidade. em relação aos
estágios (não obrigatórios, no caso do
nosso curso), expressiva maioria dos
alunos foi estagiária.
Destaque-se que apenas oito alu-
nos não zeram nenhuma modalidade
de estágio, representando 9% do uni-
verso total. Ressalte-se, ainda, que 84%
dos que zeram estágio, o zeram nas
duas modalidades.
Porém, a percepção do aluno so-
bre estágio e trabalho apresenta varia-
ção. Enquanto 85% dos respondentes
da pesquisa afirmam terem feito está-
gio, apenas 70% afirmam ter trabalha-
do. Vejamos os gráficos a seguir.
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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PERFIL DO EGRESSO:
Embora o percentual de alunos
que participaram de processos de ini-
ciação científica seja relativamente pe-
queno, é bem expressiva a quantidade
de alunos inseridos (53%) ou desejosos
de se inserir (43%) na formação pós-
-graduada. Vejamos.
Em relação ao campo de atua-
ção profissional, 57% se consideram
inseridos em empregos formais, e os
43% restantes em empregos infor-
mais (freelancers, produtores inde-
pendentes etc). A diversidade dos da-
dos é melhor visualizada na forma de
tabela. Vamos a ela.
Interessante constatar que 80%
se percebem atuantes no campo de
formação. As tabulações da tabela
da direita são oriundas de 109 res-
postas, pois se admitiu mais de uma
opção de resposta. É referente à per-
cepção do egresso sobre sua atuação
(e não mais a especificação da área/
local de trabalho).
75
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
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Para 18% dos participantes a inser-
ção prossional se deu como continuidade
no próprio local do estágio enquanto ainda
aluno. Para outros 13% a inserção foi difí-
cil, pois “o mercado ainda desconhece ou
não reconhece a formação em produção
cultural”. Há quem considere que a forma-
ção universitária não foi essencial para a
função: “o diploma não fez diferença no
mercado de trabalho, a experiência [na
universidade] contudo foi importante na
conceituação de valores e no desenvolvi-
mento de uma apuração estética”.
Retirados os 20% que consideram
não trabalhar na área de formação, os 18%
efetivados no próprio local de estágio, os
13% que consideram que a formação não
foi tão essencial, os 49% restantes conside-
ram que conseguiram bons empregos e que
a formação na universidade foi essencial.
Quanto à remuneração, têm-se fai-
xas salariais que apontam uma remune-
ração inicial que dobra ao nal de poucos
anos. Pode-se apontar ainda que o mer-
cado prossional no Rio de Janeiro vem
apontando padrões salariais majorados
(em todas as carreiras e áreas) por conta
dos mega eventos que estão acontecendo
e virão a acontecer no curto prazo. Hoje,
percebe-se salários iniciais da ordem de
R$ 2.300,00 para o produtor cultural no
Rio de Janeiro.
Por m, procurou-se inventariar
junto aos ex-alunos algumas avaliações
sobre o curso propriamente dito. Dos
100% do universo participante, 18% não
quiseram opinar; 50% se disseram satis-
feitos com a formação; 25% consideraram
que o curso deveria explorar mais a for-
mação prática e/ou ampliar o foco da for-
76
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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mação teórica em disciplinas dos campos
da administração, gestão e planejamento
cultural, e os 7% restantes apontaram ter
conhecimento da estruturação pela qual
o curso está passando e que a mesma o
está melhor adequando.
Sobre o reconhecimento do curso,
20% das respostas apontaram esta como
uma questão-chave para a sua melhoria.
Indicaram que tal reconhecimento pas-
sa tanto pela participação/realização de
eventos e participação em trabalhos aca-
dêmicos na área especíca da Produção
Cultural, como também por uma maior
divulgação do curso junto às empresas
que atuam no segmento cultural, amplian-
do tanto o campo de estágios como de
exercício prossional propriamente dito.
Levantou-se, ainda, a questão dos con-
cursos que ainda desconhecem ou não
formalizaram o reconhecimento do pros-
sional graduado nesta área.
Cabe destacar tratar-se da visão
dos egressos destes onze anos (2001 a
2011) e que a partir de 2012 o curso so-
freu ajustes curriculares resultantes das
análises desenvolvidas ao longo de 2011
por professores e alunos. Utilizou-se,
como metodologias para a discussão do
ajuste curricular, fóruns virtuais e reuniões
presenciais que ao longo de seis meses
discutiram as potencialidades e as dicul-
dades do curso; suas forças e suas fra-
quezas, suas oportunidades e seus riscos
para utilizar nomenclaturas do planeja-
mento estratégico.
Considerando-se que os índices de
participação do mapeamento desenvolvi-
do em 2012 e explorado nestas reexões
anteriores foram oriundos de respostas
de alunos formados em todos os anos de
2001 a 2011, sem que tenha havido uma
concentração muito diferenciada em al-
guns períodos deste intervalo, considera-
mos que as análises são bem procedentes
e expressivas. Cabe destacar que 44% do
universo se encontraram distribuídos dos
anos de 2001 a 2006 e que, dos 56% dis-
tribuídos de 2007 a 2011, apenas 6% das
respostas são referentes a alunos forma-
dos no ano de 2011.
Bem, as análises se referiram a um
universo de questionários respondidos
que representou 27% do total de egressos
do curso da UFF. Os levantamentos estão
ainda em andamento e, atualmente, dis-
pomos de 35% dos questionários respon-
didos, mas acreditamos que os resultados
se mantenham em percentuais bem próxi-
mos aos relatados neste momento.
É certo que o curso necessita am-
pliar seus canais de divulgação, assim
como reforçar seu nível de excelência.
Face esta realidade, a coordenação do cur-
so de Produção Cultural da UFF vem em-
preendendo alguns esforços e articulando
algumas parcerias institucionais. Pode-se
destacar algumas ações mais recentes:
. articulação com PragMatizes – Revista
Latino Americana de Estudos em Cultura
(www.pragmatizes.uff.br), criada em 2011;
. participação na criação de programa de
mestrado em Cultura e territorialidades
(projeto de 2012);
. desenvolvimento do seminário interna-
cional Panorama da Organização da Cul-
tura na América do Sul, em novembro de
2011. Convém destacar que um dos re-
sultados deste encontro se articula com a
necessidade de pesquisa e formação na
área da gestão cultural. Trata-se da Carta
de intenções que norteou a criação inicial
de uma rede de articulação entre pesqui-
sadores sul americanos.
REDE ∞ 8 PONTOS EM CULTURA:
Um importante desdobramento do
seminário foi a articulação inicial entre
77
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
pesquisadores sul americanos que leva-
ram à constituição de uma rede de par-
ceria que se comprometeu com alguns
pontos estratégicos. Foram traçados oito
pontos iniciais, mas que pretendem inni-
tos pontos ∞.
Seguem os signatários presentes na-
quele momento e o documento estabelecido:
BARBALHO, Alexandre - Universidade
Estadual do Ceará (Brasil)
BERNABÉ, Mónica Universidad Nacio-
nal de Rosario (Argentina)
BRAVO, Marta Elena - Universidad Nacio-
nal da Colombia – sede Medellin.
CARRASCO, Bernabé Universidad de
Bio-Bio (Chile)
DOMINGUES, João - Universidade Fede-
ral Fluminense (Brasil)
GERICKE, Valeria – Universidad Nacional
de Rosario (Argentina)
MASAU, Virginia - Municipalidad de Rosa-
rio / Universidad Nacional de Rosario
RIVAS, Patricio – Universidad de Chile
RODRIGUES, Luiz Augusto Universida-
de Federal Fluminense (Brasil)
Carta do seminário internacional
Panorama da Organização da Cultura
da América do Sul
(Brasil, 2011) - Niterói, 17 de novembro
de 2011
Nós, integrantes de universidades e
instituições culturais sul americanas, reu-
nidas e reunidos em função do seminário
internacional Panorama da Organização
da Cultura na América do Sul, realizado
no Auditório Macunaíma da Universida-
de Federal Fluminense, reconhecemos o
momento de transformação das relações
políticas em nossos países, não apenas
na América do Sul, mas em toda a Latino
América e Caribe.
Consideramos que os processos
de desenvolvimento cultural em nossa re-
gião têm produzido condições potenciais à
integração e cooperação. Estes processos
são resultado das ações de muitas inicia-
tivas e comunidades culturais da América
Latina e Caribe.
Reconhecemos os avanços que
vêm sendo produzidos e discutidos nos
diversos contextos e nos propomos a con-
tribuir com esta carta para tal perspectiva,
sempre sob posicionamentos que dialo-
guem com os diferentes agentes dos pro-
cessos culturais.
Tendo isso em vista, propomos:
1- estruturar uma rede de instituições,
universidades e agentes culturais que dia-
loguem por meio de trabalhos de ensino,
pesquisa e extensão no campo político-
-cultural da América Latina e Caribe;
2- incentivar ações conjuntas de inter-
câmbio, cooperação e integração interna-
cionais;
3- desenvolver seminários permanen-
tes que promovam o intercâmbio de pes-
quisas e reexões com foco nas políticas
e nas práticas de gestão e produção em
cultura;
4- fomentar a formação nas áreas da
organização e prossionalização da cultu-
ra, promovendo inclusive o intercâmbio de
alunos e docentes;
5- propiciar a troca de experiências
através do desenvolvimento de pesquisas
comparadas;
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
6- estimular a criação de laboratórios
e observatórios de pesquisa;
7- criar uma plataforma digital que
funcione como suporte de divulgação das
atividades da rede;
8- viabilizar publicações e buscar me-
canismos de nanciamento para ações
conjuntas.
A guisa de conclusão, é impor-
tante destacar que a implementação das
políticas em cultura vem ganhando força
e tentativas de sistematicidade e desen-
volvimento qualicado. A que se conside-
rar, no entanto, que para se ter políticas
é necessário que se posicione e se con-
ceitue a partir de que preceitos as políti-
cas serão norteadas, além de se precisar
de recursos (nanceiros, técnicos, físicos,
materiais e humanos) para executá-las. A
formação é, então, um requisito básico.
Tanto do quadro técnico envolvido quanto
–e principalmente, ouso dizer- dos propo-
sitores e gestores responsáveis pela im-
plantação e acompanhamento das políti-
cas traçadas. Os dados dos indicadores
culturais que vêm sendo construídos pelo
Ministério da Cultura são elucidadores. As
estatísticas referentes à escolaridade dos
gestores públicos dos municípios brasilei-
ros
13
indicam que a maioria apresenta for-
mação superior (em média, apenas 36%
dos gestores dos municípios de todas as
cinco regiões possuem apenas a gradu-
ação; se somarmos os percentuais da-
queles que possuem a graduação com
aqueles que possuem também pós-gra-
duação, chega-se à média de 70,8%). As
regiões sul e centro oeste apresentam os
percentuais mais elevados em relação aos
gestores pós-graduados (respectivamente
49% e 46%). Resta, porém, nos perguntar-
mos: em que áreas os gestores públicos
brasileiros são formados? Até que ponto
nossos gestores públicos municipais estão
realmente qualicados para os desaos da
gestão cultural e de suas políticas?
Bibliograa citada:
BAYARDO, Rubens. “A gestão cultural e a questão
da formação”. IN: Revista OIC – Revista Observa-
tório Itaú Cultural, 6 (jul./set. 2008). São Paulo:
Itaú Cultural, 2008. pp. 57-65.
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil; his-
tória e contemporaneidade. Fortaleza: Banco do
Nordeste do Brasil, 2010.
GARCIA CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. Mé-
xico: Grijalbo, 1989.
MinC Ministério da Cultura. Cultura em núme-
ros: anuário de estatísticas culturais 2009. Brasília:
MinC, 2009.
MTE Ministério do Trabalho e Emprego. Clas-
sicação Brasileira de Ocupações. Brasília: MTE,
SPPE, 2010.
RODRIGUES, Luiz Augusto F. Mapeamento ‘For-
mação em gestão, produção cultural e entrete-
nimento – graduação e pós-graduação’. Rio de
Janeiro: ABGC/Associação Brasileira de Gestão
Cultural, 2010 (atualizado abril/2012). Disponível
em www.gestaocultural.org.br/estudos.
RUBIM, A. A. C. ; BARBALHO, A. ; COSTA, L.
“Formação em organização da cultura: a situação
latino-americana”. IN: PragMatizes – Revista La-
tino Americana de Estudos em Cultura. Ano 2,
2, março 2012. Niterói, RJ: Universidade Federal
Fluminense/Laboratório de Ações Culturais, 2012.
pp 125-149. Revista disponível em www.pragmati-
zes.uff.br.
RUBIM, Antonio Albino Canelas. “Formação em
organização da cultura no Brasil”. IN: Revista OIC
– Revista Observatório Itaú Cultural, 6 (jul./set.
2008). São Paulo: Itaú Cultural, 2008. pp. 47-55.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Ali-
ce: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Ed. Cortez, 1996.
TOURAINE, Alain. Critique de la modernité. Paris:
Fayard, 1992
79
Ano 2, número 3, semestral, setembro 2012
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
1
Texto norteador da palestra apresentada no Encon-
tro Internacional Formação em Gestão Cultural, reali-
zado de 1 a 3 de agosto de 2012 no SESC Vila Maria-
na. São Paulo.
2
Arquiteto/urbanista, doutor em História social pela Uni-
versidade Federal Fluminense/UFF. Professor do bacha-
relado em Produção Cultural da UFF, e coordenador do
Laboratório de Ações Culturais – LABAC/UFF.
3
BAYARDO, Rubens. “A gestão cultural e a questão da
formação”. IN: Revista OIC – Revista Observatório Itaú
Cultural, 6 (jul./set. 2008). São Paulo: Itaú Cultural,
2008. pp. 57-65. p. 57.
4
RUBIM, Antonio Albino Canelas. “Formação em orga-
nização da cultura no Brasil”. IN: Revista OIC – Revista
Observatório Itaú Cultural, nº 6 (jul./set. 2008). São Pau-
lo: Itaú Cultural, 2008. pp. 47-55. p. 52.
5
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o
social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Ed.
Cortez, 1996.
6
TOURAINE, Alain. Critique de la modernité Paris:
Fayard, 1992.
7
GARCIA CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. México:
Grijalbo, 1989.
8
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil; história e
contemporaneidade. Fortaleza: Banco do Nordeste do
Brasil, 2010. p. 87.
9
MTE Ministério do Trabalho e Emprego. Classicação
Brasileira de Ocupações. Brasília: MTE, SPPE, 2010.
10
RUBIM, A. A. C. ; BARBALHO, A. ; COSTA, L. “Forma-
ção em organização da cultura: a situação latino-ameri-
cana”. IN: PragMatizes – Revista Latino Americana de
Estudos em Cultura. Ano 2, 2, março 2012. Niterói,
RJ: Universidade Federal Fluminense/Laboratório de
Ações Culturais, 2012. pp 125-149. p. 135. Revista dis-
ponível em www.pragmatizes.uff.br.
11
RODRIGUES, Luiz Augusto F. Mapeamento ‘For-
mação em gestão, produção cultural e entretenimento
– graduação e pós-graduação’. Rio de Janeiro: ABGC/
Associação Brasileira de Gestão Cultural, 2010 (atuali-
zado abril/2012). Disponível em www.gestaocultural.org.
br/estudos.
12
Quanticou-se a pós-graduação stricto sensu por
instituição, ou seja, quando da existência de mestrado
e doutorado, computou-se apenas uma instituição. Fo-
ram apenas dois casos: o curso de pós-graduação em
“História, Política e Bens Culturais” da Fundação Getúlio
Vargas (Rio) tem os dois níveis (mestrado e doutorado),
e o curso da Universidade Federal da Bahia –pós-gra-
duação multidisciplinar em “Cultura e Sociedade”- que
também tem os dois níveis.
13
Os municípios brasileiros foram tratados no suplemen-
to cultural dos levantamentos do IBGE – Munic 2006. Os
dados apresentados aqui são oriundos da publicação de
2009 do MinC: Cultura em números: anuário de estatís-
ticas culturais 2009
Contato:
Luiz Augusto F. Rodrigues
- luizaugustorodrigues@id.uff.br