A “redescoberta” da Baixada Fluminense:
Reexões sobre as construções narrativas midiáticas e
as concepções acerca de um território físico e simbólico
El “redescubrimiento” de la Baixada Fluminense:
Reexiones sobre las construcciones narrativas mediáticas y
las concepciones acerca de un territorio físico y simbólico
ANA LUCIA ENNE
Por que (,) Suzane?
10 anos depois
¿Por qué (,) Suzane?
10 años después
DANIELLE BRASILIENSE
Desprezando a riqueza aproveitando as respostas:
Diálogos entre cidade, território e cultura
Despreciar la riqueza aprovechando las respuestas:
Diálogos entre ciudad, territorio y cultura
JOSÉ MAURÍCIO SALDANHA ALVAREZ
Trânsitos, trajetos e circulação dos jovens na cidade
Trácos, trayectos y circulación de los jóvenes en la ciudad
LIVIA DE TOMMASI
A Televisão e a Música Popular Brasileira:
Histórias que se entrelaçam
La Televisión y la Música Popular Brasileña:
Historias que se estrelazan
MARILDO JOSÉ NERCOLINI
A persistente inscrição da fala da periferia
no Movimento Literário Brasileiro
La persistente inscripción de la habla de la
periferia en el Movimiento Literario Brasileño
RÔSSI ALVES GONÇALVES
O lugar da cultura.
A cultura do lugar
El lugar de la cultura.
La cultura del lugar
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES
Ano III nº 4 - março 2013
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano III nº 4 - março 2013
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
4. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
EDITORA DE TEXTOS (espanhol e inglês)
Mariana Darsie
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
5. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
6. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
7. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
8. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
9. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
10. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
11. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
12. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Ítalo Bruno Alves, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Artes, Brasil
19. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
20. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
21. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
22. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
23. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
24. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
25. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
26. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
27. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
28. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
29. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
30. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
31. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
32. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
33. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
34. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
35. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
36. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
37. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
38. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
39. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
40. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
41. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
42. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Cinema, Brasil
43. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
44. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
45. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano III nº 4, (MARÇO 2013). – Niterói, RJ: [s. N.], 2013.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário
EDITORIAL 05
ARTIGOS
A “redescoberta” da Baixada Fluminense:
Reexões sobre as construções narrativas midiáticas
e as concepções acerca de um território físico e simbólico
ANA LUCIA ENNE 06
Por que (,) Suzane? 10 anos depois
DANIELLE BRASILIENSE 28
Desprezando a riqueza aproveitando as respostas:
Diálogos entre cidade, território e cultura
JOSÉ MURÍCIO SALDANHA ALVAREZ 47
Trânsitos, trajetos e circulação dos jovens na cidade
LIVIA DE TOMMASI 61
O lugar da cultura.
A cultura do lugar
LUIZ AUGUSTO F. RODRIGUES 76
A Televisão e a Música Popular Brasileira:
Histórias que se entrelaçam
MARILDO JOSÉ NERCOLINI 92
A persistente inscrição da fala da periferia
no Movimento Literário Brasileiro
RÔSSI ALVES GONÇALVES 108
5
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Chegando ao quarto número
de PragMATIZES, sabemos que es-
tamos no caminho certo e que vamos
avançar ainda mais para existir como
um meio de tornar público os debates
acerca da cultura em geral.
Se entendemos que a cultura
é parte constitutiva de toda prática
social e que na contemporaneidade
essa dimensão ocupa cada vez mais
um lugar central, acreditamos que
olhar para a questão da cultura é hoje
fundamental para mapearmos formas
de atuação política. Há, neste sentido,
uma dupla imbricação entre cultura e
política: em primeiro lugar, a produção
de signicado é dimensão fundan-
te da luta política, ou seja, é preciso
entender as formas de ação política
em sua relação com as práticas cul-
turais; em segundo lugar, e cada vez
mais, essa associação se externaliza
e se assume, levando à constituição
de políticas culturais expressivas, em
que o sentido da cultura desliza entre
forma de ação política, no sentido de
intervenção no mundo, forma de cons-
trução de subjetividades e identidades
pessoais e grupais e forma de merca-
doria, dentro de uma lógica de produti-
vidade, distribuição, consumo, fruição
e descarte.
Esperamos, com este número
especial, apresentar as possibilida-
des que se delineiam cada vez mais
amplamente, de se pensar a Cultura
e todos os caminhos que engendram
a formação, fruição, produção, cria-
ção desta inclusive através do recém
montado Programa de Pós Gradu-
ação Mestrado em Cultura e Terri-
torialidades na Universidade Federal
Fluminense.
Pretendendo-se, assim, de-
monstrar a forte interseção entre o
campo da cultura e suas múltiplas di-
mensões espaciais, tanto em termos
materiais quanto simbólicos, pressu-
pondo relações processuais com os
territórios em que se dão tais relações.
Neste sentido, convidamos o
leitor a participar das reexões de al-
guns dos docentes que integram este
Programa e que apresentam suas
ponderações na nossa revista de for-
ma a compor uma amostra da quali-
dade e do compromisso acadêmico do
Mestrado Cultura e Territorialidades
UFF com as reexões cientícas pos-
síveis da Cultura e seu Lugar, debate
primordial ao nosso tempo.
Flávia Lages
Editora
Editorial
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A “redescoberta” da Baixada Fluminense:
Reexões sobre as construções narrativas midiáticas
e as concepções acerca de um território físico e simbólico
El “redescubrimiento” de la Baixada Fluminense:
Reexiones sobre las construcciones narrativas mediáticas
y las concepciones acerca de un territorio físico y simbólico
The “rediscovery” of the Baixada Fluminense:
Reections about the narrative constructions of the media
and the conceptions of a physical and symbolic territory
Ana Lucia Enne
1
Resumo:
Neste artigo, busca-se pensar a relação entre as concepções acerca de
um território urbano no caso, a Baixada Fluminense e as construções
discursivas produzidas na imprensa carioca e brasileira no decorrer da
década de 1990. Analisando matérias jornalísticas que têm como objeto
a Baixada, é possível perceber um deslocamento de sentidos acerca da
mesma, através dos quais os jornais atuam como agentes legitimadores
tanto da memória/passado quanto do projeto/futuro acerca da região.
Neste sentido, entendemos que a conformação das identidades está
fortemente atravessada pela dimensão da cultura, fazendo com que
haja um embaralhamento entre as condições físicas e materiais de um
espaço e suas apropriações simbólicas, gerando uma luta permanente
em torno do imaginário acerca desse espaço enquanto lugar signicado.
Palavras chave:
Cultura
Baixada Fluminense
Discurso
Identidade
Disputa
7
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
En este artículo, se busca pensar la relación entre las concepciones
acerca de un territorio urbano en este caso, la Baixada Fluminense
y las construcciones discursivas producidas en la prensa carioca y
brasileña con el transcurrir de la década de 1990. Analizando artículos
periodísticos que tienen como objeto la Baixada, es posible percibir un
desplazamiento de sentidos acerca de la misma, a través de los cuales
los periódicos actúan como agentes legitimadores tanto de la memoria/
pasado como del proyecto/futuro acerca de la región. En este sentido,
comprendemos que la conformación de las identidades está fuertemente
atravesada por la dimensión de la cultura, haciendo con que haya una
mezcla entre las condiciones físicas y materiales de un espacio y sus
apropiaciones simbólicas, generando una disputa permanente alrededor
del imaginario acerca de ese espacio como lugar signicado.
Abstract:
The aim of this article is to reect on the relationship between
the conceptions of an urban territory in this case, the Baixada
Fluminense and the discursive constructions produced in the Carioca
and Brazilian press throughout the 1990s. By analyzing journalistic
articles that have as an object the Baixada Fluminense, it is possible
to notice a shift of meanings about it, by which the newspapers act
as legitimizing agents of both memory/past and project/future of the
region. In this sense, we understand that the conformation of identities
is heavily crossed by the cultural dimension, so that there is a shufe
between the physical and material conditions of a space and its
symbolic appropriations, generating a constant dispute around the
imagery of this space as a signied place.
Palabras clave:
Cultura
Baixada Fluminense
Discurso
Identidad
Disputa
Keywords:
Culture
Baixada Fluminense
Discourse
Identity
Dispute
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A “redescoberta” da Baixada Fluminense:
Reexões sobre as construções narrativas
midiáticas e as concepções acerca de um
território físico e simbólico
Em 30 de abril de 1992, foi inaugu-
rada a primeira etapa da chamada Linha
Vermelha, via expressa que liga a Baixada
Fluminense à cidade do Rio de Janeiro.
2
Em 1994, a obra foi nalmente apresenta-
da de forma completa aos moradores des-
sa região, fazendo a conexão direta com
diversas outras vias expressas de grande
importância, como a Avenida Brasil e as
Rodovias Washington Luiz e Presiden-
te Dutra. Com esta intervenção urbana,
o tempo de percurso entre determinados
municípios da Baixada e o Centro do Rio
de Janeiro reduziu-se consideravelmente,
fazendo com que muitas vezes a distân-
cia entre a Baixada e a capital do Estado
fosse percorrida em menos de vinte mi-
nutos. No entanto, para além de ser uma
evidente transformação no tecido urbano
e sua malha de transporte, a criação da
Linha Vermelha signicou um importante
marco na reconstrução simbólica do que
se entendia por Baixada Fluminense e de
sua distância não só física como simbólica
do Rio de Janeiro.
Entendemos que as concepções
acerca do urbano não são estáticas e
sofrem variações a partir da construção
e disputa de múltiplos discursos. Neste
processo, os discursos midiáticos ocu-
pam lugar central. Como arma Eduardo
Duarte, “o acúmulo de temporalidades
na urbe ganha uma dimensão ainda mais
complexa quando sobre essa perspecti-
va conceitual acrescentamos a dimensão
dos meios de comunicação de massa”
(2006, p.107). São agentes fundamen-
tais na constituição de imaginários na e
sobre a cidade. Mas, segundo Eduardo
Duarte, é fundamental denir o que se
entende por “imagens”:
Não se trata aqui de uma informação
visual apenas, mas de uma informa-
ção conceitual, uma construção ima-
ginária complexa montada a partir de
fragmentos de realidade midiática que
apontam para um sentido. O conjun-
to de referências visuais, sonoras,
impressas, de expressões culturais
das mais diversas: críticas, elogios,
escândalos, belezas naturais, noções
de cidadania que geram imagens de
aspectos da cidade. As múltiplas ima-
gens também condensam impressões,
referências, sentidos, que por sua vez,
no seu conjunto, geram uma imagem
de toda a cidade. (2006, p.107)
Da mesma forma, Atília Arantes
nos lembra que o estudo do urbano “virou
sobretudo matéria de discurso”, pois “se
trata de atos de fala performativos, pois a
cidade também passou a ser aquilo que
se diz dela” (2001, p.137). É neste sentido
que temos pretendido, em nossas análises
sobre a construção de identidades para a
Baixada Fluminense, reetir sobre o papel
dos múltiplos discursos e seus efeitos de
sentido nesse processo.
Como demonstrei em outros tra-
balhos,
3
é possível perceber uma série
de deslocamentos semânticos acerca da
categoria Baixada Fluminense na grande
imprensa carioca, indicando como, histo-
ricamente, as representações acerca da
região são transformadas, diluídas, ne-
gociadas pela narrativa midiatizada, com
consequências claras não só nas concep-
ções do senso comum sobre a Baixada,
mas na própria experiência vivida pelos
moradores da região. Assim, podemos de-
tectar, no decorrer dos últimos cinquenta
anos do século XX, um deslocamento na
percepção acerca da região, que, de um
lugar ermo, até então agrário e que vinha
sendo basicamente ocupado por sistemas
de loteamento para migrantes que traba-
lhariam na capital, viria a ser representada
na grande imprensa como um lugar mar-
9
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cado por diversos problemas, destacando-
-se, principalmente, a questão da violência
e do abandono pelo poder público.
Neste sentido, em especial no decor-
rer das décadas de 1970 e 1980, a Baixada
Fluminense foi regularmente caracterizada,
na grande imprensa carioca, como um “ou-
tro” exótico e perigoso, “terra sem lei”, “ter-
ra de ninguém”, lugar da falta de ação po-
lítica e policial, um espaço de desmandos,
pobreza, insegurança, valas negras, falta
de cultura e atraso, dentre algumas das
muitas concepções negativizadoras que
encontramos no decorrer de nossos levan-
tamentos em pesquisas.
4
Mais ainda: esse
“outro”, temido e desvalorizado, se encon-
trava sicamente distanciado, vivendo em
lugares distantes da zona Sul, do centro do
Rio de Janeiro, de suas “belezas”, valores
e pessoas. Tratava-se, de acordo com esse
sistema representacional hegemônico, de
uma periferia no sentido territorial e cultu-
ral, tanto física quanto simbolicamente um
“outro” a ser temido, evitado, desprezado,
ridicularizado, diminuído.
Mostrei em minha tese de Doutora-
do
5
o quanto essa imagem negativa susci-
tou dolorosos e traumáticos estigmas, que
irão reverberar em uma série de respostas
discursivas e práticas daqueles que a sen-
tiam mais fortemente, em especial os que
viviam na Baixada e precisavam manter
um contato permanente com o “centro”, o
Rio de Janeiro.
Sabemos, no entanto, que as atri-
buições “centro” x “periferia”, bem como
a lista de valores que permitem classi-
car um objeto seja ele uma pessoa,
uma coisa, um lugar etc. como melhor
ou pior, são historicamente construídas,
e, portanto, encontram-se permanente-
mente em processos de transformação.
Neste artigo, enfocarei especialmente um
contexto histórico especíco, a década de
1990, quando uma conjunção de fatores
irá permitir que essa conguração narra-
tiva novamente se desloque, gerando re-
presentações positivadas para a região.
Alguns fatores, a meu ver, se desta-
cam quando pensamos neste processo de
transformação do olhar acerca da Baixada
Fluminense. Entendo, a partir de observa-
ção no decorrer das pesquisas e, princi-
palmente, das falas sobre esse ponto que
apareceram em diversas das entrevistas
que realizei com moradores da Baixada em
ns dos anos 1990, que a Linha Vermelha,
cuja inauguração abordei no início desse
artigo, seja um marco fundamental nes-
te processo de deslocamento semântico
acerca da Baixada. Mas, para além desse
aspecto, podemos perceber também que a
Baixada passou a ser alvo de investimen-
tos públicos e privados, como abordare-
mos neste artigo, que lhes forneceram sig-
nos simbolicamente associados, via visão
da grande mídia e suas posições políticas,
aos ideais de modernização e progresso:
remodelação de suas vias urbanas, che-
gada de novas fábricas e empresas, sur-
gimento de shoppings centers e disponibi-
lidade de ofertas em termos de consumo
relacionadas a um crescimento no poder
aquisitivo e cultural de seus moradores,
dentre outros fatores. Para trabalharmos
esses aspectos, iremos analisar uma série
de construções discursivas apresentadas
em reportagens da grande imprensa ca-
rioca no decorrer dos anos 1900 e início
da década de 2000. Antes, porém, preci-
samos tecer algumas considerações sobre
as relações entre a produção discursiva e
a semantização dos espaços físicos.
1. Discursos e produção de sentido:
a transformação do espaço em lugar
signicado
Sendo uma expressão socialmente
construída, múltiplos agentes e agências
se apropriam desta categoria de “Baixada
Fluminense” para emprestar-lhe os mais
diversos signicados através de múltiplas
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
construções discursivas. Todo discurso se-
ria constituído de processos parafrásticos
e processos polissêmicos. A paráfrase re-
laciona-se aos processos “pelos quais em
todo o dizer sempre algo que se man-
tém, isto é, o dizível, a memória. A paráfra-
se representa assim o retorno aos mesmos
espaços do dizer.” Ela estaria, portanto, li-
gada à continuidade do discurso. a po-
lissemia estaria ligada ao “deslocamento”,
à “ruptura dos processos de signicação.”
6
Quando pensamos nas mais diver-
sas formas com que os muitos agentes
que lidam com a categoria “Baixada Flumi-
nense” irão utilizá-la, podemos perceber a
presença de tais processos relativos à pa-
ráfrase e à polissemia. Tal categoria terá
sentidos partilhados, especialmente quan-
do relacionados a um contexto geográ-
co ou como referência espacial. Mas, ao
mesmo tempo, são muitos os signicados
associados à mesma expressão, ultrapas-
sando os sentidos partilhados e propondo
novas interpretações para a mesma cate-
goria. Portanto, embora os sujeitos este-
jam falando de uma “Baixada Fluminense”
de forma geral relacionada a um condi-
cionante geográco -, ao examinarmos de
forma mais apurada as construções dis-
cursivas apresentadas veremos que não
se trata de uma “Baixada Fluminense”,
mas de diversas “Baixadas Fluminenses”.
Podemos pensar, neste sentido, a
própria concepção de “baixada’. Geogra-
camente, esta seria denida, como “planí-
cie entre montanhas”.
7
Dalva Lazaroni, por
exemplo, arma que “as planícies, aqui, re-
ceberam o nome de Baixada Fluminense.”
8
a categoria “uminense” costuma ter a
seguinte interpretação: a palavra seria de-
rivada de “umen”, ou “rio” em latim.
9
As-
sim, a região da “Baixada Fluminense” seria
aquela em que terras baixas, planas, seriam
recortadas por rios e em boa parte alaga-
das, o que caracterizaria a área que iria do
da serra e se estenderia por uma gran-
de parte do Estado do Rio. Dessa forma, os
rios que atravessariam tais regiões baixas
exerceriam papéis fundamentais na con-
guração econômica e social das mesmas,
tanto de forma positiva quanto negativa.
As construções discursivas que
apontam para a importância da rede uvial
dentro da BF aparecem com frequência
nos trabalhos produzidos acerca da Bai-
xada Fluminense, os quais examinei em
minha tese (2002). Em alguns momentos,
os rios são vistos como fator de progresso,
permitindo a navegação e, consequente-
mente, que a Baixada exercesse a função
de “caminho” para a circulação de diversas
produções, como o açúcar, os metais e o
café, embora para este já se utilizasse, de
forma mais sistemática, as ferrovias como
principal via de escoamento. Para exempli-
car, podemos citar a seguinte passagem:
“a vasta bacia hidrográca que (hoje) com-
põe a chamada “Baixada Fluminense”, no
Estado do Rio de Janeiro, muito contribuiu
para a xação do homem à terra.”
10
em outros textos, são os rios ou
melhor, as consequências de um processo
de “abandono” das terras produtivas após
a abolição da Escravidão e o surgimento
das ferrovias, que teria resultado em asso-
reamento das redes uviais e alagamento
das terras baixas, criando charcos que aju-
daram a proliferar as doenças endêmicas,
como muitos defendem os responsáveis
pela “decadência” da região, após sua
“fase de opulência” no século XIX.
Portanto, a concepção da “Baixa-
da Fluminense” como um conjunto de
“terras baixas cortadas por rios” traz
embutida uma concepção polissêmica
acerca do sentido do segundo termo da
expressão, que a ideia de que umi-
nense está associada aos rios pode ser
pensada de forma positiva ou negativa,
dependendo do enfoque. Da mesma for-
ma, como demonstrarei adiante, a con-
cepção de “baixada” também será objeto
de múltiplas apropriações.
11
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A maior parte dos agentes sociais
que lidam com memória e história na Bai-
xada opta por esta concepção geográca
e esta denominação “Baixada Fluminen-
se” - para denir o que seria a região estu-
dada ou descrita por eles, embora alguns
autores defendam a denominação de “Re-
côncavo da Guanabara”, “Recôncavo da
Baía”, “Recôncavo guanabarino”, “Recôn-
cavo uminense” ou ainda “Baixada da
Guanabara”. Em termos gerais, no entan-
to, a classicação “Baixada Fluminense” é
a mais utilizada. Mas mesmo onde apa-
rentemente se percebe um consenso, é
possível perceber apropriações diversas,
que emprestam signicados distintos a
essa mesma noção.
Em primeiro lugar, uma prolifera-
ção de critérios para designar, a partir da
aceitação da denominação de que aquela
seria uma “baixada”, quais os municípios
que compõem este espaço. Podemos per-
ceber, na análise do material jornalístico
selecionado para este artigo, variações
acerca desta composição, como demons-
tram os grifos que assinalei nas matérias.
Essa variedade de critérios, como demons-
trei em minha tese, pode ser encontrada
também nos diversos textos acadêmicos
que buscam reetir sobre a região. A partir
do mapeamento que realizei, detectei, no
que tange ao estabelecimento de regras
para denir quantos e quais municípios
iriam compor a região, alguns critérios di-
ferenciados e, inclusive, antagônicos.
Mas, para além da diversidade em
termos de referências geográcas, a ca-
tegoria “Baixada Fluminense” vai assumir
também uma série de outros signicados,
se apresentando como um signo em per-
manente construção semiológica, a partir
dos contextos e das interações. Ou seja,
se em primeiro lugar é possível perceber
as divergências em termos da própria de-
nição territorial do que seria a “região da
Baixada Fluminense”, no seu sentido mais
el à própria origem dos termos “baixada”
e “uminense”, ambos de matriz geográ-
ca, não podemos perder de vista que esse
é somente um dos campos de sentidos
com que nos defrontamos. A categoria
“Baixada Fluminense” vai ser apropriada
a partir de muitas outras referências, e
em muitos casos associada a valores po-
sitivos e negativos. para citarmos um
exemplo explícito de que os termos po-
dem ser carregados de signicados cono-
tativos, a própria palavra “baixada”, que de
forma genérica designa geogracamente
uma “região de terras baixas”, tomando
como referência o nível do mar, para al-
guns está diretamente associada a uma
idéia estigmatizante: a região teria sido
denominada de “baixada” para indicá-la
como inferior, como “algo que está abai-
xo”. Neste sentido, podemos citar a decla-
ração de um dos entrevistados em minha
tese: “a palavra baixa também se refere a
baixo, na realidade não tem nada a ver, é
uma riqueza cultural muito grande.” Assim,
“baixada”, nesta acepção, seria associada
diretamente à idéia de “rebaixada”, algo
que está hierarquicamente abaixo. Ou ain-
da a observação outro entrevistado de que
a partir do momento que o “Recôncavo
da Guanabara” para ele o nome corre-
to para a região passou a ser chama-
do de “Baixada Fluminense”, ele passou
a receber um “tratamento pejorativo”. Tal
posição é compartilhada por um terceiro
entrevistado, que vai declarar que “Baixa-
da Fluminense passou a toponímia pejo-
rativa, não rara soando como sinônimo de
crime, corrupção e contravenção” (2002).
Assim, muito mais do que nos de-
pararmos com uma região geograca-
mente delimitada, temos incidindo sobre
o conceito de região referências outras
que não a dessa ciência. Por isso, a BF
vai ser pensada tanto como uma “terra da
violência” quanto um “local de importância
histórica para o Brasil”; ou como um “local
distante e temido” ou, inversamente, um
“bom lugar para se viver”; tanto quanto
uma “região de problemas sociais crôni-
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cos” como uma “região com valores es-
condidos que precisam ser descobertos”,
entre outras conotações possíveis. As
características que são associadas à ca-
tegoria de “Baixada Fluminense” não são
estáticas, ao contrário, são uidas, e estão
sendo construídas em uxos e interações
dos mais diversos.
Portanto, um nítido processo
polissêmico na produção da categoria
“Baixada Fluminense”, ou seja, uma
produção múltipla de sentidos para uma
mesma unidade (ou diversas) verbal ou
não-verbal. Partindo do pressuposto de
que todo discurso é uma construção so-
cial, em que os sujeitos, a partir de enun-
ciados que lhes são anteriores e poste-
riores, vão produzir signicados para as
palavras e imagens, podemos entender
que estas sempre são resultado de uma
produção social de sentidos.
11
Ou, como
dene M. Bakhtin, “o sentido da palavra é
totalmente determinado por seu contexto.
De fato, tantas signicações possíveis
quantos contextos possíveis. No entanto,
nem por isso a palavra deixa de ser una.”
12
Assim, são muitas as apropriações,
em termos de signicados, da expressão
“Baixada Fluminense”. Mas, sem dúvida,
as referências de pertinência mais ime-
diata ao pensarmos a BF são as de cunho
geográco, explicitamente pela referência
direta da categoria a marcos típicos des-
ta disciplina, como as próprias noções de
“baixada” e “uminense”, além de pensar
os limites associados à sua composição,
em especial na escolha dos municípios
que a integram. Entender a construção dos
discursos polifônicos sobre a Baixada tem,
necessariamente, de partir deste campo
geográco para a percepção das diferen-
tes apropriações que serão feitas pelos
agentes e agências sociais estudados.
Porém, antes de explicarmos quais
as concepções associadas a estes termos,
é preciso lembrar alguns pontos fundamen-
tais: em primeiro lugar, a classicação do
que seria essa tal “Baixada Fluminense”,
em termos espaciais, está longe de ser uma
unanimidade, ao contrário, é um ponto de
dispersão constante de interpretações que
ora se complementam, ora se chocam, po-
dendo ser percebida como uma categoria
objeto de conito mais do que de consen-
so; em segundo lugar, não podemos perder
de vista que os espaços geográcos são,
antes de tudo, espaços sociais, resultantes
de intervenções e interpretações, motiva-
das muitas vezes por preocupações exter-
nas à própria lógica da Geograa.
Sobre este segundo ponto, alguns
conceitos se apresentam como fundamen-
tais, entre eles os de região, lugar, espaço
e território. Antes de tudo, precisamos pen-
sar de que forma uma mesma área pode
ser construída de forma múltipla a partir
das diferentes referências dos agentes so-
ciais. Uma cidade, ambiente urbano com-
plexo, deve ser pensada a partir da cons-
trução social que se faz dela. Da mesma
forma que pensamos as identidades como
construídas em perspectivas interrelacio-
nais, as noções de região, lugar e território
devem permitir um debate com os concei-
tos mais estritamente ligados à Geograa e
às noções que se estabelecem em outras
ciências, especialmente na Antropologia.
13
O conceito de região passou, histo-
ricamente, por diversas transformações no
domínio da Geograa. De uma concepção
clássica, relacionada com os primórdios
da disciplina, até as abordagens atuali-
zadas, o conceito foi alterado de maneira
signicativa. Assim, autores como Paulo
Cesar Gomes e Marcel Roncayolo
14
apon-
tam para estas distinções e indicam um
desenvolvimento histórico para o conceito.
De acordo com a geograa clássi-
ca, especialmente aquela defendida por
nomes como Vidal de La Blache, região
remeteria primordialmente à noção de re-
gião natural, onde o ambiente teria total
13
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
inuência sobre o padrão de vida que se
estabeleceria nas diversas áreas. Neste
sentido, a natureza seria o aspecto domi-
nante a denir de que se entenderia por
região, classicada de acordo com uma
série de atributos distintivos que deni-
ria os diversos tipos de região (região da
montanha, região das planícies, etc.).
15
O conceito de região funcional,
como aquela que abriga os movimentos e
trocas que se organizam em um espaço
estrutural, paulatinamente vai substituindo
as primeiras explicações onde a natureza
desempenha papel fundamental. No en-
tanto, esta concepção será criticada por
aquela que cou conhecida como geo-
graa radical, que entra em voga a partir
da década de 70. De inspiração marca-
damente marxista, esta vertente aponta
para as concepções anteriores de região
como modelos impregnados de ideologia
dominante, onde a diferenciação do espa-
ço é pensada de forma naturalizada e não
como fruto da “divisão territorial do traba-
lho e do processo de acumulação capita-
lista que produz e distingue espacialmente
possuidores e despossuídos”.
16
Em meados da década de 70, sur-
ge uma nova corrente, de base humanis-
ta. Autores diversos vão chamar a atenção
para o papel do homem como constituidor
do espaço. Noções como “consciência
regional”, “sentimento de pertencimento”
e “mentalidades regionais” passam a ser
fundamentais. Sobre esta corrente, arma
Gomes: “Neste sentido, a região existe
como um quadro de referência na cons-
ciência das sociedades; o espaço ganha
uma espessura, ou seja, ele é uma teia de
signicações de experiências, isto é, a re-
gião dene um código social comum que
tem uma base territorial”.
17
Esta última corrente, que passa
a considerar a região como fruto da in-
teração e denida a partir das relações
culturais e sociais que a envolvem, me
parece pertinente para pensar a situação
da “Baixada Fluminense”, cuja denição
espacial, no entanto, se dá a partir de cri-
térios naturais em um primeiro momento.
Mas o importante é pensar, a meu ver,
como um conceito comporta tantas possi-
bilidades na maneira como será denido.
Os atores sociais constroem o espaço
que congura a Baixada de múltiplas for-
mas, inclusive a partir de referências ge-
ográcas no sentido mais literal do termo.
Mas as fronteiras e os limites da Baixada
são operados a partir de práticas e inte-
rações cotidianas, sendo reconstruídos
na experiência diária de seus moradores,
em situações de contato com outros mo-
radores ou com pessoas de fora e a partir
do discurso ocial (especicamente das
autoridades municipais e estaduais), da
mídia e das manifestações culturais.
De certa maneira, estamos lidando
com operações de negociação onde os
agentes sociais estão buscando se apo-
derar de determinada noção que corres-
ponde à região. Neste sentido, podemos
nos remeter à raiz etimológica de região,
que tem em regio sua sustentação.
18
É
importante reparar que o radical reg tam-
bém funda palavras como regente, regina
(rainha) e regência, todas palavras que
remetem à domínio e a poder. De certa
forma, a luta pela apropriação do conceito
de Baixada e de região, como demonstra-
rei adiante, remete ao sentido etimológico
da palavra. Trata-se de se apoderar de um
domínio, de um território a ser construído
cotidianamente, de ter uma base espacial
para a organização da ação política.
Aqui, o conceito de território tam-
bém merece uma avaliação. Marcelo
José de Souza nos aponta um caminho a
ser traçado:
O território (...) é fundamentalmente
um espaço denido e delimitado por e
a partir de relações de poder. A ques-
tão primordial, aqui, não é, na realida-
14
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de, quais são as características geo-
ecológicas e os recursos naturais de
uma certa área, o que se produz ou
quem produz em um dado espaço, ou
ainda quais as ligações afetivas e de
identidade entre um grupo social e seu
espaço. Estes aspectos podem ser de
crucial importância para a compreen-
são da gênese de um território ou do
interesse por tomá-lo ou mantê-lo, (...)
mas o verdadeiro Leimotiv é o seguin-
te: quem domina ou inuencia e como
domina e inuencia esse espaço?
19
Portanto, a questão central, no
que se refere à noção de território, é sua
associação com a esfera do poder. Nes-
te sentido, o conceito de território, tanto
quanto o de região, afasta-se do sentido
geográco e aproxima-se mais de uma
noção política e administrativa. Assim, o
controle sobre o território é fundamental
para o estabelecimento do que Max We-
ber vai chamar de comunidade política.
20
Se, como Michel Foucault, entenderemos
que “existe uma administração do saber,
uma política do saber, relações do poder
que passam pelo saber”, poderemos pen-
sar que elas remetem a “noções como
campo, posição, região, território” e que
o “termo político-estratégico indica como
o militar e o administrativo efetivamente
se inscrevem em um solo ou em formas
de discursos.”
21
Novamente, Souza, de maneira simi-
lar a Gomes e Roncayolo, procura demons-
trar de que forma o conceito de território à
maneira de região – sofreu transformações
em seu desenvolvimento histórico. Assim,
território primeiramente era pensado como
“espaço concreto em si (com seus atributos
naturais e socialmente construídos) que é
apropriado, ocupado por um grupo social”.
22
Para o autor, o senso comum reiterado
por alguns pensadores, especialmente os
ligados à Geograa Política tende a rela-
cionar território com Estado, o que empo-
breceria o conceito. Para Souza,
Territórios, que são no fundo antes
relações sociais projetadas no espa-
ço que espaços concretos (os quais
são apenas os substratos materiais
das territorialidades) (...), podem (...)
formar-se e dissolver-se, constituir-se
e dissipar-se de modo relativamente
rápido (ao invés de uma escala tempo-
ral de séculos ou décadas, podem ser
simplesmente anos ou mesmo meses,
semanas ou dias), ser antes instáveis
que estáveis ou, mesmo, ter existência
regular mas apenas periódica, ou seja,
em alguns momentos e isto apesar
de que o substrato espacial permane-
ce ou pode permanecer o mesmo.
23
Esta noção de território aponta para
“territorialidades exíveis”
24
, utuantes e
móveis. Para o autor, é impossível pensar a
noção de território em sociedades urbanas
complexas sem pensar, conjuntamente, a
noção de redes sociais.
25
O autor propõe
que se trabalhe com territorialidades su-
perpostas, que permitam perceber como
os atores em suas redes sociais constroem
e desconstroem seus territórios, estabele-
cendo relações de poder e domínio que de
fato implicam em signicados diversos.
Uma interpretação proposta por Asa
Briggs nos permite trabalhar com a possi-
bilidade da construção social da categoria
de lugar. Para o autor, é preciso distinguir
espaço de lugar,
26
pois é através de pro-
cessos de denição e signicação que o
espaço é transformado em lugar. Assim,
o lugar é sempre resultado da experiência
sobre o espaço. Ele considera essencial
reiterar que as cidades seriam coleções de
lugares tanto quanto a vivência do lugar em
si. Acredito que esta seja a concepção fun-
damental a ser pensada aqui. Para além de
ser um espaço geogracamente demarca-
do, ou nos termos do autor, um lugar em
si mesmo, a “Baixada Fluminense” é uma
coleção de lugares, todos resultantes dos
contextos de interação e das experiências
dos mais diversos agentes sociais. Portan-
15
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
to, um lugar não é uma categoria estática,
mas o resultado de uxos e interpretações
diversas. Assim, ao analisar algumas re-
presentações verbais e imagéticas acerca
de lugares, Asa Briggs aponta para o cará-
ter polissêmico das mesmas: lugares são
carregados de interpretação, sendo portan-
to construídos socialmente, e não somente
espaços geogracamente dados. A seman-
tização do espaço, dessa forma, cria os
múltiplos sentidos para o que o autor cha-
ma de lugar, e, exatamente por isso, Briggs
nos lembra que aos falarmos de lugares,
na verdade estamos falando sobre a vida.
Partilhando das concepções desse
autor, podemos partir do princípio de que o
espaço no qual a BF está sendo pensada
não é, portanto, somente um espaço físico,
mas antes de tudo um espaço social, um
lugar socialmente experimentado pelos di-
versos agentes que com ele interagem.
27
Portanto, é preciso desnaturalizar as idéias
de região, território, lugar e espaço, que
comumente aparecem relacionadas com a
“Baixada Fluminense”, para perceber como
através de uxos constantes esses concei-
tos vêm sendo apropriados e reconstruídos.
O discurso produzido acerca da
concepção geográca do que seria “Bai-
xada Fluminense” é, portanto, multivocal e
conitante, lócus nítido de uma relação de
apropriação do signicado e evocação de
um poder de fala. Neste sentido, podemos
pensar a indicação de Marcel de Certeau
de que são os relatos que dão sentido aos
espaços, transformando-os em lugares.
28
A partir dessas reexões mais teóri-
cas, buscaremos agora mapear e analisar,
ainda que forma breve de acordo com o
cabível em um artigo, algumas das repre-
sentações acerca da Baixada Fluminense
narradas no discurso da imprensa a partir
dos anos 1990, para entendermos como
este lugar foi sendo resignicado, a nos-
so ver de forma estratégica, dentro de um
projeto econômico e político.
2. Deslocando os sentidos acerca do
que se entende por Baixada Fluminense
“Terra sem lei”, “Terra de ninguém”,
“câncer vizinho”, lugar em que “a lei do gati-
lho é tão natural quanto a lei da gravidade”.
Estes são alguns dos termos que encontra-
mos em jornais do Rio de Janeiro, no de-
correr dos anos 70 e 80, para se referir à
Baixada Fluminense. No levantamento que
realizamos, detalhado em trabalhos anterio-
res, o volume de referências negativas sobre
a Baixada é quantitativa e qualitativamente
maior do que as referências positivas.
No entanto, em ns dos anos 1980,
dois grandes jornais do Rio de Janeiro, O
Globo e O Dia, criaram cadernos especiais
para cobrir a Baixada Fluminense. Nestes
cadernos, a ênfase das matérias jornalís-
ticas, embora sem desconsiderar os pro-
blemas locais, deveria recair mais sobre
boas notícias, aspectos positivos na vida
dos moradores da região. Como repórter
por cerca de dois anos de um desses ca-
dernos, O Globo Baixada, lembro-me que
invariavelmente cávamos entusiasmados
com a quantidade de coisas interessantes
e positivas que “descobríamos” em nossas
reportagens. Claramente, estávamos imbuí-
dos do senso comum midiatizado acerca da
Baixada Fluminense e nosso contato com
aquele “outro” até então perigoso, violên-
cia e pobreza, era sempre surpreendente.
Esse mesmo tom aparece na repor-
tagem de capa do Jornal do Brasil na Re-
vista de Domingo de 22 de julho de 1990.
O título é evidência do que apontamos: “O
outro lado da Baixada”, com o subtítulo es-
clarecedor: “A região mais pobre do estado
derrota as estatísticas negativas com bele-
za e trabalho” (grifos nossos). A partir disso,
a matéria toda gira em torno do deslumbra-
mento do repórter com essa surpreendente
Baixada Fluminense capaz de ter lugares
bonitos, recantos pacícos, quase interiora-
nos, gente vivendo normalmente, não que-
rendo sair de lá, com locais para se divertir
16
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
e atividades tidas como exclusivas da zona
Sul acontecendo na região, como a moda
e o funcionamento empresarial. Podemos
destacar, para ilustrar, o seguinte trecho da
reportagem (os grifos são nossos):
Jaceruba, com sua paz e sua surpreen-
dente beleza natural, serve bem para
mostrar que a Baixada Fluminense não
vive só de manchetes policiais, das
estatísticas da miséria e da realidade
das valas negras. A região, que atra-
vessou o ciclo do ouro, teve grandes
fazendas de café, abrigou extensos la-
ranjais e hoje é sinônimo de violência
e subdesenvolvimento, tem um lado
desconhecido e fascinante, que vai do
reggae e da poesia das favelas à água
cristalina de rios e ao verde de matas
intocadas”. (...) “A pracinha de Jace-
ruba, na realidade um largo com chão
de terra, algumas árvores nos cantos
e casinhas simples ao redor, não su-
gere um clima de bangue-bangue. Ao
contrário. No armazém da esquina até
parece que o tempo parou.
Neste trecho, encontramos termos-
-chave desta relação com o outro des-
conhecido, mas cristalizado em uma
natureza negativada. O “lado bom” da
Baixada é um “outro lado”, “desconhecido
e fascinante”. Porque ela tem um lado
consolidado, “hoje sinônimo de violência
e subdesenvolvimento”. Neste sentido, a
dimensão negativa não é pensada como
representação, mas como natureza dada
e constituída. A representação é o esforço
simbólico do repórter, de oferecer mais um
sentido àquele consagrado. Assim, o re-
pórter confessa que: “o visitante toma um
susto quando chega a Jaceruba. Anal, vai
levando na bagagem informações nada oti-
mistas”. A realidade desmente, em parte, as
construções discursivas do senso comum,
mas não têm o poder de apagá-las. Elas
permanecem, como a referência de fundo,
de base, sobre a qual se constrói a ideia de
que se está frente a um outro surpreenden-
te e inesperado. Por isso, após extensas
sete páginas de reportagem, com textos e
imagens, mostrando esse “outro lado da
Baixada” através de referências à beleza
natural, calma, tranquilidade, “jeito de roça”,
passado histórico, música, poesia, empre-
sas de porte e espaços para a diversão, o
repórter conclui que “tudo isso na Baixada
Fluminense, a 40 minutos do Rio. Um pe-
daço de mundo que se aprendeu a chamar
de feio e violento”. O caráter pedagógico
da representação é admitido pelo repórter,
mas não de forma suciente a fazê-lo ques-
tionar a possibilidade da não naturalização
da Baixada e seu lado natural, ou seja, de-
gradada, violenta e abandonada.
Essas sete páginas em 1900, mos-
trando que a Baixada tem “um outro lado”,
ainda não são capazes de cortar o espanto
de outros jornalistas com aspectos positi-
vos encontrados em municípios da região.
Em 24 de março de 1996, o Jornal do Brasil
publicou uma extensa reportagem sobre o
ranking de qualidade de vida na região me-
tropolitana do Estado do Rio de Janeiro fei-
to pelo IBGE, onde o município de Nilópolis,
localizado na Baixada Fluminense, aparece
em lugar, sendo superado por Nite-
rói e pelo Rio de Janeiro, respectivamente
primeiro e segundo lugar. O estranhamento
que tal colocação causou pode ser medido
pela própria caracterização dada pelo JB à
informação, pois na chamada superior da
página destinada a Nilópolis podíamos ler:
“a cidade-surpresa”.
Em 20 de dezembro de 2001,
uma nova matéria publicada pelo Jornal
do Brasil apresentava os dados levan-
tados pelo IBGE no Censo 2000 acerca
das condições de vida nas cidades do
Estado do Rio, em que Nilópolis e Nite-
rói aparecem nos primeiros lugares nos
índices de saneamento e alfabetização,
superando o Rio de Janeiro. O título “Rio
é lindo, mas Nilópolis é melhor”, embo-
ra apresente a classicação da segunda
tomando a capital como referência, não
17
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mais exigente, com hábitos modernos e
preferência por griffes típicas dos consu-
midores da zona sul do Rio de Janeiro.
Existe até uma high society emergente,
que frequenta os points mais badalados
da Cidade Maravilhosa e viaja frequente-
mente ao Exterior, mas não abandona a
Baixada por nada deste mundo. Para es-
ses, o lugar está mais para Miami do que
para o Velho Oeste”.
- “A rigor, o grosso dos investimen-
tos ainda está por vir. Mas a progressiva
melhora dos serviços disponíveis já é su-
ciente para resgatar a auto-estima da Bai-
xada. “A única diferença entre Nova Igua-
çu e Ipanema é a praia”, exagera Carlos
Emílio Targueta, 34 anos, frequentador do
aeroclube local”.
- Esse orgulho de viver na Baixada
bate de frente com a ideia ainda arraigada
na maioria dos cariocas sobre a região”.
- “Na verdade, quando se fala em
poder aquisitivo, Nova Iguaçu, a “capital”
da Baixada, chega perto da badalada
Barra da Tijuca”.
- “Nova Iguaçu está levantando um
moderno shopping Center à beira da rodo-
via Presidente Dutra, que liga o Rio a São
Paulo, em uma área de 103 mil metros qua-
drados. (...) Mais três shoppings estão sen-
do construídos em Duque de Caxias e são
João de Meriti. Um deles, o Grande Rio,
chega a requintes de sosticação (...)”.
Esse lado chique da Baixada não
surgiu do dia para a noite. Pesquisadores
da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro armam que o fenômeno é resultado
da migração da classe média, insatisfeita
com a decadência da metrópole carioca”.
Até mesmo no fechado círculo da
moda, o conceito de Baixada Fluminense
mudou. alguns anos, seria impensá-
vel que um estilista da região conseguis-
parece apresentar, de forma explícita e
à primeira vista, uma possível surpresa
com o lugar obtido pelo município da Bai-
xada. No entanto, no segundo parágrafo
da matéria, o tom de surpresa se reve-
la novamente: “Na Baixada Fluminense,
Região Metropolitana do Rio, o município
de Nilópolis surpreende”. Cinco anos de-
pois, o próprio jornal desconsidera maté-
ria divulgada nele mesmo em que a quali-
dade de vida do município já era atestada
pelo IBGE e continua se “surpreendendo”
com a colocação obtida por Nilópolis.
Podemos ver, com estes exemplos,
o quanto é difícil desconstruir estigmas e
preconceitos cristalizados discursivamen-
te. No entanto, mesmo com as surpresas
acima demonstradas, é possível perceber,
no decorrer dos anos 1990, um esforço
via grande imprensa carioca e nacional
de apresentar a Baixada como um lugar
em transformação, prestes a perder suas
características negativas e se transformar
no “novo ABC”, em um lugar de promisso-
res investimentos e condições de merca-
do, como veremos nos exemplos a seguir,
que se sucedem no decorrer da década
de 90 (grifos nossos).
Exemplo 1 – Matéria da Revista
Isto É, de 16/8/1995 (duas páginas)
Título: “Baixada em alta”
Subtítulo: “Famosa pelos índices
de criminalidade, a Baixada Fluminense
dá meia-volta rumo ao desenvolvimento”
Trechos em destaque:
- “A Baixada Fluminense está pre-
parando uma surpresa para aqueles que
guardam da região a imagem de um ce-
nário de bangue-bangue lugar empo-
eirado, sem infra-estrutura e com tiros
zunindo por todos os lados. Embalados
por investimentos públicos e privados, os
sete municípios onde habitam cerca de
quatro milhões de pessoas experimentam
um surto de desenvolvimento e otimismo
nunca visto. Aos poucos, a carência abre
espaço para uma classe média cada vez
18
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
se sucesso nas luxuosas passarelas da
zona sul do Rio”
Temos, nesse exemplo, interessan-
tes marcos discursivos para analisar. A pa-
lavra “surpresa” está lá, mas não é mais
o repórter que se confessa surpreso, mas
sim será o leitor a ser surpreendido com as
mudanças que estão se operando na re-
gião, e o repórter sabe o porquê: um enor-
me investimento público e privado, uma
classe média emergente, hábitos de con-
sumo modernos etc. Mas o repórter tem
dúvidas: estão as pistas discursivas que
nos permitem que ele considera “exagera-
do” comparar Nova Iguaçu com Ipanema e
o uso da palavra “até” nos mostra o quão
impensável é a existência de uma “high so-
ciety” local e o fato dessa descoberta atin-
gir “até mesmo” o mundo da moda, signos
incontestes, na visão de mundo do autor da
matéria, de modernidade e sosticação. E
o shopping chega até a “requintes de sos-
ticação” porque tem “a comunicação visual
a cargo da Suzman Perejza empresa que
trabalha para a Walt Disney Corporation
-, iluminação planejada pela Teo Konduis,
uma das companhias mais famosas do
mundo, e desenho paisagístico dos criado-
res de parques e jardins de San Francis-
co, nos Estados Unidos”. Convenhamos,
parece nos dizer o repórter, é mais do que
poderíamos esperar para uma região que
sempre se pareceu com o “Velho Oeste”.
Exemplo 2 Caderno Economia
de O Globo, de 26/01/1995
Título: “Investimentos de US$ 920
milhões fazem da Baixada o ABC umi-
nense”.
Trechos em destaque:
- “O mais novo polo de desenvolvi-
mento do Estado do Rio, quem diria, não
ca na área da capital nem no Vale do Pa-
raíba. Mais conhecida pela violência e a
pobreza, a Baixada Fluminense vai rece-
ber nada menos do que US$ 920 milhões
em investimentos industriais em 1996.
Ainda mais signicativo é o percentual dos
investimentos de empresas privadas, em
todo o Estado, que foi destinado para a
região: os onze municípios da Baixada
carão com um terço do total”.
- “Uma das principais vantagens
que a Baixada oferece às indústrias em
fase de instalação é o preço relativamen-
te baixo dos terrenos (...). A proximidade
do município do Rio de Janeiro – segundo
maior mercado do país e a conuência
na região de vias de transportes para os
outros grandes mercados são atrativos
fortes o suciente para segurar muitas
empresas na Baixada”.
Mais uma vez, o uso de expressões
estratégicas como “quem diria” e “nada
menos” denuncia a falta de credibilidade e
o espanto do jornalista com o fato dos in-
vestimentos estarem indo para a região da
Baixada Fluminense. De “mais conhecida
pela violência e a pobreza” à “ABC Flumi-
nense” é a transformação digna de nota,
ainda que anteriormente existissem, na
região, como demonstram matérias que se
preocuparam, como indicamos, de mostrar
“o outro lado”, investimentos industriais e
empresariais. Mas agora é outro contexto:
trata-se de uma virada, de uma transforma-
ção expressiva, facilitada porque a Baixa-
da tem “vantagens” a oferecer. Além da lo-
calização estratégica em termos espaciais,
como via de escoamento da produção do
Rio de Janeiro, é preciso levar em consi-
deração também o “preço relativamente
baixo dos terrenos”, que, obviamente, não
pode ser pensado sem levar em considera-
ção o quanto a valorização/desvalorização
dos mesmos esteve atrelada a constru-
ções imaginárias acerca da região. O que
nos leva a reetir sobre um ponto-chave:
a quem interessou, durante décadas, a
armação de uma imagem negativa sobre
a Baixada Fluminense, atrelada a ideias
como violência e pobreza, quando em sua
história a região sempre se mostrou muito
mais complexa e diversa? Neste sentido, a
mídia cumpre um duplo papel bastante
19
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
signicativo: sua retórica narrativa acerca
das condições insalubres da Baixada, tan-
to material quanto socialmente, ajudaram a
desvalorizar as terras na região; e em me-
ados dessa mesma década, essa mesma
mídia, através da construção de uma re-
presentação que visa positivar a Baixada,
irá ajudar a fermentar os negócios e inves-
timentos nas localidades que a compõem.
Essa relação entre a ação midiática e a
prática mercadológica ca mais evidente
quando analisamos o exemplo a seguir.
Exemplo 3 matéria de O Globo,
de 27 de agosto de 1996
Título: “Potencial de investimentos
da Baixada é tema de seminário”
Subtítulo: “Evento do jornal O Glo-
bo-Baixada visa a promover a região”
Trecho em destaque:
-“Para mostrar a investidores, em-
presários e entidades representativas da
Baixada Fluminense que a região, apesar
dos problemas sociais, é uma excelente
área de negócios, o GLOBO-Baixada, jor-
nal de bairro do GLOBO, promove ama-
nhã o seminário “As novas perspectivas
econômicas da Baixada”.
O jornal O Globo, neste caso, mais
do que um narrador da realidade, é o pro-
motor da mesma, em especial em uma
dimensão projetiva, visando “mostrar a in-
vestidores, empresários e entidades” que
a região “é uma excelente área de negó-
cios”, “apesar dos problemas sociais”, que
a não ser como referência de um passado/
presente em superação ou a ser supera-
do, não recebem maiores atenções em
nenhum dos exemplos jornalísticos anali-
sados neste artigo. O tom agora é ufanista
e celebratório. Trata-se de uma região em
desenvolvimento, pronta a prosperar, so-
bre a qual não cabem análises que a des-
valorizem, ainda que este agora um “outro
lado”, um “apesar de”, ainda sejam pro-
blemas sociais que deveriam merecer, por
parte do jornalismo, um olhar atento. A per-
gunta prossegue, embora seja impossível
uma resposta concreta: qual o interesse
especíco de O Globo nas ações empre-
sariais na Baixada Fluminense em mea-
dos da década de 1990 a ponto do jornal
explicitamente promover um Seminário de
estímulos a investimentos na localidade?
O apoio às ações do governo fede-
ral e do governo estadual, ambos naquele
contexto nas mãos de políticos do PSDB
(Fernando Henrique Cardoso e Marcello
Alencar, respectivamente) é explícito e
engajado. As palavras que encerram a
matéria, por exemplo, são de José Carlos
Lacerda, secretário estadual de Desenvol-
vimento da Baixada Fluminense e de Mu-
nicípios Adjacentes, que declara: “Eventos
como estes vêm conrmar o que tem
se vericado nos últimos anos: o interesse
na Baixada aumenta a cada dia. A região
ainda vai dar o que falar”. Se entendemos
que a construção da identidade, neste
caso no que tange à região, é uma narrati-
va que envolve uma tríplice mimese, pode-
mos perceber tanto a dimensão retrospec-
tiva, associada à paulatina construção de
uma memória negativa acerca da Baixada,
quanto uma dimensão prospectiva, uma
conguração projetiva em que o que se
espera em termos de reconguração (os
investimentos e uma “nova” Baixada Flu-
minense) já foram antecipados no texto.
Exemplo 4 - matéria no Cader-
no Finanças da Folha de São Paulo,
15/10/1995
Título: “Rio redescobre a Baixada
Fluminense”
Subtítulo: ”A região, antes identi-
cada com crimes de grande repercussão,
deverá receber investimentos de mais de
R$ 3 bilhões até 1999”
Trecho em destaque:
- “Na busca de alternativas para a
recuperação econômica do Estado, em-
presários, investidores e governo estão
apostando em uma das regiões mais
problemáticas e conturbadas do Rio de
Janeiro, a Baixada Fluminense. Depois
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de passar anos identicada apenas com
crimes que tiveram repercussão nacional
e internacional, como os extermínios do
Esquadrão da Morte, o conjunto de dez
municípios que forma a Baixada se pre-
para ara receber investimentos de mais de
R$ 3 bilhões até 1999”.
“Redescoberta” é uma boa palavra
para pensarmos as ações midiáticas em
torno deste “novo momento” da Baixada
Fluminense. É como se a grande impren-
sa também “redescobrisse” esse objeto
narrativo, que quase sempre, nas décadas
anteriores, somente aparecia nas páginas
policiais e excepcionalmente em uma ma-
téria especial acerca de algum “outro lado”,
como vimos, “apenas” identicada com cri-
mes, em uma evidente conssão, via texto
jornalístico, da simplicação da realidade
social. Em meados de 1990, o jornalismo
econômico “redescobre” a Baixada, que
passa ser matéria em cadernos de nanças
e negócios. Mas o “estão apostando” nos
lembra, discursivamente, que se trata de
uma ação de risco por parte dos empresá-
rios, que a região é uma das mais “pro-
blemáticas e conturbadas” do Rio de Janei-
ro. Mas aparece, na matéria, novamente
a referência a um item tranquilizador para
atestar a modernidade: os shoppings (“O
primeiro deve ser inaugurado ainda neste
mês e os outros dois, em 1996”). ain-
da um box com a trajetória do empresário e
morador da Baixada Carlos Duarte, que de
motorista de ônibus estava, naquele con-
texto, construindo um dos 3 shoppings da
Baixada, o Nova Shopping (os outros dois
são o Shopping Grande Rio e o Iguaçu Top
Shopping), e que, “nascido em Nilópolis, cri-
tica quem deixa a região”. Em outro box, a
trajetória de Ana Paula Nardelli, que traba-
lha na fábrica do refrigerante RC Cola, sen-
do lha do dono, mostra que a “herdeira se
sente segura na região”, afastando narrati-
vamente o medo da violência, e detalha que
“ela gasta R$1.200 em vestido de festa”, in-
dicando claramente seu alto poder aquisiti-
vo e sua vivência de consumidora moderna.
No entanto, a Folha de São Paulo
é um pouco mais parcimoniosa acerca da
transformação da Baixada Fluminense e
teme que o processo de empoderamento
de sua classe média esteja aumentando o
fosso social entre novos-ricos e pobres na
região. Para explicar esse fenômeno, bus-
ca apoio nas declarações do professor Luiz
Cezar Queiróz Andrade, do Observatório
de Políticas Urbanas e Gestão Municipal
da UFRJ, que diagnostica que “os shop-
pings (...) e alguns condomínios fechados
começam a explicitar a separação entre ri-
cos e pobres na Baixada”. Mas termina a
matéria com a fala do mesmo professor, di-
zendo que “Queiróz, no entanto, relativiza
o risco de exacerbação da violência a par-
tir desses guetos em gestação. “O Brasil
não tem a cultura da segregação, como os
Estados Unidos”, tranquiliza”. Tranquiliza-
da, portanto, pelo especialista de que não
problemas em um aumento entre ricos
e pobres com esse boom de investimentos
na Baixada porque os pobres não carão
mais violentos se segregados, a Folha pro-
cura tranquilizar também investidores e o
leitor. E na retranca que se segue a essa
matéria aborda diretamente a questão dos
investimentos, mostrando que “o polo gás-
-químico de Duque de Caxias é a “menina
dos olhos” do governo do Estado do Rio de
Janeiro para o desenvolvimento da Baixa-
da Fluminense”. Nesta matéria, mais uma
vez chamando atenção para a questão
das vias de acesso e escoamento na re-
gião, o repórter nos informa que “na área
de transportes, o governo tem um projeto
conhecido como Faixa Light”, que, assim
como a Linha Vermelha, será outro marco
espacial e simbólico importante na mudan-
ça acerca do imaginário sobre a Baixada.
29
Exemplo 5 - O Globo, Rio, 7/05/1995
Título: “Baixada deixa a periferia
para trás”
Trechos em destaque:
“A Baixada Fluminense começa a
despertar de um sono de muitas mazelas e
pouco dinheiro. Tal qual a bela adormecida,
21
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de crescimento expressivo”. Interessante
pensar que a ideia de que a Baixada não
pertencia, em termos de imobiliários, a
“ninguém”, de certa forma favorece a não
apuração, por exemplo, acerca de quem
teria se beneciado com a valorização dos
terrenos locais. O baixo preço das terras
aparece, no entanto, nas palavras nais
do sub-secretário (indicando, ao contrário,
de que tratava de “terra de alguém”), que
faz também, mais uma vez, a remissão às
vias de transporte, nos lembrando o pa-
pel central da criação da Linha Vermelha:
“Ele também aponta outras vantagens para
atrair novos investimentos: o preço da terra
mais barato que em outros lugares, como
a Zona Oeste, por exemplo; facilidade de
acesso pelas Rodovias Presidente Dutra e
Washington Luiz, além da Linha Vermelha,
e mão-de-obra perto do local de trabalho”.
Fechando a matéria, uma retranca
com o título “Diversão é o mais novo -
lão da Baixada” e um box com o perl de
um “estilista que conquistou a Zona Sul”,
mais uma vez associando a questão da
moda ao modelo consumista de ascen-
são e modernidade.
Exemplo 6 - Jornal do Brasil, cader-
no Especial no domingo, dia 11/05/1996
(12 páginas)
Especial “Baixada, um novo olhar”
Título da matéria principal: “Baixa-
da sacode a poeira e dá a volta por cima”
Trechos em destaque:
- “A Baixada Fluminense sempre foi
um emblema da indigência brasileira. Ora
lembrada por suas carências, ora por seus
índices de violência ou pela condição de
região-dormitório de uma massa de traba-
lhadores que todo dia sai de casa ainda
no escuro para dar duro no Rio. Mas
não pode ser apresentada apenas as-
sim. A Baixada da poeira e da lama foi à
luta e, hoje, à custa de um rio de investi-
mentos privados shoppings, indústrias,
serviços... -, e o quarto maior polo de
consumo do país.”
que volta à vida após um beijo apaixonado,
as conhecidas cidades-dormitórios estão
sendo seduzidas pelo governador Marcello
Alencar.(...) A Baixada começa a dar a vol-
ta por cima com a implantação de fábricas,
shopping centers e casas noturnas.”
O tom do texto pode ser mais lírico,
mas a mensagem é a mesma dos demais
exemplos que aqui estamos analisando:
a Baixada estaria deixando seu passado
para trás. E fábricas, shoppings e casas
noturnas seriam seu salvo conduto para
a modernidade e para a inserção no esti-
lo de vida metropolitano do Rio de Janei-
ro. A periferia, ao menos simbolicamente,
“ca para trás”. Mas é preciso um príncipe
encantado para despertar essa donzela
adormecida em meio a “muitas mazelas e
pouco dinheiro”. E para a repórter que assi-
na a matéria, o grande sedutor seria o go-
vernador Marcello Alencar, que teria dado
“longos passeios” na região na campanha
eleitoral realizada no ano anterior e depois
enviado, eleito, emissários semanalmen-
te, culminando no fato de que “o Governo
aposta todos os trunfos nos 11 municípios
que são lembrados mais como redutos de
notícias policiais ou doenças contagiosas”.
Para a repórter, trata-se também de uma
aposta, o que implica em riscos. Mas se “se
a economia e a cultura prometem, o poder
político é evidente na Assembleia Legislati-
va, onde 25.5% dos 70 parlamentares são
da Baixada. Um bloco de 18 deputados de
fazer inveja com seus 500.772 votos”. Ou
seja, no campo da política não se tem mais
dúvidas: a Baixada deixou “a periferia
para trás” e está, nas palavras do deputa-
do federal e Secretário Estadual da Baixa-
da, Nelson Burnier, “decolando´, inclusive,
como nos informa o box da matéria, com
ampliação do aeroporto de Nova Iguaçu.
30
Somados a isso, outros investimentos e
atitudes políticas (“as prefeituras adotam
um novo estilo de governo”) fazem com
que “para o subsecretário da Baixada, Vi-
cente Loureiro, a região está deixando de
ser terra de ninguém e tem um potencial
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Durante seis semanas, o JORNAL
DO BRASIL conviveu com a realidade dos
sete municípios que compõem a Baixada
Fluminense (...). Constatou que a deman-
da social é praticamente a mesma de dez
anos atrás 5% das ruas, por exemplo,
são asfaltadas -, mas descobriu um pro-
cesso silencioso, e vertiginoso, de desen-
volvimento econômico”.
“Some-se a isso a localização pri-
vilegiada – bem no eixo Rio-São Paulo-, o
aumento do poder de consumo das clas-
ses C e D; a fartura de terrenos vazios, as
melhorias na Via Dutra e a consolidação
da Linha Vermelha, e está uma receita
que explica as transformações que a re-
gião experimenta.”
Em suas doze páginas especial-
mente dedicadas às transformações ocor-
ridas na Baixada Fluminense, o caderno
editado pelo Jornal do Brasil, por si só,
mereceria uma análise detalhada que ex-
trapola o proposto neste artigo. Estão to-
dos os pontos que temos destacado. Mas
focaremos nossas observações na maté-
ria principal e em uma retranca dedicada
aos jovens da Baixada, porque trazem
elementos que nos parecem importantes
aqui. Na matéria que abre o caderno, a ex-
pressão “um novo olhar” sugere um ângu-
lo bem diferente da expressão “um outro
lado”, fazendo a conexão com outro espe-
cial sobre a Baixada editado pelo mesmo
JB seis anos antes, como mostramos aqui.
As referências ao passado negativo estão
lá: a Baixada ora é “lembrada” por suas
“carências”, “seus índices de violência” ou
sua “condição de região-dormitório”. Não
como fazer com que esse imaginário
desapareça de uma hora para outra, pa-
recem nos dizer os dois repórteres que
assinam a edição, fruto de seis semanas
de mergulho jornalístico, como se preocu-
pam em esclarecer (trata-se, portanto, de
um produto do conhecimento, um “novo
olhar” construído pela vivência, e não so-
mente a fala de um sujeito de “fora” so-
bre o que ele não conhece), que este
imaginário é “emblemático” da “indigência
brasileira”. Mas algo de novo no que
tange à Baixada Fluminense: ela “já não
pode ser apresentada apenas assim”. O
texto jornalístico facilita nossa interpreta-
ção e não deixa dúvidas: trata-se de uma
disputa em torno da representação do que
se entende por Baixada, e esse jogo se
recongurou. Um indicativo forte, neste
sentido, que aponta claramente para a ne-
cessidade dessa nova representação, em
dimensão projetiva, é a retranca “Jovens
esperanças”, com um retrato da juventu-
de na Baixada, cujo título “Para eles, tudo
vai dar pé”, juntamente com o subtítulo
“Juventude da Baixada acredita no futuro,
gosta do lugar onde mora e curta a vida
no ‘Baixo Iguaçu’” são exemplos claros de
um esforço narrativo de dissociar a fórmu-
la lembrança/passado = negativo da fór-
mula projeto/futuro = positivo.
A violência e os problemas sociais,
que evidentemente não haviam desapare-
cido enquanto realidade social na Baixada
em meados dos anos 1990, não deixam de
ser retratados no Caderno Especial do JB,
ainda que de forma tímida e quantitativa-
mente bem menor do que os pontos valori-
zados positivamente. Mas nada que próxi-
mo ao que sugere, por exemplo, o quadro
descrito na reportagem que se segue, pu-
blicada um ano depois pelo mesmo JB, em
que a lembrança dos dias de passado es-
tigmatizado pela violência na região apare-
ce ainda muito fortemente como presença.
Exemplo 7 - Jornal do Brasil, Cida-
de, 8/11/1998
Título; “Baixada conta os seus
mortos”.
Selo: “Terra sem lei”
Subtítulo: “Entre 1994 e 1997, o nú-
mero de homicídios na região manteve uma
média superior a dois mil casos por ano”.
Trechos em destaque:
“Enquanto no município do Rio o
número de homicídios vem diminuindo,
23
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
a Baixada se mantém rme como região
mais violenta do Estado”.
A Baixada Fluminense é a coroa
de espinhos na cabeça da Cidade Mara-
vilhosa” – compara Dom Mauro Morelli,
bispo da Igreja Católica de São João de
Meriti e de Nova Iguaçu”.
Apesar do discurso de que a re-
gião está crescendo, a Baixada continua
a ser um lugar invisível, que apare-
ce em época de eleição”, sustenta José
Claudio”.
31
O que podemos perceber, analisan-
do os exemplos mapeados, é um esforço
de apagamento desses traços desabona-
dores. Assim, o sociólogo José Claudio
Alves, entrevistado na matéria, identica
uma continuidade entre a prática discur-
siva (“de que a região está crescendo”) e
a invisibilidade no olhar sobre a Baixada,
gerando representações reducionistas
e simplicadoras de qualquer forma.
que, como vimos, o esforço no decorrer da
década de 1990 é de apagamento dos in-
dícios negativos, que só devem ser perce-
bidos como lembrança e passado, embo-
ra permaneçam na prática. Neste sentido,
troca-se um estereótipo por outro.
Os dois exemplos que se seguem e
encerram o nosso artigo são evidência cla-
ra neste sentido. Neles, vemos um espaço
resignicado, gerando uma nova compre-
ensão, via jornalismo, do que se entende
por Baixada. praticamente não ne-
cessidade de remissão às lembranças de
um passado de desditas. A Baixada “de-
colou”, se modernizou, “deixou a periferia
para trás”, entrou denitivamente na or-
dem do consumo e da sociedade emergen-
te, na percepção dos jornalistas. Vejamos:
Exemplo 8: Caderno de Economia
de O Dia, 21/05/2000
Título: “Baixada emergente e sos-
ticada”
Subtítulo: “Perl do consumidor
muda e cada vez mais aumenta a exigên-
cia por qualidade de produtos e serviços”
Trechos em destaque:
- “É bom os empresários que pen-
sam em investir na Baixada Fluminense -
carem atentos. A população de 3,5 milhões
de habitantes está cada vez mais exigente
em relação aos produtos que consume.
A qualidade vem em primeiro lugar. Pelo
menos, é isso que apontam pesquisas
que estudam a região”.
O perl das pessoas que moram
na Baixada está mudando gradativamen-
te. “A mudança pode ser sentida com
mais intensidade de uns 20 anos para cá.
Aconteceu uma migração da classe mé-
dia que não tinha condições de pagar alu-
guel em outros locais e que encontrou na
Baixada uma área apropriada”, arma Or-
lando Junior, sociólogo da Federação de
Órgãos para Assistência Social e Educa-
cional (FASE). Ele aponta também a Linha
Vermelha como um fator importante para
essa mudança na Baixada”.
“Apesar do avanço, o sociólogo Or-
lando Junior lembra que essa mudança no
perl da população da Baixada Fluminen-
se é ainda pequena diante do que pode
vir a ser feito. No entanto, para esse novo
salto, acrescenta, é necessário um grande
investimento, principalmente nas áreas de
Saúde e Educação”
Segundo o jornal, os empresários,
agora, precisam estar atentos. Não se trata
mais de uma potência adormecida, arrasa-
da por mazelas e pobreza. São consumi-
dores exigentes, que se preocupam com
a qualidade. Segundo o especialista, são
migrantes, pessoas que já tinham esse per-
l quando moravam fora da Baixada, não
são originados de lá. A Linha Vermelha,
novamente, é apontada como marco funda-
mental nesse processo, que precisa de in-
vestimentos mais sociais, também na con-
cepção do sociólogo entrevistado, para dar
24
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
um “novo salto”. Mas no uso da expressão
“pelo menos é isso que apontam pesqui-
sas”, o repórter deixa escapar sua parcela
de dúvida acerca da capacidade qualitativa
do consumidor da Baixada. Teria ele, de
fato, mudado tanto? Mesmo não dito, o dis-
curso memorável deixa suas marcas.
Exemplo 9 Jornal Extra, 4/07/2002
caderno especial com 4 páginas, dentro
da rubrica “Extra Projetos de Marketing
Título: “Panorama econômico da
Baixada Fluminense”
Subtítulo: “Programa injeta U$ 300
milhões na região”
“Formada por 13 municípios, a Bai-
xada é hoje um dos polos de desenvolvi-
mento do Rio de Janeiro. Com mais de 3,5
milhões de habitantes – a maior concentra-
ção da área metropolitana a região procu-
ra deixar no passado os motivos que a le-
varam a ser conhecida como uma das mais
violentas do país e começa a exibir indica-
dores mais atraentes. Uma das iniciativas
que demonstram a atenção que a região
vem recebendo é o Programa Nova Baixa-
da (PNB), orçado em US$ 300 milhões”.
Novamente, vemos com clareza o
interesse direto de um jornal, nesse caso O
Extra, na mudança de perl acerca do que
se entende por Baixada Fluminense. Trata-
-se de um explicitado projeto de marketing.
Portanto, é fundamental que a região “pro-
cure deixar no passado os motivos que a le-
varam a ser conhecida como uma das mais
violentas do país” e comece “a exibir indi-
cadores mais atraentes”. Novamente, in-
vestimentos públicos e privados se revelam
essenciais. Na retranca principal, o título
consolida essa “nova Baixada”: “A Baixada
vai às compras”, em que mais uma vez são
os shopping centers os grandes ícones des-
sa modernização e mudança de perl. Para
fechar o caderno especial, matérias sobre
indústrias e o enaltecimento de Nova Igua-
çu tanto como “’pólo de cosméticos” como
fonte de preservação ecológica, através da
criação da Reserva Biológica do Tinguá.
3. Considerações nais
Como procuramos demonstrar nesse
artigo, não é possível descolar os processos
identitários acerca da região da Baixada Flu-
minense das narrativas que os conformam.
Escolhemos, como foco deste trabalho, dis-
cursos midiáticos, recolhidos na grande im-
prensa carioca e brasileira, no decorrer da
década de 1990, para evidenciar como, pau-
latinamente, houve um esforço de realoca-
ção das imagens sobre a Baixada, que em
um primeiro momento ainda aparece muito
atravessada pelos estigmas negativos que
a descreveram fortemente no decorrer das
décadas de 1970 e 1980, sendo ainda ne-
cessário um esforço para mostrar seu “outro
lado” positivo e surpreendente, passando por
um embate entre representações negativas
e positivas, com a superação das primeiras
(relegadas ao lugar de lembrança/passado)
pelas segundas (projeto/futuro), até a con-
sagração dessa nova Baixada “emergente e
sosticada”, preocupada com a “qualidade”
e que não aceita mais qualquer coisa, estan-
do ainda pronta para crescer mais.
Alguns pontos nos parecem fun-
damentais nestes exemplos. O primeiro é
o caráter permanentemente processual e
discursivo das identidades. Assim, os des-
locamentos perceptivos via jornalismo so-
bre a Baixada incidem fortemente sobre o
senso comum, como ele dialogando e o al-
terando. Neste sentido, acompanhando os
principais estudos sobre memória e narra-
tiva, entendemos que existem trabalhos de
seleção, enquadramento, apagamento e
realce atuando neste processo. A escolha
das palavras, das imagens, dos temas nos
textos jornalísticos analisados, bem como a
angulação das composições, nos permitem
entender como os trabalhos da memória
são importantes, na tessitura narrativa, para
gerar as interpretações e recongurações.
Neste sentido, para além de um es-
paço sicamente demarcado, composto
por municípios, distritos, bairros (o que por
25
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
si congura uma dimensão de luta,
como foi possível observar quando perce-
bemos, via grifos no decorrer dos exem-
plos, a variedade quantitativa como que a
Baixada ia sendo representada em termos
de municípios que a constituem), a Baixa-
da Fluminense é um território atravessado,
material e simbolicamente, por processos
de disputas semânticas, de atribuição de
sentidos, fazendo com que aquele espaço
se transforme em lugares diferenciados,
de acordo com as redes interativas e con-
textuais. Trata-se, portanto, de um lugar no
sentido amplo do termo, um espaço signi-
cado, a partir de disputas diversas.
Por m, gostaria de atentar para o
quanto está luta semântica está incorpora-
da a outras dimensões de luta, como a eco-
nômica e a política. Novamente, podemos
nos perguntar: econômica e politicamente, a
quem interessava a longa construção repre-
sentativa da Baixada Fluminense como uma
“terra de ninguém”, uma “terra sem lei”? Da
mesma forma, a quem interessava a mu-
dança deste perl a partir de uma série de
reportagens e cadernos especiais que cele-
bravam o advento de uma “nova Baixada”?
Quem ganhou com a especulação de seus
terrenos desvalorizados no seu momento de
boom econômico? Quem foram os agentes
politicamente ativos nesse processo e quais
os seus ganhos em todos os sentidos, dos
pessoais aos partidários? O que signica,
em termos práticos, a associação direta dos
jornais O Globo e O Extra com os projetos
de investimento na Baixada Fluminense?
Podemos pensar, considerando o que
abordamos aqui, que mapeamos, neste arti-
go, um exemplo claro de como as identidades
se conguram e se reconguram no campo
discursivo, dentro de embates diversos, o
que nos parece consolidar a constatação de
que identidades são sempre processos cultu-
rais. Mas, mais do que isso, nos parece que o
caso que analisamos neste trabalho, os des-
locamentos em torno da representação midi-
ática da Baixada Fluminense, são exemplos
claros do lugar central da cultura em todas
as dimensões da vida cotidiana, em especial
na economia e na política (HALL, 2003), que
não podem, a nosso ver, ser tomadas sem
levar em consideração a produção simbólica
da realidade social, ao custo de simplicá-la
e não compreendê-la em seus múltiplos as-
pectos e desdobramentos.
Bibliograa:
ARANTES, Otília. Urbanismo em m de linha. São
Paulo: EDUSP, 2001.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosoa da Lin-
guagem. São Paulo: Hucitec, 1979.
BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação.
Elementos para uma reexão crítica sobre a idéia de
região”. In: O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
BRIGGS, Asa. “The Sense of Place”. In: The Col-
lected Essays of Asa Briggs. Great Britain: The
Harverster Press, 1985.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Pe-
trópolis, RJ: Vozes, 1998.
DUARTE, Eduardo. “Desejo de cidade múltiplos
tempos, das múltiplas cidades, de uma mesma ci-
dade”. IN: PRYSTHON, Angela (org.). Imagens da
cidade. Espaços urbanos na comunicação e cul-
tura contemporâneas. Porto Alegre: Sulina, 2006.
ENNE, Ana Lucia. “Fluxos e interações da rede de
memória e história na Baixada Fluminense”. Revis-
ta Pilares da História, Duque de Caxias, v. Ano II, n.
nº 2, p. 37-52, 2003.
ENNE, Ana Lucia. “Imprensa e Baixada Fluminen-
se: múltiplas representações”. Revista Ciberlegen-
da, n.14, 2004a.
ENNE, Ana Lucia. Lugar, meu amigo, é minha
Baixada”: memória, representações sociais e
identidades. Tese de Doutorado em Antropologia
Social, PPGAS/MN/UFRJ, 2002.
ENNE, Ana Lucia. “Memória, identidade e impren-
sa em uma perspectiva relacional”. Revista Fron-
teiras, Unisinos, v. VI, n. 2, p. 101-116, 2004b.
26
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ENNE, Ana Lucia. “Memória e Identidade Social”.
Revista Contracampo, Niterói, v. 6, 2002.
ENNE, Ana Lucia. Umbanda e Assistencialismo:
um estudo sobre Representação e Identidade em
uma Instituição da Baixada Fluminense. Disserta-
ção de Mestrado em Antropologia Social, PPGAS/
MN/UFRJ, 1995.
GOMES, Paulo C., CASTRO, Iná e CORRÊA, Ro-
berto (orgs.). Geograa: conceitos e temas. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995
FOUCAULT, Michel. “Sobre a Geograa”. In:
__________. Microfísica do Poder. Rio de Janei-
ro: edições Graal, 1986.
HALL, Stuart. Da Diáspora. Belo Horizonte: ED.
UFMG, 2003.
HEREDIA, Beatriz Maria Alasia de. “Região regi-
ões: visões e classicações do espaço social”. In:
ESTERCI, Neide, FRY, Peter e GOLDENBERG,
Mirian (org.). Fazendo Antropologia no Brasil. Rio
de Janeiro: DP&A Editora, 2001.
ORLANDI, Eni. Análise de Discurso. Campinas,
SP: Pontes, 1999.
POLLACK, Michael. “Memória e identidade social”.
In: Estudos Históricos, 5 (10). Rio de Janeiro, 1992.
RONCAYOLO, Marcel. “Região”. In: Região. Enci-
clopédia Einaudi, vol. 8. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 1986.
SOUZA, Marcelo José Lopes de. “O território: sobre
espaço e poder, autonomia e desenvolvimento”. In:
CASTRO, Iná, GOMES, Paulo C. e CORRÊA, Ro-
berto (orgs.). Geograa: conceitos e temas. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
VERÓN, Eliseo. A produção do sentido. São Pau-
lo: Cultrix/USP, 1980.
WEBER, Max. “Las Comunidades Politicas”. In:
Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura
Económica, 1944.
1
Doutora em Antropologia e professora de Estudos de Mí-
dia e da Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da
Universidade Federal Fluminense.
2
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_Vermelha_
(Rio_de_Janeiro), acessada em janeiro de 2013.
3
ENNE (2002) e ENNE (2004).
4
Venho pesquisando a questão da construção de imaginá-
rios sobre a Baixada Fluminense desde 1993, quando ini-
ciei meu percurso acadêmico no mestrado em Antropologia
(PPGAS/MN/UFRJ), com dissertação sobre uma instituição
benecente em Nilópolis, a SOBENCO (ENNE, 1995). Pos-
teriormente, defendemos tese em Antropologia, também no
Museu Nacional, sobre a temática da memória, história e
identidade na Baixada Fluminense (ENNE, 2002). Com o
apoio do edital PRODOC/CAPES e do edital Primeiros Pro-
jetos/FAPERJ, desenvolvemos pesquisa sobre “imagens
da Baixada na imprensa uminense”. Com o apoio da FA-
PERJ, através do edital Direitos Humanos, desenvolvemos,
em uma parceria entre o LACED, do PPGAS/Museu Nacio-
nal, e o LAMI, do PPGCOM/UFF, uma pesquisa sobre ado-
lescentes e práticas institucionais na Baixada. E estamos
fechando agora, com apoio do Edital Jovens Cientistas do
Nosso Estado/FAPERJ, pesquisa sobre o tema “Das casas
de cultura às ONGs na Baixada Fluminense: uma reexão
sobre cultura, política, mídia, mercado e juventude”.
5
ENNE (2002).
6
ORLANDI, 1999, p. 36. Neste sentido, podemos pen-
sar também as contribuições de M. Bakhtin acerca do
caráter dialógico e polifônico do discurso.
7
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Verbete
“Baixada”. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portugue-
sa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 220.
8
LAZARONI, Dalva. O município de Duque de Caxias.
Sua terra, sua gente, sua economia, sua história. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990, p. 23.
9
Ver, por exemplo, Ney Alberto, no artigo “De Iguassú a
Iguaçu (II)”, no item “Por que somos Fluminenses?”, em
que ele explica que “Fluminense vem de “umen, rio em
Latim, porque os exploradores da Baia de Guanabara,
no mês de janeiro, julgaram que tais águas eram de um
caudaloso rio...”. In: Revista Memória, Ano I, nº 2, 1998,
p. 15. É interessante observar que alguns dos agentes
também indicam que “Iguassu” teria, na etimologia tupi,
o signicado de “grande água”, apontando também para
o mesmo ponto que o termo latino.
10
Revista Memória. “Tipos e Aspectos na Baixada Flu-
minense”. Separata I, junho/98, p. 1.
11
Como demonstrarei em outros momentos desse tra-
balho, a produção de sentidos é marcada por condições
de produção e posicionamentos dos sujeitos envolvidos
nessa produção, o que implica em uma relação de for-
ças e uma disputa em termos de poder, principalmen-
te de uma autoridade sobre o que se fala. Eliseo Verón
aponta para a importância de reetirmos sobre “a ques-
tão do sistema produtivo dos discursos sociais, o qual é,
por sua vez, um fragmento do campo de produção social
do sentido.” Cf. VERÓN, 1980, p. 103.
12
BAKHTIN, 1979, p. 91.
27
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Contato:
- anaenne@gmail.com
13
Michel Foucault aponta, por exemplo, para outras
possibilidades de pensar as noções de território e região
sem relacioná-las somente ao universo da Geograa.
Neste sentido, ele arma que “o território é sem dúvida
uma noção geográca, mas é antes de tudo uma no-
ção jurídico-política: aquilo que é controlado por um cer-
to tipo de poder”. Da mesma forma, região seria uma
“noção scal, administrativa, militar”. FOUCAULT, 1986,
p.157.
14
Este autor apresenta um balanço das diversas con-
cepções associadas à categoria região, em que primei-
ramente ela seria pensada a partir de um critério natural.
Em um segundo momento, seria associada a uma certa
concepção étnica. Ambas seriam superadas pela con-
cepção de região econômica, para nalmente começar
a ser pensada como um “princípio relativamente abstra-
to”, como um local de representações sociais. Cf. RON-
CAYOLO, 1986, pp. 161-189.
15
Beatriz Heredia, ao analisar as denições regionais em
áreas de plantio em Alagoas, vai apontar para o perigo de
naturalizar o conceito, pelo seu uso frequente, e, como con-
sequência, contribuir “para legitimar determinadas maneiras
de pensar e classicar que também se tornam formas “natu-
rais” de ver e observar a realidade”. Por isso, lembra que o
conceito de região, “como todo conceito é também objeto de
uma construção”, o que vai obrigar, em termos de análise, a
uma “desnaturalização”. Cf. HEREDIA, 2001, p. 168.
16
Paulo Cesar Gomes observa, comparando as duas
concepções, a funcionalista e a marxista, sobre região:
“É importante perceber aqui o fato de que, embora re-
cusando o funcionalismo como critério para a divisão do
espaço, esta nova corrente radical aceita que a região
seja um processo de classicação do espaço segundo
diferentes variáveis. Em outras palavras, a controvérsia
se em relação ao conteúdo, ou seja, em relação à
escolha dos critérios, a forma de proceder metodologica-
mente, no entanto, é preservada”. GOMES, 1995, p. 65.
17
GOMES, idem., p. 67.
18
Sobre a etimologia da palavra, ver BOURDIEU, 1989, p. 113.
19
SOUZA, 1995, pp. 78-79.
20
WEBER, 1944, p. 663.
21
FOUCAULT, Michel, op. cit, p. 158.
22
SOUZA, op. cit., p. 84.
23
Idem, p. 87, grifos do autor.
24
Idem, p. 87.
25
Sobre o conceito de redes sociais, ver ENNE (2002).
26
A distinção entre as duas categorias é também explo-
rada por Michel de Certeau, para quem “o espaço é um
lugar praticado”. CERTEAU, 1998, pp.202-203.
27
A mesma idéia associada a território aparece no texto
de Marcel Roncayolo, no volume citado da enciclo-
pédia Einaudi, mas no verbete “Território”, no qual este
“identica-se então com o espaço vivido, subjectivo, re-
conhecido ao longo de experiências individuais e múlti-
plas. O conceito de território é substituído, em certa me-
dida, pelo de percepção do espaço.” Cf. RONCAYOLO,
M., op. cit., p. 265.
28
“Na Atenas contemporânea, os transportes coletivos
se chamam metaphorai. Para ir para o trabalho ou vol-
tar para casa, toma-se uma “metáfora” um ônibus ou
um trem. Os relatos poderiam igualmente ter esse belo
nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares;
eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles
fazem frases e itinerários. São percursos de espaços.”
CERTEAU, Michel, op. cit., p. 199. Grifo do autor.
29
Em 2002, por exemplo, a Via Light já está consolidada
e é percebida, na matéria do jornal O dia, de 16 de maio,
como um fator fundamental na ligação entre o Rio e a
região, como demonstram o título “Madureira mais perto
da Baixada” e o subtítulo “Prefeitura vai ampliar Via Li-
ght. Ligação entre regiões será feita em 15 minutos”. Mais
uma vez, uma intervenção urbana alterará o imaginário
em termos de distância social entre as duas localidades.
30
A ampliação do aeroporto também será tema de ma-
téria em A Gazeta Mercantil de 17/1/1999, com o título:
“Começa a nascer ponte aérea entre Baixada e Rio”.
31
Na matéria uma entrevista com o sociólogo e profes-
sor José Claudio Souza Alves, autor da tese de doutorado
“Baixada Fluminense: a violência na construção do poder”.
28
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Por que (,) Suzane? 10 anos depois
¿Por qué (,) Suzane? 10 años después
Why (,) Suzane? 10 years later
Danielle Brasiliense
1
Resumo:
Por que (,) Suzane? 10 anos depois é um trabalho sobre o caso mais
famoso de crimes em família no Brasil, o assassinato do casal Marísia
e Manfred Von Richtofen ocorrido em outubro de 2002. O objetivo
deste artigo é pensar a construção da representação dos crimes de
família, do lugar de sustentação da ordem social e do imaginário
cultural sobre a monstruosidade do sujeito criminoso, viabilizados pelo
discurso midiático. Para isso, será importante pensar a evidência do
caso dos Richtofen, o motivo de sua fama e referência quando se trata
de violência e barbárie, e também procurar perceber nos ideais da
psicanálise as desrazões que provocaram este crime. De que forma este
ato de violência e as representações que são feitas sobre ele abalam as
estruturas da ordem social? Serão analisados outros crimes de família,
semelhantes ao de Suzane, para compreender tais questões.
Palavras chave:
Representação social
Discurso midiático
Violência
29
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
¿Por qué (,) Suzane? 10 años después es un trabajo sobre el caso
más famoso de crímenes familiares en Brasil, el asesinato de la pareja
Marísia y Manfred Von Richtofen ocurrido en octubre de 2002. El
objetivo de este artículo es reexionar acerca de la construcción de
la representación de los crímenes familiares, del lugar de sustento
del orden social y del imaginario cultural sobre la monstruosidad del
sujeto criminal, posibilitados por el discurso mediático. Para ello, será
importante tener en cuenta la evidencia del caso de los Richtofen,
el motivo de su fama y referencia cuando se trata de la violencia y
barbarie, y también buscar reconocer en los ideales del psicoanálisis
las sinrazones que provocaron este crimen. ¿De qué forma este
acto de violencia y las representaciones que se hacen de él sacuden
las estructuras del orden social? Serán analizados otros crímenes
familiares, similares al de Suzane, para comprender estas cuestiones.
Abstract:
Why (,) Suzane? 10 years later is a work about the most famous case
of family crimes in Brazil, the murder of the couple Marísia and Manfred
Von Richtofen occurred in October 2002. The purpose of this article is
to reect on the construction of the family crimes’ representation, on
the social order maintenance and on the cultural imagery about the
monstrosity of the criminal subject, which are made possible by media
discourse. To this end, it will be important to consider the visibility of the
Richtofens’ case, the reason of its fame and reference when it comes
to violence and barbarism, and try to realize the unreasons that caused
this crime in the ideals of psychoanalysis. How do this act of violence
and the representations that are made of it undermine the structures of
social order? Other family crimes, similar to Suzane’s, will be analyzed
to understand such issues.
Palabras clave:
Representación social
Discurso mediático
Violencia
Keywords:
Social representation
Media discourse
Violence
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Por que (,) Suzane? 10 anos depois
Apresentação
Analisar as narrativas sobre o as-
sassinato dos Richtofen é importante
por se tratarem de discursos sobre um
fato que aconteceu no território familiar,
ao contrario dos assassinatos comuns
que se passam fora dos limites deste
lugar, chamado de lar, e considerado
um dos principais espaços de represen-
tação da ordem social. O caso Suzane
não pode ser considerado um ícone
quando se fala de crimes em família no
país, mas também uma referência so-
bre cultura do controle da ordem social.
Esse episódio nos fez pensar sobre a
insegurança que ultrapassa as margens
estruturais da sociedade construída por
esta cultura de segurança representada
pela instituição familiar.
Dos dez mandamentos bíblicos
do livro de Êxodo ditados pelo Deus de
Moisés, o quinto mandamento talvez
seja uma das principais manifestações
sobre a proteção da instituição familiar
conhecida pelos homens que têm aces-
so ao mundo ocidental organizado pela
potência do pensamento cristão. Este
mandamento foi ordenado por um Deus,
considerado acima de todos os pais, pai
de Cristo e de todos os homens, aquele
que é reconhecido pelos cristãos como
superior a todos. Com este mandamen-
to, a autoridade divina dita a importância
da ordem familiar para que os homens
não se desviem e garantam sua vida na
terra: “Honra teu pai e tua mãe para que
se prolonguem seus dias na terra.”
A cultura da honra familiar ociden-
tal é abalada por um crime como o de
Suzane que traz para a sociedade uma
grande insegurança, pois não se sabe
como lidar com a possibilidade de existir
um assassino dentro da sua própria casa,
que a qualquer momento pode destruir a
família e todas as suas representações
de amor, cuidado, união e harmonia.
A premissa deste trabalho é espe-
cialmente bakhtiniana no sentido de ver
os discursos como polifônicos e dialó-
gicos que não têm nem começo e nem
m, mas que empregam sentidos ideo-
lógicos encadeados por valores consti-
tuídos como verdade ou especialmente
como senso comum. Os discursos e os
contextos deste crime, que serão aqui
apresentados, servirão de apoio para a
análise midiática sobre o uxo discursivo
dos valores da família, da violência e dos
criminosos que marcam a quebra do pa-
drão desta ordem.
A ordem social é um produto da
cultura, como prática de organização
simbólica dos valores humanos, ou de
uma espécie de valorização de deter-
minados sentidos. Sobre esta questão,
Muniz Sodré (1983, p.16) ressalta em
seu texto Verdade Seduzida a ideia do
desejo de saúde social compreendida
no século XVIII no auge da exaltação de
uma higiene que pudesse armar a qua-
lidade da classe social burguesa. Esse
tempo foi fundamental para designar no
século XIX a cultura de aperfeiçoamen-
to dos sujeitos, como uma forma de vida
ideal, saudável, privada e controlada pela
lei judiciária e pela medicina psiquiátrica,
que unidas se posicionam no lugar de um
discurso autorizado.
É importante perceber como os
sentidos discursivos são construídos e
culturalmente estabilizados na sociedade
sob a forma de higiene ou cultura da or-
dem, negando tudo que contradiga esses
valores. A ideia, então, é entender como
essas produções narrativas midiáticas,
que tem o poder de demonstrar para a
grande massa social a realidade de um
fato, irão gerenciar os diversos sentidos
31
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
contraditórios que compõem um crime de
família. E de que forma esses discursos
fundam e alimentam os sentidos da or-
dem social, a insegurança, a monstruosi-
dade dos sujeitos criminosos e a própria
representação do lugar da família. Sob
que efeitos e parâmetros são baseados
esses discursos que transformam a con-
ituosa realidade de um crime em um es-
petáculo midiatizado?
A partir destas questões, buscou-
-se aqui se limitar em perceber dois
questionamentos sobre o assassinato
dos Richtofen: “Por que Suzane?” e “Por
que, Suzane?”. A primeira pergunta diz
respeito ao interesse de saber por que o
caso de Suzane, mesmo dez anos depois
do ocorrido, ainda tem grande destaque
midiático quando se trata de crimes bár-
baros em família, especialmente, que
levam lhos a cometer a prática de as-
sassinar os próprios pais. É importante
entender como a construção narrativa
deste crime foi elaborada para que tives-
se tamanha evidência se tornando uma
referência criminal.
O programa Fantástico, exibido
pela Rede Globo aos domingos, fez uma
edição de vídeos em comemoração aos
45 anos da emissora em maio de 2010.
Foram selecionadas algumas cenas de
reportagens marcantes no mundo como:
a queda do muro de Berlim, o m da Copa
de 2004 e a vitória do Brasil, a morte do
corredor de fórmula 1 Ayrton Senna, o
atentado de 11 de setembro aos EUA, a
posse do presidente Barack Obama, en-
tre outras. Nesta exibição, o crime come-
tido por Suzane Von Richthofen também
foi destaque.
Este crime ganhou uma propor-
ção maior do que outros crimes similares,
como os provocados por Marcelino Sou-
to Maia (1970), Jorge Delmanto (1988),
Andréia Gomes Pereira (1994) e Gustavo
Pissardo (1994). Todos esses também fo-
ram acusados de matar brutalmente seus
pais. O que teria de especial no caso de
Suzane Von Richthofen para estar entre
os mais marcantes acontecimentos que
tiveram cobertura sobre violência na -
dia? Por que os outros casos não se tor-
naram referência quando ouvimos falar
sobre crimes em família? Por que a mídia
deu tanta visibilidade para esta tragédia
especicamente?
Uma das respostas mais imediatas
para a fama deste episódio seria: a famí-
lia Richthofen ocupava um lugar privile-
giado na alta classe média de São Paulo,
e por identicação de público, os jornais
mais importantes do país - O Globo, Folha
de S.Paulo e Estadão, - que falam para
classe A e B, e os principais programas
de notícia de TV teriam dado maior en-
foque para o caso. Mas, os outros acon-
tecimentos citados aqui se referem ao
mesmo universo social, todos eram lhos
de famílias da alta classe média. E sen-
do assim, esse não seria o único motivo
plausível para justicar o destaque dado
pela mídia ao caso dos Richthofen.
Em uma entrevista com o repór-
ter Caco Barcellos, em julho de 2012,
tentei explorar a questão do motivo pelo
qual Suzane foi um caso de grande evi-
dência na mídia. O repórter contou que
na época do julgamento da jovem, em
2006, o programa Profissão Repórter,
ainda exibido como quadro do Fantás-
tico, providenciou uma reportagem que
mostrava diversos outros crimes simila-
res ao dos Richtofen, que cometidos
por pessoas de classes mais baixas,
mas com testemunhas e comprovações
investigativas policiais evidentes. Tais
crimes jamais se tornaram conhecidos
pela grande mídia.
A equipe de Caco Barcellos pro-
curou saber sobre esses casos e os jul-
gamentos feitos deles e identicou que a
maioria dos processos haviam sido arqui-
32
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
vados. A matéria do Prossão Repórter
chegou à conclusão que o caso de Suza-
ne poderia ter recebido atenção maior
pelo fato de se tratar de uma família que
fazia parte da elite paulista.
Reconhecemos o quanto a ques-
tão da diferença de classe social pode
ter influenciado a condição representa-
tiva do caso para a mídia, mas o que
se percebeu na pesquisa apresentada
neste artigo é que existem outras hi-
póteses a serem levadas em conside-
ração, especialmente depois de avaliar
outros crimes de famílias também muito
ricas que não se tornaram ícones de re-
presentação midiática.
Demonstrarei aqui algumas res-
postas sobre o que tornou o caso dos
Richthofen uma referência. Levo em con-
sideração que não existem justicativas
isoladas para este caso, pois a realida-
de dos acontecimentos é composta por
complexidade, assim como a cobertura
destes, como notícia, também é motiva-
da por inúmeras questões. Sendo assim,
entendo que não um ou dois motivos
que esclareçam a relevância do caso dos
Richthofen, mas um conjunto de fatores
que levam este acontecimento ao lugar de
referência.
A primeira aproximação sobre a re-
verberação do caso dos Richthofen está
voltada para uma simples comparação
com a produção narrativa de romances
policiais e os discursos da mídia sobre
crimes de violência recheados de fait
divers
2
. Acredito que o fait divers, mes-
mo se tratando de um conceito antigo na
área de Comunicação, é sumamente im-
portante para a complexicação do fato e
para a repercussão e memorização que
se faz dele.
O desenrolar das histórias poli-
ciais contadas nas literaturas de autores
como Rubem Fonseca, Elmore Leonard,
Marçal Aquino, Agatha Cristie, Michel
Cornely, Patrícia Mello ou George Sime-
non, Arhtur Conan, Raymond Chandler,
P.D. James e diversos outros tradicio-
nais romancistas ingleses ou brasileiros
desta área - cada um com sua carac-
terística própria - passa pela tensão da
descoberta do desconhecido ou da reso-
lução de um enigma. E é exatamente o
enigma que enche o leitor da sensação
de curiosidade, de questionamentos e o
faz seguir em busca do fechamento das
histórias. Ora, a característica que mais
marca este gênero da literatura é o im-
pulso pela descoberta ou a ambição por
saber a verdade. Não teriam a mesma
lógica narrativa os fatos policiais conta-
dos pela mídia? O que prende o leitor
não seria a busca por uma resposta até
que se ache uma?
As narrativas sobre os crimes ba-
seadas no fait divers tendem a explorar
mais o mistério que envolve os aconteci-
mentos, do que o próprio ato de violência,
pois o público de massa que acompanha
os casos via notícias se interessa mais
em conhecer a solução dos fatos do que
enxergar a violência e o que há nela.
Vistas todas essas hipóteses e
questões acima provocadas pela primeira
pergunta motivadora, “Por que Suzane?”,
passamos para o segundo questionamen-
to e o mais intrigante: “Por que, Suzane?”.
A simples vírgula acrescentada a esta fra-
se muda todo o seu sentido. Esta é a per-
gunta feita pela maior parte da sociedade
brasileira que teve os seus ideais de or-
dem abalados no momento em que rece-
bem a notícia de que uma jovem universi-
tária, considerada bela e rica, e com boas
condições de educação familiar, elaborou
a morte dos seus progenitores. Por que,
Suzane, você fez isso? Essa é uma per-
gunta direta para a autora do crime, que
provoca perturbações a respeito do que
se concretizou culturalmente como terri-
tório de segurança inabalável, o espaço
33
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
privado familiar que é desestruturado por
um ato de violência.
Não é conveniente o interesse de
responder esta questão. Isso poderia ser
arrogante, pois acredito que não res-
posta cabível fora do senso comum ou de
qualquer falácia sobre o crime, que pudes-
se dar conta desta problemática. Talvez,
nem mesmo a própria Suzane possa nos
responder. Mas, o que proponho ao colo-
car esta questão é: pensar esta pergunta,
analisar algumas propostas da psiquiatria
e sua relação com o conceito de violência
para que possam ser avaliadas as razões
ou desrazões que fundam este crime.
Tratarei do tema da violência, não
apenas como conceito, mas como ato de
impulso humano de agressividade. Este
pode ser um caminho razoável para pen-
sar como Suzane foi capaz de cometer
o assassinato dos seus pais. Jamais te-
remos essa resposta, como disse antes,
volto a repetir. O que nos importa de fato,
aqui, é entender o motivo pelo qual a nos-
sa sociedade se apega a esta pergunta.
Neste caso, o questionamento que de-
veria ser feito e pelo qual a mídia, essa
grande porta voz da nossa realidade, pa-
rece não se interessar é: o que é esta vio-
lência que decepciona a sociedade, que
frustra e angustia e que promove a super-
valorização da ordem?
1. Suzane, lha de Manfred e Marísia Ri-
chthofen
1.1. A história do crime na forma de
um conto policial:
Alexandre era o PM de plantão na
noite da morte dos Richthofen. Escolta-
do pelo seu parceiro, ele sobe as esca-
das, chega ao primeiro quarto, vê apenas
a delicadeza dos bichos de pelúcia e os
mimos de uma jovem menina. Passa por
mais uma porta onde visualiza alguns
aviõezinhos, mas também não acha nada
suspeito. Da porta do quarto do casal, os
policiais encontram um homem deitado
na cama de barriga para cima, com uma
arma na mão e uma toalha no rosto. O
homem era Manfred Richthofen, pai de
Suzane Louise e Andréas Albert. Ele se-
gurava uma arma e parecia estar morto.
Ao lado de Manfred, Alexandre via algo
embrulhado no lençol e um plástico preto
que na distância que se encontrava não
podia identicar o que era. Mais próximo
da cama, viu que o embrulho era o corpo
de uma mulher. Marísia Richthofen tinha
a cabeça enrolada num saco de lixo.
Imediatamente, sem mexer nos
corpos, os PMs deixaram a casa e no lado
de fora encontraram Daniel Cravinho,
o namorado de Suzane. A menina logo
perguntou pelos pais. Alexandre, sem res-
ponder, chamou Daniel e lhe contou que o
casal estava morto e que lhe caberia dar a
notícia para a namorada. Daniel, com um
tom de frieza, acata o pedido do policial
sem muito problema e a notícia para
Suzane que se mostra surpresa, mas não
se desespera e nem chora. Andréas, ao
ouvir Daniel, ca em choque, sem enten-
der muito bem as coisas.
A perícia chega e o local é isola-
do. Dr. Saulo retira o saco preto da cabe-
ça da mulher. Por baixo ela também tem
uma toalha no rosto e nos cabelos uma
grande quantidade de massa cefálica
grudada. Logo, pela experiência, Saulo
descarta a possibilidade de ela ter sido
morta por um tiro disparado pelo próprio
marido, pois estava mais parecendo que
havia levado uma tamanha surra. Marí-
sia tinha também lesões nas mãos que
podiam ter sido causadas pela tentativa
de defesa própria. Manfred tinha vários
respingos de sangue no corpo e um cor-
te atrás da cabeça. Era certo para Saulo
que o casal havia sido assassinado, até
porque, quem colocaria uma toalha no
próprio rosto após se suicidar?
34
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
FolhaOnline, dia 31 de outubro de 2002, 13h:20
Engenheiro da Dersa e sua mulher são
assassinados em casa, em SP
Um casal foi assassinado hoje em uma casa da Rua
Zacarias de Góis, região do Campo Belo, zona sul
de São Paulo. O homem - diretor de Engenharia da
Dersa - tinha uma toalha no rosto. A mulher - uma
médica - estava com um saco plástico na cabeça.
Há indícios de latrocínio (roubo seguido de morte).
Familiares informaram à polícia o desaparecimento
de R$ 8.000 e US$ 5.000. O dinheiro estava
guardado em uma caixa, na biblioteca da casa.
Segundo informações do 27º Distrito Policial (Campo
Belo), os lhos do casal - de 15 e 18 anos - disseram
que não estavam em casa no momento do crime,
comunicado à Polícia Civil por volta das 5h.
As vítimas são Manfred Albert von Richthofen, 49, e
Marísia von Richthofen, 50. Os dois apresentavam
lesões na região da cabeça. Informações iniciais
apontavam que poderiam ter sido baleados, mas,
conforme a polícia, os ferimentos devem ter sido
provocados por pancadas.
A porta da casa estava aberta e as luzes acesas.
Os sistemas de alarme e segurança da casa
estavam desligados.
FolhaOnLine, dia 02 de novembro de 2002, 03h:20
Polícia procura ex-empregada de casal
assassinado em SP
A polícia procura uma ex-empregada doméstica
do casal Marísia e Manfred Albert von Richthofen,
encontrado morto anteontem em sua casa,
no Brooklin (zona sul de São Paulo). Segundo
amigos do casal, a ex-empregada teria feito
ameaças à família depois de ter sido demitida.
Maria Isabel Smith Junqueira, que disse ser
amiga da família, armou ontem, no cemitério
do Redentor, no Sumaré (zona oeste), onde
o casal foi enterrado, que Marísia vinha
recebendo telefonemas ameaçadores de
uma ex-empregada. Cerca de 200 pessoas
compareceram ao enterro. Entre elas, os lhos
do casal - Andreas, 15, e Suzane, 18 - , que
encontraram os corpos anteontem.
A doméstica teria trabalhado por um mês na
casa de Richthofen, diretor da Dersa (estatal
que administra estradas em SP). Ela teria sido
demitida algumas semanas. Maria Izabel
disse que Marísia comentou que a doméstica
telefonava várias vezes pedindo o emprego
de volta. “Marísia estava incomodada. Se ela
continuasse, iria chamar a polícia.” A polícia
acredita que os assassinos do casal, que foi
morto com pancadas na cabeça, conheciam a
casa e as vítimas. A casa não foi arrombada, o
alarme e as câmeras estavam desligados.
Policiais conrmaram que a doméstica está na
lista de suspeitos, mas que não prova de
seu envolvimento no crime. Outra empregada
do casal também teria conrmado à polícia as
ameaças da ex-funcionária.
Peritos coletaram cerca de 50 vestígios de
digitais na casa. Entre eles, no revólver 38 que
era de Richthofen e que foi encontrado no quarto
e no local onde a arma era guardada. Os policiais
checaram e conrmaram as informações
dos lhos, que disseram que tinham saído e
encontraram os corpos por volta das 4h.
Em depoimento, Andréas conta que
na noite do crime havia saído de casa, es-
condido de seus pais, para encontrar com
sua irmã e o namorado, que o levariam
ao Red Play Cybercafé, onde ele gosta-
va muito de se divertir. Andréas tinha uma
mobilete em sociedade com Daniel, mas
seus pais não sabiam, então, ele aprovei-
tava alguns momentos, como a ida ao cy-
ber, para buscar a moto na casa do Dani,
como chamava o cunhado, e dar voltas
pelas ruas. Suzane e Daniel costumavam
também levar Andreas para fumar maco-
nha junto com eles. O menino disse que a
irmã o havia deixado no cyber e ido para o
motel com o namorado. Ele contou ainda
que tinha estado no motel com os dois,
pois, o casal o levara para acabar com sua
curiosidade sobre o lugar. Nesse dia, An-
dréas entrara no motel escondido dentro
do porta-malas do carro. O menino contou
para a polícia que o namoro de sua irmã
havia sido proibido por seus pais e ele era
o único que sabia que o casal não tinha
cortado relações.
Daniel, em seu depoimento, aler-
ta à polícia, que seria provável o envolvi-
mento de uma ex-empregada da casa no
crime, pois ela havia brigado com a família
antes de ir embora.
1.2. As narrativas jornalísticas do crime:
35
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
FolhaOnLine, dia 05 de novembro de 2002, 03h:47
Ex-empregada deixa de ser foco central de
investigação em SP
A polícia praticamente descartou o envolvimen-
to de uma ex-empregada na morte do casal Ma-
rísia e Manfred von Richthofen, assassinados
na última quinta-feira na casa onde moravam,
no Brooklin (zona sul de São Paulo). O enfoque
da investigação está centrado agora em familia-
res e conhecidos das vítimas.
Policiais disseram que o envolvimento da do-
méstica no crime está praticamente descartado.
FolhaOnLine, dia 08 de novembro de 2002, 10h:33
Filha confessa participação em assassinato
dos pais, diz polícia
De acordo com a polícia, o assassinato de Man-
fred e Marisia von Richthofen, ocorrido no últi-
mo dia 31 de outubro no Brooklin, zona sul da
cidade, foi planejado pela própria lha do casal,
Suzane, 19, e pelo namorado dela, Daniel Cra-
vinhos de Paula e Silva, 21.
Segundo o DHPP (Departamento de Homicídios
e Proteção à Pessoa), os dois confessaram a
autoria do crime durante a madrugada de hoje.
O irmão de Daniel, Cristian, também admitiu em
depoimento que participou das mortes.
O motivo do crime ainda não foi completamente
esclarecido, mas Suzane declarou à polícia que
os seus pais eram contrários ao seu relaciona-
mento com Daniel. Ela também disse que tinha
diversos atritos familiares por outros motivos.
Suzane dir.), no enterro dos pais assassinados, e o
namorado Daniel (à esq) antes de confessar o crime
FolhaOnLine, dia 08 de novembro de 2002, 08h:40
Suspeito confessa crime no Brooklin e acusa
lha do casal morto
Cristian Cravinhos de Paula e Silva, 26, principal
suspeito de ter assassinado o casal Manfred Al-
bert von Richthofen, 49, e Marísia, 50, no dia 31
de outubro no Brooklin, zona sul de São Paulo,
confessou o crime, segundo a polícia. O casal foi
morto a pauladas.
Ele disse que o irmão, Daniel, 21, e a namorada
Suzane, 19, lha do casal von Richthofen, tam-
bém participaram do assassinato. Suzane teria -
cado fora da casa no momento em que seus pais
foram assassinados.
A empregada da casa deixa de ser um
foco na investigação da polícia, pois não havia
indícios aparentes de que ela havia roubado
os 5mil reais e 8 mil dólares. A ex-empregada
demonstrou não ter envolvimento de intimi-
dade alguma com a família. Ela trabalhou na
casa por pouco tempo. E, segundo a perícia,
o criminoso teria que ser íntimo para saber
sobre o local onde o dinheiro era guardado.
Com suspeita de latrocínio, a investi-
gação do crime dos Richthofen buscou quem
teria interesse no dinheiro da família, que a
ex-empregada havia sido uma suspeita des-
cartada. A polícia encontra uma pista ao in-
vestigar a compra de uma moto Suzuki com
notas de 100 dólares feitas por Cristian Cra-
vinhos, irmão do namorado de Suzane von
Richthofen. A compra havia sido feita dez ho-
ras depois do crime. Cristian é chamado para
depor e não consegue sustentar o segredo.
1.3 Por que Suzane? A aventura
do fait divers e o prazer de desnudar.
O texto que o senhor escreve tem que
me dar prova de que ele me deseja.
Esta prova existe: é a sua escritura.
A escritura é isto: a ciência das fun-
ções da linguagem, seu kama – sutra.
(BARTHES, 1993, p.11)
O crime dos Richthofen ocorreu no
dia 31 de outubro de 2002 e demorou qua-
se 10 dias para ser solucionado. Quando
estamos lendo um romance policial e o
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
responsável pelo crime aparece no -
nal, o que nos prende a esta história é o
mistério, a falta de resolução do crime.
O prazer de desnudar, de retirar a capa
do desconhecido é um estímulo causado
pelo fait divers. Este termo foi usado pelo
pensador francês Roland Barthes para ca-
racterizar a forma extravagante de fazer
notícias pelo que é extraordinário e causa
emoção/comoção.
Para um crime se tornar uma notí-
cia que chame atenção, ele deve ter, se-
gundo Bob Roshier,
3
quatro característi-
cas: agressividade; circunstâncias irônicas
e inusitadas; acontecimentos dramáticos e
alto status dos atores envolvidos. O alto
status, aqui, está ligado à valorização da
anormalidade do criminoso em compara-
ção ao criminoso habitual.
Hoje, o que chama mais atenção:
um tracante matar uma menina estudan-
te de Direito da alta classe média ou uma
rica estudante de Direito matar seus pró-
prios pais? Depende do motivo que fez
o tracante matar uma estudante rica. Um
conto do Rubem Fonseca chamado Beli-
nha ilustra essa questão contraditória. Ele
conta a história de uma jovem de classe
média que namora um matador de alu-
guel, a quem ela encomenda a vida de seu
próprio pai. O romancista cria uma reali-
dade que revela o poder do lugar do pai
na moral humana. A personagem do as-
sassino prossional se sente incomodada
com o pedido da namorada e pessoalmen-
te ofendida com a situação de ter ao seu
lado uma pessoa com desejos parricidas:
Quero que você mate meu pai. Fiquei ca-
lado. Matar o pai, pensei, porra, a gente
pode matar todo mundo, menos o pai e a
mãe da gente.” (FONSECA, 2006, p. 21) O
bandido inconformado mata Belinha, evi-
tando um crime de parricídio.
Essa história não teria nada de
extraordinário se a causa do crime fosse
apenas uma morte por assalto à mão ar-
mada, mas tirar a vida do próprio pai sem
motivos aparentes é mais excepcional,
pois o pai em nossa sociedade ocupa o
lugar do sagrado, do intocável. Matar o pai
é matar a moral, é cometer o crime mais
chocante da humanidade, é tirar a vida de
quem lhe deu vida.
Muniz Sodré, em seu livro A nar-
ração do fato, traz uma discussão so-
bre a anidade narrativa do crime nos
romances policiais e no jornalismo. Am-
bos, como mostra o autor, organizam,
em episódios sucessivos, algum fato que
merece ser analisado. Para ele, a estru-
tura textual dos romances policiais é si-
milar à forma de construção narrativa de
um acontecimento jornalístico, pois am-
bos criam a mesma maneira de desen-
rolar um novelo que segue em direção
da busca de uma identidade ou motivo
desconhecido. O leitor vai desembolando
a narrativa, junto ao mediador, até que o
mistério seja solucionado.
O crime de Jorginho Bolchabck,
por exemplo, foi um acontecimento de
mistério que não foi solucionado. Jorge foi
acusado de ter matado seus pais assim
como Suzane. A morte de Jorge Touc
Bolchabck e sua mulher cou conhecida
como O Crime da Rua Cuba. O casal foi
assassinado na noite de Natal do ano de
1988, na rua Cuba, no bairro dos Jardins
em São Paulo. Seu lho, Jorge Delman-
to Bolchabck, conhecido como Jorginho,
foi acusado do crime diversas vezes, mas
nunca se rmou uma prova que o con-
denasse. Sua família é reconhecida no
campo prossional da advocacia crimi-
nal no Brasil e lutou para que a liberdade
do rapaz fosse garantida. Mesmo assim,
foram anos de investigação deste episó-
dio, pois a mídia marcou em cima, como
comprova o livro de Persival de Souza, O
Crime da Rua Cuba.
Mas, neste caso, a narrativa do fait
divers tentou se estender por muito tempo,
37
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mas acabou perdendo seu caráter quanto
à excentricidade. Roland Barthes diz que
um crime sem causa é um crime que se
esquece, pois o fait divers desaparece,
sua relação fundamental com a narrativa
do crime é extenuada, perdida pelo atraso
de reconhecimento de uma causa.
É importante perceber duas coisas
neste caso: o trabalho narrativo da im-
prensa em busca do autor do crime e a
ênfase nas acusações de Jorginho como
provável parricida. Embora este crime te-
nha perdurado por alguns anos na mídia,
o motivo desta referência não foi o ato de
violência em si, mas o mistério em torno
do enredo. Neste caso, as narrativas se
sustentaram pela esperança de reconhe-
cer o assassino e solucionar o mistério,
pois em algum momento, uma revelação
poderia ter feito deste crime uma grande
referência, como o crime cometido por
Suzane, mas isso não aconteceu. São
muito raras as vezes que se fala do Cri-
me da Rua Cuba.
Sodré cita uma fala de G. Auclair
ao estudar as funcionalidades do fait di-
vers. Diz: A crônica do fait-divers é como o
lugar da satisfação simbólica das frustra-
ções mais elementares, em que se busca
dar-se o equivalente ilusório de uma ex-
periência total do homem através do ex-
cepcional, do atípico e do desviante, viver
cticiamente a impossível transgressão
da ordem social, roubar, matar em sonho.
(SODRÉ, 2009, p.250). Explorar uma nar-
rativa do fait divers é trazer para a realida-
de o horror proibido e é o proibido que ins-
tiga o leitor. Quando um jornalista ou um
romancista constrói um texto com base no
fait divers ele está criando uma narrativa
de sedução para o leitor, para que este se
prenda ao fato. Mas o proibido pode ser
esvaziado como no caso da Rua Cuba.
O leitor é seduzido pela intriga pro-
vocada pelo texto, em que o mistério é
o chamariz, mas também é atraído pela
consciência moral daquele que o seduz.
O caminho da descoberta do crime é o
mesmo em que se conrmam os ideais
do senso comum, no qual o leitor sente-
-se próximo da realidade falada. Ou seja,
quando um narrador seduz, provoca
emoções e prende o leitor pelo que o as-
sunto tem de extraordinário, ele leva suas
próprias concepções de mundo, mas com
a certeza de que essas também fazem
parte da consciência moral do leitor e,
com isso, não irá desagradá-lo. Portan-
to, quando um jornalista ou um escritor
de romance conta o absurdo de uma lha
matar os próprios pais, ele está apenas
levando a conrmação deste absurdo
para o seu leitor que entende isto pelo
senso comum.
No livro As estratégias sensíveis,
Muniz Sodré (2006) cita o lósofo Kant
para explicar que uma sensação pode
se tornar comunicável se houver um acor-
do de afetos. No caso do narrador e do
leitor, é necessário esse acordo que, se-
gundo Kant, é o que cria uma comunidade
do gosto e que torna um sentimento uni-
versalmente conhecido, comunicável pelo
senso comum. Esta é uma estratégia nar-
rativa fundamental para que o texto ganhe
maiores proporções de aceitação.
A excentricidade dos aconteci-
mentos é surpreendente e consagrada
pelo senso comum. Se o narrador de
uma história contasse um crime pelo que
este tem de extraordinário e não entras-
se em acordo moral com o seu leitor, ele
não conseguiria seduzi-lo, pois estaria
indo contra os princípios deste. Então, o
trabalho de criar narrativas sob o aspec-
to do fait divers tem tanto preocupação
em atrair o leitor pelo que o fato tem de
surpreendente, mas também em marcar
o lugar do senso comum.
Suzane Richthofen planejou fria-
mente a morte dos seus pais e deixou a
polícia durante dez dias tentando encon-
38
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
trar o responsável pelo crime. A pergunta
que não quis calar o leitor foi: quem é o
culpado? A narrativa do caso de Suzane
amarrou o leitor pelo mistério: luzes ace-
sas, alarme desligado e porta destran-
cada na casa no dia do crime. Enquanto
os pais da menina dormiam e seus lhos
estavam fora, o dinheiro foi roubado de
um lugar que alguém com muita inti-
midade familiar o encontraria. Os corpos
foram espancados até a morte e o crime
não tinha evidências de vingança alheia.
Todos esses aspectos criaram condições
para o caso dos Richthofen ser uma exci-
tante história de mistério.
É como um típico romance policial
em que se espera a culpa do esquisito mor-
domo, mas no caso dos Richthofen não ha-
via marca do esquisito e a delidade dos
lhos era contada como óbvia. O excêntri-
co na história dos Richthofen é o desfecho
surpreendente da lha como culpada. É o
inesperado que assusta, que prende, que
causa sensação de desconforto e que se
transforma em marco histórico.
Não é isso, entretanto, que faz
render esse fato na mídia até hoje. Uma
outra pergunta que fez do caso dos Ri-
chthofen uma referência de barbárie em
nosso país foi: por que ela fez isso? Essa
pergunta é mais importante do que o ato
criminoso em si. E é isso também que leva
a mídia e o público de massa a continua-
rem a se interessar mais pelo caso, mes-
mo depois da descoberta do criminoso.
Muniz Sodré mostra que a premis-
sa básica da cção policial é a reverbera-
ção do crime e não o ato de violência em
si. É claro que é chocante pensar que um
casal foi morto com pancadas na cabeça,
no momento em que dormia. Mas, o san-
gue dessa informação, que escorreu dos
jornais, não tem forças para se manter so-
zinho em evidência por tanto tempo. Im-
portou mais o mistério e a falta de motivos
aparentes no caso de Suzane.
Essa premissa que fala Sodré é
diferente, por exemplo, das narrativas
espetaculares dos pulp ctions, em que
o absurdo também é valorizado, mas a
qualidade está no ato de violência. Vide
o que mostra Tarantino em seu lme Pulp
Fiction: tempos de violência, quando o
enredo é interessante, mas a agressivida-
de dos personagens e a frieza como eles
atuam chamam mais atenção do que a
própria narrativa. Não existe atração pela
desconstrução de um mistério, mesmo
que o personagem Marsellus, o chefe dos
matadores vivido pelo ator Ving Rhames,
apareça de costas nas primeiras cenas, o
que importa no lme é o quão violento ele
pode ser. Todos os dias os jornais popu-
lares trazem como pauta alguma tragédia
sanguinolenta, mas essas não têm carac-
terísticas narrativas que possam fazer de-
las um marco histórico. Assim, são como
pulp ctions, que sangram e passam.
Outra questão importante é que
pensar no motivo pelo qual Suzane Ri-
chthofen poderia ter matado seus próprios
pais é tentar enquadrar seu ato crimino-
so numa lógica moral, ou melhor, é que-
rer saber se o assassinato foi provocado
sob a lógica do “dente por dente e faca por
faca”. Nesse sentido, o público lança al-
gumas hipóteses como: será que Suzane
era abusada sexualmente pelo pai? Será
que ele a espancava?
Mas a resposta que o senso comum
tem para estas questões é a de que nada
justica que um lho mate seu próprio pai.
E então Suzane, por não se encaixar em
nenhuma hipótese que justique seu cri-
me, se transforma num monstro social que
deve ter sua punição.
Sobre identicar e punir o crimino-
so no romance policial, Muniz diz que:
A principal função ideológica desta
literatura é a demonstração da es-
tranheza do crime. Caracterizando o
39
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
criminoso como algo à parte, um ser
estranho à razão natural da ordem so-
cial, o romance policial faz parte dessa
pedagogia do poder que, através da
diferenciação dos ilegalismos, consti-
tui e dene a delinqüência. O crimino-
so da cção é alguém não reconheci-
do como o sujeito desejável na ordem
social, sendo por isso necessário
identicá-lo (resolvendo o engano) e
puni-lo. Com efeito, a narrativa policial
segue a ordem da descoberta, tendo
geralmente como ponto de partida um
fait-divers ou um fato extraordinário.
(SODRÉ, 2009, p.260).
Narrar a violência como a de Su-
zane von Richthofen na mídia é usar o
fait-divers como estratégia de sedução
pelo que existe de excêntrico, é criar uma
aventura romantizada, com o persona-
gem de assassino misterioso, que no mo-
mento em que o criminoso é decifrado, se
transforma num grande monstro social.
Leslie Wiskns, em seu texto Information
and the denition of desviance,
4
mostra
que o estereótipo do desvio dos atores
dos crimes criado pelos meios de comu-
nicação nada mais é do que uma forma
de simplicar a realidade. Não se trata
para ele de uma distorção calculada da
realidade ou muito menos um reexo el
dos acontecimentos, mas uma tradução
da realidade em estereótipos.
O assassinato da família Souto
Maia, embora não seja lembrado constan-
temente pela mídia, foi um fato espetacu-
larizado, e, é, sem dúvida, uma referência
importante para pensar a memória dos
crimes de família no Brasil. No dia 01 de
março de 1970, no nobre bairro da Gra-
ça em Salvador, o jovem Marcelino Sou-
to Maia, lho de família conceituada na
Bahia, colocou em execução seu plano de
matar o pai, Fernando Souto Maia.
Marcelino brigava com seu pai por
dinheiro e vivia insatisfeito com suas pro-
messas. O rapaz, então, entra armado no
quarto dos pais, atira no pai e na mãe que
tentam impedir seu ato. O pai baleado car-
rega a mãe nos braços e a deita na cama
na tentativa de salvá-la, mas os dois não
resistem. A avó, no quarto ao lado, em es-
tado de desespero, também recebe tiros
do neto que a executa para não ter teste-
munha. Marcelino entra no quarto do seu
irmão Jorge, deciente mental, e atira em
sua cabeça e deixa a arma em sua mão
na intenção de forjar que ele, como alie-
nado, havia cometido toda a barbárie e
depois se suicidado. Depois de três dias,
Marcelino confessa o crime e, em depoi-
mento, diz nunca ter tido desejo de matar
mais pessoas da sua família além de seu
próprio pai. Uma matéria do jornal A Tar-
de do dia 04 de março de 1970 traz uma
narrativa sobre o crime de Marcelino e o
compara com uma tragédia típica da lite-
ratura: E a expressão “palco” tem aí jus-
ta aplicação, porque o episódio é dos tais
que parecem concebidos pela imaginação
poderosa dos grandes trágicos, de Esqui-
lo a Shakespeare, se é que os não excede
em horror. O que, mais uma vez, ra-
zão àquele senhor que se chamou Oscar
O’Flahertie Wilde, quando armou que a
arte é quem imita a vida...
O texto jornalístico evidencia pri-
meiro o grande absurdo do crime para
depois contá-lo: A Bahia está vivendo ho-
ras de intensa comoção pública, abalada,
inicialmente, pela tragédia da eliminação
de quase toda uma família, das mais con-
ceituadas de Salvador, e agora, pelo con-
tundente e surpreendente desenrolar dos
fatos, que abra as mais estranhas e horripi-
lantes perspectivas para o crime cometido
à meia noite no bairro da Graça. A introdu-
ção narrativa se parece com as chamadas
de propaganda de lmes de horror. E é por
meio desse texto que o jornalista prende
o seu leitor, que curioso com tal tragédia,
exaltado por sua narrativa, não perderá o
nal da história e saberá que o assassina-
to brutal foi uma chacina familiar, cometida
40
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
pelo lho que gozava de sanidade mental,
ao contrário do irmão doente, que se acre-
ditava ser o autor do crime. E que ainda o
autor do crime visava cometer um parricí-
dio, o que seria gravíssimo, e não uma
chacina em família.
O caso de Marcelino de Freitas
marca o lugar do excêntrico pela sur-
preendente narrativa do caso, na qual
se descobre que o irmão doente mental
não é o verdadeiro assassino dos pais.
O enredo do crime é típico de um roman-
ce policial de grande sucesso por trazer
uma excepcionalidade: o lho é quem
mata o pai, seu grande alvo, e acaba
executando também a mãe, a avó e o ir-
mão, em quem desejou colocar a culpa
por covardia, como se fosse uma criança
que quebrou um objeto valioso dentro de
casa e para não levar a culpa acusa o
irmão mais novo.
A causa do crime seria mais co-
mum se justicada pelo ato cometido por
um doente mental. Ora, se a família tinha
um doente mental em casa, era provável
que um dia ele os matasse, pois, para o
senso comum, não se tem controle sobre
doentes mentais e a qualquer hora eles
podem nos surpreender. Mas como há,
neste caso, uma revelação inesperada
sobre o criminoso cujas características
eram de um sujeito normal, o aconteci-
mento passa a ser narrado sob o efeito
do espanto por uma causalidade aberran-
te e não esperada. Cria-se, a partir daí,
um drama não mais comum com relação
ao autor do crime, o estereótipo do louco
passa a ser explorado em outro sentido.
É o oculto que perturba e espanta criando
maior espetáculo.
Não fait divers sem espanto (escre-
ver é espantar-se); ora relacionado a
uma causa o espanto implica sempre
uma perturbação, já que em nossa
civilização todo alhures de causa pa-
rece situar-se mais ou menos decla-
radamente à margem da natureza ou
pelo menos do natural. (BARTHES,
1999, p.61)
O fait divers se articula por pertur-
bações causais que não são imediata-
mente reveladas. O crime de Marcelino foi
surpreendente, mas não se mostrou mis-
terioso, pois não dependia da descoberta
do autor do crime, não podemos compará-
-lo ao caso de Suzane, no qual o mistério
se fez presente por muitos dias e levou
maior curiosidade para o público. Ela criou
uma trama policial digna de profunda in-
vestigação quando planejou a morte dos
pais e, se não fosse a conssão do irmão
do seu namorado, Cristian Cravinho, tal-
vez os assassinatos fossem um mistério
até os dias de hoje.
Precisamos analisar aqui, ainda,
um momento fundamental da cobertura da
mídia sobre o caso dos Richthofen, a en-
trevista com Suzane apresentada no pro-
grama Fantástico, da Rede Globo, quatro
anos e meio depois do crime, no dia 09 de
abril de 2006. O vídeo diz:
O que será que tem a dizer, hoje, a
menina bem-nascida que é acusada
de ter participado da morte dos pais,
em outubro de 2002, em São Pau-
lo? O Fantástico procurou Suzane
von Richthofen. E ela, que deve ir
a julgamento dentro de dois meses,
resolveu quebrar o longo silêncio.
Por que ela resolveu falar agora?
Como ela se comportou? Como foi
esse encontro? O que ela tentou di-
zer? O que ela tentou esconder? E o
que os advogados esperavam dessa
entrevista?Furar o bloqueio formado
em torno de Suzane von Richtho-
fen não foi fácil. Desde que saiu da
cadeia, em junho do ano passado, a
jovem tem contado com a proteção
de Denivaldo Barni, amigo da famí-
lia Richthofen. Hoje ele é uma es-
pécie de tutor e um dos advogados
41
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de Suzane ao lado dos irmãos Mário
de Oliveira e Mário Sérgio de Oli-
veira. nove meses, o Fantástico
tem conversado com Barni sobre a
possibilidade de entrevistá-la. Neste
período, houve uma conversa telefô-
nica e dois encontros com Suzane,
sem câmeras. Até que, no início da
semana, o advogado confirmou a re-
alização da entrevista, pedindo que
nesta reportagem não fossem exibi-
das cenas de arquivo.
A gravação seria feita em duas eta-
pas: a primeira na quarta-feira, cin-
co de abril. O local: o apartamento
de Barni, no bairro do Morumbi, São
Paulo.Na tarde de cinco de abril, o
Fantástico encontrou uma jovem de
22 anos que fala e se veste como
uma criança. Na camiseta, estampa
da Minnie. Nos pés, pantufas de co-
elho. A franja cobre os olhos o tempo
inteiro. Ela começa a entrevista mos-
trando fotos de amigos e da família.
A entrevista do Fantástico começa
com perguntas que a repórter faz sobre
fotograas da família exibida por Suzane.
A menina fala baixo com voz tímida. Su-
zane diz que não pode visitar a avó, pois
o tio as afastou. A repórter pergunta sobre
o irmão, se também havia sido afastado
e Suzane conrma que sim com a cabe-
ça. Após outras perguntas sobre o irmão:
“Suzane abraça Barni e chora. A entre-
vista é interrompida. De costas para a câ-
mera, ela parece enxugar o rosto com um
lenço de papel. A entrevista recomeça. E
a jovem que confessou o envolvimento
no assassinato dos pais revela ter medo
de sair de casa.”
O Fantástico pergunta se Suzane
está arrependida e do que ela tem sau-
dades. A moça responde que voltaria aos
15 anos para não conhecer o ex-namora-
do, como se colocasse a culpa na família
Cravinhos. E então:
Ela interrompe a entrevista mais uma
vez e pede a Barni para encerrar a
gravação. Suzane, abraçada com
Barni: Não quero mais, não quero
mais. Suzane só aceita retomar a en-
trevista ao lado dos pássaros de es-
timação: Sinhá Moça e Miú. Suzane
fala para Sinhá Moça: o pezinho.
o pezinho. Isso, assim mesmo...
(Ela brinca com os pássaros). Hoje eu
vejo como eu era feliz e não sabia.
Como eu queria a minha família de
volta. Que falta que eu sinto de um
colinho, dos abraços. Agora, Suzane
cartas endereçadas a Barni, que
ela teria escrito durante os dois anos
e meio em que cou presa.
Suzane diz para a repórter que ela
não poderia imaginar como era triste lem-
brar da felicidade que tinha com os pais
e saber que nunca mais isso iria acon-
tecer. Que nunca mais poderá vê-los, ou
abraçá-los, e dizer “te amo”. Depois des-
ta declaração, Suzane faz um longo si-
lêncio, chora e abraça seu tutor. Até que
Suzane começa a falar sobre a relação
com o ex-namorado, Daniel Cravinhos.
Suzane diz: Eu me arrependo muito. Diz
ainda que o rapaz dava drogas para ela:
“Ele sempre... Ele sempre me dava muita
droga, muita droga. Ele sempre mandava
usar muita droga, e cada vez era mais e
mais e mais droga, e ele me dava mais
droga... E isso foi acabando comigo, foi...
Ele falava: “Se você me ama, usa, se
você me ama, usa... Se você me ama, faz
isso”. E eu ia, ia, ia.” Depois, esconde o
rosto no braço de Barni.
Até que o Fantástico pergunta: “Por
que aconteceu esse crime?” E Suzane
responde: “Não sei... Não sei...”
E o programa revela:
Durante os 34 minutos do primeiro
encontro, Suzane olhou para Barni
treze vezes, possivelmente em bus-
42
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ca de apoio ou orientação. E chorou
onze vezes, mas em nenhuma delas
havia sinal de lágrima no rosto. No
dia seguinte, dois diálogos agra-
dos pelo Fantástico mostraram que
estávamos diante de uma farsa. O
segundo encontro aconteceu em Iti-
rapina, cidade cerca de 200 quilôme-
tros de São Paulo. Suzane cou na
cidade, na casa de amigos, depois
que saiu da cadeia, em junho de
2005. Logo no começo da gravação,
a câmera registra uma conversa ao
de ouvido entre Barni e Suzane.
O microfone, que já estava ligado,
capta o diálogo. Ele orienta Suzane
a chorar na entrevista. “Fala que eu
não vejo. Chora...”. Minutos depois,
uma nova evidência da farsa. Nossa
equipe aguarda Suzane do lado de
fora da casa. O microfone, que con-
tinua ligado, capta, agora, uma voz
que orienta a jovem sobre o que falar
do ex-namorado, Daniel Cravinhos, e
como se comportar diante da câme-
ra... “Acabou. Mais nada. Começa a
chorar e fala: ‘Não quero falar mais’...
o que ele mandava... ele mandava,
sempre pedindo que se eu o amas-
se, era para fazer... e ‘pelo amor de
deus, não quero mais tocar nesse as-
sunto, que me faz muito mal’. E che-
ga”. O Fantástico consultou um peri-
to criminal para identicar quem está
falando. A voz seria do advogado
Mário Sérgio de Oliveira, que estava
na casa durante o segundo encontro.
Logo depois, Suzane pede para en-
cerrar, de vez, a entrevista. Suzane
diz: Toda vez que eu falo isso, nossa,
dói muito em mim. Dói muito lembrar
da minha mãe, lembrar do meu pai,
e ter que estar falando, ter que estar
lembrando, ter que estar lembrando
daquele maldito de novo...
Esta entrevista planejada pelos
advogados de Suzane tenta produzir um
discurso narrativo, cujo cenário foi deco-
rado especialmente para passar a ideia
de ingenuidade da criminosa ou possí-
vel retardamento mental. É certo que os
advogados de Suzane sabiam a fórmula
especial atrativa de um bom fait divers.
Neste caso, como era extraordinário exi-
bir uma entrevista de Suzane Von Ri-
chthofen, esperando que ela contasse o
motivo da sua atrocidade, ou que reve-
lasse algo desconhecido sobre o caso,
montou-se um circo para que sua imagem
monstruosa mudasse para a sociedade.
Mas as armações foram descobertas por
quem é expert no assunto de criar cená-
rios que mobilizem seu público, a mídia,
com sua experiência, desmascarou a ar-
mação do grupo que protegia Suzane e
as coisas obviamente, voltaram ao lugar
da monstruosidade, ou, evidenciaram
mais ainda este lugar.
2.0. Por que, Suzane? Psicanálise, vio-
lência e os imaginários da ordem social
Seria possível justicar os crimes
de parricídio vistos aqui como ato de irra-
cionalidade, como se os jovens tivessem
matado seus pais em um momento de
raiva ou de qualquer tipo de descontrole
emocional. O irracional está realmente li-
gado ao emocional e, nesse sentido, não
razão que o enquadre. Então, quando
não se encontram motivos racionais para
justicar um crime, tenta-se enquadrar o
emocional como resposta possível. Mas é
impossível enquadrar o emocional, a não
ser pelo senso comum.
É importante entender que o ato de
violência não está necessariamente ligado
ao emocional, especialmente quando ele
é planejado, como no caso de Suzane Von
Richthofen, por exemplo. Jurandir Freire
(2003, p.37) diz que o ato de calcular a
violência não dispensa a razão: ao contrá-
rio, solicita-a. Para Jurandir toda conduta
é racional, fora aquelas apresentadas por
casos patológicos, como por exemplo:
43
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Publicado em 27/04/2010, 18h55
Vírgula.com.br - News
Evangélica esquarteja os pais por dívida de
dízimo
Frequentadora de uma igreja evangélica,
Lineusa Rodrigues da Silva, de 24 anos, matou
os pais como uma machadinha porque eles não
deram o dinheiro do dízimo. O crime, cometido
no último domingo, chocou a cidade de Timon,
no Maranhão.
O inferno é mesmo pavimentado com boas
intenções. De tanto que queria pagar o dízimo
à sua igreja, Lineusa matou os pais adotivos a
golpes de machadada. Joana Borges da Silva,
104 anos, que mal se levantava da cama, e
Lourival Rodrigues da Silva, 84, tiveram as
mãos esquartejadas com um serrote e foram
seguidamente golpeados com um pedaço de pau.
A jovem foi encontrada pela polícia depois de
receber ligações dos vizinhos que ouviram barulhos
estranhos durante a noite. Ela confessou o crime e
relatou os detalhes dos assassinatos. A delegada
da Central de Flagrantes de Timon, Wládia
Holanda da Silva, disse que os corpos caram
totalmente irreconhecíveis. “Em toda a minha
experiência como delegada nunca tinha visto nada
parecido”, disse ela ao MeioNorte.com. Lineusa
acumulou dívidas de dízimo junto ao pastor da
igreja que frequentava, e justicou os assassinatos
pela religião. “Eu z por Deus”, disse a estudante,
que chegou a se ajoelhar na delegacia.
Adotada com cinco meses pelo casal, Lineusa
vinha discutindo com os pais adotivos algum
tempo, segundo informou a lha do casal
assassinado, Francisca Oliveira da Cruz. Ela
também contou que Lineusa tem histórico de
problemas mentais.
Não para saber quem fez pior, a assassina,
que foi levada a cometer um crime em nome do
fanatismo religioso, ou do pastor que, sabendo da
condição da jovem, fazia qualquer tipo de cobrança.
O depoimento de Lineusa no vídeo
postado no Youtube para esta matéria re-
vela sua falta de razão e descontrole por
doença. Ela não demonstra ter razão algu-
ma por ter assassinado sua mãe e irmão.
A tragédia ocorreu por descontrole patoló-
gico e não por racionalidade planejada.
5
A violência irracional é aquela que
responsabiliza alguém por uma questão
que não diz respeito a este alguém, como
por exemplo, Marcelino Souto Maia que
matou sua mãe, avó e irmão, descontando
uma raiva que era do seu pai. No livro Vio-
lência e Psicanálise, um dos exemplos da-
dos por Jurandir Freire Costa sobre essa
violência irracional é o caso de alguém es-
pancar um assaltante culpando-o de ser
responsável pela desigualdade do mundo.
A violência irracional acontece quando se
desconta a raiva em alguém que não é o
causador direto desta raiva. A diferença
entre a violência racional e a irracional é
que a racional é mais direta e objetiva, ao
contrario da irracional que substitui o alvo
que se quer agredir. Mas, mesmo assim,
a violência irracional deriva de alguma ra-
cionalidade e não de um impulso agressi-
vo instintivo natural do ser humano.
A violência, sendo instrumental por na-
tureza, é racional à medida que é ecaz
em alcançar o m que deve justicá-la.
E posto que, quando agimos, nunca
sabemos com certeza quais serão as
conseqüências nais do que estamos
fazendo, a violência só pode permane-
cer racional se almeja objetivos a curto
prazo. (ARENDT, 2009, p.99)
A diferença da violência humana
para a violência animal está no desejo.
A ação da violência pode ser irracional,
mas o desejo é racional e marca o lugar
do humano, pois o animal não deseja ma-
tar e muito menos fazer alguém sofrer, ao
contrário do homem, ele necessita ma-
tar. Sendo assim, entendo que a ação da
violência não é puramente uma manifes-
tação gerada por instinto. A violência ir-
racional não pode ser considerada uma
agressividade cometida totalmente sem
razão, porque o desejo é racional e toda
violência embute desejo. Então, a justi-
cativa para a não razão de determinada
violência não pode ser apenas o impul-
so, ou a agressividade do homem como
animal, pois o ser humano não necessita
matar, ele apenas deseja.
44
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O que Jurandir Freire Costa tenta
mostrar e o que é importante perceber
nos casos de crimes de família, é que não
existe violência sem desejo de destruição,
comandando a ação agressiva e, em con-
seqüência, que violência não é uma pro-
priedade do instinto. (Idem. p.43). Ou seja,
quando o senso comum justica a agres-
são de matar um pai pelo impulso instinti-
vo humano não podemos considerar esta
uma fórmula válida.
Se pensarmos nas teorias freu-
dianas de Totem e Tabu, encontraremos
a ideia de origem da violência como ato
do desejo de matar o pai, embora o prin-
cipal objetivo de Freud nessa obra fosse
pensar as interdições sexuais. Quando
Freud estuda os povos primitivos e a rela-
ção destes em família, ele nos mostra que
a morte do pai, semelhante a do animal
totêmico, é regrada pela raiva dos lhos
que vêem o pai como possuidor do prazer,
uma vez que este é quem monopoliza as
mulheres e todo poder da experiência. A
ideia é que a partir do momento em que os
lhos devoram seus pais, eles sentem-se
culpados e resolvem criar algumas regras
como jamais matar o animal totêmico, que
colocam o lugar do pai em estágio privi-
legiado. Freud demonstra que se fundam
neste momento os ideais de moralidade,
religiosidade e as leis.
Jurandir Freire vai demonstrar cri-
ticamente que o estabelecimento dessa
ordem social proposta por Freud não tem
fundamento. Não é da culpa do parricí-
dio que se origina a lei. Para que o lho
sentisse culpa, deveria reconhecer ante-
riormente algum aspecto da ordem. Ao
que parece, os primitivos analisados por
Freud já eram organizados por algum tipo
de moral que o faziam sentir essa culpa. A
culpa não é um sentimento de causa natu-
ral, é procedente de alguma regra que se
acredita ter desrespeitado, ao contrário do
medo que pode ser um sentimento reativo
independente da existência da regra.
René Girard em A Violência e o
Sagrado fala de um mecanismo recon-
ciliador como uma causa provável para
se criar regras de não violência entre
os povos primitivos, visto que ao pensar
na questão da culpa a teoria freudiana
sobre a origem de uma ordem social se
esvazia. Para Girard as regras de tote-
mismo são criadas pelo medo de que os
homens caiam em uma prática de vio-
lência interminável, se matando continu-
amente. também uma teoria que se
baseia na questão do desejo do socioló-
gico pensada por Pierre Clastres, citada
por Jurandir Freire Costa, que diz res-
peito ao desejo do homem em se manter
unido por conta do medo da extinção de
sua espécie.
O parricídio não é cometido pela
causa de um instinto raivoso irracional do
lho por invejar seu pai, mas pela pura ra-
zão de querer eliminá-lo de seu caminho.
E sua culpa pós crime existe pelo fato de
reconhecer o pai como gura importante,
como representação de liderança de sua
geograa familiar.
Monstro odioso durante sua vida, o
Pai terrível torna-se herói perseguido
na e apos sua morte. Quem não reco-
nheceria aqui o mecanismo do sagra-
do, do qual, no m das contas Freud é
a vítima, por não conseguir revelá-lo
inteiramente? (GIRARD, 1990, p. 252)
Como mostram todos esses pen-
sadores, o poder que se deseja retirar do
pai por violência não é um poder de um
animal que chea seu grupo, mas o poder
de tirania, daquele a quem foi concedido o
direito de deter as rédeas da ordem. Mas,
Jurandir Freire Costa nos mostra que não
é o pai que cria a lei, mas a lei que o cria,
dando-lhe lugar de superioridade. Neste
caso, o que o autor quer dizer é que não
é a culpa, como mostra Freud, que forma
a lei, não é o pai que a constrói para que
ele também não seja morto, mas como
45
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
hipótese, pode ser o medo que cria a lei
e consequentemente cria o lugar do pai.
Por hora, o que nos deve ser im-
portante pensar é que este tipo de ree-
xão psicanalista, que pensa as bases de
fundamentos morais da própria constitui-
ção social, não faz parte das explicações
usuais do senso comum. É importante
entender essas questões e pensar o lu-
gar da psicanálise, mas não são estas as
explicações que chegam para a socieda-
de quando ocorre um crime. É o senso
comum que tem o privilégio da informa-
ção e não as teorias psicanalíticas. Por
isso, é mais provável reconhecer que o
que torna os crimes de família, especial-
mente os de parricídio, mais escandalo-
sos do que outros casos de violência é a
falta de motivo.
O senso comum tenta enquadrar
o emocional, o racional ou qualquer ou-
tro motivo que justique um crime brutal.
A sociedade precisa de sentido para pro-
blemas sem respostas práticas. E não é à
toa que o caso da Suzane Von Richthofen
ocupa o espaço das maiores coberturas
da Rede Globo nos últimos 45 anos. É evi-
dente que a falta de motivos, além de toda
questão do fait divers exposta aqui, tem
um peso fundamental para que este caso
seja relembrado. A psicanálise pontua res-
postas para a violência, mas é o sentido
comum que prevalece no imaginário so-
cial e é reforçado pela mídia.
A falta de sentido causa espanto.
O homem não vive fora do sentido e da
signicação. A condição de enquadra-
mento de um signicado para a realidade
é que a sociedade o equilíbrio aparen-
te. O mundo sem eixo e fora do sentido
é um mundo esquizofrênico, onde não
seria suportável viver. Precisamos de ei-
xos, de centros e de motivos concretos
para tentar manter nosso equilíbrio so-
cial. É também sobre isso que prega a
psicanálise, inclusive.
Portanto, na busca de alguns mo-
tivos podemos chegar à total falta deles,
no ponto de vista do senso comum e, con-
sequentemente, da lógica midiática de in-
formar os fatos. Diante da desrazão não
razão possível. diversas teorias e
investigações a serem feitas sobre os
crimes de parricídio, mas, diante de uma
sociedade que se baseia na existência de
um senso comum para sobreviver, a des-
razão é uma angústia que o ser humano
não consegue sustentar. Sendo assim,
nomeia-se a desrazão por uma razão
mais familiar, mais comum possível. E é
por conta dessas nomeações que se está
aqui, investigando a forma como a mídia
gerencia essa falta apavorante de motivos
e como ela faz a mediação entre os crimes
de família e seu público.
Bibliograa:
BARTHES, Roland. O Prazer do texto. São Paulo:
Perspectiva, 1993.
________. Crítica e verdade. São Paulo: Perspec-
tiva, 1999.
COHEN, Yung. The selection of crime news by
the press In: Stanley and Jock. The Manufacture
of news? Social problems, deviance and the mass
media. Sage Publications. Bervely Hills/Califórnia.
1981
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma
familiar. Rio de Janeiro. Graal, 1979.
________. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro.
Graal, 2003.
FONSECA, Rubem. Belinha. In:______. Ela e ou-
tras mulheres. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, Mar-
tins Fontes, 2002.
________. Ditos e escritos. Vol I. Problematização
dos sujeitos: psicologia e psiquiatria. Rio de Janei-
ro: Forense Universitária, 2004.
46
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
________.Eu, Pierre Rivière, que degolei minha
mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Gra-
al, 1977.
________. História da loucura. São Paulo: Pers-
pectiva, 2005.
________. A ordem do discurso. São Paulo: Loyo-
la, 1996.
________.A verdade e as formas jurídicas. Rio de
Janeiro: Nau Editora, 1999.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Rio de Janeiro:
Imago, 2005.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Pau-
lo: Ed. Universidade Estadual Paulista. 1990.
HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes primitivos. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1978.
SABINO, Mario. O dia em que matei meu pai. Rio
de Janeiro: Best Bolso. 2009.
SODRÉ, Muniz. As estratégias Sensíveis. Rio de
Janeiro. Vozes. 2006.
________. A narração do fato. Rio de Janeiro.Vo-
zes. 2009.
________. Sociedade, mídia e violência. Porto
Alegre: Sulina, 2002.
Contato:
- dabrasiliense@gmail.com
1
Professora Adjunta do Departamento de Comunicação
Social e da Pós-graduação em Cultura e territorialidades
da Universidade Federal Fluminense.
2
O fait divers é um conceito usado pelo francês Roland
Barthes para justicar o uso das causalidades excêntri-
cas nas notícias jornalísticas.
3
COHEN, YUNG. The selection of crime news by the
press In: Stanley and Jock. The Manufacture of news?
Social problems, deviance and the mass media. Sage
Publications. Bervely Hills/Califórnia. 1981
4
Idem. Texto: Information and the denition of desviance.
5
http://www.youtube.com/watch?v=XO-
-wKMuinXI&feature=player_embedded,
Acessado em 30/04/2010
47
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Desprezando a riqueza aproveitando as respostas:
Diálogos entre cidade, território e cultura
Despreciar la riqueza aprovechando las respuestas:
Diálogos entre ciudad, territorio y cultura
Disdaining the wealth taking advantage of the answers:
Dialogues between city, territory and culture
José Maurício Saldanha Alvarez
1
Resumo:
Este artigo analisa a cidade contemporânea e as transformações
territoriais e espaciais que sofreu desde os anos 1960 até a atualidade,
quando, desde o cultural turn e os debates subsequentes sobre a
crise da cidade, passaram a vivenciar as experiências ligadas ao city
marketing e a reordenação dos seus espaços, desde a modelagem
de projetos bem sucedidos nos Estados Unidos e na Europa com o
fenômeno Barcelona. A reavaliação conceitual e operativa da cidade
desde a globalização, quando ela se torna um fenômeno mundial, e
os debates travados entre os projetos do poder e empresariais e as
utopias dos segmentos menos favorecidos. O papel cultural da cidade
e suas estratégias de representação, bem como o território como
suporte para a identidade.
Palavras chave:
Cultural Turn
Globalização
Barcelona
Cultura
Território
48
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo analiza la ciudad contemporánea y las transformaciones
territoriales y espaciales que ha sufrido desde la década de 1960 hasta
hoy, cuando, desde el cultural turn y los debates posteriores sobre la
crisis de la ciudad, empezaron a vivenciar las experiencias relacionadas
al city marketing y la reordenación de los espacios, desde el modelado
de proyectos exitosos en los Estados Unidos y Europa con el fenómeno
Barcelona. La revaluación conceptual y operativa de la ciudad desde
la globalización, cuando se convierte en un fenómeno mundial, y los
debates entre los proyectos del poder y empresariales y las utopías
de los segmentos menos favorecidos. El papel cultural de la ciudad y
sus estrategias de representación, así como también el territorio como
soporte para la identidad.
Abstract:
This article examines the contemporary city and the territorial and
spatial transformations it has undergone since the 1960s until today,
when, since the cultural turn and the subsequent debates on the crisis
of the city, started living experiences related to city marketing and the
reordering of its spaces, since the modeling of successful projects in
the United States and Europe with the Barcelona phenomenon. The
conceptual and operative reassessment of the city since the globalization,
when it becomes a worldwide phenomenon, and the debates between
the public power and business projects and the utopias of the less
privileged segments. The cultural role of the city and its strategies of
representation, as well as the territory as a support for identity.
Palabras clave:
Cultural Turn
Globalizaçión
Barcelona
Cultura
Territorio
Keywords:
Cultural Turn
Globalization
Barcelona
Culture
Territory
49
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Desprezando a riqueza aproveitando
as respostas: Diálogos entre cidade,
território e cultura
“De uma cidade, não aproveitamos as
suas sete ou setenta e sete maravi-
lhas, mas a resposta que as nossas
perguntas.”
Ítalo Calvino
2
1. Cidade e cultura à uma escala planetária
Este artigo é uma maneira de pen-
sar em voz alta e indagar colocando numa
dada ordem as leituras e questões destina-
das a organizar um curso novo. Assim sen-
do, tal texto não é nem pode ser conclusivo,
pelo contrário, é dispersivo e até certo pon-
to, frívolo. Apesar de tudo trata-se de um
esforço destinado a lidar com paradoxos e
perplexidades de um professor diante das
transformações aceleradas da contempora-
neidade. De ter um cuidado enorme com as
palavras que se desvalorizam diante da in-
ação teórica. Resumindo: é antes de tudo,
um artigo sobre cidade, sobre cultura, pro-
dução cultural, eventos e territorio. Assim
sendo comecemos com o estado da cidade.
Desde o nal do século XX e primeira
década do século XXI elas vivenciaram uma
profunda transformação histórica, estrutu-
ral, cultural, econômica, social e territorial.
Esse conjunto de alterações foi impulsiona-
do pelas mudanças estruturais da econo-
mia mundial e pela revolução das tecnolo-
gias informacionais e digitais organizadas à
volta de centros nodais: as cidades (CAS-
TELLS, 2005, p. 469). As funções urbanas
consagradas na longa duração passaram a
abranger desta vez uma escala planetária e
cada vez mais problemática. Como assinala
Bauman, as cidades se transformaram em
“depósitos de problemas causados pela glo-
balização” (BAUMAN, 2009, p.32).
Quando este processo deu seus pri-
meiros passos nas décadas subsequentes
aos anos 1960, as cidades viviam um viés
de estrangulamento, causado, em parte,
pelo enorme passivo herdado da moder-
nidade. Ele era representado por fábricas
obsoletas, poluição, portos inoperantes,
desemprego e perda das experiências so-
ciais, desastres ambientais, debilitação do
Estado nacional. Mesmo assim, a urbaniza-
ção se encaminhava para tornar-se hege-
mônica como modo de vida, atingindo uma
extensão inédita na história do homem. Tor-
naram-se exponenciais megalópoles como
o Cairo, Nova Iorque, Tóquio, as cidades
do México e Shenzen, Republica Popular
da China, cujas populações orçando os 20,
30 ou 40 milhões de habitantes, levam a
experiência urbana a um limite sem prece-
dentes (CASTELLS, 2005, p 483).
Além do mais, a cidade foi tensiona-
da entre as pressões mediadas entre o lo-
cal e o global, que assinala as prerrogativas
de uma nova territorialidade; capitaneando
regiões de industrialização recente, onde
os núcleos urbanos se conurbando resul-
tavam em megacidades. Se as revoluções
informacional e digital determinam novas
funções para a cidade, ela, como meca-
nismo coletivo, como sujeito composto por
forças antagônicas, se tornou um elemen-
to determinante nessa nova conguração
territorial. Ela não mais se baseia na antiga
antinomia assimétrica entre campo versus
cidade. O processo se encarregou de ge-
rar novas. A cidade é vórtice, farol, Meca,
polo de atração, ponto de amarração, -
bua de salvação para os náufragos da mo-
dernidade agrícola e do agronegócio.
Assim sendo, o relatório State of
World Population 2007 - unleashing the po-
tential of urban growth, divulgado pelo Fun-
do da População da ONU (UNFPA), sugere
que a urbanização é um dos mais impor-
tantes processos contemporâneos. Ele se
destina a solucionar o grande óbice causa-
do pela pauperização que empurra os po-
50
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
bres rurais para as cidades. Na atualidade,
ressaltando a bipartição local X global do
problema, as cifras e dados sugerem em
seus cristais o predomínio inconteste e so-
berano do urbano no século XXI.
Embora reconheça que 1 bilhão de
pessoas vive em favelas, 90% das
quais nos países ditos em desenvolvi-
mento, acha o UNFPA que a tendência
de urbanização “é irreversível e não
deve ser combatida”. Na Ásia, o atual
1,36 bilhão de pessoas chegará a 2,64
bilhões em 2030; na África, elas passa-
rão a 742 milhões; na América Latina e
no Caribe, aumentarão de 394 milhões
para 609 milhões - e nesse movimento
a cada semana cresce em 1 milhão de
pessoas a população favelada na Ásia
e África No Brasil, 84% da população
estariam nas cidades e chegará a
90% em 2030. (O Globo, 28/06/82012)
Nos anos 1960, as cidades viam o
processo moderno encerrar a longa era da
produção industrial dos séculos XIX e XX.
Assistiam ao esgotamento das fórmulas
fordista e taylorista. O emperramento do
paradigma da gestão municipal herdadas
do XIX bem como as políticas urbanas mo-
dernistas, todas superadas pelos reptos
colocados em campo pela globalização e
pelo avanço da democracia inclusiva. Assi-
nala-se então a irrupção nos Estados Uni-
dos da América de um conjunto de debates
e fóruns, alguns formais e outros não. Era
o cultural turn, cujos debates contavam
com a presença de intelectuais tecnocra-
tas provenientes de prestigiosas escolas
como Harvard (ARANTES; VAINER; MA-
RICATO, 2000, p.16). Estes cavalheiros
consideravam que administrar uma cida-
de deveria pautar-se pelo molde geren-
cial de uma empresa. Nesses debates foi
alavancado o brado: tudo é cultura! Cada
vez mais as artes e a cultura se tornaram
vetores essenciais e mesmo inquestioná-
veis para os projetos de renovação urbana
como observa Joan Ganau (2007, p.3).
No entanto, segundo a análise de
Otília Arantes, o cultural turn e os principais
atores oriundos do Cultural Studies, se de-
ram conta da potência que poderia susten-
tar uma economia alicerçada na cultura,
resultando em múltiplos circuitos. Se para
a New Left, a lógica do alto capitalismo
passava pela cultura, para um pensador
como Daniel Bell estava solto nas ruas um
inimigo sob a forma de um adversário cul-
tural (BELL, 1978, p. 43). Essa modelagem
empurrou a questão do território para uma
arena aonde as diretrizes que sustenta-
vam seu debate em muitos casos, embora
não exclusivamente, eram constituídos por
matrizes norte-americanas, aliás, consa-
gradas nacional e internacionalmente por
muitos projetos bem sucedidos como em
Baltimore e Philadelphia (GANAU, 2007,
p.4). Nas décadas seguintes a contribui-
ção europeia entrará em cena de maneira
espetacular graças ao êxito da cidade de
Barcelona em se revitalizar.
Como veremos no tópico nal, a
cultura adquiriu uma capacidade sem pre-
cedentes de desempenho que estimulou o
poder, o terceiro setor e as próprias popu-
lações a combaterem ativamente por sua
implantação. A justicar investimentos ma-
ciços em sua área. A cultura e as artes não
estimulavam um intenso debate identi-
tário, mas permitiam uma enorme fruição
de massa. Permitiam ainda revestir-se de
enorme valor pecuniário e de fetiche as
áreas degradadas das cidades. Um minis-
tro da cultura francês unirá o desejo com
a vontade de comer declarando enfati-
camente: o “nosso petróleo é a cultura”.
O Rio de Janeiro, lutando para que não
se rompa o pacto federativo e o petróleo
contratado não seja apropriado por políti-
cos de outros estados, sediará dois mega
eventos nos próximos anos. Estes eventos
são sinalizados como essenciais para a
recuperação da cidade e consolidação de
sua autoestima. Acreditamos, porém, que
estes mega eventos devem ser apenas o
início da reexão e da produção de elenco
51
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de celebrações baseadas na história e na
cultura da população do Rio, num processo
constante de produção e consumo cultural.
2. A globalização, cidade, planos
estratégicas
Em 1973 o mundo ingressava numa
era de grande convulsão no curso do en-
cerramento dos 30 anos gloriosos de uma
conjuntura de crescimento mundial inin-
terrupto denominada de The Golden ye-
ars (HOBSBAWM, 1999, p. 255). Desde
o término da Segunda Guerra Mundial, o
capitalismo sofreu transformações, a perda
do padrão ouro após o colapso de Bretton
Woods, o choque do petróleo de 1973, e a
década perdida de 1980 (ARRIGHI, 2000,
p.309-311). No mundo inteiro, as cidades
foram ameaçadas pelo futuro que se apre-
sentava inquietante. Viam-se assoladas
pelo desemprego, pela retração das ações
econômicas e pela perda das ações so-
ciais, e pela desarticulação dos aparatos
governativos. Como agravante, a obsoles-
cência dos grandes complexos industriais
falidos e fechados reetiu-se nelas, criando
espaços vazios e silenciosos degradando
ainda mais o ambiente. Esse processo as-
sumiu proporções dramáticas na Europa
e nos Estados Unidos, pois transformou a
próspera Detroit, a célebre e autoconante
“motor city”, numa lúgubre cidade fantasma
insolvente, com dezenas de fábricas fecha-
das, abandonada por milhares de mora-
dores (BOYLE, 2001). Cidades portuárias
como Baltimore viam seu porto transferir-se
para longe do centro onde se localizavam,
dando inicio à recuperação do seu Water-
front num projeto muito bem sucedido e que
parece estar na raiz do projeto bonaerense
de Puerto Madero (MILLSPAUGH, 2001,
p. 74-75). Na Inglaterra, a desindustrializa-
ção neoliberal da Era Thatcher produziu,
igualmente, uma nova pobreza, abalando
o que Hall denominou de “a velha classe de
trabalhadores e suas formações culturais”
(HALL, 2006, p. XVII).
Saskia Sassen, a prestigiosa ana-
lista do fenômeno das cidades globais,
considera que a nova economia mundial
se articulava em torno de cidades que,
globais ou não, dependeriam cada vez
mais de seus bens e serviços culturais
para sobreviver no processo globalizado
(SASSEN, 2001, p. 102). Se por um lado,
a cidade na economia global e informa-
cional se integrou a redes mundiais, por
outro, comportava a reestruturação da
cidade e da sociedade em caráter local
(BORJA; CASTELLS, 2001, p. 33). Nes-
se recorte, devemos ainda levar em con-
ta, segundo Milton Santos (1926-2001), o
momento peculiar em que além da cidade
ter se aproximado do global, também:
a economia se tornou mundializada,
adotando um único modelo técnico, a
natureza se viu unicada. Suas diver-
sas frações são postas ao alcance dos
mais diversos capitais, que as indivi-
dualizam, hierarquizando-as segundo
lógicas com escalas diversas. A uma
escala mundial corresponde uma ló-
gica mundial que, nesse nível, guia
os investimentos, a circulação de ri-
quezas, a distribuição de mercadorias
(SANTOS, 2006, p.4).
A globalização empurrou o Estado-
-nação para um esvaziamento progressi-
vo, redundando na aprovação de desre-
gulamentações e na crescente vaga de
desemprego de trabalhadores em larga
escala (HOBSBAWM, 1999, p. 404). A glo-
balização foi impulsionada pelas decisões
emanadas do “consenso de Washington”,
o surgimento de um mercado global de
capitais, o enfraquecimento do estado, a
desregulamentação e a privatização (CAS-
TELLS, 2000, p.53). Incrementando as re-
lações de impessoalidade e de resultados
obtidos a todo custo, resultaram em de-
semprego, expulsões e passou a despre-
zar abertamente as experiências sociais
acumuladas desde a eclosão da dupla re-
volução (HOBSBAWM, 1999, p.286). Para
52
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Ultramari e Duarte, cidades globais seriam
aquelas que, como assinalou Sassen, in-
tegram os uxos e os nós dominantes na
escala da produção contemporânea. Elas
são dotadas de elementos que as tornam
indispensáveis para o processo.
3
No en-
tanto todas as demais cidades, grandes
ou pequenas sem exceção, se tornam
“globalizadas”. E os autores explicam que
elas “na Globalização abrangem, virtual-
mente, todas as cidades, não importando
sua dimensão, ou mesmo a importância
ou fragilidade de sua base econômica”
(ULTRAMARI; DUARTE, 2007, p. 2).
No entanto, algumas delas, citadas
por Sassen como peças chave na engre-
nagem que desencadeou a globalização,
Nova Yorque, Londres, Tóquio, possuíam
um acelerador (SASSEN, 2001, p. 172). Ne-
las, elementos chaves do plano renovador
encontravam-se em andamento o que levou
as outras a aspirarem, por meio de seus
atores e gestores, aplicar o projeto de reno-
vação urbana, assegurando sua inserção
no mundo por meio da competição
4
. Essas
soluções se tornam um poderoso agente
de ordenação territorial e de reconguração
de suas esferas de produção, privilegian-
do a beleza de suas antigas construções e
velhos logradouros. Planos bem sucedidos
reformaram os water fronts e áreas indus-
triais degradadas de Filadéla, Baltimore e
Boston nos EUA (GANAU, 2007). Londres e
o espetacular processo de Barcelona e, em
menor escala de Bilbao na Europa
5
. Mas
não apenas estas! Devemos listar um inter-
minável rol de cidades europeias e mundiais
onde se recupera sua história e sua iden-
tidade ou mantendo ou fabricando celebra-
ções. A capital da febricitante Coréia, tigre
capitalista da Ásia foi recentemente laurea-
da pela UNESCO e outras organizações por
seu bem sucedido empenho em recuperar
sua identidade nacional através do seu pas-
sado material. A recuperação de monumen-
tos antigos e sua integração nas malhas
moderna da cidade permitiu inclusive ilumi-
nar o próprio urbanismo coreano tradicional.
Ou como escreveu Sharon Hong: “once
hidden in the Rubble of the frantic moder-
nization”, cujo resultado é “a complex and
hybrid landscape, where, “modernism” and
“tradition” nd harmony instead of being in
opposition”(HONG, 2013, p. 28).
No entanto o êxito discutível de
alguns dos resultados desses planos de-
monstra a fragilidade da equação, pois a
presença de setores populares no debate
era imprescindível. Os planos estratégicos
incluem uma ampla campanha de conven-
cimento da população e da opinião publi-
ca, destinada a dar suporte às mudanças
necessárias. A necessidade de tornar a
cidade mais segura e ordenada pata atrair
investimentos internacionais, leva à pro-
dução de campanhas publicitárias. Nelas
as relações como o imaginário são ressal-
tadas, ao mesmo tempo em que se recu-
pera espaços patrimoniais no sentido de
embelezar a cidade e inseri-la na norma-
tização modelar do city-marketing. Nes-
se sentido, o city-marketing desenvolvido
com sentido nos eventos que se espera
que a cidade sedie, como ao Campeonato
Mundial de Futebol em 2014, e as Olimpí-
adas de 2016 promove a cidade do Rio de
Janeiro e a espetaculariza ao mesmo tem-
po em que institui o debate, ou o campo
de batalha entre os diversos setores des-
de o sistemas de transporte até os grupos
imobiliários, que veem na cidade cada vez
mais um atraente mercadoria
6
.
Giulio Carlo Argan arma que o va-
lor estético de uma cidade está vincula-
do a seu valor como espaço visual. Nela,
as artes como sistemas simbólicos e de
representação dispõem do ambiente ide-
al para cumprir suas funções (ARGAN,
1998, p. 231). Podemos então considerar
a cidade como uma obra de arte coletiva
e aberta, edicada com planejamento ou
sem ele, catalisando os sentimentos or-
ganizacionais do espaço, do território que
transformasse o imaginário na solidez dos
objetos e serem, como arma Nora, ser
53
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
à base da memória que se enraizar
no concreto. Por outro lado, ainda para o
ex-prefeito de Roma, não admira que as
nossas noções de espaço e tempo sejam
tão alicerçadas pela cidade que vive-
mos nela a maior parte de nossas existên-
cias (ARGAN, 1998, p. 232). Corroboran-
do este ponto de vista, alguns pensadores
asseguram que nove décimos da existên-
cia de um indivíduo decorrem na cidade.
Assim sendo, as imagens resultantes, se-
jam visuais, auditivas ou olfativas, se en-
raízam fortemente em nossas memórias.
Portanto, memória e imaginação agem
em conjunto, tecendo e compondo nos-
sos acervos de imagens do urbano e do
território sob a forma de representações.
Estas são produzidas no campo das artes
e rebatem a questão da identidade indivi-
dual no coletivo urbano.
Esta questão é alimentada por Ba-
libar, um estudioso da Paris multicultural e
dos conitos, que considera a identidade
uma noção ampla e abstrata quase me-
tafísica, adquirindo uma face concreta se
colocada em relação com a de pertenci-
mento (BALIBAR, 1998, passim). Clau-
de Raffestin considera que o território é
o espaço transformado pelo trabalho e
pelo imaginário humano, resulando numa
imagem. Quem que tou uma vez os ele-
mentos visuais de um trecho do territorio,
juntamente com elementos nascidos de
sua introspecção não sentiu uma emoçao
particular? Quem não desejou xar em
sua memória uma peculiaridade do envó-
lucro espaço-temporal da cidade que tinha
diante de sí? (RAFFESTIN, 2002, p. 9). O
envólucro era concretizado nas imagens
e, como escreveu Baudrillard, é justamen-
te “o poder homicida da imagem (quem)
assassina o real” ( Idem, 2002, p. 13).
Uma cidade está inserida num
trecho da natureza, ambiente natural e
ambiental composto por elementos bioló-
gicos. Esse ambiente ao ser modicado
pela ação humana, pela cultura material
humana, ele se tornará paisagem (DUBY;
LARDREAU, 1989, p. 130). Nesse caso,
um território agrário é uma função eminen-
temente gerada pela cultura. Talvez por
isso é que a apreensão do território se dê
mediante uma via de mão dupla: por seu
aspecto físico e por sua função simbólica.
Esse envólucro temporal, mais uma vez,
se deixa perceber por meio de imagens -
xadoras cuja representação e percepção
ocorrem por meio dos referenciais congi-
tivos e simbólicos. No passado talvez a
cidade com suas assimetrias de poder e
de hierarquia produtiva, contribuisse para
embrutecer a população componesa cir-
cunviznha (CASTRO et al., 2003).
3. Cidade e território significado e
comunicação
As cidades na longa duração de-
sempenharam um papel importante na
denição e categorização do território; as-
sociadas aos domínios da signicação e
da representação como construção social.
As cidades são artefatos culturais e, como
tal, públicos, pois, recordando C. Geertz, a
cultura é publica porque sua signicação
o é (GEERTZ, 2001). A comunicação so-
cial teve na cidade, como um processo de
longa duração, espaço essencial de ação e
construção do real. E nesse ponto, poucos
campos de saber são tão sensíveis à tecno-
logia e seus avanços e conquistas quanto
à comunicação social. Ela se compromete
com a vanguarda técnica, com o descarte
da modernidade, da superação da moder-
nidade. Nas sociedades de economia capi-
talista avançada surgiram os mass-media,
em especial os norte-americanos.
Seu início se deu nos nais da pri-
meira guerra mundial com a consolidação
da sociedade de massa e de mecanismos
de controle desta massa social. O poder,
segundo Barbero, sentiu a necessidade
de homogeneizar os processos comuni-
cacionais, buscando reforçar o consenso
54
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
em torno do conito. “Nesse momento se
pode falar dos sistemas de gestão que
implicam no controle efetivo dos meios,
ou seja, da fusão da força econômica e
do controle da informação, fabricação de
imagens, chegando a ser a nova quintes-
sência do poder nacional e internacional”
(BARBERO, 1997, p. 53).
Michel de Certeau conceitua cida-
de e território nos domínios da representa-
ção, sendo a cidade lida, conhecida e re-
presentada como o domínio cognitivo do
espaço e do território. A esse processo ele
denomina de prática. A cidade é um es-
paço onde o poder pode ser exercido por
meio de uma hegemonia representacio-
nal. Para isso ele emprega um sintagma
que é uma linguagem composta por uma
ordenação produzida por práticas cifra-
das, informacionais, grácas. Os seus re-
sultados são relatórios, tabelas, grácos,
censos, IPTU, planos de alinhamento, ca-
dastros etc. Esse saber é legitimado, além
disso, como um capital social e permane-
ce guardado e é empregado pelo poder.
Ele vai além dessa tecnicalidade
supercial e explana a arma que é o con-
ceito de “cidade”, as aspas são dele, que
se aplica por intermédio do aparato discur-
sivo utópico e urbanístico e que envolve
três objetivos. O perímetro seria a criação
de um “espaço próprio” onde a racionalida-
de abafa se não elimina as “poluições físi-
cas, materiais ou políticas” que poderiam
comprometê-la ou criar embaraços. Em
seguida à produção de um cronotopo sem
tempo, ou um sistema sincrônico destinado
a aplainar as “resistências inapreensíveis
e teimosas das tradições.” São formas de
deshistoricizar a historia, de criar “lapsos
de visibilidade” ou ainda de tornar a his-
tória opaca. Finalmente, a criação de um
sujeito universal e anônimo que é a própria
cidade como propõe o modernismo corbu-
seano, criando uma lógica exclusiva e ra-
cional impondo um funcionamento estrito,
excluindo a riqueza das relações sociais.
7
Por outro lado, Certeau fala do sa-
ber, da imaginação e afetividade de que são
dotados os cidadãos comuns, os usuários
da cidade. Ao denominá-los de praticantes,
nosso lósofo atribui a esses indivíduos o
dom de exercer uma mudança de sentido e
mudança espacial sobre o território da cida-
de. Dotados de uma prática astuciosa, que
lhes permite exercer “a fala dos passos per-
didos”, ou seja o caminhar na cidade está
para o sistema urbano como a enunciação
(o speech act) está para a língua ou os
enunciados preferidos. Caminhar permite
enunciar, apropriar-se, realizar, relacionar-
-se. A metáfora tem o condão, nos assegura
Certeau, de atravessar e conectar lugares,
de organizá-los. “São percursos de espa-
ços.” Desta forma, o que se denomina de
estruturas narrativas, adquirem o valor de
“sintaxes espaciais”. E teremos igualmente
sintaxes territoriais. Elas de certa manei-
ra se reetem na noção de identidade do
habitante. Para Balibar, identidade parece
corresponder a um sentimento de perten-
cimento a um território e a uma cidade. Ela
é uma forma de reportar a si mesmo aos
demais, pois não existe identidade para um
indivíduo isolado e sim como forma de se
reconhecer enquanto integrante de uma
comunidade, integrando um território físico
e imaginário (BALIBAR, 1998, p. 114).
No campo teórico da produção dos
mapas mentais e da representação o notó-
rio caso de Kevin Lynch, cuja obra datada
de 1960 deniu a legibilidade da cidade ou
seja, a facilidade com que as diferentes par-
tes da cidade podem ser apreendidas ou
lidas, porque são continuas e organizadas
segundo um esquema coerente. A capaci-
dade de leitura ou de legibilidade é, segundo
Roncayolo, não a percepção individualizada
de Lynch, mas dentro de uma etno-história.
Ou, ainda, uma critica de ideologia, uma vez
que ela reete os comportamentos dos gru-
pos sociais e da maneira como recebem e
transmitem, sendo a cidade uma fábrica de
aprendizagens e de atos sociais como a re-
presentação (RONCAYOLO, 1997, p. 177).
55
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
4. Cidade, história, sentido, representação
A cidade é dotada de uma historia.
Nos processos da longa duração, ela nas-
ce, cresce, se consolida e desaparece em
função da descartabilidade da vida huma-
na, da ação do processo histórico e das
forças sociais, dos conitos políticos, dos
conitos sociais, das batalhas da técnica e
das tecnologias. Com frequência suas cele-
brações reinstauram, celebram, dão forma
a esta identidade. Uma cidade tem caráter
contextual que reete, em sua territorialida-
de, a formação social, o processo histórico
e o território no ciberespaço. Se levarmos
em conta a assertiva de Rank, admitimos
a indissolubilidade do mundo material e do
ciber território levando a dimensão simbóli-
ca das cidades e de sua cultura a reetir as
miragens das conexões (RENK, 2002, p.
59). Pensamos igualmente em considerar a
cidade como um espaço-território, um lugar
repleto de sentidos e trabalhado e modica-
do pelo esforço humano e para os homens
(RAFFESTIN; CRIVELLI, 1992, p. 221).
Se a cidade hoje pode ser repre-
sentada desde uma imagem dessas co-
nexões em redes, historicamente ela foi
abrigo, proteção, refúgio, comunicação,
cenário da política e plataforma de cultu-
ra (ARGAN, 1998, p. 235). Pensar a cida-
de envolve não apenas a reexão, mas
igualmente a experiência, habilidades e
sentimentos. A cidade foi uma poderosa
ferramenta dos homens para viver coleti-
vamente, para enriquecer, ela serve para
alterar drasticamente o ambiente circun-
dante e, nalmente, o ambiente urbano. A
produção das artes se torna uma produção
diversicada e tecnicamente exível como
integrante de seu sistema de símbolos.
Os sistemas simbólicos na concei-
tuação de Pierrre Bourdieu são instrumen-
tos de conhecimento e de comunicação, e
que exercem “um poder estruturante” por-
que são estruturados. Esse poder permite
construir a realidade que tenta estabele-
cer uma ordem gnosiológica, na direção
de Durkheim ao determinar o conformis-
mo lógico onde, agente e emissores es-
tabelecem a concepção homogênea do
tempo, do espaço, da causa do número
e torna possível uma espécie de acordo
consensual. Ou seja, a representação se
torna um campo de batalha simbólico e a
representação da cidade se passa dessa
forma como uma forma de poder simbóli-
co (BOURDIEU, 1989, p.10 e 11).
5. Cidade, territorio, cultura e identidade
O Rio de Janeiro deverá receber em
2014 e 2016 dois mega eventos nos quais
se travou intenso debate a respeito de sua
real ecácia. O resultado espetacular (no
sentido debordiano do termo) do Pan Ame-
ricano de 2007 demonstrou uma esteira
de frustração e ambiguidade quando aos
resultados. Embora tenha promovido uma
discussão sobre os problemas da cidade
o grande vencedor parece ter sido o setor
imobiliário (MASCARENHAS, 2007, p.15).
Essa quebra de conança levanta uma sus-
peita inicial sobre o propalado “legado” da
Copa de futebol e da Olimpíada para que
não seja consolidado o modelo que para
Mascarenhas é “excludente e segregador”.
Como o ocorreu com outras cidades que
abrigaram eventos bem sucedidos, não se
pode parar nesses eventos de massa. Mas
construir uma estrutura de eventos, espe-
táculos e celebrações baseados na própria
história da cidade, na cultura que ela abri-
ga. Mas não se deter apenas no Carnaval,
comercializado em excesso. Debatere-
mos neste tópico a necessidade de explo-
rar outras modalidades de celebração que
possam contribuir para consolidar a identi-
dade e a especicidade do Rio de Janeiro.
Minha ênfase na questão contexto é
apenas exploratório sendo ele importante
até porque, para o debate da cidade, deve-
-se pensar com as disciplinas das ciências
sócias como fenômenos sociais embebi-
56
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
dos no contexto. Que contexto instrumen-
taria nosso debate? Como explica Kazu-
pov, pode denir-se como um conjunto de
alternativas compostas por restrições e
habilitações cujos resultados podem levar
os atores individuais ou coletividades a op-
tarem estrategicamente por determinadas
ações. O contexto implica na realização
de um exercício de classicação do real
em diferentes direções. Diferentes níveis
de abstração podem se transformar em
contextos para outros atores. O mesmo é
verdadeiro para diferentes níveis territoriais
e temporais. Dessa forma a entidade que
denominamos estado nação e suas regi-
ões são contextos para uma cidade como
o Rio. Assim como o passado é o contexto
para o presente (KAZUPOV, 2005, p. 6).
A importância da cidade no mundo
todo como polo produtor e consumidor de
cultura tem crescido substancialmente.
A cultura se tornou o “petróleo” limpo de
inúmeros países, sendo que suas cidades
têm sido capazes de sediar de maneira
completa eventos de natureza cultural im-
bricados com sua revitalização.
No Rio de Janeiro um processo de
recomposição urbana certamente desen-
cadearia um efeito favorável aumentando a
sociabilidade e o autorrespeito urbano dos
praticantes da cidade do Rio. Ampliando o
emprego num surto multiplicador de opor-
tunidades. Cidade conhecida como de ex-
trema sociabilidade e boa disposição para
com o outro, essas relações sociais em-
bora tenham sido solapadas nas últimas
décadas parecem ter voltado apenas das
mazelas urbanas. É de se pensar se uma
reconguração adequada do espaço da ci-
dade não será capaz de trazer esses para-
digmas novamente? Num artigo datado de
1993, Carr e outros autores recuperam o
debate do urbano desde a polis grega:
in a well-designed and well-managed
public space, the armor of daily life can
be partially removed, allowing us to see
others as whole people. Seeing people
different from oneself responding to the
same setting in similar ways creates a
temporary bond (1993, p. 334).
Inúmeros lósofos e pensadores
têm acentuado a importância de uma ci-
dade planejada ou, ao menos, bem orde-
nada, para acentuar o link existente entre
o espaço público, a cultura cívica e a de-
mocracia política. Um espaço público, se
organizado adequadamente às necessi-
dades públicas, oferece lastro potencial
para o desenvolvimento da comunicação
social por nos permitir o potencial para a
comunhão social, permitindo-nos elevar o
olhar da rotina diária, e, como resultado,
aumentar a nossa disposição e tolerância
para com o outro (AMIN, 2008, p. 2).
Greg e Palmer assinalam que uma
cidade que sinta desejo em se desenvolver
na globalização terá de resistir ao impulso
de permanecer estagnada. Como a nova
gestão pactuada empurra a cidade para
a competição criando resultados às vezes
perversos, constitui um desao supremo
para a cidadania onde a sociabilidade e o
desejo de preservar coletividades terá de
superar o desejo de competir e vencer à
qualquer preço. A cidade deve então pro-
curar na sua própria historia e espaços
de sua história, como fazem os coreanos,
energias criativas e mobilizar talentos, re-
presentar seu presente, projetar seu futuro
mediante a revalorização do passado.
As intensas pressões da globali-
zação e da especulação territorial e de
reestruturação econômica na busca de
consolidar novas identidades urbanas cí-
vicas empregam “estabelecimentos cultu-
rais e recursos culturais em uma tentativa
de tornar-se distinta regenerando a fábri-
ca urbana e criando novas matrizes de
prosperidade social, econômica, cultural e
política (GREG; PALMER, 2012, p. 2). As-
sim sendo a criação, a recepção e a pro-
moção de eventos como festivais, shows,
57
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
exposições, celebrações, e campeonatos
tornaram-se uma componente critica do
desenvolvimento estratégico urbano pelo
mundo todo. Nenhuma cidade acredita
ser tão pequena ou tão complexa que não
possa ingressar na arena do planejamen-
to e produzir eventos.
Algumas ingressaram num proces-
so de “festivalização” competindo como
Melbourne, Seul e Hong Kong para se
apresentarem como as cidades dos even-
tos mundiais. Cada vez mais eventos
culturais têm se tornado centrais no pro-
cesso de revitalização e desenvolvimento
urbano, e a produção cultural torna-se um
essencial elemento da economia urbana
e o consumo cultural pode ser dominan-
te nas margens da cidade. Como assinala
Strom, não se trata apenas de mega even-
tos ou de chamar arquitetos para construir
(e cuja assinatura é um ícone). É mais
do que isso, é investir na criação de uma
atmosfera animada e um senso de lugar.
Eventos tornam uma cidade phasionable
e um lugar gostoso de se estar e viver.
Cidades na longa duração manti-
veram ou perderam seus eventos tradi-
cionais. Algumas como Londres (se não a
própria Inglaterra) se obstinam em man-
ter uma profusão delas. O Rio perdeu a
maior das grandes celebrações coletivas
a exceção do carnaval. Alguns dos rituais
integravam o que Bourdieu denomina Ca-
pital simbólico objetivado, e destinava-se
a reforçar as disposições rituais do poder,
como a antiga “festa das canoas” celebra-
da desde a fundação da cidade, em 1567,
mas esquecida nos nais do século XVII
(ALVAREZ, 2000,p. 42). Alguns desses
eventos na longa duração, ou herdados de
tempos imemoriais ou ainda fabricados, ti-
veram de se adequar às novas normas do
planejamento e desenho da cidade.
Para Therborn, essas celebrações
possuem uma função de identidade nacio-
nal através de herança nacional partilha-
da (THERBORN, 2003, p. 35). As cidades
devem criar espetáculos e eventos basea-
dos em sua própria história, como a cida-
de de Leiden, na Holanda que comemora
religiosamente a festa dos pães rememo-
rando quando derrotaram os espanhóis
em 1574. A constante ampliação da polí-
tica dos eventos nos anos 1960, 1970 e
1980 pelo mundo, compeliu as cidades a
uma mudança administrativa criada para
licitar e gerir recursos, espaços e edica-
ções dos calendários de eventos.
Palavras nais
As cidades ingressam no século XXI
com a potência arrasadora de um cataclis-
mo condenando a humanidade a ser total-
mente urbana ao término do século XXI se
as “expectativas não se reverterem”. Como
bem assinala Harvey, as cidades desde
a década de 1960 têm se esforçado por
se ajustar-se às complexidades da nova
economia e do empresariamento urbano,
gestão urbana e dos empoderamentos. A
cidade moderna sofreu os efeitos perver-
sos da extrema redução da ajuda recebida
por parte dos poderes centrais; nos EUA
ela foi causada pelo colapso do comunis-
mo na Europa oriental; enquanto isso, no
resto do mundo, e em especial na Ameri-
ca Latina, vigoram os efeitos perversos da
pauperização do estado e da instabilidade
política nos anos 1990 (HARVEY, 1989, p.
364-365). Os desaos são inclusive de ges-
tão, que devem deixar os paradigmas an-
teriores vindos do século XIX e criar novos
pactos, novos processos. A cidade deve
comprometer-se cada vez mais com a pro-
dução e o consumo cultural. Uma cidade de
eventos e intensa vida cívica, econômica e
social como Rotterdam, desenvolveu es-
truturas administrativas conectadas com a
expansão da produção e consumo cultural.
Os processos de gentricação e de espe-
culação do solo urbano atraem residentes
abastados ao centro das cidades de inúme-
ros países do mundo enquanto que, no Rio
58
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de Janeiro, uma proibição legal de abri-
gar que deve ser suspensa urgentemente
8
.
A cidade do Rio de Janeiro tem
diante de si dois desaos aos quais cabe
vencer com inteligência e desprendimen-
to. A Copa do mundo e a Olimpíada podem
sepultar de vez nossas esperanças dian-
te da posse do nosso aparato gestor por
segmentos, por entidades não represen-
tativas, por aventureiros. Ao lado de um
grande crescimento de novas maneiras
de gerir a cultura, novas estratégias ela-
boradas na parceria entre o poder público,
ONGs, comunidades e empresas; surgem
em nossas periferias novas espaços e po-
líticas culturais como as dezenas de TCC
realizados pelos alunos do Curso de Pro-
dução Cultural da UFF bem demonstram.
Precisamos, porém, ver a cidade como um
todo e não como nosso terreno de caça
empresarial ou ideológico.
O fugaz debate sobre o viaduto que
obscurece e nubla o centro do Rio dá uma
amostra. Os que se posicionam contra a
demolição parecem esquecer que um via-
duto que facilita suas vidas é uma nódoa
a ser removida. Talvez as autoridades
municipais cariocas, mais preocupadas
em “responder à altura” enveredassem
por postura mais esclarecedora e didática
publicando uma extensa matéria sobre a
cidade de Boston. Essa campeã dos en-
garrafamentos nos EUA, nessa América
movida a automóveis, nos anos 1996 levou
sua população e autoridades municipais a
debater e implementar um conjunto de de-
cisões que desembocaram no projeto de-
nominado The Big Dig. Todos os viadutos
que a cobriam foram demolidos e transfor-
mados em túneis. Aperfeiçoou seu sistema
de transporte público e o tornou ainda mais
ecaz (Verbete da Wikipedia). Boston hoje
é uma das cidades dos EUA com melho-
res índices de qualidade de vida. Arejada,
limpa e bonita. E é uma cidade bem mais
nova do que o Rio de Janeiro com seus
quase quinhentos anos de vida.
Bibliograa:
ALVAREZ, J. M. S. Muita gente junta na praça.
Traçados urbanos e arquiteturas no Rio de Janei-
ro colonial (1565-1713). Tese de doutoramento
elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação
em Historia da Universidade Federal Fluminense,
orientada pela profª Drª Lana Lage da Gama Lima
em 1º de janeiro de 2000.
AMIN, Ash. Collective culture and urban public spa-
ce. City, vol. 12, nº. 1, april 2008. ISSN 1360-4813
print/ISSN 1470-3629 online/08/010005-20 © 2008
Taylor & Francis DOI: 10.1080/13604810801933495.
Acesso em 05/12/2012
ARANTES, O. ; VAINER, C. ;MARICATO, E. Cida-
de do pensamento único. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2000.
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como história da
Cidade. 4a ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Dinhei-
ro, poder, as origens do nosso tempo. São Paulo:
Contraponto ; Editora Unesp, 2000.
BALIBAR, Étienne. Droit de Cite. Culture et politi-
que em démocratie. Paris: L’Aube, 1998.
BARBERO, J. Martin. Travessias latino-america-
nas da comunicação da Cultura. São Paulo: Edi-
ções Loyola, 2004.
BAUDILLARD, Jean. Screened out. London: Ver-
so, 2002.
BAUMAN, Zygmunt. Conança e medo na cidade.
Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2009.
BELL, Daniel. The cultural contradictions of the
capitalism. Pennsylvania University States, Torch
Books, 1978.
BORJA, Jordi ; CASTELLS, Manuel. Local y Global.
La gestión de las ciudades en la era de la informa-
ción. edición. Madrid: Santillana ediciones, 2001.
BOYLE, Kevin. The ruins of Detroit: explorating the
urban crisis, in the motor city. In: Michigan historic
Review, Spring, 2001.
CASTELLS, Manuel. Informational technology and
global capitalism. In: GIDDENS, Anthony ; HUT-
TON, Will. Global Capitalism. New York: The New
Press, 2000.
59
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. vol. I.
8ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
CASTRO MARTINEZ, Pedro V. et al. Que és una
ciudad? Aportaciones para su denición, desde la
prehistória. In: Scripta Nova, Revista Eletrónica de
Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Bar-
celona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B.21.741-
98, vol.VII, 146 (010), 1 de agosto de 2003.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Uma arte do
fazer. edição. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998.
CHELENBOURG, Christian ; MEITINGER, Serge
(org.). Écritures de la ville. Paris: Éditions Kime, 2006.
DUARTE, Fábio ; ULTRAMARI, Clovis. Inexões
urbanas e cidades globais: evidências e hierar-
quias (1). In: Arquitextos, Vitruvius, Ano 8 Novem-
bro de 2007.
DUBY, G. ; LARDREAU, G. Diálogos sobre a Nova
História. Lisboa: D. Quixote, 1989.
FERREIRA, Álvaro. O projeto de revitalização da
zona portuária do Rio de Janeiro: os atores sociais
e a produção do espaço urbano. In: Scripta Nova.
Revista Electrónica de Geografía y Ciencias So-
ciales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Bar-
celona, 1 de agosto de 2010, vol. XIV, nº 331 (31).
<http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-331/sn-331-31.
htm>. [ISSN: 1138-9788].
FURQUIN, Evelyn ; MALEQUE, Miria Roseira. Es-
paço e Cidade. Conceitos e leituras. Rio de Janei-
ro: Editora 7 Letras, 2007.
GANAU, Joan. El papel de la cultura em el cambio
econômico y La promoción de ciudades. El caso de
Philadelphia. In: Scripta,Nova, Revista eletrônica de
geograa y sciencias sociales. Universidad de Bar-
celona vol. IX, numero 245, 1 de agosto de 2007.
GREG Richards ; PALMER, Robert. Eventful cities.
Routledge, 2012.
HALL, Stuart ; JEFFERSON, Tony. 2006. Resisten-
ce throught rituals, youth subcultures in post-war
Britain. Routledge,2012.
HARVEY, David. The urban experience. John Ho-
pkins University Press, 1989,
HONG, Sharon. Seoul, a Korean Capital. In: PERE-
RA, Nihal ; WING, Sing-Tang. Transforming Asian ci-
ties, intelectual impasse, asianizing space and emer-
ging translocalities. Abingdon: Routledge, 2013.
KAZUPOV, Y. Cities of Europe: Changing contexts,
local arrangement and the challenge to urban co-
hesion. Malden: Blackwell Publishing, 2005.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Livra-
ria Martins Fontes, SD.
MASCARENHAS, Jorge. Mega-eventos esportivos,
desenvolvimento urbano e cidadania: uma análise
da gestão da cidade do Rio de Janeiro por ocasião
dos Jogos Pan-Americanos - 2007. In: Scripta Nova
Revista Electrónica de Geographia y Ciências So-
ciales, Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Le-
gal: B. 21.741-98.Vol. XI, núm. 245 (13), 1 de agos-
to de 2007.[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos
Críticos de Geografía Humana] Número extraordi-
nario dedicado al IX Coloquio de Geocritica.
MILLESPAUGH, Martin L. Waterfronts as catalysts
for city renewal. In: MARSHALL, Richard. Wa-
terfronts in Post Industrial Cities. London: Spoon
Press, 2001.
PINTO, Georges José. Planejamento estratégico
e city marketing: a nova face das cidades no nal
do século XX. In: Revista Caminhos de Geogra-
a, V. 2, julho de 2001, disponível em http://www.
seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeograa/issue/
view/736
RAFFESTIN, Claude ; CRIVELLI, M. Ruggero.
Blanche Neige et les Sept Nains ou la transforma-
tion des Alpes en patrimoine commun. In: Revue de
géographie alpine. 1992, Tome 80 N°4. pp. 213-227.
RONCAYOLO, Marcel. La ville et ses territoires.
Paris: Folio Essais, 1997.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 2a edi-
ção. São Paulo: Editora Hucitec 1994.
SASSEN, Saskia. The global city. 2a Edition. Prin-
ceton: Princeton University Press, 200l.
SOMEKH, Nadia ; CAMPOS, Candido Malta Neto.
Desenvolvimento local e projetos urbanos (rodapé
p. 10) In: Revista Vitruvius, Arquitextos, abril 2005.
Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revis-
tas/read/arquitextos/05.059/470.
THERBORN, G. Dimensions and Processes of
Global Inequalities, paper presented at the XV Con-
gress of Sociology. Brisbane, July, 2002, p. 8-13.
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Fontes:
- Jornal O Globo, dia 28/06/2012.
- State of World Population 2007 - unleashing the
potential of urban growth, divulgado pelo Fundo da
População da ONU (UNFPA).
1
Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mí-
dia e da Pós-graduação em Cultura e Territorialidades
da Universidade Federal Fluminense.
2
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p.44.
3
Duarte e Ultramari, 2007, “Os parâmetros usados pe-
los principais analistas das Cidades Globais são: pre-
sença dos principais bancos internacionais, empresas
de serviços nanceiros, empresas de publicidade, e se-
des de corporações internacionais. Esses quatro parâ-
metros parecem buscar um dado de difícil mensuração,
que é o volume nanceiro ligado ao mercado global que
circula entre as cidades. Porém, eles são mais ricos do
que o dado bruto do uxo nanceiro, pois reetem uma
dinâmica socioeconômica urbana mais ampla, envol-
vendo diferentes áreas de atuação do mercado global”.
4
Somekh & Campos, 2005, “Nesses projetos, o risco de
potencializar os efeitos excludentes da urbanização con-
temporânea, que caracteriza os grandes projetos urba-
nos estratégicos das últimas duas décadas, coloca em
questão a capacidade e as limitações do poder local no
quadro da globalização. Soluções efetivas para os pro-
blemas urbanos dependem hoje do envolvimento dos
atores locais, da sociedade civil e de diversas esferas
governamentais, na busca de novas formas de gestão e
da capacidade de governança”.
5
Idem, Entre as jogadas estratégicas adotadas pelos
governos locais, logo se destacaram os projetos de re-
novação urbana. Grandes portos, como Boston, Balti-
more, Gênova, Barcelona, Dunquerque e Rotterdam,
que assistiram ao esvaziamento de antigas instalações
portuárias situadas em zonas relativamente privilegia-
das, estavam entre as primeiras cidades a vislumbrar
o potencial urbanístico e imobiliário dessas áreas. O
mesmo ocorreu em metrópoles globais como Londres,
Nova York e Buenos Aires. A visão estratégia salientou
a possibilidade de aproveitar essas oportunidades de
renovação para a implementação de projetos que com-
binassem atratividade para eventuais investidores, alta
visibilidade e atividades anadas com tendências eco-
nômicas emergentes, concentradas no setor terciário e
nos serviços especializados – escritórios, lazer, turismo,
gastronomia, esporte, alta tecnologia e assim por diante.
6
Ferreira, 2010, “Para a implementação desses pro-
jetos, o city marketing cumpre importante papel, pois
como lembra o geógrafo Georges José Pinto (2001, p.
21), “é uma promoção da cidade que objetiva atingir
os seus próprios habitantes bem como os possíveis e
eventuais investidores, que busca a construção de uma
nova imagem de cidade, dotada de um forte impacto
social”. Trata-se da espetacularização da cidade e para
tanto, projetos com nomes impactantes são importantes:
Favela-Bairro, Rio-Cidade e Porto Maravilha são exem-
plos para o caso do Rio de Janeiro. Certamente, por
trás desses projetos articulações de diversos grupos
econômicos, visto que as transformações nas cidades
envolvem atores sociais ligados aos setores imobiliário,
de transportes, de turismo, de construtoras e de presta-
doras de serviços de modo geral. Por tudo isso, o Rio de
Janeiro tem se tornado cada vez mais uma mercadoria,
um objeto a ser negociado em um mercado competiti-
vo, o que autoriza o professor de planejamento urbano e
regional Carlos Vainer (2000) a armar que houve uma
transposição do modelo estratégico do mundo das em-
presas para o universo urbano”.
7
Citado por G. Rodriguez: 2005, “Esta clasicación es,
a decir verdad, un programa de urbanismo. Su objetiva-
ción en la práctica signica comenzar a depurar las gran-
des ciudades. ... Porque éstas se encuentran a causa de
su crecimiento precipitado, en medio del más espantoso
caos: todo se confunde en ellas. ... Esta clasicación ... in-
vita a unas medidas de orden ...” (Le Corbusier, recogido
de “El arte decorativo...”, cit. en Choay 1983, p. 289/290).
8
Achamos excelente, clara e apropriada a denição
elaboradas por Evelyn Furquim e Maleque em seu livro
Espaço e cidade. Na página P.30 se lê que gentricação
numa cidade corresponde “a denição de fronteiras de
classe por meio da intervenção espacial”.
Contato:
- saldanhaalvarez@hotmail.com
61
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Trânsitos, trajetos e circulação dos jovens na cidade
Trácos, trayectos y circulación de los jóvenes en la ciudad
Transits, paths and circulation of young people in the city
Livia De Tommasi
1
Resumo:
O texto se propõe esboçar um olhar sobre a temática da juventude
que supere as representações dicotômicas (jovens problema jovens
solução, jovens apáticos - jovens protagonistas, jovens estudantes -
jovens trabalhadores) e a separação dos tempos do cotidiano em objetos
de estudo estanques. No lugar das leituras que separam, encaixam,
isolam, classicam, a análise propõe indagar vivências e experiências em
movimento, acompanhando os trânsitos, os cruzamentos de fronteiras,
a circulação entre os espaços e os tempos, tendo a cidade como lugar
da experiência e da experimentação. No cenário da cidade, circuitos e
curto-circuitos das vivências juvenis interrogam as categorias de análise
colocando a necessidade de uma mudança do olhar que procure, ao
mesmo tempo, captar e gurar as mudanças sociais, econômicas e
culturais que ocorreram nos últimos decênios.
Palavras chave:
Jovens
Cidade
Culturas juvenis
62
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El texto se propone esbozar una mirada sobre la temática de la juventud
que supere las representaciones dicotómicas (jóvenes problema
jóvenes solución, jóvenes apáticos jóvenes protagonistas, jóvenes
estudiantes jóvenes trabajadores) y la separación de los tiempos
del cotidiano en objetos de estudio estancados. En lugar de lecturas
que separan, encajan, aíslan, clasican, el análisis propone indagar
vivencias y experiencias en movimiento, acompañando los trácos,
los cruces de fronteras, la circulación entre los espacios y los tiempos,
teniendo la ciudad como lugar de la experiencia y de la experimentación.
En el escenario de la ciudad, circuitos y cortocircuitos de las vivencias
juveniles interrogan las categorías de análisis, exponiendo la
necesidad de un cambio de mirada que busque, al mismo tiempo,
captar y gurar los cambios sociales, económicos y culturales que
ocurrieron en los últimos decenios.
Abstract:
The text proposes sketching a view on the theme of youth that overcomes
the dichotomous representations (problematic youth solution youth,
apathetic youth – young protagonists, young students – young workers)
and the division of the daily times in still study objects. Instead of the
readings that separate, frame, isolate and classify, the analysis proposes
to inquire experiences in movement, following the transits, the border
crossings, the circulation between the spaces and times, considering
the city as the place of experience and experimentation. In the urban
scenery, circuits and short-circuits of the young experiences interrogate
the categories of analysis, bringing up the need of a change of view that,
simultaneously, seeks to capture and portray the social, economic and
cultural changes that have occurred in the last decades.
Palabras clave:
Jóvenes
Ciudad
Culturas juveniles
Keywords:
Young people
City
Young cultures
63
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Trânsitos, trajetos e circulação dos
jovens na cidade
Durante as manifestações contra o
G-8 em Genova, em 2001, um jovem,
Carlo Giuliani, foi morto pela polícia.
A mídia tentou logo etiquetá-lo como:
jovem drogado, morador de rua, anar-
quista, frequentador de grupos de
igreja etc. Carlo era tudo isso e mais
um pouco, frequentava os círculos
anarquistas e a igreja onde ia jogar
totó, os amigos ‘punk a bestia’ que
moravam na rua, os bares do centro
onde compartilhava suas poesias e to-
mava metadone para se desintoxicar
da heroína. Finalmente, seus amigos
permitiram colocar em cima do féretro,
no dia do enterro, somente a bandeira
da “Roma”, seu time de futebol.
Circulação, attraversamenti, cruza-
mentos das fronteiras, encontros das es-
quinas ... desterritorialização, quebra das
molduras ... superação do pensamento
binário ... uxo ... nomadismo.
É a partir de um fato, ou melhor, de
um acontecimento, da tentativa de enten-
der o signicado de um gesto, que se des-
velam outras possibilidades de nomear,
de colocar em foco as vivências juvenis.
Falando de jovens parece ter se
tornado “natural” car amarrados às re-
presentações binárias: jovens problema-
-jovens solução; jovens violentos-jovens
rebeldes; jovens apáticos-jovens protago-
nistas. Ou, também, jovens estudantes-
-jovens trabalhadores; jovens de projeto-
-jovens em conito com a lei. Fugir dessas
representações é, portanto, tarefa obriga-
tória da reexão critica.
Os tempos do cotidiano juvenil são
descritos geralmente como tempos sepa-
rados: o tempo do trabalho, o tempo
do lazer, o tempo do estudo, o tempo dos
amigos, o tempo da militância, o tempo da
família, o tempo do namoro. Essas frontei-
ras circunscrevem, também, os objetos de
estudo. Assim, analisa-se a relação dos
jovens com a escola, ou o envolvimento
com a violência, ou as problemáticas dos
jovens trabalhadores, ou as formas de ex-
pressão juvenis.
Os tradicionais estudos sobre a tran-
sição para a vida adulta focalizam também
somente alguns eventos das biograas: a
saída da escola, o ingresso no mercado
de trabalho, a formação da família própria;
mesmo assim, mostram como esses even-
tos deixaram de ser denitivos, contíguos
e progressivos (Camarano, 2006).
No lugar dessas leituras que sepa-
ram, encaixam, isolam, classicam, esse
texto propõe esboçar uma análise para
indagar vivências e experiências em mo-
vimento, acompanhando os trânsitos, os
cruzamentos de fronteiras, a circulação
entre os espaços e os tempos, tendo a ci-
dade como cenário e lugar da experiência
e da experimentação
2
.
O cenário da cidade emerge com
força como lugar das vivências juvenis,
colocando a necessidade de uma mudan-
ça do olhar: não mais o local como territó-
rio estanque, e sim a circulação e o des-
locamento entre diferentes espaços, entre
centro e periferia, entre múltiplas experi-
ências, vivências, sociabilidades (Mag-
nani; Souza, 2007), prismas identitários;
não mais a contraposição entre violência,
criminalidade, ilegalidade por um lado, e
“normalidade”, legalidade e “boa condu-
ta” pelo outro, e sim um território poroso
onde as indeterminações (Oliveira, 2007),
as ambivalências (Bauman, 1999), os
trânsitos entre legal e ilegal, licito e ilícito,
constituem as experiências cotidianas da
juventude moradora das periferias (Telles
; Cabanes, 2006); não mais a separação
64
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
entre tempos (tempo do lazer, tempo do
trabalho, tempo da formação, tempo da
política) e espaços (centro e periferia, lo-
cal e global, próximo e distante) e sim a
circulação, o vai e vem, o atravessamento
dos conns, o imbricamento das experiên-
cias (Tommasi, 2007a).
Introduzindo a dimensão da cidade
na análise da condição juvenil é possível
captar e gurar as mudanças sociais, eco-
nômicas e culturais ocorridas nos últimos
decênios, consequências da regulação ne-
oliberal, da globalização, da nanceirização
da economia, da revolução tecnológica. Ou
seja, falar de juventude é também falar de
seu entorno, dos territórios e dos tempos
em que os jovens se movimentam. Do es-
paço urbano e de suas idiossincrasias.
Observando desse ângulo, do ân-
gulo da cidade, é possível perceber de
forma mais clara o entrelaçamento das
diferentes dimensões da vida dos jovens,
e também a necessidade de construir no-
vas categorias analíticas, utilizar novas
palavras, novas guras do discurso, para
nomear os acontecimentos do presente:
uxo, trajetória, trama, mobilidade, noma-
dismo, nos ajudam mais a entender o mun-
do de hoje do que as categorias xas, as
separações e divisões, as classicações e
o fechamento em “caixinhas” identitárias.
Circuitos
O espaço urbano é o espaço da po-
breza, do desemprego, da precariedade,
da violência. E é também o espaço das
oportunidades, da circulação entre mundos
diferentes, dos contrastes entre o hipermo-
derno e o atraso, a tecnologia de ponta e
a “gambiarra”; espaço das ambivalências,
das possibilidades e dos bloqueios.
Como observa Vera Telles, mesmo
os bairros mais periféricos da cidade não
podem ser compreendidos apenas a partir
da falta de oportunidades e da precarieda-
de. São territórios em constante transforma-
ção. Famílias alteram suas casas a partir
da autoconstrução; o poder público, ainda
que de maneira intermitente e precária, al-
tera os trajetos de ruas e de pontes, e no-
vos centros de consumo, como os shopping
centers, provocam mudanças signicativas
nas formas da sociabilidade, nos circuitos
econômicos e culturais da periferia.
No Brasil, uma tradição impor-
tante de estudos de sociologia urbana,
que ajudaram a pensar o espaço da ci-
dade e a vivência dos atores individuais e
coletivos nesse espaço. A socióloga Vera
Telles percorre, num texto, a história des-
ses estudos, procurando construir novos
horizontes e sentidos para compreender
as transformações atuais:
Se antes a questão urbana era denida
sob a perspectiva (e promessa) do pro-
gresso, da mudança social e do desen-
volvimento (anos 69/70) e, depois, da
construção democrática e da univer-
salização dos direitos (anos 80), agora
os horizontes estão mais encolhidos, o
debate é, em grande parte, conjugado
no presente imediato das urgências do
momento, os problemas urbanos ten-
dem a deslizar e a se confundir com
a gestão urbana e a pesquisa social
parece em grande parte pautada pelos
imperativos de um pragmatismo ges-
tionário das políticas sociais voltadas
às versões brasileiras dos quartiers di-
fciles (Telles ; Cabanes, 2006, p. 14).
Na atualidade, as divisões sociais
e espaciais da “cidade fordista”, com suas
polaridades bem demarcadas entre centro
e periferia, trabalho e moradia, mercado
formal e informal, caram embaralhadas.
O texto de Vera Telles não enfoca
especicamente o universo juvenil, não é
um estudo sobre a juventude nas perife-
rias; mas, como ela escreve:
65
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
São, sobretudo os jovens personagens
dessas histórias que podem nos infor-
mar alguma coisa sobre os vetores e
as linhas de força que desestabilizam
campos sociais prévios, que redenem
os pólos de gravitação da geração an-
terior (...), deslocam suas fronteiras e
também traçam as linhas que dese-
nham as novas guras da tragédia so-
cial (...). É seguindo as trilhas dos mais
jovens que vão se delineando os pers
ambivalentes da modernidade globa-
lizada, uma experiência social que vai
se congurando nos limiares e nas pas-
sagens entre mundos distintos, entre o
universo empobrecido da periferia e os
shopping centers e os lugares prestigio-
sos de consumo e lazer (...), os baixos
empregos do terciário moderno e os cir-
cuitos do trabalho precário que tangen-
ciam os uxos da riqueza plasmados
nos espaços urbanos (...) É aqui que
vai se armando uma teia de relações
(e tensões) que escapa de denições
modelares ditas de exclusão social ou
segregação urbana (Idem, p. 20).
Esse embaralhamento repercute so-
bre as categorias usadas para fazer a leitura
da realidade urbana. Território, por exemplo,
e ainda mais “comunidade”, são conceitos
que não servem mais para descrever o es-
paço urbano e suas dinâmicas; circuitos,
trajetos, redes, fronteiras, errâncias, são
termos mais adequados para descrever as
conexões, as zonas de contiguidades, as
experiências dos jovens no espaço da cida-
de. Como diz Alberto Melucci, as profundas
mudanças ocorridas na sociedade globali-
zada requerem inventar novas formas para
nomear o presente. Hoje, as “palavras cha-
ves” são outras (Melucci, 2000).
Assim, o antropólogo José Guilher-
me Cantor Magnani deu novo signicado às
palavras ‘pedaço’ e ‘mancha’, utilizando-as
para descrever o espaço criado pelas inte-
rações dos atores e, sucessivamente, agre-
gou o uso dos termos ‘trajeto’ e ‘circuito’:
Pedaço designa aquele espaço inter-
mediário entre o privado (a casa) e o
público, onde se desenvolve uma so-
ciabilidade básica, mais ampla que a
fundada nos laços familiares, porém
mais densa, signicativa e estável que
as relações informais e individualiza-
das impostas pela sociedade. Manchas
são áreas contíguas do espaço urbano
dotadas de equipamentos que mar-
cam seus limites e viabilizam (...) uma
atividade ou prática predominante (...)
A qualquer momento, os membros de
um pedaço podem eleger outro espaço
como ponto de referência e lugar de en-
contro. A mancha, ao contrário, resulta-
do da relação que diversos estabeleci-
mentos e equipamentos guardam entre
si, e que é motivo da auência de seus
freqüentadores, está mais ancorada na
paisagem do que nos seus eventuais
usuários (...) Enquanto o pedaço re-
mete a um território que funciona como
ponto de referência (...), trajeto aplica-
-se a uxos recorrentes no espaço mais
abrangente da cidade e no interior das
manchas urbanas. É a extensão e, prin-
cipalmente, a diversidade do espaço
urbano para além do bairro, que im-
põem a necessidade de deslocamentos
por regiões distantes e não contíguas.
Com relação a circuito, trata-se de uma
categoria que descreve o exercício de
uma prática ou a oferta de determinado
serviço por meio de estabelecimentos,
equipamentos e espaços que não man-
têm entre si uma relação de contiguida-
de espacial, sendo reconhecido em seu
conjunto pelos seus usuários habituais”
(Magnani ; Souza, 2007, pp. 20-21).
Aplicando essas categorias analíti-
cas, Magnani e sua equipe de pesquisa-
dores investigaram os circuitos de lazer,
encontro e sociabilidade dos jovens na ci-
dade de São Paulo: das baladas black aos
pontos de encontro dos pichadores, dos
circuitos de forró universitário aos (des)
encontros entre streeteiros e b.boys.
66
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Seguindo esses percursos é possí-
vel fazer a leitura das culturas juvenis que
enriquecem a paisagem urbana. Magnani
chega à conclusão de que o estudo desses
espaços e circuitos re-signicados pela pre-
sença dos grupos juvenis permite colocar
sob outra ótica a tradicional distinção entre
espaço público e espaço privado. A rua, es-
paço público por excelência, que para mui-
tos se tornou lugar inóspito, do medo e da
violência, é ainda espaço de convivência e
circulação; mas também outras formas
de realização do espaço público, que vão
além da ideia tradicional de rua.
Circuitos, trajetos, manchas e até pe-
daços (estes com seus laços mais par-
ticularistas, ao estilo da comunidade)
constituem distintas modulações de
uso e desfrute do espaço público: são
diferentes versões da ‘rua’ enquan-
to suporte do atributo ‘público’. Cada
um desses arranjos corresponde a
uma forma especíca de se expor,
estabelecer laços, marcar diferenças,
fazer escolhas, colocar-se, enm, na
paisagem urbana diante dos outros e
em relação a eles. A experiência dos
vínculos que essas categorias des-
crevem não se restringe ao interior de
grupos fechados e em espaços gueti-
cados, protegidos, mas é, em vários
graus (e com todas as ressalvas que
determinados fatores de ordem es-
trutural impõem às condições de vida
em cidades do porte de São Paulo),
metropolitana, cosmopolita (Magnani ;
Souza, 2007, pp. 252-253).
São os circuitos da agenda cultu-
ral da periferia, dos saraus de poesia, das
rodas de samba, das exibições de vídeos
em terrenos baldios ou nos muros do co-
mércio, que explicitam a pluralidade de si-
tuações vividas pelos jovens, os modos de
produção cultural e ocupação da cidade, o
uxo e intercâmbio entre o local e o global,
o aqui e ali, o centro e a periferia. Serão
essas as “linhas de fuga” (como diz o ló-
sofo Gilles Deleuze) do presente, onde a
política é re-signicada e reinventada?
Você indo daqui pro centro, pro Itaim,
pro Ibirapuera, como eu trabalhava,
você tinha uma visão das coisas que
estavam acontecendo (...) Você via,
por exemplo, casas grandes, man-
sões, um quarteirão são duas casas.
Eu passava ali de manhã, eu cava
olhando assim (...): o número de casas
pra vender ali aumentou absurdamen-
te. É o tipo de coisa que eu passava
e cava pensando: ‘poxa, o que será
que motivando essas pessoas a ir
embora? (...) é o custo da vida? Será
a violência? Será alguma coisa do tipo
perda de emprego? O que será que
está motivando essas pessoas a saí-
rem daqui, um lugar ótimo para se mo-
rar? (Telles; Cabanes, 2006, p. 174)
jovens que tematizam suas
questões reinventando o espaço público
através da música, da dança, dos grates
e das pinturas, dos esportes radicais, nos
fanzines, nas poesias, nos blogs, nos ví-
deos e na mídia alternativa, através das
muitas e muito ricas manifestações cultu-
rais das quais são produtores. Espaços e
formas que nos fazem lembrar uma colo-
cação de Paul Gilroy, a propósito do es-
paço público criado pela diáspora africana
no espaço cultural do Atlântico Negro: “a
história da diáspora africana desenvolve-
-se fora da órbita da política formal, valen-
do-se, fundamentalmente, da performan-
ce, da dança e da música como forma de
sua constituição” (Gilroy, 2001).
também outros tipos de circui-
tos e trajetos: aqueles percorridos por jo-
vens trabalhadores na difícil busca por um
‘emprego’, uma oportunidade no merca-
do de trabalho. Os percursos dos jovens
motoqueiros, dos ofce-boys, dos que
trabalham nas lojas dos moderníssimos
shopping centers. Nesses trajetos eles
transitam, circulam e ocupam, de passa-
67
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
gem, mas não a passeio, os mundos dos
“outros”, dos privilegiados e “incluídos”, os
bairros nobres da cidade onde, às vezes,
tecem laços de sociabilidade e, mais rara-
mente, conseguem se inserir. No mínimo,
como disse um dos jovens entrevistados
por Vera Telles, eles podem ter a “visão
das coisas que acontecem”.
O trabalho, nesse sentido, também
abre possibilidades: “opera como um po-
deroso conector com outros territórios, ao
mesmo tempo em que dene outras refe-
rências de distâncias e proximidades, refe-
rências que também redenem os sentidos
e as direções de sentido da moradia e seu
entorno” (Telles ; Cabanes, 2006, p. 166).
O trabalho e a renda que ele gera
são condições para grande parte desses
jovens ocuparem o tempo livre com um
mínimo de qualidade, frequentar festas e
shows. Até mesmo sair do próprio bairro e
ter acesso ao que a cidade pode oferecer
demanda um mínimo de condições nan-
ceiras. Assim como, paradoxalmente, a
própria busca por trabalho exige dispor de
recursos mínimos que nem sempre estão
ao alcance dos jovens.
O desejo dos jovens de circular e se
apropriar do espaço da cidade se manifes-
tou de forma evidente nas reivindicações
e mobilizações juvenis mais fortes dos úl-
timos anos: a luta pelo passe livre. Essa
bandeira, que reivindica o direito à cidade
e de circulação por ela, mobilizou e, em al-
guns casos, “incendiou” cidades como Por-
to Alegre, Recife, São Paulo e Salvador.
O direito a circular livremente, a fre-
quentar os equipamentos públicos existen-
tes na cidade, que permitem o acesso à
cultura, ao esporte, ao conhecimento (pen-
semos, na cidade de São Paulo, nos ricos
equipamentos do SESC ou no Centro Cultu-
ral São Paulo) é um direito muitas vezes es-
quecido pelos programas (governamentais
e não-governamentais) que se propõem a
“xar”, ou melhor, a “segregar” os jovens na
“comunidade local”, com o argumento (ou
melhor, a desculpa) de torná-los “agentes
de transformação da comunidade local”.
Não queremos com isso dizer que o
local, o bairro, não continue sendo um lugar
signicativo para muitos jovens; queremos
dizer que esse local é poroso, entrelaçado
pelos circuitos do consumo e dos merca-
dos globalizados, aberto às manchas que
os grupos juvenis inventam e reinventam,
aos trajetos que viabilizam a inserção (pre-
cária e intermitente) na sociedade. Ou seja,
o pedaço não limita as experiências juvenis
e não é suciente para entendê-las.
Percurso, deslocamento, mobili-
dade, são palavras chaves numa prática
que está se espalhando pelas periferias
do mundo, a prática do Parkour, ou seja,
a “arte do deslocamento”. Nas impressio-
nantes manobras, saltos, acrobacias que
os praticantes do Parkour (os chamados
traceurs) realizam, um componente for-
te de uso e apropriação do espaço urba-
no: as práticas são realizadas ao ar livre,
utilizando os emaranhados de muros, es-
cadarias, prédios existentes na arquitetura
da cidade. Escreve Alex, praticante brasi-
leiro: “o Parkour no meu ponto de vista é
saber interagir com um ambiente de forma
a se adaptar a percorrer os caminhos não
óbvios, preferencialmente de uma manei-
ra rápida e com controle.” E Jean:
no Parkour, você interage de diversas
formas com o ambiente. Um treino de
vault no muro, uma precisão no corri-
mão da escada, ou um pulo da sacada
em um treino são formas interessantes
de agir com o ambiente de uma forma
que ele não foi projetado para tal (...).
Você tem um objetivo, um propósito
que é chegar do ponto A ao ponto B da
forma mais rápida possível, utilizando
nada mais que seu corpo e as habili-
dades oferecidas por ele como instru-
mento. (www.blog.parkour.com.br).
68
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Uma forma de resistência é também
contornar os cercos da segregação na “co-
munidade” e no local, circular pela cidade
e mais além, circular entre diferentes espa-
ços e múltiplas identidades, não “vestir a
camiseta”, mas assumir, para cada espaço
e circunstância, diferentes identidades. As-
sim, um jovem rappeiro é, ao mesmo tem-
po, militante do movimento negro, cantor
de gospel, trabalhador de ONG, multipli-
cador de economia solidária e consumidor
dos últimos objetos eletrônicos e dos ves-
tuários à moda. Outro jovem trabalha como
assessor de uma deputada para pagar os
seus estudos de marketing e publicidade,
mas ao mesmo tempo milita numa rede ju-
venil regional, investe na criação de uma
produtora independente de vídeos, faz es-
tágio numa TV e defende a causa ambien-
talista. E, assim, se constroem percursos
de socialização plurais, que permitem fugir
dos rótulos, das caixinhas identitárias, do
controle dos programas, das estatísticas
e das classicações, da vida reduzida aos
mínimos vitais, para construir formas de
vida e produzir sentidos.
São jovens que não são ‘problemas’
nem ‘solução’, que vivem seu cotidiano e
procuram um espaço, um tempo, uma for-
ma, uma linguagem para expressar seus
desejos, suas dores e alegrias, suas de-
mandas e sentimentos, suas diferenças
e diversidades, buscando ser ouvidos, ou
simplesmente, ser visíveis. Que vivem e
convivem com crianças, adultos, idosos e
constroem com eles os sentidos de suas
narrativas e trajetórias de vida. Que procu-
ram espaços e tempos de autonomia, ar-
mação, resistência, entre os programas
de controle e de ‘gestão da pobreza’ e a
violência cotidiana com a qual convivem.
Espaços e tempos da pluralidade de su-
jeitos, experiências e trajetórias de vida.
Pluralidade que é, para Hannah Arendt,
condição indispensável do agir político.
A socióloga Helena Abramo foi
uma das primeiras pesquisadoras a pro-
blematizar a adoção dos jovens de formas
espetaculares de se colocar na cena -
blica (Abramo, 1994); eles, na análise da
autora, explicitam em suas roupas formas
de ocupar a cidade e de comunicar, ges-
tos corporais e modos de questionamento
do establishment dando, assim, visibilida-
de às suas pautas, questões e bandeiras.
A partir de então, uma série de pesquisa-
dores tem se dedicado ao estudo de gru-
pos cuja marca identitária ou a adoção de
determinados estilos também traz à tona
conteúdos políticos e ideológicos parti-
lhados pelos jovens. É o caso de muitos
trabalhos centrados na observação e aná-
lise do comportamento de moças e rapa-
zes vinculados às culturas hip hop, punk
e rastafári, entre outros (Herschmann,
1997; Dayrell, 2005).
A difusão das manifestações culturais
de periferia
3
tem ajudado na aproximação
entre jovens de diferentes classes sociais.
“Consciência, engajamento, rima, ritmo, for-
ça da palavra escrita e falada, atitude, inter-
venção e a convicção de que ‘posso fazer
e constranger o sistema’ é o que marca a
arte produzida nas periferias e por coleti-
vos juvenis universitários de classe média
que se articulam sob o lema da desmer-
cantilização da cultura” (Leite, 2008). Leite
cita ainda as ideias do movimento punk e
do hip hop, como referências fundamentais
das culturais juvenis que estão renovando a
cena cultural: “Tenha consciência, ocupe as
ruas, faça você mesmo”. Assim,
é preciso observar as microagremia-
ções para se ter uma ideia da diver-
sidade e complexidade das formas de
expressão da cultura feita por jovens.
Mas os grupos se conectam em circui-
tos, às vezes, formando um contorno
geográco restrito a uma localidade,
às vezes, sem apego a fronteiras. Ao
se conectarem, formam grandes movi-
mentos, abalam as estruturas e põem
de ponta-cabeça os parâmetros esta-
belecidos, os cânones. (Leite, 2008)
69
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Não dúvida que a difusão do
acesso à internet, o uso do computador,
têm revolucionado (e democratizado) de
forma considerável a possibilidade de
produção e difusão cultural dos jovens. A
enorme difusão do uso de sites que per-
mitem trocar e compartilhar arquivos de
música e de vídeo e a criação de blogs
onde são veiculadas produções literárias,
poéticas e musicais são provas da gran-
de criatividade cultural que caracteriza o
universo juvenil. Com a difusão dos meios
para compartilhar a produção audiovisual,
surgiu também uma nova forma de produ-
zir música, e também de romper as barrei-
ras dos direitos autorais.
As práticas culturais, esportivas e
os encontros são formas de viver, habitar,
signicar o espaço urbano:
Os jovens recebem espaços da cidade
prontos e sobre eles elaboram territó-
rios que passam a ser a extensão de
seus próprios corpos: uma praça se
transforma em campo de futebol ou
roda de capoeira, sob um vão de via-
duto se improvisa uma pista de skate
ou um encontro musical; o corredor da
escola - lugar originalmente de passa-
gem - se faz ponto de encontro e so-
ciabilidade, um muro sujo e abandona-
do se transforma em grate e colore a
cidade (Carrano ; Martins, 2007).
Podemos buscar os rastros do agir
político dos jovens nas diferentes formas de
expressão e comunicação, artísticas e cultu-
rais. Arma Alberto Melucci, comentando as
formas de expressão das culturas juvenis:
Nessa palavra que não é palavra (...)
tem a armação de uma palavra que
não quer mais car separada das emo-
ções, tem um dizer que quer se enraizar
no ser mais do que no fazer. (...) A cul-
tura juvenil lembra à sociedade o valor
do presente como única medida da mu-
dança, pede que o que importa se ar-
me aqui e agora, reivindica o direito à
transitoriedade, à reversibilidade das es-
colhas, à pluralidade e ao policentrismo
das biograas individuais e das orienta-
ções coletivas. (Melucci, 1991, p.86)
Cabe salientar que nessas mani-
festações culturais não existe uma sepa-
ração entre jovens e não-jovens, ou seja,
a relação geracional é uma característica
importante. Jovens são a maioria dos par-
ticipantes das rodas de samba, dos saraus
de poesias, das produções e exibições vi-
suais, mas não são a totalidade.
Curto-circuitos
Em se tratando de jovens, assim
como da questão urbana, tornou-se asso-
ciação “natural” discutir sobre a problemá-
tica da violência. De fato, as estatísticas
mostram o crescente envolvimento de jo-
vens em atos de violência. Jovens são a
maioria dos que morrem de “morte mata-
da”. Jovens são a maioria dos presos nas
prisões brasileiras.
Uma ideia generalizada é aquela se-
gundo a qual, em alguns ambientes sociais,
“já se nasce marginal”, como disse MV Bill
durante uma entrevista no programa Roda
Viva
4
. Nesses lugares, onde não nenhu-
ma oportunidade para os jovens, uma das
opções para “sair da invisibilidade”, como diz
ele, ou seja, ganhar dinheiro e levantar a au-
to-estima é se envolver no tráco de drogas.
Alerta José Padilha, diretor do lme
“Tropa de Elite”: “Existe uma tese que diz
que violência é consequência da pobreza.
Não é verdade. Existe um processo que
transforma a miséria em violência, pelo
Estado”
5
. E cita, como peças chaves des-
se processo, a superlotação dos cárceres,
a atuação da polícia militar e a tortura.
um grande consenso sobre o fato
de que o tráco seja a causa do crescimen-
70
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
to da violência no país, e uma ideia difundi-
da entre quem trabalha nesses contextos é
de que é preciso “disputar os meninos com
o tráco”. Frente a essa situação, as res-
postas do poder público têm sido combinar
políticas de repressão (por meio da polícia
e do exército) com políticas de controle que
têm como objetivo declarado “ocupar o tem-
po ocioso” dos jovens, mantê-los ocupados
por meio de atividades esportivas, culturais
e de lazer para que evitem se envolver em
atividades criminosas (nesse sentido, as
atividades esportivas parecem ser até mais
ecazes, que, além de ocupar o tempo,
cansam, como disse publicamente a então
prefeita Marta Suplicy, no seminário inter-
nacional organizado no âmbito do “Projeto
Juventude” pelo Instituto Cidadania).
Mas, no mesmo programa, à per-
gunta de um jornalista “você quer ser uma
bandeira contra o tráco”, MV Bill responde
“não”. Para ele, todos merecem uma chan-
ce, mas para alguns uma chance na
vida entrando no crime: “o mesmo produto
que faz a tragédia de uma família faz a sal-
vação de outra”. Assim, a forma de rappers
como MV Bill e Mano Brown falar sobre os
tracantes incomoda muito, pois eles não
identicam nos tracantes o “mal” que enve-
nena a sociedade brasileira. Os tracantes
são, para esses jovens que vivem nas peri-
ferias, nas favelas e nas “ocupações”, seus
colegas, vizinhos, companheiros de vida.
Voltamos às pesquisas desenvol-
vidas pelo grupo de pesquisadores coor-
denado pela professora Vera Telles. Em
suas análises, o mundo da “criminalidade”
é retratado de forma muito viva como com-
pletamente imbricado ao mundo da vida
“normal”: chefes do tráco que são, no
bairro onde moram, pais de família e mora-
dores exemplares, que operam cotidiana-
mente para melhorar as condições de vida
da população local; e também mães de
família que, para chegar ao nal do mês,
complementam a renda obtida em ocupa-
ções honestas com a venda de produtos
ilícitos (não somente drogas, mas também
CDs e DVDs piratas e outros produtos do
vasto mercado “informal”) (Telles ; Caba-
nes, 2006). As pesquisas mostram que as
ditas “gambiarras”, ou seja, as saídas ile-
gais para suprir a falta de luz ou de água
nas moradias das favelas são a normalida-
de nessas regiões da cidade (fazem parte
do conhecido “jeitinho brasileiro”); e tam-
bém que a distribuição de cestas básicas
por parte dos programas governamentais
ou dos políticos locais está na mão, muitas
vezes, dos que controlam o tráco no bair-
ro; que o mercado dos perueiros também
alimenta o vasto mercado das ilegalidades,
assim como a venda de produtos da moda
falsicados (tênis da Nike etc.), que ves-
tem a maioria dos moradores da periferia.
Olhando para essas realidades, ca mais
difícil separar o joio do trigo, os “bons” e os
“maus”, os honestos e os criminosos.
O estudo de Vera Telles se propõe
“identicar e compreender a porosidade
entre o legal e o ilegal, as fronteiras borra-
das entre o trabalho, expediente de sobre-
vivência e práticas ilícitas” (Telles ; Veloso,
2007, p. 191). A conclusão é de que
não se trata propriamente de ilegalida-
des, mas de uma crescente e ampliada
zona de indiferenciação entre o legal e
o ilegal, entre o lícito e o ilícito, que pas-
sa por todo o entramado da vida social,
pelas práticas e suas mediações, pelos
circuitos da vida urbana e as conexões
que se fazem nas dobraduras da vida
social, projetando uma inquietante linha
de sombra no conjunto da vida urbana
e suas formas políticas. (idem, p. 186)
Nesse quadro, os autores propõem
um deslocamento do ponto da crítica: se
as microcenas dessas formas de “sobre-
viver na adversidade”, dessas fronteiras
borradas, interessam,
é porque colocam em foco um mundo
social que não cabe nas estereotipias
71
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
que vêm acionando os dispositivos de
exceção: de um lado as guras fantas-
máticas do Crime Organizado, suposto
poder paralelo, versão nativa do ‘império
do mal’ contra o qual só resta a estraté-
gia da guerra (e extermínio); de outro, na
sua face ‘edicante’, a cção de popu-
lações encapsuladas nas ditas ‘comuni-
dades’, subjugadas ou aterrorizadas, no
mínimo ameaçadas, mas destinadas à
remissão pela intervenção salvadora de
programas sociais. (idem, p. 187)
De fato, na vida concreta do dia a
dia, as fronteiras entre o legal e o ilegal se
dissolvem. Como diz Ceccon,
formalmente, as relações entre Estado
e sociedade são reguladas pelo direito,
isto é, as leis que emanam do Estado
organizam as relações dos que vivem
na sociedade. Na sociedade brasileira,
não é bem assim. Aqui, a maioria das
pessoas vive à margem do Estado. Me-
tade de nossa população se encontra
economicamente na informalidade e,
socialmente, na ilegalidade. Mais ainda:
uma parte signicativa dos que vivem
na sociedade formal e legal precisam,
para conseguir manter-se nessa situa-
ção, recorrer aos expedientes criados
e praticados pelos que vivem ilegal ou
informalmente. No Rio e em São Pau-
lo, por exemplo, 20% da população vive
em favelas (onde o Estado praticamente
não entra) e um número, que pode che-
gar a milhões, não possui o título da mo-
radia em que habita. (Ceccon, 2008, 25)
À luz dessas análises, podemos
entender melhor as colocações de per-
sonagens como Mano Brown ou MV Bill
quando eles se recusam a condenar os
tracantes. Ao invés, condenam de ma-
neira incisiva (sobretudo no caso de Mano
Brown e das músicas dos Racionais MCs)
as formas de intervenção do poder públi-
co; denunciam a violência policial e “o ex-
termínio dos jovens da periferia”.
No limiar entre os municípios de Olinda
e Recife, no bairro de Peixinhos (na épo-
ca, um dos mais violentos da cidade),
em 1997, alguns grupos de jovens ocu-
param um matadouro abandonado e co-
meçaram a realizar nesse espaço even-
tos culturais, shows de música, saraus
de poesias, exibição de vídeos indepen-
dentes. O local foi então rebatizado de
“Nascedouro” e muitos grupos culturais
e sociais de Peixinhos zeram ali suas
sedes. Até um grupo de “terceira idade”
convivia no mesmo espaço. Os jovens
pegaram um carro de mão e recolheram
livros na vizinhança para criar uma “bi-
blioteca multicultural”, que foi colocada
à disposição dos moradores e, principal-
mente, das crianças do bairro. Mas um
dia chegaram os técnicos do governo do
Estado e das duas prefeituras, e resolve-
ram fazer naquele lugar um “complexo”
cultural, tecnológico e social. Reestrutu-
raram e restauraram parte dos locais. E
desalojaram os grupos que tinham cria-
do aquele centro cultural na periferia.
Mais do que “banalização da violên-
cia” nos relatos dos jovens há, como diz
Vera Telles, “um realismo de quem se ocu-
pa com as coisas da vida, ou está na roda
da vida” (Telles ; Cabanes, 2006, p. 158).
Nada de denúncia e condenação moral,
tampouco resignação. Ou seja, algo bas-
tante distinto dos discursos “socialmente
aceitos”. É esse realismo, talvez, que in-
comoda tanto no discurso de Mano Bro-
wn. Bastante diferente do que fala outro
rapper, MV Bill, que elaborou um discurso
“sobre” a violência procurando dar expli-
cações e oferecer soluções.
Apesar de declarar querer incentivar
o “protagonismo juvenil”, programas gover-
namentais visam controlar e disciplinar a
população jovem: identicando, separando
e “cooptando” as “lideranças”; tutelando e
direcionando sua participação política; ofe-
recendo cursos de qualicação prossional
de curta duração e péssima qualidade, que
72
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
não permitem adquirir as competências ne-
cessárias à inserção no mercado de traba-
lho; obrigando-os a aumentar seus níveis de
escolarização através do ingresso em facul-
dades particulares onde ao preço de muitos
esforços poderão adquirir um diploma muito
pouco reconhecido no mercado de traba-
lho; expulsando a maioria do acesso a uma
escola de qualidade; criminalizando ou sim-
plesmente, não oferecendo nenhum apoio
aos grupos juvenis autônomos. A mídia é
responsável pela difusão da representação
dos jovens como “problema social”, consu-
mistas, apáticos e imediatistas. Ao mesmo
tempo, aumentam as barreiras que impe-
dem a circulação na cidade: carência de
transportes públicos, aumento do preço das
passagens, falta de acesso a lugares públi-
cos, discriminações motivadas pela forma
de se apresentar, pela estética, pela cor ou,
simplesmente, pelo local de moradia.
Alguns números da pesquisa “Perl
da Juventude Brasileira”, desenvolvida em
2003 pela Criterium Assessoria a pedido
do Instituto Cidadania, são signicativos
em relação as barreiras que impedem o
acesso a bens culturais: 39% dos entrevis-
tados nunca foram ao cinema; 36% nun-
ca foram a um show de música brasilei-
ra; 59% nunca estiveram em um show de
música rock, pop, funk etc.; 52% não co-
nhecem uma biblioteca; 62% nunca assis-
tiram a uma peça de teatro e, por incrível
que pareça no “país do futebol”, 52% dos
entrevistados nunca assistiram a um jogo
de futebol em um estádio (Cfr. Abramo ;
Branco, 2005, tab. 85). A discriminação
de gênero é bastante signicativa nesse
âmbito: as mulheres têm menos acesso
às atividades culturais e de lazer fora de
casa em comparação com os homens.
As opções principais de ocupação
do tempo livre são, portanto, ver televisão
e ir ao shopping. Tudo indica que isso não
se dá por escolha, mas por falta de outras
opções, já que, como vimos, as opções de
lazer são escassas, em especial nas peri-
ferias. Os shopping centers são vistos pe-
las famílias como espaços seguros, onde
os jovens podem car razoavelmente a
salvo da violência. Essa é a tônica que, em
geral, os adultos imprimem ao que consi-
deram o uso saudável do tempo livre pe-
los jovens: preponderantemente negativa
e defensiva. Sob esse ponto de vista, ver
televisão seria um dos modos mais “se-
guros” de os jovens usarem o tempo livre
(mais do que navegar pela internet, com os
riscos que a interatividade implica).
Os chamados “esportes radicais”
6
têm
um signicado que interessa bastante aos jo-
vens: sua vivência em termos de experimen-
tação, ensaio dos limites, risco. “O risco as-
sume forma e relevância particulares para a
fase juvenil, na medida em que representa a
‘primeira vez’ de um processo de construção,
experimentação e armação da própria iden-
tidade. (...) Não se pode, portanto, reduzir a
dimensão do risco a uma questão de tipo psi-
copatológico” (La Mendola, 2005, p. 79)
A possibilidade de provar a destreza
física, experimentar os limites físicos e emo-
cionais e colocar em jogo o corpo são fatores
signicativos na vida dos jovens, que enri-
quecem seus percursos de busca e expe-
rimentação. Mas o fato de praticar esportes
que não são socialmente reconhecidos im-
plica não ter ao alcance espaços adequados
para serem praticados; e também, muitas
vezes, na proibição da prática, como fez Jâ-
nio Quadros quando foi prefeito de São Pau-
lo, em 1988, ou como aconteceu na cidade
de Itu (Estado de São Paulo) dez anos mais
tarde, onde foi proibida a prática do skate.
Mais uma demonstração da diculdade de
reconhecer o direito dos jovens a ocupar o
espaço público de forma autônoma.
O Programa Esporte no Mangue, im-
plementado pela Prefeitura do Recife duran-
te a primeira gestão do Prefeito João Paulo
(2000-2004) foi pensado para atingir espe-
cicamente os jovens mais excluídos entre
os praticantes de esportes, aqueles contra
73
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
os quais é mais forte o preconceito social,
ou seja, os que praticam esportes radicais:
skates, bike-cross, patins, capoeira. Relata
o gestor do programa: “Uma das primeiras
demandas que a gente recebeu aqui foi a
dos skatistas, que são jovens da periferia
da cidade que traziam para nós deman-
das tanto do tipo especíco da prática do
esporte como também relativas à violência
que eles viviam, uma violência do Estado.
Perseguição pela polícia, pela desobediên-
cia civil que ele comete, perseguição pela
própria guarda municipal (...) e uma grande
discriminação da população, porque os ska-
tistas apresentam uma estética muito dife-
renciada. um preconceito muito grande
de que todo skatista usa droga, é tracante”
(apud Tommasi, 2007b, p. 207). Os jovens
praticantes do skate relatam vários casos
de discriminação, em particular dentro das
escolas, onde estão proibidos de praticar o
esporte para não “arranhar as paredes”.
Uma das ações do programa foi
estimular os jovens a participarem das ro-
dadas do “Orçamento Participativo” nos
bairros, para colocar suas reivindicações
nas listas de prioridades a serem votadas
pela comunidade local. Assim zeram os
skatistas, se organizaram e participaram.
O problema foi que, evidentemente, suas
reivindicações quanto à construção de pis-
tas de skates nos bairros nunca consegui-
ram ganhar na disputa pela denição das
prioridades; claro, o calçamento de uma
rua e a construção de uma rede de esgotos
sempre são mais importantes do que uma
pista de skate, e os jovens não conseguem
armar seu ponto de vista diante dos adul-
tos da comunidade. Assim, as tentativas de
lutar para reivindicar seu direito a praticar o
esporte de preferência nos espaços de par-
ticipação instituídos foram bastante frustra-
das, o que concorreu para aprofundar o
sentimento de estranhamento com relação
ao poder público e à sociedade em geral.
Se esses são os problemas com
os quais se deparam os praticantes dos
esportes radicais, não menores são os
obstáculos que encontram, nas periferias
de algumas metrópoles do país, os prati-
cantes de esportes mais legitimados e re-
conhecidos socialmente, como o futebol,
o esporte mais praticado no Brasil. O so-
ciólogo Daniel Veloso Hirata relata as di-
culdades enfrentadas pelos praticantes do
futebol de várzea nas periferias paulistas
7
:
Os campos estão desaparecendo,
porque os terrenos são ocupados por
invasões de cidadãos em busca de
um espaço para construir suas pre-
cárias moradias ou são objeto da es-
peculação imobiliária praticada pelas
grandes corporações. Além disso, os
campeonatos são agenciados pelos
tracantes locais, e tornam-se objeto
de disputas entre grupos rivais, que
muitas vezes acabam em mortes por
arma de fogo. (Hirata, 2006)
Desemprego, especulação imobi-
liária e violência estão acabando com a
prática do futebol nas periferias
8
.
Mas voltamos aos chamados “com-
portamentos de risco” geralmente associa-
dos à juventude. O consumo de drogas é
com certeza o primeiro deles, sempre pre-
sente nas preocupações e nas condenações
sobre o universo juvenil. Estados alterados
de consciência provocam, incomodam, por-
que questionam um dos fundamentos do
racionalismo ocidental: a separação mente-
-corpo, e a supremacia do primeiro sobre o
segundo. Representam uma fuga das obri-
gações da vida cotidiana, irresponsabilida-
de, busca improdutiva de emoções fortes.
O consumo de drogas pode ser
considerado, também, como uma forma de
habitar a cidade, principalmente durante
a noite. Um texto instigante do sociólogo
italiano Salvatore La Mendola percorre a
história do tema do risco, tema central da
cultura da modernidade. A modernidade,
lembra ele, começa convencionalmente
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
com a chegada de Colombo na América. “A
modernidade nasce, assim, sob o signo do
risco: por uma representação de como pos-
sa ser a terra e pela disposição em alocar
recursos e pôr em jogo a própria existência
para demonstrar essa idéia”. Risco, nesse
sentido, signica “interpretação do enfren-
tamento do perigo na persecução dos obje-
tivos (...) São os princípios do racionalismo
individualista e utilitarista que devem guiar
o agente que assume a responsabilidade
pelo risco” (La Mendola, 2005).
Assumir riscos e perigos é, portanto,
condição imanente da vida individual e co-
letiva. Assumir o risco de uma determinada
conduta, nesse sentido, signica assumir
responsabilidades, utilizar a própria capa-
cidade de julgamento para calcular as con-
seqüências de uma determinada ação.
Enquanto o risco que se assume em
determinadas situações, como nos espor-
tes ou nos empreendimentos econômicos,
é socialmente legitimado e valorizado, em
outras situações, é conotado de forma ne-
gativa. Diz La Mendola “os meios de comu-
nicação de massa estão cheios de notícias
que se referem a riscos sobre os quais nin-
guém pretende identicar a dimensão da
responsabilidade” (idem, p. 71). Ou seja,
quando se retira a dimensão da respon-
sabilidade, quando não estão disponíveis
“redes de proteção” para acompanhar os
comportamentos de risco, é possível que
esses assumam caráter auto ou heterodes-
trutivo. No uso das drogas e, em particu-
lar, no abuso, estão também em jogo ou-
tros signicados. A civilização ocidental se
fundamenta no controle das emoções e da
agressividade, na limitação dos espaços
da dimensão corporal, a favor da prima-
zia da razão. As emoções podem ser ex-
pressas somente em lugares e tempos cir-
cunscritos, geralmente em âmbito privado.
O consumo de álcool é permitido, nesses
contextos, enquanto facilita o contato com
os outros, o abandono da rigidez requerida
para o controle das emoções.
Nesse contexto, o consumo de dro-
gas lícitas e ilícitas por parte dos jovens
pode ser lido como a expressão de uma
vontade de experimentar diferentes esta-
dos de consciência, de questionar os mo-
delos vigentes de controle das emoções, de
ampliar o espaço de vivência do corpo e da
comunicação não-verbal. “Trata-se de uma
experimentação das normas sociais, das
regras de respeito e de boa conduta; uma
consequência do fato de não serem ainda
obrigados a pôr em ação a suspensão da
dúvida que é a condição típica requerida do
adulto na época moderna” (idem, p. 80).
Bibliograa:
ABRAMO, H. W. Cenas juvenis: punk e darks no
espetáculo urbano, São Paulo : ed. Scritta, 1994.
ABRAMO, H.W. ; BRANCO, P.P.M. (orgs.) Retratos
da Juventude Brasileira: análises de uma pesquisa
nacional, São Paulo: Instituto Cidadania/Ed. Fun-
dação Perseu Abramo, 2005.
BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência, Rio de
Janeiro: Zahar, 1999.
CAMARANO, M. A. (org.). Transição para a vida adul-
ta, ou vida adulta em transição? Brasilia: IPEA, 2006.
CARRANO, P. Os jovens e a cidade: identidades e
práticas culturais em Angra de tantos reis e rainhas.
Rio de Janeiro: Reluma Dumaré/FAPERJ, 2002.
CARRANO, P. ; MARTINS, C. H. Culturas e ex-
pressividades juvenis: uma janela para a escola.
Boletim Salto para o futuro (24), MEC/TVE, 2007.
CECCON, C. Violência na sociedade brasileira. In:
Conito, modo de transformar. São Paulo: CECIP/
Imprensa Ocial, 2009.
DAYRELL, J. A música entra em cena: o rap e o
funk na socialização da juventude em Belo Hori-
zonte, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
GILROY, P. O Atlântico Negro, São Paulo: Editora
34, 2001.
75
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
HIRATA, D. V. No meio do campo: o que está em
jogo no futebol da várzea? In: TELLES, V. ; CABA-
NES, R. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas
e seus territórios. São Paulo: Humanitas, 2006.
LA MENDOLA, S. O sentido do risco. Tempo so-
cial, 17 (2), 2005.
LEITE, E. Faça você mesmo! www.diplo.uol.com.
br , 2008.
MAGNANI, J. G. C. ; SOUZA, B. M. (org.). Jovens na
metrópole : etnograas de ciruitos de lazer, encontro
e sociabilidade. São Paulo: Terceiro Nome, 2007.
MELUCCI, A. L’invenzione del presente : movi-
menti sociali nelle società complesse. 2° edizione.
Bologna: Il Mulino, 1991.
_______. A. Parole Chiave : per un nuovo lessico
delle scienze sociali, Roma : Carocci, 2000.
HERSCHMANN, M. O funk e o hip hop invadem a
cena. Rio De Janeiro: Rocco, 1997.
OLIVEIRA, F. Política numa era de indeterminação
: opacidade e reencantamento, in: OLIVEIRA, F. ;
RIZEK, C. S. (org.). A era da indeterminação, São
Paulo : Boitempo, 2007.
TELLES, V. ; CABANES R. Nas tramas da cidade:
trajetórias urbanas e seus territorios. São Paulo:
Humanitas, 2006.
TELLES, V. ; HIRATA, D. V. Cidade e práticas urba-
nas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal
e o ilicito. In: Estudos Avançados ,21 (61), 2007.
TOMMASI, L. Jovens brasileiros: espaços e tem-
pos de participação política. Iin: Boletim Salto para
o futuro (24), MEC/TVE, 2007a.
TOMMASI, L. A mobilização dos jovens na cidade:
produção de cultura e direito ao lazer. In: SPOSI-
TO, M. P. (org.). Espaços públicos e tempos juve-
nis. São Paulo: Global, 2007b.
1
Professora do Departamento de Sociologia e do pro-
grama de pós-graduação em Cultura e Territorialidades
da Universidade Federal Fluminense.
2
Por uma análise da centralidade da experimentação
nas vivências juvenis reenvio a La Mendola (1999).
3
A ONG Ação Educativa publica todo mês em São Pau-
lo um “Mapa Cultural da Periferia”, divulgando os even-
tos que acontecem nas periferias paulistas em quatro
seções: literatura, rodas de samba, hip-hop e vídeos.
4
Entrevista exibida no dia 25/04/2005.
5
Entrevista no Programa Roda Viva da TV Cultura, exi-
bida no dia 08/10/2007.
6
“Os esportes radicais fazem parte de um crescente e
rentável mercado esportivo mundial, impulsionado pelas
estratégias de marketing de empresas ávidas por comu-
nicar/vender ao público jovem. (...) As redes de rádio e
televisão criaram programas especicamente destina-
dos a esportes como o surfe, o skate, skysurf, o bungee
jump, o rafting, o canyoning, o rapel e outras modalida-
des tradicionais ou criadas no impulso mercantil da novi-
dade.” (Carrano, 2002, p. 119)
7
A Copa Kaiser, disputada no circuito popular, envolve 170
times sendo, segundo os organizadores, o maior campe-
onato de futebol amador do mundo (Hirata, 2006, p. 253)
8
Daniel Hirata relata também como “lealdade, humilda-
de e procedimento” são as palavras-chave do código de
conduta que todos reconhecem e respeitam nas perife-
rias paulistas, às quais fazem referência às canções dos
grupos de rap quando mencionam o que eles chamam
de “atitude” (idem, p. 275-278).
Contato:
- livia.detommasi@gmail.com
76
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O lugar da cultura. A cultura do lugar
El lugar de la cultura. La cultura del lugar
The place of the the culture. The culture of the place
Luiz Augusto F. Rodrigues
1
Resumo:
Este artigo foca a cultura em sua dimensão contemporânea, explorando
a noção de diversidade cultural e contrapondo-a à persistência de
certa padronização de valores. Discute referências ao planejamento
urbano estratégico que tende a produzir o esvaziamento simbólico dos
lugares. Nesta perspectiva, discute noções como lugar antropológico
X lugar cenográco/espetacular. Busca focar a questão do território
em sua dimensão antropológica (das práticas), em sua dimensão
geográca (espaço apropriado e subjetivado) e em sua dimensão
urbanística (a produção do espaço X recepção e apropriação), com o
intuito de discutir as correlações cultura / identidade / sociabilidade /
apropriação do território.
Palavras chave:
Cultura e imaginário
Apropriação do espaço
Lugar antropológico
77
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo se centra en la cultura en su dimensión contemporánea,
explorando la noción de diversidad cultural y oponiéndola a la
persistencia de cierta estandarización de valores. Discute referencias al
planeamiento urbano estratégico que tiende a producir el vaciamiento
simbólico de los lugares. En esta perspectiva, discute temáticas como
lugar antropológico X lugar escenográco/espectacular. Busca enfocar
la cuestión del territorio en su dimensión antropológica (de las prácticas),
en su dimensión geográca (espacio apropiado y subjetivado) y en
su dimensión urbanística (la producción del espacio X recepción y
apropiación), con la intención de discutir las correlaciones cultura /
identidad / sociabilidad / apropiación del territorio.
Abstract:
This article focuses on the culture in its contemporary dimension,
exploring the notion of cultural diversity and opposing it to the
persistence of a certain standardization of values. It discusses
references to the strategic urban planning that tends to produce the
symbolic emptying of the places. In this perspective, it discusses notions
such as anthropological place X scenographic/spectacular place. It
aims to focus on the question of the territory in its anthropological
dimension (the practices), in its geographical dimension (appropriated
and subjective space) and in its urbanistic dimension (the production
of the space X reception and appropriation), intending to discuss the
correlations culture / identity / sociability / appropriation of the territory.
Palabras clave:
Cultura y imaginario
Apropiación del espacio
Lugar antropológico
Keywords:
Culture and imaginary
Appropriation of space
Anthropological place
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O lugar da cultura. A cultura do lugar
Até pouco tempo atrás a cultura
atendeu a modos ideológicos que procura-
vam reproduzir ideias de subalternidade e
atraso. Os ideais iluministas, por exemplo,
perpetuaram tais entendimentos: cultura
letrada, cultura superior, erudição cultural,
cultura como reexo de condições materiais
ligadas ao conhecimento cientíco e ao do-
mínio de determinadas linguagens artísti-
cas. E isso até pouco tempo atrás mesmo.
A “superação” (??) dessa noção de cultura
e sua substituição pela valorização da di-
versidade cultural dos povos e de suas prá-
ticas antropológicas é fato recente. Data,
por exemplo, de 1995 as preocupações da
UNESCO com a valorização da diversidade
de modos culturais presentes no mundo.
2
Essa nova perspectiva abre espaço
para a percepção e reconhecimento das
práticas culturais como processos deni-
dores das subjetividades dos indivíduos e
grupos. Imagem e reexo. Forma e con-
teúdo. Expressão simbólica e referência
imaginária. Como aponta Slavoj Zizek
(1996, p. 323):
A ideologia [...] é uma construção de
fantasia que serve de esteio à nossa
própria “realidade”: uma “ilusão” que
estrutura nossas relações sociais re-
ais e efetivas e que, com isso, mas-
cara um insuportável núcleo real im-
possível [...]. A função da ideologia
não é oferecer-nos uma via de escape
de nossa realidade, mas oferecer-nos
a própria realidade social como uma
fuga de algum núcleo real traumático.
Temos, por um lado, uma vertente
mundial de reconhecimento da diferença;
de outro lado assistimos ainda a uma cres-
cente padronização de gostos e saberes.
Mesmo que travestidas de singularidades.
É um paradoxo!
Constatei, em pesquisas sobre a
produção do espaço universitário no Bra-
sil ao longo do século XX, a idealização
e consolidação de um modelo urbanísti-
co único a nortear a produção de nossas
universidades; e isso com possibilidades
mínimas de ruptura (ao menos até ns do
século, mas creio que até hoje). Ou seja,
uma tensão entre as possibilidades de
mudança e diversidade e a cristalização
de valores que as emperram.
A modernidade, nesses tempos
de globalização, transforma os preceitos
fundamentais da História e de forma pa-
radoxal. Transforma o tempo em falta de
tempo e, por outro lado, altera as relações
temporais. Transforma o espaço em falta
de espaço e, por outro, cria relações tran-
sespaciais. Cria a perplexidade do novo,
que a um tempo apóia-se e descarta a
tradição. (RODRIGUES, 2001, p. 202)
Como entender processos huma-
nos que apontam a valorização da cultura
e sua diversidade convivendo com gran-
des intervenções urbanas e seus plane-
jamentos estratégicos que padronizam
os espaços? Como as pessoas podem se
sentir estimuladas e receptivas, ou mes-
mo se apropriarem dos espaços
3
se os
mesmos se mostram indiferentes e pouco
sujeitos às reais apropriações?
Discutindo cultura e sua diversidade de
expressões:
Tento aqui algumas associações
entre a identidade cultural do sujeito e a
relação com o outro, entre a subjetivida-
de e a ética. Ou melhor, identidade e éti-
ca creio serem faces da mesma moeda.
A identidade se constrói na relação com
o outro, e ética pode ser entendida como
arte dos relacionamentos.
A noção de Cultura aponta a teia
de signicações que permeiam as práticas
79
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
humanas. Não apenas as práticas, mas as
percepções e sentimentos. Pode-se enten-
der os diversos modos culturais como pro-
cessos de sedimentação de memórias, a
longo ou médio prazo, e que operam com
as diferenças presentes nos sujeitos e gru-
pos. Cultura e mediação; cultura e política.
A implementação de ações no campo da
cultura deve ser mediada pelos diversos
agentes sociais, no entanto que se res-
saltar que a história da modernidade impin-
giu certa diculdade para que essa repre-
sentação social aconteça plenamente, pois
como apontou o pensador português Boa-
ventura de Souza Santos (1996) assiste-
-se, hoje, a uma hiperpolitização estatal e
uma despolitização da vida cotidiana. Não
se deveria, portanto, dissociar a ação cultu-
ral de noções ligadas à cidadania, à justiça
social, à armação de sociedade civil e sua
governança, ou mesmo à ética.
Certas concepções de desenvolvi-
mento e de cultura ocupam lugares cada vez
mais privilegiados nas tentativas de se com-
preender e estimular o comportamento ético
da humanidade. Cultura deve ser entendida
como elemento de coesão social e de for-
talecimento das noções de pertencimento
e de identidade; para além das dimensões
institucionais dadas ao campo da Cultura, e
para além das dimensões que articulam a
Cultura com as representações/manifesta-
ções sociais, busca-se entendê-la enquanto
formadora de subjetividades ao considerar
a produção material e imaterial dos homens
e grupos a partir de seus valores, comporta-
mentos, sentimentos e desejos.
A Ética, por sua vez, deve ser en-
tendida por sua vinculação ao pleno exer-
cício do Eu em sua busca de felicidade e
em consonância com a percepção de que
esta plenitude, necessariamente, incorpora
o Outro; ética como elemento estruturante
de relações sociais baseadas nos níveis
de conança e coesão social interna aos
grupos e destes com outros grupos e ins-
tituições. Ética como capital social, como a
arte do conviver, com liberdade e respon-
sabilidade para deliberar em conjunto com
os outros sujeitos a nossa melhor forma de
bem viver. A ação cultural ética envolve a
circulação de ideias e a (re)formulação de
práticas. Pressupõe reconhecer o outro e os
comportamentos, as intenções, valores, co-
nhecimentos que compõem o meio social, e
a capacidade de interagir em outros meios.
A ideia de relações éticas e dialó-
gicas deve nortear o âmbito das diversas
relações, incluindo-se as relações públi-
co/privado, portanto. As diversas possibi-
lidades de interagirmos com/nos espaços
públicos, as várias possibilidades de nos
apropriarmos dos lugares.
Modos Culturais e Arte como necessi-
dades inerentes ao Homem:
Parto da idéia de que estamos
numa área, num campo que entende as
expressões artísticas e as práticas cultu-
rais (materiais e imateriais) como condi-
ções inerentes à natureza humana.
Faço eco às reexões de Mário de
Andrade (ANDRADE; ALVARENGA, 1983)
quando aponta que o ser humano é movi-
do por um somatório de três necessidades:
expressão + comunicação + comoção. O
sentido apontado é o de que somos mo-
vidos por necessidades que nos são in-
trínsecas e inerentes. A experiência vivida
nos move na direção da ação/expressão,
esta expressão precisa sempre assumir
signicação/sentido, e muitas vezes, e por
necessidade mesmo, somos movidos pela
necessidade de sensibilização e comoção.
Vejamos um breve exemplo. O desenvol-
vimento humano se deu a partir de uma
necessidade primeira de expressão que
nos levou a emitir sons, ou a nos proteger
das intempéries, ou a talhar um pedaço de
madeira ou pedra. Em todas estas expres-
sões, a carga expressiva em si necessitou
assumir sentido, precisou ser entendida e
80
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ter uma signicação. O som virou fala, nos
protegemos com roupas e abrigos, o mate-
rial talhado virou uma lança, enfeite ou pote
para cozinhar alimentos. Mesmo supridas
estas necessidades, o homem foi movido
(e sempre somos) por uma necessidade de
ultrapassar o meramente útil ou simbólico,
e a se transformar e transformar o mundo
a seu redor. O som virou também música;
abrigos viraram belas arquiteturas; utensí-
lios foram adornados com entalhes e muita
expressão “não-utilitária” sempre acompa-
nhou a produção humana.
A Cultura é entendida como expres-
são comunicativa/simbólica dos indivíduos
e grupos, mas nos remete, também, à esfe-
ra do imaginário, do desejo. Essa dimensão
maior nos coloca no campo da construção
da subjetividade, e, neste, no da estreita cor-
relação do eu com o outro (LACAN, 1978;
1985). Essa dimensão identitária nos reme-
te, ainda, à noção de Ética. Ética entendida
não como conceito de moral (este denido
historicamente), mas enquanto busca de
realização pessoal com e a partir do Outro.
Ética como busca de felicidade, alcançada
na dimensão da incorporação dos demais e
na busca do bem comum. O sentido a ser
reforçado aproxima as práticas culturais da
ação ética e coletiva. Cultura como promo-
ção de Sociabilidade. Cultura como fortale-
cimento da Identidade e da ideia de perten-
cimento. Ao lugar. Ao grupo.
A gestão cultural e o território:
O Brasil teve ao longo da constitui-
ção de sua rede de cidades estratégias de
ocupação que marcam alguns ciclos. Em-
bora se tenham alterado drasticamente as
lógicas de ocupação territorial, muitas de
nossas cidades ainda “guardam” traços de
seus riscos iniciais.
As cidades fundadas no século XVI,
e mesmo no XVII, foram basicamente de
ocupação litorânea e voltadas à defesa do
território colonial português. Assentadas
em locais altos, às vezes com muralhas,
contendo malhas internas irregulares e
com pouca vida social. Foi assim no Rio de
Janeiro, em Niterói, em Olinda, em Salva-
dor, entre muitas outras. Com a ascensão
comercial do ciclo açucareiro as principais
cidades portuárias prosperam, dinamiza-
ram suas estruturas sociais e cresceram
em direção aos portos.
Ainda no século XVII, mas principal-
mente no século seguinte iniciou-se a ocu-
pação interior em busca do ouro. São Paulo
foi simples ponto de passagem, vindo a o-
rescer algumas cidades mineiras e goianas.
No século XIX vieram explosões econômi-
cas importantes. A borracha fez enriquecer
certas regiões do norte, e o ciclo do café de-
nitivamente fez explodir uma larga rede de
cidades, principalmente nas regiões sul-u-
minense e paulista. Trouxe com ele a moder-
nidade das redes ferroviárias e dos serviços
urbanos de eletricação e saneamento.
Foi, no entanto, ao longo do século
XX que a modernização realmente impac-
tou nossas realidades urbanas com gran-
des intervenções de renovação dos antigos
tecidos coloniais, inicialmente no Rio de Ja-
neiro e em São Paulo, e com o planejamen-
to de cidades modernas: Goiânia, Brasília e
Palmas expressam três desses momentos.
Nossa composição étnica por sua
vez expressa, também, momentos cícli-
cos. Aos índios, portugueses e africanos
dos primeiros séculos somaram-se impor-
tantes massas imigrantes, sobretudo eu-
ropéias, que cruzaram os mares em busca
de oportunidades de inclusão que a indus-
trialização vigente no “primeiro mundo”
não lhes propiciou.
Que marcas territoriais e étnicas ainda
se apresentam em nossas cidades? De que
maneira nossos traços culturais regionais se
sobrepõem à homogeneização percebida
nos tempos atuais? Marcados por forte com-
81
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
posição social excluída e sobrepujada, como
estamos fortalecendo a inclusão?
Os dados censitários são bem pou-
co animadores. Cientistas sociais falam de
abismo social. Especialistas estrangeiros
adjetivam nosso nome brasilianização -
como expressão de pobreza. Ainda pode-
mos constatar bolsões de trabalho escravo
no Brasil, isso sem falar dos altos índices de
violência urbana e de prostituição infantil.
Diante desse quadro, como estabe-
lecer e fortalecer as redes sociais e as so-
ciabilidades? Como estimular e incorporar
a governança e o capital social como es-
tratégias para nossas ações? Como pro-
mover a ética como a estética de vida dos
indivíduos? São desaos que devemos
nos colocar constantemente...
Busquei correlacionar identidade,
cultura e ética, ou seja, o sujeito se reco-
nhece e se estrutura a partir de seus da-
dos culturais e de sua relação com o outro.
Necessariamente haverá construção de
identidade se o outro estiver em estreita in-
teração com cada eu. Tal questão aponta
para a necessidade de uma ação política
presente nos sujeitos. Uma pré-disposição
a incorporar o outro quer dizer a possibili-
dade das interações/tensões inerentes à
vida pública e à participação em sociedade.
Participação é um conceito que pode ser
manipulado ideologicamente. Governos de
diferentes matrizes políticas e coloridos ide-
ológicos desejam a participação em seus
programas. Organizações e empresas bus-
cam a participação de clientes e usuários e/
ou de seus empregados. duas tendên-
cias de estabelecimento de canais de par-
ticipação, ambas restritivas em sua dimen-
são. É comum a implementação de formas
de participação segmentadas e comparti-
mentadas em setores: saúde, educação,
cultura, orçamento público etc. Outra forma
agrega os grupos por territórios: associa-
ções de bairro, comunidades especícas,
enm: isola os grupos locais um dos outros.
O que estou apontando é a necessidade
de participação irrestrita e mesmo inicial/
original. A necessidade dos indivíduos de
viver coletivamente; a interação necessária
à construção da vida pública.
Produção do espaço urbano - algumas
questões:
O olhar percorre as ruas como se fos-
sem páginas escritas: a cidade diz
tudo o que você deve pensar, faz você
repetir o discurso, e, enquanto você
acredita estar visitando Tâmara, não
faz nada além de registrar os nomes
com os quais ela dene a si própria
e todas as suas partes. (CALVINO,
1990, p. 18)
As reexões aqui desenvolvidas
buscam explorar posicionamentos nortea-
dores de intervenções urbanas que tomem
como base o resgate do espaço enquan-
to local de convivência, entendendo que
“revitalizar” pressupõe reviver, garantir a
plena “vida” do lugar: ou seja, sua plena
possibilidade de usos compartilhados pe-
los mais diversos agentes sociais.
Parte-se do pressuposto que o es-
paço urbano pleno é aquele que possibilita
uma apropriação múltipla que o consolide
enquanto “lugar”, em direta oposição ao
“não-lugar”. Certeau (1998) aponta que
lugar é espaço praticado, pois ligado às
pessoas. Augé (1994) cunha a expressão
não-lugar, designando “duas realidades
complementares, porém distintas: espa-
ços constituídos em relação a certos ns
(transporte, trânsito, comércio, lazer) e a
relação que os indivíduos mantém com
esses espaços”. Espaços marcados pela
efemeridade, por apropriações rarefeitas e
momentâneas. O autor considera que a di-
mensão do não-lugar está contida em qual-
quer lugar, fato que leva a que o próprio re-
sidente possa se sentir um estrangeiro em
sua própria terra, no seu próprio território.
82
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Aponte-se, também, as reexões
de Yázigi (2001) na direção de se agrar a
“alma do lugar”. O lugar incorpora o cotidia-
no, caracteriza a parte e o reconhecimento
de que esta está em certa autonomia em
relação ao todo, ao conjunto mais amplo.
Entender a produção social do espa-
ço como produção de lugar é, então, enten-
der essa produção a partir de sua múltipla
e diversicada carga semântica: qualquer
espacialidade é rica de signicados, assim
como é rica e diferenciada a sua apropriação
pelos diferentes atores sociais. Hoje, somos
levados cada vez mais a perceber as cida-
des por signos de signicados reduzidos. A
Cidade é tomada por uma ou duas imagens
(sem signicado e sem conteúdo), reduzi-
da drasticamente em sua possibilidade/vo-
cação e em sua historicidade. Os viventes
de uma cidade não são mais os cidadãos
políticos que geraram a polis do mundo gre-
go, ou a urbs romana. Nem ao menos um
conteúdo coletivo como apresentam as ci-
dadelas medievais é mais encontrado na
cidade pós-industrial. Baudelaire registrava
o anêur da cidade do século XIX, porém,
ao que tudo indica, os usuários das cidades
deste início de milênio ainda guardam um
sentido assentado no século passado que
transforma o cidadão num simples voyeur.
Será esta indiferença a única pos-
sibilidade que poderemos esperar atual-
mente das cidades? Se for, então não cabe
reetir a revitalização, pois o que deu vida
às cidades foi o “estar junto”. Busco, ao
contrário, abordar a possibilidade de dar
vida aos lugares a partir dos usos coleti-
vos neles partilhados e estimulados pelos
mais variados e múltiplos motivos, inclusive
o turístico e o do lazer espontâneo. Estar
junto motivado por atividades culturais ou
comerciais, pelo uso residencial ou institu-
cional; enm, estar junto. Creio que o modo
de garantir e/ou estimular o livre encontro
entre as pessoas é unir, o máximo possível,
todos os motivos que atraiam as pessoas
aos lugares coletivos.
O atual processo de globalização re-
força e valoriza a diversicação, mas também
homogeneíza valores. A atratividade urbana
deveria se dar, a princípio, pelas singularida-
des que criam identidades próprias aos luga-
res. A produção da cidade é hoje regida por
parâmetros de venda e consumo, traduzin-
do-se no que se denomina city-marketing
4
.
Um dos grandes paradoxos da pro-
dução do espaço é que ele pode levar à
destruição dos próprios atrativos exercidos
pelos territórios. Esse risco vem sendo re-
forçado, pois as sociedades contemporâ-
neas têm se caracterizado por sociedades
de consumo, regidas pelos preceitos do
mercado, do lucro. Criam-se, assim, locais
que não se constituem como territórios de-
vidamente apropriados, não se constituem
como “lugares”. Criam-se locais articiais,
cuja infra-estrutura pode ser muito boa,
mas que são locais indiferentes à região.
Lucrecia Ferrara (1999) chama de
turismo dos deslocamentos virtuais a forma
como os visitantes tendem a se relacionar
com o espaço: de modo efêmero e super-
cial, atentando-se a recortes imagéticos
que pouco ou nada traduzem do lugar em
si. Efeito perverso da contemporaneidade,
as formas de apropriação dos cidadãos
com seus espaços cotidianos estão sendo
marcadas, cada vez mais, pela rapidez, in-
segurança e supercialidade. Estamos per-
dendo nossa possibilidade de apropriação
espacial marcada por relações interpesso-
ais intensas e pela afetividade. A crescente
mobilidade dos indivíduos no espaço e o
esgarçamento da coesão social ganharam,
nas palavras de Bauman (1999, p. 101),
uma conotação metafórica bem oportuna:
“Os turistas se movem porque acham o
mundo a seu alcance (global) irresistivel-
mente atraente. Os vagabundos se movem
porque acham o mundo a seu alcance (lo-
cal) insuportavelmente inóspito”.
As reexões sobre a cidade se cru-
zam com diversas outras questões. A cons-
83
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
tituição da identidade é uma das importan-
tes. Mas se deve buscar a construção de
saberes que não se pautem apenas pela
memória urbana, ou pela identidade cidadã.
Ao contrário de uma tendência pós-estrutu-
ralista que procura negar e desconstruir a
noção de sujeito, devemos pautar-nos por
reexões que tenham como um de seus
nortes a constituição da identidade (e sua
possibilidade/necessidade dentro dos pro-
cessos em curso na atualidade).
Assim sendo, mais do que nos
pautarmos pela carga sígnica e simbólica
(fruto da pós-modernidade) ou pela carga
icônica e histórica de determinados bens
culturais, devemos estimular a percepção
e compreensão da necessidade deles se
incorporarem aos nossos espaços de vi-
vência. O fenômeno da comunicação de
massa (a TV a partir dos anos 60; a inter-
net a partir dos anos 90) tem assentado
um modelo unicador junto aos indivíduos.
A extensão dessa unicidade é perversa,
pois aponta a construção de um consenso
no qual “estar fora” aguça o sentimento de
exclusão (reforçado por um projeto políti-
co-ideológico neoliberal do “deixa estar”,
do “fazer-se cada um por si”).
A falácia tecnicista não resolve o
problema, sendo necessário o resgate de
uma nova ética (ou melhor, da ética em
si), cabendo à cultura e à identidade uma
possibilidade de reordenação do aconte-
cer social e de resgate da sociabilidade e
da urbanidade. Porém, uma lógica orde-
nadora contrária à dos modernistas que
setorizaram nossas cidades. A arquitetura
pode ter um sentido ordenador sim, mas
que deve ser utilizado para estimular usos.
Usos diferenciados.
Produção do espaço urbano - outras
questões:
A cidade é uma construção material
e, sobretudo, um espaço que resulta dos
modos culturais dos que nela habitam e dela
participam; isto a transforma num lugar apro-
priado afetivamente (ainda que sujeito a re-
presentações ideologicamente constituídas).
O espaço urbano reete modos par-
ticularizados de vida social e sociabilidades
(expressos, principalmente, nos espaços
públicos das ruas e praças). É, também, e
como reexo, o espaço das contradições,
conitos e ambiguidades. Um tecido social
em crise acirra o caos urbano (violência,
pobreza, individualismo, isolamento, priva-
tização da esfera pública). Os mecanismos
para a reversão de tal situação precisam ser
identicados através de condutas metodoló-
gicas que busquem agrar potencialidades
para uma requalicação dos espaços -
blicos enquanto espaços de sociabilidades
múltiplas e que identiquem estratégias para
um planejamento urbano que, ao invés de
reforçar experiências homogeneizadas (e ao
mesmo tempo fragmentárias), possa refor-
çar a produção da cidade enquanto lugar an-
tropológico permeado de sentido e memória.
Canal privilegiado de comunicação
e interação, é através do espaço da cida-
de que potencialmente a consolidação e as
trocas culturais se estabelecem. A maneira
como a cidade é percebida, ou levada a ser
percebida é transpassada por discursos ide-
ológicos que parecem naturalizar práticas
culturais hegemônicas e simplicadoras.
Hoje, vive-se uma realidade que
enfraquece o uso da cidade enquanto ex-
periência vivida, acarretando apropriações
frágeis e efêmeras. Numa sociedade de
consumo centrada em imagens e aparên-
cias, a vida urbana tende a ser uma expe-
riência regida pelos mesmos propósitos, a
cidade tratada como espetáculo.
Busca-se, através deste texto, en-
focar o espaço urbano enquanto locus de
apropriação coletiva. De que modos os usu-
ários da cidade transformam o espaço em
lugar de pertencimento e elos identitários?
84
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O cotidiano da cidade sobrevive aos proces-
sos de espetacularização? Qual o destino de
nosso lugar-comum (em oposição ao lugar-
-nenhum)? Como conter/suavizar os proces-
sos contemporâneos de individuação que
levam ao solapamento dos vínculos sociais
e transformam o espaço em um não-lugar?
5
Em suma, é necessário reetir so-
bre as condições de nossa urbanidade e
nossa sociabilidade. Reetir sobre as po-
tencialidades e diculdades para a quali-
cação e vitalização dos espaços e sobre a
gestão cultural do espaço da cidade (en-
tendida pelo valor de uso dos lugares, e
não pelo valor de troca onde agora a pró-
pria cidade é tomada como produto a ser
consumido de maneira efêmera).
A vida pública enseja a convivência
com aquele que não conheço, mas que
não excluo. Em contraponto, a vida priva-
da –como o próprio termo aponta etnolo-
gicamente- pressupõe privar, ou estar pri-
vado (e nem um nem outro pode ser uma
meta satisfatória). A cidade, em seu sentido
clássico, sempre apresentou uma tríplice e
importante composição de espaços: o -
blico, o econômico e o cultural; o primeiro
remetendo à ágora, o segundo ao mercado
e o terceiro aos adros religiosos. Três espa-
ços coletivos que indicam não mais existir
plenamente. Os motivos? Pode-se arriscar
alguns: a violência urbana desvitalizando
praças e calçadas; shoppings e vendas à
distância a transformar radicalmente nos-
sas vitrines de exposição de produtos. E
quanto ao terceiro, serão os novos modos
culturais capazes de substituir as represen-
tações coletivas de outrora?
Enm, devemos olhar a cidade como
um enigma a ser decifrado, (re)conhecer
seus valores “invisíveis”, enfocar paisagens
urbanas como paisagens poéticas, ou seja,
resgatar as poesia do urbano independente
do moderno ou do antigo, e sim pelo coti-
diano que nele se dá. Flagrar a cidade in-
visível da memória (labiríntica, ligada ao
acaso, aos surtos de recomposição do pas-
sado) que se encontra superposta à cidade
da razão. Uma cidade cujas singularidades
encontram-se tanto no domínio da ordem
(espacial) quanto da “desordem” das lem-
branças, nos detalhes que escapam das
transformações urbanas. Recuperar nos re-
exos especulares aquilo que “ilumina” os
lugares comuns, os espaços cotidianos. O
estar junto desinteressado e as condições
físicas propícias a isso norteiam a noção
de apropriação dos espaços, sobretudo os
públicos e coletivos. As estratégias e ob-
jetivos a se buscar devem apontar para a
identicação dos principais marcos afetivos
e analisar as formas de uso e apropriação
de espaços coletivos potenciais às práticas
culturais e à dinâmica social da cidade; a-
grar o lugar. Potencializar a memória.
Desde um alerta: o que aqui se
pretende ao falar de manutenção e resga-
te da memória nada tem a ver com certa
tendência apontada por Andreas Huyssen
(2000): “restauração historicizante de ve-
lhos centros urbanos, cidades-museus”.
Não é a memória enquanto produto rentável
da indústria cultural que deve ser buscada,
e sim as relações mais interpessoais que o
passado possibilitou e a desconstrução do
não-sujeito pós-moderno – e seu não-lugar
- através do resgate da identidade.
GPDU “do bem”:
Participei da banca de mestrado em
Arquitetura e Urbanismo de João Batista
Porto Junior em 2009 na UFF, cujo traba-
lho “Refazendo o Caminho: dimensões do
projeto urbano de Niemeyer para Niterói,
RJ” nos faz reetir sobre os descaminhos
da sociedade contemporânea. A disserta-
ção é oportuna e necessária, e realça al-
gumas dimensões dos GPDUs: Grandes
Projetos de Desenvolvimento Urbano.
Ao se agrar certos GPDUs, algu-
mas questões iniciais podem ser lança-
85
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
das: que são Grandes Projetos, não res-
tam dúvidas; se são de Desenvolvimento,
podemos nos questionar. Certos termos
precisam ser sempre questionados. Desen-
volvimento de que? A partir de que modelo?
Com qual nalidade? Planejamento estra-
tégico para quem? Com quem e por quem?
Porto Junior (2009) recorre às dis-
cussões da sociedade do espetáculo de Guy
Debord (2004), estabelecendo correlações
entre certas materializações da sociedade
contemporânea. É neste campo que quero
avançar, pois de certa forma tanto a Cultu-
ra quanto o Urbanismo são travestidos em
seus sentidos essenciais e transformados
em merchandising em uma sociedade que
parece centrar-se somente no consumo.
A meu ver, os GPDUs normalmente
são frutos dessa postura consumista. Mas
serão todos eles produtores de espaços
efêmeros e simplesmente espetaculares?
Existe GPDU “do bem”?
A lógica de grandes cenários urbanos
toma conta do planejamento atual. E valem
enquanto cenário, valem por sua carga síg-
nica, sua imagem... Faltam em muitos dos
projetos considerarem os atores que darão
vida à cena; e estou falando de protagonis-
tas e não de meros gurantes. Senão, vira
cenário. Torna-se não-lugar, local de pas-
sagem, sem enraizamento, sem vivência.
Pensar na produção dessa tipologia
de espaços urbanos é como pensar na espé-
cie de produção de arte e cultura que ainda
insiste em ser apenas voltada ao “consumo”
imediato. Do mesmo modo que necessita-
mos de ações em cultura que almejem que
os indivíduos sejam fruidores, dêem efetivo
uso, se apropriem, se comovam... Ser, ao
invés de parecer. Enxergar, ao invés de
olhar. Vivenciar, ao invés de só estar. Fu-
gir do meramente eventual e efêmero.
Ao que tudo indica, os GPDUs têm
a mesma lógica de uma indústria cultural
voltada apenas ao consumo de massa.
Ambos querem o “espetáculo”. Am-
bos querem o evento que consolide a
imagem, a marca. Ambos se pautam por
apropriações meramente mercadológicas.
Não quero ser pessimista. Quero defender
uma lógica contrária.
Quero que Arte e Manifestações Cul-
turais sejam o que são: possibilidades múlti-
plas de exercício de nossa possibilidade de
comoção, de encantamento. Quero que os
Lugares Urbanos sejam espaços de socia-
bilidade, de interação, de prática e vivência.
E não é mera questão panetária. É como
nos posicionamos no mundo. Trata-se aqui
da defesa de que não façamos de nossas
vidas meras representações (individuais),
meras vitrines de exposição (na qual o su-
jeito se torna um produto, objeto), meras
imagens (virtuais ou reais)... miragens...
Pelos trabalhos acadêmicos (o cita-
do, e outros), o Caminho Niemeyer (Niterói)
é um GPDU. Um grande empreendimento
urbano, frutos de fortes parcerias público-
-privado, um exemplo do empresariamento
urbano, uma marca de grife na lógica do
city-marketing, um não-lugar na concep-
ção de Augé, um espetáculo consumível na
concepção de Debord, um local segregado
na minha concepção; em suma: uma catás-
trofe. Preferiria um lugar-comum, um sim-
ples lugar. Integrado ao restante da cidade.
Se almejar qualidade (?) estética é produzir
esse tipo de morfologia, prero a simplicida-
de das formas urbanas vernáculas...
A lógica contemporânea que norteia
as intervenções urbanas aponta para o
aproveitamento das áreas centrais promo-
vendo sua restauração em oposição à am-
pliação dos limites periféricos das cidades.
Diversidade gera diversidade. Inter-
venção com manutenção do tecido social
existente e ampliação de setores e cama-
das sociais diferenciadas. Mesclar edica-
ções novas com edicações antigas ou his-
86
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
tóricas. Promover intervenções de pequeno
porte e incluir a melhoria dos espaços cole-
tivos. As quatro ideias apresentadas apon-
tam para melhores possibilidades e resulta-
dos ao se intervir nos centros. Ou mesmo
em toda e qualquer área de uma cidade.
Lisboa, um caso a analisar:
Dois lugares... dois tempos... mas a
sempre relação com o Tejo.
Suscito um projeto, o Parque das
Nações (Lisboa). Um GPDU “do bem”, as-
sim me parece sua possibilidade e poten-
cialidade, pois se aposta na diversidade
funcional e social como garantias da requa-
licação. O projeto de intervenções na área
portuária foi potencializado nanceiramen-
te pela Exposição Internacional de 1988, e
o agora denominado Parque das Nações
traz um conceito de que reabilitar pressu-
põe processos de ampla ressonância que
ativem os mais diversicados setores/
agentes sociais. Apostou-se em qualicar a
área tanto para os interesses turísticos e do
grande capital, quanto para a população da
cidade em toda a sua diversidade. Bem, ao
menos enquanto fundamento!
Como forma de demonstrar sua ca-
pacidade de implantação de grandes in-
tervenções urbanas, Portugal foi sede da
Exposição Universal de 1998. Para tanto,
planejou a recuperação/utilização de antiga
área portuária às margens do Tejo. Buscou
grandes arquitetos, sim. Mas não se valeu
apenas destes. Planejou espaços com forte
imagem e carga sígnica, mas os dedicou aos
“estrangeiros” e aos “locais”. E quis que o lu-
gar guardasse sua força e sua atratibilidade
para além do grande evento, atraindo turistas
e população local. Planejou segundo a lógica
da vivência e não do “espetáculo”. Buscou-
-se tecer elos entre passado e presente, pois
Lisboa continua sendo a tradicional cidade
dos azulejos, do bacalhau e do fado. Mas é,
também, a contemporânea cidade da músi-
ca tecno e dos centros comerciais.
Trecho da Praça do Comércio na Baixa Pombalina
6
Parque das Nações
7
87
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A trajetória de Lisboa foi sempre
marcada pela sua relação direta com o rio
Tejo. Porém, no século XIX o desenvolvi-
mento industrial e comercial determinou o
crescimento da cidade para o interior, dis-
tanciando-se do Tejo. No entanto, próximo
ao m do século XX a cidade torna a vol-
tar-se para as águas. Nos anos 90 foram
lançadas as bases tanto para a reabilitação
dos bairros históricos, quanto para a recu-
peração e requalicação de toda a zona ri-
beirinha, agora local de lazer e convívio.
Como aparece num dos sites
8
que
divulgam a cidade:
Lisboa não se vê, sente-se: olhando
os navios que chegam e partem do rio;
calcorreando vales e colinas através
das ruas estreitas e dos empedrados
artísticos; observando as gentes que
passam; no cheiro da sardinha assa-
da que percorre os bairros populares
durante as festas da cidade e, no fado
que canta, à noite, a saudade.
Alguns textos sobre o Parque das
Nações expõem parte de seus princípios:
Com efeito, a requalicação urbana,
enquanto processo de intervenção
social e territorial, pressupõe um con-
junto de ações integradas numa de-
terminada lógica de desenvolvimento
urbano, agindo, assim, ao nível da
qualidade e das condições de vida dos
diversos grupos sociais –em especial,
os que se encontram mais marginali-
zados da vida social e urbana- numa
postura de democraticidade social e
de generalizada apropriação individu-
al e coletiva dos espaços em causa.
Deste modo, a requalicação urbana
constitui-se como um processo social
e político de intervenção no territó-
rio, que visa essencialmente (re)criar
qualidade de vida urbana, através de
uma maior eqüidade nas formas de
produção (urbana), de um acentuado
equilíbrio no uso e ocupação dos es-
paços e na própria capacidade criativa
e de renovação dos agentes envolvi-
dos nesses processos. (FERREIRA;
INDOVINA, 1999)
Vê-se pelo mundo afora a sempre
mesma questão: a degradação e esgota-
mento das áreas portuárias, tornadas ob-
soletas com a perda da função original.
Investidas de grandes áreas construídas
e de grandes vazios, as frentes de água
nestes casos- tornam-se locais de pobreza
e de pouca vitalidade. Esta estagnação fez,
no caso de Lisboa, com que o crescimento
da cidade desse as costas para o Tejo.
Buscando solucionar esse fenôme-
no, a gestão do território lisboeta encontrou
na produção do espaço para a feira inter-
nacional a oportunidade denitiva. A zona
oriental da cidade que abrigara importan-
te função portuária tornara-se perigosa e
de baixa qualidade ambiental. Indústrias
petrolíferas e químicas desativadas, ins-
talações fabris em ruínas, estoque habita-
cional empobrecido e acessibilidade de-
ciente era o quadro que caracteriza a área
que recebeu o então denominado Parque
das Nações. Buscou-se realinhavar as an-
tigas relações diretas entre a área do por-
to e as áreas de seu entorno, fazendo com
que Lisboa se voltasse orgulhosamente
para o Tejo novamente.
Os impactos, tanto da intervenção
urbana quanto da cultural e turística, reper-
cutiram em mídias brasileiras:
A exposição de Lisboa, além de seu
tema ocial (Os Oceanos, um Patrimô-
nio para a Futuro), tem outro objetivo.
Um dos primos pobres da União Eu-
ropéia, Portugal pretende aproveitar a
Expo’98 para divulgar a modernização
e os avanços recentes do país.
[...] outra novidade em relação à
expo’98. Ao contrário da maioria das
88
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
feiras mundiais, totalmente desmonta-
das após sua realização, a infra-estru-
tura da exposição de Lisboa será apro-
veitada após setembro. O próprio local
do evento –60 hectares às margens do
Tejo- foi totalmente reurbanizado du-
rante a construção dos seis pavilhões e
das demais instalações da feira. Antes
tratava-se de uma região degradada e
abandonada cuja poluição contamina-
va até o Tejo. Agora, com o rio recupe-
rado, será integrada a um novo pólo
residencial chamado Expo Urbe, com
7 mil apartamentos, escritórios e lojas
9
.
Ou ainda:
A belíssima estrutura de bancos, praças
e jardins montada para a expo 98 tam-
bém será conservada. Os turistas po-
dem continuar subindo na torre Vasco
da Gama para apreciar a paisagem, an-
dando de teleférico de um lado a outro
do parque [...]. Também não vão faltar
vitrines e comprinhas. A construção do
Centro Comercial Vasco da Gama, com
inauguração marcada para a próxima
primavera européia, será outro marco
na vida do Parque das Nações. O sho-
pping terá hipermercado, restaurantes,
cinema e lojas. [...] A praça de espetá-
culos que recebeu alguns dos concor-
ridos shows de MPB durante a feira, a
Praça Sony, vai abrigar os mais impor-
tantes encontros musicais da capital
portuguesa nos próximos tempos
10
.
E mesmo esta outra matéria:
A explosão de prédios modernos bor-
bulha ainda com mais intensidade no
Parque das Nações, concebido para a
Expo-98, que tinha como tema Os oce-
anos, um patrimônio para o futuro. [...]
Ao longo dos 12 quilômetros do Corre-
dor Cultural, às margens do Tejo, atra-
cam barcos que funcionam como ba-
res. O espaço, arejado, é efervescente
com cafés, livrarias e lojas
11
.
Entendo que pensar na Cultura e
em seu papel no desenvolvimento de um
país, região, comunidade, ou das pessoas
em geral transformou-se radicalmente nas
últimas décadas colocando desaos inédi-
tos e imensos a todos aqueles que, no se-
tor público ou no setor privado, procuram
novos caminhos, soluções e funções, tanto
para os tradicionais, como para os novos
territórios da cultura. Se o empreendimento
português atingir essa meta e se conformar
como um “lugar”, então temos um GPDU
de sucesso; “do bem”.
Mostra-se oportuno dar voz aos
usuários. Em um blog encontramos algu-
mas apreensões apontadas em 2010, uma
década após aquele grande empreendi-
mento. Vejamos
12
. “Belas fotograas de um
espaço que considero desumanizado”, é
uma das postagens em 05/01/2010. “Não
gosto muito daquilo, é ‘certinho’ demais”,
aponta outro dois dias depois. O projeto do
Parque das Nações incluiu várias unidades
residenciais, o que favorece a uma constru-
ção identitária, mas não é suciente.
[...] tudo aquilo é extremamente frio e
calculado, faltando aquele calor do nos-
so bairro, talvez porque ainda não exis-
tam gerações que ali tenham nascido
para poderem dizer (Eu sou do Parque
das Nações) como outros dizem com
orgulho (eu sou da Mouraria ou outro),
no entanto não deixarei de reconhecer
que existe qualidade de vida de nível
superior em relação ao resto do país.
(05/01/2010)
Não gosto, nunca gostei, não me diz
nada, sem signicado. São mais umas
séries de edifícios de apartamentos
sem história, sem alma, betão e mais
betão [sic]. Ficou melhor do que esta-
va. (07/01/2010)
Em outro lugar de fala encontramos
uma visão oposta: “O Parque das Nações
é hoje um espaço vivo, dinâmico e multifun-
89
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cional. É a marca da Lisboa contemporâ-
nea, um local onde os lisboetas se divertem,
apreciam espetáculos, passeiam, praticam
desporto, fazem compras, trabalham e vi-
vem, com qualidade e em harmonia.”
13
É
uma fala “ocial”, para atrair turistas, bem
focada neste marketing. Esta fala última
pode ser confrontada com outra, de 2012,
que parece apontar relações de pertenci-
mento vivenciadas pelos moradores locais
que comemoram a aprovação da criação,
em 01/06/12, da Freguesia do Parque das
Nações, conclamando com isto uma garan-
tia de melhor integração da área com seus
residentes e usuários. Meses antes, em
15/03/12, vinham sendo postadas recla-
mações que traziam indícios de que o local
fora apropriado pelos moradores.
[...] se parte do Parque das Nações
car fora da futura freguesia, todos -
camos a perder. O Parque das Nações
foi concebido e edicado como uma
nova centralidade da cidade de Lisboa
[...] E caso se concretize a divisão [...]
teremos ruas que pertencerão às cin-
co autarquias. [...] Haverá crianças que
deixarão de poder frequentar escolas
públicas do nosso bairro [...]
14
Quero enfatizar a questão da apro-
priação urbana e a noção de lugar antro-
pológico por entendê-las como dimensões
essenciais à sociabilidade. A possibilidade
dos encontros fortuitos, e mesmo a neces-
sidade das relações interpessoais impre-
vistas estruturam a vida social e reforçam
a construção da identidade e da cidadania.
Michel de Certeau e Milton Santos foram
alguns dos teóricos que nos ensinavam
sobre esta necessidade. Retomo aqui a
questão sob o olhar de Paola Jacques e as
corpograas urbanas:
A partir de uma constatação da atual
espetacularização das cidades con-
temporâneas que resulta em ceno-
graas urbanas – tratarei do que con-
sidero ser uma forma de resistência a
esse processo: a própria experiência
urbana e, em particular, a experiência
corporal da cidade. Esse tipo de ex-
periência, do corpo ordinário enquan-
to resistência, pode ser estimulada
por uma prática que chamo de errân-
cias que, por sua vez, resultaria em
corpograas urbanas. (JACQUES,
2007, p. 93)
15
Retomo agora a questão da moder-
nidade e o risco de uniformização e ho-
mogeneização que ela permite, mesmo
travestida de novidade. Como apontou
Octavio Paz (1984, p. 39): “Em todas as
sociedades as gerações tercem um tela
feita não só de repetições, como de varia-
ções; e em todas elas realiza-se, de um
modo ou de outro, aberta ou veladamente,
a ‘querela dos antigos e dos modernos’.
Há tantas ‘modernidades’ como épocas
históricas.” Seguindo tal raciocínio, faço
eco com Slavoj Zizek (1992, p. 59) bus-
cando “detectar, por trás da universalidade
aparente, a particularidade de um interes-
se que destaca a falsidade da universali-
dade em questão: o universal, na verdade,
está preso ao particular, é determinado
por uma constatação histórica concreta”.
O interessante em questões como
estas é agrar no próprio discurso a fan-
tasia ideológica, os falseamentos ideo-
lógicos inconscientes. Não vou por este
caminho aqui, neste momento. Apenas
reforço sua potencialidade metodológica,
e sigo um pouco mais com os autores.
Paz (1984, p. 98) nos propõe que o “tex-
to que é o mundo não é um texto único:
cada página é a tradução e a metamor-
fose de outra e assim sucessivamente.
O mundo é a metáfora de uma metáfora.
[...] No centro da analogia há um buraco:
a pluralidade de textos subentende que
não há um texto original”. Zizek (1996, p.
299) vai além:
A estrutura é sempre tríplice; sem-
pre três elementos em ação: o texto
90
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
manifesto do sonho, o conteúdo la-
tente do sonho, ou seu pensamento
latente, e o desejo inconsciente articu-
lado num sonho. Esse objeto, [...] con-
sistindo inteiramente nois mecanismos
do signicante, [..] seu único lugar está
na forma do “sonho” [...].
16
O que tem de ideologia impreg-
nada nestes vários discursos sobre o
Parque das Nações? Os dados positivos
apontados pelos moradores são constru-
ções de fato apreendidas ou são repre-
sentações ideologicamente produzidas?
O discurso de cunho turístico traz cone-
xões explícitas de suas intenções prag-
máticas e mercadológicas. Enm, será
mesmo possível que intervenções de
grande porte como o Parque das Nações
se tornem um GPDU do bem? Fica aqui
uma questão a acompanhar...
Bibliograa:
ANDRADE, Mário de. ; ALVARENGA, Oneyda.
Cartas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983.
AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma an-
tropologia da supermodernidade. Campinas, SP:
Papirus, 1994.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüên-
cias humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Pe-
trópolis, RJ: Vozes, 1998.
DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2004.
FERRARA, Lucrecia d’Alessio. O turismo dos des-
locamentos virtuais. In: YÁZIGI, E.; CARLOS, Ana;
CRUZ, R. C. (orgs.). Turismo: espaço, paisagem e
cultura. São Paulo: HUCITEC, 1999. p. 15-24.
FERREIRA, Vitor Matias ; INDOVINA, Francesco. (org.).
A cidade da Expo’98. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1999.
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória:
arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.
JACQUES, Paola Berenstein. Cenograas e cor-
pograas urbanas: espetáculo e experiência na
cidade contemporânea. In: Revista Observató-
rio Itaú Cultural / OIC. São Paulo, n.5, abr./jun.
2008. pp 47-57.
JACQUES, Paola Berenstein. Corpograas ur-
banas: o corpo enquanto resistência. In: Cader-
nos PPG-AU/FAUFBA. Salvador, ano 5, número
especial, 2007, organizado por Ana clara Torres
Ribeiro. pp 93-103.
LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspec-
tiva, 1978.
LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 3: As Psico-
ses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
PAZ, Octavio. Os lhos do barro: do romantismo à
vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
PORTO JUNIOR, João Batista. Refazendo o Ca-
minho: dimensões do projeto urbano de Niemeyer
para Niterói, RJ. Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 2009. Dissertação de Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo.
RODRIGUES, Luiz Augusto F. Universidade e a
fantasia moderna: a falácia de um modelo espa-
cial único. Niterói: EdUFF, 2001.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Ali-
ce: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1996.
SANTOS, Milton et al. (orgs.). Fim de século e glo-
balização. São Paulo: HUCITEC, 1993.
YÁZIGI, Eduardo. A alma do lugar: turismo, plane-
jamento e cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001.
ZIZEK, Slavoj (org.). Um mapa de Ideologia. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1996.
ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o su-
blime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: J. Zahar
Ed., 1992.
ZIZEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos:
Hegel com Lacan. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed.,
1991.
91
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
1
Arquiteto/Urbanista e doutor em História Social. Pro-
fessor Associado do Departamento de Arte da UFF, vin-
culado à graduação em Produção Cultural e à pós-gra-
duação em Cultura e territorialidades da Universidade
Federal Fluminense.
2
Podemos creditar à publicação do Relatório Nossa
Diversidade Criadora, organizado por Javier Pérez de
Cuellar em 1995, o marco principal das preocupações
da UNESCO com a questão. A partir de então a questão
cultural vai assumindo cada vez mais centralidade nas
discussões internacionais, culminado em dois documen-
tos importantes: Declaração Universal sobre a Diversi-
dade Cultural (2001) e Convenção sobre a Proteção da
Diversidade das Expressões Culturais (2005).
3
Estou, propositalmente, evitando utilizar termos como
território e lugar, num claro entendimento e valorização
da noção de lugar em sua acepção enquanto lugar an-
tropológico, como será discutido mais a frente.
4
Sánchez apresenta a sucinta denição de city-marke-
ting: “mecanismo institucional de promoção e venda da
cidade como lugar de recepção/irradiação”. SÁNCHEZ,
Joan-Eugeni. Metropolização e modernidade. In: SAN-
TOS, Milton et al. (orgs.). Fim de século e globalização.
São Paulo: HUCITEC, 1993. p. 293-302. p. 298.
5
Enquanto oposições binárias, poderíamos distinguir os
termos como a seguir. Lugar é pausa e contato. É real
e singular. Gera experiência. É espaço usado e vivido.
Não-lugar é movimento e indiferença. É articial e uni-
versal. Gera virtualidade. É espaço consumido e obser-
vado. A produção do lugar se efetiva a partir dos níveis
de sentido que lhe atribuímos.
6
Fonte: Outight Magazine Ponte Aérea. São Paulo,
Ano 17, n. 151, s.d. Edição especial: Lisboa. p. 21 (parte
da fotograa)
7
Fonte: Revista Viagem e turismo. São Paulo, Ano 6, n.
3, março/2000. p. 57.
8
http://www.cm-lisboa.pt/?idc=4, acessado em 24 de
outubro de 2012.
9
Caloca Fernandes In: http://epoca.globo.com, 23/
maio/1998.
10
Célia Curto In: O Estado de S. Paulo, 27/out/1998.
11
Jornal do Brasil, 09/fev/2003.
12
As falas a seguir foram extraídas de http://extrasico.
blogspot.com.br/2010/01/hoje-lisboa-parque-das-naco-
es.html, acessado em 26 de outubro de 2012.
13
www.visitlisboa.com, acessado em 26 de outubro de
2012.
14
http://freguesiadooriente.blogspot.com.br, acessado
em 26 de outubro de 2012.
15
Grifo da autora. Sobre o assunto, ver também JAC-
QUES, 2008.
16
Grifo do autor. Aqui vale nos reportarmos a Jacques
Lacan (1978, p. 246): “a estrutura metonímica, indicando
que é a conexão do signicante com o signicante, que
permite a elisão pela qual o signicante instala a carência
do ser na relação de objeto, servindo-se do valor de re-
messa da signicação para investi-la com o desejo visan-
do essa carência que ele suporta. [...] a estrutura meta-
fórica, indicando que é na substituição do signicante ao
signicante que se produz um efeito de signicação que é
de poesia ou de criação, em outras palavras, de advento
da signicação em questão.” (os negritos são meus)
Contato:
- luizaugustorodrigues@id.uff.br
92
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A Televisão e a Música Popular Brasileira: Histórias que se entrelaçam
La Televisión y la Música Popular Brasileña: Historias que se estrelazan
Television and Brazilian Popular Music: Stories that are intertwined
Marildo José Nercolini
1
Resumo:
A consolidação da televisão no Brasil e a construção e consolidação
da Música Popular Brasileira MPB estão mais conectadas do que
normalmente se supõe. O que o rádio representou para os cantores
nas décadas de 40 e 50, a televisão passou a fazê-lo para a geração
de cantores dos anos 60, especialmente através dos festivais da
canção e dos programas musicais que buscavam abarcar as diferentes
tendências então existentes. Se a televisão valeu-se dos criadores da
MPB para conquistar público e rmar-se no mercado; por seu lado,
esses criadores-músicos, através da televisão, tornaram-se conhecidos
e tiveram suas canções e ideias divulgadas para públicos massivos.
Palavras chave:
MPB
Televisão
Brasil dos anos 60
93
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
La consolidación de la televisión en Brasil y la construcción y
consolidación de la Música Popular Brasileña MPB están más
conectadas de lo que generalmente se supone. El rol que la radio
representó para cantantes en las décadas de 40 y 50, la televisión lo
ha hecho a la generación de los años 60, sobre todo a través de los
festivales de la canción y programas musicales que pretendían abarcar
las diferentes tendencias que existían entonces. Si la televisión se
aprovechó de los creadores de la MPB para conquistar público y
establecerse en el mercado; por su vez, eses creadores-músicos, a
través de la televisión, se hicieron conocidos, y sus canciones e ideas
fueron difundidas a audiencias masivas.
Abstract:
The consolidation of television in Brazil and the construction and
consolidation of the Brazilian Popular Music MPB are more connected
than is commonly supposed. Television began to represent for the
generation of singers of the 60s what radio had represented for singers
in the 40s and 50s, especially through the song festivals and musical
programs which sought to embrace the different tendencies that existed
at the time. If television has taken advantage of the creators of MPB to
gain audience and establish itself in the market; in turn, these creators-
musicians, through television, became well-known and had their songs
and ideas disseminated to the mass public.
Palabras clave:
MPB
Televisión
Brasil de los años 60
Keywords:
MPB
Television
Brazil in the 1960’s
94
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A Televisão e a Música Popular
Brasileira: Histórias que se entrelaçam
E por falar em televisão
No Brasil, a década de 60 tem en-
tre suas marcas o início do processo de
massicação da televisão. Sem entrar em
muitos detalhes históricos, a televisão foi
implantada no Brasil nos anos 50, trazida
pelo tano visionário quanto controverso As-
sis Chateaubriand, que, em 18 de setem-
bro de 1950, juntamente com os Diários e
Emissoras Associados, inaugurou a TV Di-
fusora, mais tarde TV Tupi, canal 3, em São
Paulo e, em seguida, no Rio de Janeiro.
A chegada desse novo meio de
comunicação em terras tupiniquins, cau-
sou, por um lado, fascínio e estupor, com
suas novas e avançadas, para a época,
tecnologias e possibilidades; por outro,
desconforto e temor, pois a sua chegada
poderia acarretar o enfraquecimento e,
para alguns, o m de outros meios então
existentes, como o rádio e o cinema, es-
pecicamente falando. Na verdade o que
de fato aconteceu nesse e em outros ca-
sos (como o mais recente – a chegada da
internet nos anos 90) são as transforma-
ções substantivas nos meios e tecnologias
comunicacionais anteriores, que precisam
se adaptar aos novos contextos, pois o
jogo de forças sócio-cultural se modica.
Em termos de abrangência e impor-
tância, o rádio era até aquele momento o
maior, mais importante e mais bem suce-
dido meio de comunicação de massa exis-
tente no Brasil, concentrando os interesses
e os investimentos estatais e do mercado.
Com a chegada da televisão, aos poucos
isso foi se alterando. Em termos políticos,
por exemplo, cabe lembrar o estratégico
uso que o Governo Getúlio Vargas fez
do rádio para implantar sua plataforma e,
destacadamente, uma concepção de na-
ção, aos moldes do que o pensador inglês
Benedict Anderson vai chamar de “comu-
nidade imaginada”, buscando superar e
camuar as diferenças e divergências, e
forjar um consenso de “todos como um”
somos uma única nação, com a mesma
língua, interesses e desejos. Com a toma-
da do poder pelos militares, com o golpe
de estado de 01 de abril de 1964, para
se consolidar no poder e consolidar seu
projeto, os golpistas buscam não somente
no rádio, mas, sobretudo, na televisão o
seu meio de acesso privilegiado às mas-
sas. Mas para isso era necessário investir
na popularização do novo meio, sobretu-
do ampliando sua abrangência para todo
território nacional. Em termos técnicos, a
criação da estatal EMBRATEL (Empresa
Brasileira de Telecomunicações), em se-
tembro de 1965, e a implantação de torres
de retransmissão, ligadas a um satélite de
comunicações, possibilitaram a criação
das redes nacionais de televisão e os gran-
des conglomerados de comunicações, tor-
nando possível o desejo dos governantes
militares de implantar seu projeto de “inte-
gração nacional”, claro que em mãos de
um grupo selecionado de empresários, e
mediante revisão e modicações na políti-
ca de concessões. No nal da década de
60, teremos 12 milhões de brasileiros
interligados pela televisão, número esse
que foi somente aumentando e muito nas
décadas seguintes.
O ufanismo (“Esse é um país que
vai pra frente”) e a criação de um projeto
de nação levado a cabo pelo governo dita-
torial que se implantava, buscando, a seu
jeito também, como o fez Getúlio, a criação
de um imaginário que fomentasse o pen-
samento único, a dita “integração nacional”
e a negação de qualquer outra alternativa,
adonando-se da ideia de nação (“Brasil,
ame-o ou deixe-o”) tornam-se a pedra de
toque, e a televisão passa, então, a ser o
canal privilegiado, em termos de comuni-
cação massiva, para a implantação desse
projeto que se torna hegemônico no perío-
95
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
do. Entre mortos e feridos, nem todos so-
breviveram, vários sucumbiram, claro que
sem negar a evidente modernização da
comunicação massiva no Brasil.
Outro exemplo, e que mais nos
interessa aqui, pode ser buscado na in-
dústria fonográca brasileira que desde
o princípio teve o rádio como principal
aliado, meio privilegiado para lançamen-
to e circulação da produção musical das
gravadoras. As grandes rádios cabe
lembrar algumas, como Rádio Nacional
e Rádio Mayrink Veiga que tinham en-
tre seus contratados as grandes estrelas
da música do período, com programas
de auditório, acompanhados por grandes
orquestras, faziam o lançamento de suas
canções e discos, impulsionando a venda
e os lucros das gravadoras.
A chegada da televisão veio modi-
car essa realidade, que teve seu auge nos
anos 30 e 40 – a chamada “Era do Rádio”.
Mas as mudanças não foram repentinas. A
televisão necessitou de quase uma déca-
da para, de fato, mostrar sua força e aba-
lar a hegemonia do rádio. Entre outras ra-
zões, porque era uma tecnologia recente
e que, no princípio, despendia de grande
investimento nanceiro tanto por parte de
quem a queria implantar (iniciativa priva-
da ou estatal), como por parte de quem
queria ter acesso ao aparelho de TV, no
início bastante caro e raro. Por outro lado,
resolvidos esses problemas iniciais, quan-
do a infraestrutura foi sendo montada e
o acesso ao aparelho de televisão foi se
estendendo, também era necessário criar
estratégias para atrair a audiência, tra-
zer o público para frente da tela menor,
investindo-se em uma programação para
cujo formato não havia ainda parâmetros
e cujos prossionais precisavam ser forja-
dos. Não é de se estranhar, por exemplo,
que três das principais estratégias usadas
na montagem da programação estives-
sem diretamente vinculadas a fórmulas
de sucesso provenientes do rádio: progra-
mas musicais, futebol e novelas. Desses,
vamos nos ater a análise da parte musical
e sua articulação com a televisão.
Os programas musicais foram uma cons-
tante na grade de programação televisi-
va nos anos 60, período de consolidação
desse meio de comunicação por aqui. Tal
estratégia, antes usada pelas grandes
rádios, passou a ser usada pelos respon-
sáveis pela programação na televisão,
mas adaptando-se ao novo formato e ao
novo contexto histórico. Contratavam-se
os cantores para fazerem parte do elenco
xo das emissoras, alguns como condu-
tores/apresentadores, outros como con-
vidados eventuais para se apresentarem
nos programas especicamente musicais
ou de variedades (programas de auditó-
rio, por exemplo). No entanto, precisando
atrair público, mas também querendo mar-
car o seu diferencial, o investimento foi
feito não somente em nomes já consagra-
dos pelo rádio, mas, sobretudo, em cima
de caras novas e novas propostas musi-
cais que surgiam nos anos 60. Portanto,
se, por um lado, precisaram recorrer aos
experientes prossionais do rádio, por
outro, investiram em nomes novos, ainda
sem os vícios e trejeitos daquele meio de
comunicação. A imagem passava a dar as
cartas, e ela precisava ser chamativa, jo-
vem e atraente. Daí decorre a aproxima-
ção com uma nova geração de cantores
e compositores que estavam despontan-
do no cenário musical brasileiro, que esta-
vam dando os passos inicias do que veio
a ser chamada Música Popular Brasileira,
ou mais simplesmente MPB.
Portanto, na busca pela legitimação
social e tentando ocupar um espaço até
então dominado pelo rádio, os empresários
ligados à televisão estabelecem uma apro-
ximação muito intensa com a música. Até
então era o rádio que, com seus programas
de auditório, suas orquestras, constituía-se
em um espaço fundamental na criação de
grandes ídolos da nossa canção popular,
96
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
“cantores e cantoras de rádio”, que tinham
os seus éis seguidores e os traziam para
os seus programas. Os proprietários dos
canais de televisão apostaram no poder
da música popular com vistas a conquistar
seu espaço junto ao público.
E essa tal de MPB?
Quando falo em Música Popular
Brasileira não me rero a toda música po-
pular feita no Brasil, mas mais especica-
mente a um certo tipo de música popular
que surge a partir dos anos 60. Uma músi-
ca urbana, ligada ao ambiente universitá-
rio e à efervescência político-cultural que
dominava as artes no Brasil na década de
60. Uma música que resgatam o apuro es-
tético a chamada modernização da mú-
sica brasileira - trazido pela Bossa Nova,
mas passam a se preocupar também com
o conteúdo, que precisava necessaria-
mente ser revolucionário, no sentido de
estar a serviço da conscientização das
pessoas. Isto é, em síntese, uma música
que buscava articular a expressão de uma
consciência nacional, politicamente orien-
tada para a emancipação cultural e ideo-
lógica é que, naquele momento, era hege-
mônico no pensamento artístico nacional.
Fundia e resgatava elementos mais
tradicionais, como o samba, a música nor-
destina, por exemplo, com os pressupos-
tos estético-musicais trazidos pela Bossa
Nova, produzindo uma “fusão/confusão”
dos critérios da cultura considerada de eli-
te e da cultura popular, e também se utili-
zando dos mecanismos da cultura massi-
va. E para completar essas mesclas, com
o tempo a MPB passa a ser incorporada
como signo de alta cultura.
Tal denominação, e conseqüen-
te abreviação, começou a ganhar força
a partir de 1965. Para aprofundar essa
questão é interessante recorrer ao estu-
do feito por Carlos Sandroni (2004) que
historiciza as transformações que o ter-
mo popular associado à música teve no
Brasil. Até os anos 40, o adjetivo “popu-
lar” esteve associado primordialmente a
um tipo de música de origem mais rural,
como o atestam os estudos de Mário de
Andrade sobre música brasileira. A par-
tir do nal dos anos 40 o termo “popular”
também passou a abranger um tipo de
música urbana, feito por compositores
vindos de uma parcela menos letrada
da população (compositores dos morros
cariocas, por exemplo), que começaram
a ter suas músicas tocadas nas emisso-
ras de rádio. Nos anos 50, a música de
origem rural passou a ser denominada
folclórica, e o termo “música popular” co-
meçou a ser associada à música urbana,
com caráter mais comercial e midiático
(usando o disco e as rádios como meios
principais de divulgação). Mas sempre
mantendo, de acordo com Sandroni, “um
lastro de conformidade com as tendên-
cias mais profundas do povo”.
Nos anos 60, “música popular bra-
sileira”, as três palavras unidas passam a
designar músicas urbanas veiculadas pe-
los discos, rádios e, logo em seguida, pela
televisão. Não abarcava, porém, toda mú-
sica urbana. Seus criadores estabeleciam
uma delimitação, excluindo o rock, com
seus sons eletrônicos e sua origem ingle-
sa e norte-americana, a música romântica
e a considerada brega. Como bem anali-
sa José Miguel Wisnik, nesse período, a
denominação Música Popular Brasileira
vinha associada
(...) a um purismo defensivo contra a
cultura internacional (a música pop e
o rock, a vanguarda e a Jovem Guar-
da) e contra o gosto e a presença das
massas (o romantismo dito hoje bre-
ga, a música sertaneja, e outra vez a
Jovem Guarda) (WISNIK, 1996, p. 1).
A expressão “popular” então é apro-
priada pelas classes médias universitá-
97
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
rias, envoltas pela ideologia de esquerda e
pelo pensamento nacional-popular, com o
objetivo de pensar a identidade brasileira,
buscar suas especicidades e preservá-la
da então chamada “inuência nefasta” do
“Imperialismo Ianque”.
No nal da década de 60, a Música
Popular Brasileira havia sido transfor-
mada numa sigla MPB, o que para Wis-
nik “mais do que uma simples abreviação
prática, não por acaso aparentada com al-
guma sigla de partido ou frente, supõe um
pacto difuso entre aqueles que a usam”
(Ibid.); virou uma senha distintiva da cul-
tura cancional universitária então eferves-
cente. Bastava referir-se à MPB que todos
sabiam do que se tratava, mesmo que não
conseguissem explicar totalmente.
Marcos Napolitano chama a aten-
ção para outro aspecto importante: a
MPB, mais do que um gênero musical,
transformou-se em uma verdadeira ins-
tituição, fonte de legitimação e de hie-
rarquização. Seus seguidores buscavam
por independência, por criar seu próprio
espaço instituir-se, conectando-se
com a realidade mais ampla, propondo
a seus seguidores engajamento social e
político. Mas por outro lado, e que mui-
tas vezes é esquecido, estabelecendo
uma conexão também muito forte com a
indústria cultural que ganhava cada vez
mais força no país, sobretudo quando se
fala mercado musical brasileiro que se
consolidava e com a chegada da televi-
são. Na década de 60, o Brasil passava
por um processo de reorganização da
indústria cultural, com novas estratégias
de promoção, novos produtos e, sobretu-
do, novos conglomerados empresariais,
fortes, sobretudo, no campo da música e
da televisão.
Enm, sob o signo do impasse e
da contradição a MPB foi se construin-
do. Por um lado, como nos lembra Na-
politano (2004), buscando a autonomia,
isto é, estabelecer suas próprias regras,
que mesmo não escritas, existiam; e
todo o processo de institucionalização
sócio-cultural; e por outro, sem conse-
guir fugir da heteronomia, articulando-se
dentro da dinâmica comercial, inserindo-
-se no mercado musical, com suas leis
e normas. Esses dois processos nem
sempre eram convergentes, mas eram
concomitantes. Por um lado, desejo de
engajar-se politicamente, mas, por outro,
de também atuar no mercado musical;
canções com sentido ideológico-político,
mas também como bens culturais, mer-
cadoria a ser vendida. Nunca é demais
lembrar que a MPB teve papel funda-
mental na reorganização do mercado fo-
nográco brasileiro, além de seus canto-
res, compositores serem companheiros
de caminhada, e mais que isso, sujeitos
com papel fundamental reconhecido nas
lutas políticas contra a ditadura aqui im-
plantada a partir de 64. Muitas vezes a
primeira parte da armação é esquecida.
A MPB se institui, portanto, negociando
com duas culturas, a nacional-popular e
a cultura do consumo.
Aprofundemos a relação entre a
MPB e a televisão no Brasil.
Para muitos estudiosos desse tema
foram os festivais da canção, na década de
60, organizados pelos maiores canais de
televisão então existentes um dos grandes
responsáveis pela criação e consolidação do
que se convencionou chamar Música Popu-
lar Brasileira. Ou, em outros termos, como
bem arma Napolitano (2004, p.54-55) “O
processo cultural que ampliou, denitivamen-
te, o público da MPB engajada e nacionalista
foi a aliança deste gênero com a televisão”,
mas também, do outro lado, “foram os pro-
gramas musicais, sobretudo os festivais da
canção, a partir de 1965, que trouxeram no-
vos públicos para o veículo, harmonizando
as exigências de qualidade e popularidade”.
Portanto, os dois lados saíram ganhando
com essa aproximação estratégica.
98
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Programas musicais na televisão
Antes de falarmos dos festivais,
quero destacar alguns programas musi-
cais que tiveram grande importância nessa
aproximação, alguns deles surgiram a par-
tir do sucesso e da repercussão que certos
cantores tiveram nos festivais. Como é o
caso de “O Fino da Bossa”, apresentando
por Elis Regina e Jair Rodrigues.
Disposta a arrebatar o primeiro lu-
gar da audiência em mãos, naquele mo-
mento da TV Excelsior, a Record além de
promover festivais da canção, produz uma
série de programas musicais, tentando
abarcar as principais tendências musicais
daquele momento, no Brasil. Lançou, ain-
da em 1965, “O Fino da Bossa”, comanda-
do por Elis Regina, contratada logo depois
de ganhar, com “Arrastão”, o I Festival da
Música Popular Brasileira, no mesmo ano,
e obter enorme sucesso e grande reper-
cussão de público e crítica. Junto com ela,
Jair Rodrigues, cantor também com ges-
tual e leveza que se adaptou rapidamente
às exigências do novo meio de comunica-
ção. Foi o maior sucesso de audiência da
Record. Do programa participavam os no-
vos talentos, grande parte deles lançados
nos festivais, como Chico Buarque de Ho-
landa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria
Bethânia, Zimbo Trio e Edu Lobo, além de
nomes consagrados como Nara Leão,
Vinicius de Moraes e Baden Powel. Logo
em seguida, o mesmo canal lança “Bos-
saudade”, apresentado por Elizete Cardo-
so e Ciro Monteiro, voltado para um pú-
blico de uma geração de cantores mais
antigos para atrair também seu público.
E para completar a tríade, faltava abarcar
uma ala da juventude mais conectada ao
rock, estilo musical que se rmava inter-
nacionalmente como “a trilha sonora da
juventude”. Surge então “Jovem Guarda”,
comandado por Roberto Carlos, Wander-
léia e Erasmo Carlos, a turma da “Jovem
Guarda”, criando espaço para o rock na
televisão brasileira.
Com o enorme sucesso de público
desses programas, outros foram criados,
como “Show em Si ... Monal”, apresentado
por Wilson Simonal; “Corte Rayol Show”,
com Renato Corte Real e Agnaldo Rayol
e até mesmo Chico Buarque e Nara Leão
comandaram por pouquíssimo tempo, na
Rede Globo, o programa “Pra ver a banda
passar”; e programas de variedades, com
platéias, onde também a música brasileira
era a estrela principal, cite-se “A Hora do
Bolinha”, “A Buzina do Chacrinha” e “Essa
noite se improvisa”. No início da carrei-
ra, tanto Caetano quanto Chico Buarque
participaram seguidas vezes do programa
na TV Record, “Essa noite se improvisa”,
apresentado por Blota Jr., em que os par-
ticipantes, a partir de uma palavra sortea-
da, tinham que lembrar uma canção que a
contivesse e cantá-la. Caetano, com seu
vasto conhecimento musical aliado a sua
boa memória, transformou-se, junto com o
jovem Chico Buarque, em vencedor assí-
duo dessas disputas. No baiano, chamava
a atenção do público seu cabelo comprido
e desregrado, sua forma de vestir nada tra-
dicional; conta-se que enquanto seus ad-
versários ganhavam ores e bombons das
fãs, ele recebia dezenas de pentes. Chico,
por sua vez, muitas vezes usava da es-
perteza e a facilidade que tinha para criar
canções para vencer a disputa. Quando
não se lembrava de alguma música que
contivesse determinada palavra sorteada,
inventava na hora e, marotamente, conse-
guia enganar os jurados.
“O Fino da Bossa”, mais tarde cha-
mado simplesmente de “O Fino”, foi o divi-
sor de águas nesse tipo de programação.
Entrou no ar em dia 19 de maio de 1965.
Era gravado às segundas-feiras e coloca-
do no ar às 21 horas das quartas-feiras,
transformando-se logo no programa de
maior audiência na TV brasileira e auxi-
liando a converter Elis Regina na maior
estrela da música popular brasileira da-
quele momento, alavancando sua carrei-
ra. Para se ter uma idéia, o disco que ela e
99
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Jair Rodrigues lançaram, ainda em 1965,
Dois na Bossa foi o primeiro disco brasilei-
ro a vender um milhão de cópias.
As tardes de domingo na televisão
do período eram dominadas pela trans-
missão ao vivo de partidas de futebol. A
Record, por exemplo, transmitia os jogos
do Campeonato Paulista. Mas em mea-
dos de 66, a Record entra em atrito com
a Confederação Paulista de Futebol e tem
seu direito de transmissão cassado, pre-
cisando urgentemente pensar em uma al-
ternativa para não perder audiência para
os outros canais. Resolve substituir o fu-
tebol, uma das maiores paixões do brasi-
leiro, por outra de suas grandes paixões:
a música. Contrata-se Roberto Carlos, jo-
vem cantor, que a essa altura já havia em-
placado alguns sucessos, como “Parei da
contramão”, “Calhambeque” e “É proibido
fumar”, juntamente com Erasmo Carlos e
Wanderléia, colocando no ar o programa
“Jovem Guarda”, expressão que viria tam-
bém a denominar esse movimento musi-
cal, liderados por esses mesmos artistas.
O programa estreou em 22 de agosto de
1966 e, aos poucos, transformou-se em lí-
der de audiência em seu horário.
Munidos de guitarras elétricas, músi-
cas com letras ingênuas e/ou debochadas,
criação de um vocabulário característico e
assentados numa publicidade forte e com-
petente, esses jovens cantores alcançaram
grande sucesso de público, mas foram du-
ramente atacados pela crítica de esquerda.
Na verdade o que a Jovem Guarda fez foi
transformar a linguagem revolucionária do
rock em algo mais palatável para a indústria
cultural. Esse fenômeno foi perceptível em
outras partes do mundo, como arma Mo-
rin, pois essa indústria cultural, ao mesmo
tempo que integrou a genialidade musical
do movimento, descaracterizou seu teor de
contestação social:
Ora, a característica de todo o siste-
ma da cultura de massa, da indústria
cultural [...] consiste em circunscrever
a tendência dionisíaca sem contudo a
destruir [...] -, em sufocar a rebeldia
latente ou em mergulhá-la numa latên-
cia ainda mais profunda -, ou em todo
o caso em eliminar dela todas as ma-
nifestações explosivas, integrando, po-
rém, e explorando os contributos musi-
cais rebeldes (MORIN, 1984, p. 181-2).
O programa “Jovem Guarda” pas-
sou a dar muito mais audiência que “O
Fino”. A guerra estava declarada. A gera-
ção MPB, com sua proposta de música
engajada e defendendo padrões de uma
música popular pretensamente mais bra-
sileira e de qualidade, versus os rockeiros
da Jovem Guarda, taxados de alienados
e alienantes, imbuídos de uma linguagem
mais solta e debochada, investindo na lin-
guagem estético-musical do rock, tentan-
do espelhar-se na revolução promovida
pelos Beatles. Elis e alguns de seus com-
panheiros se armaram como se fossem
para uma guerra, defender o que consi-
deravam a verdadeira música brasileira.
Chegaram a montar a “Frente Ampla da
Música Popular Brasileira contra o Iê-iê-iê”
(outra maneira de denominar a geração
Jovem Guarda), e a organizar debates e
mesmo uma passeata pelas ruas de São
Paulo, com faixas e cartazes; uma boa jo-
gada de marketing para tentar alavancar
novamente a audiência de “O Fino”. Quem
ganhava com isso era a própria TV Re-
cord, canal onde os dois programas eram
exibidos, pois acirrava os ânimos e o de-
sejo de superação dos próprios músicos e
seus seguidores, com repercussão em jor-
nais e revistas e também junto ao público.
Nos bastidores do Teatro Record,
onde era gravado “O Fino”, aparece trans-
crita a seguinte ordem do dia, transcrita
por Homem de Melo (2003, p.119), que
conta desse enfrentamento:
“Atenção, pessoal, O Fino não pode
cair! De sua sobrevivência depende a
100
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
sobrevivência da própria música mo-
derna brasileira. Esqueçam quaisquer
rusgas pessoais, ponham de lado to-
das as vaidades e unam-se todos con-
tra o inimigo comum: o iê-iê-iê”.
No entanto, aos poucos, esses pro-
gramas foram se desgastando e não mais
alcançavam audiências extraordinárias. O
último programa de “O Fino” foi ao ar em
19 de julho de 1967. Por sua vez, “Jovem
Guarda” também no nal de 1967 viu seus
números de audiência diminuírem, sendo
ultrapassado pelo então novo fenômeno
de audiência, o Programa Sílvio Santos,
na TV Tupi. Roberto Carlos abandona o
barco no início de 68 e inicia uma nova
fase em sua carreira, voltando-se mais
para o gênero romântico. Em seguida o
programa é também tirado do ar.
Tanto “O Fino da Bossa” quanto
“Jovem Guarda” marcaram época na te-
levisão brasileira, tantos em termos de
audiência quanto em termos de repercus-
são de público e crítica, amados ou odia-
dos, seus protagonistas abocanharam
grande sucesso e foram fundamentais
para a criação de um público ainda não
existente para os canais de televisão que
os contratavam.
Entre outubro e dezembro de 68,
também a trupe tropicalista ganha o seu
próprio programa na televisão. “Divino
maravilhoso” estréia na TV Tupi, pro-
grama semanal, gravado e mostrado às
segundas-feiras, à noite. Verdadeiros ha-
ppenings aconteciam em frente à câmara
de televisão. Os programas seguiam a li-
nha debochada e anárquica dos tropica-
listas, de questionar e explodir as verda-
des pré-concebidas seja na cultura, nos
costumes ou na música. Como exemplo,
em um desses programas o cenário mon-
tado era uma grande jaula, dentro da qual
Caetano, Gil e os convidados representa-
vam um grande banquete de mendigos.
As grades eram quebradas ao nal por
Caetano, cantando, de Roberto Carlos,
“Um leão está solto nas ruas”. Ou então o
programa próximo ao Natal em que Cae-
tano ataca a hipocrisia reinante em muitos
“lares burgueses”, com o propalado espí-
rito natalino, anal alegres ou tristes, são
todos felizes durante o Natal. O polêmico
baiano canta a marchinha natalina “Boas
festas”, de Assis Valente, com um revól-
ver apontado para a sua cabeça. Kitsch?
Chocante? Aterrador? Ou simplesmente
a forma tropicalista de ocupar o espaço
público para questionar as mazelas rei-
nantes entre quatro paredes? O programa
teve curtíssima duração, pois em dezem-
bro de 68, o governo militar baixa o Ato
Institucional n.5, aumentando a repressão
e a censura. O programa é tirado do ar,
suas tas são destruídas para não ser-
virem de prova contra seus criadores e
apresentadores; mas mesmo assim, Cae-
tano e Gil são presos, e, logo em seguida,
exilados em Londres.
Esses são alguns exemplos bem
sucedidos da parceria entre música e te-
levisão no Brasil, que teve nos festivais da
canção outra ponta de lança fundamental.
E que venham os festivais
Os festivais, no mundo da música,
foi uma estratégia largamente usada nos
anos 60, para expor novas tendências de
criação e também para dar visibilidade
massiva a propostas de criadores novos
ou em vias de consagração. Às vezes com
caráter competitivo e outras vezes não.
Como exemplo, em termos inter-
nacionais, lembremos que na segunda
metade dos anos 60 os muitos festivais
de rock foram um espaço importante na
difusão dos ideais contraculturais e da
busca por transformar esse gênero musi-
cal em linguagem universal da juventude.
Alguns deles respondiam à organização
da grande indústria discográca, como
101
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Monterey Pop, em 67 (onde são lançados
Jimi Hendrix e Janis Joplin) e os dois da
Ilha de Wight, em 1969 e 1970; outros,
foram resultados de elementos mais ou
menos subversivos, dissidentes dos pri-
meiros. O festival de Woodstock (1969)
pertenceu à segunda categoria. Nele se
reuniu quase meio milhão de pessoas, no
interior dos EUA. Porém, em Altamont, na
Califórnia, no nal de 69, com a presença
dos Rolling Stones, prenunciou-se o m
desses grandes festivais de rock: quatro
pessoas mortas, entre elas um negro,
assassinado pelos Hell’s Angels, grupo
direitista norte-americano. O sonho de
uma geração começava a acabar, “pois a
confraternização ocasionada pelo rock, o
espírito de ´paz e amor´ dos hippies, se
viram invadidos pela violência, pela morte
e pela discriminação. A Era de Aquários,
dominada por Eros, perdia preciosos es-
paços. Thanatos novamente se impunha”
(NERCOLINI, 1997, p.340).
Quanto a festivais com caráter
competitivo, dois deles, Viña del Mar, no
Chile, e San Remo, na Itália, tiveram es-
pecial importância no Brasil, pois foram
a partir desses modelos que as redes de
televisão brasileira organizaram os seus.
Como nos lembra Zuza Homem de Mello,
que fez a mais completa e bem acabada
pesquisa sobre a “Era dos festivais”, no
Brasil, o primeiro a ser organizado aqui foi
em 1960, pela TV Record, que resolveu
encampar a idéia trazida por Tito Freury,
que havia acompanhado, no ano anterior,
o Festival de San Remo. A busca por atrair
audiência investindo em um programa de
competição musical entre cantores e com-
positores, apresentando canções inéditas,
com eliminatórias e júri especialmente es-
colhido para classicar as melhores per-
formances, parecia adequada para o con-
texto brasileiro, com forte tradição musical
e que via, naquele momento, surgir toda
uma nova geração de músicos, tanto de
intérpretes quanto de compositores. Para
a indústria fonográca os ganhos também
eram muitos, sobretudo porque possibili-
tava testar músicas e cantores, possibi-
litando o investimento mais seguros, em
nomes que teriam passado pelo crivo
da crítica e do público. Para os novos cria-
dores, era também um espaço privilegiado
de tornarem seus nomes e suas propostas
conhecidos em escala massiva. Portanto,
fórmula adequada e que respondia ao de-
sejo tanto da indústria fonográca, quanto
da televisão e dos músicos. A repercus-
são do primeiro foi pouca, a transmissão
televisiva foi abortada na última hora e
os intérpretes de todas as canções foram
três cantores contratados pela emissora.
A chamada “Era dos Festivais”, tem como
marco denitivo o I Festival organizado
pela Excelsior, em 1965. A partir daí, além
da Record e da Excelsior, os demais ca-
nais, TV Rio, Tupi e Rede Globo, passa-
ram a investir pesado também no formato,
pois a repercussão de crítica e público foi
grande. Quando acabava um, outro es-
tava começando
2
.
Alguns desses festivais retrataram,
como nenhum outro analista acadêmico
poderia fazê-lo, as diversas visões de Bra-
sil, de arte, de ser e estar no mundo que
conviviam ou, muitas vezes, combatiam-se.
Alguns foram emblemáticos. Vamos a eles.
O I Festival Nacional de Música Po-
pular Brasileira, realizado entre março e
abril de 65, foi organizado pela Excelsior,
com eliminatórias em Guarujá, São Pau-
lo, Petrópolis e nal no Rio de Janeiro. A
grande vencedora foi “Arrastão”, de Edu
Lobo e Vinícius, magistralmente interpre-
tada por Elis Regina, usando e abusando
do gestual e da imagem. Para Zuza de
Mello (2003, p.74), nascia ali um “novo
gênero de programa televisivo, no qual a
platéia se manifestava e torcia”, e segue,
trazendo a metáfora do futebol, só que
“em vez de jogadores e times, cantores e
compositores. Em vez de estádios, auditó-
rios. Nascia uma nova torcida no Brasil, a
torcida pelas canções”.
102
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O estilo próprio e explosivo de in-
terpretar de Elis, aliando voz e gesto no
palco, adaptava-se perfeitamente ao es-
petáculo televisivo. Sucesso garantido.
Logo em seguida, como vimos, foi con-
tratada pela Record para comandar, junto
com Jair Rodrigues, “O Fino da Bossa”,
programa apresentado todas as quartas-
-feiras, com enorme sucesso de público.
no II Festival da MPB, também
organizado pela TV Record, em setembro
e outubro de 1966, em São Paulo, a dis-
puta entre “A banda”, de Chico Buarque, e
“Disparada”, de Geraldo Vandré, cantada
por Jair Rodrigues, mobilizou grande parte
do Brasil. Também se a transformação
de Chico em ídolo massivo. Aliás, cabe
destacar a importância para a MPB da vi-
tória de Elis e Chico nesses respectivos
festivais. A repercussão nacional que am-
bos tiveram foi fundamental para ampliar
o público da MPB, até então restrito mais
aos ambientes universitários. Eles, nesse
momento, foram galgados a ídolos mas-
sivos, atingindo parcelas da população
que até então pouco ou nada conheciam
dessa nova proposta que surgia na cena
musical nacional.
Por sua vez, foi no III Festival da
Música Popular Brasileira, organizado
pela Record, em 1967, que se deu, de for-
ma massiva, o lançamento do Movimento
Tropicalista, com Caetano e Gilberto Gil
apresentando, respectivamente, as anto-
lógicas “Alegria, alegria” e “Domingo no
parque”, acompanhados, respectivamen-
te, dos Beat Boys, grupo de rock argen-
tino, e dos Mutantes, incipiente grupo de
rock brasileiro. O Tropicalismo começava
a tomar forma. A inclusão da guitarra elé-
trica num festival de música popular bra-
sileira foi causa de fortes discussões. Os
tropicalistas, desde o princípio, causaram
polêmica: defensores e acusadores se
apresentaram rapidamente. Caetano e
Gilberto Gil, “antropofagicamente, incor-
poraram os avanços da pesquisa musical
feita no exterior à nossa música, em nível
de som e de letra, sem, no entanto, negar
a sua própria origem brasileiros” (NER-
COLINI, 2005, p.79). Caetano e Gil cria-
ram uma letra cinematográca – “letra-câ-
mara-na-mão” –, certamente inuenciado
pelo cinema de Godard e Glauber (sua
tantas vezes declarada grande paixão).
Em outra composição de Caetano,
lançada na época, “Superbacana”, havia
referência direta a relação entre a MPB
e a televisão. Na parte nal da canção,
aparece citado Um instante maestro, que
serve como senha para introduzir esse
tema, visto que tal expressão referia-se
a um programa da TV Tupi, apresentado
por Flávio Cavalcanti, em que, entre ou-
tras coisas, se analisavam os lançamen-
tos musicais. O apresentador assumia o
papel de defensor da boa música nacio-
nal, e os discos, considerados por Caval-
canti inuenciados por estrangeirismos,
eram sumariamente quebrados no palco.
Pois bem, Caetano, logo após essa cita-
ção, coloca uma série de estrangeirismo
(super-homem, superit, supervinc, su-
perhist, supershell) junto com produtos
nacionais - quentão (festas juninas), por
exemplo -, como a querer armar que a
pretensa “pureza” da MPB, defendida
pelo apresentador e por tantos outros es-
tava sendo “maculada” pela inuência es-
trangeira e continuava viva, superviva.
Antenados com as transformações
que se vislumbravam em outras artes,
especialmente o cinema (a proposta re-
volucionário de Glauber Rocha), o teatro
(o Ocina com a sua forma quase anár-
quica de encenação e a redescoberta de
Oswald de Andrade) e as artes plásticas
(Hélio Oiticica e a obra interativa, Tropicá-
lia e parangolés), os tropicalistas deram
uma guinada nos caminhos da MPB. Pro-
punham rotas alternativas, bebendo em
fontes renegadas por colegas músicos
que estavam mais voltados à defesa de
uma música popular pretensamente mais
103
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
“pura” e ligada às “raízes”, sem deixar de
lado a Bossa Nova, de João Gilberto e
Tom Jobim, buscando retomar daquela o
que Caetano chamava de a linha evolu-
tiva dentro da MPB, para dar-lhe organi-
cidade e ampliar os critérios de seleção e
julgamento na criação.
Por outro lado, tivemos nesse
mesmo festival, a apresentação de “Pon-
teio”, de Edu Lobo - a grande vencedo-
ra, expressão dos padrões consagrados
pela MPB de então: ligada à linha nacio-
nal popular, com destaque para o mote
característico dessa tendência: “o dia que
virá” e o papel fundamental do cantador
de chamar esse novo dia, em que livres
das amarras, poder-se-ia celebrar nova-
mente a liberdade.
Por m, Chico Buarque com “Roda-
-viva”, mostrando o seu desencanto com
o show business, questionando o poder
do cantor e da música. Em “Roda-viva”,
Chico descarrega todo o seu desconten-
tamento diante de um sistema que acaba
por coisicar as pessoas, uma roda-viva
que arrasta consigo o destino das pesso-
as, as roseiras, o violão, a saudade... O
autor desenha o seu auto-retrato em um
período em que se sentia conduzido pelo
esquema do sucesso.
Fundamental perceber que a rela-
ção desses cantores e compositores com
os mecanismos da televisão se foi mar-
cada pela negociação, nunca também
faltaram os embates e as polêmicas. Se,
nesse mesmo festival, Caetano, em “Ale-
gria, alegria”, dizia que “sem lenço e sem
documento”, poderia “cantar na televisão”,
entrando no esquema, para, como vai ar-
mar mais tarde, explodir tais esquemas
de dentro, demonstrando mais uma vez a
atitude tropicalista de manter aberto o diá-
logo e interferir diretamente nos meios de
comunicação de massa; Chico, em “Roda
Viva”, mostra-se desconforme com esse
mundo glamuroso e sufocante gerado
pelos meios massivos, sobretudo o tele-
visivo. Perpassa toda a composição uma
sensação de agonia, desesperança, como
quem partiu ou morreu. O autor, qual uma
criança, após tanto rodar, não se sente
com os pés no chão, perdeu o domínio
sobre si mesmo. Apesar de querer ter voz
ativa e em seu destino mandar, de tentar
ir contra a corrente, não consegue resistir.
Sente-se engolido por um sistema mais
poderoso que ele. Ilustrativo dessa sensa-
ção de aprisionamento é seu depoimento
dado em pleno apogeu de seu sucesso,
em 1966, ao Museu da Imagem e do Som,
ao ser perguntado sobre como se sentia
diante da máquina do sucesso:
Me sinto mal pra burro. (. . .) Pois é,
isso atrapalha um bocado, porque eu
pedi para acabar o show dia 15, para
descansar um pouco, mas não eu não
vou poder descansar, não. (. . .) Es-
tou vendo que até o m de ano eu vou
ter que... sumir... Não. Eu estou vendo
que até o m de ano, vou ter que en-
trar na máquina e não tem jeito de sair.
Ou então, fora desse sufoco,
Chico (apud BOCANERA, 1971) arma:
“O período de badalação em minha car-
reira, a época dos festivais e do apertar
botão na televisão aconteceu sem que eu
tivesse programado e, muito menos, pu-
desse controlar”.
Essa composição (e também a
montagem da peça com o mesmo nome,
feita por José Celso Martinez) represen-
tou um momento importante na carreira
e na vida de Chico Buarque. Ele busca-
va romper com a imagem de bom moço,
bem comportado, que se deixava levar por
produtores e pelo mundo da indústria do
sucesso. Ruy Castro, em artigo publica-
do em 68, analisando esse episódio, dá o
tom do debate com a televisão, armando
que essa “pretende transformar seres hu-
manos em objetos de lazer de espectado-
res insaciáveis”, manipulando por controle
104
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
remoto “os gostos, as atitudes e o com-
portamento da massa, coisicando”. Mas
não custa lembrar que tal composição foi
inscrita e apresentada em um festival da
canção, organizado e transmitido pela te-
levisão, anal era um canal privilegiado,
que possibilitaria que seu protesto alcan-
çasse grandes públicos. Se por um lado
gerava dividendos para a máquina televi-
siva, mesmo quando contra ela se falava,
também gerava espaço de divulgação dos
próprios cantores e compositores. Uma
via, portanto, controversa e de mão dupla.
Outro importante momento foi o III
Festival Internacional da Canção, realiza-
do em 1968, organizado pela TV Globo.
Teve entre os concorrentes: Caetano Ve-
loso com “É proibido proibir” e sua con-
tracultura anarco-tropicalista; Vandré com
“Caminhando”, canção síntese do mo-
vimento nacional-popular, feita em dois
acordes e com uma mensagem explicita-
mente política, objetivando conscientizar
as massas; e Chico Buarque, unido a Tom
Jobim, com “Sabiá”, resgatando da Bos-
sa Nova a harmonia e singeleza do som,
aliado a uma letra renada, pregurando
o que viria a ser a especialidade desse
poeta: a linguagem velada ou a lingua-
gem da fresta.
Foi nesse festival que o embate en-
tre “engajados” e “desbundados-tropicalis-
tas”, presente em 67, tomou forma de
maneira mais pungente. Na eliminatória
paulista, feita no Tuca (Teatro da Universi-
dade Católica), Caetano Veloso apresen-
tou a sua canção “É proibido proibir”, de
maneira performática e anarco-tropicalis-
ta. Momento emblemático do 68 brasileiro.
Vale à pena analisá-lo.
Expressão de um tempo sombrio,
carregado de censuras, “É proibido proi-
bir”, cuja letra surge a partir de uma das
frases pintadas nos muros de Paris, está
inserida dentro do espírito 68, do maio
francês. A letra se propõe a atacar todas
as proibições, sejam morais, físicas ou
ideológicas. Contra a interdição ao pra-
zer, ao sexo, Caetano diz “não ao não”. A
repressão existe sim e é preciso dizer não
a ela. Permanecer sicamente livre até o
momento em que seguisse as regras es-
tabelecidas pelo governo militar ou então
poder criar livremente até não atingir os
dogmas da direção partidária, seria de
fato liberdade? Derrubar as convenções,
as tradições, a mesmice! Coloque-se por
terra tudo: vidraças, louças, livros, prate-
leiras, estátuas, intelectuais. Nada é para
sempre, tudo pode ser desfeito, quebra-
do, desmontado, questionar até mesmo o
inquestionável.
Mais do que a letra da canção em
si, a apresentação de “É proibido proi-
bir” transformou-se num marco dentro da
MPB e da “Era dos festivais”, pois tornou
pública a discussão sobre o cerceamento
criativo nas artes feito não somente pela
censura castradora da direita, mas tam-
bém pelas chamadas patrulhas ideológi-
cas de esquerda.
A letra da música e o som que mis-
turava guitarra, baixo, bateria, vozes estri-
dentes, completaram a performance. Em
meio a um público predominantemente de
jovens universitários de esquerda, Caeta-
no se enfrentando vaias ensurdecedo-
ras. O público politizado e “open mind” vê
diante de si um baiano, vestido com rou-
pas de plástico e coloridas, com cabelos
grandes e desalinhados, que não se apre-
sentava de maneira tradicional, mas mo-
vimentava os quadris, acompanhado de
um conjunto de rock que seguia o mesmo
ritmo de seu antrião, e, para completar,
um hippie norte-americano que entrava
palco a dentro, gesticulando e berrando
palavras incompreensíveis. A platéia de
esquerda, como todo bom Narciso, acha
feio o que não é espelho. Vaias podiam vir,
e vieram, e muitas, servindo de combustí-
vel para o que ainda faltava: transformar
aquelas imagens em palavras, no famo-
105
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
so discurso de Caetano Veloso diante do
público que o vaiava. É proibido proibir, é
proibido censurar:
Mas é isso que é a juventude que diz
que quer tomar o poder. Vocês têm
coragem de aplaudir esse ano uma
música, um tipo de música que vocês
não teriam coragem de aplaudir o ano
passado. São (sic) a mesma juventu-
de que vão sempre, sempre, sempre
matar amanhã o velhote inimigo que
morreu ontem. Vocês não estão en-
tendendo nada, nada, nada. Absoluta-
mente nada. (...) Mas que juventude é
essa? Que juventude é essa? Vocês
jamais conterão ninguém. Vocês são
iguais sabe a quem? (...) Aqueles que
foram no Roda-viva e espancaram os
atores. Vocês não diferem em nada
deles. Vocês não diferem em nada. (...)
O problema é o seguinte, vocês estão
querendo policiar a música brasileira.
(...) Nós, eu e ele, tivemos coragem de
entrar em todas as estruturas e sair de
todas. E vocês... Se vocês forem em
política como forem em estética, esta-
mos feitos (...).
3
A quem se destinava esse discurso?
Quem eram os seus interlocutores? Aque-
les estudantes que o vaiavam? Também
eles, mas não somente. Direcionava-se
a uma boa parcela da intelectualidade de
esquerda, ainda marcada por padrões de
comportamento rígidos, que, na visão tro-
picalista, estava querendo policiar a produ-
ção cultural brasileira, descartando as pro-
postas que não se encaixassem em seus
pressupostos. Direcionava-se a um gover-
no militar cerceador de liberdades, para
quem É proibido proibir soava como insul-
to. Direcionava-se aos seus companheiros,
os cantores e compositores ligados à -
sica popular brasileira, a m de sacudi-los
de suas posições e buscando ampliar o es-
copo da MPB, alargando seus horizontes
para outras propostas e sonoridades. Ca-
etano rearma essa postura transgressora
do Tropicalismo em entrevista à revista O
Cruzeiro, em outubro de 68:
Às favas a opinião pública, os precon-
ceitos, a mania de tudo certinho, qua-
dradinho, bonitinho. É proibido proibir
mesmo! Seja o que for (ou haja o que
houver). Caetano Veloso, Gilberto
Gil e Os Mutantes estão dispostos a
agüentar com todas as conseqüências
pelo direito de ser o que são. Guitarras
elétricas em ritmo de loucura. Luz psi-
codélica. Gritos. Muitos gritos. Urros
até. Uma verdadeira alucinação.
Mas a polêmica nesse III Festival In-
ternacional da Canção continuou, na fase
decisiva, no Rio de Janeiro. Chico ou Van-
dré? “Caminhando”, de Geraldo Vandré,
respondia perfeitamente aos anseios das
esquerdas de então. A simplicidade musi-
cal, aliada a uma letra explicitamente polí-
tica e arregimentadora - Vem, vamos em-
bora, que esperar não é saber - ganhou o
público do festival, formado em sua maioria
por universitários de tendências à esquer-
da, e foi sendo transformada com o passar
em hino da resistência à ditadura. A vitória
de “Sabiá” desencadeia uma onda de pro-
testo, vaias e acusações que atingem dire-
tamente a Chico Buarque, aquele que com
o tempo foi se transformando num dos prin-
cipais nomes, dentro da mundo da música,
na luta contra a ditadura. Os tempos não
eram nada fáceis, as grandes polêmicas e
enfrentamentos estavam na ordem do dia.
A intelectualidade, como arma Heloísa
Buarque de Hollanda (1996), passa então
a se questionar o sentido e as formas do
engajamento político, e a “polêmica Vandré
X Chico talvez seja o exemplo mais con-
tundente disso. A acusação de ‘alienação’
para Chico abriu bastante nossas cabeças
que já estavam propensas em acreditar
que o pessoal é o político.”
O pretenso lirismo alienado de “Sa-
biá”, na verdade, era somente aparente,
pois, assim como em “Carolina”, “A ban-
106
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
da” e tantas outras das composições bu-
arqueanas, o uso do particular, como no
caso da moça que se recusava ir para a
rua, ou das transformações passageiras
causadas pelos músicos e seus instru-
mentos durante sua passagem pelas ruas
de uma cidade, servem de pano de fundo
para uma crítica radical às proibições de
ocupação do espaço público. Os críticos
viram em “Sabiá” o tom nostálgico, a leve-
za, o lirismo; mas não conseguiram perce-
ber, nas entrelinhas, a na ironia presente
nessa paródia da “Canção do exílio”, de
Gonçalves Dias, a descrever um país, an-
tes pujante e belo, que agora estava des-
gurado, anômalo e dissonante.
E por m...
A “Era dos festivais” tem seu auge
em 1968. A partir daí começa o declínio
e o desgaste da fórmula. No início da dé-
cada de 70 os principais canais desistem
de promover grandes festivais. Na déca-
da de 80 a Rede Globo tenta retomar a
fórmula, conseguindo relativo sucesso,
mas também com curta duração. Novos
tempos exigiam novas estratégias e ou-
tros investimentos.
Na década de 60, em um quadro
sócio-político marcado pela censura, dita-
dura e perseguições, brechas precisaram
ser abertas. A Música Popular no Brasil,
com seus cantores e compositores, foram
pontas de lança a forjar espaços interdi-
tos. Diante de uma situação kafkaniana, a
palavra se junta à melodia pelas mãos de
cantores e compositores, metamorfosean-
do-se para continuar ocupando o espaço
público. Ocupar o espaço trazido pela te-
levisão, através dos programas musicais
e dos festivais, foi fundamental para fa-
zer ecoar sua arte e seu protesto, através
dos versos, da música, do happening, do
remelexo do corpo, da performance, pro-
ferindo o grito que não era somente seu,
mas de todos os que sofriam a cassação
da palavra. Durante esse período, muitas
vezes, essa foi uma das poucas maneiras
que se pode contestar nesse país.
Enm, se, por um lado, a televisão
se valeu da nova geração de criadores mu-
sicais para rmar e aumentar seu público,
por outro, esses próprios criadores, atra-
vés da televisão, tornaram-se conhecidos
nacionalmente e tiveram suas canções e
idéias divulgadas para um público muito
maior do que aquele que poderia ser atin-
gido por seus espetáculos. Se nem todos
podiam comprar o ingresso para assistir o
espetáculo Opinião, se nem todos podiam
adquirir os discos e participar dos shows
de Caetano Veloso ou Chico Buarque, mi-
lhares podiam vê-los pela televisão, nos
seus programas e durante os festivais, e
simpatizar com essa ou aquela proposta,
conhecer através da música, dos gestos,
da forma de vestir e falar, as idéias e a
visão de mundo dos artistas. E os festivais
da canção e os programas musicais feitos
à época foram instrumentos privilegiados
para fazerem isso.
Bibliograa:
ALVES DE LIMA, Marisa. Abaixo os preconceitos.
O Cruzeiro, Rio de Janeiro, v.40, n.43, p.104-105,
26 out. 1968.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência na-
cional. São Paulo: Ática, 1989.
BOCANERA, Sílio. Chico: a reconstrução. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 25 nov. 1971. Caderno B.
BUARQUE DE HOLLANDA, Chico, 1966. Depoi-
mento dado ao Museu da Imagem e do Som, Rio
de Janeiro, em 11 de novembro de 1966.
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. Depoimento
dado ao autor em 18 de novembro de 1996.
CASTRO, Ruy. Chico: o samba que nasce do açou-
gue. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 abr. 1968.
107
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
FONSECA, Heber. Caetano, esse cara. Rio de Ja-
neiro: Revan, 1993.
MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais. São
Paulo: Ed. 34, 2003.
MORIN, Edgar. Sociologia. Portugal: Europa-Amé-
rica, 1984.
NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia
e massicação (1950-1980). São Paulo: Contexto,
2004.
NERCOLINI, Marildo J. Artista-intelectual: a voz
possível em uma sociedade que foi calada. Disser-
tação de mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 1997.
__________. A construção cultural pelas metáfo-
ras: A MPB e o Rock Nacional Argentino repensam
as fronteiras globalizadas. RJ: UFRJ/ LETRAS,
2005. (Tese defendida no Programa de Ciência da
Literatura.)
SANDRONI, Carlos. “Adeus à MPB”. In: CAVAL-
CANTE, B., STARLIN, H.M. e EISENBERG, J.
(org.). Decantando a República. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004. Vol. 1. p. 23-35.
WISNIK, José Miguel. “O minuto e o milênio ou
por favor, professor, uma década de cada vez”. In:
BAHIANA, Ana Maria et alii. Anos 70 – Música Po-
pular. Rio de Janeiro: Europa, 1979.
__________. “Rótulo não serve para classicação
musical.” Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada,
8 jan. 1996, p.1.
1
Professor da graduação em Estudos de Mídia e do
programa de pós-graduação em Cultura e territorialida-
des da Universidade Federal Fluminense.
2
Para análise mais detalhada, sugere-se o excelente
livro de Zuza Homem de Mello (2003), “A era dos fes-
tivais”, mais completa e abrangente pesquisa sobre os
festivais da canção, no Brasil.
3
Ver transcrição completa em FONSECA, 1994, p.91
Contato:
- mjnercolini@gmail.com
108
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A persistente inscrição da fala da periferia
no Movimento Literário Brasileiro
La persistente inscripción de la habla de la periferia
en el Movimiento Literario Brasileño
The persistent enrollment of the speech of the periphery
in the Brazilian Literary Movement
Rôssi Alves-Gonçalves
1
Resumo:
Este estudo propõe-se a reetir sobre o percurso da Literatura de
periferia, da sua origem, em São Paulo – nos presídios, comunidades
e em outras áreas de exclusão –, até o lançamento da coletânea
carioca FLUPP Pensa. Nessa direção, serão apontadas algumas
questões caras aos autores iniciais, os caminhos da legitimação,
a construção da autoria e o viés adotado pela fala carioca, distinta
da produção paulista, considerada aqui um índice de aceitação e
reconhecimento pela crítica e público leitor desse lugar de enunciação.
Na medida em que se zerem necessários, alguns autores, como os
da antologia Letras de Liberdade, da FLUPP e o escritor Ferréz serão
citados para corroborar algumas percepções.
Palavras chave:
Legitimação
Periferia
Autoria
Discursos
109
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este trabajo se propone reexionar sobre el camino de la Literatura
de periferia, desde su origen, en São Paulo en los presidios, las
comunidades y en otras áreas de exclusión –, hasta el lanzamiento de la
compilación carioca FLUPP Pensa. En este sentido, serán presentadas
algunas cuestiones caras a los autores iniciales, los caminos de la
legitimación, la construcción de la autoría y el sesgo adoptado por la
habla carioca, distinta de la producción paulista, ya aquí considerada un
índice de aceptación y reconocimiento por la crítica y el público lector de
este lugar de enunciación. En la medida en que se necesiten, algunos
autores, como los de la antología Letras de Liberdade, de la FLUPP, y
el escritor Ferréz, serán citados para corroborar algunas percepciones.
Abstract:
This article proposes a reection on the path of the Literature of the
periphery, from its origins in São Paulo in prisons, communities and
other areas of exclusion to the release of the carioca compilation
FLUPP Pensa. In this matter, some issues that initial authors hold
dear will be pointed out, the paths of legitimation, the construction
of authorship, and the bias of the carioca speech, which is different
from the paulista production, already considered here as an index
of acceptance and recognition by critics and readers of this place of
enunciation. In so far as necessary, some authors, such as the ones
of the anthology Letras de Liberdade, of FLUPP, and the writer Ferréz,
will be quoted to corroborate some perceptions.
Palabras clave:
Legitimación
Periferia
Autoría
Discursos
Keywords:
Legitimation
Periphery
Authorship
Speeches
110
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A persistente inscrição da fala da periferia
no Movimento Literário Brasileiro
Nos anos 90, teve início uma mo-
dalidade de escrita que, embora não cons-
tituísse uma novidade, era algo diferente.
Acostumado a produções literárias que
faziam incursões pelos subúrbios e fave-
las, de autoria de renomados jornalistas,
pesquisadores e similares, o mercado li-
terário viu surgirem textos cujos autores
eram presidiários, moradores de favelas,
excluídos sociais.
Até, então, as excelentes produ-
ções que giravam em torno da vida mise-
rável, partiam de um ponto de vista ex-
terno. Apesar de Foucault ter anunciado,
muitas décadas antes, o m da neces-
sidade da intermediação do intelectual,
ainda se vivia, no Brasil, um momento em
que, para ouvir o excluído, era preciso um
mediador reconhecido.
Dos canais autorizados, o nome
mais notável, ainda, é o de Rubem Fon-
seca. Esse autor, durante muito tempo, foi
o maior tradutor da vida na marginalida-
de: periferia, violência, exclusão sempre
estiveram presentes em seus textos. E
por muito tempo o conhecimento que se
tinha, via cção, da vida fora da ordem
sociocultural foi passado por ele e seus
seguidores.
Pereba, você não tem dentes, é ves-
go, preto e pobre, você acha que as
madames vão dar pra você? Ô Pere-
ba, o máximo que você pode fazer é
tocar uma punheta. Fecha os olhos e
manda brasa.
Eu queria ser rico, sair da merda em
que estava metido! Tanta gente rica e
eu fodido. (FONSECA, 1989, 14)
Assim, Zuenir Ventura, Drauzio
Varella, Paulo Lins, Patrícia Melo, entre
outros, foram alguns dos poucos respon-
sáveis por explorar o cotidiano e as perso-
nagens típicas do submundo. Romances,
entrevistas, pesquisas e experiências
foram divididas com os leitores e “prepa-
raram” o campo literário para a chegada
de obras que “deixam” o excluído falar.
“Deixam”, porque mesmo admitindo-se as
qualidades do discurso, ainda se faz ne-
cessário, algumas vezes, um nome res-
peitado a autorizar a leitura.
Quando Dráuzio Varella lançou Es-
tação Carandiru, em 1999, esse tipo de
produção literária que apresenta perso-
nagens excluídos, auspiciados por nomes
ilustres do meio cultural, não foi recebi-
do como uma novidade. Anos antes, em
1994, Zuenir Ventura, em Cidade Parti-
da, dera início a um tipo de literatura que
apresentava vozes múltiplas - de bandi-
dos, moradores de áreas carentes, re-
presentantes de ONGs, funkeiros... Tudo
costurado a uma fala investigativa e, ao
mesmo tempo, extasiada.
Dráuzio Varella apresentou os pre-
sos do Carandiru; Zuenir Ventura apre-
sentou Vigário Geral e seus personagens
e transformou a favela em ponto cultuado
por um longo tempo. Em 2002, o jornalis-
ta Bruno Zeni tornou conhecido o preso
André du Rap, um detento do Carandiru.
Bruno Zeni foi coordenador editorial de
Sobrevivente André du Rap, do massacre
do Carandiru (Labortexto editorial). O li-
vro reúne entrevista, cartas, depoimentos
e feitos de um dos mais famosos presos
daquela penitenciária.
Antes disso, assim, rolaram várias
confusões onde eu morava. O dono
da casa descobriu que eu tava fora-
gido da justiça. Meu irmão veio para
São Paulo, deixou a casa na minha
responsabilidade, e não voltou mais,
com medo de car perto de mim.
Passou umas duas semanas e a mu-
111
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
lher dele na época, Eliane, veio tam-
bém, com os dois lhos, subiu pra
São Paulo, e me deixou sozinho lá.
Eu não podia vir pra são Paulo que
eu era procurado. tava no jornal,
no rádio, anunciando: procurado,
suspeito. Eu quei lá, trabalhando
de servente de pedreiro numa obra.
(ZENI, 2002, p.33)
Essas obras realçaram, apesar do
espaço de tempo entre um lançamento e
outro, que muito existia um inegável in-
teresse em iluminar as outrora chamadas
“classes perigosas” - como vivem, o que
pensam, o que querem, por que assus-
tam. E com a literatura, surgiram vários
programas de tevê, lmes e organizações
que ajudaram a desnudar tais classes e,
de algum modo, a desconstruir um olhar
enclausurante sobre elas. Sim, a periferia
se tornava um lugar de consumo.
O maior comunicado que esses
livros trouxeram foi o de que a função
do legitimador - o apadrinhamento - era
necessária. Mesmo com tantos lança-
mentos de excluídos sociais, aqueles
que chegavam mediados por um nome
ilustre ainda eram os mais comentados,
vendidos e transformados em documen-
tários, lmes, seriados. Para que um livro
se tornasse um grande sucesso era im-
prescindível a assinatura famosa do jor-
nalista, do médico, do jurista e de outros
representantes de importantes catego-
rias prossionais. As narrativas sobre cri-
mes, destruição, dor, escassez cavam
signicativamente menos abomináveis,
quando amparadas por uma ilustre gura
- incluída - da sociedade cultural.
Uma obra desta natureza serviria para
que se percebesse a importância do
que dizia Concepción del Arenal que
não criminosos irrecuperáveis,
mas irrecuperados, quando armava
sempre que “a,sociedade e o Estado
não cuidam de dar condições para
sua recuperação. De rigor, são, Esta-
do e sociedade, mais culpados que os
próprios condenados”.
Termino esta breve análise, com a
mesma frase que os encarcerados di-
zem para os que saem de suas celas:
“Firmeza, irmão”. (SILVA, 2000, p.99)
2
A questão “quem está falando”, no
campo das letras, na década de 2000,
era, então, de suma importância. O que
nos remete ao célebre texto do antropó-
logo Roberto Da Matta: Você sabe com
quem está falando? (1990, p. 146). Nes-
se texto, Da Matta faz um apurado estudo
sobre as situações em que o “Você sabe
com quem está falando?” é usado. Ob-
serva que é uma utilização considerada
antipática até mesmo por aqueles que fa-
zem uso constante dela. Todos condenam
a prática, mas, na primeira oportunidade,
utilizam-na, sem pudor:
(...) ‘Você sabe com quem está falan-
do?’ implica sempre uma separação
radical e autoritária de duas posições
sociais real ou teoricamente diferen-
ciadas. Talvez por isso, essa maneira
de dirigir- se a um outro, tão popular
entre os brasileiros, seja sistematica-
mente excluída dos roteiros sérios
ou superciais- que visam denir os
traços essenciais de nosso caráter
enquanto povo e nação. O “você sabe
com quem está falando?”, então, so-
bre não ser motivo de orgulho para
ninguém dada a carga considera-
da antipática e pernóstica da expres-
são - ca escondido de nossa ima-
gem (e auto imagem) como um modo
indesejável de ser brasileiro, pois que
revelador do nosso formalismo e da
nossa maneira velada (e até hipócri-
ta) de demonstração dos mais violen-
tos preconceitos.
Da mesma forma, é comum o
leitor agir. O autor da frase “Você sabe
112
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
com quem está falando?” emite-a na
qualidade de ser superior que não pode
submeter- se às mesmas leis dos outros
indivíduos. Entretanto, os autores aqui
estudados, quando de sua estreia, não
possuíam um “nome” a apresentar. O que
torna bastante complicada a iniciação no
mercado literário, num sistema em que o
“Você sabe quem assina?” é fundamental
para a compra do livro.
A partir desses facilitadores, des-
ses mestres de cerimônia
3
, tornou-se me-
nos embaraçosa a recepção dos textos.
Mesmo quando os legitimadores não
assinam as obras, estas se encontram
avalizadas por se inscreverem dentro da
mesma rubrica daqueles livros apadrinha-
dos. Quando os textos de autores desco-
nhecidos - sub-urbanos - nos chegam,
construímos, de imediato, um “lugar”
para aquele autor, uma história, caracte-
rizamos a narrativa. A marca sub-urbano/
detento
4
nos informa, com algum acerto,
o enredo. Ela exerce uma função classi-
cativa: o texto sob esta rubrica abordará
a miséria, vida carcerária, violência, pron-
tidão de sentidos, solidariedade. O leitor,
não obstante não reconhecer o nome do
autor, sabe o que poderá encontrar na-
quela obra. A observação de Foucault, a
respeito do nome do autor - “um tal nome
permite reagrupar um certo número de
textos, delimitá-los, selecioná-los, opô-
-los a outros textos” (1992, p.44) - explica
a relação que se estabelece entre as no-
vas produções.
Ferréz, Jocenir, Luiz Alberto Men-
des, Allan Da Rosa, Sérgio Vaz
5
, entre
tantos outros, são nomes que desligados
da marca detento/sub-urbano não esta-
beleciam um sentido. São, no entanto,
conhecidos, agora, de uma parte do -
blico leitor, porque estão todos ligados a
um mesmo tipo de produção textual. Es-
ses nomes justicam o enredo, o ponto
de vista, a temática, criam um gênero -
literatura de periferia.
Era dia, José Antônio tomou o primeiro
gole de café, teve vontade de cuspir,
estava sem açúcar (...) José esperou
15 minutos, entrou no ônibus, pagou a
condução. A viagem foi rápida ,foi toda
de (...) Chegou à força sindical, -
cou na la, número 293. Um senhor
na sua frente reclamava, não havia
trazido coberto. Foi quando notou que
varias pessoas a sua frente. Estavam
dormindo, o sol era tímido, o tênis não
lhe fazia mais vergonha, estava de
igual para igual com todos ali, calça
jeans desgastadas, camisas brancas
com golas levemente amareladas vin-
das de anos de caminhada à procura
de emprego, duas horas depois e não
tinha dado um passo sequer, começou
a sentir fome. (FERRÉZ, 2003, p. 145).
São proprietários de um discurso
que, até alguns anos, era pronuncia-
do por um canônico grupo de escritores.
Tornaram-se responsáveis por uma fala
sub-urbana que, pelo menos, por hora,
não pode ser desvinculada da grande pro-
dução literária brasileira.
No entanto, a atribuição da função
autor é feita considerando-se os muitos
outros escritos que podem ser incluídos
na mesma marca da sub-urbanidade e
não apenas com relação a um texto, de
um único autor. A atribuição é feita com
relação à função autor realizada através
da categoria detento, sub-urbano. Não se
fala em função autor, da mesma forma
que Foucault nos apresenta. A função au-
tor, aqui, é marcada pelo estigma margi-
nal. O mesmo se pode estender às obras
de Ferréz. Quem fala é um sub-urbano.
E é esse lugar, o da sub-urbanidade, que
estabelece um sentido, um sentimen-
to que vai atravessar o livro e indicar o
“como” ele deve ser recebido.
É o conhecimento que temos de um
texto e de outro texto produzido na sub-
urbanidade que constrói o “conhecimen-
113
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
to” a respeito dessa função autor. Tal qual
Foucault observa para o nome do autor, a
identicação detento/sub-urbano equivale
a uma descrição (1992, p. 44):
(...) um nome de autor não é simples-
mente um elemento de um discurso(...)
ele exerce relativamente aos discursos
um certo papel: assegura uma função
classicativa(...) indica que esse dis-
curso não é um discurso quotidiano, in-
diferente, um discurso utuante e pas-
sageiro, imediatamente consumível,
mas que se trata de um discurso que
deve ser recebido de certa maneira e
que deve, numa determinada cultura,
receber um certo estatuto.
E pode-se armar que os represen-
tantes da escrita marginal, seja através
de nomes legalizadores, de editoras “ha-
bilitadas” que consubstanciavam as pro-
duções, e da dicção singular das obras,
ressemantizaram um panorama literário
que sempre guardou um difícil lugar na
Literatura brasileira.
Legitimação e fala da periferia carioca
As questões acima apontadas rela-
tam, sucintamente, o caminho das letras
da periferia na última década. Passados
mais de dez anos do seu início, a pala-
vra da periferia traz algumas novidades:
ocupa um lugar relevante na história da
Literatura Brasileira; o Rio de Janeiro se
apresentou, através da produção da FLU-
PP; os escritores (aqueles iniciadores)
tornaram-se conhecidos de um público
mais abrangente; têm um lugar certo em
quase todos os eventos literários, entre
outros ganhos. Tudo isso, embora pareça
não possuir ainda uma “independência”
mercadológica que a sustente. Um senão
complicado de entender.
Não obstante esteja num momen-
to em que a escrita da periferia não traga
novidades constantes, as produções são
muitas. Seja através de editoras reno-
madas ou alternativas, os lançamentos
permanecem num ritmo interessante.
6
O que poderia sugerir, a princípio, um
movimento “de revolta” contra o câno-
ne - branco, elitista, acadêmico, centris-
ta - mostra-se com fôlego para manter a
ocupação de um lugar na conservadora
área da Literatura.
Tomando a denição de Literatura
como “um sistema de obras ligadas por de-
nominadores comuns, que permitem reco-
nhecer as notas dominantes duma fase”
(CANDIDO, 2006, p.25), os discursos da
periferia podem ter causado pouca turbu-
lência no cânone literário brasileiro, mas
criaram estratégias duradouras e ecien-
tes para deixar falar a periferia. É ainda
Candido (citando Benda) que nos auxilia,
quando comenta a função do Movimento
Romântico Brasileiro - “uma história dos
brasileiros no seu desejo de ter uma lite-
ratura”. Pelas estratégias adotadas, pelo
“arrombamento da porta”, o Movimento da
Literatura Periférica criou um lugar memo-
rável na Literatura Brasileira, possui um
regular número de leitores, reúne um con-
junto de produtores com anidades ideo-
lógicas e desejo de (re)presentar, literaria-
mente, o cotidiano de suas comunidades.
constantes mesas de debates,
congressos, críticas em livros abarcando
essa produção, o que, a despeito de respal-
darem a escrita ou não, revela que é este
um movimento cuja problematização tem-
-se feito necessária.
7
Entretanto, o que ca-
racteriza-se como a grande novidade, nesta
década, é a iniciação carioca nesta área.
FLUPP Pensa é uma coletânea de
43 textos, organizada por Julio Ludemir,
Écio Salles e Heloísa Buarque de Hollan-
da, resultado de um projeto envolvendo
13 comunidades cariocas - nem todas
pacicadas e a Academia de Polícia
Militar, em que moradores e policiais
114
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
inscreveram-se e participaram de 14 o-
cinas ministradas por nomes, como Italo
Moriconi, Luiz Ruffato, Caco Barcelos,
Ferréz, Eliane Brum, entre outros. A cada
encontro, os uppenseiros produziam
um texto para ser avaliado, até chegar à
seleção nal.
Com relação à autonomia edito-
rial, o livro carioca mostra que a categoria
dos legitimadores está, ainda, fortalecida.
Haja vista, os nomes célebres da crítica
e do fazer literários que ofereceram o-
cinas. E os nomes envolvidos na orga-
nização da obra não abrem muitas pos-
sibilidades de contestação à legitimidade
da mesma. Ou seja, avançou-se pouco
nesse sentido.
Mas com relação à temática, o
que se reetir. A fala apresentada pelos
escritores da FLUPP Pensa, em quase
sua totalidade, aponta para outra constru-
ção da periferia. As constantes e elabo-
radas descrições dos dramas cotidianos
que as obras paulistas mostram aparecem
remodeladas na obra carioca. Fala-se do
mesmo lugar e com uma pauta comum de
problemáticas. Porém, os textos cariocas
buscam, através do sonho, da mágica, do
otimismo, um m feliz “Relaxa que daqui
a pouco melhora”
8
.
Uma das melhores narrativas da
coletânea é “Avenida Brasil”, de Cirlene
Marinho, em que a comprida, engarrafada
e perigosa avenida serve de espaço para
um passeio pelo Rio e pelos persona-
gens cariocas. O narrador age como um
âneur, traduzindo as belezas, alegrias,
obras – variadas sensações experimenta-
das pelos moradores:
Puta merda! Só de imaginar a mara-
vilha que vai isso aqui, caralho! Esta
Avenida está cando foda! Aqui a se-
gunda Cidade do Samba do Rio e,
na frente, no prédio da antiga Rheen
Química, o Funkódromo. Demorô!
tô até vendo a mulherada balançando
o popozão ao som do batidão! Aaah,
moleeeque! (MARINHO, 2012, p 67)
Apontam com muita insistência
para as mazelas da cidade e dores de
uma vida sem oportunidade, sorte, cida-
dania. Entretanto, a fala de lamento ou de
revolta, tão comum a esta literatura, é, em
muitos textos, relativizada, atenuada e até
mesmo (re)ccionada com a proposta de
uma cidade que, se não é o lugar da felici-
dade, será.
O tempo aqui da laje parece não
passar e não noto que são quase
cinco horas e o sol ainda está muito
forte. A minha sorte é que uma parte
de minha laje é coberta pela copa de
uma amendoeira. Mesmo com todo
sol, calor e a queimação no corpo, os
viciados do cerol não arredam o
tentando por vezes se esconder em
uma nesga qualquer de sombra. (SIL-
VA, 2012, p.35)
Isso não implica na exclusão das
denúncias: estão bem marcadas em al-
guns textos que trazem a questão das
UPPs, das balas que traçam os céus ca-
riocas, das mortes por tráco, do desem-
prego, entre outros:
Olhei para frente e vi uma criança
nua, barriguda, aparentando ape-
nas dois anos, chorando, correndo e
olhando para trás, com medo da via-
tura que estava se aproximando em
velocidade(...) Um misto de adrenali-
na e insatisfação encheu meus olhos
de lágrimas, mas era um choro que
se chora para dentro, sabe?! (HIGI-
NO, 2012, p. 213)
Mas o sentimento que atravessa a leitura
da coletânea é o otimismo.
De súbito, com um movimento rápido
e rme, Messias dobrou o braço de
115
Ano 3, número 4, semestral, março 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Armando para trás, imobilizando-o.
Com um pedaço de corda de nylon,
amarrou-o à grade do portão (...) Em
seguida, partiu. Desceu todo pimpão,
assoviando pela Rua São Clemente.
Dobrou à esquerda, pela Sorocaba,
e desapareceu; rico e feliz, em bus-
ca de cem anos de perdão. (ROCHA,
2012, p.158)
Esse é um aspecto capital do mo-
mento especial que vive esta literatura: o
grito não é mais retumbante. Depois de
assentado, o movimento que fala da/pela
periferia pode escolher outros tons e se
permite até a falar de amor. E essa visa-
da não se limita à fala carioca. Ferréz, o
paulistano, expoente maior desta literatu-
ra, em seu último livro, “Deus foi almoçar”
(2012), sai do cenário da periferia com
suas dores para o espaço psicológico de
um homem em contato com seus anseios
e a busca de sentido na vida.
Ao que parece, Ferréz é uma ex-
ceção, pois a produção paulista, pelo que
sugerem seus textos, ainda mantém-se
el à arte de denúncia, ao discurso viru-
lento. No entanto, a prosa carioca, bem
mais à vontade, sem ter que cumprir o
ritual do abre-caminho tão bem exerci-
do pelos paulistas, sentiu-se liberta para
enaltecer a vida, a beleza da cidade, o
jeitinho malandro do carioca e apostar
no “happy end”. Ainda que utilizando-se
da magia, a periferia carioca, no século
XXI, quer ser ser feliz e cantar as bele-
zas da cidade.
Bibliograa:
BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad. Marco
Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994.
CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas. Trad.
Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São
Paulo: Edusp. 1998.
DA MATTA. Roberto. Carnavais, malandros e he-
róis : para uma sociologia do dilema brasileiro . Rio
de Janeiro: Guanabara, 1990.
FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto
Editorial, 2000.
_______.Manual prático do ódio. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2003.
_______. Literatura marginal talentos da escrita
periférica. Rio de Janeiro: 2005.
FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. Antó-
nio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa:
Passagens, 1992
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-moder-
nidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lo-
pes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1977.
HALL, Stuart. Da diáspora Identidades e me-
diações culturais. (Org) Liv Sovik. Belo Horizon-
te; Brasília: UFMG ; Representação da Unesco
no Brasil, 2003.
LUDEMIR, Julio ; SALLES, Ecio (org.). FLUPP
Pensa 43 novos autores. Rio de Janeiro: Réptil;
Aeroplano, 2012.
MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevi-
vente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
SCHOLLHAMER, Karl Eric. Ficção brasileira
contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira. 2009.
SILVA, Carlos Eduardo. Letras de liberdade. São
Paulo: Madras Editora, 2000.
VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 1999.
VAZ, Sergio. Cooperifa antropologia periférica.
Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Ja-
neiro: Editora UFRJ, 1994.
116
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ZENI, Bruno (Coordenador Editorial). Sobrevivente
André du Rap (do massacre do Carandiru). São
Paulo: Labortexto Editorial, 2002.
1
A autora é professora do Departamento de Artes e Es-
tudos Culturais do Pólo Universitário da UFF em Rio das
Ostras e do programa de pós-graduação em Cultura e
territorialidades do IACS-UFF.
2
Posfácio assinado por Ives Gandra da Silva Martins,
sobre o texto “O futuro a Deus pertence”, de Humberto
Rodrigues.
3
Em Letras de Liberdade, encontram-se, assinando o
posfácio, autoridades, como, Ruy Castro, Ives Gandra
Martins, Lobão, Marcio Pugliese, Antônio Torres, entre
outros.
4
Por sub-urbanidade deve-se entender aquilo que está
abaixo do urbano, do visível, do que é cidadão. É o que
não é urbano.
5
Sergio Vaz, atualmente, é uma exceção, tendo em vis-
ta ser reconhecido nacionalmente, independentemente,
da sua produção literária, mas, sobretudo, pelo seu tra-
balho na Cooperifa.
6
Ferréz, da Labor Editorial, passou por editoras reno-
madas, como Objetiva, Agir e Planeta; há, a editora al-
ternativa, Edições Toró, que lança, com alguma frequên-
cia, nomes qua agitam a cena paulista – Allan da Rosa,
Priscila Preta, Binho.
7
Eventos, como: FLIP, FLUPP, Abralic, a ida de Ferréz
para as editoras Objetiva e Planeta são alguns índices
da representatividade desse discurso da periferia.
8
Fala de um personagem do texto Avenida Brasil, de
Cirlene Marinho (Passos, 2012).
Contato:
- rossialves@ibest.com.br