Resenha crítica:
VIVANT, Elsa. O que é uma Cidade Criativa?
São Paulo: SENAC, 2012.
MARIA BULCÃO
“Alegoria para além do gênero”
“Allegoría más allá del género”
CAMILA DAMICO MEDINA
Sweeney Todd: da Inglaterra para os EUA,
um produto eloquente para reetir sobre a
dinâmica urbana
Sweeney Todd:
de Inglaterra a los EE.UU., un producto elocuente para
reexionar sobre la dinámica urbana
PRISCILLA OLIVEIRA XAVIER
Nova forma de dominação ou cena potente?
Uma análise das relações entre Juventude e Ação
Cultural na Periferia Urbana Brasileira
Nueva forma de dominación o de una escena de gran
alcance?
Un análisis de la relación entre la Juventud y Acción Cultural
en la periferia urbana brasileña
VINICIUS CARVALHO DE LIMA
Lugar: percepções e vivências
- estudos de Portugal Pequeno
e São Domingos, Niterói
Lugar: percepciones y experiencias
estudios en Portugal Pequeno
y São Domingos, Niterói
HELOISA BUENO RODRIGUES
Ano III nº 5 - setembro 2013
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano III 5 - setembro 2013
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
EDITORA DE TEXTOS (espanhol e inglês)
Mariana Darsie
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Ítalo Bruno Alves, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Artes, Brasil
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano III nº 5, (SETEMBRO 2013). – Niterói, RJ: [s. N.], 2013.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário
EDITORIAL 05
ARTIGOS
Resenha crítica:
VIVANT, Elsa. O que é uma Cidade Criativa?
São Paulo: SENAC, 2012.
MARIA BULCÃO 06
“Alegoria para além do gênero”
CAMILA DAMICO MEDINA 08
Sweeney Todd: da Inglaterra para os EUA,
um produto eloquente para reetir sobre a dinâmica urbana
PRISCILLA OLIVEIRA XAVIER 17
Nova forma de dominação ou cena potente?
Uma análise das relações entre Juventude
e Ação Cultural na Periferia Urbana Brasileira
VINÍCIUS CARVALHO LIMA 27
Lugar: percepções e vivências -
estudos de Portugal Pequeno e São Domingos, Niterói
HELOISA BUENO RODRIGUES 43
5
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
PragMATIZES Revista latino
Americana de Estudos em Cultura é
o que pode-se atestar ao observar
seu Comitê Editorial: o meio acadê-
mico de união de pensadores de toda
a América Latina que, tanto ao escre-
ver quanto ao avaliar artigos, buscam
empreender a caminhada nesta sea-
ra tão primordial quanto, por vezes,
relegada a segundo plano.
A cultura, básico direito, bási-
ca necessidade, aquela que reforça
identidades ao mesmo tempo que
aproxima ímpares que se reconhe-
cem, se valorizam, se encontram a
partir dela deve ser como deveria,
sempre – um foco primordial de aten-
ção e análise, principalmente acadê-
mica neste início de século.
Mas esta cultura é tão rica e
tão instigante que sequer precisa ser
notada como centro de uma análise
para o sê-lo porque cultura somos-
-temos-queremos-vivemos todos
e as matizes possíveis são tantas
quantas possíveis e, até por isso,
esta revista justifica-se, comprova
seu valor.
Lançamos mais um número de
nosso periódico e com ele, fechamos
um ciclo no caminhar em direção à
publicização de reflexões sobre a
cultura, a arte, as políticas culturais,
os meios pelos quais todas essas
coisas se dão e, principalmente, se
encontram. E, se fechamos um ciclo
inauguramos outro, assim mantendo
portas abertas para que se cumpra
o papel de uma revista: o de estar
elencando sempre atuais debates,
abrindo caminhos.
Boa leitura
Flávia Lages
Editora
Editorial
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resenha Crítica:
VIVANT, Elsa. O que é uma Cidade
Criativa?. São Paulo: SENAC, 2012.
Resenha de BULCÃO, Maria.
O livro “O que é uma Cidade
Criativa?”, no original “Quest-ce que la
ville créative?” escrito por Elsa Vivant,
foi publicado na França em 2009 pela
editora “...”, Elsa é formada em Urba-
nismo, Estudos Urbanos e Economia.
O livro foi traduzido pelo SENAC/SP e
lançado no Brasil em 2012. Pode ser
encontrado nas grandes livrarias vir-
tuais, como FNAC, Saraiva e outras e
também em livrarias de rua. Contendo
93 páginas e com uma capa atraente
e bem colorida, com ilustrações que
remetem à noção de Cidade Criativa.
Vivant aborda a mudança de
comportamento das cidades, que
saem de um perfil industrial para cria-
tivo. Cita os processos de gentrifi-
cação que aconteceram em grandes
cidades como Nova Iorque e Paris,
entre outras. A autora cita em diver-
sos momentos de seu texto o autor
Richard Florida, criticando em muitos
pontos seu radicalismo mas ao mes-
mo tempo, validando sua pesquisa e
seus resultados.
Inicialmente sua teoria é base-
ada na criação de novos indicadores,
que mostrem um perfil daquele local,
daquela cidade. Um exemplo mar-
cante das mudanças sociais é o indi-
ce estabelecido por Richard Florida,
que calcula a população gay do local,
denominado por ele de gaytrificação,
uma referencia à palavra gentrifica-
ção que designa a mudança de uma
área, um bairro, a partir do aumento
da comunidade homossexual. Outro
índice sugerido é o de artistas boê-
mios, como fator determinante para
a mudança de comportamento de al-
gumas regiões. Elsa Vivan acha au-
dacioso de Florida a afirmação do
índice de gaytrificação mas por outro
lado afirma que a mesma “joga pimen-
ta nos olhos dos políticos”, querendo
enfatizar a mudança necessária aos
Políticos afrente de um tema repleto
de preconceitos e tabús. A utilização
de ambos os índices, gaytrificação e
o Boêmio é considerada pouco eficaz
e ineficiente diante das grandes dife-
renças existentes nas cidades.
O foco central da discussão
é que a presença de um grupo com
características específicas, atrai ou-
tros com as mesmas características,
transformando o bairro, a região, de
acordo com suas atitudes. As grandes
empresas passam a escolher locais
onde se encontra mão de obra criativa
para se estabelecerem. Uma preocu-
pação levantada, em contraponto às
expansões relacionadas ao processo
de gentrificação é a dificuldade de
artistas conseguirem vistos, a autora
aponta que os processos demorados
e embarreradores atrapalham a fluên-
cia das classes artísticas e também
aceleram a saída de grandes com-
plexos empresariais em busca de ou-
tros países cujo acesso é mais fácil.
O caso mais claro exposto é das em-
presas do Vale do Silicio, nos Esta-
dos Unidos que estão migrando para
o Canadá em busca de mão de obra
mais diversificada.
Todas essas mudanças, que
acontecem naturalmente nas cida-
des, geram demandas a nivel gover-
namental, a necessidade dos líderes
se adaptarem e passarem a participar
dessa vida criativa das cidades se
torna necessidade básica para o fun-
cionamento das cidades modernas. A
autora aborda a questão dos star sys-
7
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
tem, sistema onde grandes empresas,
Hollywoodianas, mais especificamen-
te, monopolizam e guiam o “gosto”
cultural e criativo da população.
A autora usa alguns exemplos
para mostrar a cultura alternativa,
como “O Gosto OFF”, “O Rock alter-
nativo” e também “Os squats dos ar-
tistas”, locais onde tais artistas off se
instalam e dão inicio ao processo de
gentrificação, tão citado. Artistas que
vão contra as doutrinas globalizadas,
buscam os chamados squats, novos
nichos para se unirem e criarem suas
próprias “regras” e novas doutrinas a
serem futuramente combatidas.
Ocorre a revalorização simbóli-
ca dos lugares, dando um novo valor
a lugares antes abandonados. Citan-
do Elisa Vivant, “os artistas são os
primeiros mediadores da promoção de
seu bairro”. Em um de seus capítulos,
a autora chega a questionar se tais ar-
tistas são Iniciadores ou Indicadores
da Gentrificação. Essa mudança no
comportamento das cidades, gerada a
partir da instalação e ocupação de ar-
tistas acaba por dar inicio a um efeito
inverso, onde os poderes públicos, os
políticos estão preocupados em suprir
tais demandas, acabando tornando a
cultura prioridade. Tal afirmação fica
mais clara na citação “É bem verda-
de que a satisfação das necessidades
dos habitantes permanece sendo o
objetivo primeiro das políticas cultu-
rais das municipalidades. (...) a cida-
de cultural se tornou um indicador da
qualidade de vida de uma cidade, em
particular na classificação das “cida-
des em que é bom viver” efetuada re-
gularmente por revistas.”.
Como conclusão a autora, além
de enfatizar o “Paradoxo da Cidade
Criativa”, colocando os prós e contra
desse processo e das mudanças por
ele acarretados, a autora também in-
troduz o termo “serendipidade”, que
diz respeito ao acaso ocorrido nas
descobertas, ao encontrar algo que
não se procurava. A autora diz “Esse
termo, apesar de pouco usado, é mui-
to importante para expressar o papel
do acaso nas descobertas científicas
e também nos pequenos prazeres da
vida e da cidade.”
Vê-se as discussões colocadas
pela autora muito pertinentes e prin-
cipalmente, muito importantes de se-
rem abordadas nesse momento no Rio
de Janeiro, cidade cede de grandes
eventos e que aproveita tal momento
para repensar as políticas públicas e
criativas. Além dos chamados mega-
eventos, a cada dia, a ocupação dos
espaços públicos por atividades artís-
ticas e criativas aumenta. A discussão
acerca de tal tema é fundamental para
o bom andamento de tais eventos,
seja em qual escala for.
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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“Alegoria para além do gênero
“Allegoría más allá del género
“Allegory forward the gender
Camila Damico Medina
1
Resumo:
O artigo em questão circula em torno da possibilidade estética da
expressão alegórica como movimento para além da linguagem
através do seu gesto de dizer o outro. A alegoria, em sua exarcebação
e proliferação de significantes e de significados, projeta um terceiro
espaço para além da significação. O procedimento exposto
encontra sua base argumentativa através da exposição do termo
Khôra, visto que é um termo intermitável e interminável, que não
acessa de não se inscrever plenamente em nenhum nome, mas que
é receptáculo de todos os discursos (por vir). Por ser proliferação
infinita de espaços e lugares, a escrita apresentada não pretende
encerrar possibilidades à expressão alegórica.
Palavras chave:
Alegoria
Linguagem
Walter Benjamin
Jacques Derrida
Khôra
9
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El artículo en cuestión circulando por la posibilidad de expresión
estética como paso alegórica más allá del lenguaje a través de su gesto
para decirle al otro. La alegoría en su exacerbación y la proliferación
de signicantes y signicados, diseña un tercer espacio más allá de
su signicado. El procedimiento anterior encuentra su término base
argumentativa a través de Khora la exposición, ya que es un intermitável
plazo y sin n, que no accede a no adherirse plenamente a ningún
nombre, pero que es el receptáculo de todos los discursos (por venir).
Ser proliferación innita de espacios y lugares, el escrito presentado no
se pretende que sea expresión posibilidades alegórica.
Abstract:
The article in question circulates around the possibility of aesthetic
expression as allegorical move beyond language through its gesture
to tell the other. The allegory in its exacerbation and proliferation of
signiers and meanings, designs a third space beyond signication. The
procedure above nds its basis argumentative term through exposure
Khora, since it is a term interdictable, that doesn’t ceases to not inscribe
fully to any names, but that is the receptacle of all the speeches (to
come). Being innite proliferation of spaces and places, the writing
presented is not intended to dene a possibility allegorical expression.
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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“Alegoria para além do gênero
Ser fora da linguagem
A alegoria moderna estudada por
Walter Benjamin em seu A origem do dra-
ma barroco infere a uma dimensão sobre
essa técnica, implicando que através do
seu ato provocador surge a escritura obs-
cena da linguagem. Esse gesto de “dizer
o outro” da alegoria, como pontuaria Flá-
vio Kothe ao elucidar a tese de Benjamin,
não se delinearia somente em evidenciar
a alteridade contida na imagem; através
desse gesto de subversão (garantido pelo
aperfeiçoamento desta técnica) seria pos-
sível vislumbrar uma oscilação entre os
discursos linguísticos e as guras de lin-
guagem que proporcionariam um plano
terceiro que “é” para além da lógica dialé-
tica da linguagem.
O “dizer o outro”, caracteriza-
dor da alegoria, faz do outro dito o dito
do outro, ou melhor, um outro dito no
próprio dito
(KOTHE, 1976, p. 35 grifo da autora)
Sendo o “o outro dito o dito do ou-
tro”, é invocado o dito do outro como a
negação do nome, ou seja, a alteridade
do enunciado, e o outro dito como a au-
sência da resposta ao enunciado, posto
que seja um outro nome, aparecendo,
então, um outro dito a partir da ausência
de um chamado devido (o que permite
se pensar que sua resposta independe
de um dever de ser anunciado nem de
se anunciar). Através de um jogo sobre
a linguagem na linguagem coloca-se em
questão a necessidade de uma cena que
se destaca do real, comparável à apari-
ção de uma miragem.
Não eximindo de forma alguma a
intenção da artista que escreve em manu-
sear um possível material plástico da cena
para além da linguagem, é realizado o tra-
balho de artesão sobre a alegoria para en-
tender os seus fragmentos, suas ruínas,
seu caráter anacrônico. Tendo em mente
o pensamento sobre khôra delineado por
Jacques Derrida, pretende-se esmiuçar
os aspectos da linguagem e de sua ex-
pressão, trabalhando os espaços criados
a partir da anunciação do nome, do nome
do outro e do outro (sendo o outro a mar-
gem desse território).
A alegoria transborda, através do
“dizer o outro”, a fronteira da linguagem?
O testemunho de uma imagem alegóri-
ca
2
, o rastro de uma alegoria e seu enig-
ma eterno encenaria a mise en abyme da
linguagem? Próxima do olhar artaudiano,
inescapavelmente, que lugar é esse que
acontece no olhar à alegoria, pois em al-
gum excesso da imagem é perfurada a
retina e, então, a alegoria, ao dar lugar
às oposições da linguagem, ao nome e
ao seu nome do outro, “parece às vezes
não mais se submeter à lei daquilo que ela
mesma situa? O que é esse lugar?” (DER-
RIDA, 1995, p. 11) O que é essa situação
provocada pela escrita na imagem? É
possível esse lugar?
O estudo sobre o pensamento de
khôra e suas implicações nesse artigo
realiza a proposta do exercício da perfor-
mance da mise en abyme, da pesquisa
em como o ato e o gesto anacrônico na
alegoria barroca implica para o fora da lin-
guagem (mas não em transporte do dentro
para o fora, inferindo um “estado do ser”):
em “ser” além da linguagem.
Contudo, não se trata de uma reve-
lação da expressão de khôra, enm, posto
que ela não responda a nenhum chama-
do. Como arma Derrida,
Jamais pretendemos propor a palavra
justa para khôra, nem chamá-la, en-
m, ela mesma, para além de todas as
voltas e de todos os desvios da retó-
11
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
rica, nem, enm, abordá-la, ela mes-
ma, como aquilo que terá sido, fora de
qualquer perspectiva anacrônica. Seu
nome não é uma palavra justa. (DER-
RIDA, 1995, p. 17)
Não é possível abordar o que
em khôra, pois ela não pode ter um enun-
ciado justo, já que escapa da dialética de
justiça e injustiça. Ouviremos, entretanto,
a sua anunciação e devemos responder
ao seu chamado. O que instiga, portanto,
é como é respondido, como é encenado o
seu chamado misterioso e sem origem.
Khôra encena
A impossibilidade de mapeamen-
to do pensamento sobre khôra está na
sua impossibilidade linguística - tendo em
mente que tudo o que há se articula e se
percebe através de seu conceito. Infere-
-se, então, que nada sobre khôra, por-
que “o que aí não está”, como o próprio
Derrida assina. Ela não é capaz de conter
um conceito. Por isso, ao tentar falar so-
bre khôra, recorre-se a imagem do recep-
táculo, melhor, do ventre, pois o que há de
ser acolhido por ele não é sua propriedade
nem faz referência a ele.
As possíveis narrativas que khôra
recebe vêm se situar para outra narrati-
va tomar lugar nela, servindo cada uma
de molde para outro molde, a insistir
nesse receber de interpretações e de re-
latos incessante, de forma que uma tota-
lidade nunca venha de fato transparecer.
Seria uma criação innita de novas nar-
rativas, de novas superfícies
2
, que não
se podem alocar como propriedade (que
não podem ter algo de próprio), pois se
propõem como simulacro para outro ter-
ritório constituir-se por isso khôra não
as possui. Como se todas as superfícies
fossem sempre estrangeiras a transgre-
dir fronteiras, mas também a formular
permutações e trocas, possibilitando no-
vas histórias. Khôra seria, se fosse pos-
sível apontar a ela algo de próprio, esse
movimento; mas o movimento não pode
ser apreendido pelo olhar.
Ainda sobre a impossibilidade de
comunicação com khôra, Derrida escreve:
se khôra é um receptáculo, se ela dá
lugar a todas as histórias, ontológicas
ou míticas, que se pode contar a res-
peito daquilo que ela recebe e mesmo
daquilo que ela se assemelha, mas
que de fato toma lugar nela, a própria
khôra, se assim podemos dizer, não
se torna o objeto de nenhuma narrati-
va, quer esta se passe por verdadeira
ou por fabulosa. Um segredo sem se-
gredo permanece, a seu respeito para
sempre impenetrável. (DERRIDA,
1995, p. 55)
Por dar lugar a esses sistemas,
aos discursos lógicos e aos discursos
míticos, é retirada a possibilidade de
existir um ponto ali a seu respeito, nunca
sendo palpável o assunto próprio sobre
seu nome. Eis, portanto, seu enigma,
sendo um umbigo insondável, impossí-
vel de ser convocado. Pergunto-me se
khôra “é” na linguagem.
A outra questão que ca estabe-
lecida: é através desses narrativos que
vêm receber lugar nela, através dessa
técnica, por assim dizer, desse jogo cê-
nico, que a khôra “é” fora da linguagem?
(Não deixando de acentuar que ela nada
“é” verdadeiramente, já que está para
além de ser-no-mundo).
Esse caráter estrangeiro que
esses discursos, ontológicos ou míti-
cos, vêm criar superfície nela deve-se
por khôra não ser um território, não ser
uma propriedade e, então, não ter nada
de próprio. Portanto, nada do que está
nela está dentro dela. Por estar sempre
movimento, ela não se assemelha nem
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
é o suporte de nenhum discurso, de ne-
nhum nome,
Khôra recebe, para lhes dar lugar, to-
das as determinações, mas a nenhu-
ma delas possui como propriedade.
Ela as possui, as tem, dado que as
recebe, mas não as possui como pro-
priedades, não possui nada como pro-
priedade particular. Ela não “é” nada
além da soma ou do processo daquilo
que vem se inscrever “sobre” ela, a
seu respeito, mas ela não é o assunto
ou o suporte presente de todas essas
interpretações, se bem que, todavia,
não se reduz a elas. (DERRIDA, 1995,
ps. 25, 26)
É previsto, a partir desse desgaste
do termo propriedade e do verbo possuir,
a impossibilidade de chamar o seu nome.
Ao colocar a propriedade no pensamento
sobre khôra se ilustra como ela é delin-
quente nas fronteiras da linguagem, como
se sempre vagasse na margem. Para falar
sobre ela, é preciso falar sobre o que vem
se inscrever sobre ela, pois é nesse ponto
que é possível uma comunicação.
O discurso, independente de
como se apresenta, seja em imagem,
seja em escrita, é delineado em termos
de propriedade, em termos de diferen-
ciações e de criação de fronteiras, pois
algo de próprio na sua abordagem
ele chega por algum caminho. A khô-
ra nunca chegará a lugar nenhum, nem
vem de algum lugar. Ela pode ser com-
parada a um espaço, em que sua per-
cepção é possível graças a uma situa-
ção lançada, que se configura de acordo
com particularidades; isso porque khôra
sempre joga com diferentes instrumen-
tos (no caso da comparação com o es-
paço, com a noção de lugar e a noção
de tempo). Ela sempre será essa “soma”
de processos que se encenam sobre
ela, cenas nas quais seus elementos se
posicionam de forma vulnerável, à mar-
gem de seu território, e através dessa
equação suas posições serão esgota-
das, se tornando estrangeiros.
Posicionando um trecho de Derrida
que alude ao meu argumento,
As permutas, as substituições, os
deslocamentos não dizem somen-
te respeito a nomes. A encenação
se desdobra segundo um engas-
tamento de discursos de tipo nar-
rativo, relatados ou não, dos quais
a origem ou a primeira enunciação
parece sempre substituída, aparen-
tando desaparecer aí mesmo onde
ela aparece. Sua dimensão mítica é
às vezes exposta como tal, e a mise
en abyme se dá a refletir sem limite.
(DERRIDA, 1995, p. 47)
Percebe-se que é cena, pois é des-
locamento, e que é abismo, pois desnuda
as margens de territórios, o desgaste dos
narrativos, mas sem apontar, verdadeira-
mente, para um novo lugar, para um novo
discurso. Torna-se instigante como Der-
rida (ou o tradutor) escolheu a oração “a
mise en abyme se dá a reetir sem limite”,
colocando em metáfora a cena do abismo
com a miragem, que nada mais é que a
criação de uma superfície inalcançável,
em que sempre está adquirindo horizonte
quanto mais se aproxima, sem responder
a qualquer enunciado, mas que não se
desvia de ser o foco do nosso desejo. Po-
deria ser a cena da miragem, caso a mi-
ragem já não fosse em si uma encenação
da mente. O abismo evidencia a ausência
de território, seu horizonte, contudo, fura
o olhar por causar uma imersão nesse
ausente de sentido até proporcionar uma
sensação de vertigem, e é provocado por
um processo de desgaste entre terrenos.
Ao se deparar com o abismo, ‘se perde o
chão’. Ao se deparar com a miragem, ‘não
há o chão’. Não que haja, realmente, uma
diferença entre a repulsa da vertigem e a
atração do foco.
13
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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É lembrada a pergunta na introdu-
ção deste texto: é possível esse lugar?
Esse lugar em que respondemos ao cha-
mado de khôra? Não. Um lugar presume
um ponto resoluto de anunciação, um
ponto em que uma ordem estará estabe-
lecida. Talvez em uma enunciação parti-
cular, partindo da subjetividade da autora,
se é possível responder a khôra, é através
do limite, do excesso do abismo ou da
miragem. Através da explosão de narrati-
vas que não estão lá, pois submetidas
à tradução de uma subjetividade perdida.
Através do esgotamento de emblemas, de
signos, do esgarçamento da técnica, des-
de a imagem até a escrita.
A anacronia outra
Como dito na introdução, a alego-
ria é o “dizer o outro”. A partir de então,
Flávio Kothe favorece a argumentação
desse artigo ao dar em seguida esta ar-
mação: “O “dizer o outro”, caracterizador
da alegoria, faz do outro dito o dito do ou-
tro, ou melhor, um outro dito no próprio
dito” (KOTHE, 1976, p. 35). Ao descons-
truir o jogo de palavras realizado é possí-
vel entender melhor a capacidade técnica
da alegoria e o que ela representa para o
presente artigo.
Dizer o outro seria o reconhecimen-
to do próprio nome de que está a seguir
de sua alteridade. O nome não é possível
de ser reconhecido sem o olhar do outro
e sem o reconhecimento do outro de sua
existência; a partir desse olhar permite-
-se, então, sua cisão do outro. Contudo,
o nome e o nome do outro não estão para
qualquer nome em relação a qualquer ou-
tro nome; eles estão em relação dialética.
O nome e o não-nome, eis a relação que
se estabelece. O nome do outro é a alte-
ridade deste nome, o termo que sempre
fará referência a este nome. Seria como a
relação entre homem e mulher, entre luz
e escuridão. No momento, vale acrescen-
tar que a noção de propriedade tem seus
primeiros registros a partir da denição
do que não é propriedade e, então, da
estimação do que é seu e do que é dele.
Portanto, se há o dito, há o dito do outro
(a adesão da outridade ao dito evidencia
que a enunciação é realizada por outro,
por algo considerado o par equiparável e
equipotente deste dito).
O outro nome que surge do jogo
entre alteridades proposto pela alegoria
vem do pensamento sobre a ausência
do dito, algo que não faz referência ao
nome nem a sua outridade, algo que não
responde a nenhum enunciado anterior
a ele. Destacando-se da relação en-
tre pares opositivos, a ausência do dito
surge como resultado dos processos de
tensão entre os elementos equidistantes
do sistema dialético. O outro nome não
seria primitivo, mas uma evidência da
fuga de fronteiras que foram naturaliza-
das em sociedade há muito tempo, da
delinquência do lugar que foi desconsi-
derado como construção do homem: a
linguagem. O outro nome seria algo que
não é nome. A impossibilidade de se
falar desse outro nome é que arma a
atração e a repulsa do ser humano sobre
esse nome que não é nome.
É ressaltada que, por se construir
esse desejo em torno do estrangeiro da
linguagem, não está para análise a exis-
tência de um tempo sem a linguagem, de
um momento primário ou primitivo em que
houve uma humanidade sem linguagem
nem mesmo de uma condição humana
absolutamente além da linguagem. Não
cabe ao artigo prestar referências às pes-
quisas e teorias que denotam isso, entre-
tanto, se faz necessário prestar essa pre-
vidência contra o pensamento ou o uso da
interpretação que se faça alheia à inten-
ção da autora e do texto.
Ocorre uma determinada forma de
negação do umbigo da linguagem e da
14
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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possibilidade de percurso e de relato so-
bre as fronteiras da linguagem e de seu
abismo através de uma valorização e le-
gitimação históricas da narração pela ex-
pressão simbólica. O símbolo apresenta
um discurso de totalidade e univocidade
de sentido, e sua supremacia nas expres-
sões linguísticas mostra a tensão política
entre as duas técnicas.
A emergência do pensamento sim-
bólico deu-se em torno do século XVII,
vindo a seguir do pensamento barroco,
portanto, se exponenciando através do
Humanismo e do culto ao logocentrismo
e às ciências. Para atingir inuência den-
tre os discursos linguísticos aconteceu,
como sempre ocorre quando há uma for-
ma nova a ser transposta pela forma an-
tiga, uma tensão política entre os termos,
provendo de antagonismo teórico o pro-
cesso de diferenciação. Ficou denido,
verica-se pela colocação de Goethe so-
bre a questão, o discurso alegórico como
algo claramente pejorativo, deslocando-
-se do seu contexto o trecho a seguir
evidencia: “Existe uma grande diferença,
para o poeta, entre procurar o particular
a partir do universal, e ver no particular
o universal.” (GOETHE apud BENJAMIN,
1984, p. 186). Algumas linhas em diante,
ele aponta a sua preferência de método
do poeta, armando que no segundo tipo
de técnica, a quem procura o universal a
partir do particular, está a verdadeira na-
tureza da poesia.
O simbólico apresenta o universal
em uma possível totalidade e potência,
capaz de representação objetiva, onde
a noção de belo e a noção de divino se
convergem, indissociáveis e inexaurí-
veis. Benjamin argumenta que o belo e
o divino apresentados de forma unívoca
através do símbolo invocam a ilegitimi-
dade de crítica entre forma e conteúdo,
pois “por falta de rigor dialético, perde de
vista o conteúdo, na análise formal, e a
forma, na estética do conteúdo.” (BEN-
JAMIN, 1984, p. 182). Quando se margi-
naliza a possibilidade de analisar a for-
ma separadamente de seu conteúdo, e
vice-versa, se torna inviável a análise da
relação dialética e política entre os dois
termos eis que a linguagem, em prin-
cipal nesse argumento, a língua, man-
tém a impossibilidade de manuseio e de
estrangeirismo aos seus conceitos e às
suas guras.
Ao se dissociar forma e conteúdo,
provocando o estranho entre si, é reali-
zada a dessacralização dos discursos lin-
guísticos proporcionando a cisão entre
belo e divino, o místico da linguagem se
desfaz, evidenciando seu anacronismo.
Creuzer é capaz de localizar o ca-
ráter do símbolo, ao tratá-lo como símbolo
plástico em contraste com o símbolo místi-
co (termo por ele utilizado para falar sobre
alegoria):
(...) a essência [do símbolo plástico]
não aspira ao excessivo, mas obe-
diente à natureza, adapta-se à sua
forma, penetrando-a e animando-a.
A contradição entre o nito e o in-
nito se dissolve, porque o primeiro,
autolimitando-se, se humaniza. Da
puricação do pictórico, por um lado,
e da renúncia voluntária ao desmedi-
do, por outro, brota o mais belo fru-
to da ordem simbólica. É o símbolo
dos deuses, combinação esplêndida
da beleza da forma com a suprema
plenitude do ser, e porque chegou à
sua mais alta perfeição na escultura
grega, pode ser chamado o símbolo
plástico. (CREUZER apud BENJA-
MIN, 1984, p. 186)
O símbolo estaria para, a partir do
particular, ou seja, a partir do belo, alcan-
çar a plenitude da expressão divina, que
se indica como sendo a plenitude do ser.
A alegoria, ao buscar o particular usando o
universal, como Goethe armou, projeta a
15
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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descontinuidade da beleza da forma com
a ordem divina. O uso que faz das gu-
ras de linguagem e dos discursos linguís-
ticos, em geral, é para esgotá-los, tal é a
cisão do belo com a totalidade de sentido
própria do divino, questionando e, por m,
esvaziando-os de sentido pleno e natural,
posicionando-os na anacronia do ser.
O que domina neste é o inefável, que
em sua ânsia de expressão acabará
destruindo a forma terrena, receptácu-
lo excessivamente frágil, com a innita
violência de seu ser. Mas com isso a
clareza do olhar também desapare-
ce, e tudo o que resta é um assombro
mudo. (CREUZER apud BENJAMIN,
1984, p. 186)
Creuzer, então, aponta que a téc-
nica alegórica desconstrói a forma terre-
na, melhor, a onipotência da realidade,
com uma certa violência performática,
evidente pelo excesso de sua expressão
nal. Ao retirar “o falso brilho da totalida-
de”, cito Benjamin, exprime-se a historici-
dade e a política esculpida àquele discur-
so, sua ruína é exposta. Sua visão pode
ser comparada ao olhar do personagem
Hamlet ao se deparar com a caveira. A
alegoria nada mais é que uma caveira. É
pelo olhar à caveira de Hamlet (momen-
to em que é elucidado, ao personagem,
a historicidade e perenidade do homem)
que transparece o alegórico, porque para
a exegese alegórica “quanto maior a sig-
nicação, tanto maior a sujeição à morte,
porque é a morte que grava mais profun-
damente a tortuosa linha de demarcação
entre a physis e a signicação” (BENJA-
MIN, 1984, p. 188).
“As alegorias são no reino dos pen-
samentos o que são as ruínas no reino
das coisas” (Ibid., 1984, p. 200). Tendo em
mente essa inspiração, se observa que é
através da ruína, por esse método, que
ocorre a cisão entre forma e conteúdo, que
se cria uma fenda sobre o que o símbolo
representa. Contudo, como é possível a
realização desse processo? Como é reali-
zada a transformação de algo em ruínas?
O abismo em ruínas
A anacronia do ser é exposta quan-
do dizemos o seu outro. Ao dizer o outro,
se precipita o reconhecimento do seu du-
plo, da evidência de um sujeito equipo-
tente e equidistante capaz de dizer tudo
aquilo que não é, a (per)seguir o seu ser-
-no-mundo. O assombro de uma caveira.
Ao apresentar o seu outro, o dito admite
a sua vulnerabilidade, pois sua existên-
cia depende de sua íntima distância com
aquilo que lhe nega.
A alegoria, entrementes, não apre-
senta aquilo que é e aquilo que não é den-
tro do contexto do nome, mas sim aquilo
que poderia ter sido e não foi. Entre ser
e não ser, ao jogar entre permutações,
trocas e substituições de processos da
linguagem, eis que surge o resultado obs-
ceno: um abismo ou uma miragem, pois
o que aparece está para além da lingua-
gem, “o que há aí não está”. Ao jogar entre
a convenção e a expressão, assumindo e
esgarçando seus planos narrativos, o rela-
to do estrangeiro, que sempre será um es-
tranho, que estará sempre para além das
categorias, a assombrar com outros atos,
outros hábitos, outros ditos, é formado por
um abismo na alegoria, por sua anacronia.
Assim como a exegese alegórica,
(...) com essas duas polaridades, o
pensamento da khôra inquietaria a
própria ordem da polaridade, da po-
laridade em geral, quer ela seja dia-
lética ou não. Propiciando oposições,
ela mesma não se submeteria a ne-
nhuma inversão. E isso, outra con-
sequência, não porque seria inalte-
ravelmente ela mesma para além de
seu nome, mas porque, levando para
16
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além da polaridade do sentido (meta-
fórico ou próprio), ela não pertenceria
mais ao horizonte do sentido, nem do
sentido como sentido de ser. (DERRI-
DA, 1995, p. 16)
Esgotando os discursos narrativos,
sendo receptáculo de todas as histórias, a
alegoria busca o particular, busca privar o
sentido unívoco entre convenção e expres-
são, entre belo e divino, entre forma e con-
teúdo. A historicidade dos discursos é ex-
posta, anacronizando-os, então, a alegoria.
Em ruínas, é possível responder à khôra,
mesmo que seja impossível chamá-la, en-
m, por ser fora da linguagem. A alegoria
joga com os artifícios da linguagem, reali-
zando a crítica e a análise da aleatoriedade
e da opressão divina da linguagem.
O que lhe foi negado pela expres-
são simbólica, a alegoria revela através
de oposições, não sendo de fato am-
bas, mas também não se excetuando
delas, se mantendo para além do nome.
Ela situa as leis, mas de forma que, em
seu umbigo, ela não estaria mais a se
submeter a elas. A cena se a refletir
sem fronteiras, pois relata às margens e
narra o abismo.
A alegoria se propõe ao desloca-
mento, coloca em causa as pressuposi-
ções desse lugar estabelecido da lingua-
gem a partir dela própria, retira-a desse
lugar e a leva à fronteira, à margem delin-
quente. Por ser movimento (por estar em
busca do particular a partir do universal,
se esgotando e esgotando os processos
narrativos a cada apelação e a cada inter-
pretação de seu contemplador), encena,
não apenas se expondo em cena, mas
criando a cena, redigindo a cena, apre-
sentando outras superfícies possíveis.
Eis a imagem da miragem e do abismo,
então: os outros espaços, de horizontes
redenidos a cada passo adiante, em um
jogo da linguagem que não se cessa de
não se inscrever.
Bibliograa:
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco
alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Ar-
tes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
DERRIDA, Jacques. Khôra. Campinas, São Paulo:
Papirus, 1995.
FREUD, Sigmund. O Estranho. IN: Edição Stan-
dard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas, V.
XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
GUIMARÃES, Rodrigo. Espaço e lugar: relações
impossíveis com a possibilidade de nomear. Ale-
tria – Revista do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Literários da UFMG. Minas Gerais: 2007,
jan. – jun., V. 15.
KOTHE, Flávio. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro:
F. Alves, 1976.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de
Millôr Fernandes. Coleção L&PM Pocket, Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, 1997.
1 Graduanda em Produção Cultural na Universidade
Federal Fluminense
2 Coloca-se, então, em primeiro plano, que toda a
avaliação realizada é a partir da subjetividade da histó-
ria de um indivíduo e de sua história do sofrimento, por-
tanto, de uma temporicidade que escapará do próprio
indivíduo que narra o relato.
3 Aprecio e manuseio nesse texto o jogo que se
propõe na língua portuguesa acerca da palavra super-
fície, nome feminino, substantivo, que pode signicar
a parte externa de um corpo, o plano que entra em
contato com o exterior, extensão; conotativamente,
pode signicar aparência. Ainda a diferença entre
superfície e linha nas Ciências da Matemática, que
arma que linha é delineada pela convenção de pon-
tos e que superfície possui todas as linhas cujos pon-
tos possuem um mesmo potencial. Fascinante para
o inicio de uma oscilação muito apropriada para se
brincar em khôra.
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Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Sweeney Todd: da Inglaterra para os EUA,
um produto eloquente para reetir sobre a dinâmica urbana
Sweeney Todd: de Inglaterra a los EE.UU.,
un producto elocuente para reexionar sobre la dinámica urbana
Sweeney Todd: from England to the U.S.,
a product eloquent to reect about urban dynamics
Priscilla Oliveira Xavier
1
Resumo:
Este artigo pretende explorar as relações entre a sociedade e o
espaço urbano, a partir de uma leitura sociológica do lme “Sweeney
Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet”, adaptação de uma
popular história inglesa, cuja direção é assinada por Tim Burton. Na
análise são destacadas a trajetória social da história que inspirou o
lme, enquanto um produto cultural, e as características da sociedade
e da cidade impressos nessa história, como uma descrição de teor
subjetivo de uma conjuntura na qual se instaurava uma nova ordem,
inspirando novos hábitos e sensibilidades urbanas. Sobressaem na
análise as alegorias dos temores, desconfortos e esperanças da
sociedade enxertados em um produto cultural, o qual dialoga de modo
peculiar, modicando conforme a conjuntura.
Palavras chave:
Urbano
Cinema
Cultura
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este artículo tiene como objetivo explorar la relación entre la sociedad
y el espacio urbano, a partir de una lectura sociológica de la película
“Sweeney Todd: El barbero diabólico de la calle Fleet”, una adaptación
de una historia popular Inglés, cuya dirección es rmado por Tim
Burton. El análisis se destacan la trayectoria social de la historia que
inspiró la película, como un producto cultural, y las características de
la sociedad y de la ciudad de la historia como una descripción del
contenido subjetivo de una situación de una nueva orden, inspirador
de hábitos y sensibilidades urbanas. El análisis se muestran en las
alegorías de los miedos, las esperanzas y las incomodidades de la
sociedad injertadas en un producto cultural, que dialoga tan peculiar,
cambiando a medida de la situación.
Abstract:
The intention of this article is explore the relationship between society
and urban space, from a sociological reading of the lm “Sweeney
Todd: The Demon Barber of Fleet Street,” an adaptation of a popular
English history, by Tim Burton. In this work are highlighted the social
trajectory of the story that inspired the lm, as a cultural product, and
the characteristics of the society and the city printed in the story, as a
description of subjective content, of a situation in which a new order
apear, inspiring new habits and urban sensibilities. Show the allegories
of the fears, hopes and discomforts of society into a cultural product,
changing as conjuncture.
Palabras clave:
Urbano
Cine
Cultura
Keywords:
Urban
Film
Culture
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Sweeney Todd: da Inglaterra para os EUA,
um produto eloquente para
reetir sobre a dinâmica urbana
Introdução
Londres, nal do século XVIII. Swe-
eney Todd é um talentoso barbeiro, insta-
lado na Rua Fleet, cuja clientela é formada
por membros das classes abastadas da
cidade. Misteriosamente, seus clientes co-
meçam a desaparecer. E para solucionar
tal mistério, um detetive empreende uma
minuciosa investigação até descobrir ser
o barbeiro um sanguinolento assassino.
Esta é uma popular história am-
bientada no Reino Unido, na era Vitoria-
na. O periodo de reinado da Rainha Vi-
tória, de 1837 a 1901, fora marcado por
considerável prosperidade nanceira,
proporcionada pela expansão mundial do
Império Britânico, pela consolidação da
Revolução Industrial e pela intensica-
ção de produções culturais voltados para
uma classe média crescente, educada,
esbanjadora e ociosa.
Na seara da produção cultural do
período a literatura gura em destaque.
Revelou escritores como George Eliot,
Charles Dickens, Conan Doyle e Oscar
Wilde, cujas prosas introduziam os leito-
res aos sabores e dissabores dos novos
hábitos urbanos, muitas das vezes en-
quadrados a uma aura de soberba ou ao
diletantismo.
Um outro gênero literário famoso e
abundante no período, não menos condi-
zentes ao espírito das classes abastadas
porém de associação mais velada, foram
as histórias com monstros como Franks-
tein, assassinatos em série e vampiros,
inspirados em lobisomens e demais de-
mônios lendários. A tônica dessa litera-
tura ccional era expressar as relações
contraditórias entre o indivíduo e a socie-
dade. De mais característico dessa litera-
tura estava o recurso linguístico de fazer
analogia ao sangue como o elemento da
contaminação, e as doenças e anomalias
à degeneração do corpo social. O temor
da contaminação era, por assim dizer, a
metáfora da experiência urbana do perío-
do, uma vez que na adensada cidade era
inevitável o convívio próximo entre indiví-
duos de classes sociais diferentes.
Nesse estilo literário tornou-se
popular a história “O Barbeiro Demonía-
co da Rua Fleet”. Esta foi uma entre vá-
rias histórias de uma série vampiresca,
escrita por Thomas Peckett Prest. Logo
que publicada, em 1846, a história não
alcançou grande êxito. Entre os motivos
aventados para o desprestígio desta pro-
dução consta o fato de o autor escrever
em quantidade e por encomenda, ele-
mentos esses que aos olhos da socieda-
de inglesa do período comprometiam a
qualidade dos escritos. Posteriormente,
em 1847, George Dibdin-Pitt, um ator
britânico especializado em melodrama,
adaptou a história da série de Thomas
Peckett Prest para um musical, apresen-
tado no Hoxton Theatre.
Neste primeiro momento de trajetó-
ria, a história “O Barbeiro Demoníaco da
Rua Fleet”, embora adaptada da litera-
tura para o teatro, correspondia e dialo-
gava com um tempo e espaço, com uma
conjuntura especíca. Cumpre antes de
avançar esclarecer que neste trabalho
toma-se como guia a perspectiva de que
os produtos culturais possibilitam leituras
de conjunturas especícas, apresentando
tendências discursivas no âmbito político,
econômico e social, todavia, enquanto
produtos, não são estáticos, herméticos
ou isentos da ação do tempo, do lugar e,
enm, da cultura que o absorve. Anal,
sua existência social está condicionada a
estabeler diálogos e até se submeter a in-
terpretações e adaptações.
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Da Europa para a América, em
1979, Stephen Sondheim adapta nova-
mente a história para um musical, desta
vez estrelado na Broadway. Nesta adapta-
ção a saga sangrenta do barbeiro escapa
da pura ganância e crueldade, tornando-
-se então motivada por uma questão pas-
sional. Se na Inglaterra a história é condi-
zente com um período de transformações,
gerando angústias e temores quanto as
relações de classes, nos EUA o período
é outro, todavia os temores não são tão
diferentes. Coincide com o período inicial
da hegemonia conservadora, conhecido
como era Reagan. Os produtos culturais,
especialmente o cinema, focavam os re-
ceios, as aspirações e as esperanças de
uma sociedade cuja riqueza produzida
pela classe média e classe trabalhadora
era captada pelas classes altas. Cumpre
ressaltar que o discursos de temor e sus-
peita instaurava-se entre a classe média
e as classes trabalhadoras, numa relação
agonística informada pelo pavor do rebai-
xamento na hierarquia social.
Sobre a expressiva produção de l-
mes de terror na década de 1980, lidando
com os medos e as inseguranças da clas-
se média norte americana, Kellner (2001)
oferece possibilidades de leituras dos pro-
dutos culturais, mesmo se referindo espe-
cicamente ao cinema, arma que;
Os lmes de terror constituem um -
nero a tal ponto reacionário que res-
ponsabilizam as forças ocultas pela
desintegração social e pela falta de
controle da vida, desviando assim a
atenção dos espectadores das fontes
reais do sofrimento social. Contudo,
também possibilitam uma crítica radi-
cal por apresentarem o sofrimento e a
opressão como males causados por
instituições que precisam ser recons-
truídas. (KELLNER, 2001:166)
O musical de sucesso na Broa-
dway, que atualizou e resignicou o te-
mor e a suspeita nas relações de classe,
sugerindo uma degeneração bestializa-
da e incontrolável, comprometendo o
perfeito funcionamento da sociedade,
inspirou em 2007 a adaptação livre do
teatro para o cinema.
Com parcimônia, para não cair
no maniqueísmo, e sem pudor, para não
negligenciar fatores que tenham alastra-
mento no inconsciente coletivo, é precioso
admitir que desde meados do ano 2000,
sob o comando conservador e republicano
de Gerge W. Bush, os EUA lidava com um
quadro nanceiro que gerava desconan-
ças internas e externas. Sem dar crédito
para um grande atentado
2
, apenas em
2008 a insustentável conjuntura nancei-
ra, promovida por um liberalismo exacer-
bado, foi assumida como crise.
Os cidadãos norte americanos, ao
longo de uma década decantavam em
produções cinematográcas, de enorme
popularidade, as angústias, frustrações
e preconceitos, de modo a recompor a
honra, glória, superação e civismo na
luta e bravura. Com signicativa varie-
dade e possibilidades múltiplas de inter-
pretações, constam entre as produções
de êxito na crítica especializada lmes
3
como Erin Brockovich, Gladiador, Uma
mente brilhante, Dia de Treinamento, A
última ceia, Sobre Meninos e Lobos, 21
gramas, Menina de Ouro, Crash - No Li-
mite, Munique, O Segredo de Brokeback
Mountain, Pequena Miss Sunshine e À
Procura da Felicidade.
Tim Burton, cineasta norte america-
no, famoso por dirigir lmes que oscilam
entre o horror e a comédia, fez uma relei-
tura da história inglesa no contexto acima
citado. Recompôs Londres Vitoriana em
seu peculiar estilo cianótico e sombrio,
com personagens caricatos, cenários e
gurinos exdrúxulos, entremeando as par-
tes da história com as músicas aproveita-
das da versão teatral.
21
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Não obstante aos julgamentos de que pro-
dutos culturais são de melhor ou pior qua-
lidade, dedicados a um público de maior
ou menor capacidade de interlocução, e
demais julgamentos que de certo variam
bastante conforme o período e lugar, a
versão cinematográca da história “O bar-
beiro demoníaco da rua Fleet” será neste
artigo privilegiada.
Todas as formas da história são
eloquentes e ecientes para fazer pen-
sar, para estimular leituras do social, no
entanto, com o texto o receptor atua no
sentido de imaginar os personagens, gu-
rinos e cenários e tudo o mais que subs-
tancia a história. No teatro são dados por
inteiro as imagens dos personagens e -
gurino, e parcialmente o cenário. Já no ci-
nema o visual é completo, sugerindo um
leque ampliado de elementos e detalhes
em enquadramentos, desde os persona-
gens, gurinos, cenários e até sons, para
que o receptor possa se afetar, se envol-
ver e reetir.
Dimensão Semiológica
Ao propor uma análise de um l-
me a intenção é a de guiar uma leitura,
uma interpretação que cone nesta re-
ferência muito além de um produto de
entretenimento ou numa el reprodução
da realidade. É investir nas potenciali-
dades semiológicas, na capacidade de
criar narrativas e linguagens, tomando o
espectador não como um exclusivo re-
ceptor, mas com um ativo interlocutor,
um produtor de signicados.
Um lme é um produto e é um fato.
Um produto na medida em que não se
descola de um sistema cujas dinâmicas e
regras apontam para a produção, embora
a produção não seja um m por si. E um
fato na medida em que é um registro que
emana de uma conjuntura especíca, com
horizontes e limites condizentes ao perí-
odo que é produzido, mesmo quando em
referência imaginativa de um período que
passou, de um período presente ou de um
período futuro.
Um lme é então um produto cuja
existência, relevância e circularidade
está condicionada a dialogias. As inter-
pretações e percepções sobre este pro-
duto cultural pairam, portanto, na suposta
contradição entre o individual e o coleti-
vo, e vão desde as de origem sinestésica
até as legadas de diversas áreas do co-
nhecimento como a losoa, sociologia,
antropologia, história, geograa, biologia
e outras. Assim sendo, as analogias, co-
notações ou denotações expressas nes-
se texto não têm o objetivo de expressar
com exatidão a mensagem que o produ-
tor teve a intenção de projetar no lme,
tampouco produzir uma verdade holís-
tica. Trata-se de um exercício que toma
um produto como ponte para reetir so-
bre a relação entre a sociedade e a es-
trutura urbana, revelando matizes de um
período, reproduzidas em outro.
A partir da concepção ideal de um
sistema, ou um conjunto de elementos
em relação, a cidade e a sociedade são
abordadas, sem uma predeterminação de
quem contém ou quem está contido. Neles
coexistem cores, odores, formas, saberes,
pessoas, objetos, história, técnicas, com-
portamentos e diversos outros elementos.
A abertura do lme é efusiva, e o
olhar do espectador é conduzido pela alto,
em ritmo acelerado, pela noturna cidade,
onde são vistos os contornos de prédios e
chaminés de fábricas, até descer e escor-
rer por labirintos sombrios. Nessa espécie
de dança por entre as artérias da cidade
desliza-se pelo subterrâneo, a parte escon-
dida, a parte infame. No subterrâneo per-
corre-se dos fornos para o esgoto, passan-
do por uma fábrica, mostrando caminhos
por onde o escarlate do sangue contrasta
e lubrica engrenagens acinzentadas
4
.
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Eis a síntese da abertura, um pas-
seio pelo que se exibe e o que se escon-
de na cidade, na noite onde se reproduz o
imaginário e temível, a estrutura e a supe-
restrutura, a cidade como um organismo,
os contrastes, e o sangue como lubrican-
te das engrenagens de um sistema.
As imagens da estrutura, supe-
restrutura e os contrastes da abertura
podem ser lidos a partir das abordagens
de Estado e Política em Marx. A estrutura
corresponde as forças produtivas e rela-
ções sociais de produção que constituem
a base econômica, determinantes na pro-
dução da vida social. E a vida social, a
qual Marx denomina superestrutura, se-
ria composta pelas relações de um con-
junto de elementos, tais como ideologia,
Estado, política, religião, jurisprudência,
instituições e outras instâncias voltadas
para a organização social.
“Na produção social da sua vida, os
homens contraem determinadas re-
lações necessárias e independentes
da sua vontade, relações de produção
que correspondem a uma determina-
da fase de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. O conjun-
to dessas relações de produção forma
a estrutura econômica da sociedade,
a base real sobre a qual se levanta a
superestrutura jurídica e política e à
qual correspondem determinadas for-
mas de consciência social. O modo de
produção da vida material condicio-
na o processo da vida social, política
e espiritual em geral”. (MARX, 1859:
Prefácio à Contribuição à Crítica da
Economia Política).
Já a circulação do sangue pela ci-
dade é uma consubstanciação de sabe-
res, entre as descobertas cienticas so-
bre o funcionamento do corpo humano e
as formas de conceber as cidades, numa
perspectiva urbanística. Sennet (2003), ao
produzir uma investigação da relação entre
o corpo e o desenvolvimento das cidades,
favorece a compreensão da lógica cientí-
ca adaptando-se ao planejamento urbano:
A revolução de Harvey favoreceu
mudanças de expectativas e planos
urbanísticos em todo o mundo. Suas
descobertas sobre a circulação do
sangue e a respiração levaram a no-
vas idéias a respeito da saúde públi-
ca. No Iluminismo do século XVIII,
elas começaram a ser aplicadas aos
centros urbanos. Construtores e refor-
madores passaram a dar maior ênfase
a tudo que facilitasse a liberdade do
trânsito das pessoas e seu consumo
de oxigênio, imaginando uma cidade
de artérias e veias contínuas, através
das quais os habitantes pudessem
se transportar tais quais hemácias e
leucócitos no plasma saudável. A re-
volução médica parecia ter operado
a troca de moralidade por saúde e
os engenheiros sociais estabelecido a
identidade entre saúde e a locomoção/
circulação. Estava criado um novo ar-
quétipo da felicidade humana. (SEN-
NET, 2003; 214)
Fechada a abertura, na primeira
cena do lme um navio rasga a névoa lon-
drina. Um marinheiro embarcado canta
que já viajou todo o mundo, mas que não
há lugar como Londres. Benjamim Barker,
em resposta, cantarola que o marinheiro
é muito jovem e até então a vida fora com
ele gentil, mas conrma que não lugar
como Londres. Todavia, sustenta que em
Londres a beleza é corrompida, que é um
buraco no mundo onde a moral não vale
o que um porco poderia cuspir. E no topo
desse buraco chamado Londres cam uns
poucos privilegiados que zombam dos ou-
tros vermes como se estivessem em um
zoológico vil, transformando então a bele-
za em corrupção e ganância.
O protagonista trás na ação e no
discurso musical algumas informações. A
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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chegada de barco pelo rio Tâmisa é uma
ênfase à concepção de que as grandes
cidades mundiais se desenvolveram por
conta de suas localizações e condições
pluviais, as quais seriam sine qua non
para a quantidade e qualidade de re-
lações com o mundo, fosse em prol do
enriquecimento promovido pelas trocas
comerciais, fosse em prol do desenvolvi-
mento de saberes e técnicas impulsiona-
do pela difusão do conhecimento.
No barco, cuja paisagem ao fundo
é a noite de Londres iluminada por can-
deeiros, o personagem explica ser um de-
gredado, retornando após quinze anos na
Austrália, local para onde foi injustamen-
te mandado. Eis as colônias a expansão
e expressão de um império virtuoso pelo
mundo, locais para onde são excretados o
que não interessa à metrópole. E a frase
“Não há lugar como Londres” exalta para
cada qual dos personagens o quanto esta
cidade é distinta, estimulando a imagem e
o imaginário da dita distinção, instigando
os ouvintes a embarcarem em suas his-
tórias. Há então duas Londres, uma das
possibilidades, encenada pelo jovem ma-
rinheiro, e a outra, maior, é a da frustra-
ção, objeto de reparação, protagonizada
por Benjamin Barker, que para empreen-
der seu objetivo assume a identidade de
Sweeney Todd.
Na sequência, o personagem can-
ta, conta e passeia pela história que o trás
de volta para Londres. Um recurso técnico
visual é usado a m de localizar o tempo
em que o narrador está, e o tempo passa-
do. O agora é escuro, numa fotograa pu-
xada para o tom de chumbo, e o passado
é visto brilhante e colorido.
Benjamin Barker era um homem
ingênuo, casado com uma linda mulher,
com a qual tinha uma lha. Um dia a bele-
za de sua esposa foi vista e desejada por
um homem poderoso, ligado a lei, o Juiz
Turpin. Esse homem da lei usou de sua
inuência para então separar o casal, exi-
lando de Barker injustamente na Austrália.
Eis o motivo do retorno de Benjamin Ba-
rker, a vingança.
Tensões de uma nova ordem
As imagens da cidade revelam uma
quantidade estonteante de estímulos. Em
primeiro plano se exibe a materialidade, a
concretude, a estrutura física de uma cida-
de que cresce às margens do Tâmisa. Esta
estrutura em uso, na atuação dos perso-
nagens, pode ser lida de modo a revelar a
superestrutura, as normas, as crenças, a
cultura e demais elementos que produzem
a vida social, a esfera pública.
O espaço como abstração, o lugar
como um espaço em que se imprime sig-
nicados, e o território como o lugar de-
nido por relações de poder. Essas são
noções podem ser articuladas de modo
ecientes para orientar o olhar para as
formas de apropriação espaço via rela-
ções de poder.
Benjamin Barker passeia pelas
ruas de Londres, fazendo um reconheci-
mento do lugar, em parte na materialida-
de, em parte nos afetos . Chega a uma
rua de comércio e entra numa decrépita
loja de tortas, imunda e conhecida por
produzir as piores tortas de toda a cida-
de. A dona da loja oferece uma torta e
conta sua história.
Explica ao desconhecido que sua
loja fabrica as piores tortas da cidade,
mas que um dia fora a barbearia de um
homem, que caiu em desgraça quando
sua família fora desfeita por conta da pai-
xão do Juiz Turpin.
Lovett, a dona da loja, conduziu
Sweeney Todd ao sobrado para contar
mais e mais da história que a fascina, e
mostrar mais elementos dessa história do
24
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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lugar. Ao mostrar as janelas e objetos, o
estranho se estremece com a história e
confessa ser o barbeiro, sedento por vin-
gança. Seduzida pela história e pelo ho-
mem, senhorita Lovett assume uma espé-
cie de sociedade com Benjamin Barker,
fundada na cumplicidade e conança.
O acordo de sentimento, conan-
ça, palavra, assenta-se como a relação
social fundamental para que Sweeney
Todd empreenda seu objetivo. E simulta-
neamente se coloca como um contrapon-
to da ordem então vigente em Londres:
a lei, a racionalidade, a secularidade, o
contrato, a ordem.
O ideal da ordem transfigura-se
como a regra que informa o perfeito fun-
cionamento de um organismo. Quaisquer
desvios dessa ordem são identificados
como anomalias, vícios, descontroles.
A sujeira e decrepitude na estrutura físi-
ca que abriga a senhorita Lovett e pas-
sa a ser o local ideal para os planos de
Sweeney Todd é uma associação entre
a degradação do lugar e a degradação
moral. Desta associação Sontag (2007)
esclarece:
“Doenças epidêmicas eram uma gu-
ra de linguagem comum para designar
a desordem social. Da palavra ingle-
sa pestilent, cujo sentido gurado,
segundo Oxford English Dictionary, é
“ofensivo à religião, à moral ou à paz
pública - 1513”; e pestilential, que sig-
nica “moralmente pernicioso ou dele-
tério - 1531”. Os sentimentos sobre o
mal são projetados numa doença. E a
doença (tão enriquecida de sentidos)
é projetada sobre o mundo, (SONTAG,
2007: 53-54)
A negligência aos critérios sani-
tários é a reiteração de que o ambiente
“doentio” abriga indivíduos “doentes”, ou
mais precisamente nocivos ao perfeito
funcionamento do organismo social. Além
da alusão de que o ambiente inuencia o
indivíduo, a estrutura física é composta
também por uma história, por uma ordem
de signicação. Correlatamente, a dege-
neração do indivíduo tem uma origem na
subjetivação, na forma como o indivíduo
signica o mundo que o rodeia, e a ma-
neira como se coloca perante esse mun-
do. Entra em cena a inclinação para as
explicações psicológicas dos comporta-
mentos desviantes. Esta assinala a per-
cepção do desvio associado a estados
mentais que induzem o indivíduo a com-
portamentos desviantes. E assim sendo
o desviante está mais para a cura do que
para a punição.
Investindo na vertente da doen-
ça psíquica, a cura de um trauma passa
pela catarse. Na psicanálise a catarse é a
libertação de emoções quando se coloca
no plano da consciência as recordações
recalcadas. Já em termos losócos, para
Aristóteles a catarse seria a puricação
sentida pelos espectadores durante e de-
pois de representações dramáticas. Eis
que é a espetacularização dramática, a
ostentação do suplício do seu ofensor, o
objetivo levado a cabo por Benjamim Ba-
rker, Sweeney Todd.
Entre o restabelecimento psicoló-
gico por uma ofensa moral e a punição
como recurso que auxilia a normatiza-
ção do comportamento social, Barker
está para a defesa da honra via suplício,
enquanto o juiz Turpin para o poder da
lei como uma entidade suprema. Neste
duelo a instituição que tenta ordenar a
sociedade é derrotada, que Benjamin
Barker é bem sucedido. Mas o triunfo
de Barker é curto, anal, uma criança, a
esperança, o futuro, aniquila o demônio,
pondo m à saga.
Foucault (2004), ao empreender
uma análise da esfera do poder atenta
à dinâmica das formas punitivas, apre-
senta questões relevantes para a leitura
25
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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do lme, indicando o quanto a ação de
Barker na ordem pessoal pode ser uma
expiação coletiva:
Desaparece, destarte, em princípios
do século XIX, o grande espetáculo
da punição física: o corpo supliciado
é escamoteado; exclui-se do castigo
a encenação da dor. Penetramos na
época da sobriedade punitiva. Pode-
mos considerar o desaparecimento
dos suplícios como um objetivo mais
ou menos alcançado, no período com-
preendido entre 1830 e 1848. Claro,
tal armação em termos globais deve
ser bem entendida. Primeiro, as trans-
formações não se fazem em conjunto
nem de acordo com um único proces-
so. Houve atrasos. Paradoxalmente,
a Inglaterra foi um dos países mais
reacionários ao cancelamento dos su-
plícios: talvez por causa da função de
modelo que a instituição do júri, o pro-
cesso público e o respeito ao habeas-
-corpus haviam dado à sua justiça cri-
minal; (FOUCAULT, 2004: 6-17)
Percebe-se no lme que o suplí-
cio enquanto forma punitiva ainda não
se apagara do inconsciente social na In-
glaterra. Assim, é posto na história como
a nalidade maior do ofendido, em uma
trama em que critérios morais se entrela-
çam com a dimensão jurídica, em que a
violência física se contrapõe com perver-
sas regras de civilidade, e que a emoção
não invalida a razão, na medida em que
tanto o juiz usa a razão para alcançar seu
objetivo afetivo, quanto Barker planeja e
ensaia a sua vingança, no afã da maior
satisfação moral possível.
O protesto contra os suplícios é en-
contrado em toda parte na segunda
metade do século XVIII: entre os -
lósofos e teóricos do direito; entre ju-
ristas, magistrados, parlamentares;
nos chaiers de doléances e entre os
legisladores das assembléias. É preci-
so punir de outro modo: eliminar essa
confrontação física entre soberano e
condenado; esse conito frontal en-
tre a vingança do príncipe e a cólera
contida do povo, por intermédio do
supliciado e do carrasco. O suplício
tornou-se rapidamente intolerável. Re-
voltante, visto da perspectiva do povo,
onde ele revela a tirania, o excesso,
a sede de vingança e o “cruel prazer
de punir”. Vergonhoso, considerado
da perspectiva da vítima, reduzida ao
desespero e da qual ainda se espera
que bendiga “o céu e seus juizes por
quem parece abandonada”. Perigo-
so de qualquer modo, pelo apoio que
nele encontram, uma contra a outra,
a violência do rei e a do povo. Como
se o poder soberano não visse, nessa
emulação de atrocidades, um desao
que ele mesmo lança e que poderá
ser aceito um dia: acostumado a “ver
correr sangue”, o povo aprende rápido
que “só pode se vingar com sangue”.
(FOUCAULT, 2004, 62-63)
O que é expresso na superestrutura
encenada no lme é, portanto, uma espé-
cie de crise entre uma ordem que se ins-
taura na Londres industrializada e aden-
sada, que força a relação entre classes
desiguais, e a relutância de uma ordem
anterior, em que pese os critérios morais.
Considerações
Ao sabor de uma narrativa e esté-
tica peculiar, de um renomado diretor de
cinema, Tim Burton, numa representação
atual de um espaço urbano correspon-
dente a um período passado, a história
“O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” é
apresentada. Este lme é um produto cul-
tural eloquente para reetir o período de
intensas transformações da estrutura ur-
bana e das relações sociais da Inglaterra
Vitoriana. Tomando por sua trajetória, pri-
26
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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meiro como parte uma história de uma co-
leção, depois como musical teatral, e por
m como um lme musical, da Inglaterra
Vitoriana para os EUA, primeiro na era Re-
agan e depois na crise nanceira no perío-
do do governo Bush, as alegorias e sensi-
bilidades foram criadas em um contexto e
adaptadas, atualizadas, a outro.
Como produto cultural institui em
qualquer tempo o descompassos entre o
ritmo de desenvolvimento do urbano, con-
dizentes ao sistema de produção capita-
lista, e as formas de produzir o social, per-
cepções estas enunciadas por Karl Marx
ao desenvolver uma teoria política em so-
ciedades cujo funcionamento é informado
pelo sistema capitalista de produção.
Entra contraste no lme classes so-
ciais, um trabalhador de ofício manual e
um homem de letras, em uma contenda
entre a norma jurídica e a norma moral.
Insinua o perigo, o desconforto, a descon-
ança, do convívio próximo entre classes
distintas. Assinala ainda o quanto o am-
biente urbano, na analogia de um corpo,
está sujeito a defeitos, vícios. Nesta pers-
pectiva Foucault é precioso ao observar
o desenvolvimento das formas punitivas,
delineando a trajetória da esfera do poder,
partindo da noção espetacularizada dos
suplícios para um aparato arquitetônico,
técnico, jurídico e burocrático para lidar
com as formas punitivas.
Bibliograa
CABRERA, Julio. O cinema pensa: Uma introdu-
ção à losoa através dos lmes. Rio de Janeiro:
Ed. Rocco, 2006.
CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da
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graa: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand
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MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo:
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RIVERA, Tania. Cinema, imagem e psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
ROSENFELD, Anatol. Cinema: arte & indústria.
São Paulo: Ed. Perspectiva, 2009.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora: AIDS
e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2007.
1 Graduada em Comunicação Social (FACHA) e em Ci-
ências Sociais (IFCS/UFRJ), Mestre e Doutoranda em
Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).
2 Em 11 de Setembro de 2001 o coração nanceiro
dos EUA foi atingido por dois aviões comerciais, que
colidiram e derrubaram as torres gêmeas do World
Trade Center.
3 Toma-se aqui alguns dos lmes que foram indicados
e/ou premiados pelo Oscar, das edições de 2000 a 2007.
Muitos outros lmes foram produzidos nesse período, to-
davia, a indicação da academia confere relevância e ex-
pressão mundial para algumas produções. E aguça esta
suposta credibilidade da premiações a noção de que a
academia foi criada por motivos especícos, os quais
inuenciam suas decições e escolhas, embora pareça
aceitável que apontem objetivamente para o prestígio de
bons trabalhos.
4 Parodiando a cena clássica de “Tempos Modernos”
em que Chaplin entra na máquina.
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Nova forma de dominação ou cena potente?
Uma análise das relações entre Juventude e Ação Cultural
na Periferia Urbana Brasileira
Nueva forma de dominación o de una escena de gran alcance?
Un análisis de la relación entre la Juventud y Acción Cultural
en la periferia urbana brasileña
New form of domination or powerful scene?
An analysis of the relationship between Youth and Cultural Action
in the Brazilian Urban Periphery
Vinicius Carvalho Lima
1
Resumo:
O objetivo deste artigo é investigar, a crise da dicotomia centro-periferia
associada a emergência de iniciativas culturais na periferia urbana
brasileira, estimuladas por políticas do Ministério da Cultura (MinC). A
dicotomia centro-periferia desenvolvida na América Latina como uma
tentativa de explicar o crescimento acelerado/desorganizado e o lugar das
classes populares afastadas da possibilidade de moradia perto do núcleo
da metrópole, sofreu diversas mudanças ao longo dos últimos 50 anos.
A investigação dessas mudanças e a consideração renovada dos atores
sociais, nos leva a notar a emergência de uma produção cultural juvenil
periférica e a consequente descompressão do imaginário legado a essas
regiões, ligados exclusivamente ao precário em suas variadas dimensões.
O que modica, inclusive, a cena política, com questões e demandas
diferentes das tradicionais. Pretende-se aqui analisar a efetividade dessas
políticas na reprodução social da “juventude periférica” brasileira, tomando
como caso especíco a análise sociológica realizada através do contato
com jovens de Nova Iguaçu/RJ. O foco central é a produção de análises
que avancem no entendimento do que se modica e/ou permanece com
relação à periferia urbana/juventude nos níveis conceitual e contextual,
em sua face progressista e perversa, dado a multiplicação de diferentes
expressões urbanísticas e socioculturais nestes espaços das metrópoles.
Palavras chave:
Periferia
Juventude
Ação Cultural
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El objetivo de este trabajo es investigar la crisis de la dicotomía centro-
periferia asociado con la aparición de iniciativas culturales de la periferia
urbana brasileña, alentados por las políticas del Ministerio de Cultura
(MinC). La dicotomía centro-periferia desarrollado en América Latina
como un intento de explicar el crecimiento acelerado / desorganizado y
el lugar de las clases trabajadoras fuera de la posibilidad de una vivienda
cerca del centro de la metrópoli, ha sufrido varios cambios en los últimos
50 años. La investigación de estos cambios y una nueva consideración de
los actores sociales, nos lleva a observar la aparición de una producción
cultural juvenil y descompresión consecuente legado imaginario
periférico en dichas regiones, ligadas exclusivamente a los pobres en sus
diversas dimensiones. Lo que cambia, incluyendo la escena política, con
preguntas y demandas diferentes de los tradicionales. La intención aquí
es analizar la ecacia de estas políticas en la reproducción social de la
“juventud periférico” brasileño, tomando como caso concreto el análisis
sociológico realizado a través del contacto con los jóvenes de Nova
Iguaçu / RJ. El foco central es la producción de análisis que el avance
del entendimiento de lo que cambia y / o permanece en relación con
los urbanos periféricos / juventud niveles conceptuales y contextuales,
en la cara progresista y perversa, dada la proliferación de diferentes
expresiones en estos urbano y sociocultural espacios de la metrópoli.
Abstract:
The objective of this article is to investigate the crisis of center-periphery
dichotomy associated with the emergence of cultural initiatives in the
Brazilian urban periphery. The center-periphery dichotomy that has been
developed in Latin America as an attempt to explain the accelerated
growth / disorganized and the place of the working classes away from
the possibility of housing near the core of the metropolis, has undergone
several changes over the past 50 years. The investigation of these
changes and the renewed consideration of the social actors, leads us
to notice the emergence of a youth cultural production and consequent
decompression of peripheral imagery legacy to those regions, linked
exclusively to the poor in its various dimensions. What changes, also the
political scene, with questions and demands different from the traditional.
The intention here is to analyze the effectiveness of these policies in
the social reproduction of youth peripheral Brazil, taking case specic
sociological analysis conducted through contact with young people from
Nova Iguaçu / RJ. The central focus is the production of analyzes that
advance the understanding of what changes and / or remains in relation
to the urban periphery / youth in the conceptual and contextual levels, in
your face progressive and perverse, given the multiplication of different
expressions in these urban and sociocultural spaces of the metropolis.
Palabras clave:
Periferia
Juventud
Acción Cutural
Keywords:
Periphery
Youth
Cultural Action
29
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Nova forma de dominação ou cena
potente? Uma análise das relações
entre Juventude e Ação Cultural
na Periferia Urbana Brasileira
Introdução
Este artigo parte de investigação
realizada para dissertação de mestrado
defendida no Instituto de Pesquisa e Pla-
nejamento Urbano e Regional (IPPUR/
UFRJ), com apoio decisivo do Laboratório
da Conjuntura Social: tecnologia e territó-
rio (LASTRO-IPPUR/UFRJ)
2
. Seu objetivo
é analisar a crise da dicotomia centro-pe-
riferia associada a emergência de iniciati-
vas culturais que tem como foco a juven-
tude na periferia urbana brasileira.
A investigação dessas mudanças e
a consideração renovada dos atores so-
ciais, nos leva a notar a emergência de
uma produção cultural juvenil periférica e
a consequente descompressão do imagi-
nário legado a essas regiões, ligados ex-
clusivamente ao precário em suas varia-
das dimensões. O que modica inclusive a
cena política, com questões e demandas
diferentes tradicionais.
Pretendemos analisar a efetividade
dessas políticas na reprodução social da
juventude periférica brasileira, tomando
como caso especíco a análise realizada
através do contato com jovens de Nova
Iguaçu/RJ. Trata-se da tentativa de produ-
zir análises que avancem no entendimen-
to do que se modica e/ou permanece
com relação à periferia urbana/juventude
nos níveis conceitual e contextual, em sua
face progressista e perversa, dado a mul-
tiplicação de diferentes expressões urba-
nísticas e socioculturais nestes espaços
das metrópoles.
Nesse sentido, dividimos o arti-
go em três partes. A primeira dedicada à
reexão sobre a Periferia Urbana e suas
diferentes interpretações; uma segunda
parte dedicada à análise das políticas cul-
turais nos anos Luís Inácio Lula da Silva
e sua chegada à cidade de Nova Iguaçu
e por m analisaremos o impacto dessas
políticas na produção de subjetividades
dos jovens periféricos em suas potencia-
lidades e limites.
Centro-periferia: uma dicotomia em crise
Nesta primeira parte, como assina-
lado anteriormente, procuraremos reetir
sobre a crise da dicotomia centro-periferia
tal como formulada pelas escolas clássi-
cas do pensamento urbano. O modelo
dicotômico centro-periferia foi pensado
inicialmente para claricar o processo de
dominação dos países periféricos pelos
países centrais. No inicio da década de
1970, com o surgimento de estudos ino-
vadores
3
que relacionaram o crescimen-
to econômico à organização da estrutu-
ra urbana, a noção de periferia passou
a ser trabalhada em diferentes escalas.
Consolidava-se nesta época um processo
de urbanização acelerado e concentrado,
promovida por um tipo de industrialização
que conjugava a modernização dos par-
ques industriais (com maior produtividade)
e formas precárias de trabalho, o que le-
vou a uma intensa concentração urbana
em toda a América Latina.
Deste modo, a segregação espacial,
promovida pelo crescimento das metrópo-
les, revelou a sua face social, através da
denição da função da periferia: o espaço
que abriga aqueles que ocupam posição
de baixa remuneração e qualicação e que
não podem pagar pela habitação dos espa-
ços centrais, apesar de neles trabalharem.
A periferia urbana partindo dessa matriz
analítica foi caracterizada, pela literatura
acadêmica, como um espaço socialmente
homogêneo, habitado por uma população
de baixa escolaridade, que autoconstruiria
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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suas casas em lotes comprados ás custas
de endividamentos de longo prazo.
Obra que apresenta os fundamen-
tos da dicotomia centro-periferia clássica
no campo da análise marxista
4
, “A ques-
tão urbana”, de Manuel Castells ([1972],
1983), revela que a organização espa-
cial da cidade está conectada a práticas
sociais resultantes de conitos entre as
classes sociais urbanas. Assim, a disputa
pelo poder (político, social e econômico)
aparece na disputa pelo controle, uso e
ocupação do espaço. Cada fração do es-
paço abrigaria, portanto, representações
sociais especícas, estabelecidas através
da relação capital-trabalho.
A sociedade dividida em classes
através e sob o modo capitalista de produ-
ção teria sua materialização clara com a
localização dos indivíduos através de seu
status social, prossional, renda e instru-
ção. A segregação urbana se expressa es-
pacialmente, portanto, através de regiões
homogêneas e fortes internamente, po-
rém díspares socialmente. O conceito de
segregação urbana torna-se então central
na compreensão da produção e apropria-
ção do espaço da cidade. O espaço urba-
no nessa perspectiva é entendido como
uma parte de um sistema de maiores pro-
porções que compreende a formação so-
cial do capitalismo (GOTTDIENER, 1997).
O ponto divergente dessa sínte-
se analítica oriunda de Castells ([1972],
1983) - para a reexão proposta - é a
compreensão da reprodução das relações
sociais. Não há uma distinção clara entre
a produção da cidade no modo de produ-
ção capitalista - que gera sem dúvida uma
periferia carente - e as relações sociais
tecidas nesses espaços. É como se a ca-
rência na periferia urbana estivesse natu-
ralmente “acoplada” aos indivíduos.
Não se trata de negar a dialética
centro-periferia reconhecida pelo pensa-
mento marxista dedicado ao fenômeno
urbano; mas, sim de reconhecer os seus
usos instrumentais e a sua absorção pelo
senso comum. Usos instrumentais de lei-
turas presas à materialidade permitiram o
desconhecimento da complexidade e co-
laboraram na despolitização da questão
urbana, mesmo que a situação periférica
seja denunciada. Estabelece-se uma recu-
sa da complexidade e, assim, uma tendên-
cia a simplicar a realidade social a partir
de uma interpretação, também simplista,
do espaço. Trata-se de uma aceitação
sem criticas do denominado espacialismo,
com forte rebatimento na construção das
identidades sociais e culturais.
Nesse sentido, cabe destacar a
contribuição de Henri Lefebvre ([1973],
1983), este autor procura afastar a no-
ção de segregação das noções de dife-
rença e separação. Para ele, a diferença
corresponde a relações percebidas ou
concebidas, enquanto a separação e a
segregação estão ligadas a uma ideia de
rompimento da relação. O arcabouço con-
ceitual de Lefebvre foi construído através
do conceito de reprodução das relações
sociais, ou seja, a reprodução ampliada
do capital é também a reprodução amplia-
da das contradições sociais.
O essencial, portanto, não é a des-
crição de processos parciais (como o pro-
cesso da produção material e a avaliação
quantitativa do consumo), mas, a análise
das relações sociais e da sua reprodução.
As relações sociais, portanto, exercem pa-
péis mais relevantes do que a organiza-
ção espacial das cidades está destinada,
o que exige o estudo do tecido social das
áreas segregadas.
Deste modo, os modelos explicati-
vos que relegam a periferia e seus mora-
dores à margem e como frutos do cres-
cimento urbano desordenado tornam-se
simplistas e pouco explicativas já que a
periferia carente - considerando as rela-
31
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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ções sociais na perspectiva lefebvriana
- pode tanto conformar as classes popu-
lares, a medida que os bairros se repro-
duzem com os mesmos valores em uma
sucessão de gerações; como pode ser um
elemento revolucionário na medida em
que a percepção da exclusão desvelada
pelo cotidiano se traduza de alguma ma-
neira em luta por direitos
5
.
Por esses caminhos analíticos as
periferias - consideradas no plural porque
se tratam de muitas e distintas - emergem
como espaços transformadores, diferen-
temente do que faz crer o diagnóstico de
seus problemas. A possibilidade de mobili-
zação política de seus moradores e, como
pretendemos, de mobilização cultural, é
um trunfo na tentativa de promover coe-
são e integração social através de iniciati-
vas distantes das soluções padrão aplicá-
veis a temática da segregação urbana.
Emergência da produção cultural
periférica
Embora historicamente a hete-
rogeneidade de situações periféricas
seja imensa, a desvalorização simbólica
(BOURDIEU, 1999) da periferia permitiu/
permite a consolidação de mecanismos
de discriminação e de preconceitos, com
apoio de imagens homogêneas e negati-
vas. Evidências aparecem por toda parte
de que a representação corrente da pe-
riferia como lugar de subserviência está
ultrapassada.
Nessa direção, cabe dizer que, en-
quanto as análises sociológicas, geográ-
cas e urbanísticas tomavam como ponto
de partida mecanismos estruturais ou de
natureza econômica, a antropologia
6
se
debruçava sobre o espaço periférico para
investigar atores, modos de vida, cotidia-
no, formas de lazer, identidades culturais,
mobilizações coletivas e processos de
subjetivação (NASCIMENTO, 2010). Na
perspectiva de Magnani (2006), estudos
antropológicos buscaram ver a cidade “de
perto e de dentro”, valorizando o ator so-
cial, em contraste com as análises orienta-
das pelas outras disciplinas sociais.
Com o surgimento desses novos
conteúdos na análise da periferia, cria-se
um campo temático que dá destaque à
produção cultural periférica como um fe-
nômeno contemporâneo relevante, ressal-
tando especialmente os mercados parale-
los que proliferaram à margem da indústria
cultural hegemônica (VIANNA, 1997).
Atores vêm conquistando presen-
ça na cena política, apresentando novas
questões e demandas diferentes das tra-
dicionais (por infraestrutura e serviços),
reivindicando políticas culturais especí-
cas e estabelecendo conexões tanto entre
sujeitos periféricos como, também, entre
estes e representantes dos centros geo-
gráco, político e cultural.
Esse momento, se não totalmente
possibilitado, teve grande inuência do
incremento das políticas culturais bra-
sileiras, a partir da gestão Gilberto Gil/
Juca Ferreira no Ministério da Cultura
(MinC). Estas políticas, nos últimos dez
anos têm sido marcadas pela tentativa
de resgaste do Estado enquanto formu-
lador e implementador.
Nos anos 2000, modicam-se as
palavras de ordem do setor. A diversida-
de cultural e seus desdobramentos (mul-
ticulturalismo, política descentralizada e
participação popular, por exemplo) emer-
gem como conceitos e diretrizes, que, de
alguma forma soam como imediatamente
justos, democráticos e progressistas
7
.
Nessa conjuntura, a gestão Gil pri-
mou pela busca de superação das falhas
na formulação das políticas culturais no
Brasil. De inicio, nota-se a mudança de
paradigmas em relação ao entendimen-
32
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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to da cultura. O MinC teria, como uma de
suas missões, o trabalho com um conceito
ampliado de cultura
8
.
Nesse sentido, o Estado toma a
frente da denição de estratégias para a
área da cultura e o planejamento estraté-
gico de médio e longo prazos. Assume-se,
portanto, a relevância que a cultura en-
quanto política pública passaria a ter na
agenda do governo. Havia necessidade
de rearrumar as relações entre as diferen-
tes esferas de governo para a gestão da
cultura, já que o MinC, por isso só, preso
em sua estrutura precária, não alcançaria,
em sua atuação, a abrangência necessá-
ria. O ministério
9
então descentraliza as
ações, à medida que assume a coordena-
ção e a formulação das diretrizes para a
área cultural, posicionado como mediador
das demandas sociais.
No entanto, neste processo, apesar
dos avanços, percebemos alguns proble-
mas. O primeiro foi a inabilidade/impossi-
bilidade do governo em transformar suas
políticas em políticas de Estado, o que
garantiria sustentação e continuidade do
trabalho com a cultura. Outro ponto é a
discussão das políticas culturais orientada
pelo modelo UNESCO - é sintomático que
muitos países e seus secretários, pros-
sionais e artistas da cultura tenham ade-
rido tão rapidamente aos chamados para
as convenções promovidas por esta insti-
tuição - está posta a necessidade de dar
vazão as manifestações culturais e a cria-
ção de alternativas para exclusão de suas
respectivas sociedades.
No entanto, está clara também a
busca pela construção de uma alternativa
de mercado. Em outras palavras, critica-
-se o modelo neoliberal de acesso desi-
gual à cultura mediado pelo mercado e
adota-se a produção cultural como for-
ma de desenvolvimento e competição no
mesmo mercado. Ao mesmo tempo em
que se valoriza a diversidade e todo de-
bate por detrás dela, o que parece é que
se busca a conformação de nichos para
que indivíduos e sua produção cultural
possam ser encaixados.
Propomos, portanto, pensar o
quanto esses projetos das grandes orga-
nizações mundiais estão demarcados por
ideologias de mercado que nada tem a ver
com política cultural e proteção das mani-
festações culturais e artísticas. No Brasil,
atenuam-se essas contradições ideológi-
cas pelos anos que a política cultural cou
somente presa as leis de incentivo. Con-
tribuíram a oportunidade de participar das
discussões esperada por muito tempo e a
escolha de Gilberto Gil para o ministério -
nome consensual.
O objetivo não é criticar a reto-
mada do Estado frente as políticas cul-
turais brasileiras, até porque, no caso
das políticas culturais, este vem traba-
lhando na direção contrária durante há
quase um século. No entanto, é preci-
so enxergar as discussões e possibili-
dades que existem por detrás do cam-
po das ações/políticas culturais mesmo
que nos mostremos satisfeitos com as
(pequenas) mudanças realizadas. Ainda
se faz necessária uma política cultural
real e amplamente pensada pelo Estado
em diálogo com a sociedade civil, sem
a imediata delegação de seu trabalho à
outras organizações e sem que um dos
eixos principais seja a economia da cul-
tura/criativa ou seja relacionar à cul-
tura, incluindo sua criação e seu fazer,
como algo que tenha que ter, necessa-
riamente, algum impacto econômico.
O caso de Nova Iguaçu
De forma imediata, nota-se que a
eleição de Lindberg Farias e seus dois
mandatos (2004-2010) pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) foram fundamentais
para busca e implementação das políticas
33
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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e iniciativas culturais na cidade de Nova
Iguaçu, a partir da tentativa de alinhar sua
gestão a linha política estratégica de seu
partido, que naquele momento iniciava
sua primeira administração no país. Nova
Iguaçu ganha, assim, novo posicionamen-
to no jogo político da Região Metropolita-
na do Rio de Janeiro (RMRJ).
A eleição de Lindberg reacendeu e
fomentou o debate político no âmbito do
município, em um processo eleitoral que
ultrapassou suas barreiras e teve amplo
destaque nos meios de comunicação, mo-
vendo lideranças nacionais de partidos de
oposição e situação, que foram ao muni-
cípio sempre que se percebeu a neces-
sidade de apoio aos candidatos de suas
respectivas coligações (BARRETO, 2006
e SIMÕES, 2007).
Durante a sua gestão, cou clara
a tentativa de Lindberg de alinhar suas
políticas ao que estava sendo feito pelo
governo no âmbito federal. As secreta-
rias municipais passaram a ter pers di-
ferentes, já que foram empossados em
sua maioria secretários/pessoal com
históricos próximos das áreas temáticas
das respectivas secretarias
10
. A busca de
verbas em diversas instâncias torna-se
um objetivo; seja em órgãos e agências
transnacionais
11
, seja dos ministérios em
Brasília, para onde muitos de seus as-
sessores e funcionários foram para se
qualicar e buscar recursos nos diversos
programas do governo federal.
A Secretaria de Cultura e Turis-
mo (SEMCTUR), talvez, foi a que obte-
ve maiores ganhos nesta conjuntura. De
esquecida nos governos anteriores, rele-
gada a programação/divulgação de even-
tos, passou a lugar em que foram criados
projetos com articulações próprias. A SE-
MCTUR adquire importância na conjuntu-
ra do município, principalmente, a partir
da prioridade dada ao Bairro-Escola e
também pela aproximação das políticas
do Ministério da Cultura, como o Progra-
ma Cultura Viva.
As políticas do MinC foram o mo-
delo do processo de institucionalização da
SEMCTUR. Foi criada uma política espe-
lhada com editais para pontinhos de cul-
tura. Essas políticas foram pensadas para
os espaços periféricos da própria da cida-
de. Os editais que foram confeccionados
determinavam que os projetos devessem
ser divididos igualmente entre as diferen-
tes URGs da cidade.
Essas políticas, apesar de não te-
rem esse corte denido, foram abraçadas
pela juventude da cidade. Seja pela parti-
cipação e ganho dos recursos dos editais
por iniciativas que já existiam no municí-
pio e que trabalhavam com jovens como
o Movimento Enraizados
12
, seja pelos no-
vos pontos e pontinhos que estimularam
a participação da juventude. Dentro deste
contexto foram criadas duas iniciativas da
SEMCTUR que me propus analisar deti-
damente, os Jovens Pesquisadores e Jo-
vens Repórteres que foram catalisadores
dessa participação juvenil.
Participação juvenil nas políticas da
SEMCTUR
A institucionalização da Secreta-
ria de Cultura e Turismo em Nova Iguaçu
relatada rapidamente acima teve como
principais atores a juventude da cidade.
Foram gestadas no munícipio políticas
especícas para este grupo. O principais
projetos da secretaria que obtiveram im-
pacto frente a juventude da cidade e que
nos propomos a analisar, são o Jovem
Repórter e o Jovem Pesquisador.
O Jovem Repórter consistia na
seleção diária de jovens que ganhariam
uma bolsa para custeio de sua partici-
pação nas reuniões semanais de pautas
com locomoção na cidade para poste-
34
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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rior produção textual, que constituiriam
as matérias jornalísticas para um blog
<culturani.blogspot.com>. o Jovem
Pesquisador de Nova Iguaçu, consistia
também na seleção diária de jovens para
monitorar, através de técnicas de pesqui-
sa, os projetos executados pela SEMC-
TUR, além de produzir dados estatísticos
sobre a cidade.
Não é necessária a produção de
um mapa para a demonstração que os jo-
vens da periferia urbana são os mais afe-
tados com as disparidades sociais brasi-
leiras, principalmente, no que diz respeito
ao acesso à educação e emprego. Com
escasso acesso aos bens necessários à
reprodução social, a juventude periférica
brasileira, é alvo cada vez mais preferen-
cial de programas elaborados pelo esta-
do e projetos elaborados pelas ONGs e
Terceiro Setor
13
.
Sendo assim, a partir dos proje-
tos, ganha sentido o tema da mobilidade
social, o aumento de possibilidades para
estes jovens entra na pauta da discus-
são. O que antes estava restrito a juven-
tude dos estratos médios da sociedade
brasileira - a possibilidade de “usufruto”
da juventude; a entrada tardia no merca-
do de trabalho (considerando a inuên-
cia clara do desemprego) e a negocia-
ção com a família quando se adensam
as mudanças e cortes geracionais pas-
sam a fazer hoje parte da vida do jovem
de periferia.
Tornam-se possíveis experimen-
tações urbanas a partir da mobilidade e
altera-se o quadro de possibilidades/pla-
nejamento, porque se alteram também
o contato com suas redes, que, por sua
vez contribuem para as possibilidades de
trabalho/atuação. O poder de planejar, “ir
e voltar” que antes estavam restritos aos
jovens da classe média/alta, torna-se um
dado a ser analisado, pois auxilia a des-
compressão do imaginário deste jovem.
Seguindo as orientações de Denise
Cordeiro, no seu livro sobre a Juventude
nas Sombras (2009), trata-se de perce-
ber os indivíduos nos termos de Norbert
Elias (1994), através de constelações de
circunstâncias que podem alterar suas
congurações sociais, a partir do debate
que Elias trava sobre os conceitos de “in-
dividuo” e “sociedade” no cerne da Socio-
logia Relacional. As formulações de Elias
que fogem do estruturalismo bourdiano
- nos permitem perceber que os indivíduos
podem impactar redes de relacionamento
anteriormente estabelecidas, o que modi-
ca sua posição de classe, considerando
seu território de partida.
Essa perspectiva nos ajuda a enxer-
gar que houve modicações na vida desse
grupo de jovens, algo foi modicado em
suas subjetividades, quando inseridos nos
diversos programas e ações governamen-
tais. Deste modo, o trabalho com jovem e
juventude de periferia, faz sentido à medi-
da que emerge nesses últimos 8 anos uma
“geração” que vive um momento político
que impacta suas vidas em termos de cons-
trução de uma autonomia e de redes sociais
próprias. Na fala dos próprios jovens:
Olha, eu vivia numa bolhazinha, sabe?
Lá em Morro Agudo e estava em Nova
Iguaçu e era isso, sabe? Para mim o
que era importante... Não tinha nada.
De importante não tinha nada. O mes-
mo discurso que ouço muito, sabe? “O
que tem em Nova Iguaçu? Nada. Nova
Iguaçu tem o Top Shopping, que tem
aquele cinema horrível que só passa
lme dublado, tem a RioSampa, tem
uns barzinhos, o Silvio Monteiro que
não faz guerra a muito tempo, embo-
ra exista lá. E ai, eu percebi que não.
Nova Iguaçu é muito grande. Nova
Iguaçu vai muito além de certos eixos,
quando você circula tanto. Então pri-
meiramente eu estourei essa bolhazi-
nha e circulei pela cidade, entende?
Coisas que eu não fazia, poxa vida.
35
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Eu estudava de manhã, chegava em
casa à tarde dormia e pronto, sabe?
Era essa vidazinha de estudante, en-
tende? eu passei a circular, bem
louca, porque eu ia para cada canto
de Nova Iguaçu que a gente nunca
tinha ouvido falar, entende? Comecei
a ter contato com muita gente, (que
dizia) que olha não é isso, presta
a atenção, que tinha um olhar... Eram
donas de outros discursos, acabou me
enchendo de muitas perspectivas. Eu
acho que a partir desse momento, eu
vi: peraí, não é só isso. O que passa
sobre a minha cidade no jornal da Glo-
bo, no jornal do SBT, não é o único lado
da moeda, não é a única coisa (...) Eu
posso enxergar nas pessoas histórias,
que talvez você não reconheça como
importantes, uma pessoa produto-
ra de cultura que talvez você mesmo
não se reconheça, entende? Eu acho
que me foi dado um novo olhar, uma
nova maneira de enxergar as coisas,
de pensar, de criticar e principalmente
de ouvir bastante, sabe? Talvez deixe
de criar uma própria opinião porque eu
me misturo muito com a opinião dos
outros, sabe? O importante as vezes
não é nem falar, o importante as vezes
é deixar os outros falarem. Acho que
isso foi muito incitado em mim, estimu-
lado, pessoalmente. (Jéssica Ramos,
ex-Jovem Repórter, em entrevista
concedida ao autor).
Todo dia eu conheço uma pessoa
diferente, eu tenho um voo marcado
hoje para as dez horas da noite, vou
para São Paulo, dia 31 eu vou para a
Bahia e dia sete eu vou para Recife,
vou conhecer sete cidades em Reci-
fe. Então assim, toda hora buscando
rede, entende? [...] (Yasmin Thayná,
ex-Jovem Repórter, em entrevista
concedida ao autor).
É óbvio que a juventude não é vi-
vida da mesma maneira, especialmente a
juventude das classes populares, em que
não existe o tempo do planejamento pois
são latentes as responsabilidades da vida
adulta. No entanto, uma geração de jovens
populares, mesmo que de forma incipiente
e limitada, experimenta pela primeira vez
a possibilidade de planejar, viver sua ju-
ventude não necessária e diretamente li-
gada ao mundo do trabalho.
A projeção do que será suas vidas
não depende exclusivamente das condi-
ções materiais da existência. Estes jovens
começam a ser apresentados a outros
ritmos/aspirações. Apesar dos problemas
do conceito de geração e de como a polí-
tica a política se consolida numa perspec-
tiva transescalar - já que existem poucos
jovens nos projetos culturais - considera-
mos que diferentemente, por exemplo, de
seus pais ou parentes próximos, de algu-
ma maneira estes jovens “levantam suas
cabeças” e começam a perceber possibi-
lidades ao seu redor. Denominamos, de
forma incipiente, essa geração como “Ge-
ração Ponto de Cultura”, que aos poucos
se tornam sujeitos, nos termos de Tourai-
ne (1993), articulando um projeto de vida
sem a necessidade de entrada imediata
no mercado de trabalho.
É possível armar, a partir da expe-
riência em Nova Iguaçu, que esse grupo
especico de jovens, adquiriram auto-res-
peito, favoreceram sua experiência so-
cial e tiveram respeitada sua condição de
sujeito (RIBEIRO & LOURENÇO, 2005).
Sendo este um efeito imprevisto da políti-
ca ministerial e das secretarias de cultura,
já que seu objetivo inicial era apoiar proje-
tos culturais consolidados. Não se espe-
rava que os jovens aderissem de maneira
tão intensa a essas políticas.
A grande questão talvez esteja co-
locada na percepção do que estes jovens
estão fazendo e para onde estão indo.
São jovens dentro de projetos de secre-
tarias de governo em busca de oportuni-
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dades de expansão de seu conhecimento
e com a esperança de inserção futura no
mercado de trabalho. Tanto do lado dos
gestores e formuladores da política como
da juventude, existem contradições.
Primeiro, apesar dos efeitos bené-
cos da imprevisibilidade, não existe cla-
reza com que o que se espera e se quer
com os projetos culturais. Aliás, a própria
ideia de projeto é problemática, foi comum
nas entrevistas com os gestores a defesa
do que estavam promovendo através da
referencia aos princípios democráticos de
participação. A democracia, neste contex-
to, é apresentada como produtora auto-
mática da igualdade.
No entanto, exagerando o exem-
plo, a democracia no caso apresentado
é promotora de desigualdades, à medida
que esses projetos aparecem, em grande
parte, liados a políticas compensatórias
e a partidos políticos e suas gestões, sem
que se pense, de fato, em desenvolvimen-
to social. É preciso aproximar os projetos
da esfera da ação social, repensar sua
aura de atividade demarcada com um m
necessariamente marcado, coeso, efetivo
e produtivo.
Especialmente hoje, quando vive-
mos como formulado por Ana Clara Torres
Ribeiro (2006), uma crise societária - que
fragiliza “os processos de socialização e
orientações institucionais relacionadas à
tessitura das interações sociais” - a cone-
xão desses jovens com outras bases cul-
turais e o possível “choque” produtor de
uma luta identitária/autonomia ca menor
quando o objetivo é falar somente sobre
Nova Iguaçu e publicizar ações que ocor-
rem exclusivamente no município
14
.
Assumindo uma faceta esperan-
çosa, reconhecemos uma juventude que
não se deixa prender pelos cortes pro-
postos nos projetos e está do outro lado
das contradições. Em sua produção tex-
tual e na sua fala, podemos identicar
elementos e reexões que estavam longe
do que foi pedido/sugerido. Especialmen-
te através do blog CulturaNI, os jovens
foram além da divulgação dos projetos
da SEMCTUR. Falaram das questões da
cidade, do que os incomodava enquanto
cidadãos metropolitanos; reetiram sobre
arte e comunicação; e apesar de forma-
dos e formatados pelas aulas de produ-
ção textual não abandonaram e impuse-
ram sua escrita:
Você deve ter escutado muito blá,
blá, blá dizendo que a leitura difunde
informação, cultura, educação, valo-
res democráticos e lazer, além de nos
ajudar a desenvolver nossas capaci-
dades criativas, de comunicação, de
compreensão do mundo, melhora
seu nível educativo e amplia nossos
conhecimentos de forma agradável.
Mas sei que, provavelmente, você
deve achar isso um saco e prefere
assistir um lme. Se esse for seu
caso, isso provavelmente acorre por-
que você não teve incentivos para
leitura. Talvez os seus pais não liam
histórias pra você quando criança ou
você era obrigado a ler os livros pa-
radidáticos na escola. E tudo que é
obrigatório, acaba se tornando cha-
to. (Extrato de O prazer em ler”. Au-
toria de Raíze Souza).
Dobre a perna, se apoie nos joelhos,
vá até o chão e se erga sem cair. Le-
vante a camisa, mostre a barriga e a
trema ou a mecha em ondas como
uma dança do ventre. Gire, bata os
pés e tenha ritmo. Se você conseguir
todos esses movimentos você está
apto a participar da disputa que vem
fervendo as comunidades pacicadas
do Rio de Janeiro. Moleques da peri-
feria do Rio de Janeiro não precisam
de preparo. Como algo genético, os
meninos já nascem sendo experts em
misturar frevo e funk em passos incrí-
37
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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veis que caíram na rede e podem ser
vistos no canal do Youtube. (Extrato
de “A Cultura do Passinho”. Autoria de
Joyce Pessanha).
A esperança é o alimento que dá a
energia suciente para o homem cru-
zar novas fronteiras. É o caso das
legiões de jovens que escrevem na
proteção de seus quartos materiali-
zando ainda que amadoramente suas
poesias, artigos ou letras de músicas.
Protegidos pelo resignado e ao mes-
mo tempo incomodo anonimato. (Ex-
trato de “Novos Tempos”. Autoria de
Leandro Oliveira).
É bem cedo. uma multidão se
empurrando em busca de um valioso
lugar sentado durante a sua viagem.
Muitos se agridem de todas as for-
mas possíveis, outros passam mal,
choram e até desmaiam. O clima de
revolta e descontentamento é geral.
Sabe onde se passa esse lme? Isso
mesmo, nos metrôs e trens espalha-
dos por todo o Rio de Janeiro e pa-
rece que não sairá de cartaz nunca!
Com uma rotina que começa dessa
forma, não tranquilidade e bom-
-humor garantido. E esse é apenas o
começo de um difícil dia na saga de
vários trabalhadores e estudantes.
Literalmente, é começar com o pé
esquerdo, que, geralmente, é pisote-
ado. (Extrato de Pânico nos trilhos”.
Autoria de Joaquim Tavares).
Ao sair na rua você se liga que isso
tudo é a América do Sul: os bares, a
guerra civil e o calor. É aí que você
entende que o sentimento é mais for-
te que qualquer barato. É complica-
do se encontrar como pensante nas
questões sociais que envolvem viver
no Rio. Vai além de sentir diariamen-
te a miséria na pele – apesar de isso
ser mais que o bastante. É quase
ter que escolher um lado: a polícia
ou a guerrilha para militar, que já se
tornou fatalmente ideológica. É um
questionamento que envolve o jo-
vem de uma maneira única. O funk,
as drogas, a cultura marginal em
suma... e aí?Em uma rápida troca de
ideias com alguns jovens, percebe-
-se que as opiniões sobre a margi-
nalia X maquiagem social carioca re-
velam um fator em comum: a cultura
da violência. (Extrato de O jovem
frente à cultura bipolar carioca”. Au-
toria de Vitória Tavares).
Devo ressaltar também a relevância
da cultura alternativa ou underground
na vida da juventude da Baixada Flu-
minense. Que muita das vezes é des-
valorizada pelo poder público, assim
a taxando como inferior e sem impor-
tância. Mas essa adesão dos jovens
a esse tipo de manifestação cultural
não é uma negligencia as “raízes bra-
sileiras” e muito menos apenas um
resultado de certa “soberania cultural”
dos EUA. Mas uma necessidade de
se encontrar como pessoa, individuo,
único e singular. A música se torna
um modo efetivo de expressar o que
se sente. Tanto que a anos mobiliza
paz, revoltas, risos e lágrimas. Por
isso festivais de música, que sejam
acessíveis, são totalmente neces-
sários para a juventude da Baixada
Fluminense. Que só consegue ter
acesso a esse tipo de coisa saindo de
sua cidade. (Extrato de Funções do
Rock”. Autoria de Rodrigo Caetano).
A produção da juventude perifé-
rica longe dos estereótipos que foram
legados ao espaço da periferia durante
décadas, nos ajuda a enxergar que os
jovens de classe popular não são tolos,
mas fazem parte da produção contem-
porânea de cultura. Dentro dessa “Ge-
ração Pontos de Cultura”, os jovens de
Nova Iguaçu conseguiram desenvolver
suas próprias táticas e práticas para li-
38
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dar com as oportunidades criadas a par-
tir das políticas de cultura.
As oportunidades que aparecem
hoje na periferia urbana, ainda descem
como machados, cortando e definindo
ações setorializadas. Nesse percurso,
apesar da percepção do que se espe-
ra desse corte, percebemos também
como nascem híbridos, como criam-se
particularidades e singularidades. Nos
textos expostos acima, um hibrido
muito claro entre a forma/estética em
que se espera que o jovem se enquadre
e escreva com a necessidade de falar
sobre o que importa para eles enquanto
jovens de periferia. Há uma mediação,
exagerando a análise, entre dois mun-
dos, um diálogo interclassista que pro-
duz esse hibrido. A principal diferença
que agora o principal ator está na parte
de baixo dessa escala.
O que identicamos, tomando a
perspectiva da ação social, é que para
análise dos processos de hibridização,
sempre foi olhada a disputa identitária
e seus resultados na cultura. Através da
produção textual e cultural dos jovens,
se faz necessário olhar para o sujeito, o
agente da hibridização. Por isso, propo-
mos a categoria político-losóca do su-
jeito hibridador. Esta categoria, proposta
para compreensão do papel dos jovens
na conjuntura em tela, é liada a duas
outras categorias losócas criadas para
entender a ação social em contextos po-
pulares: o “Homem Lento”, de Milton San-
tos
15
e o “Sujeito Corporicado”
16
de Ana
Clara Torres Ribeiro.
O trabalho com os jovens, como
eles leem e se apropriam das oportunida-
des foi construído através dessas guras
parecem retóricas, mas na verdade con-
densam potencialidades que se manifes-
tam em parte e que permanecem também
como potencialidades. Em outras pala-
vras, existem forças de futuro que só po-
dem ser referidas, a partir de categorias
político-losócas.
Deste modo, o sujeito hibridador,
pode ser uma gura para trabalhar com
o jovem que não é repetitivamente iso-
lado, não é carente necessariamente de
informação. Na verdade, o jovem hoje,
pode e tem mais formação prática do que
o formulador da política cultura. Anal de
contas não se aprendem os meandros da
área de cultura em bancos escolares. Isso
signica que o jovem que pode ser uma
potencia em grande parte desconhecida,
principalmente na luta pelas oportunida-
des e aproveitamento do que já existe,
mas já está em busca hoje pela realização
do que deseja culturalmente.
Conclusões
Para além de todas as análises pos-
síveis, talvez a que tenha maior importân-
cia seja demonstrar que a periferia sem-
pre esteve viva. Tem sido historicamente
“fácil” considerar os sujeitos da periferia
urbana brasileira como dominados - tan-
to na sua face docilizada (das cadeiras no
portão, do churrasco no m de semana,
da malandragem, do sujeito “de bem com
a vida”, entre tantos outros) quanto da face
violenta que deve ser evitada e controlada
(dos matadores, da vala, do “menor” delin-
quente) que estão e estarão longe das
disputas sobre este mesmo urbano.
uma atribuição de papéis ao
Outro que é recorrente nas políticas socio-
culturais onde se dene qual é a carência
desse Outro, independentemente deste
de maneira quase completa - determina-
do inclusive suas potencialidades. No en-
tanto, este não é um processo construído
sem resistências, como inicialmente pode-
-se supor.
Assim, jovens não necessariamen-
te vinculados a regionalismos e localis-
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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mos, podem desenvolver admiração pela
cidade onde vivem e viver através dela,
no mundo. E esta vivência, obtida através
de mobilidades físicas e sociais, pode ser
realizada através de um dos instrumentos
mais antigos do mundo: a palavra.
A palavra, obviamente, sempre
esteve presente nos espaços populares.
Sempre esteve presente nas lutas e rei-
vindicações urbanas por emprego, mora-
dia, saúde, educação e saneamento que
sempre estiveram na pauta da Baixada
Fluminense. A diferença talvez esteja no
uso da palavra como estratégia ou pelo
menos potencialmente portadora de uma
estratégia que se relaciona com as opor-
tunidades que aparecem nesses espaços
durante os anos 2000.
Chega de relacionar à periferia e as
classes populares à negação de sensos
de realidade, existentes em toda relação
social: não há inocência nessa relação, a
dominação sempre foi percebida e estra-
tégias de rompimento sempre tentadas.
As relações sociais colocadas em
tela, entre os portadores/gestores de re-
cursos culturais e os jovens da cidade
não são simples. Acreditamos que nem
todos jovens são hibridadores e que mui-
tos aceitam a política cultural como ela é
e chegou, sem a necessidade de ruptu-
ras. No entanto, não cabe ao pesquisador
propor interpretações dentro da ótica das
classes dominantes. Não interessa consi-
derar esse jovem como um ser “parado”,
“improdutivo” e/ou “sem perspectivas”.
Interessa-nos a identicação de hi-
bridadores, principalmente e sobretudo,
para a identicação de resistências sociais
que não são abstratas, pela percepção e
interpretação de gestos do Outro. A resis-
tência e a denuncia da situação juvenil,
sempre esteve nas ruas - está na luta pelo
passe livre, pela luta de liberdade de ex-
pressão nas favelas cariocas, no “passinho
do menor”, está nos arrastões de Londres,
nos carros queimados em Paris esse é
o seu lugar mas óbvio, mas também pode
estar (porque não?) em um texto.
Em Nova Iguaçu, o texto ajudou a
juntar o tradicional e a hipermodernidade,
conseguiu concretizar a resistência num
espaço-tempo real. Esse híbrido está
sendo feito hoje por uma juventude que
ainda está nas sombras (CORDEIRO,
2009) e dentro de projetos especícos
de governo, mas pode formar atores que
qualicam ações tradicionais de reivindi-
cação e protesto.
Talvez esse momento seja único no
sentido que os jovens de origem popular,
apesar das condições materiais nos quais
estão postos, experimentaram processos
de singularização que os movimentaram
intelectualmente de várias maneiras: a
partir do questionamento do que é sua
cidade, as diferenças entre os espaços
em que estão inseridos, a possibilidade
de seguir estudando, entre outras. Como
bem ressalta Denise Cordeiro (2009): “Do
mesmo modo que se rendem as glórias
do consumo, tentam escapar produzindo
ações microscópicas de resistência, crian-
do lugares de vida potentes”.
Deste modo, nossa tarefa é ten-
tar olhar para essas “ações microscó-
picas” e fomentar maneiras inovadoras
de participação e atuação em busca de
um projeto político que seja elaborado e
idealizado por estes jovens a partir de
suas experiências de vida concreta. Tra-
ta-se de romper com homogeneizações
e considerar a juventude como diversa
nas proposições de ações que possam
colocá-la como sujeitos que assumirão a
história de suas cidades.
O envolvimento com as ações/polí-
ticas culturais podem ser o início da cons-
trução desse projeto. Isso, no entanto, só
o tempo nos dirá.
40
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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1 Vinícius Carvalho Lima é graduado e licenciado em
Ciências Sociais pelo Instituto de Filosoa e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IFCS/UFRJ) e Mestre em Planejamento Urbano e
Regional (IPPUR/UFRJ). Foi integrante do Laborató-
rio da Conjuntura Social Tecnologia e Território (LAS-
TRO/IPPUR/UFRJ) coordenado pela Profª. Drª. Ana
Clara Torres Ribeiro. Tem experiência em Sociologia
Urbana, atuando nas seguintes temáticas: ação social
coletiva, política cultural, juventude, periferia urba-
na, reivindicação e protestos urbanos. Hoje integra o
Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina
(NETSAL/IESP/UERJ)
2 O Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia
e território, criado em julho de 1996, no Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR)
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem, por
principal nalidade, a valorização da ação social e
dos estudos de conjuntura na pesquisa urbana, no
momento em que a reestruturação econômica, apoia-
da nos uxos informacionais e em novas orientações
administrativas, altera oportunidades sociais, funções
metropolitanas e o teor sociocultural da vida coletiva.
O LASTRO encontra-se organizado em torno de uma
proposta de trabalho eminentemente metodológica e
transdisciplinar, que inclui o alcance de passagens
analíticas, de difícil execução, entre esferas, níveis
e escalas da experiência urbana brasileira. No des-
vendamento de uma metodologia adequada à análise
de conjuntura comprometida com a dinâmica urbana,
valoriza-se o ângulo da ação, onde outras opções
analíticas privilegiam mudanças técnicas e tendências
exclusivamente econômicas - <lastroufrj.com.br>.
3 Entre estudos destaca-se a primeira incursão de Mil-
ton Santos na temática do subdesenvolvimento, intitu-
lado: “A cidade nos países subdesenvolvidos”, de 1965.
4 Importante ressaltar que as teorias marxistas ur-
banas surgiram como uma tentativa de responder e
reorientar os estudos da Escola de Chicago e teve
ampla aceitação na produção teórica brasileira. Incor-
porou orientações teóricas da Economia Política aos
estudos urbanos. Passou-se a considerar, então, os
mecanismos de exploração e opressão gerados pelo
modo de produção capitalista, que não aparecem na
reprodução quase “natural” das cidades na análise da
Escola de Chicago.
5 José de Souza Martins, por exemplo, utilizando a
matriz lefebvriana, reflete acerca das classes popu-
lares e das situações de risco que podem estimular
a formulação de uma visão crítica que auxilie a in-
tegração social de uma população constantemente
ameaçada pela corrosão de suas condições de vida.
Considerando que os indivíduos são capazes de per-
ceber os processos de mudança em que estão inse-
ridos, é possível também considerar a possibilidade
de que se tornem sujeitos ativos em lutas que vie-
rem impedir que as mudanças, inevitáveis, reprodu-
zam a injustiça social: “É no fragmento de tempo do
processo repetitivo produzido pelo desenvolvimen-
to capitalista, o tempo da rotina, da repetição e do
cotidiano, que essas contradições fazem saltar fora
o momento da criação e de anúncio da História o
tempo do possível. E, que, justamente por se mani-
festar na própria vida cotidiana, parece impossível.
Esse anúncio revela ao homem comum, na vida coti-
diana, que é na prática que se instalam as condições
de transformação do impossível em possível (MAR-
TINS, 2000, p. 15).
6 Destacamos a Antropologia da Universidade de São
Paulo e autores como Durham (1986), Teresa Pires do
Rio Caldeira (1984), Frugóli (2005) e Magnani (2006).
Destacamos, ainda, um trabalho seminal nesse tipo
de abordagem eminentemente etnográca e micros-
sociológica, o livro “Quando a rua vira casa” (MELLO,
VOGEL; FERREIRA DOS SANTOS, 1981). Ainda é
necessário destacar, Gilberto Velho por sua obra e
pioneirismo e Hermano Vianna pelo seu trabalho com
juventude e manifestações culturais cariocas nas dé-
cadas de 1990 e 2000.
7 Para melhor contextualização dessa centralidade das
políticas culturais no mundo e Brasil, recomendamos a
leitura da dissertação de mestrado que deu origem ao
artigo: “Juventude e Políticas Culturais nas Periferias
do Presente: o caso de Nova Iguaçu”.
8 A intenção com a assimilação desse conceito/noção
foi dar visibilidade e/ou a compreensão de outras mo-
dalidades de cultura - populares, afrodescendentes e
indígenas - frente à já consolidada cultura erudita. Gil
falava muito à época do que batizou “do-in antropológi-
co” que consistia na ideia de universalizar os serviços
culturais, com a presença de centros culturais, biblio-
tecas e telecentros em todo o país, a começar pelas
regiões mais pobres e distantes; valorizar e dar autono-
mia para as diversas formas de manifestação cultural
42
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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existentes no país, não somente as institucionalizadas
e consagradas pela elite e a indústria cultural; buscar
novas possibilidades de interlocução e diálogo com
outras instâncias da sociedade, por meio de inserção
econômica e desenvolvimento local.
9 A execução das políticas cou a cargo de estados e
municípios
10 Foram marcantes os casos da Educação e Cultura
onde assumiram Jailson de Souza e Marcus Vinícius
Faustini especialistas e militantes atuantes nas respec-
tivas áreas.
11 Como, por exemplo, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) de onde recebeu US$ 69 mi-
lhões para o Programa de Saneamento Ambiental
(Prosani).
12 O Movimento Enraizados foi criado com o intuito de
colocar em contato pessoas de todo o Brasil que prati-
cassem as artes integradas do hip hop (rap, break, dj e
grafti), divulgando cada artista e promovendo a cultura
e a inclusão social através da militância nas periferias
das grandes cidades. Pensando nessa nova forma de
interatividade, diversas ferramentas foram criadas para
a comunicação “com” e “entre” os integrantes do hip
hop, comunicação esta que cresceu ainda mais a par-
tir da criação do Portal Enraizados na Internet < www.
enraizados.com.br >, no ano 2000, colocando a organi-
zação como referência juvenil na comunicação alterna-
tiva. Fonte: Site do Movimento Enraizados. Acessado
em 15/12/2011.
13 Defendemos que as políticas para juventude foram
pensadas através de adjetivos que serviram muito bem
à denição de políticas públicas, na medida em que
“deniram” e “qualicavam” os jovens. No entanto, con-
tribuíram muito pouco para a consideração da diversi-
dade de relações e interesses em que estão inseridos
os jovens. Todo comportamento que se afasta do públi-
co alvo, do padrão, deve ser desconsiderado em nome
da eciência da política pública. Felizmente as relações
sociais não permitem tais simplicações, a juventude/
jovem não terão características denidas a priori.
14 Não culpabilizamos os gestores dos projetos
de Nova Iguaçu, até porque estes tentaram imple-
mentar um novo modo de enxergar e compreender
a própria cidade. O problema está no fato de que
as ambiguidades e contradições que estão no cerne
dessas políticas, cada vez mais pendem a uma cer-
ta “eficiência capitalista”, que liga identidades à ne-
gócios. No entanto, a questão torna-se dramática, a
medida que a possibilidade de surgimento de sujei-
tos propositivos, capazes de ação política é eclip-
sada. Existe um olhar, que de um lado valoriza a
juventude e pelo outro a lê como sendo foco de pro-
blemas que devem ser tratados. Existem momentos
de estimulação honesta da imaginação do Outro,
que logo é convertida em tentativas de enquadrá-lo
e normatizá-lo.
15 O Homem Lento foi elaborado pelo geógrafo Mil-
ton Santos (1994) em sua discussão sobre técnica,
espaço e tempo. A categoria busca personificar o
homem comum, pobre, do lugar, que, no ambiente
das metrópoles dependentes, resiste às forças glo-
balizantes, externas e verticais. O homem lento, que
não domina o saber moderno, pode inventar outro
território e também levar à mudanças. O autor diz
que “O tempo concreto dos homens é a temporali-
zação prática, movimento do mundo dentro de cada
qual e, por isso, interpretação particular do tempo por
cada classe social, cada indivíduo” (SANTOS, 1994,
p. 83). O homem lento que conhece os lugares, que
necessita deste conhecimento para a sobrevivência
e que, portanto, constrói, em meio a todos os desa-
fios, o período histórico que sucederá o que vivemos
- o período popular da história.
16 O sujeito corporicado aparece nas análises da
socióloga Ana Clara Torres Ribeiro desenvolvidas no
campo da saúde e se consolida a partir do contato
com o urbanismo de face insurgente. O sujeito corpo-
ricado, portanto, aparece como o sujeito de direitos
gura clássica da sociologia marxista materializa-
do “em sangue, carne e cultura, permitindo a radical
superação do idealismo e do materialismo objetivante”
(RIBEIRO, 2000). Para Ana Clara, a apresentação na
cena política mundial do drama humano exigirá a for-
mulação de estratégias efetivas para a realização de
um movimento de superação, ou seja, “o encontro de
uma nova síntese que reúna corpo e espírito (valo-
res e orientação ética) na construção da democracia”
(RIBEIRO, 2000). A partir da interface com a temática
cultural e o urbanismo, a denição do sujeito corpori-
cado, passa a estar vinculado ao aparecimento pro-
positivo na cidade, através da superação da individu-
alidade, do silêncio e em ações possíveis: “O sujeito
corporicado, ao desaar controles da experiência ur-
bana e a burocratização da existência, alcança o direi-
to à denição de sua forma de aparecer e acontecer.
Nas palavras de Alain Badiou: “Um sujeito é primeira-
mente aquilo que xa um evento indecidível, porque
assume o risco de decidí-lo” (1994:45). Esse sujeito
transforma-se em acontecimento, onde e quando são
esperados o seu silêncio e o apagamento da sua in-
dividualidade. O sujeito corporicado tomaria, portan-
to, o teatro da vida nas suas mãos, opondo-se à sua
desmaterialização em papéis repetitivos, em imagens
reiterativas e em modelos de cidade (e de urbanidade)
que o excluem. Esse sujeito que emerge, de forma
incidental, na cidade comandada pela espetaculariza-
ção da vida coletiva ensina que a procura da trans-
cendência permanece latente nos encadeamentos do
cotidiano”. (RIBEIRO, 2006, p. 32).
43
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Lugar: percepções e vivências
- estudos de Portugal Pequeno e São Domingos, Niterói
Lugar: percepciones y experiencias
- estudios en Portugal Pequeno y São Domingos, Niterói
Place: perceptions and experiences
- studies about Portugal Pequeno and São Domingos, Niterói
Heloisa Bueno Rodrigues
Resumo:
Este ensaio busca, através da compreensão dos espaços urbanos e
seus usos, identicar e entender a cidade como um espaço de encontros,
fortalecedor de vivências, formador de identidades e de pertencimento,
permeado de sentido e memória, compreendendo o espaço para além da
sua construção física e da visão técnico-cientíca-hierárquica de alguns
urbanistas e pesquisadores. O enfoque, portanto, pretende construir uma
visão mais humana da cidade indo de encontro aos modelos de cidades
“vazias”, cidades cenários, cidades shoppings, enm, cidade espetáculo,
e ao encontro das mais modernas correntes de pensamento sobre o
olhar da(na) cidade, que humanizam os estudos sobre elas.
Com base neste fundamento e tendo como recorte a cidade de Niterói,
escolhemos como núcleos para esta pesquisa, Portugal Pequeno,
pequena faixa litorânea, localizada no bairro de Ponta d’Areia, que
teve grande participação na história da formação da Cidade e, em uma
análise paralela, trabalhamos também, o bairro São Domingos com
foco no espaço circundante à Praça Leoni Ramos, conhecida como
Praça da Cantareira, que, assim como o anterior, possui grande valor
histórico para Niterói.
Palavras chave:
Lugar
Errâncias
Cidade cenário
Requalicação/
revitalização
44
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Resumen:
Este ensayo pretende, según la comprensión de los espacios urbanos y
sus usos, identicar y entender la ciudad como un espacio de encuentro
y experiencias generadoras de identidad, pertenencia, signicado y
memoria, examinando el espacio más allá de su construcción física y
técnico-cientíco-jerárquica que apoya la visión de algunos planicadores
urbanos. El enfoque, de este modo, tiene la intención de construir una
mirada más humana de la ciudad en oposición a los modelos de ciudades
“vacías”, ciudades escenarios, ciudades shoppings, o aun ciudades
espectáculos, valiéndose para tal de las corrientes más modernas del
pensamiento sobre la ciudad y su humanización.
Siguiendo este fundamento, y teniendo como campo de estudio la
ciudad de Niterói, se eligió como núcleo de esta investigación, Portugal
Pequeno, pequeña franja costera, situada en el barrio de Ponta d’Areia,
que tomó gran interés en la historia de la formación de la ciudad. En un
análisis paralelo, se ha estudiado también el barrio de São Domingos,
en redor de la plaza Leoni Ramos, conocida como Praça da Cantareira,
que, al igual que la anterior, tiene un gran valor histórico para Niterói.
Abstract:
This essay seeks, through understanding of urban spaces and their
uses, identify and understand the city as a meeting space, empowerer
of experiences, forming identities and belonging, traversed by memory
and feelings, understanding the space beyond its physical construction
and the scientic-technical-hierarchical vision of some urban and
researchers. Therefore, the main purpose of this paper is to build
a more humane vision of the city, going against “empty” city models,
scenario cities, town malls, nally, city spectacle, and trending the
modern currents of thought about the look of the city, which humanizes
the studies on them.
On this basis, and taking as analysis sample the city of Niterói, we
chose as nuclei for this research, Portugal Pequeno, small strip seaside,
located in the district of Ponta d’Areia, who had great contribution to
the city construction and, in a parallel analysis, we also worked on São
Domingo neighborhood focusing in the surrounding space of Leoni
Ramos Plaza, known as Cantareira Plaza, which thus as the previous
onde, has great historical value to Niterói.
Palabras clave:
Lugar
Andanzas
Ciudad escenario
Reconstrucción/
revitalización
Keywords:
Place
Wanderings
City scene
Redevelopment/
revitalization
45
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Lugar: percepções e vivências
- estudos de Portugal Pequeno
e São Domingos, Niterói
O texto a seguir é fruto de um
processo de pesquisa desenvolvi-
do junto à UFF (Universidade Federal
Fluminense), com o apoio da FAPERJ
(Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro). Embora
passados alguns anos, entendemos
que as reflexões aqui desenvolvidas
ainda são muito atuais, o que justifica
sua publicização.
O conhecimento do lugar, a iden-
tificação de seus espaços de uso coleti-
vo e o entendimento de suas potencia-
lidades como espaços de convivências,
trocas e do fazer cultura (entendendo a
cultura como o cultivo de práticas que
envolvem grupos) e não como uma
planta baixa do espaço físico foi outro
norteador da pesquisa.
Buscou-se reconhecer, através
da vivência, as potencialidades dos
espaços públicos e entender se ações
de arte e entretenimento podem forta-
lecer esses espaços enquanto uso, ou
se são usados apenas como marketing
para atrativos. Buscou-se, ainda, anali-
sar os discursos e práticas dos morado-
res e transeuntes a fim de captar quais
os usos que eles fazem dos espaços e
o que eles de fato pensam sobre o lu-
gar onde moram ou frequentam, tendo
como objetivo entender a simbologia
das práticas e dos discursos daqueles
que dão vida ao lugar. Além disso, com-
preender a construção e a desconstru-
ção das identidades e das memórias
do lugar, definindo um diagnóstico que
pudesse mapear símbolos e discursos,
identificando os valores e a vocação
dos espaços.
Para alcançar tais objetivos, de-
nimos nossa metodologia por meio de
estratégias de apreensão e uso do es-
paço. Buscamos o estudo e a análise do
espaço urbano experimentado, a prática
de errâncias urbanas (como proposto
por Paola Berenstein Jacques), uma for-
ma particular de compreensão e apro-
priação do espaço urbano, que busca
romper com a supercialidade das aná-
lises e que foge a obviedade dos riscos
e análise superciais de alguns estudio-
sos. A prática de errâncias constitui o ato
de vivenciar o lugar para além do esté-
tico, numa postura crítica, propositiva,
subjetiva, que inibe o olhar espetacular
e permite que na lentidão da vivência a
supercialidade seja superada e as prá-
ticas reais sejam enm desvendadas:
a lentidão do errante não se refere
a uma temporalidade absoluta e ob-
jetiva, mas sim relativa e subjetiva,
ou seja, signica uma outra forma
de apreensão e percepção do espa-
ço urbano, que vai bem além da re-
presentação meramente visual. São
os homens lentos, como dizia Mil-
ton Santos, que podem melhor ver,
apreender e perceber a cidade e o
mundo, indo além de suas fabula-
ções meramente imagéticas.... (JA-
CQUES, 2007, p.99)
Definimos, portanto esta prática
como nossa linha guia metodológica e
sendo assim, é a partir dela que pes-
quisamos, refletimos e readequamos a
aplicação das demais ferramentas, an-
teriormente definidas, que estão na des-
crição a seguir: mapeamentos de espa-
ços e vivências, com visitas ao local e
maior compreensão do espaço e seu
pulsar; análise para além dos cenários;
tratamento do corpus documental (jor-
nais e mapas), com materiais sobre os
bairros e/ou trechos a serem estudados;
uso da observação participante e de en-
trevistas em profundidade, buscando a
46
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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compreensão de suas práticas urbanas;
e aplicação de questionário, definindo
uma análise quantitativa e estatística
quanto à ocupação dos espaços -
blicos e o pensamento daqueles que o
praticam.
Entendendo a cidade
Para trabalhar o conceito de ci-
dade e a compreensão mais ampla de
uma análise de usos e de pesquisa de
campo, a leitura de “Quando a rua vira
casa” (SANTOS et al., 1985) se mostra
essencial. Este livro tece uma compa-
ração entre dois territórios, Catumbi e
Selva de Pedra (Leblon), no Rio de Ja-
neiro, realizando um estudo etnográfico
das práticas e usos dos espaços públi-
cos nesses lugares. Conceitos como as
dimensões simbólicas na construção
do cotidiano, os valores, o entendimen-
to de que a “etnografia de um espaço
social não pode ser senão a etnografia
do que se passa nele” e a defesa da
diversidade de usos do espaço como
fator primordial para a construção de
uma cidade e sociedade saudável,
contrapondo-se a moda pós-moderna
de isolar e restringir cada vez mais as
relações, definiu uma primeira linha ló-
gica para a pesquisa.
A leitura de “Não lugares: Intro-
dução a uma antropologia da supermo-
dernidade” (AUGÉ, 1994) possibilitou
outro entendimento, complementar, da
construção do espaço. Trabalhando
com os conceitos e denições de lugar
e identidade, na história e na antropo-
logia, apresenta um novo conceito que
ao ser assimilado permite um mergulho
ainda maior no observar da realidade,
sendo este o conceito de não-lugares.
Contrapondo-se ao entendimento de
que um lugar possibilita a construção de
relações, de identidade, pertencimento e
a construção de uma história, Augè des-
creve o não-lugar como o exato oposto,
um espaço que não comporta nenhuma
dessas características. No entanto, dei-
xa claro que nenhum lugar está livre de
se tornar um não-lugar, assim como do
contrário também. Armativa explícita no
trecho que segue:
Na realidade concreta do mundo de
hoje, os lugares e os espaços, os
lugares e os não-lugares misturam-
-se, interpenetram-se. A possibili-
dade do não-lugar nunca está au-
sente de qualquer lugar que seja. A
volta ao lugar é o recurso de quem
freqüenta os não-lugares (e que
sonha, por exemplo, com uma re-
sidência secundária enraizada nas
profundezas da terra). Lugares e
não-lugares se opõem (ou se atra-
em), como as palavras e as noções
que permitem descrevê-las. (AUGÉ,
1994, p. 98)
Outra fonte importante foi o livro
de Stuart Hall “A identidade cultural na
pós-modernidade”, que nos possibi-
litou a compreensão da configuração
das identidades, culturas híbridas e
os reflexos que os processos de glo-
balização proporcionam às sociedades
que estão inseridas na lógica contem-
porânea de consumo e fluidez de tro-
cas econômicas e culturais nem sem-
pre de igual para igual. Entendemos
que ao mesmo tempo em que pensa-
mos na identidade como meio de reco-
nhecimento, seja de pessoa ou lugar,
esse meio não é estático, mas está
em processo, como aponta o autor:
“Assim, em vez de falar da identidade
como uma coisa acabada, deveríamos
falar de identificação, e vê-lo como um
processo em andamento.”
O conceito de “espetaculariza-
ção” das cidades, introduzido por Guy
Debord, ainda na década de 60 com o
livro “Sociedade do Espetáculo” foi ou-
47
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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tro ponto considerado. O autor apresen-
ta sua discordância com o modelo de
sociedade do consumo que estava se
construindo, e que foi adaptado, ade-
quadamente, por teóricos para a ten-
dência contemporânea de transformar
as cidades em produtos de consumo
para turistas, que mantém relações su-
perficiais com o local que transitam.
As áreas de estudo
A pesquisa ora relatada trabalhou dois
espaços da cidade Niterói/RJ: Portugal Pe-
queno, no bairro de Ponta d’Areia, e a Praça
da Cantareira, no bairro de São Domingos.
Vejamos as caracterizações e ree-
xões sobre cada uma delas.
PORTUGAL PEQUENO
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Reconhecidamente tranquilo, por
seus moradores e visitantes, o bairro de
Ponta d’Areia se congura como um es-
paço rico em história e singularidades, um
lugar diferenciado dentro da malha urbana
da cidade. Com uso majoritariamente resi-
dencial e algum comércio de primeiras ne-
cessidades, Ponta d’Areia tem como fron-
teiras os bairros do Centro, Santana e em
sua maior extensão, a Baía de Guanabara.
O bairro teve sua ocupação original ligada
à pesca de baleias, e logo após despontou
em sua vocação industrial com a instalação
de estaleiros, sendo os principais: Estaleiro
Mauá, sob os investimentos do então Barão
de Mauá, a Companhia de Comércio e Na-
vegação, sob os investimentos do Conde
Pereira Carneiro e o Estaleiro Barcas S/A.
Além disso, o bairro teve uma forte
presença de imigrantes em sua história,
principalmente de portugueses, que funda-
ram uma colônia e garantiram à região as
margens da Baía de Guanabara, o nome
de Portugal Pequeno. Essa tradição e in-
uência portuguesa motivaram em 1998
um projeto municipal de revitalização:
A revitalização da área partiu de uma
proposta que envolveu interessados
na recuperação do patrimônio arquite-
tônico e urbano da área: Prefeitura de
Niterói, governo português, comunida-
de e várias instituições. O projeto foi
parte integrante das comemorações
dos 500 anos do Descobrimento do
Brasil. O local, devidamente revitaliza-
do, foi entregue a população durante o
evento Encontro com Portugal, orga-
nizado pela Prefeitura em 1998, tendo
a frente Marcos Gomes, Secretário de
Cultura da época e do atual governo.
1
No entanto, as bases e motivações
desta revitalização, assim como o envolvi-
mento dos moradores da região, se mostra-
ram frágeis demais para resistir ao tempo,
como vamos buscar comprovar na conclu-
são da pesquisa que apresentamos a seguir.
Mapeamento
Em uma análise físico–territorial de
Portugal Pequeno, observamos um terri-
tório com caráter residencial e um comér-
cio pouco desenvolvido, sendo em sua
grande maioria bares e lanchonetes que
respondem basicamente às necessidades
dos funcionários dos estaleiros localiza-
dos na região. Casas antigas, sendo três
imóveis tombados pela Prefeitura Munici-
pal de Niterói, exibem um ar de abandono
e, em alguns casos, graves processos de
deterioração, o que surpreende o visitante
ao se pensar que, em 1998, esta região
foi revitalizada e recuperada pelo governo
municipal e parceiros, para a comemora-
ção do evento “Encontro com Portugal”.
Além das casas e bares, uma fronteira/
limite marcante deste espaço é o Morro
da Penha que, de acordo com algumas
entrevistas, é uma ocupação tranquila,
onde a violência e o tráco de drogas não
se destacam. Tendo como limite territorial
a Baía de Guanabara, Portugal Pequeno
possui ainda um píer, para ancorar bar-
cos de pesca e quiosques a beira mar,
estes também deteriorados. Além disso,
destacam-se também os paredões que
delimitam as áreas de estaleiros e que,
aparentemente, não dialogam com o am-
biente externo, a não ser nos momentos
de entrada e saída de seus funcionários.
Atualmente, estão ativos no local os esta-
leiros Mac Laren, Barcas Rodriquez, Wil-
son e Estaleiro Mauá.
Nas visitas a campo foram identi-
cados alguns grupos sociais, sendo eles:
grupos de pescadores, que saem bem
cedo do píer para áreas mais distantes
da baía e voltam para Portugal Pequeno
onde “atracam” seus barcos e comerciali-
zam o pescado; grupos de comerciantes,
que mantém em torno de si grande parte
dos usuários locais; grupos de moradores,
e por m, grupo de operários, frequenta-
dores assíduos do lugar, devido aos em-
pregos nos estaleiros.
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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O projeto de recuperação de Portugal
Pequeno
Para compreendermos como se
deu o projeto de recuperação de Portugal
Pequeno e seus desdobramentos, busca-
mos conversar com pessoas que vivencia-
ram este processo, da parte política, so-
cial e alguns moradores que vivenciaram
as mudanças propostas pelo projeto.
Além disso, buscamos documentos
que apresentassem o projeto e suas pro-
postas de recuperação, assim como repor-
tagens jornalísticas da época, que serviram
como importantes fontes de informação
para a compreensão do que estava sendo
dito e discutido. Algumas reportagens me-
recem destaque como: Exposição mostra
como cará Portugal Pequeno (O GLOBO,
01/02/1998), Invasão bem-vinda chega de
além mar (O GLOBO, 29/03/1998), Reabili-
tação de Portugal Pequeno atrai atenção dos
turistas do mundo inteiro (NITERÓI esporte,
lazer, turismo e cultura ano I nº4, junho
1998) e Portugal Pequeno espera a conclu-
são de reformas (O GLOBO, 06/09/1998).
Em um catálogo do projeto Encon-
tro com Portugal Brasil 500 Anos, rea-
lizado pela Prefeitura de Niterói, tivemos
acesso a uma breve descrição da propos-
ta de intervenção realizada por este proje-
to para Portugal Pequeno, que -segundo
o documento- pretendia “preservar o es-
paço urbano e recuperar a qualidade de
vida da área”. A seguir, trecho referente ao
projeto e imagens deste catálogo:
A reabilitação se divide em vários as-
pectos: a recuperação do cais existen-
te; revisão do posteamento elétrico;
criação de um novo píer de atracação,
que permitirá que turistas cheguem de
barco aproveitando as belezas da Baía
de Guanabara; colocação de bancos
para descanso e contemplação e re-
manejamento dos quiosques (barra-
cas) atuais com a construção de outros
padronizados. O asfalto será retirado e
substituído pelos paralelepídeos como
originalmente. As fachadas e os re-
vestimentos das casas recuperados
seguindo as cores do início do século.
Serão colocados toldos nos estabele-
cimentos comerciais em substituição
às marquises e serão tombados a
Igreja de Nossa Senhora de Fátima e
alguns prédios que ainda apresentam
bom estado de conservação.
2
Fonte: Catálogo do evento “Niterói Encontro com Portugal – Brasil 500” realizado pela Prefeitura de Niterói em 1998
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Com esta revitalização, Portugal
Pequeno se tornou o grande estandarte
deste evento, explicitando ao máximo
as relações de Niterói com Portugal, e
justificando, com isso, a realização des-
te grande evento e a consequente en-
trada de recursos na Cidade, cumprindo
a repetida lógica de intervenções urba-
nas pontuais.
Errâncias em Portugal Pequeno
Em incursões na região, percorre-
mos ruas um tanto vazias, espaços ex-
tremamente calmos, que causam grande
desconança e estranhamento a quem
está acostumado com a correria e a im-
paciência dos centros urbanos.
Não demora muito e alcançamos
a Rua Miguel de Lemos, “portal” da nos-
sa área de pesquisa. Longos paredões
de concreto nos indicam que estamos na
área dos estaleiros, e estes parecem se
impor como barreiras aos frequentadores
da região, delimitando seus espaços e es-
tabelecendo ordem e controle de acesso
aos espaços, abrindo suas portas para a
saída ou a entrada de seu grande quan-
titativo de funcionários, que nesses horá-
rios tornam a região um lugar de ocupa-
ção predominantemente masculina. Por
este motivo, e por estar claro àqueles que
me observavam que minha presença não
se tratava de uma presença comum na re-
gião, tive grande diculdade em me apro-
ximar das pessoas sem despertar descon-
ança, o que me impossibilitou de realizar
“entrevistas informais” sem me identicar
como pesquisadora. Percebi então quão
raro era a presença de mulheres, que a
meu ver seria um meio pelo qual mais fa-
cilmente eu conseguiria “entrar” naquele
território, e sentia que a todo o momento
estava sendo observada.
Além dos estaleiros, que ocu-
pam praticamente toda a área às mar-
gens da Baía, compreendendo a área do
píer, Portugal Pequeno tem, na margem
oposta à Baía, uma grande extensão de
bares, sempre prontos para receber os
operários que tem ali um bom lugar para
almoçar, descansar e também encontrar
os amigos ao nal do expediente. Em
minhas visitas à região, identiquei es-
tes bares, embora muitos tenham estru-
tura precária, como áreas potenciais de
convivência, espaços de trocas sociais,
culturais e simbólicas, onde as pessoas
conversam, dançam e se relacionam com
outros, no entanto, na minha percepção
seus clientes são quase exclusivamen-
te funcionários dos estaleiros, o que foi
conrmado por meio de entrevistas rea-
lizadas: quando ao perguntar quais eram
os espaços utilizados pelas pessoas para
se encontrarem, recebia como resposta
sempre a referência de um bar.
Um bar que merece nossa aten-
ção especial é o “Decolores”, bar cente-
nário, famoso por suas sardinhas fritas
e pela tradição em frutos do mar e pra-
tos com bacalhau, tendo sido inaugura-
do com o nome de Café Vila do Conde,
quando a região ainda abrigava uma co-
lônia de portugueses. Atualmente o bar
continua com suas portas abertas e está
nas mãos dos irmãos Marcelo e Ângela
Alves, mas a colônia portuguesa já não
existe mais, e o bar, assim como todo o
seu entorno, parece viver uma fase de
decadência (possivelmente, pela falta
de diversidade de usos da região, atual-
mente majoritariamente industrial, o que
reduz a circulação de pessoas e a vida
social no local).
Muitos dos bares ocupam o térreo
de antigos sobrados, belos exemplares
da arquitetura eclética de cunho resi-
dencial e comercial, que -somados ao
mar da Baía- garantiriam à região um ar
bucólico, transportando o visitante a um
tempo passado, fazendo-o esquecer que
a algumas poucas ruas está o agitado
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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centro urbano de uma das maiores cida-
des do estado do Rio de Janeiro. No en-
tanto como já citado anteriormente, este
cenário vive atualmente um período de
decadência, com agressivas interven-
ções na arquitetura tradicional, perden-
do sua singularidade, e o que deveria
ser um reduto cultural na cidade, se tor-
nou um espaço de completo abandono
pelas autoridades políticas, as mesmas
que há tão pouco tempo zeram dele
seu estandarte para a realização de um
grande evento na cidade.
Destes exemplares arquitetôni-
cos, pesquisamos os bens tombados e
vericamos a existência-persistência de
um Cortiço de 1930, ainda hoje em uso;
a Igreja Nossa Senhora de Fátima, de
1940, considerada uma das mais anti-
gas do Brasil dedicadas a esta Santa,
que abre suas portas todos os dias para
os éis participarem de suas missas; e
um sobrado do início do século XX, co-
nhecido também como “Casa Verde”
que, atualmente, está em posse de uma
empresa privada.
Vivenciando Portugal Pequeno,
pude observar que grande parte dos
passantes, quando não funcionários
dos estaleiros, eram moradores do Mor-
ro da Penha e de residências da região,
e não exerciam um uso daquele espaço
como um lugar de convivência ou tro-
cas culturais, e sim como um lugar de
passagem ao centro da cidade, e tudo o
que ele oferece.
Ao contrário das expectativas
criadas pelas leituras dos recortes de
jornal e do histórico da região, que me
faziam acreditar que encontraria um re-
canto culturalmente rico, assim como
um público de turistas e curiosos, na
verdade não foi com essa realidade que
me deparei. Não tive a oportunidade
de encontrar nenhum descendente dos
portugueses que colonizaram a região:
em entrevistas realizadas, essas refe-
rências eram sempre distantes ou de
pessoas já falecidas, alguns entrevis-
tados nem mesmo sabiam da existên-
cia de portugueses ali, sendo uma re-
ferência a um passado longínquo. Além
disso, pude verificar que a revitalização
urbana e cultural realizada pelo projeto
da prefeitura em 1998, não pôde se sus-
tentar ao longo dos anos. Assim como
outras intervenções urbanas, pensadas
dentro da lógica das cidades-espetácu-
lo, a revitalização de Portugal Peque-
no foi uma ação a mais para entrar na
programação do evento, e não uma real
manutenção e fortalecimento dos hábi-
tos sociais e culturais da região.
Constatamos hoje um abandono
que atinge e diminui em muito o potencial
social, artístico e cultural de Portugal Pe-
queno, com intervenções que alteram ou
descaracterizam as fachadas originais,
sucateamento dos quiosques e dos es-
paços de convivência, destruição do píer
e abandono, inclusive, no que diz respei-
to ao sistema de coleta de lixo e limpe-
za urbana. Tal abandono foi conrmado
por entrevistas, pois quando questionei
aos entrevistados o que pensavam do
processo de revitalização realizado na
região, a maioria daqueles que haviam
acompanhado o processo responderam
que foi bom, mas que depois do evento
não houve nenhuma outra ação de manu-
tenção por parte da Prefeitura.
No entanto, não posso deixar de
relatar minha impressão quanto às po-
tencialidades da região, pois situado às
margens da Baía, em um bairro de fácil
acesso, relativamente seguro, próximo
ao centro da cidade e historicamente
importante, Portugal Pequeno não devia
estar abandonado à própria sorte, mas
devia ser valorizado e cuidado por todos
para que não seja mais um reduto de
experiências e vivências culturais a se
perder com o tempo.
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Registro fotográco das errâncias
3
Bem tombado municipal
“CASA VERDE” - Imóvel situado na
Rua Barão de Mauá, 296 – Ponta
d’Areia – Niterói – RJ.
Bem tombado municipal
Cortiço - Imóvel situado na Rua Barão
de Mauá, 322 – Ponta d’Areia
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Bem tombado municipal
Igreja Nossa Senhora de Fátima -
Imóvel situado na Rua Barão de Mauá,
274 – Ponta d’Areia – Niterói – RJ.
Presença dos estaleiros
e da indústria naval.
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Vista da Baía de Guanabara com a
presença da indústria e a Ponte
Rio-Niterói ao fundo.
Bares e pessoas
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Vistas do Morro da Penha.
Abandono, descaracterização
e deterioração da área.
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SÃO DOMINGOS
(PRAÇA LEONI RAMOS)
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Panorama histórico
O bairro de São Domingos é um
dos mais antigos e menores bairros da ci-
dade, tendo sua fundação ocorrida ainda
no período colonial. Sua área apresenta
fronteiras com a Baía de Guanabara, e
com os bairros do Centro, Ingá, Boa Via-
gem e Gragoatá.
Área pertencente às Sesmarias dos
Índios que foi ocupada pelo colonizador
português. A proximidade com o Rio de
Janeiro e as características geográcas
naturais se mostraram pontos importantes
para o desenvolvimento de um povoado,
que seria conhecido como Largo de São
Domingos. Além disso, São Domingos
tinha uma ponte de atracação para os
barcos que realizavam os trajetos maríti-
mos do Rio de Janeiro para as terras de
Nichterói (neste mesmo local foi instalado
o Estaleiro e Estação das Barcas da Com-
panhia Cantareira e Viação Fluminense).
Em 1816, D. João VI acompanha-
do por outros membros da Corte, passou
uma temporada em São Domingos. Para
melhor abrigá-lo, um rico comerciante de
escravos, proprietário de vários imóveis,
presenteou o monarca com um casarão de
três andares, que passou a ser chamado
de Palacete — no largo de São Domingos.
Esta visita de D. João VI foi um fato
marcante para o desenvolvimento de
Niterói, facilitando o processo de ele-
vação do povoado à condição de Vila
Real. O Alvará Régio estabelecia que
a sede da Vila deveria ser erguida “no
lugar chamado de São Domingos da
Praia Grande”. Em virtude do acanha-
do espaço do largo de São Domingos
para erigir o Pelourinho (símbolo da
autonomia), a Casa da Câmara e a
Cadeia, a sede da Vila foi deslocada
para outro local, o antigo Campo de
Dona Helena, na parte voltada para a
rua da Conceição.
Mesmo não tendo sido escolhido como
sede da Vila, por todo o séc. XIX e iní-
cio do séc. XX, São Domingos conti-
nuou sendo um dos locais de maior
signicação da cidade de Niterói.
4
Com a criação e a instalação da
Vila Real da Praia Grande em 1819, São
Domingos começa a se destacar dos ou-
tros povoados recebendo membros da
Corte, e posteriormente abrigando as resi-
dências de políticos e importantes perso-
nagens da história da cidade.
Esta herança permitiu que, ao lon-
go dos anos, o bairro se desenvolvesse
com a instalação de comércios, escolas,
hospital, pensões, e o consequente au-
mento do número de moradias.
Com a expansão urbana em direção
a outros pontos, principalmente aos
bairros da Zona Sul (Ingá, Icaraí, São
Francisco, etc), ocorreu uma certa es-
tagnação no bairro, reforçada com o
m do bondes elétricos, cujas linhas
passavam obrigatoriamente pela Pra-
ça, para que somente ao m da déca-
da de 1990 começasse a apresentar
sinais de reversão.
A partir da década de 1990, os antigos
casarões do entorno do antigo Largo
de São Domingos, atual praça Leo-
ni Ramos, passaram a transformar-
-se em bares e restaurantes, devido
à presença do Campus do Gragoatá
da Universidade Federal Fluminense
inaugurado no início dessa década.
5
Com signicante concentração de
bens tombados, o bairro apresenta hoje
grandes contrastes entre o passado históri-
co e o presente, sensação intensicada pe-
las agressivas intervenções da especulação
imobiliária, que constrói condomínios e gran-
des prédios onde antes eram casarios, e pelo
crescimento desordenado da cidade, com a
intensicação dos processos de favelização.
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Mapeamento
Em nossas primeiras incursões a
São Domingos, tomamos como ponto de
partida a realização de um mapeamento
físico-territorial dos elementos que congu-
ram a Praça Leoni Ramos e seu entorno.
Em uma análise geral, o bairro se caracteri-
za como majoritariamente residencial, com
comércios de pequenas necessidades e
forte presença de escolas e universidades.
Desta maneira, iniciamos nosso ma-
peamento buscando identicar os bens tom-
bados pelo município e suas relações com o
histórico do bairro e o presente vivido.
O lugar conhecido popularmente
como Cantareira é constituído pela Pra-
ça Leoni Ramos (nome dado em home-
nagem ao prefeito Carolino de Leoni Ra-
mos, que governou a cidade nos anos de
1905/1906) e pelo conjunto arquitetônico
de seu entorno. Tal nome se deve à mar-
cante presença do Portal da Estação Can-
tareira, hoje uma casa de shows cedida à
iniciativa privada, mas que teve grande im-
portância histórica para o desenvolvimen-
to econômico, social e cultural do bairro,
sendo cenário de marcos históricos, como
a instalação do Estaleiro e Barcas em São
Domingos; o incêndio da estação causa-
do pela Revolta das Barcas em 1959; a
reutilização -após o incêndio- como gara-
gem dos bondes; ponto de partida para a
realização do aterro em 1970; e ponto de
encontro de jovens e ativistas culturais da
região a partir dos anos 1990, abrigando
diversos grupos culturais da cidade como
o Movimento Pop Goiaba, o Arte Jovem
Brasileira e o Araribóia Rock.
Outro importante bem tombado,
com grande participação histórica no de-
senvolvimento do bairro, é a Igreja de São
Domingos, hoje descaracterizada devido
às diversas intervenções e obras realiza-
das, mas que teve sua fundação em 1652,
ainda na Sesmaria dos Índios.
Com a realização do aterro em
1970, houve a expansão das terras de
São Domingos para a Baía de Guana-
bara, e parte deste terreno criado foi
cedido à Universidade Federal Flumi-
nense, onde hoje temos o campus do
Gragoatá, que abriga diversos cursos
da Universidade, sendo um dos prin-
cipais responsáveis pela circulação de
pessoas nesta região.
A instalação do campus da UFF
provocou grande mudança na dinâmica
deste espaço, e hoje, vimos que a quase
totalidade dos casarios preservados ao re-
dor da Praça Leoni Ramos foram adapta-
dos como bares e restaurantes, buscando
com isso atender às necessidades desse
novo “público” que passou a frequentar o
lugar. Como exceções a estes usos, identi-
camos a existência de um armarinho, um
brechó, uma Igreja Assembleia de Deus,
uma borracharia e uma copiadora.
6
Por m, estendemos nosso mape-
amento a uma pequena continuidade das
ruas que cortam a Praça e identicamos
ainda o campus da FAMATH (Faculda-
des Integradas Maria Thereza); um pré-
dio moderno com inuência da arquitetura
internacional, com marcante presença de
panos de vidro espelhados, onde funciona
a sede da empresa AMPLA; imóveis com
aspecto de abandono e ocupação como
cortiço, o Museu Petrobrás de Cinema
que juntamente com outras obras compõe
o famoso Caminho Niemeyer (até o mo-
mento da nalização desta pesquisa ainda
se encontrava em construção), e outras
residências e pequenos comércios.
Em relação aos grupos sociais,
identicamos moradores permanentes do
bairro (pertencentes à classe média)
observamos que estes, geralmente, não
se xam na praça, mas passam por ela
para se deslocar pelo bairro e para outros
lugares- e moradores sazonais (também
pertencentes à classe média) são uni-
59
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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versitários que ocupam o bairro nas di-
versas repúblicas e imóveis alugados du-
rante o período de aulas, mas que voltam
para suas casas nos ns de semana e -
rias; estudantes e universitários; profes-
sores e funcionários das instituições do
entorno, como UFF, FAMATH e AMPLA.
Há, ainda, moradores de rua verica-
mos que alguns grupos vivem e dormem
na Praça e nas ruas laterais, sendo eles a
reclamação de alguns moradores- mora-
dores dos imóveis “abandonados” carac-
terizados como cortiços, além de turistas,
visitantes e pessoas de outros bairros da
cidade que se deslocam para a Praça
para encontrar os amigos.
O projeto de revitalização de
São Domingos – proposta para a praça
Leoni Ramos
Assim como a região de Portugal
Pequeno, a Praça Leoni Ramos e seu en-
torno também foram objeto de projeto de
revitalização por parte da Prefeitura.
Segundo o projeto denominado
Projeto de Revitalização de São Domin-
gos – Proposta para a Praça Leoni Ramos
– 2004”, as ações propostas eram:
Como primeiro enfoque, o projeto
prevê a reformulação da Praça Leoni
Ramos, que se constitui num dos prin-
cipais polos culturais do bairro. Loca-
lizada em frente à antiga Estação da
Cantareira, a praça abriga o busto de
D. Pedro II, tombado pelo município, e
reúne no seu entorno edicações pre-
servadas utilizadas como residências,
bares, restaurantes, ateliês, sedes de
ONGs e associações, além do cam-
pus de Universidade Fluminense.
O projeto abrange também a recupera-
ção das fachadas das edicações pre-
servadas, a padronização do desenho
de piso das calçadas, bem como dos
engenhos publicitários, além do rema-
nejamento do ponto de táxi, atualmen-
te localizado na Praça Leoni Ramos,
para a Rua Alexandre Moura, após a
Estação da Cantareira, e a colocação
de semáforo na Av. Rio Branco, antes
da entrada para o Campus da UFF
(Gragoatá).
7
Tal “reformulação” indicada no iní-
cio do trecho supracitado consistia em in-
tervenções estéticas, como troca de pos-
tes, pisos, árvores e mobiliário urbano, e
nivelamento da praça com instalação de
rampas para facilitar a acesso.
No entanto, como podemos ler na
Ata da reunião do dia 22 de abril de 2007 do
Conselho Comunitário da Orla da Baia reali-
zado na Praça Leoni Ramos, moradores não
estavam de acordo com o projeto proposto
para a Praça, e denunciavam que este havia
sido aprovado sem a participação deles:
Abertos os trabalhos e estabelecida à
mesa, sendo presidida pelo Diretor, Sr.
Carlos Augusto Valdetaro da Cunha e
secretariado pelo Sr. José de Azeve-
do, Presidente do CCOB.
O Presidente fez um breve relato sobre
as irregularidades na condução de todo
o processo de elaboração do projeto
da Praça, tendo em vista que os mo-
radores em nenhum momento foram
consultados e em assim sendo, não ti-
veram a oportunidade de opinar sobre o
projeto, conforme prevê o Estatuto das
Cidades. Que na última e única reunião,
realizada esta semana pelo Secretário
André Diniz, onde a comunidade não
foi chamada, este Secretário admitiu
publicamente que infelizmente houve
uma falha daqueles que conduziram o
processo anteriormente. Mas que infe-
lizmente embora ele estivesse apresen-
tando o projeto, este não mais poderia
sofrer qualquer tipo de alteração, por
participação dos moradores. Nesta reu-
nião, houve muitas reclamações, prove-
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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nientes dos moradores que “souberam”
da reunião e em ali estando, demons-
traram todo o seu repúdio quanto à reu-
nião ser ESCONDIDA e sendo ouvido
apenas um segmento daqueles que
usavam a Praça, que eram os donos de
bares, mais uma vez desrespeitando os
moradores de São Domingos.
Houve várias reclamações quanto à
desordem que o bairro foi submetido,
por conta da Prefeitura não fazer cum-
prir a lei e defender a desordem, onde
os bares dominavam a situação, explo-
rando o espaço público ao seu bel pra-
zer e conveniência, estando, portanto a
praça privatizada e a serviço de pou-
cos comerciantes que não se preocu-
pavam com o sossego da comunidade,
não respeitando o código de posturas
municipal, nem tão pouco a lei do silên-
cio o que vem levando os moradores
ao desespero quando colocam o som
alto não deixando as pessoas dormi-
rem e que e tal a altura do som que as
vidraças das casas chegam a vibrar.
Além de serem realizados bailes gays,
onde para espanto da comunidade, é
praticado sexo em locais públicos, bem
como cenas libidinosas na presença in-
clusive de crianças do bairro.
8
Esta insatisfação por parte dos mo-
radores aparentemente não foi ouvida, pois
constatamos as mesmas queixas apresen-
tadas nesta reunião nas entrevistas que re-
alizamos com alguns moradores. A Praça
foi executada tal qual a proposta pelo pro-
jeto, o que nos comprova que, pouco, ou
quase nada, das reclamações dos morado-
res foi levado em conta em sua execução.
Errâncias: relato de incursões e per-
cepções de São Domingos
Caminhando pelo bairro alcança-
mos lentamente o território da Cantareira e
a Praça Leoni Ramos, um ambiente singu-
lar que remete a cidades do interior, um lar-
go que assim como Portugal Pequeno nos
remete a um “cenário” de lmes antigos.
No entanto, ao observar os “perso-
nagens” que circulam por estes espaços,
vamos aos poucos compreendendo a di-
nâmica do lugar e o papel que cada um
exerce na formação deste território.
Diferentemente das incursões rea-
lizadas a Portugal Pequeno, não senti ne-
nhum incômodo por estar naquele lugar,
pois ninguém que por mim passava pare-
cia estranhar minha presença. Era apenas
mais uma aluna da universidade que por
ali passava, estando misturada com tan-
tos outros que circulavam de um campus
a outro, em um intervalo de almoço ou
ida para o ponto de ônibus. Desta forma,
minha presença se diluía entre os outros
universitários e me sentia segura e confor-
tável para vivenciar aquele espaço.
Sabendo das diferentes ocupações
da praça ao longo dos dias da semana e
horários, me programei para realizar a pes-
quisa em dias e horas diferentes. Desta
forma, pude observar que pela manhã a
região sempre estava mais esvaziada, e
apesar de haver na Praça equipamentos e
áreas destinadas às crianças, a presença
destas nunca foi marcante (diferentemen-
te de outra praça próxima, localizada no
bairro do Ingá, que é reconhecida por to-
dos como uma praça em que pela manhã é
“dominada” pelas crianças, mães e babás).
Pelas manhãs, observamos que a Praça se
congura mais como um lugar de passa-
gem, universitários e pessoas indo para o
trabalho, e as únicas presenças constantes
neste horário são as dos moradores de rua,
que encontramos dormindo nos bancos.
Conforme a manhã vai passando
vericamos uma maior circulação de pes-
soas, e os restaurantes começam a abrir
suas portas para servir o almoço a alunos,
professores e funcionários das instituições
61
Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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do entorno. Exceto nos ns de semana e
nos períodos de férias, onde ocorre um
signicativo esvaziamento deste lugar,
esta dinâmica praticamente não se altera.
No entanto se esta dinâmica fun-
ciona para o dia, à noite a Cantareira é um
pouco diferente. Com a chegada do m
da tarde e início da noite os bares e res-
taurantes colocam suas mesas e cadei-
ras nas ruas e recebem diferentes pers
de clientes. Identicamos que em alguns
bares apresentações ao vivo de artis-
tas locais e ofertas de cardápios diferen-
ciados como rodízios e culinária japonesa.
Ao conversar com algumas pessoas sou-
bemos também que houve uma época em
que a própria Secretaria Municipal de Cul-
tura realizava eventos gratuitos na Praça,
o que juntamente com outras característi-
cas, fortaleceu a identicação de uma vo-
cação cultural da região.
Mas há um dia na semana em que a
ocupação da Praça Leoni Ramos e entorno
é realmente impressionante. Às quintas-fei-
ras a aglomeração de pessoas na Praça e
nos bares assusta quem estava acostumado
com a movimentação da Praça durante o dia,
como dito por um entrevistado: “é a Quinta-
reira, o dia em que a Cantareira bomba”.
Cheguei com uns amigos que ti-
nham o hábito de frequentar o lugar, e
ainda tímida me pus a observar os gru-
pos que se misturavam naquela multidão.
Eram muitas pessoas, mas parecia exis-
tir uma organização natural entre aqueles
que ali estavam, todos muito entrosados
entre conversas e bebidas. Fui aos pou-
cos, conversando com diferentes pessoas
e percebendo as relações que congura-
vam aquele espaço naquele momento. No
entanto, foi um “entrevistado” que revelou
a mim uma ordem que ainda não tinha per-
cebido e que somente ele, frequentador
assíduo poderia me revelar. Este rapaz
trabalhava como divulgador, entregando
lipetas de outros eventos que aconteciam
na cidade, durante todas as quintas feiras
(perguntei a ele: por que não nos outros
dias? e como já esperava, ele informou
que esse é o dia de maior movimento na
Praça), e com isso circulava em todos os
grupos que formavam aquela multidão.
Com o depoimento deste informan-
te, identicamos que os grupos se organi-
zam por anidades e também por poder
de consumo. Desta forma ele apontou as
áreas ocupadas e seus respectivos gru-
pos, sempre referenciados por um bar ou
restaurante, ou pela não presença destes.
Tentarei explicar verbalmente este mape-
amento.
Em uma das pontas que compõem o
“quadrado” da Praça temos a presença do
Tribus bar, que para meu informante mar-
ca o espaço da ocupação LGBT na praça;
nos bares ao lado do Tribus, ele identica
como a área de ocupação dos heterosse-
xuais “que não se incomodam com a pre-
sença dos homossexuais”; do outro lado da
Praça ele identicou como sendo área de
ocupação de quem tem maior poder aqui-
sitivo, e “pode pagar caro pela cerveja”,
onde os professores da UFF cam”, em
frente à Praça, no lado oposto da Estação
Cantareira, há o Bar São Don Don, que por
ele foi identicado como a área do pessoal
que gosta de MPB; e no centro da Praça
ele identicou como a área do pessoal al-
ternativo, e mais “barra pesada”, havendo
consumo de drogas em alguns casos.
Além destes, temos a presença
também dos vendedores ambulantes de
bebida, cachorro-quente, hambúrguer, e
outros, que muitas vezes são a salvação
do pessoal que não tem condições de
consumir nos bares e restaurantes.
Circulei um pouco entre os grupos
e ao conversar com algumas pessoas,
perguntei sempre onde moravam, e para
minha surpresa, ninguém morava em São
Domingos, alguns moravam em bairros
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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vizinhos ou mesmo no município vizinho
de São Gonçalo, mas muitos moravam no
Rio e estavam ali para confraternizar com
os amigos. Destes, grande parte eram alu-
nos, professores e funcionários da UFF,
outros eram de outras faculdades, mas ti-
nha também a presença de funcionários
da AMPLA e de visitantes que acompa-
nhavam outros amigos.
A noite se estende até bem tarde, e
a região é conhecida para alguns como a
“Lapa de Niterói”. Deixei o local uma hora
e meia da manhã e não tinha dúvidas de
que aquela grande festa ainda demoraria
muito a acabar.
Ao retornar para casa cou a ques-
tão, por que o grande movimento se dá na
quinta e não na sexta feira? Esta questão foi
respondida por um outro informante, em ou-
tra situação, quinta-feira é o último dia para
os alunos que não moram em Niterói. No
período de aulas, é o melhor dia para sair à
noite, pois na sexta eles voltam para a casa.
No dia seguinte, a quantidade de
lixo denunciava a festa da noite que pas-
sou. Sendo esta uma das queixas dos mo-
radores, além de outras como excesso de
barulho, insegurança, comportamentos
libidinosos” e consumo e vendas de dro-
gas na região, que são intensicados por
estas “festas” na Praça.
Com a prática das errâncias pu-
demos ver que a impressão de um local
calmo e tranquilo, onde a população vive
satisfeita, é, na verdade, uma grande ilu-
são que o cenário físico e as relações su-
perciais colocam para o observador.
Registro fotográco das errâncias:
Museu Petrobras de Cinema
Caminho Niemeyer.
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Bem tombado municipal
Portal da Cantareira – Rua Alexandre
Moura 2 – São Domingos.
Bem tombado municipal
Busto de Dom Pedro II – Praça Leoni
Ramos – São Domingos.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Bem tombado municipal
Igreja de São Domingos Gusmão
Rua Alexandre Moura, 29
– São Domingos.
Bem tombado municipal
Imóvel situado na Rua Alexandre
Moura, 1, 3 e 5 – São Domingos
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
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Casarios abandonados nas ruas do
entorno a Praça Leoni Ramos.
Presença dos bares no entorno da
Praça Leoni Ramos.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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motivações bastante diferentes. Enquanto
em Portugal Pequeno a motivação de um
projeto de “revitalização” se deu a partir de
uma ligação histórica com o “mote” de um
grande evento realizado pela Prefeitura de
Niterói (Niterói encontro com Portugal
Brasil 500), e com consequente abandono
após a realização do evento e o passar do
tempo, vimos em São Domingos uma ou-
tra motivação: segundo consta no projeto,
seriam ações para “garantir o conforto e a
segurança dos usuários”.
No entanto, em nossa pesquisa,
vericamos que a Praça não foi “desocu-
pada” durante as obras, mesmo estando
cercada por tapumes e não permitindo
que as pessoas a ocupassem. As pessoas
continuavam a ocupar os bares e as ruas
ao redor da praça, o que nos prova que os
“usuários” como o projeto se refere, não
estavam muito preocupados com o con-
forto e a segurança, mas sim em encon-
trar os amigos e poder desfrutar daquele
espaço público signicado.
Outro ponto que aproxima essas
duas regiões são os usuários e os interes-
ses que detém maior poder nas decisões
e ações realizadas na região. Em ambos
os lugares, vericamos que os moradores
têm pouca ou quase nenhuma participa-
ção (de ocupação e de decisão) nestes
espaços (vimos que a ocupação no nal
de semana destes lugares é bastante es-
vaziada), ao mesmo tempo em que as de-
cisões são tomadas pela Prefeitura sem
consultar as comunidades, estabelecendo
diálogos somente com as instituições, co-
mércios e empresários que estão xados
nestes espaços.
Após toda esta análise e resgatan-
do as leituras produzidas ao longo da pes-
quisa, concluímos que para que Portugal
Pequeno e São Domingos tenham seus
usos e espaços valorizados, não basta
uma ação da Prefeitura para isso aconte-
cer. Primeiramente, deve-se ouvir a popu-
Conclusão comparativa
A partir do aprofundamento das
questões levantadas pela pesquisa por
meio das leituras e visitas a campo, pude-
mos estabelecer uma análise comparativa
quanto aos usos percebidos destes territó-
rios, construindo pontos que se aproximam
e outros que afastam quando comparadas
as realidades de Portugal Pequeno e São
Domingos.
Estes dois territórios tiveram sua
fundação e desenvolvimento relaciona-
dos ao período colonial e a presença dos
portugueses, e foram “abandonados”
quando a cidade começou a crescer para
outras regiões e bairros. No entanto, esta
mudança na ocupação da cidade, por um
lado, foi positiva para estes lugares, pois
este abandono colaborou para a preser-
vação de uma “ambiência histórica” e
bucólica das duas regiões, o que, pos-
teriormente, viria a ser “redescoberto” e
valorizado.
As duas áreas que pesquisamos
fazem fronteira com o bairro Centro e
com a Baía de Guanabara, no entanto,
essa característica física-territorial não
condiciona uma igualdade na dinâmica
destes territórios. Percebemos que a di-
versidade de usos em São Domingos,
com escolas, faculdades, residências,
empresas, ateliers, bares e restaurantes,
proporciona uma ocupação mais dinâmi-
ca da Praça da Cantareira (embora tam-
bém tenhamos questionamentos quanto
a esta ocupação) do que a ocupação que
temos em Portugal Pequeno, que com a
presença massiva de estaleiros e indús-
tria naval, deixa pouca abertura para ou-
tros usos, sendo estes limitados à pesca,
bares e restaurantes e às residências do
Morro da Penha.
Além disso, essas duas regiões fo-
ram objeto de projetos de “revitalização” re-
alizados pela Prefeitura, mas que tiveram
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Ano 3, número 5, semestral, setembro 2013
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
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VARELLA, Marcos Vinícius. Vila Pereira Car-
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terói/ RJ: Niterói Livros, 2008.
1 Retirado de (http://www.felipepeixoto.com.br//index2.
php) – período do acesso: fev/2009
2 Texto de apresentação do projeto de reabilitação de
Portugal Pequeno, retirado do catálogo do evento “Nite-
rói Encontro com Portugal Brasil 500” realizado pela
Prefeitura de Niterói em 1998.
3 Todas as imagens, quando não identicadas as fon-
tes, são da autora.
4 Retirado de http://ddp-fan.com.br/bairros/sao_domin-
gos.htm
5 Retirado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Cantareira_
(Niter%C3%B3i)
6 Importante enfatizar que, em todo o bairro existem ou-
tras instituições e usos, no entanto, restringimos nosso
mapeamento ao entorno da Praça Leoni Ramos.
7 Trecho retirado do texto de apresentação do “Projeto
de Revitalização de São Domingos Proposta para a
Praça Leoni Ramos 2004”, adquirido no Departamento
de Preservação e Reabilitação do Patrimônio Cultural da
Secretaria Municipal de Cultural de Niterói.
8 Retirado de: http://www.conselhoorlaniteroi.xpg.com.
br/50.html - data de acesso: jun/2009
lação para que ela aponte as intervenções
que realmente são necessárias e que real-
mente precisam de atenção. Obras de fa-
chada, com o objetivo de integrar lógicas
espetacularizadas ou de cunho eleitoral,
não contribuem para o desenvolvimento
dos lugares, apenas contribuem para a re-
alização ecaz de uma maquiagem que o
tempo, sabiamente, retira.
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