DOSSIÊ “MÚLTIPLOS CARNAVAIS:
ECONOMIA E POLÍTICA NAS
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS POPULARES”
DOSSIER “MULTIPLE CARNIVALS: ECONOMICS AND
POLITICS IN THE POPULAR CULTURAL EVENTS
Apresentação do Dossiê
“Quando o carnaval chegar”: Carnavais em múltiplos
e variados enfoques
Dossier’s presentation
“Quando o carnaval chegar”: Carnivals in multiple and varied approaches
MARINA BAY FRYDBERG
Manaus, 2014:
o carnaval que nunca terminou
Manaus, 2014:
the Carnival that never ended
RICARDO JOSÉ DE OLIVEIRA BARBIERI
Os blocos de enredo do carnaval carioca:
identidade e organização
The blocos de enredo carnival city of Rio de Janeiro:
identity and organization
JULIO CESAR VALENTE FERREIRA
Escolas de Samba nos Pampas:
textos e contextos da interculturalidade no carnaval
de Uruguaiana
Samba Schools in Pampas:
texts and contexts of the interculturality in the Uruguaiana’s carnival
ULISSES CORRÊA DUARTE
Bananas e abacaxis nos “quintais” do carnaval carioca
- impressões etnográcas sobre a produção de um desle
de escola de samba da Estrada Intendente Magalhães
Bananas and pineapples in Rio’s carnival “backyards”
- ethnographic views on the production of a samba school
parade at Intendente Magalhães Avenue
LEONARDO AUGUSTO BORA
O Carnaval do Mindelo, Cabo Verde:
reexões sobre a festa e a cidade
The Carnival of Mindelo, Cape Verde:
reections on the festival and the city
JULIANA BRAZ DIAS
Carnaval de rua no Rio de Janeiro:
afetos e participação política
Street carnival in Rio de Janeiro:
affects and political participation
JORGE E. SAPIA
Ano VI nº 11 - abr/2016 a set/2016
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
O bairro do Recife e a Economia Criativa:
do Carnaval Multicultural ao Paço do Frevo
Recife City District and the Creative Economy:
from Multicultural Carnival to Paço do Frevo´s creation
CARLA LYRA
Blocos carnavalescos:
culturas populares, culturas híbridas no carnaval
de rua do Rio
Carnival street bands (blocos):
popular cultures, hybrid cultures of street carnival in Rio de Janeiro
RITA FERNANDES
Sambantropologia
Sambantropology
VINICIUS FERREIRA NATAL
Atrás do nosso bloco só não vai quem já
morreu
- o corpo carnavalesco de Mário de Andrade
Behind our block will not only those who have died
- Carnival in Mário de Andrade’s body
LUCAS GARCIA NUNES
Carnaval, uma festa democrática?
Discussão sobre segregação social e o direito à cidade
a partir do universo carnavalesco do Rio de Janeiro
Carnival, a democratic festivity?
Discussions about social segregation and right to the city in
the carnival universe of Rio de Janeiro
THAIS CUNEGATTO
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano VI nº 11 - abr/2016 a set/2016
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Isabel Babo - Universidade Lusófona do Porto, Portugal
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano VI nº 11, (ABR/2016 a SET/2016). – Niterói, RJ: [s. N.], 2016.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário / Summary
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ / DOSSIER’S PRESENTATION
DOSSIÊ: Múltiplos carnavais: Economia e política nas manifestações culturais populares
DOSSIER: Multiple carnivals: Economics and politics in the popular cultural events
“Quando o carnaval chegar”: Carnavais em múltiplos e variados enfoques
“Quando o carnaval chegar”: Carnivals in multiple and varied approaches
MARINA BAY FRYDBERG 06
DOSSIÊ / DOSSIER 11
Manaus, 2014: o carnaval que nunca terminou
Manaus, 2014: the Carnival that never ended
RICARDO JOSÉ DE OLIVEIRA BARBIERI 12
Escolas de Samba nos Pampas: textos e contextos
da interculturalidade no carnaval de Uruguaiana
Samba Schools in Pampas: texts and contexts of the interculturality
in the Uruguaiana’s carnival
ULISSES CORRÊA DUARTE 30
Bananas e abacaxis nos “quintais” do carnaval carioca
– impressões etnográcas sobre a produção de um desle
de escola de samba da Estrada Intendente Magalhães
Bananas and pineapples in Rio’s carnival “backyards”
- ethnographic views on the production of a samba school parade
at Intendente Magalhães Avenue
LEONARDO AUGUSTO BORA 46
Os blocos de enredo do carnaval carioca: identidade e organização
The blocos de enredo carnival city of Rio de Janeiro: identity and organization
JULIO CESAR VALENTE FERREIRA 62
Carnaval de rua no Rio de Janeiro: afetos e participação política
Street carnival in Rio de Janeiro: affects and political participation
JORGE E. SAPIA 79
O Carnaval do Mindelo, Cabo Verde: reexões sobre a festa e a cidade
The Carnival of Mindelo, Cape Verde: reections on the festival and the city
JULIANA BRAZ DIAS 95
O bairro do Recife e a Economia Criativa:
do Carnaval Multicultural ao Paço do Frevo
Recife City District and the Creative Economy:
from Multicultural Carnival to Paço do Frevo´s creations
CARLA LYRA 109
Carnaval, uma festa democrática? Discussão sobre segregação social
e o direito à cidade a partir do universo carnavalesco do Rio de Janeiro
Carnival, a democratic festivity? Discussions about social segregation
and right to the city in the carnival universe of Rio de Janeiro
THAIS CUNEGATTO 122
Blocos carnavalescos: culturas populares,
culturas híbridas no carnaval de rua do Rio
Carnival street bands (blocos): popular cultures,
hybrid cultures of street carnival in Rio de Janeiro
RITA FERNANDES 138
Sambantropologia
Sambantropology
VINICIUS FERREIRA NATAL 150
Atrás do nosso bloco só não vai quem já morreu
- o corpo carnavalesco de Mário de Andrade
Behind our block will not only those who have died
- Carnival in Mário de Andrade’s body
LUCAS GARCIA NUNES 167
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apresentação do Dossiê
“Múltiplos carnavais: Economia
e política nas manifestações
culturais populares”
7
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Como cantou Chico Buarque
na música que dá título a este texto,
podemos estar parados, calados, so-
frendo ou humilhados, mas estamos
nos “guardando pra quando o carnaval
chegar”. Esta festa que mobiliza mil-
hares de pessoas nas ruas, que popu-
larmente é reconhecido que depois
dela que o ano começa, em que gira
muito dinheiro e que mobiliza mani-
festações apaixonadas, precisa ser
estudada em profundidade e a partir
de múltiplos enfoques para poder ser
compreendida. Projeto levado a sério
aqui neste dossiê.
O carnaval, em suas múltiplas
expressões, foi estudado de modo
signicativo pelas ciências humanas e
sociais. Esses estudos buscavam enten-
der o signicado da festa carnavalesca
para diferentes sociedades e em dife-
rentes tempos históricos. As pesquisas
pensavam geralmente o carnaval como
espaço de ritual, seja por suas práticas
(CAVALCANTI, 1994), seja como mo-
mento de inversão da ordem estabele-
cida (BAKHTIN, 2010; BURKE, 2010;
DAMATTA, 1997). Nestes estudos a fes-
ta era pensada como um tempo fora do
tempo do cotidiano, não como mo-
mento inversão da ordem social, como
de expressão de uma identidade popular,
muitas vezes transformada em nacional.
Construindo a noção do carnaval a partir
dessas perspectivas a maioria dos estu-
diosos sobre o tema não se debruçaram
sobre a festa e seus desdobramentos
econômicos para a população que fes-
teja. A perspectiva de uma economia do
carnaval aparece no Brasil em trabalhos
recentes, que buscam entender esta fes-
ta como espaço de produção, circulação
e consumo de bens culturais (FARIAS,
2005; MIGUEZ, 2009).
Entendendo o carnaval como es-
paço de trocas econômicas, políticas,
sociais, simbólicas e afetivas, estudar
esta expressão da cultura popular,
seja em termos históricos (QUEIROZ,
1999; FERREIRA, 2004) ou nas suas
manifestações atuais (GÓES, 2013;
GONÇALVES, 2010; HERSCHMANN,
2013), é fundamental para problemati-
zar diferentes e diversificadas práticas
carnavalescas. Variados enfoques,
como o olhar da performance, da ges-
tão e organização da festa, das políti-
cas culturais, dos processos de patri-
monialização, das trocas econômicas
e simbólicas, da ocupação urbana, da
relação com o território, entre outras
abordagens estéticas e teóricas con-
tribuem para, a partir da festa, pensar-
mos as sociedades que as festejam.
A tradição de se brincar o carna-
val foi trazida para o Brasil pelos portu-
gueses e ganhou força a partir da vin-
“Quando o carnaval chegar”:
Carnavais em múltiplos e variados enfoques
“Quando o carnaval chegar”:
Carnivals in multiple and varied approaches
Marina Bay Frydberg
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
da da família real em 1808. O entrudo,
manifestação popular de origem portu-
guesa, consistia em atirar nas pessoas
objetos que sujassem e molhassem,
como por exemplo, bexigas, gesso ou
farinha (GÓES, 2013). Em meados do
século XIX, o carnaval popular e des-
ordeiro do entrudo passou a ser re-
conhecido socialmente como sujo e a
elite passou a comemorar o carnaval
inspirada no modelo europeu dos bai-
les de máscaras. A partir da segunda
metade do século XIX o carnaval pas-
sa a ser festejada através das socie-
dades carnavalescas, organização de
pessoas de classe média e alta, que
desfilavam fantasiadas, com carros e
bandas de música. Inspirados pelas
sociedades carnavalescas, as classes
populares passaram a se organizar em
blocos, cordões e ranchos. O carnaval
passa então a ser classificado, segun-
do Queiroz (1999), em “Grande Carna-
val”, modo da elite brincar a festa, e
“Pequeno Carnaval”, forma popular da
brincadeira carnavalesca.
Foi no final da década de 1920
que surgiram as primeiras escolas de
samba, consideradas por muitos estu-
diosos como uma síntese de todas es-
sas outras formas de brincar o carna-
val. O primeiro desfile das escolas de
samba aconteceu em 1932, na Praça
Onze no Rio de Janeiro, e sagrou cam-
peã a GRES Estação Primeira de Man-
gueira. O governo, identificando o po-
tencial do carnaval como forma direta
de comunicação com o povo, passou
a incentivá-lo e organizá-lo (GÓES,
2013). Assim o carnaval das escolas
de samba ganhou importância social e
em pouco tempo passou a desfilar em
grandes avenidas da cidade do Rio de
Janeiro, até a construção do Sambó-
dromo em 1984. Criou-se, assim, um
modelo de carnaval que inspirou ma-
nifestações festivas por todo o país e
também pelo mundo.
A festa carnavalesca brasileira,
seja das escolas de samba ou do car-
naval de rua, passou a fazer parte do
calendário festivo do país ajudando na
construção da identidade nacional. Mas
esse carnaval tão diretamente associa-
do a alguns territórios como Rio de Ja-
neiro, Salvador, Recife e Olinda – não é
exclusivo deles. O carnaval é uma festa
nacional que ganha contornos regionais
e locais em diferentes lugares do Brasil,
como podemos ver do Rio Grande do
Sul ao Amazonas, e com esta sua ca-
pacidade dialógica, passa a estabele-
cer conexões entre diferentes partes do
Brasil, como Rio de Janeiro e Uruguaia-
na RS, e também com outras partes
do mundo, como Cabo Verde, Argentina
e Uruguai. Esta abrangência nacional
da festa carnavalesca, com seu poten-
cial transnacional, é uma das caracte-
rísticas do potencial do carnaval como
elemento construtor de identidade e de
práticas de sociabilidade.
Outra visão múltipla deste carna-
val brasileiro é a possibilidade de va-
riações em termos de linguagem que
ele pode assumir. Podemos pensar no
carnaval das escolas de samba, dos
blocos de enredo, dos blocos de rua,
para citar algumas das suas expres-
sões. Podemos pensar nos luxos dos
paetês ou na criatividade dos blocos.
Podemos pensar em tempo determi-
nado de desfile ou em saídas intermi-
náveis pelas ruas da cidade. O carnaval
é sem dúvida uma festa de múltiplas
expressões artísticas e, consequente-
mente, de variados significados possí-
veis de serem interpretados.
Inserida na atualidade dessa for-
ma de brincar o carnaval, estamos pen-
sando a festa carnavalesca a partir de
três dos seus possíveis significados: o
carnaval como prática, o carnaval como
identidade, o carnaval e sua relação
com o território. Prática carnavalesca
9
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
entendida aqui como saberes e faze-
res que envolvem o mundo do carnaval.
Identidade pensada como relacional e
situacional que insere o sujeito dentro
de determinado grupo social, no caso,
o carnavalesco. E a relação com o te-
rritório pensada a partir de como a prá-
tica e a identidade do carnaval ganham
contornos territoriais específicos. Nesta
tríplice abordagem, muitas vezes im-
possíveis de serem dissociadas entre
si, que está a variação de significados
que a festa carnavalesca pode ter para
quem a produz e vivencia. Assim, o car-
naval pode ser pensado como ritual,
mas também como organização. Pode
ser pensado como elemento constitu-
tivo do ser, mas também como força
política. Pode ser pensado como arte,
mas também como negócio. Pode ser
pensado como objeto de estudo, mas
também como elemento constitutivo da
identidade do pesquisador.
O dossiê Múltiplos Carnavais:
Economia e política nas manifes-
tações culturais populares busca,
a partir desse entendimento do po-
tencial da festa carnavalesca, ampliar
a discussão a respeito das relações
econômicas e políticas que articulam,
limitam e reconfiguram as manifes-
tações culturais populares, em espe-
cial as múltiplas expressões carnava-
lescas presentes na cultura brasileira
e que servem de inspiração para ex-
pressões carnavalescas em outras lu-
gares do mundo.
A prática carnavalesca e as dis-
putas em torno da festa no carnaval de
Manaus aparecem pensadas no artigo
de Ricardo Barbieri, intitulado Manaus,
2014: o carnaval que nunca terminou.
Ulisses Corrêa Duarte discute a prática
carnavalesca a partir da relação com a
identidade e o território da fronteira do
Rio Grande do Sul no artigo Escolas de
Samba nos Pampas: textos e contex-
tos da interculturalidade no carnaval
de Uruguaiana. Leonardo Augusto
Bora, no artigo Bananas e abacaxis
nos “quintais” do carnaval carioca –
impressões etnográficas sobre a pro-
dução de um desfile de escola de sam-
ba da Estrada Intendente Magalhães,
problematiza a prática carnavalesca, a
partir do duplo olhar de pesquisador e
carnavalesco, e da realidade do carna-
val dos grupos menos reconhecidos do
carnaval carioca.
Os blocos de enredo no carna-
val carioca, tantas vezes esquecidos
pelos estudos sobre carnaval, são
analisados nas especificidades das
suas práticas no artigo Os blocos de
enredo do carnaval carioca: identida-
de e organização, de autoria de Júlio
César Valente Ferreira. o carnaval
dos blocos de rua do Rio de Janeiro
são pensados enquanto prática, iden-
tidade e sua relação com a cidade no
artigo de Jorge Sapia intitulado Car-
naval de rua no Rio de Janeiro: afetos
e participação política.
Quatro artigos estão pensan-
do sobre a prática carnavalesca como
construção de identidades de grupos
específicos e na consolidação do ima-
ginário da cidade. Juliana Braz Dias
discute o carnaval em Cabo Verde no
artigo O Carnaval do Mindelo, Cabo
Verde: reflexões sobre a festa e a ci-
dade. Carla Lyra pensa no potencial
do carnaval nos processos de reestru-
turação urbana de Recife no artigo O
bairro do Recife e a Economia Criativa:
do Carnaval Multicultural ao Paço do
Frevo. Thais Cunegatto problematiza
a identidade e o imaginário do carna-
val das escolas de samba do Rio de
Janeiro no artigo Carnaval, uma fes-
ta democrática? Discussão sobre se-
gregação social e o direito à cidade a
partir do universo carnavalesco do Rio
de Janeiro. E o carnaval dos blocos de
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
rua carioca é confrontado na ideia de
cultura popular no artigo Blocos carna-
valescos: culturas populares, culturas
híbridas no carnaval de rua do Rio de
Maria Rita Fernandes.
Por fim o dossiê se encerra com
dois artigos que partem de vivências
pessoais da prática carnavalesca para
pensar a importância da memória no
carnaval, seja na preservação quanto
no reconhecimento. Vinícius Ferreira
Natal aborda estas questões a par-
tir da sua vivência pessoal na GRES
Unidos de Vila Isabel no artigo Sam-
bantropologia. E Lucas Garcia Nunes
pensa a política cultural a partir da ex-
periência carnavalizante de Mario de
Andrade em Atrás do nosso bloco só
não vai quem já morreu - o corpo car-
navalesco de Mário de Andrade.
São múltiplos e variados os en-
foques possíveis sobre a festa carna-
valesca.
Boa leitura e caiam na folia!
Bibliograa
BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Ida-
de Média e no Renascimento. Brasília: Ed.
UnB, 1993.
BURKE, Peter. O mundo do carnaval. In: Cultura
popular na Idade Moderna. São Paulo: Compan-
hia das Letras, 2010.
CAVALCANTI, Bruno César. Novos lugares da
festa: Tradições e mercados. Revista Observa-
tório Itaú Cultural. Nº. 14. São Paulo: Itaú Cul-
tural, 2013.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiro de Castro.
Carnaval Carioca: dos bastidores ao desle. Rio
de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e he-
róis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FARIAS, Edson. Economia e cultura no circui-
to das festas populares brasileiras. Sociedade
e Estado. Brasília, vol. 20, nº. 3, p. 647-688.
Set.-Dez., 2005.
FERREIRA, Felipe. Festejando. Revista Obser-
vatório do Itaú Cultural. 14. São Paulo: Itaú
Cultural, 2013.
FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval
brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
GÓES, Fred. Brasil: O país de muitos carna-
vais. Revista Observatório do Itaú Cultural.
14. São Paulo: Itaú Cultural, 2013.
GONÇALVES, Renata de Sá. A dança nobre do
carnaval. São Paulo: Aeroplano, 2010.
HERSCHMANN, Micael. Apontamentos sobre o
crescimento do Carnaval de rua no Rio de Janei-
ro no início do século 21. Revista Intercom. São
Paulo, v. 36, n. 2, p. 267-289, jul/dez 2013.
MIGUEZ, Paulo. Algumas notas sobre a econo-
mia do Carnaval da Bahia. In: CALABRE, Lia
(org.). Políticas Culturais: Reexões e Ações.
São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Fun-
dação Casa de Rui Barbosa, 2009.
QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval Brasileiro: o
vívido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1999.
11
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Dossiê
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Manaus, 2014: o carnaval que nunca terminou
Manaus, 2014: el carnaval que nunca terminó
Manaus, 2014: the Carnival that never ended
Ricardo José de Oliveira Barbieri
I
Resumo:
Tomando o momento da apuração das notas dos desles das escolas
de samba como decisivo, passamos neste artigo a analisar as redes
sociais articuladas pelas escolas de samba ao longo da preparação do
carnaval, como cisões e rixas próprias da competição entre as escolas
de samba. Para tanto tomaremos o caso da apuração das notas
dos desles em Manaus (AM) no carnaval 2014. Simultaneamente,
ao tomarmos este momento como desfecho de um ciclo dramático,
compomos um quadro completo das relações das agremiações com
o poder público. Finalmente aprofundamos o signicado da apuração
para a manifestação carnavalesca das escolas de samba.
Palavras chave:
Apuração
Escolas de Samba
Carnaval
Drama
Manaus
13
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Tomarse el tiempo de anuncio de las notas de los desles de las escuelas
de samba como decisivos, en este artículo se analizan las redes
sociales articuladas por las escuelas de samba durante la preparación
del carnaval, como divisiones y las contiendas de competencia entre las
escuelas de samba. Por lo tanto, tomaremos el caso del anuncio de las
calicaciones de espectáculos de las escuelas de samba en Manaus
(AM) durante el Carnaval 2014. Al mismo tiempo que tomamos este
momento como el resultado de un ciclo dramático, componemos una
imagen completa de las relaciones de asociación con el poder público.
Por último, profundizamos en el sentido del anuncio de las calicaciones
para la manifestación de las escuelas de samba del carnaval
Abstract:
Taking the time of ascertainment of the scores of parades of the samba
schools as decisive in this article, we analyze social networks articulated
by samba schools during the carnival preparation as rivalry between
the samba schools. Therefore we will take the case of the investigation
of scores of parades in Manaus (AM) during Carnival 2014. At the
same time as we take this moment as the outcome of a dramatic cycle
compose a complete picture of the relations of samba schools with
the public power. Finally we deepen the meaning of the scores for the
manifestation of carnival samba schools.
Palabras clave:
Calicacion
Escuelas de Samba
Carnaval
el drama
Manaus
Keywords:
Scores
Samba
schools
Carnival
Manaus
14
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Manaus, 2014:
o carnaval que nunca terminou
Vai ou racha
Vai ou racha
Está chegando a hora!
Tira as cartas das mangas
Não se engana a gente da terra
Chega de sofrer abelha dá mel,
mas também ferra
(Samba de enredo do GRES Andanças
de Ciganas no carnaval 1990
II
)
O carnaval das escolas de samba de
Manaus, desde o meu primeiro contato, sem-
pre pareceu reetir certa aura de rivalidade se-
melhante aos Bumbás de Parintins . Suas par-
ticularidades, ainda assim, são reetidas nestas
rivalidades. A singularidade do carnaval de Ma-
naus emana de suas escolas e de seus sambis-
tas. A forma de rivalizar é um destes elementos.
A apuração dos desles é o pico da
tensão entre as escolas de samba em qual-
quer lugar do mundo. O momento da apu-
ração das notas dos desles é ao mesmo
tempo interessante, ao explicitar tanto as
redes sociais articuladas pelas escolas de
samba ao longo da preparação do carna-
val, como cisões e rixas próprias da com-
petição entre as escolas de samba.
A história das escolas de samba em
Manaus remonta ao ano de 1947 quando foi
fundada a primeira escola de samba local, a
Escola Mixta da Praça 14. Daquele tempo até
a década de 1980 as escolas foram crescendo
tendo o carnaval do Rio de Janeiro como nor-
teador. Os desles que inicialmente eram reali-
zados na principal avenida do centro da cidade,
na região onde a maioria das escolas tinham
suas sedes, passaram para outros palcos provi-
sórios. Foi em 1992 que as escolas de Manaus
passaram a deslar em seu próprio espaço de-
nitivo, o sambódromo de Manaus. Com capa-
cidade para mais de cem mil pessoas dividas
entre oito setores de arquibancadas sendo os
dois últimos – quando olhamos na perspectiva
de evolução das agremiações na pista de des-
les – de arquibancadas curvas que se encon-
tram no formato de “U”, a chamada “ferradura”.
Os sambistas de Manaus têm muito orgulho de
sua pista de desles tanto por sua arquitetura
como por sua capacidade de público que o tor-
na o maior equipamento do gênero no Brasil.
Figura 1 - Sambódromo de Manaus durante os desles das escolas de samba. 17/03/2015
15
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Com o passar dos anos e com a expan-
são do carnaval das escolas de samba pela ci-
dade, aumentaram o número de agremiações
e a rivalidade entre elas. A Escola Mixta que foi
seguida décadas depois de seu último desle
pela Unidos da Selva
IV
, também pela Em Cima
da Hora do Educandos
V
deixou de deslar
tal qual suas rivais. Os lhos dos sambistas e
fundadores das escolas citadas anteriormente
mantiveram a chama do carnaval em novas
agremiações fundadas pelos herdeiros entre
as décadas de 1970 e 1980. Então surgiram
nos mais diferentes pontos da cidade a Vitória
Régia, a Mocidade Independente de Apareci-
da, a Reino Unido da Liberdade, a A Grande
Família entre outras. Outras deixaram o carna-
val de rua dos blocos acompanhando o deslo-
camento dos desles com sua saída do centro
da cidade em direção a região onde hoje está
localizado o sambódromo. Deste movimen-
to resultaram a Sem Compromisso, Balaku
Blaku, Primos da Ilha, Andanças de Ciganos e
muitas mais. Até do futebol, onde o Amazonas
é conhecido pelo maior torneio de várzea brasi-
leiro, o Peladão surgiram escolas de samba
como no caso da Unidos da Alvorada.
Deste caldo cultural as rivalidades
se alimentaram com Vitória Régia e Moci-
dade de Aparecida disputando títulos entre
elas na década de 1980. No nal do perío-
do e início dos 1990 a Reino Unido passa a
rivalizar com as duas anteriores. E já no -
nal dos anos 2000 juntam-se a elas A Gran-
de Família na disputa por campeonatos.
E cada disputa seria marcada por
uma série de eventos que ultrapassavam as
pistas de desles. Enfrentamentos violentos
entre torcedores, dirigentes e policiais nas
apurações ou querelas inndáveis no siste-
ma judiciário após os resultados seriam os
desdobramentos dos desles de escolas de
samba. Com todo esse passado de tensão
durante a leitura pública das notas dos jura-
dos, as apurações foram mudando de local
até se xarem, em 2007, em uma sala fecha-
da do Sambódromo. Apenas dois represen-
tantes de cada escola, imprensa, dirigentes
da Comissão Executiva das Escolas de Sam-
ba (CEESMA) e funcionários da Secretária
Estadual de Cultura (SEC/AM) têm acesso
a esta sala. Do lado de fora, torcedores das
escolas de samba se concentram na pista,
no trecho em frente ao setor de arquibancada
que abriga a sala onde acontece a apuração.
O clima de tensão que antecede esse evento
é reforçado pelas precauções tomadas junto
a autoridades policias. Entre a sala e o público
do lado de fora, e até mesmo dentro da sala
de apuração com acesso restrito, há presen-
ça do batalhão de choque da Polícia Militar.
Figura 2 - Sala de apuração das escolas de samba de Manaus – 11/02/2013
16
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Na apuração, tudo o que era dito
entreouvido, ou não explicitado antes dos
desles, era externado para imprensa,
para torcedores e entre os dirigentes. To-
das as acusações são levadas a cabo, al-
gumas prosseguem de forma ocial, che-
gando ao campo jurídico. Esse padrão,
ainda que com suas diferentes nuances,
se repete com conitos e ritualizações nas
apurações das demais divisões.
A apuração carioca das escolas do
Grupo Especial, a 1a divisão, é transmi-
tida pela Rede Globo de Televisão para
todo o Brasil e, portanto, poderia ser apon-
tada como um possível modelo para ou-
tros carnavais brasileiros. Realizada no
Sambódromo onde as escolas deslam,
mais precisamente na Praça da Apoteose,
aberta ao público e mobilizando torcedo-
res que enfrentam sol e chuva nas arqui-
bancadas e se concentram também nas
quadras das favoritas. É o sopro de folia
na quarta de cinzas, principalmente para
as mais bem-sucedidas nos resultados.
Isto não isenta essa apuração da
tensão e dos conitos por mais que es-
tes sejam muitas vezes evitados pela
transmissão televisiva. São as escolas
de samba insatisfeitas ou malsucedidas
na classicação nal que protagonizam
os conitos.
VI
São inúmeros os exemplos
de confusões entre torcedores e dirigen-
tes das escolas no Rio de Janeiro, ainda
em tempos de apurações não transmiti-
das pela TV.
VII
A apuração paulistana tem sido
exemplo recente dos momentos em que
confrontos extravasam o resmungo frus-
trado e contido dos perdedores. O caso
que chamou atenção, pois justamente foi
transmitido pela TV Globo, aconteceu na
apuração do carnaval de 2012. Nessa oca-
sião, um homem credenciado pela Império
da Casa Verde que estava portanto no es-
paço reservado aos representantes das es-
colas de samba, aproveitou-se de tumulto
em frente à mesa de apuração para subir
na mesa junto com integrantes das esco-
las Camisa Verde e Branco e Gaviões da
Fiel rasgando os mapas de notas que es-
tavam sendo lidos naquele momento.
IX
O
tumulto prosseguiu mesmo após encerra-
mento da apuração com a participação de
torcedores da Gaviões da Fiel que lotavam
uma das arquibancadas do Sambódromo
do Anhembi. Os torcedores promoveram
um quebra-quebra no trajeto de saída da
apuração com a depredação e incêndio de
carros alegóricos da escola rebaixada na
ocasião, a Pérola Negra. Posteriormente,
as apurações do carnaval paulistano pas-
saram a vetar a presença de público nas
arquibancadas do sambódromo do Anhem-
bi e apenas um limitado número de repre-
sentantes das escolas nas mesas posicio-
nadas na pista de desles.
X
Em Manaus, os registros de con-
frontos violentos em apurações não cam
para trás. O historiador Daniel Sales cita
dois dos mais marcantes: a batalha entre
torcedores da Mocidade de Aparecida e
da Vitória Régia. Enquanto o primeiro se
deu nos primórdios da rivalidade entre as
duas escolas, no carnaval de 1982, o se-
gundo aconteceu em pleno sambódromo
no carnaval de 1994:
No dia da apuração das notas do des-
le, na quarta de cinzas em 1994, no
Sambódromo, uma contenda entre os
Vitória Régia e os Aparecida com vias
de fato: gente segurando cadeiras de
ferro e pedaços de pau verdadeiras
armas! para atacar os oponentes. E
a apuração de 1982 no Ginásio Rene
Monteiro
XI
na Constantino Nery? Se
assistiram garrafas voando para to-
dos os lados (fui testemunha ocular do
fato); realmente, rivalidade de longa
data. (SALES, 2008, p.45)
Sales conclui que advém daí a pre-
caução adotada nas apurações seguin-
tes: “Por isso que a maioria das apura-
17
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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ções foi realizada nos quartéis da policia
militar.” (ibidem, p.45)
O modelo descrito do rito de
abertura dos envelopes de notas das
escolas de samba em Manaus segue o
mesmo praticado no Festival de Parin-
tins (AM), no qual, enquanto um restrito
grupo de dirigentes dos Bois Capricho-
so e Garantido, juntamente com a im-
prensa credenciada, tem acesso à sala
de apuração, os torcedores ocupam as
arquibancadas do Bumbódromo apenas
ouvindo as notas da apuração.
Figura 3 - Sala de Apuração no Festival de Parintins - 29/06/2015
Embora tal disposição não evite
confrontos e acusações entre os dirigen-
tes, ela é cerimonialmente praticada todos
os anos. O componente competitivo que
permeia a festa nos leva a ver na rivalida-
de acirrada da apuração o desfecho ritual
de todo processo ritual como parte da per-
formance. Durante as apresentações, ou
os desles, essa rivalidade mais direta é
suspensa e transposta para a expressão
artística, e então na apuração é como se a
rivalidade sublimada pudesse retornar em
sua forma mais crua. O ponto culminante
do processo ritual propriamente dito são as
performances mesmo, mas a apuração é
um ritual de reagregação que efetua a pas-
sagem de um ciclo para o outro ao anunciar
os resultados, posicionar as escolas para
um novo ano nos seus respectivos rankin-
gs. Toda a preparação e a realização de um
carnaval bem ou malsucedido para uma ou
mais escolas desembocará no anúncio dos
resultados. Os problemas, as contradições,
as questões mantidas latentes até o mo-
mento dos desles eclodem então, seja na
contestação de regras ou resultados, seja
no confronto direto com autoridades ou
escolas rivais. Ali se decidem os rumos do
carnaval seguinte. Uma escola pode con-
testar os organizadores, jurados e resulta-
dos cindindo ou propondo uma cisão contra
instâncias representativas; ou no curso do
ano uma escola poderá ver surgir facções
internas. Aqui se decide se o carnaval “vai
ou racha”. Como um drama social, o “vai
ou racha” explicita o cisma que impõe a ne-
18
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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cessidade de um desfecho ou momento de
reagregação e retorno à realidade cotidia-
na. Passaremos então ao estudo de caso
que explicitará as idiossincrasias e conitos
presentes no carnaval de Manaus.
2. Um drama social na apuração
em Manaus
A importância da obra de Victor Tur-
ner sempre colocou em destaque os temas
do Ritual e Simbolismo. Na obra de Victor
Turner (1996) uma das principais marcas
está na elaboração da teoria do “drama so-
cial” aplicada aos conitos cotidianos entre
os Ndembu que eclodiam de tempos em
tempos de forma mais evidente e exacerba-
da. A importância do conceito evidencia-se
por permitir acessar as mais importantes
dimensões do funcionamento da sociedade
Ndembu como o princípio da matrilinearida-
de que regia a transmissão da herança nas
relações de parentesco e conitava com
a regra residencial patrilocal do regime de
casamento. Turner demonstra como a sem-
pre refeita coesão da aldeia que estudou é
mantida em múltiplas aliações sociais atra-
vés de processos de conito.
A proposta aqui é utilizar o reco-
nhecido conceito com o estudo de caso
de uma apuração entendida como situa-
ção social. Através do modelo processual,
Turner deniu quatro fases para o drama
social, ou seja, quebra de uma norma, se-
guida de uma crise, posterior ação repara-
dora da crise, ndando na reintegração ou
reconhecimento do cisma.
A partir do desenrolar do processo
de preparação do carnaval de 2014, con-
siderado problemático pelos sambistas
de Manaus, buscaremos apreender do
caso analisado aspectos importantes da
sociabilidade nas escolas de samba de
Manaus. Buscaremos também iluminar a
reexividade dos sujeitos no âmago de um
momento de crise.
3. O carnaval 2014: a crise e o drama
das escolas de samba em Manaus
A grande tensão do carnaval 2014
foi a incerteza quanto a sua realização ou
não. Tudo começou quando a SEC-AM
abriu um edital público que desvinculava a
distribuição da subvenção da Associação
das escolas de samba do Grupo Especial
de Manaus (AGEESMA). Vale frisar que
acompanhei os atores representantes do
poder público apenas pelo noticiário. Para
receber a subvenção, entretanto, a escola
teria que apresentar uma série de docu-
mentos e cumprir algumas exigências. O
edital exigia desde ter uma sede ou uma
quadra prestando serviços comunitários
até a vericação de irregularidades no
transporte de alegorias do carnaval an-
terior. O edital, entretanto, demorou a ser
divulgado e a apreensão das escolas foi
noticiada em diversos jornais locais como
o Diário do Amazonas:
Escolas de samba mostram apre-
ensão com o desle do Carnaval de
2014.
Em reunião na tarde desta sexta-feira,
presidentes de sete Escolas de Sam-
ba do grupo especial de Manaus mos-
traram insegurança com a realização
do desle das escolas em 2014.
De acordo com eles, uma série de
indenições a respeito do Carnaval
2014, coloca em risco a realização
de um dos maiores eventos culturais
do Amazonas. “Estamos vivendo uma
situação de inconstância na qual não
sabemos se o Carnaval vai acontecer
ou não no ano que vem. Ainda não te-
mos nem sequer o edital do governo”,
armou Elimar Cunha.
Devido a essa indenição, surgiram
muitos problemas, armou Luís Pa-
checo, presidente da Mocidade In-
dependente de Aparecida. “Estamos
tentando salvar o Carnaval do ano
que vem, porque se demorarem ainda
mais para liberar o edital e a verba, te-
19
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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remos um mês para fazer tudo, o que
é impossível. Sendo que nós sempre
começamos a nos preparar no mês de
setembro e agora em novembro já era
para termos iniciado a montagem dos
carros alegóricos”, comentou ele.
Falta de material e tempo são outras
duas grandes preocupações dos pre-
sidentes, que não descartam a pos-
sibilidade de desistir do carnaval de
2014. “Fora que temos que encomen-
dar todo o material do Rio de Janei-
ro, visto que as lojas de Manaus não
conseguem atender a demanda e
muito menos o nível que exigimos em
nossas apresentações. Teríamos que
retroceder e voltar a usar o TNT”, com-
pletou Luiz Gilberto, presidente d’A
Grande Família. (Diário do Amazonas;
14 de Novembro de 2013)
Quando o edital foi lançado, as es-
colas que, lideradas pelo presidente da
AGEESMA, Elimar Cunha, chegaram a
abandonar o seminário para sua apresen-
tação realizado pela SEC. Os repasses
somariam R$ 3.467.334,00 a serem distri-
buídos entre escolas de todas as divisões.
Ao site G1 Amazonas, o secretário Ro-
bério Braga explicou o rompimento com
a AGEESMA. Robério Braga é professor
universitário com formação em História,
e era então o mais longevo secretário do
Estado do Amazonas, 18 anos no car-
go. Elimar era advogado e, naquele
momento, presidente da AGEESMA:
A entidade está inadimplente por -
rias vezes não prestar contas adequa-
damente e por isso o governo está, a
partir desse edital, fazendo o convênio
diretamente com as escolas. Não ten-
do nenhuma escola liada à AGEES-
MA e a entidade não podendo rmar
convênio com órgãos do governo esta-
dual e municipal, não há porque essa
entidade votar o regulamento (Robério
Braga, secretário estadual de cultura
em entrevista ao G1
XII
)
No carnaval 2014 deslariam 25 es-
colas dividas em 4 divisões
XIII
. Do valor to-
tal, R$ 2.112.904 destinavam-se às esco-
las da 1a divisão, R$ 869.092,00 às da 2a
divisão; R$ 372.468,00 para escolas da 3a
divisão; e R$ 112.870,00 para as escolas
da 4a divisão. A questão se arrastou até
janeiro com o parcelamento da subvenção
em três lotes, todos com prorrogações de
prazo para sua efetivação.
A subvenção municipal, sob res-
ponsabilidade da Secretária Municipal de
Cultura, denominada ManausCult, teve os
valores assim denidos: 112 mil para cada
escola do Grupo Especial, a 1a divisão; 58
mil para o grupo A, a 2a divisão; 34 mil no
Grupo B, a 3a divisão; e 18 mil para cada
escola do grupo C, a 4a divisão. As escolas
interessadas tiveram o prazo de 2 de janei-
ro até 16 de fevereiro para se inscreverem.
A proximidade do carnaval o sábado de
carnaval era no dia 4 de março de 2014 -
irritou alguns presidentes das escolas.
Aumentando ainda mais a tensão,
o Ministério Público do Trabalho, em uma
scalização em 10 de janeiro de 2014,
multou todas as escolas, da 1a divisão,
por descumprirem normas de segurança
em seus barracões. Quatro dias depois a
concessionária de energia local cortou a
luz de todos os barracões da Morada do
Samba alegando ligações irregulares e
falta de pagamento. Representantes das
escolas responsabilizaram a SEC pela fal-
ta de pagamento e alguns até pelas liga-
ções irregulares que seriam utilizadas na
preparação de cenários do Auto de Natal
da cidade e da decoração natalina.
XIV
A tensão culminou em 29 de janeiro
de 2014 quando, liderados pelo presiden-
te da A Grande Família, Luiz Gilberto, as
escolas convocaram uma manifestação
para o dia seguinte na Avenida do Sam-
ba, que passa em frente ao complexo de
barracões Morada do Samba. Luiz Gil-
berto, na época com 56 anos, sempre foi
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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profundamente identicado com a escola
de samba e uma de suas principais lide-
ranças desde que ela foi alçada de bloco
à escola de samba. Em toda história da
A Grande Família, Luiz Gilberto esteve no
comando ao lado de sua esposa, a cozi-
nheira Ermozinda. Na apuração de 2013,
o casal protagonizou uma discussão com
a mesa apuradora e ambos tiveram de ser
contidos pela polícia militar. Fato é que
Luiz Gilberto, muito carismático, sempre
exerceu a liderança não em A Gran-
de família como em grupos folclóricos do
bairro São José, na Zona Leste da cidade,
e do antigo bairro de Luiz Gilberto, a Pra-
ça 14 de Janeiro, este na Zona Centro-Sul
de Manaus. Ao sair, deixou a presidência
da escola para seu lho, Luizinho Andra-
de e outro lho, Dudu Andrade tornou-se
o mestre de bateria. A escola seguiu com
esse caráter familiar em seu comando.
Durante o conito das escolas de
samba com o Governo do Estado, Luiz
Gilberto foi um dos que assumiu a lideran-
ça do movimento, inclusive organizando a
manifestação das escolas de samba que
ameaçava com a possibilidade de não des-
larem em 2014. “Hoje (quarta) nós fomos
chamados na secretaria de cultura, pen-
sando que fosse para termos a liberação
do recurso e, para a nossa surpresa, re-
cebemos uma conta de luz no valor de R$
235 mil e que o secretário quer que as es-
colas paguem para poder liberar o dinheiro”
disse o presidente ao jornal Em Tempo
XV
.
Na mesma matéria é citada a nota emitida
pela SEC assim que soube do movimento:
O Estado do Amazonas, por meio da
Secretaria de Cultura (SEC), diante de
entrevista de presidentes de Escola
de Samba do Grupo Especial atribuin-
do ao Governo responsabilidade por
possível não realização dos desles
ociais de Carnaval 2014, em nome
da verdade e em respeito à popula-
ção, informa que: - Está pronto para
efetuar o pagamento das escolas de
samba que estejam aptas a receber,
conforme regras estabelecidas no cre-
denciamento por Edital de Patrocínio,
conforme recomendação no Tribunal
de Contas do Estado. - E que po-
derá efetuar tal pagamento se as es-
colas cumprirem o Termo de Ajuste
de Conduta (TAC) que assinaram em
maio de 2013, com o Ministério -
blico do Trabalho (MPT). E quitarem,
junto a Amazonas Energia, débitos de
multas por uso irregular de energia
elétrica nos barracões cedidos a elas
pelo Governo do Estado, na forma da
Lei n. 3096/2006 e Termo de Entrega
de 14/12/2005. - Informa, ainda, que
todas as contas de água e energia elé-
trica estão pagas pelo Governo do Es-
tado, por meio da SEC. Mas que não
irá compactuar com irregularidades.
(Nota emitida pelo Facebook no perl
da SEC em 29 de janeiro de 2014)
No dia seguinte, antes mesmo do
início da manifestação onde os carros das
escolas de samba fechariam a Avenida
em frente aos barracões, o governador
Omar Aziz, que é considerado Presiden-
te de Honra da Mocidade de Aparecida
XVI
, chamou os presidentes das escolas de
samba para uma reunião em sua casa. Ali
chegaram a um acordo cujos termos nun-
ca foram divulgados e no qual as escolas
conrmaram a realização dos desles.
Enquanto isso, a população da cida-
de se manifestava contra ou a favor da re-
alização dos desles através de uma miría-
de de formas. Políticos aproveitavam para
atacar ou defender a festa. Pipocavam edi-
toriais assumindo a defesa das escolas de
samba ou atacando os gastos com des-
les. Alguns aproveitavam o momento para
expor argumentos que misturavam até
mesmo questões religiosas no combate a
qualquer forma de manifestação profana.
Durante a polêmica vários sambis-
tas manifestaram sua visão dos percalços.
21
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Alguns atribuíam-nos à desorganização
das escolas, outros à corrupção existente
entre elas. Havia também os que acusa-
vam diretamente o secretário Robério Bra-
ga: “Ele não gosta de carnaval. Só gosta
de ópera e boi”, foi o que ouvi de mais de
um sambista. aqueles que suposta-
mente gostam das escolas de samba e de
boi elaboravam outro discurso para res-
ponsabilizar o secretário:
Ele não gosta de povo só gosta de
ópera. Não apoia o Boi de Manaus,
só o de Parintins porque dá dinheiro.
Quando não der mais ele sai fora. É
um tirano que tá mais de 16 anos na
secretaria. Muda governo e ele não
sai. (...) cadê o incentivo para o Fes-
tival Folclórico aqui de Manaus? Os
bois, as cirandas de Manaus também
sofrem com ele. (Compositor de esco-
la de samba de Manaus – 13/02/2014)
Após a tal reunião com o governador,
as escolas retomaram suas tarefas e con-
cluíram os trabalhos nos barracões. Mes-
mo assim, os sambistas previam um desle
bem mais modesto em termos plásticos.
As apresentações, bem como a pre-
paração das escolas da 2a até a 4a divisões
os chamados grupos de acesso por ou-
tro lado transcorreram de forma corriquei-
ra para a realidade destas agremiações. A
calmaria que constatei nos barracões das
escolas dos grupos de acesso explicava-se
por duas razões: a primeira era que, dife-
rente do que ocorrera com as escolas da
1a divisão, a luz não havia sido cortada e,
num total de 18 escolas, apenas uma ou
duas escolas dependiam da energia elétri-
ca da Morada do samba. A segunda razão
era que essas escolas estavam acostuma-
das a lidar com o atraso no repasse das
subvenções ou mesmo a ter boa parte de-
las retidas por dívidas com fornecedores.
Paralelamente, o imbróglio para sa-
ber qual entidade seria a organizadora do
carnaval permanecia. De um lado, a AGE-
ESMA havia sido descredenciada pelo po-
der público. Parte das escolas de samba
do Grupo Especial, que contestavam a
AGEESMA anteriormente, fundou dias an-
tes do desle de 2014 a Comissão Exe-
cutiva das Escolas de Samba de Manaus
(CEESMA). Para as escolas dos demais
grupos, que conviviam com a instabilida-
de da organização dos desles desde a
muitos carnavais, isso não fez diferença e,
em 2014, seus desles foram organizados
pelo Instituto Cultural, uma entidade que
existiu apenas para aquele carnaval.
XVII
Na semana dos desles, as esco-
las que haviam organizado um calendário
de ensaios na pista de desles viram seus
ensaios cancelados, defrontando-se nova-
mente com o risco de não realização dos
próprios desles, pois o sambódromo foi in-
terditado pelo Corpo de Bombeiros. Os lau-
dos divulgados indicavam as condições da
pista como inadequadas para a segurança
do público. A questão envolvia as obras na
vizinha Arena da Amazônia para a Copa do
Mundo de 2014. O novo impasse foi solu-
cionado, dessa vez nos gabinetes de go-
verno, e o sambódromo foi liberado para os
desles e outros eventos que aconteceriam
no carnaval como o CarnaBoi.
Os ensaios na pista aconteceram.
As escolas antes espalhadas em três dias
agora seriam divididas em dois dias de en-
saios seguindo a ordem de desles. Qua-
tro das oito escolas do Especial ensaiariam
na terça-feira antecedente ao Carnaval e
mais quatro, na quarta-feira antecedente
ao Carnaval. Logo no primeiro dia de en-
saios, a primeira escola programada para
o treino, Andanças de Ciganos, não en-
saiou. No horário marcado, apenas alguns
poucos componentes circulavam unifor-
mizados pela pista de desles sem enten-
der muito bem o que estava acontecendo.
Outros, já faziam circular os boatos com a
suposta versão ocial dos dirigentes para
a não-participação:
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Não vamos ensaiar hoje. Minha
esposa estava lá na quadra e viria
para o ensaio mas disseram que não
vem. Não tem ônibus para trazer os
componentes! Não teria nem como
alugar um ônibus, a escola tá sem
dinheiro. Ainda não liberaram a ver-
ba! Ouvi que o presidente ou o vice
que é filho dele teria até discutido
com o secretário e a escola ficou
ameaçada de não desfilar. Vai des-
filar sim porque tá com mutirão na
quadra e no barracão. Não será um
leso desses que vai parar a gente!
(Componente da Andanças de Ciga-
nos entrevista na concentração do
sambódromo em 25/02/2014)
Componentes de outras agremia-
ções acrescentavam outros detalhes aos
boatos, dando conta de que o bate-boca
entre o secretário de cultura do Amazo-
nas e dirigentes da Andanças “quase os
levou a agressões físicas e desembo-
caram em ameaças”. Outros diziam que
a Andanças seria impedida de deslar
pela Secretaria por conta de um proces-
so contra o executivo devido ao atraso
nos repasses. Enm, todas as versões
caram apenas limitadas a boatos. No
sábado dos desles (realizados em 1 de
marco de 2014), a Andanças de Ciganos,
primeira escola a deslar na condição de
recém-promovida à segunda divisão do
carnaval de Manaus - o Grupo de Aces-
so A - estava pronta para deslar no
horário designado.
O desle transcorria normalmente
e, após a apresentação da Andanças de
Ciganos, a Unidos do Alvorada se prepa-
rava quando, aos primeiros acordes do
samba entoado pelos cantores, uma tor-
rencial chuva desabou. Enquanto o públi-
co se retirava das arquibancadas procu-
rando abrigo embaixo das estruturas, a
Alvorada deslou animadamente debaixo
de uma tempestade. A chuva prosseguiu
durante toda a noite de desle, mas teve
maior intensidade durante os desles da
Alvorada, A Grande Família, Balaku Blaku
e Vitória Régia. Isso não impediu que to-
das as escolas sofressem com seus efei-
tos mesmo que ainda na concentração.
Dois dias depois, na segunda-feira
de carnaval, aconteceu a apuração das
escolas de samba. As primeiras notas
apuradas foram as da quarta divisão - o
Grupo de Acesso C, depois as terceira e
segunda (grupos de acesso B e A) e -
nalmente as da primeira divisão, o Grupo
Especial, no nal da tarde. As apura-
ções dos Grupos de Acesso foram nor-
mais para os padrões do carnaval local.
As únicas reclamações efusivas foram do
presidente da Presidente Vargas com as
notas que a rebaixaram para o grupo in-
ferior. Um atraso maior do que o previs-
to ocorreu antes da apuração do Grupo
Especial. Circulavam boatos de que os
presidentes estavam reunidos em uma
sala ao lado deliberando sobre punições.
Algumas escolas teriam atrasado seus
desles devido ao temporal e à chuva
intensa e constante que se sucedeu. Os
mais catastrostas anunciavam a des-
coberta de um escândalo de compra de
jurados. O suspense chegou ao m com
a entrada na sala de apuração das du-
plas de representantes de cada escola e
o dirigente encarregado da leitura das no-
tas. Os mapas de notas vieram nas mãos
de policiais. Agora era a hora! Como di-
zia o samba da Andanças de Ciganos em
1990: “Vai ou racha”!
Os representantes da SEC-AM
cumpriram o protocolo de felicitar as esco-
las pelos belos desles:
A Secretária de Cultura em nome do
secretário Robério Braga, gostaria de
parabenizar todas as escolas pelo
belo espetáculo apresentado nos des-
les do sábado. Pudemos observar o
crescimento das escolas. A evolução
no acabamento das fantasias, dos
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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carros, a animação...Apesar da chu-
va que teve no sábado, nós tivemos
chuva desde a segunda escola até a
última, mas apesar da chuva pudemos
observar o crescimento do carnaval.
(...). Então eu gostaria de agradecer.
Agradecer o empenho de todos os
presidentes e todas as diretorias das
escolas. (Pronunciamento de Elizabe-
th Catanhede, diretora de eventos da
SEC-AM no dia 03/03/2014)
Passada a palavra ao represen-
tante da Comissão Executiva das esco-
las - que ali seria o embrião de uma nova
entidade organizadora do carnaval das
escolas de samba do Grupo especial - ele
inicia os ritos de praxe com a apresenta-
ção dos malotes com as notas dos jura-
dos devidamente lacrados e transporta-
dos pela Polícia Militar. Após este trâmite
anuncia que dará inicio a apuração e co-
meça com a leitura de uma carta assinada
pelo conjunto dos presidentes das escolas
do Grupo Especial:
Manaus, 03 de março de 2014,
A Comissão executiva do carnaval de
2014 com seus membros reunidos
na sala do sambódromo resolve por
maioria, pelas diculdades enfrentadas
pelas escolas de samba do Grupo Es-
pecial de Manaus, aclamar todas as es-
colas de samba do Grupo Especial de
Manaus como CAMPEÃS do carnaval
de 2014 esperando contar com a com-
preensão de toda comunidade de Ma-
naus. Em tempo, a comissão executiva
de carnaval, composta pelos oito presi-
dentes renunciam ao direito de recorrer
tanto na mesa de apuração quanto na
justiça do Amazonas. (carta da Comis-
são Executiva do carnaval 2014)
Após a leitura da carta fez-se um
silêncio de perplexidade. O representan-
te das escolas precisou frisar o resultado
com todas as escolas campeãs, para que
alguns dos dirigentes presentes na sala
puxassem os aplausos.
Figura 4 - Representante da comissão executiva com a carta das escolas de samba em mãos - 03/03/2014
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Com todas as escolas declaradas
campeãs uma confusão de sentimentos
explodiu dentro e fora da sala. Os torcedo-
res do lado de fora reetiam a ambiguidade
do resultado. As escolas que ambiciona-
vam permanecer na primeira divisão, como
Andanças e Balaku Blaku, comemoravam
discretamente. Já aquelas distantes de um
título um certo tempo como Sem Compro-
misso, A Grande Família e Vitória Régia
convocavam seus componentes para a
festa na quadra, e por lá aguardariam a dis-
tribuição (que não aconteceu) dos prêmios
por categorias do Estandarte do Povo do
Jornal A Crítica. Os componentes da Uni-
dos do Alvorada comemoraram mais efusi-
vamente o que seria seu primeiro título na
primeira divisão do carnaval manauara, o
Grupo Especial. A Mocidade de Aparecida
comemorou o fato de aumentar um número
em suas estatísticas, consolidando o que
seus componentes chamam de soberania
dada por seus 20 títulos naquele momento.
Os mais inconformados eram os sambistas
da Reino Unido cujo o presidente foi o úni-
co declaradamente contrário ao resultado
pois a escola ambicionava naquele ano um
tira-teima com a Aparecida.
O rito que seguiu à leitura da carta
buscava anular qualquer possibilidade de
reversão do resultado. Um latão foi posi-
cionado pelos bombeiros na parte externa
mais próxima à sala. Os envelopes dos
jurados foram depositados e imediata-
mente incinerados. A ação sensacional foi
acompanhada por equipes de reportagens
que registravam os presidentes de mãos
dadas ao redor da fogueira de notas.
4. “Não foi nem rachou”: o balanço de
um carnaval sem resultados.
Tomaremos as reações expressas
pelos diretores, componentes e torcedo-
res de cada uma das escolas após o inusi-
tado anúncio do resultado que consagrou
as oito escolas do Grupo Especial como
campeãs do carnaval de 2014. Buscamos
vislumbrar o que a decisão signicou para
cada uma delas.
A reação que chamou mais aten-
ção após a apuração de 2014 foi a da
Unidos do Alvorada. A escola sediada no
bairro vizinho ao sambódromo, sempre
se caracterizou por levar o maior número
de torcedores aos desles e apurações
apesar de sua fundação relativamente re-
cente, em 1995. Não foi diferente naque-
le 3 de março de 2014. Após anunciado
aquele que seria considerado seu primei-
ro título na 1a divisão, a signicativa
torcida da escola presente ao sambódro-
mo explodiu aos gritos de “é campeã” e
cantando o samba daquele ano. Havia
enorme expectativa pelo título mesmo
antes do desle. O enredo homenagea-
va José Aldo, campeão mundial de luta-
-livre, uma personalidade reconhecida
internacionalmente e morador do bairro
da Alvorada onde a escola está sediada.
Em 2012, a escola havia feito um bom
desle que a colocara como uma das
postulantes ao título. Em 2013, a escola
havia comemorado efusivamente um
vice-campeonato, o terceiro de sua cur-
ta história na 1a divisão. Havia ainda a
perspectiva de inauguração de sua nova
quadra logo após aquele carnaval e ela
havia sido uma das mais afetadas pela
chuva no dia do desle. Por todos estes
motivos, ainda que dividido com todas as
escolas, o campeonato signicava um
desfecho satisfatório. Isso ca claro na
declaração de seu presidente, Heroldo
Linhares, após a apuração:
Muito feliz mesmo, pelo título tão so-
nhado! Há dezoito anos buscando
esse título! Parabéns à toda a comu-
nidade, toda diretoria, todo mundo do
ateliê por ter buscado esse título. Fo-
mos campeões e com muito trabalho!
(Heroldo Linhares, presidente da Uni-
dos do Alvorada em entrevista no dia
03/03/2014)
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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A Mocidade de Aparecida era ou-
tra que considerava positivamente aquele
carnaval, dando o assunto por encerrado.
Ambicionando chegar o vigésimo título na-
quele ano, mesmo que compartilhando o
primeiro lugar com as demais escolas do
grupo, considerava conrmada sua hege-
monia em número de campeonatos frente
às demais. Seus torcedores presentes ao
sambódromo, entretanto, encaravam o -
tulo com alguma ambiguidade. Um grupo
batucava e cantava fazendo uma deliciosa
confusão sonora de felicidade ao lado dos
componentes da Unidos do Alvorada. Ou-
tra parte dos torcedores olhava contraria-
da a festa de seus companheiros. Um dos
compositores confessou sua frustração
logo após o resultado, terminando com a in-
terjeição “esse carnaval de Manaus é uma
vergonha”! Esta ambiguidade é sintetizada
na declaração de seu puxador, Wilsinho de
Cima: “São vinte, né? Parabéns ao meu
presidente Pacheco e toda a comunidade.
Passamos o rodo na avenida e em 2015
vamos passar de novo”! Logo a seguir, no
entanto, admite sua contrariedade com a
divisão do título – “Eu quei muito triste, na
verdade (...) erámos para ser campeões do
carnaval. Todas foram penalizadas com a
chuva mas é isso aí. O que vem de cima,
de Deus, de São Pedro, a gente não pode
fazer nada. É a natureza (...)” (Wilsinho de
Cima, puxador da Mocidade de Aparecida
– entrevista em 03/03/2014).
Embora a carta que anunciou a eli-
minação das notas dos jurados não tenha
citado a chuva, vários sambistas continu-
aram durante o ano atribuindo o resultado
inusitado à chuva no dia do desle. Como
vimos, porém, na carta outros fatores fo-
ram elencados para esta decisão em con-
junto da maioria das escolas. Embora as
escolas tenham sido unânimes com rela-
ção à existência de graves diculdades, a
decisão de dividir o título não foi unânime.
O presidente da Reino Unido da Li-
berdade, Reginei Rodrigues, era um dos
mais exaltados e desconfortáveis com a
decisão tomada. Saindo da sala de apu-
ração, ele zera questão de expor a todos
para quem concedia entrevista que havia
sido “voto vencido”:
A Reino Unido não aceitou a posição
dos demais presidentes por uma situa-
ção. A comunidade esperava um título.
A Reino Unido veio forte. A comunida-
de abraçou nossa causa num carnaval
de 14 dias. Não era justo com a nossa
comunidade declarar todas campeãs.
Infelizmente fui voto vencido. No regu-
lamento no artigo 28 previa essa possi-
bilidade de mudança e infelizmente fui
voto vencido. (Reginei Rodrigues, Pre-
sidente da Reino Unido da Liberdade –
em entrevista no dia 03/03/2014)
O compromisso de que nenhuma
escola recorreria da decisão e de que os
envelopes com as notas seriam imediata-
mente incinerados sem serem abertos con-
trariou, portanto, a posição da Reino Uni-
do. Houve um interlocutor que lembrou o
episódio já do carnaval de 2006, quando, a
despeito de acordo prévio das escolas de
samba para não abertura dos envelopes de
notas
XVIII
, a Reino Unido recorreu à justiça
para pedir a abertura dos envelopes com
as notas dos jurados. A posição da Reino
Unido explicita ainda a motivação política
por trás da divisão do título. O diretor da
escola, Ivan de Oliveira comenta:
Reino Unido da Liberdade entende,
compreende essa decisão. Fomos bas-
tante prejudicados pelo retardo na libe-
ração da verba; a questão do Ministério
Público que veio e interditou o sambó-
dromo; tivemos a Eletrobrás cortando a
energia elétrica dos galpões. Toda uma
gama de problemas atrapalhou todas as
escolas de samba. (...) mas não é o perl
da Reino Unido não disputar e não abrir
os envelopes. (Ivan de Oliveira, diretor
de comunicação da Reino Unido da Li-
berdade – entrevista no dia 03/03/2014)
26
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A declaração de Ivan de Oliveira po-
deria ser resumida por uma frase do mes-
tre-sala da Andanças de Ciganos, Marco
Sahdo: “O que começou errado tinha que
terminar errado”. Expressa-se assim a in-
satisfação da maior parte dos sambistas
com o resultado que deixaria o sabor de
uma conclusão indenida. Sem vencedo-
res e vencidos como fazer o balanço de
um carnaval que preza tanto a rivalidade e
a competição entre as escolas de samba?
Como vimos, no modelo de Turner
(1996) o drama social é suscitado pela que-
bra de uma norma das relações convencio-
nadas pelos grupos. Podemos situar como
este momento no não-reconhecimento de
uma instituição organizadora dos desles
do Grupo Especial. O fato da AGEESMA
não poder intermediar a distribuição das
subvenções públicas nanciadoras do
desle e consequentemente nem mesmo
estar coordenando os desles em seus
mais diferentes meandros gerou uma cri-
se representacional das escolas faltando
poucos meses para o carnaval. Importante
lembrarmos que as próprias escolas colo-
cavam em questão quase todos os anos
a entidade organizadora por resultados in-
satisfatórios obtidos em anos anteriores. A
questão dos resultados é muito sensível e
leva a inúmeras cisões dentro das escolas
de samba e em relação às entidades orga-
nizadoras dos desles. A história das es-
colas de samba em qualquer lugar é muito
instável, pois congura um emaranhado de
organizações, ligas e associações repre-
sentantes de seus interesses.
XIX
Quando o secretário de Cultura do
Estado não admitiu a presença do presidente
da AGEESMA na audiência pública de apre-
sentação do edital do carnaval 2014 confor-
me mencionado temos uma importante
cisão na organização dos desles, que a
subvenção pública é essencial para as es-
colas de samba. Houve um confronto perso-
nalizado entre um representante das escolas
de samba e um representante do Estado.
Coloco nestes termos, pois os sam-
bistas de Manaus sempre personalizavam
suas críticas ao secretário, governador ou
a qualquer gura pública que exercesse
a função de mediação. Faziam o mesmo
em relação a qualquer representante da
AGEESMA ou algum presidente de escola
de samba querelante. Da personalização
a questão rapidamente avançava para um
contraponto entre o carnaval das escolas
de samba e o carnaval de trio elétrico com
artistas dos Bois de Parintins realizado no
sambódromo, o Carnaboi.
Chamo atenção à constante refe-
rência de agentes estatais à “autenticida-
de” do Festival de Parintins como repre-
sentante da “cultura local”. O discurso se
baseia no caráter representativo da “cul-
tura cabocla” pelo Festival de Parintins.
Um fato é a emergência dessa represen-
tatividade regional nos bois de Parintins.
Com o desenrolar do sucesso dos bois e
apoiando esse processo a armação de
uma identidade regional tem protagonis-
mo marcante:
O Boi-Bumbá de Parintins é um novo
e fascinante capítulo da longa história
do folguedo no país. Emerge como
um moderno movimento nativista
que elegeu imagens indígenas como
metáforas para a armação de uma
identidade regional cabocla. Um pode-
roso processo ritual, através do qual
a pequena cidade, e com ela toda a
região Norte, como que aspira (e tem
conseguido com razoável sucesso)
comunicar-se com o país e o mundo.
(CAVALCANTI, 2002, p. 104).
Mesmo as escolas de samba ma-
nauaras manipulam a categoria caboclo em
seus sambas e enredos. Sua representação
frente ao restante do país busca a arma-
ção de uma identidade característica frente
a uma identidade nacional que encontrou
no samba um símbolo ao longo do sécu-
lo XX. Em determinados momentos, como
27
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
sabemos, o samba foi utilizado como forma
de construção de uma ideia de nação brasi-
leira, principalmente a partir da era Vargas
quando o samba e principalmente as esco-
las de samba e os diversos elementos de
sua manifestação são incorporados pelo
estado com sua forma competitiva. Encon-
tram, dessa forma, terreno fértil para a pro-
pagação pelo território nacional as escolas
de samba (FERREIRA, 2004). As escolas
de samba não cessaram de se expandir en-
tre os anos 1940 e 1970. A partir dos anos
1990, no contexto redemocratização da
sociedade brasileira, as escolas de samba
viram-se sem seu protagonismo anterior
como símbolo da representação da cultura
nacional. Como nos chama atenção Caval-
canti (2015), as escolas de samba trazem
desde sua formação a pluralidade de parti-
cipação social. No contexto contemporâneo,
as escolas de samba emergem ainda singu-
larizadas como “inclusivas do ponto de vista
sociológico e cultural e, ao mesmo tempo,
abertas para o mundo e suas transforma-
ções” (op. cit, p.231).
No caso das escolas de samba de
Manaus, o drama exposto indica o seu im-
passe. A crise desencadeada se ampliou
como no modelo do drama social proposto
por Turner (op. cit.). A rede acionada pelos
sambistas adotou o discurso apresentado
acima para apontar o descaso do poder
público com as escolas, ao passo que re-
presentantes do poder público apontaram
a desorganização das escolas de samba
como principal problema. Entre os atores,
uma espiral de acusações, alianças e con-
itos se desenrolou.
Já a partir da plenária de apresen-
tação do edital para o carnaval 2014, as
escolas haviam iniciado uma articulação
para construção de uma nova associação.
Essa tentativa de uma ação reparadora
concorrerá com um agravamento da crise
que teremos até o dia dos desles ainda
vigentes as interdições do sambódromo e
dos barracões das escolas.
Em função disso tudo, podemos
tomar a decisão conjunta das escolas
pela divisão do título como uma ação re-
paradora. Com a divisão do título as es-
colas, apesar de a decisão não ter sido
unânime, mantiveram-se coesas para o
carnaval seguinte em uma mesma asso-
ciação organizadora.
Figura 5 - Presidentes de mãos dadas em frente ao latão de notas incineradas - 03/03/2014
28
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O carnaval de 2014 foi encerrado
como começou, ou seja, nada começou
ou acabou de fato em 2014 ainda que
com a sucessão dramática dos eventos.
O sucesso da ação reparadora se con-
rmaria apenas no carnaval seguinte de
2015. Nele as escolas deslaram sob a
coordenação da nova Comissão Execu-
tiva das Escolas de Samba de Manaus
(CEESMA) e, curiosamente, esta nova as-
sociação vinha presidida justamente pelo
dirigente que divergiu abertamente da di-
visão do título, Reginei Rodrigues, da Rei-
no Unido. No carnaval de 2015, o período
de preparação transcorreu dentro de certa
normalidade para as escolas de samba e
terminou com o vigésimo - primeiro título
da história da Mocidade Independente de
Aparecida.
Podemos ver a apuração como
o momento em que as escolas saem da
performance que dramatiza a liminarida-
de, ritual onde as posições denidas po-
dem se alterar, para a reagregação à vida
social ordinária, onde a realidade da vida
cotidiana se impõe. Nela, a rivalidade que
no desle festivo é canalizada para a ex-
pressão artística, desemboca no embate
discursivo ou até mesmo físico e a reali-
dade de crise, desorganização e conitos
do cotidiano de uma escola de samba ma-
nauara se manifesta.
As idas e vindas na organização e a
complexidade da rede de relações aciona-
da no conito do carnaval 2014 revelam as
particularidades de fazer carnaval de es-
cola de samba em Manaus. Um ambiente
de extremada rivalidade entre os grupos
e dentro dos grupos torna mais difícil o
estabelecimento de consensos. As regras
para a competição precisam ser bastante
claras ou então as escolas manipularão
as omissões de acordo com seus interes-
ses. O jogo precisa ser o tempo todo refe-
rendado e geralmente a aprovação não é
unanime. Disso nasce um ambiente hostil
à organização mais estável. De forma tal-
vez inconsciente, as escolas se boicotam
umas às outras, perdem a credibilidade
até mesmo entre os próprios sambistas.
Um paradoxo que alimenta outro, pois a
força das escolas de samba permanece
mobilizadora de milhares de habitantes da
cidade de Manaus que prestigiam os en-
saios e os desles.
Bibliograa
ARAÚJO, Hiram; JÓRIO, Amaury. Natal: o homem
de um braço só. Rio de Janeiro: Guavira Editores,
1975.
BARBIERI, Ricardo José. A Acadêmicos do Dendê
quer brilhar na Sapucaí. Jundiaí, SP: Paco Edito-
rial, 2012.
BARBIERI, Ricardo José. Apuração no Terreirão:
discutindo redes no carnaval In: Textos escolhidos
de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.6,
n.1, p.173-182, 2009.
CAVALCANTI, Maria Laura. Carnaval, Ritual e
Arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.
CAVALCANTI, Maria Laura. O indianismo revisita-
do pelo boi-bumbá. Notas de pesquisa. In: Sonma-
lu. Revista de estudos amazônicos. 2. Ano 2.
p.127-136. Manaus: Editora Valer, 2002.
FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval
Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
SALES, Daniel. É tempo de sambar: história do
carnaval de Manaus(com ênfase às escola de
samba). Manaus: Editora Nortemania, 2008.
TURNER, Victor. Schism and continuity in African
Society: a study of Ndembu village life. Manches-
ter: Manchester University Press, 1996 [1957].
Recebido em 11/07/2016
Aprovado em 02/08/2016
29
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Ricardo José de Oliveira Barbieri. Doutor em Antropo-
logia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Brasil. Contato: delezcluze@gmail.com
II Composição de autoria de David Correa.
III Rero-me a celebre disputa entre os bois Caprichoso
e Garantido; um azul e outro vermelho; o boi da estrela
na testa e o do coração como símbolo; que rivalizam
simbólica e competitivamente em três noites de apre-
sentações durante o festival Folclórico da cidade do in-
terior do Amazonas, Parintins.
IV Escola formada majoritariamente por militares ca-
riocas enquanto residiam em Manaus. Teve a efêmera,
mas vitoriosa duração de 1970 até 1976 perdendo ape-
nas o campeonato de 1975.
V Escola cujo componentes mais tarde se dividiriam
como fundadores da Mocidade Independente de Apare-
cida e Reino Unido da Liberdade.
VI Entre as escolas de samba cariocas pude observar
anteriormente (BARBIERI, 2009), a dinâmica de uma
apuração naquela época aberta ao público no espaço
conhecido como Terreirão do Samba. A apuração to-
mada como situação social serviu então à investigação
das alianças que tecem a rede social de colaboração
entre as escolas de samba cariocas.
VII Chamam atenção especialmente as contendas pro-
tagonizadas por Natal da Portela relatadas em sua bio-
graa (ARAÚJO e JÓRIO, 1975).
VIII Em 2016 mais uma vez a apuração paulistana foi in-
terrompida por confusão envolvendo a mesa apuradora
e dirigentes da Unidos de Vila Maria.
IX Ver “Tumulto interrompe apuração em São Paulo”
em http://g1.globo.com/sao-paulo/carnaval/2012/
noticia/2012/02/tumulto-interrompe-apuracao-em-
-sao-paulo.html publicada em 21 de Fevereiro de
2012 às 22h36; acessada em 05 de novembro de
2015 às 11h49.
X em São Paulo, na 1a divisão das escolas de
samba, atualmente duas escolas de samba que tam-
bém se identicam como torcidas de futebol: a Ga-
viões da Fiel (SC Corinthians) e a Dragões da Real
(São Paulo FC). Mais duas escolas na 2a divisão são
organizadas de futebol: a Mancha Verde (SE Palmei-
ras) e Independente (São Paulo FC). A mídia paulista-
na relacionou a rivalidade destas torcidas à violência
desencadeada naquela apuração, apesar de outras
duas escolas que não eram ligadas ao futebol terem
protagonizado a confusão.
XI O Ginásio localizado na Avenida Constantino Nery,
bairro Chapada, na Zona Centro-Oeste de Manaus. Lo-
cal próximo de onde hoje se localiza o Sambódromo.
XII Publicado em “Apresentado novo Edital de Patro-
cínio de escolas de samba de Manaus” no dia 20 de
novembro de 2013 pelo link http://m.g1.globo.com/am/
amazonas/carnaval/2014/noticia/2013/11/apresentado-
-novo-edital-de-patrocinio-de-escolas-de-samba-de-ma-
naus.html
XIII Como forma de facilitar a compreensão de leigos
sobre o complexo sistema hierárquico-competitivo das
escolas de samba tenho utilizado desde minha disser-
tação de mestrado (BARBIERI;2012) uma classicação
neutra que traduz as diferentes categorias das escolas
de samba.
XIV “Eletrobrás corta energia de barracões das escolas
de samba de Manaus após descobrir ‘gatos elétricos’”
publicada em 14 de janeiro de 2014 em http://www.acriti-
ca.uol.com.br/manaus/Amazonas-Amazonia-Eletrobras-
-barracoes-Manaus-descobrir-eletrico_0_1066093396.
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XV “Escolas do grupo especial pretendem fechar ave-
nida do Samba em protesto” Publicado em 29 Janeiro
2014 por Bruno Izidro http://emtempo.com.br/editorias/
dia-a-dia/14143-escolas-do-grupo-especial-pretendem-
-fechar-avenida-do-samba-em-protesto.html
XVI A presidência de honra é um cargo simbólico vita-
lício comum entre as escolas de samba. A honraria -
xima pode ser dedicada tanto a guras ilustres de sam-
bistas fundadores da agremiação quanto a mecenas que
foram ou são patrocinadores dos desles.
XVII Houve mesmo anos em que a ordem de desles
foi sorteada uma semana antes dos desles. Em outros
carnavais nem mesmo uma ordem de desle foi estabe-
lecida e a escola que estivesse pronta deslava imedia-
tamente após a outra.
XVIII Naquele ano de 2006 um acidente na área de con-
centração envolvendo o componente da harmonia da
escola de samba Vitória Régia terminou com o choque
da alegoria junto à rede de energia elétrica do entorno
do sambódromo. O componente da harmonia que aju-
dava a manobrar o carro alegórico em cima de uma das
posições de destaque faleceu. O acidente causou uma
queda de energia que persistiu durante todo o desle da
A Grande Família.
XIX Retomo a questão da classicação neutra elabo-
rada durante minha pesquisa de mestrado (BARBIERI,
2012) para dar conta da multiplicidade de organizações
e grupos criados com os mais diversos nomes e nature-
zas tanto no carnaval carioca como no de Manaus.
30
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Escolas de Samba nos Pampas:
textos e contextos da interculturalidade no carnaval de Uruguaiana
Escuelas de Samba en los Pampas:
textos y contextos interculturales en el carnaval de Uruguaiana
Samba Schools in Pampas:
texts and contexts of the interculturality in the Uruguaiana’s carnival
Ulisses Corrêa Duarte
I
Resumo:
O artigo propõe reetir sobre o carnaval das Escolas de Samba de
Uruguaiana, município localizado na região dos Pampas no estado do
Rio Grande do Sul, na tríplice fronteira entre o Brasil, a Argentina e o
Uruguai. A interculturalidade que permeia o evento carnavalesco, com
a manipulação das referências simbólicas acerca da cultura regional
e nacional e nas relações de trocas fomentadas entre o carnaval
local e o carnaval carioca, faz com que a fundamental dimensão da
translocalidade sugira a análise de sua forma artística, a história de
seu surgimento e as principais características do envolvimento social
que o promove. Os circuitos carnavalescos existentes, assim como as
múltiplas circulações de sambistas e objetos nas fases preparatórias e
nos seus desles competitivos, nos remetem a pensar em diferentes
possibilidades teórico-metodológicas de investigar os fenômenos das
culturas populares dentro, nas margens e fora do país.
Palavras chave:
Carnaval
Escolas de Samba
Pampas
interculturalidade
translocalidade
31
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Resumen:
Este artículo tiene como objetivo reexionar sobre el carnaval de
lasescuelas de samba de Uruguaiana, municipio localizado en la región
de los Pampas, provincia de Rio Grande do Sul (Brasil), en la triple
frontera entre Brasil, Argentina y Uruguay. La interculturalidad que marca
el evento del carnaval, con la manipulación de referencias simbólicas de
la cultura regional y nacional involucradas, así como las relaciones de
intercambio fomentadas entre el carnaval local y el carnaval carioca (de
Rio de Janeiro, hace que la dimensión fundamental de la translocalidad
sugiera um análisis de su forma artística, historia de su origen y de las
principales características de la movilización social que lo promueve.
Los circuitos de carnaval presentes, así como las múltiples circulaciones
de sambistas y objetos en las etapas preparatorias y en los desles
competitivos, nos llevan a pensar distintas posibilidades teórico-
metodológicas para investigar fenómenos de las culturas populares
dentro, en las orillas y fuera del país.
Abstract:
The article proposes to reect the samba school’s carnival of
Uruguaiana, municipality located in Pampas, a region in the Rio Grande
do Sul state (South of Brazil)that is within the triple border from Brazil,
Argentina and Uruguay. The interculturality permeates the carnival
event, with the manipulation of symbolic references of the regional
and national culture and the exchange relations established between
the local carnival and the Rio de Janeiro’s carnival. This creates the
fundamental dimension of translocality suggesting the analysis of its
artistic form, the historical origin and the main features of existing social
involvement. The carnival circuits as well as the multiples circulations
of “sambistas” and objects in the previous stages of the events and
in their competitive parades, allow us to relate distinct theoretical and
methodological possibilities to the investigation of the phenomena of
popular cultures, on the margins and abroad the country.
Palabras clave:
Carnaval
Escuelas de Samba
Pampas
interculturalidad
translocalidad
Keywords:
Carnival
Samba Schools
Pampas
interculturality
translocality
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Escolas de Samba nos Pampas: textos
e contextos da interculturalidade no
carnaval de Uruguaiana
A região dos Pampas se situa na
tríplice fronteira
II
no extremo oeste do Rio
Grande do Sul, o estado mais meridional
do Brasil. A celebração da festa anual de
carnaval nessa região, muito distante das
principais capitais e regiões metropolita-
nas do país, acontece nos meses de ve-
rão, entre janeiro e março. Uruguaiana,
a maior cidade da região, está localizada
junto ao leito do caudaloso Rio Uruguai.
A população dos Pampas se esmera em
produzir os desles competitivos de suas
agremiações de samba com ampla partici-
pação social, riqueza plástica e atração de
sambistas de outros locais para o orgulho
de seus habitantes e deslumbramento dos
visitantes ocasionais.
A pesquisa etnográca naquela re-
gião
III
se desdobrou entre Uruguaiana no
Brasil, Paso de Los Libres na Argentina e
Artigas no Uruguai, nas três faces delimi-
tadoras dos respectivos Estados Nações
entre 2011 e 2014. Uruguaiana e o muni-
cípio argentino são cidades vizinhas com
fronteira uvial sobre o Rio Uruguai. A pon-
te internacional Getúlio Vagas/ Agostín Jus-
to separa os dois países com a presença
das duas aduanas para entrada e saída de
pessoas e mercadorias. Artigas está a uma
distância de cerca de cento e vinte e cinco
quilômetros da ponte internacional, aproxi-
madamente, por rodovias. A cidade brasi-
leira de cerca de cento e vinte e cinco mil
habitantes é também conhecida por pos-
suir um dos mais importantes portos secos
de cargas terrestres na América Latina.
Em Uruguaiana, por razões que va-
mos conhecer, o carnaval é marcado sem-
pre três nais de semanas posteriores ao
feriado carnavalesco, durante o período da
quaresma
IV
. Da mesma forma, os carnavais
das demais cidades dos Pampas não pos-
suem datas coincidentes, o que condiciona
a circulação de trabalhadores de carnaval,
assim como visitantes e adeptos da festa
entre cidades. Fato esse que realça a pos-
sibilidade de trocas entre agremiações de
cidades distintas, e a atração de pessoas e
objetos das Escolas de samba do centro do
país, sobretudo às cariocas, nas competi-
ções carnavalescas municipais.
Uma dimensão teórico-metodológi-
ca importante para se entender o carnaval
dos Pampas, e a centralidade do carnaval
de Uruguaiana nesse contexto, se traduz
na intensidade das possibilidades de des-
locamento e de trocas entre os locais: a
interculturalidade do fenômeno carnava-
lesco das Escolas de Samba nos Pampas.
Os sentidos das práticas tanto na
preparação quanto na forma festiva das
agremiações em Uruguaiana se compara-
do às Escolas de Samba do carnaval ca-
rioca, assim como as associações carna-
valescas nos três lados da fronteira, são
ligeiramente distintos. Como entendeu
Grímson (2011) nos seus estudos sobre
a fronteira entre o Brasil e a Argentina, a
manipulação das referências simbólicas
do carnaval se dava de forma diferente em
cada um dos municípios limítrofes, sendo
equivocada a ideia de uma cultura trans-
fronteiriça em comum.
O que a dimensão da interculturali-
dade no circuito de carnaval nos permitiu
pensar foi nas multiplicidades de relações
entre carnavais que se irradiavam e uíam
entre os interstícios das fronteiras políti-
cas próximas, e mesmo nas longas distân-
cias entre o centro do país e a região dos
Pampas. Ela nos trazia a possibilidade de
observar e analisar os encontros, os tem-
pos e espaços uidos, onde as práticas
culturais eram apreendidas, reapropria-
das, rearranjadas; em síntese, produzin-
do culturas híbridas. Vamos descortinar
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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nesse artigo as características histórias e
socioculturais do carnaval das Escolas de
Samba de Uruguaiana, o mais importante
no contexto regional dos Pampas.
O surgimento das Escolas de Samba
e a mudança de datas do carnaval em
Uruguaiana
O surgimento dos primeiros gru-
pos carnavalescos que utilizavam o
samba e o ritmo da batucada para seus
desles de carnaval em Uruguaiana se
deu no início da década de 1950. No en-
tanto, a história das festas de carnaval
da cidade é mais antiga.
A primeira referência encontrada
nos jornais de Uruguaiana sobre o carnaval
da cidade foi em 12 de fevereiro de 1883
no jornal “O Guarany”. A reportagem de
época, divulgada pelo historiador uruguaia-
nense Daniel Fanti (2008), narrava o fato
de um grupo de mascarados estar brincan-
do nas ruas do centro da cidade lançando
águas de cheiro em grupos rivais. Era a
brincadeira do entrudo que fazia suces-
so nos carnavais do período colonial e do
Império, os jogos de sujeira herdados dos
portugueses que trouxeram o costume do
velho continente para as ruas brasileiras.
Na virada do século XIX para o XX,
foram os préstitos carnavalescos oferecidos
pelas grandes sociedades de Uruguaiana
que disputavam a preferência da socieda-
de. O público assistia nas ruas o desle
de luxo de carros alegóricos que trazia o
garbo e a elegância das elites locais. Outro
historiador local (Pont, 1978) encontrou no
Jornal da Fronteira de 1912 a edição de um
álbum especial do carnaval daquele ano
em homenagem aos dois maiores clubes
carnavalescos da época, os rivais “Os De-
mocráticos” e os “Fenianos”.
Entre as décadas de 1930 e 1940,
os dois maiores clubes carnavalescos que
rivalizavam em Uruguaiana eram: a Socie-
dade Carnavalesca Cordão de Ouro e a
Sociedade Recreativa Laço do Amor. Am-
bas as sociedades tinham orquestras pró-
prias e se aliavam a blocos e sociedades
menores para disputarem a hegemonia
nos concursos carnavalescos nos desles
nas ruas centrais da cidade e nos salões
nas sedes dos principais clubes.
Como descreveu o pesquisador
José Da Nova Filho (2000) no nal da dé-
cada de 1940 em Uruguaiana, os blocos,
como o “Cordão de Ouro”, começavam
a mudar os instrumentos das suas orques-
tras de percussão no intuito de reproduzir
os gêneros musicais que vinham do cen-
tro do país a partir das ondas do rádio.
As “pancadarias”, como eram chamadas
localmente essas orquestras, passaram a
adquirir ou construir instrumentos para a
melhor execução das marchas e sambas
que seguiam um desenho rítmico cada
vez mais acelerado e sincopado, a moda
musical que se consolidava na época.
Foi na década de 1950 que uma
grande novidade surgiu em Uruguaiana
causando grande furor, fazendo com que
os blocos de carnaval começassem a se
reagrupar no intuito de se adaptar à nova
forma artística trazida de longe pelos mi-
litares da Marinha que chegavam para
guarnecer a fronteira: a batucada do sam-
ba carioca. Centenas de fuzileiros navais
destacados do centro do país chegaram
aos conns da fronteira sul brasileira anos
após a Segunda Guerra Mundial.
Segundo os historiadores locais,
assim como para os sambistas mais an-
tigos uruguaianenses, foram os militares
que trouxeram da capital do país na épo-
ca o ritmo envolvente e os desconhecidos
instrumentos de percussão que mais tar-
de passaram a ser coqueluche em Uru-
guaiana. Eles também trouxeram do Rio
de Janeiro a forma de tocar, o ritmo e as
músicas mais populares do carnaval da
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sua época. Formavam grupos de algu-
mas poucas dezenas de percussionistas e
um porta-bandeira masculino (com movi-
mentos diferentes das porta-bandeiras de
hoje) que vinha em frente do contingente
realizando manobras com o símbolo -
ximo da agremiação ao ritmo do samba.
Assim nasceram os primeiros grupos que
se auto denominavam Escolas de Sam-
ba, em alusão a mesma forma artística de
carnaval que havia surgido na capital da
República por volta dos anos 1930.
A primeira agremiação de carnaval
dos fuzileiros navais foi “Os Filhos do Mar”,
fundada em 1951, considerada a primeira
Escola de Samba da Fronteira. Logo outros
grupos adaptaram as inovações trazidas
pela musicalidade e o formato de apresen-
tação dos fuzileiros navais no carnaval. Es-
ses grupos que iam surgindo e se adaptan-
do à forma artística dos Filhos do Mar, se
caracterizavam pela formação de conjuntos
de percussionistas que deslavam tocando
o samba sincopado num ritmo acelerado,
que até então era desconhecido pelos ha-
bitantes da região antes desses militares.
Com o surgimento das Escolas de
Samba e a formação de novas agremia-
ções de samba, o carnaval de Uruguaia-
na passou por mais de cinco décadas de
transformações na forma de apresentação
dos grupos, com um aumento do número
de componentes e mudanças constantes
de local de apresentações dos desles
nas datas carnavalescas.
O segundo e importante processo
de transformação e expansão das Escolas
de Samba em Uruguaiana, depois do perí-
odo de escolarização do carnaval inaugu-
rado pelos Filhos do Mar, foi a mudança de
datas do carnaval no calendário uruguaia-
nense, com a realocação dos desles para
três nais de semana após o feriado na-
cional a partir do ano de 2005. Ambos os
processos, o da escolarização e a inaugu-
ração do carnaval fora de época ou tempo-
rão como é chamado, nos trouxeram gran-
des transformações na forma artística dos
carnavais e nos modelos de organização e
preparação das Escolas de Samba.
No ano de 2005, uma contenda ju-
dicial atrasou os preparativos e ensaios da
Escola de Samba mais badalada da épo-
ca, “Os Rouxinóis”, a então pentacampeã
do carnaval local. A Escola de Samba teve
sua quadra interditada por ação judicial no
Ministério Público, devido a denúncias por
parte de vizinhos da sede de ensaios que
alegaram que a agremiação transgredia o
limite de produção de ruídos durante seus
ensaios noturnos diários. A ação judicial
produziu grande tensão entre os sam-
bistas da cidade e a Liga das Escolas de
Samba de Uruguaiana (a LIESU), a enti-
dade que organizava o carnaval na época.
A Liga reuniu a maior parte das Escolas de
Samba liadas e comandou uma desistên-
cia em massa das agremiações em des-
lar no Carnaval de 2005 como protesto à
interdição da quadra em questão.
Foi tramada uma estratégia emer-
gencial para que o carnaval acontecesse
em 2005. A contenda foi resolvida através
de uma Lei Municipal, estabelecida em co-
mum acordo entre a nova administração
Municipal (com o recém-eleito Prefeito San-
chotene Felice) com a Câmara de Vereado-
res, numa rápida solução do problema. A
negociação entre a Prefeitura e a Liga das
Escolas de Samba concluiu com sucesso
a remarcação do evento numa nova data
no mês de março, alguns nais de semana
após o feriado ocial em fevereiro.
A Prefeitura e os sambistas, que
antes eram ameaçados pelo cancelamen-
to da festa, ajustaram a data dos desles
para três semanas após o feriado nacio-
nal. Assim, com a mudança de datas o
carnaval passou a ser fora de época ou
temporão, como também passou a ser
chamado. A mudança de datas, a princí-
pio não intencional, trouxe uma série de
35
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inovações na produção estética e artística
das Escolas de Samba locais. O sucesso
do modelo foi conquistado de forma aca-
chapante com as atrações que foram con-
tratadas para Uruguaiana na nova data da
festa, o que fez com que a Liga promo-
tora do carnaval denisse para os anos
seguintes o carnaval fora de época como
regra, tendo o total apoio da Prefeitura, as
organizadoras do evento.
O que poderia parecer uma derrota
das Escolas de Samba inaugurou um for-
mato de Carnaval baseado na possibilida-
de de contratação de destaques do mundo
do samba de outras cidades, e a compra de
objetos carnavalescos de outros polos de
produção. Justamente por não coincidirem
suas datas com os desles de carnavais
de maior porte no Brasil, Uruguaiana pode-
ria aproveitar para fortalecer seu carnaval
local com a contratação de sambistas pro-
ssionais, principalmente os provenientes
do carnaval carioca. Em poucos anos, o
carnaval de Uruguaiana alcançou um novo
patamar nos desles quanto aos aspectos
plásticos e à atração de sambistas cario-
cas que tiveram grande repercussão nas
suas apresentações no sambódromo.
Já para o ano de 2005, a Escola de
Samba “Os Rouxinóis” a partir de esforços
de seu presidente de então, Jair Rodri-
gues, contratou para seu desle Neguinho
da Beija Flor como intérprete, e Valéria
Valenssa, como destaque de chão
V
. A Ilha
do Marduque também trouxe uma comiti-
va de sambistas do Rio de Janeiro. Essas
contratações foram as primeiras de deze-
nas de outros artistas, músicos, ritmistas,
coreógrafos, artistas plásticos e celebrida-
des que partiriam para Uruguaiana depois
de suas atividades nos seus carnavais de
origem a partir daquele ano.
A mudança de datas acabou por
alavancar Uruguaiana à fama de grande
atração de sambistas e estrelas do car-
naval carioca durante sua festa, com um
grande crescimento de sua visibilidade na
mídia especializada em carnaval e na atra-
ção de turistas nos anos posteriores, so-
bretudo do Rio Grande do Sul e dos países
vizinhos que também possuíam desles
nas suas cidades em outras datas (como
Paso de Los Libres e Artigas). A fórmu-
la assegurou para o carnaval da cidade a
possibilidade de não concorrer contra ou-
tros grandes polos de carnaval na atração
de prossionais do samba, tais como: Rio
de Janeiro, São Paulo, e mesmo, Porto
Alegre. Esses centros carnavalescos pro-
dutores de carnaval passaram de alguma
forma a contribuir com sambistas, fanta-
sias, esculturas, júri de avaliadores e pro-
ssionais que trabalhavam na plástica das
Escolas carnavalescos, decoradores,
alegoristas, escultores e costureiras.
O mesmo formato de sucesso foi
adaptado para outras cidades da região,
que também passaram a transferir a data
de seus carnavais por intermédio de suas
Ligas ou Comissões Organizadoras, numa
nítida tentativa de repetição do sucesso
do maior evento anual dos Pampas.
Uma pergunta pode surgir ao con-
sideramos que Uruguaiana, a cidade mais
importante dos Pampas na porção brasilei-
ra, é um espaço social que é sempre reme-
tido nas narrativas da cultura ocial reeti-
das na identidade regional do estado do Rio
Grande do Sul, destacadas na exaltação da
gura típica do gaúcho
VI
. O gauchismo, en-
quanto movimento político-cultural basea-
do na exaltação do estilo de vida do campo,
tem seu centro produtor simbólico baseado
na vida agropastoril localizada nas áreas
de pastagens no oeste desse estado, as-
sim como na área que abrange o nordeste
da Argentina e o noroeste do Uruguai.
Como se desenvolveu nos Pam-
pas, sobretudo no lado brasileiro, a prática
do samba e a importância do carnaval das
Escolas de Samba na sua relação com o
gauchismo é a reexão que segue.
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O gauchismo no Rio Grande do Sul e o
carnaval como símbolo nacional
Historicamente, a região dos Pam-
pas foi um cenário de disputas territoriais
frequentes entre a Coroa espanhola e a
Coroa portuguesa entre os séculos XVI
e XIX, no período colonial sul americano.
Inúmeros tratados foram assinados por
ambas as partes, assim como guerras de
conquistas pelos territórios foram disputa-
das entre seus habitantes e os Estados-
-nações. A importante localização geográ-
ca de Uruguaiana, às margens do Rio
Uruguai que desemboca na Bacia do Pra-
ta, ligando o interior do continente ao Oce-
ano Atlântico e chegando às importantes
capitais ao sul (Montevidéu no Uruguai e
Buenos Aires na Argentina), fez com que
a cidade fosse considerada ponto estra-
tégico de resguardo territorial, vigilância
armada e entreposto comercial ao sul do
Brasil desde sua fundação.
O decreto da Província do Rio
Grande do Sul em 24 de fevereiro de 1843
criou a povoação denominada Capela do
Uruguai, pertencendo ao município do Ale-
grete. Três anos após a fundação, a po-
voação foi elevada à categoria de vila in-
dependente e seu nome foi alterado para
Uruguaiana
VII
. Fundada no século XIX, e
aproveitando sua regularidade topográca
(a cidade tem poucos e apenas leves acli-
ves), Uruguaiana foi traçada no seu plano
urbanístico com o formato conhecido por
cidade “grelha” ou “xadrez”. Formato muito
comum em cidades da América Espanho-
la (RISÉRIO, 2012, p. 84) do outro lado do
rio Uruguai, revelando no seu urbanismo
parte de suas inuências hispânicas da-
das sua proximidade e a sua condição de
cidade de fronteira com a Argentina.
Uruguaiana por estar localizada bem
ao centro do bioma Pampa (e ser a maior ci-
dade brasileira dele), ter uma história social
ligada às guerras de fronteira e à vida agro-
pastoril nos séculos de formação política do
Rio Grande do Sul, é uma cidade popular-
mente vinculada à gura típica regional cria-
da pelos movimentos regionalistas do século
XX: o gaúcho. No estado mais meridional do
Brasil, a gura típica do gaúcho tem como
base a paisagem sociocultural dos Pampas
em seu passado histórico de lutas pelo terri-
tório e nos conitos sobre a terra.
O tradicionalismo gaúcho é um mo-
vimento regional do estado engendrado
por uma classe média urbana da capital,
Porto Alegre, na década de 1940. A forte
centralização econômica, política e cultural
do Brasil pós-1930 (início do período Var-
gas) combinou com o isolamento geográ-
co do Rio Grande do Sul, sua integração
tardia ao restante do país, e seu histórico
de guerras e disputas entre portugueses e
espanhóis. Naquelas décadas, alguns jo-
vens com poucas vivências rurais forma-
ram o primeiro núcleo de celebração de
uma identidade gaúcha a ser reelaborada
num local distante aos valores exaltados
(na capital do estado), numa composição
da ideia de tradição e um conjunto de va-
lores a serem contemplados e retomados
pela sociedade sul-rio-grandense.
Oliven (2006) nos detalhou o pro-
cesso de construção social da identidade
gaúcha. O gaúcho na Argentina e no Uru-
guai se refere a um emblema nacional, fre-
quentemente ligado ao atraso ou ao estilo
de vida rural e provinciano que se oporia ao
materialismo moderno. No Rio Grande do
Sul, houve uma ressemantização do termo
“gaúcho”, que de desviante e marginal foi
reelaborado e adquiriu novo signicado po-
sitivo. O tradicionalismo baseado no gau-
chismo, o movimento regional que surgiu
no estado, passou a celebrar a vida marca-
da pelos elementos campeiros, a presença
de cavalos, a fronteira, a virilidade, a bravu-
ra, a honra, além de celebrar alguns fatos
históricos como epopeias e transformar em
heróis os personagens da revolta regional
contra o governo imperial do Brasil em me-
ados do século XIX: a Revolução Farroupi-
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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lha. A revolta começou em 20 de setembro
de 1835 (data do feriado estadual que mar-
ca o m dos festejos da “Semana Farroupi-
lha”) e se estendeu até o ano de 1845.
O passado da região dos Pampas,
também chamada de Campanha gaúcha,
que teve grande importância econômica
no estado até o m da segunda metade do
século XIX, passou a ser recriado a partir
do trabalho daqueles jovens intelectuais
urbanos que reivindicavam a vida rural e
a temática gaúcha contra a modernização
que avançava no país após a era Vargas
(paradoxalmente, Getúlio Vargas também
era gaúcho e havia nascido numa cidade
dos Pampas: São Borja). O tradicionalis-
mo gaúcho foi fruto das ideias de arma-
ção simbólica das identidades regionais
em contraponto à homogeneização cul-
tural que acontecia no Brasil naquele pe-
ríodo aceleradamente modernizante. Do
tradicionalismo regional daqueles jovens
foi criado o MTG, o Movimento Tradicio-
nalista Gaúcho, que tem grande poder de
aglutinação social no Rio Grande do Sul
em seus inúmeros centros culturais espa-
lhados pelo estado e pelo país (os CTGs
Centros de Tradições Gaúchas). Muitos
dirigentes do MTG e adeptos à ideologia
do gauchismo reivindicam a legitimidade
cultural de sua tradição reinventada, como
uma forma de salientar as diferenças cul-
turais regionais em relação à nação.
Como nos indicou Oliven (2006, p. 90):
Há uma constante evocação e atualiza-
ção das peculiaridades do estado e da
fragilidade de sua relação com o resto do
Brasil. O Rio Grande do Sul pode ser vis-
to como um estado onde o regionalismo
é constantemente reposto em situações
históricas, econômicas e políticas novas.
Com o aumento dos produtos cul-
turais tradicionalistas ao longo do tempo,
e com as ideias do gauchismo na capital
do estado se contrapondo abertamente às
expressões culturais nacionais nas déca-
das seguintes, os habitantes dos Pampas
passaram a ser idealizados enquanto gaú-
chos modelos, por estarem mais próximos
ao estilo de vida de um passado distante
imaginado. Até os dias de hoje, ao falar-
mos das cidades dos Pampas (como as
conhecidas Uruguaiana ou Alegrete) nas
demais regiões do Rio Grande do Sul, a
imagem que se tem à cabeça é de um su-
jeito com vestes tradicionais
VIII
, que traba-
lha diretamente com o setor agropastoril,
tem amor aos cavalos e possui uma rude-
za na fala e nos costumes. O estereótipo
do gaúcho dos Pampas é frequentemente
retomado em personagens das indústrias
culturais e no imaginário social construído
a partir de uma tipicação da região pouco
esclarecedora da sua heterogeneidade.
Pelo fato dos Pampas ter se torna-
do um local idealizado das políticas cultu-
rais de construção da identidade gaúcha,
se torna peculiar e um pouco excêntrico ao
senso comum (notavelmente em outras re-
giões do estado) a existência de uma festa
popular tão central e destacada na região
que seja explicitamente associada aos
símbolos nacionais e aos valores ligados à
promoção da brasilidade como o carnaval
(com a forte presença do samba e das re-
ferências ligadas à cultura afro-brasileira).
Mas em Uruguaiana, o carnaval é uma fes-
ta intrínseca à identidade local e que possui
uma densa relação sociocultural entrelaça-
da à própria história da cidade.
O carnaval das Escolas de Samba
de Uruguaiana nos dias de hoje é o maior
evento anual da região dos Pampas em
número de participantes, atração de turis-
tas e na contratação de mão de obra para
o evento. Por outro lado na capital Porto
Alegre, as comunidades tradicionalistas
e as carnavalescas são marcadamente
distantes e limitadas por pertencimentos
étnicos, sociais e de denições políticas
bastante afastadas em razão dos embates
pelas identidades e pelos espaços sociais
38
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de hegemonia e divulgação de seus va-
lores, imaginados como contrapostos por
parte de suas lideranças (DUARTE, 2011).
Em Uruguaiana, o possível contraste
entre as duas festas (a Semana Farroupilha
e o carnaval) demarcadas pelo âmbito regio-
nal e nacional respectivamente, dadas suas
particularidades classicadas pelas diferen-
ças nas políticas de construção das identi-
dades e suas expressões culturais (como
acontece na capital do estado), faz bem
menos sentido. A cidade sediou por muitos
anos um dos maiores eventos regionalistas
do estado: a Califórnia da Canção Nativa
IX
.
O carnaval das Escolas de Samba,
apesar de ter se tornado um espetáculo
ampliado e que obteve grande crescimen-
to para fora do município somente no ano
de 2005 (quando foi deslocado da época
do feriado ocial nacional), tem uma rica
história de participação popular e de en-
gajamento na sociedade local mais de
um século. O período de crescimento mais
apurado dos investimentos e da visibilida-
de dos desles de carnaval se deu no mo-
mento de crise da Califórnia da Canção,
mesmo que a Semana Farroupilha ainda
se constitua numa festa muito importante
para a região, também por ser marcada
num tempo social distinto (em setembro e
o carnaval normalmente em março).
A participação de músicos e per-
sonalidades locais envolvidas no carnaval
e no tradicionalismo mutuamente, que
cada período festivo tem seu tempo espe-
cíco no calendário anual, é fato recorrente
em Uruguaiana. César Rodrigues Escoto,
mais conhecido como César Passarinho,
foi intérprete da Escola de Samba Os Rou-
xinóis por muitos anos. Na mesma época,
nas décadas de 1970 e 1980, ele foi um
músico bastante consagrado no festival re-
gionalista, vencedor de muitas edições da
Califórnia da Canção interpretando músi-
cas que hoje se transformaram em clássi-
cos do cancioneiro popular gauchesco.
Uma boa parte das comissões de
frente das Escolas de Samba coreogra-
fadas em Uruguaiana é apresentada por
grupos de danças folclóricas dos centros
tradicionalistas gaúchos, conhecidos como
“invernadas”, que também participam de
competições em festivais tradicionalistas.
Os componentes mais ativos das Escolas
de Samba, em sua maior parte, se envol-
vem de alguma forma nos festejos da Se-
mana Farroupilha, comemorado intensa-
mente nas escolas, repartições públicas,
em cavalgadas, acampamentos e cerimô-
nias ociais em todo o Rio Grande do Sul.
Em Uruguaiana são poucos os adep-
tos de apenas um tipo de manifestação cul-
tural que insistem na puricação do que con-
sideram uma cultura própria e legítima em
contraposição ao cultivo da outra (normal-
mente como acontece com os tradicionalis-
tas mais empedernidos da capital que xam
suas noções de cultura gaúcha em contra-
ponto radical aos símbolos nacionais). As
tentativas de delimitações excludentes não
encontram grande campo de armação local
na intenção de uma puricação simbólica em
relação aos seus valores e costumes. Isso
nos garante uma reconguração das polí-
ticas culturais de identidade engendradas
pelas suas comunidades e o poder público
municipal de forma menos redutora ao modo
dos essencialismos e restrições puristas que
poderiam ser pretendidos e observados.
Muito em razão do fato de o muni-
cípio estar localizado em área fronteiriça, e
de produzir sua alteridade em relação aos
seus vizinhos da Argentina e do Uruguai,
os uruguaianenses se equilibram entre as
escalas do local e do global e se apropriam
das manifestações culturais, cada uma ao
seu tempo, de forma menos conservadora
como se supõe acontecer nos Pampas pelo
senso comum dos habitantes de outras re-
giões do estado. Os símbolos nacionais são
imprescindíveis em Uruguaiana, sobretudo
no tempo do carnaval, para marcar suas di-
ferenças culturais em relação aos demais
39
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vizinhos gaúchos
X
dos Pampas, sejam ar-
gentinos ou uruguaios (mesmo que esses
também possuam seus carnavais e agre-
miações com base no samba brasileiro,
com suas particularidades e diferenças).
Nas palavras mais uma vez de Oli-
ven (2006), “as manifestações culturais
que antes eram vistas como claramente
delimitadas, agora seguem em parte a -
gica da globalização e não respeitam mais
as antigas fronteiras nacionais ou regio-
nais” (p.204). Os carnavais nos Pampas
quebram com as antigas e rígidas frontei-
ras da cultura, permitindo uma análise re-
contextualizada e reelaborada da presen-
ça dos hibridismos e das recomposições
interculturais de nossos tempos, assim
como a expansão e adaptação do samba
a diferentes contextos transnacionais.
A forma artística das Escolas de Samba
e o tempo do carnaval nos Pampas
A compreensão dos carnavais das
Escolas de Samba passava longe da ideia
de uma homogeneidade completa de seu
modelo artístico nas cidades onde ela exis-
tia. Cada contexto local produzia a partir
de sua cultura carnavalesca sua particula-
ridade e formas de fazer e apresentar suas
Escolas de Samba nos sambódromos. Na
competição carnavalesca em Uruguaiana,
por exemplo, existiam onze quesitos de
julgamento de cada agremiação. Os dez
quesitos semelhantes ao carnaval cario-
ca
XI
, mais o quesito abre-alas, relativo ao
carro alegórico de abertura de cada apre-
sentação. O diálogo e a aproximação com
o carnaval do Rio de Janeiro, a partir do
regulamento, das trocas com sambistas e a
assimilação da forma artística das Escolas
de Samba cariocas eram imprescindíveis
para analisar cada carnaval no seu con-
texto local. Mas havia divergências, entre
elas: formas de participação e engajamen-
to, assim como identicação dos indivíduos
com os valores promovidos pela festa, pro-
moção de identidades e alteridade, estilos
de vida e formas de sociabilidade ligadas
às práticas, grau de valorização e prestígio
social da festa no local, formas de nan-
ciamento e atravessamentos das esferas
políticas e sociais, alterações no modelo
artístico ou hibridização de elementos.
O que entendemos como forma artís-
tica das Escolas de Samba, signica uma -
rie de características e exigências que essas
agremiações têm que preparar para o desle
para estarem enquadradas nos regulamen-
tos dos carnavais locais. Esses regulamentos
divergem em alguns pontos, frequentemente
mudam em discussões entre dirigentes e co-
missões ano a ano, mas apresentam pontos
essenciais em comum e que permanecem
inalteráveis. Existem obrigações de apresen-
tação das agremiações nos regulamentos de
cada carnaval, como um número mínimo de
componentes no total e também na bateria, a
necessidade de apresentação de um mínimo
de carros alegóricos ou um número mínimo
de baianas, como exemplo. Existem regras
tácitas que não são regulamentadas, mas
se valem da tradição de cada carnaval para
seguir sendo cumpridas à risca, mesmo não
sendo contempladas no regulamento. Exis-
tem margens de variações e formas mistas
de adaptação local, inventividades e mesclas
entre formas artísticas locais e o modelo ide-
alizado das Escolas de Samba, que nasceu
e foi desenvolvido no Brasil, particularmente
na cidade do Rio de Janeiro.
Mesmo com as transformações histó-
ricas e reapropriações dos contextos locais,
existia um consenso implícito dos iniciados
no mundo do samba
XII
do que necessaria-
mente uma Escola de Samba, para assim
ser considerada, deveria apresentar. Resu-
mimos em sete pontos: 1- Desle contínuo e
progressivo embalado pelo gênero musical
próprio, o samba, enquanto motor da evolu-
ção do corpo de deslantes. 2- Uma orques-
tra percussiva que dita o ritmo do conjunto
com restrição aos instrumentos de sopro. 3-
Um enredo ou uma temática que deverá ser
40
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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apresentada como narrativa e pano de fundo
de cada apresentação anual. 4- Componen-
tes fantasiados e carros alegóricos que de-
vem estar pautados de acordo com o tema
ou enredo proposto. 5- A bandeira símbolo
da agremiação que deve ser portada por
um par de bailarinos que tem a missão de
apresentar e defender o pavilhão da agre-
miação (o mestre-sala e a porta-bandeira).
6- Organização em conjuntos de alas que di-
videm os componentes conforme fantasias
padronizadas num mesmo conjunto. 7- A
presença de alas tradicionais exigidas mui-
tas vezes como obrigatoriedade nos regu-
lamentos das competições, como a ala das
passistas (que tem o intuito de apresentar a
dança do samba de forma mais complexa),
a ala das baianas (que é item obrigatório no
carnaval do Rio de Janeiro, assim como nos
Pampas), e a ala da comissão de frente com
coreograa e encenações próprias e, às ve-
zes, uma pequena alegoria (essa ala possui
o intuito de apresentar em síntese o enredo
e a Escola na sua abertura).
Compartilhamos com Comaroff
(2003) a ideia de que os fenômenos so-
ciais não podem mais ser entendidos com
recortes limitantes de realidades (geográ-
cas, culturais, étnicas, nacionais). Existem
elementos transversais à cultura que são
produzidos em escala global, para além
dos recortes contextuais. O intuito do autor
é questionar a produção dos fenômenos
nos locais, dando-se conta de que no mun-
do atual são raríssimas as situações onde
não encontramos atravessamentos de es-
calas que complexicam a perspectiva da
paisagem contextual, do espaço restrito
onde as agências humanas atuam como
se estivessem num palco xo e inerte.
Os carnavais dos Pampas po-
deriam ser tratados se considerarmos seu
potencial de cultura híbrida envolvida no
jogo dinâmico da mescla entre o local e o
global, e as suas particularidades em cada
contexto, ou seja, as diferenciações entre
suas culturas carnavalescas especícas.
Assim, usamos o substantivo plural em cul-
turas carnavalescas, e não o singular para
cultura, porque o carnaval possuía uma
ampla variedade de formas de identica-
ção e produção em cada contexto; mesmo
que fosse também correto armar que os
carnavais comportavam características
e formas em comum na dimensão global
percebida no âmbito da translocalidade.
O que mais é importante se ater no
estudo dos carnavais de Escolas de Samba
da região dos Pampas no extremo sul do
Brasil, e no nosso caso na cidade de Uru-
guaiana, é o calendário festivo e a profunda
alteração no ritmo social e ritual da festa de-
vido ao evento acontecer desde 2005 fora
da data carnavalesca ocial do país. Como
foi mencionado, o carnaval da cidade
acontecia normalmente três nais de sema-
na após o feriado carnavalesco.
No carnaval fora de época em Uru-
guaiana, a fase de reinício das atividades
normalmente se dava logo depois das festi-
vidades de m de ano, com o natal e a festa
de ano novo. Em janeiro, a maior parte das
Escolas de Samba iniciava seus ensaios,
assim como retomava seus trabalhos nos
barracões na confecção ou reciclagem de
materiais para o desle que se aproximava.
Algumas agremiações iniciavam seus tra-
balhos de limpeza de barracão e constru-
ção de alegorias com alguma antecedên-
cia, como forma de adiantar o trabalho na
fase onde o carnaval ainda era um assunto
subterrâneo. Quando a data do carnaval -
cava apenas para o nal do mês março, o
reinício dos ensaios e do interesse social
pela festa poderia vir a acontecer apenas
em ns de janeiro ou início de fevereiro.
O período ápice dos preparativos
para a festa, onde todas as Escolas de
Samba da cidade estavam em ritmo ace-
lerado nos seus ensaios de quadras e tra-
balhos de barracões, no momento em que
o carnaval passava a ser o assunto mais
importante e destacado em Uruguaiana,
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só se iniciava com o passar do feriado car-
navalesco ocial. Apenas após os desles
do Rio de Janeiro que o tema do carnaval
local passava a ser contemplado em Uru-
guaiana com maior importância e ampla re-
percussão. Era quando os ensaios come-
çavam a lotar as quadras das Escolas de
Samba, as bandeiras e cores das agremia-
ções começavam a tomar conta da decora-
ção em frente às casas e nos comércios de
rua, quando os primeiros sambistas contra-
tados do Rio de Janeiro chegavam à cida-
de, e quando o sambódromo improvisado
já entrava em fase nal de montagem.
Depois do feriado de carnaval em
todo o Brasil, Uruguaiana entrava em
fase de maior tensão para a sua festa,
em estado temporal de liminaridade (Tur-
ner, 1974). Era quando todos os níveis
de organização das agremiações viviam
ardorosamente cada hora que se passa-
va, numa quase inevitável corrida contra o
tempo, para se nalizar fantasias, comprar
materiais que estavam em falta, acertar os
detalhes da bateria, arrecadar recursos
nanceiros para uma contratação emer-
gencial para a logística e os transportes,
e a mobilização nal dos componentes da
agremiação para a disputa ritual do des-
le de carnaval. Dava-se início o tempo do
carnaval em Uruguaiana.
O ápice do período de carnaval era
vivido plenamente em Uruguaiana num es-
paço curto de tempo, assim como em toda
a região dos Pampas. O carnaval era clas-
sicado como um evento do extracotidiano,
com características que faziam dele um
evento popular de grande alcance social
delimitado num tempo especíco. Nesse
intervalo de tempo, ele acabava por incluir
todas as camadas e classes sociais da ci-
dade no jogo em disputa, na concorrência
dos grupos carnavalescos organizados
para a conquista do título, além de fazer
um reordenamento das relações sociais
do dia a dia que podiam se suspender ou
se fortalecer pela participação individual
nas agremiações carnavalescas. O perío-
do auge dos preparativos para a festa era
um tempo social disponível para todos os
desdobramentos mais importantes rela-
cionados à cultura carnavalesca nos seus
contextos locais. Ele se encerrava no do-
mingo de apuração das campeãs, na festa
da vitória na quadra da vencedora.
Relacionamos a ideia do tempo do
carnaval com a noção de tempo da políti-
ca de Moacir Palmeira (apud PEIRANO,
2002): o período eleitoral marcante para a
vida social do município onde tudo se con-
vertia em política, que as suas facções
organizadas em partidos, chefes políticos
e seus apoiadores estavam reunidas e po-
diam ser identicadas facilmente. Um rear-
ranjo de posições sociais podia ser anali-
sado nesse tempo, que não era linear nem
cumulativo, mas sim, um tempo ritual, onde
um conjunto de atividades e uma tempo-
ralidade própria marcavam os momentos
vividos, de divisão a rearranjo. Para o au-
tor, as divisões sociais no município pode-
riam ser investigadas a partir dos tempos,
transitórios e excepcionais, de comunhão e
de separação de grupos e indivíduos. As
facções políticas entravam em conito nos
contextos locais ao passar a determinar o
ritmo social de adesão e ruptura de vínculos
pessoais para a conquista do poder local,
instaurado na partilha dos cargos públicos
disputados a cada pleito. o tempo das
festas investigado pelo mesmo autor seria
diametralmente oposto. A festa marcava no
seu tempo a aglutinação, a comunhão so-
cial, a pretensão de harmonia.
Pensamos no carnaval dos Pam-
pas como um tempo híbrido ao mesmo
tempo aglutinador e divisor de facções e
grupos. Diferentemente da comunhão do
tempo de festas na etnograa de Palmeira,
o tempo do carnaval na Fronteira também
era um tempo de divisão de forças sociais,
de duelos entre personagens e grupos de
poder nos jogos sociais. O tempo do car-
naval era um tempo de concentração das
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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relações sociais vivenciando o evento de
forma ambivalente porque havia disputas,
conitos, competição, mas também havia
coesão, solidariedade e ludicidade.
O ressurgimento dos vínculos es-
tabelecidos nas Escolas de Samba acom-
panhava um movimento cíclico de am-
pliação da participação para a sociedade
nas adesões e no acúmulo de indivíduos
e seus laços sociais nas agremiações. Os
meses de calmaria, e de suspensão das
atividades carnavalescas, se tornavam
irreconhecíveis quando o carnaval vinha
novamente à tona. Iniciava-se o período
de demanda irrefreável de atividades, com
excesso de excitação, emoção e o vertigi-
noso aumento das ações em coletividade
no tempo do carnaval. Naquele curto es-
paço de tempo tudo deveria ser prepara-
do, e todos deveriam ter a vitória na com-
petição como objetivo comum, como as
facções políticas para as eleições políticas
no caso do referido autor.
Do Rio de Janeiro à Fronteira no sul
do país: circuitos carnavalescos nos
Pampas e o paradigma carioca
A crescente contratação de sam-
bistas cariocas para o calendário fora
de época na fronteira sul do Brasil, com
marco temporal no carnaval de 2005 em
Uruguaiana como vimos, alavancou um
processo de migração entre os centros de
produção de carnaval para os Pampas.
Chamamos de migração carnavalesca o
processo de deslocamento de indivíduos
em busca de trabalhos temporários ofe-
recidos pelos diferentes mercados carna-
valescos em outras regiões. Essa migra-
ção, além de sazonal - os trabalhadores
retornam para suas cidades de origem
muitas vezes também é utuante, nos
casos em que os prossionais percorrem
a região nos trabalhos em diferentes car-
navais. Podemos falar também de um vi-
goroso circuito carnavalesco entre o Rio
de Janeiro e os Pampas que se fortalece-
ra nos últimos anos, sobretudo, a partir da
consolidação do carnaval fora de época.
O circuito carnavalesco dos Pam-
pas não se realiza apenas entre Rio de
Janeiro e Uruguaiana, apesar de ser o elo
mais forte dos uxos. Existiam também os
circuitos de trocas entre carnavais de cida-
des dos Pampas, no percurso de pessoas
e objetos em escala regional. O carnaval
de Uruguaiana fornecia para outros car-
navais mão de obra carnavalesca, assim
como objetos carnavalescos (fantasias,
esculturas, adereços), que depois de utili-
zados por uma Escola de Samba local po-
deriam ser negociados entre as Escolas de
Samba e seus representantes para outros
carnavais da região, tais como: Alegrete,
Itaqui, Artigas (Uruguai), Paso de Los Li-
bres (Argentina), Bella Unión (Uruguai),
Santana do Livramento, Santa Maria.
Da mesma forma, muitos sambis-
tas cariocas aproveitavam sua estadia na
região e eram contratados para trabalhos
pontuais em carnavais que aconteciam
durante o período. Eram prossionais dos
mais diferentes setores de uma agremia-
ção: desde intérpretes, músicos, mestres-
-salas e porta-bandeiras, celebridades em
geral, artistas plásticos ou carnavalescos,
e também os ferreiros, aderecistas, com-
positores e bailarinos de comissão de
frente. A mão de obra carnavalesca uru-
guaianense também se destacava na re-
gião. Como o carnaval de Uruguaiana po-
deria ser considerado o de maior porte e o
mais consolidado entre os carnavais dos
Pampas, muitos uruguaianenses entra-
vam no circuito carnavalesco regional ao
negociarem seu trabalho e sua expertise
técnica em outras cidades.
Utilizamos a noção de circuito em Vi-
viana Zelizer (2006) como parâmetro para
o nosso circuito carnavalesco, porque essa
noção nos propicia analisar criticamente o
entrelaçamento de indivíduos e coisas em
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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contato através de interações negociadas
em diferentes locais. A ligação entre os
contextos espaciais, que no nosso caso se
desdobrava nas culturas carnavalescas,
era imprescindível para descrevermos os
vínculos entre indivíduos, agremiações,
carnavais e entidades. Os circuitos são
compostos por vínculos dinâmicos, são
recheados de signicados compartilhados
e são também instáveis, porque incessan-
temente negociados. Eles cruzam frontei-
ras comunitárias, de grupos sociais, dos
limites geográcos e se sustentam através
de transações econômicas (empregando
transações de vários tipos, não somente as
monetárias), a partir de laços interpessoais
e de limites culturais estabelecidos.
Pensar nas interconexões entre os
lugares passa por perceber os uxos mi-
gratórios e de objetos carnavalescos no
caso dos carnavais do sul do Brasil. Han-
nerz (1997) nos indicou que os uxos de-
veriam ser analisados em duas dimensões
inevitáveis: na sua dimensão temporal e
no seu deslocamento territorial, sucinta-
mente, nas categorias de tempo e espaço.
A cultura é um processo social que mescla
os deslocamentos que podem ser perce-
bidos por essas duas categorias, por isso
a importância de destacar a recriação, a
reelaboração, a invenção incessante da
cultura. Os uxos e as incessantes inter-
penetrações entre o centro e a periferia
se combinavam com os contrauxos, os
uxos entrecruzados, as assimetrias nos
sistemas culturais em processo.
O carnaval carioca se constitui como
um modelo ideal de evento, da sua forma
artística à organização formal para o evento
mais importante das Escolas de Samba (os
desles). Um paradigma festivo que reper-
cute para além da cidade do Rio de Janeiro.
O carnaval das Escolas de Samba
de Uruguaiana pretendia a cada ano re-
produzir nos Pampas a beleza plástica e
a excelência técnica e artística das agre-
miações, numa aproximação desejada
das principais características do carnaval
do Rio de Janeiro como modelo paradig-
mático imaginado de festa adaptado ao
contexto local. A atração de sambistas e
objetos carnavalescos do centro do país
permitia às Escolas de Samba e ao -
blico observarem esse movimento de re-
produção explícito e da amálgama cultural
realizada pelo samba nos limites do Brasil.
O carnaval do Rio de Janeiro, desde
as primeiras décadas após o surgimento
das agremiações de samba, serviu de mo-
delo para os carnavais na forma artística
das Escolas de Samba em outras regiões
do Brasil. No caso de Uruguaiana, o seu
ponto de virada com a escolarização do car-
naval aconteceu na década de 1950 tendo
por base o carnaval carioca com os “Filhos
do Mar” como foi relatado. Com o processo
acelerado de espetacularização, principal-
mente após a inauguração do sambódro-
mo na Marquês de Sapucaí e do televisio-
namento na década de 1980, ele passou a
ser ainda mais referencial e trouxe à tona
um movimento de expansão e alargamen-
to de seu modelo artístico em novos con-
textos. Entendemos o modelo idealizado
da Escola de Samba carioca nos Pampas,
como um sistema cultural imaginado de
organização eciente e de uma forma ar-
tística básica que passam a ser considera-
dos como o padrão, e estimulados a serem
reproduzidos em contextos carnavalescos
diversos: o paradigma carioca.
Compreendemos que a aplicação
desse modelo nunca é completa, nem
mesmo homogênea, mesmo que fosse
esta a primeira intenção de quem vive o
carnaval além do Rio de Janeiro. O mode-
lo artístico e a cultura organizacional das
Escolas de Samba cariocas e seus des-
les quase sempre são aplicados nos con-
textos locais de forma acrítica, formando
um senso comum entre dirigentes e sam-
bistas de acomodação da fórmula consi-
derada unívoca aos seus carnavais. Mes-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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mo sob o paradigma carioca, entendemos
que esses carnavais possuem diferentes
signicados para os grupos que dele com-
partilham valores, assim como para o pú-
blico espectador e a população local, além
de comportarem elementos artísticos pró-
prios, regulamentos e regras particulares,
características locais de produção e con-
sumo de carnaval, memórias e historicida-
de singulares, como vimos.
Em resumo, os carnavais e seus
contextos locais sempre foram divergen-
tes e não similares entre si, mesmo com
a existência do modelo carioca. O para-
digma carioca é um sistema simbólico de
compreensão e adaptação da forma artís-
tica global das Escolas de Samba do Rio
de Janeiro em outros contextos locais, nas
regras das congurações culturais e das
diferentes culturas carnavalescas basea-
das nas Escolas de Samba.
O paradigma carioca, por ser um
ideal imaginado, ignorava os conitos e
transformações que dinamizavam o carna-
val do Rio de Janeiro nos seus ciclos car-
navalescos anuais. Ele apreendia e quali-
cava todas as inovações e a capacidade
técnica artística do evento como um ideal a
ser seguido e apropriado pelas diferentes
culturas carnavalescas, ao realizarem uma
reelaboração do carnaval carioca a partir
de práticas próprias nos contextos locais.
Os carnavais de Escolas de Samba
tratados neste texto promoviam suas so-
luções e sua adaptação às congurações
culturais locais de forma heterogênea,
instável e dinâmica. Eram adotadas medi-
das, informações e modelos extraídos do
mais importante carnaval do país, o que
os condicionava a se suporem integrados
a uma cultura em comum, numa suposi-
ção de homogeneidade, da existência de
uma cultura global do samba no seu for-
mato institucionalizado no carnaval. O pa-
radigma carioca nos ajuda a pensar nos
cruzamentos entre as Escolas de Samba
do Rio de Janeiro e de Uruguaiana, assim
como em suas relações aproximadas com
os demais carnavais baseados nessa for-
ma artística particular ao redor do mundo.
Entendemos que os fenômenos
do carnaval, das Escolas de Samba e do
samba brasileiro devem ser analisados na
compreensão das dimensões das escalas
translocais, atentando-se para os circui-
tos e as circulações que eles promovem
com grande intensidade na contempora-
neidade. Finalmente, entendemos que os
estudos sobre o carnaval devem superar
suas delimitações inscritas nos contextos
locais, e para isso, as trocas, as hibridi-
zações e os uxos entre regiões, cidades,
agremiações e prossionais (no caso das
Escolas de Samba) devem ser abarcadas
nas novas pesquisas e abordagens que
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I Ulisses Corrêa Duarte. Doutor em Antropologia pelo
Programa de Pós-Graduação em antropologia da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil. Contato:
correaduarte7@gmail.com
II O Pampa é um bioma natural ao centro sul do continen-
te sul americano e distante dos Oceanos Atlântico e Pací-
co. Ele se caracteriza por planícies pontuadas por ligeiras
e pouco acidentadas colinas e clima com estações do ano
bem denidas, o que contribui para a atividade agropas-
toril. O Pampa ou os Pampas (como se usa comumente
no plural) contêm dentro da sua vasta área três fronteiras
políticas dos seguintes países: Brasil, Argentina e Uruguai.
III A pesquisa fez parte da tese de Doutorado em An-
tropologia sobre o carnaval das Escolas de Samba nos
limites do Brasil, nos Pampas e em Londres no Reino
Unido (DUARTE, 2016).
IV Quaresma é o período cristão de retidão e penitência nos
quarenta dias que antecedem à Páscoa. Ela tem início na
quarta-feira de cinzas, um dia após o término do carnaval.
V Valéria Valenssa por anos a o foi um dos ícones do
carnaval carioca com a personagem “Globeleza”, prota-
gonista da vinheta de divulgação do carnaval pela Rede
Globo, detentora dos direitos exclusivos de transmissão
do carnaval dessa cidade.
VI Os nativos do estado do Rio Grande do Sul recebem
a denominação de “gaúcho” genericamente (a alterna-
tiva seria “sul-rio-grandense”), mesmo que a noção de
“gaúcho” na sua etimologia esteja ligada exclusivamente
à vida pastoril da região dos Pampas desde a coloniza-
ção da área que abrange os três países vizinhos.
VII Segundo os autores uruguaianenses Daniel Fanti e
Carlos Fontes (2008), o nome da cidade de Uruguaiana
está entrelaçado às origens guaranis e cristãs: Uruguá,
em Tupi-Guarani signica “caracol” ou “caramujo” “y”
é rio, daí, “Rio dos Caramujos ou dos Caracóis”. “Ana”
é em homenagem à padroeira da cidade, Senhora de
Sant’Ana, advindo assim a palavra “Uruguaiana”.
VIII Pilcha é a indumentária tradicionalista gaúcha, e
também parte do vestuário marcadamente estereotipa-
do do gaúcho para o resto do Brasil.
IX Festival de música regional que iniciou na década
de 1970 e teve seu auge nos anos 70 e 80 com o lança-
mento de composições e músicos que obtiveram grande
sucesso. Apesar das edições anuais continuarem sendo
realizadas nos anos 2000, o evento não conseguiu atin-
gir o resultado e a visibilidade das décadas anteriores.
Nos últimos anos, depois de um intervalo de três anos
sem acontecer, algumas edições de menor porte o ree-
ditaram a partir de 2013.
X Ou “gauchos”, sem acento, no grifo na língua espanhola.
XI Quesitos de competição do carnaval carioca: comis-
são de frente, casal de mestre sala e porta bandeira,
bateria, alegorias e adereços, fantasia, enredo, samba
enredo, harmonia, evolução. O quesito “conjunto” foi
descartado do julgamento no carnaval de 2015.
XII “O mundo do samba é expressão corrente que cir-
cunscreve um conjunto de manifestações sociais e cul-
turais que emergem nos contextos em que o samba
predomina como forma de expressão musical, rítmica e
coreográca” (LEOPOLDI, 1978, p. 34).
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Bananas e abacaxis nos “quintais” do carnaval carioca – impressões
etnográcas sobre a produção de um desle de escola de samba da
Estrada Intendente Magalhães
Piñas y bananas en los “patios” del carnaval carioca – impresiones
etnográcas acerca de la producción de un desle de escuela de samba
de la ruta Intendente Magalhães
Bananas and pineapples in Rio’s carnival “backyards”: ethnographic
views on the production of a samba school parade at Intendente
Magalhães Avenue
Leonardo Augusto Bora
I
Resumo:
O artigo lança questionamentos sobre os processos de criação, gestão
e confecção dos desles das escolas de samba apresentados na
Estrada Intendente Magalhães, Zona Norte do Rio de Janeiro. Longe
do megaevento anualmente realizado na “Passarela do Samba” (o
Sambódromo da Avenida Marquês de Sapucaí, na região central da
cidade, onde deslaram, em 2016, 26 escolas 14 no Grupo de Acesso
A e 12 no Grupo Especial), o dito “carnaval do povo” reúne cerca de 60
agremiações, fato que desperta um paradoxo: apesar de concentrar
o maior número de escolas de samba, os desles da Intendente
permanecem invisibilizados e inseridos em uma lógica produtiva
bastante diferente daquela observada nos arredores da Sapucaí (o
que é interessante do ponto de vista etnográco). A partir do relato
de um caso especíco, o carnaval apresentado em 2015 pelo Grêmio
Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Sossego, do Largo da
Batalha, Niterói, pretende-se problematizar tal universo, redirecionando
as luzes dos estudos culturais para os “quintais” do carnaval carioca.
Palavras chave:
Carnaval carioca
Escolas de samba
Estrada Intendente
Magalhães
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El artículo tiene preguntas sobre el proceso de la creación, gestión
y producción de los desles de las escuelas de samba de la ruta
Intendente Magalhães, Zona Norte de Rio de Janeiro. Lejos del
mega evento que se celebra anualmente en la “Pasarela de Samba”
(el Sambódromo de la Avenida Marqués de Sapucaí, en el centro de
la ciudad, donde deslaron, en 2016, 26 escuelas - 14 en el Grupo
de Acceso A y 12 en el Grupo Especial) el dijo “carnaval del pueblo”
reúne a alrededor de 60 escuelas, un hecho que suscita una paradoja:
a pesar de concentrar el mayor número de escuelas de samba, los
desles de la ruta Intendente Magalhães permanecen invisibles y
dentro de una lógica de producción muy diferente de la observada en
las proximidades de Sapucai (lo cual es interesante bajo el aspecto
etnográco). A partir de la descripción de un caso especíco, el
carnaval que fue presentado en el año 2015 por el Gremio Recreativo
Escuela de Samba Académico Sossego, del Largo da Batalha, Niteroi,
tenemos la intención de discutir tal universo y redireccionar la luz de
los estudios culturales para los “patios traseros” del carnaval de Rio.
Abstract:
The article takes questions about the creation process, management
and production of the parades presented by the samba schools in
Intendente Magalhaes Avenue, North Zone of Rio de Janeiro. Far
away from the great event that is annually made in “Samba Strip” (the
Sambadrome - Marques de Sapucai Avenue, in the downtown area,
where paraded, in 2016, 26 schools - 14 in the Access Group A and
12 in the Special Group), occure the “carnival of the people”, brings
together about 60 associations, a fact that awakes a paradox: despite
concentrate the largest number of samba schools, the carnival of the
Intendente Magalhães Avenue remains invisible and placed in a very
different productive logic in spite of that observed in the vicinity of
Sapucai (which is interesting from the ethnographic point of view).
From the report of a specic case, the carnival from 2015 presented
by Gremio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Sossego,
from Largo da Batalha neighborhood, Niteroi, we intended to discuss
about that universe, redirecting the light of cultural studies to the
“backyards” of Rio’s carnival.
Palabras clave:
Carnaval carioca
Escuelas de samba
Calle Intendente Magalhães
Keywords:
Rio’s carnival
Samba schools
Intendente Magalhães
Avenue
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Bananas e abacaxis nos “quintais”
do carnaval carioca – impressões
etnográcas sobre a produção de um
desle de escola de samba da Estrada
Intendente Magalhães
I - Introdução
A tela “Carnaval em Madureira”,
de Tarsila do Amaral, instiga a curiosida-
de devido à presença de uma torre Ei-
ffel estilizada em meio aos barracos da
paisagem suburbana – uma “liberdade
criativa” da artista, recém-chegada da
França, ou, o que é mais provável, uma
referência direta à decoração de um co-
reto que levou para os festejos daquela
localidade o símbolo maior da “Cidade
Luz”?
II
Datado de 1924, o quadro expres-
sa o mergulho da intelectualidade brasi-
leira de então, primeiras décadas do -
culo XX, em um universo cultural distinto:
os bairros do chamado “Sertão Carioca”,
situados nas mais afastadas (em rela-
ção às Zonas Sul e central) regiões da
Zona Norte da cidade – que já tinham em
Madureira um coração pulsante. Quase
um século depois, o bairro permanece
enquanto ponto central para se pensar o
mapeamento da cultura popular urbana
do município, especialmente pela pre-
sença de terreiros de Umbanda e Can-
domblé (que transitam pelo Mercadão,
espaço sincrético) e demais manifesta-
ções ligadas à ancestralidade afro-brasi-
leira: a Feira das Yabás, os bailes Char-
me do Viaduto Negrão de Lima, o Jongo
da Serrinha, os blocos carnavalescos e
as escolas de samba com destaque
absoluto para Portela e Império Serrano,
duas das “Quatro Grandes” (modo como
historicamente é nomeado o quarteto for-
mado pelas escolas mencionadas mais a
Estação Primeira de Mangueira e o Aca-
dêmicos do Salgueiro, agremiações da
grande Tijuca). Pois bem: é para o inters-
tício existente entre Madureira, Campi-
nho e Oswaldo Cruz que os olhares des-
te trabalho serão direcionados menos
com a pretensão absolutizante de encer-
rar respostas e mais com a curiosidade
acadêmica de levantar provocações.
As lentes investigativas enfoca-
rão os arredores da Estrada Intendente
Magalhães, lugar onde são realizados,
desde 2002 (antes, as apresentações
ocorriam na Avenida Rio Branco), al-
guns dos desfiles de escolas de samba
da cidade do Rio de Janeiro
III
, quais se-
jam, os dos chamados “grupos menores”
- ainda que mais inflados, uma significa-
tiva contradição. Em 2004, 22 agremia-
ções se apresentaram na localidade; em
2013, com o encerramento dos desfiles
do Grupo B (“terceira divisão”) na Mar-
quês de Sapucaí (houve um inchaço do
Grupo de Acesso A, renomeado Série
A, que passou a se apresentar em dois
dias, sexta-feira e sábado de carnaval,
antecedendo os desfiles do Grupo Es-
pecial, fixados décadas no domingo
e na segunda-feira de Momo), o número
de escolas desfilantes na Intendente foi
a 37; em 2016, somadas as escolas das
Séries B, C, D e E, o montante de agre-
miações chegou a 58, sendo que uma
delas, Escola de Samba Cultural Zam-
bear, não compareceu ao desfile.
Os números elencados revelam
que se trata de um evento bastante plu-
ral, tão importante para a compreensão
das tramas socioculturais que enredam
o carnaval carioca quanto as reexões
acerca dos blocos e dos desles das
“grandes” escolas de samba, concentra-
dos na Marquês de Sapucaí. É de causar
estranhamento, portanto, a constatação
de que, passados quase quinze anos da
completa transferência dos desles da
Rio Branco para o asfalto do subúrbio, a
sequência de desles da Estrada Inten-
dente Magalhães continua à margem dos
estudos acadêmicos e da mídia carnava-
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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lesca, padecendo da chamada “invisibili-
dade” termo utilizado à exaustão pelos
agentes envolvidos. Raras são as maté-
rias jornalísticas de fôlego dedicadas ao
evento, e ainda mais raros os trabalhos
universitários
IV
. Observando tal lacuna,
o que se pretende aqui é debater alguns
questionamentos sobre a cadeia produti-
va desses “desles desconhecidos”.
A m de verticalizar a leitura e
exercitar em maior profundidade os pres-
supostos etnográcos, será brevemente
relatada a experiência de trabalho que
resultou no desle de 2015 da Escola de
Samba Acadêmicos do Sossego, do Lar-
go da Batalha, bairro da Região Adminis-
trativa de Pendotiba, Niterói. Trata-se de
um imediato caso de “hibridismo geográ-
co”: uma agremiação não sediada na ci-
dade do Rio de Janeiro que participa dos
desles da “Cidade Maravilhosa”, fato
que pode parecer corriqueiro (são inúme-
ras as escolas da Baixada Fluminense
como não pensar no caso Beija-Flor de
Nilópolis? – e ao menos cinco as escolas
da imensa região de São Gonçalo, Niterói
e Maricá que participam dos festejos ca-
riocas), mas que traz no seu bojo um ma-
nancial de conitos e trocas simbólicas.
O exercício do distanciamento e a leitura
crítica da cadeia produtiva dos desles
muito poderão contribuir para uma visão
menos nebulosa do “carnaval do povo”,
tirando-o, momentaneamente, da amar-
gada invisibilidade.
II – “Na Intendente Magalhães se faz
samba também”
A Estrada Intendente Magalhães,
importante via que permeia os bairros
de Madureira, Oswaldo Cruz, Campinho,
Vila Valqueire e Sulacap, é conhecida
por concentrar uma série de lojas de
materiais automotivos tanto que tam-
bém é chamada de “Intendente Autosho-
pping”, como se a própria estrada fosse
um centro comercial a céu aberto. Du-
rante o carnaval, porém, as lojas de ba-
terias, motores, para-brisas e acessórios
perdem o protagonismo para as barra-
quinhas de salgados, doces de tabulei-
ro, cervejas e drinks multicoloridos. Ali,
ao redor das estruturas provisórias de
arquibancadas, cabines e banheiros quí-
micos, ganha contornos o “carnaval do
povo”, cenário mambembe que emoldu-
ra a apresentação de mais de cinquenta
escolas de samba um evento gratuito
que contrasta com o megaevento orga-
nizado no Sambódromo (onde imperam
as catracas, os crachás e as cobiçadas
“credenciais” de acesso à pista, comer-
cializadas ocial ou extraocialmente
– a preços exorbitantes).
Ainda que o carnaval da Intendente
Magalhães esteja inserido no programa
ocial da Riotur, é fato que ele permane-
ce à margem do eixo turístico que movi-
menta as maiores cifras da arrecadação
municipal o “circuito” que engloba as
regiões centrais (onde deslam blocos
tradicionais, como o Bola Preta e o Ca-
cique de Ramos, sem falar nos festejos
albergados pela Marquês de Sapucaí) e
a Zona Sul (o cenário tropical que teste-
munhou o “boom” dos blocos de rua, ao
longo da primeira década do século XXI,
após anos de decadência vinculados a
diferentes fatores, entre eles a violência
urbana). Por mais signicativa que seja a
presença dos grupos de sujos, piranhas
(homens vestidos de mulheres), clóvis e
bate-bolas
V
nos bairros da Zona Norte
do Rio de Janeiro, não é uma surpresa a
ausência de tais manifestações culturais
nos espaços decisórios encabeçados
pela Sebastiana (no caso dos blocos)
e no “perl” (do material de divulgação
às transmissões audiovisuais televi-
sivas e radiofônicas) do internacional-
mente comercializado carnaval do Rio.
A Intendente Magalhães, nesse mesmo
sentido, permanece a ser uma “surpre-
sa” para muitos pesquisadores, especta-
50
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dores, foliões naturais da cidade, o que
dirá para visitantes (não se tem notícia
de qualquer iniciativa vultuosa do Poder
Público ou do empresariado privado no
sentido de dinamizar o turismo carnava-
lesco da região, atraindo investidores).
O descompasso observado transforma o
lugar em uma territorialidade esfumaça-
da, marcada por sucessivos conitos e
negociações – perspectiva interpretativa
desenvolvida por teóricos do carnaval
como Felipe Ferreira e Maria Laura Vi-
veiros de Castro Cavalcanti.
É de Ferreira a ideia de que o car-
naval do Rio de Janeiro é uma festa cons-
truída (sendo o século XIX, mais especi-
camente o “Congresso das Summidades
Carnavalescas”, de 1855, o ponto nevrál-
gico para a compreensão disso
VI
) sobre
um território em disputa não à toa, fala
que em meados da década de 1840 as
“cerca de 30 ruas estreitas limitadas por
morros e áreas alagadas do centro do
Rio de Janeiro” (FERREIRA, 2012, p. 81)
eram vistas, pela imprensa da capital
do Império, como um palco de conitos
carnavalescos, um barril de pólvora à
beira da explosão. Hoje, primeiras déca-
das de século XXI, não mais é vista, nas
páginas jornalísticas destinadas à cober-
tura dos festejos, a oposição terminoló-
gica entre “Pequeno” e “Grande” carna-
vais, por exemplo, mas é fato que o teor
conitivo permanece. A enxurrada de re-
portagens anuais sobre brigas e prisões
decorrentes do “xixi na rua” ou da “des-
truição de canteiros”, em especial nas or-
las de Ipanema e Leblon, comprova o ex-
posto. Também não são raras as notícias
de conitos entre grupos de bate-bolas,
na Zona Norte da cidade notícias es-
tas que, no mais das vezes, contribuem
para uma espécie de “criminalização pri-
mária” de uma prática cultural das mais
complexas e interessantes. Na visão de
Felipe Ferreira, dada esta longa duração
histórica, não se pode pensar o carnaval
do Rio sem que se atente para o senso
de “disputa espacial”. Uma disputa pela
hegemonia: ainda no Brasil-colônia, os
grupos de brincantes
que conseguiam se impor, seja por
que razão fosse, adquiriam prestí-
gio e ampliavam sua capacidade de
organização [...]. Esse poder carna-
valesco também iria se traduzir na
possibilidade do grupo determinar o
trajeto que seguiria, certamente pe-
las ruas mais importantes da cida-
de. [...] O próprio público que acorria
ao centro da cidade para assistir à
passagem das sociedades passava
a privilegiar as ruas por onde des-
lariam os grupos mais importantes
e, portanto, mais aguardados, es-
tabelecendo uma nova disputa pelo
espaço e uma nova valorização dos
lugares festivos. Começava a se es-
tabelecer uma espécie de hierarquia
espacial festiva, marcada pela de-
nição dos lugares carnavalescos [...]
(FERREIRA, 2012, p. 82).
Não é difícil compreender que tal
“hierarquização espacial festiva” per-
manece viva e, no caso dos desfiles
das escolas de samba, encontra na
Avenida Marquês de Sapucaí, onde o
equipamento Sambódromo cintila em
flashes e luzes, e na Estrada Intenden-
te Magalhães, onde a iluminação é um
dos principais desafios enfrentados pe-
los carnavalescos, uma quase oposição
binária. Na região de Madureira, as “es-
colas pequenas”; no Centro, “as escolas
grandes”. Curioso é o fato de que não
mais existe uma “zona de transição”,
espécie de “purgatório carnavalesco”
para as escolas da Série A que comete-
rem o “pecado” do rebaixamento: se até
2012 o desfile do Grupo B ocorria na
Sapucaí, na “terça-feira gorda”, desde
então o Sambódromo alberga apenas
as duas primeiras divisões (Especial e
Acesso A), inexistindo uma rede de se-
gurança para salvar uma “escola gran-
51
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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de” de uma eventual queda – fato ocor-
rido em 2016, quando a popularíssima
Caprichosos de Pilares foi rebaixada
para o carnaval da Intendente e reacen-
deu discussões sobre os inúmeros por-
quês de não se utilizar a Passarela do
Samba para o desfile de ao menos mais
uma subdivisão (o Grupo B), o que não
apenas geraria mais receita, do ponto
de vista turístico-econômico, como ga-
rantiria uma transição mais suave entre
o terceiro e o segundo grupos.
A queda da Caprichosos de Pila-
res revelou, para parte da imprensa car-
navalesca contemporânea, que não é
exagerada a armação de que existe um
abismo econômico-estrutural entre a In-
tendente Magalhães e a Marquês de Sa-
pucaí. Os números falam por si: de acor-
do com o regulamento ocial da LIESB
(Liga Independente das Escolas de Sam-
ba da Série B) para o carnaval de 2016,
as escolas de samba do grupo poderiam
apresentar no máximo 01 carro alegórico
(com até 04 metros de altura e 07 metros
de largura, sendo proibido o acoplamento
de chassis) e 02 tripés ou quadripés (es-
truturas sobre rodas com no máximo 03
metros de diâmetro e 04 metros de altu-
ra, podendo apresentar, cada um, apenas
uma gura viva). No Grupo de Acesso A,
de acordo com o regulamento da LIERJ
(Liga das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro) para o mesmo carnaval de 2016,
cada escola de samba poderia apresentar
o máximo de 04 carros alegóricos (com a
possibilidade de 01 acoplamento, o que,
na prática, totalizava o máximo de 05 car-
ros alegóricos), sem limitação do número
de pessoas em cima e sem a imposição
de números fechados para os limites de
altura e largura (na prática, a largura das
alegorias oscilava entre 10 e 12 metros,
uma vez que a largura da Marquês de
Sapucaí é de 14 metros; a altura poderia
atingir os impressionantes 11,5 metros, a
depender do uso de engrenagens manu-
ais ou hidráulicas - talhas e elevadores
que fazem subir andares inteiros acima
da chamada “estrutura xa” de cada car-
ro alegórico - e da área de concentração-
VII
de cada escola - as agremiações que
se concentram na região do “Balança”,
em direção à torre da Central do Brasil,
precisam passar, na curva de acesso à
Passarela do Samba, por debaixo do Via-
duto São Sebastião, o que limita, desde
a criação do Sambódromo, as estruturas
xas das alegorias que por ali transitam
ao máximo de 07 metros de altura).
A fenda abissal permanece quan-
do os números referentes ao corpo de
desfilantes são comparados (e é preciso
levar em conta que se está comparando
apenas o “primeiro grupo” da Intendente
Magalhães com o segundo e “último gru-
po” da Marquês de Sapucaí; se tomadas
para análise as Séries C, D e E, o cho-
que é mais intenso): as escolas de sam-
ba da Série B, em 2016, deveriam des-
filar com no mínimo 400 componentes;
as escolas de samba da Série A, com o
mínimo de 1200 componentes (três ve-
zes mais, portanto). O número mínimo
de ritmistas exigido para as baterias da
Série B, de acordo com a LIESB, foi fi-
xado em 80; o número mínimo de ritmis-
tas exigido para as baterias da Série A,
de acordo com a LIERJ, 130.
Os dados numéricos evidenciam
algo lógico: é fato que qualquer escola
de samba da Série A que se rebaixa-
da para a Série B tem de passar por um
processo de encolhimento estrutural do
desle (do contingente humano às cons-
truções mecânicas), o que pode ou não
acarretar em um esvaziamento do corpo
simbólico da agremiação para além dos
minutos de desle (no máximo 40 minu-
tos, na Série B, e no máximo 55 minutos,
na Série A). Devido à cadeia de diminui-
ções, torna-se difícil prever se uma esco-
la rebaixada terá fôlego (e dinheiro a
subvenção total, somados os montantes
oferecidos pela Prefeitura da cidade e as
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fatias decorrentes da venda de ingressos,
da comercialização de CD’s e DVD’s, da
transmissão televisiva da Rede Globo,
entre outras fontes legais de receita, for-
necida para cada escola de samba do
Grupo de Acesso A, em 2016, foi de R$
1,2 milhões; para as escolas da Série B,
na Intendente Magalhães, sem transmis-
são televisiva, sem ingressos, sem CD’s
ou DVD’s, R$ 140 mil)
VIII
para retornar ao
grupo de origem. Quem não transita pe-
los corredores carnavalescos pode supor
o oposto: anal, uma escola oriunda da
Sapucaí não “desce” para a Intendente
Magalhães com mais estrutura, experi-
ência e dinheiro acumulado? Na prática,
isso se revela uma falácia: poucas, aliás,
raras, são as escolas com o “caixa” em
dia. No geral, imperam as dívidas colos-
sais e as “cartas de crédito” uma espiral
de endividamentos que acarreta, entre
outros graves problemas, a “cultura do
calote”
IX
e o apreço pelos “contratos de
boca”, sem papéis assinados nem ga-
rantias jurídicas
X
. Além dos problemas -
nanceiros, a experiência prática também
revela que é comum o sentimento de
“apequenamento”: as escolas, depois de
rebaixadas, tendem a se ver diminuídas
enquanto corpos sociais que são, e per-
dem, consequentemente, parte da força
humana (a chamada “garra”) empreendi-
da em outros carnavais.
Por essas e outras, as poucas
reportagens jornalísticas dedicadas a
apresentar ao público o universo carna-
valesco da Estrada Intendente Maga-
lhães costumam enfocar as diculdades
nanceiras. Via de regra, não se olha
para o “carnaval do subúrbio” enquanto
“m”, mas tão somente enquanto “meio”:
o meio de acesso à Marquês de Sapu-
caí, o que reforça as discrepâncias. Mais
do que um “carnaval alternativo/criativo”,
apregoa-se a ideia de um “carnaval de
diculdades”. Foi o que aconteceu em
fevereiro de 2015, quando o programa
Prossão Repórter, da TV Globo, apre-
sentou, na noite de terça-feira de car-
naval, 17 de fevereiro, “duas realidades
opostas”: os preparativos e os desles
das escolas de samba Portela, do Grupo
Especial (Marquês de Sapucaí), e Chatu-
ba de Mesquita, da “quinta divisão” (Gru-
po de Acesso D, Intendente Magalhães).
Entre outras comparações, os repórteres
Thiago Jock e Danielle Zampollo, sob
orientação de Caco Barcellos, apresenta-
ram a informação de que “as escolas do
Grupo Especial recebem um apoio de R$
5 milhões da Prefeitura do Rio”, enquanto
a agremiação da cidade de Mesquita, na
gura da vice-presidente Tatiane Pereira,
precisava “se humilhar” e pedir R$ 30 mil
para o prefeito – pedido que não foi aten-
dido, levando a dirigente às lágrimas. As
“feijoadas” (eventos socioculturais típi-
cos das agremiações carnavalescas) de
ambas as escolas também foram objeto
de comparação: no preparo da feijoada
portelense, mais de 20 cozinheiras e 720
quilos de carne; para a feijoada da Cha-
tuba de Mesquita, pedidos de doação nos
arredores da quadra de ensaios e a vi-
bração quando da “conquista” de 2 quilos
de feijão preto, que seriam preparados,
junto aos demais ingredientes, por 04 co-
zinheiras, em “06 panelinhas”. Na feijoa-
da da Portela, mais de 6 mil pessoas e
lucro não revelado; na feijoada da Chatu-
ba, público discreto e lucro de R$ 700.
O contraste igualmente é a tônica
do artigo “Olha a desigualdade aí, gen-
te!”, de Aydano André Motta, para o Pro-
jeto Colabora. Mais do que enfocar as
trocas simbólicas e nanceiras que ocor-
rem dentro e ao redor das quadras das
agremiações, o jornalista enfatizou as re-
lações conitivas existentes no chamado
Barracão do Samba, um galpão bastante
grande, localizado à Rua Carlos Xavier,
603, na zona nebulosa entre os bairros
de Madureira, Campinho e Oswaldo Cruz
(segundo os dados da LIESB, o barra-
cão se localiza em Campinho; de acordo
com o jornalista, em Oswaldo Cruz). O
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espaço, sabidamente administrado pelo
ex-policial Marcos Falcon
XI
(tanto que,
nas imediações, é mais conhecido por
“Barracão do Falcon”, lugar situado em
frente ao “Campo do Falcon”), reuniu,
durante os preparativos para o carnaval
de 2016, as alegorias de 29 das esco-
las de samba deslantes na Intendente
Magalhães, podendo ser compreendido
como um “condomínio”. Trata-se de um
espaço híbrido (e conitivo) por exce-
lência: além de “fábrica” de alegorias e
adereços, funciona enquanto igreja neo-
pentecostal (o Ministério Selando a Paz,
cujos cultos são ouvidos pelos trabalha-
dores da “festa profana”) e ponto de reu-
niões comunitárias, atraindo longas las
de moradores das redondezas. As esco-
las ali albergadas pagam aluguel anual
(R$ 5.500, em 2016) e dispõem de um
certo conforto (banheiros, cozinha, ilu-
minação, teto com poucas goteiras, um
faxineiro) e de uma certa segurança (as
presenças de um bombeiro civil e de um
guardião permanente).
Na visão de Aydano André Motta,
o Barracão do Samba é um complexo
cultural dos mais inusuais e criativos: “a
peculiar sustentabilidade também dita o
ritmo de trabalho no barracão de Oswal-
do Cruz. Praticamente nada vai para o
lixo e muito material descartado pelas
grandes da Cidade do Samba ganha vida
no sufoco das últimas divisões” (MOTTA,
2016). O autor enfatiza a ideia de que
uma conexão direta entre os galpões da
Cidade do Samba
XII
(o complexo inaugu-
rado em 2006, na Zona Portuária, onde
as 12 agremiações do Grupo Especial
confeccionam as suas alegorias e fanta-
sias em barracões de 7 mil metros qua-
drados e 19 metros de altura, com direito
a estruturas de guindastes, alarmes an-
tichamas
XIII
, câmeras de segurança, re-
feitórios, banheiros espaçosos, inúmeras
salas de criação, reunião e administração
equipadas com “luxos” como aparelhos
de televisão e ar-condicionado, almoxari-
fados, etc.) e o “primo pobre”, o barracão
coletivo nas franjas da Intendente Ma-
galhães. O uxo de peças escultóricas e
fantasias é intenso: caminhões, dia após
dia, levam e trazem o “lixo” dos carnavais
produzidos na Cidade do Samba, o que
torna uma tarde de observação em tal es-
paço suburbano, o que dirá na semana
que antecede o carnaval, qualquer coisa
que não monótona. Trata-se de uma eno-
velada rede de trocas econômicas e sim-
bólicas: devido ao alto custo de materiais
como blocos de isopor e galões de tin-
ta, e principalmente devido ao alto custo
da mão-de-obra qualicada, as escolas
que deslam na Intendente Magalhães
se veem na dependência das doações e,
quando o dinheiro sobra, da compra de
fantasias, esculturas e adereços (às vezes
alegorias inteiras) refutados pelas coir-
mãs que se apresentam na Sapucaí. As
inuências políticas são notáveis: esco-
las das séries B, C, D e E geogracamen-
te situadas nas mesmas regiões contro-
ladas (no caso dos bicheiros, tracantes
e milicianos) por dirigentes e patronos
de escolas do Grupo Especial tendem a
receber auxílio das “vizinhas” abonadas,
uma vez que não oferecem concorrência
direta. Comenta-se que, em não havendo
a “ameaça” de uma escola como a Boca
de Siri (em 2016, no Grupo de Acesso C),
desbancar a Imperatriz Leopoldinense
(oito vezes campeã do Grupo Especial,
sediada no mesmo bairro de Ramos em
que a Boca surgiu enquanto bloco e virou
escola de samba, em 2011), é fato que o
famoso bicheiro Luizinho Drummond, pa-
trono da Imperatriz mais de 35 anos,
não hesita em prestar auxílio, cedendo
esculturas e materiais em geral, à outra
escola da localidade. Os laços de inuên-
cia de Drummond, na extensa territoriali-
dade que engloba o Piscinão de Ramos e
o Complexo do Alemão, além de bairros
como Penha, Olaria e Bonsucesso, são
fortalecidos com o fortalecimento da Boca
de Siri
XIV
comprovação da tese de Maria
Laura Cavalcanti de que “as grandes es-
54
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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colas de samba estabeleceram redes de
reciprocidade que atravessam diferentes
bairros e diferentes grupos sociais” (CA-
VALCANTI, 1994, p. 75). É por isso que o
único carro alegórico confeccionado pela
jovem escola no Barracão do Samba,
para o desle de 2016, ostentava inúme-
ras esculturas de animais africanos que
em 2015 haviam sido confeccionadas na
Cidade do Samba, para o desle da Im-
peratriz Leopoldinense (em 2015, a Im-
peratriz cantou a África por meio do en-
redo “Axé Nkenda”; em 2016, a Boca de
Siri cantou a África por meio do enredo
“Do Reino das Yabás... As Candaces e a
riqueza cultural do Brasil”).
Não escaparam dos ouvidos de
Motta os dramas referentes aos endivi-
damentos. Quando trata do assunto, o
autor aproveita para apresentar ao lei-
tor outras características marcantes do
trabalho desenvolvido no Barracão do
Samba: a multifuncionalidade dos pros-
sionais e a capacidade de transitar por
diferentes agremiações:
Dívida é das palavras mais repetidas
entre as alegorias em Oswaldo Cruz.
Por isso, precisa paciência para re-
ceber o salário, resigna-se o artista
plástico Paulo Campos, que se divi-
de no trabalho em dez escolas fe-
liz da vida. “Aqui, reside a verdadeira
alma carnavalesca. (na Cidade do
Samba), tem almoxarifado, compras,
estrutura. O nosso é lixão, tudo reci-
clado”, descreve. “Tem de ser artista
mesmo!” (MOTTA, 2016).
O caráter de “abnegação” dos ar-
tistas que se empenham em construir os
desles do carnaval de Madureira é igual-
mente destacado no artigo “Na Intenden-
te Magalhães se faz samba também!”, do
professor de História e blogueiro (e jura-
do dos desles do Rio de Janeiro e de
Porto Alegre) Thiago Lacerda. Segundo
ele, “na Intendente Magalhães o carna-
val é feito com base em amor, empenho
e esperança. O dinheiro é pouco e por
isso o lema é trabalhar com o que se tem
e com o que se pode. A criatividade é a
alma do negócio.” (LACERDA, 2013). A
seleção lexical do autor, com palavras
como “amor”, “empenho” e “esperan-
ça”, ajuda a construir uma visão positiva
(e subjetiva) do carnaval da Intendente
Magalhães uma espécie de “protesto
afetivo”, na tentativa de valorizar o even-
to por meio da sentimentalidade. O teor
do artigo de Lacerda, nesse sentido,
é mais ameno que o de Aydano André
Motta, que, apesar de valorizar o traba-
lho dos agentes em trânsito no Barracão
do Samba, lança mão de uma cartela de
pequenas (e ácidas, na proporção inver-
sa) ironias e provocações. Resta a ideia
de que, com mais ou menos açúcar, o
preparo de um desle carnavalesco a
ser apresentado na Estrada Intendente
Magalhães é uma iguaria de sabor não-
-padronizado, não faltando indigestões e
notas adstringentes.
III – Bananada de abacaxi no Mercado
Popular
Trabalhei como carnavalesco de
escolas de samba que se apresentaram
na Estrada Intendente Magalhães no
período de 2012 a 2016. Ao longo dos
quatro carnavais atravessados
XV
(todos
assinados em parceria com demais ar-
tistas), não apenas conheci inúmeros
territórios e agentes à margem do poder
estatal como aprendi uma linguagem
própria – a “linguagem carnavalesca”,
dos nomes dos materiais específicos
do setor às expressões de línguas afri-
canas utilizadas para ocultar segredos.
Aos poucos, pude observar na prática
algumas colocações de teóricos como
Maria Laura Cavalcanti e Nilton Santos,
no que tange à atuação do profissional
“carnavalesco”. Os dramas relaciona-
dos ao pagamento dos salários, apre-
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sentados por Cavalcanti, foram sen-
tidos na pele (e no bolso) no decorrer
de todas as experiências seja pelos
valores irrisórios negociados, seja pelos
atrasos, “beiços” e “calotes”. Da mesma
forma, compreendi, ainda no ano de es-
treia como carnavalesco, 2012, quando
ajudava a preparar o desfile de 2013 da
Mocidade Unida do Santa Marta
XVI
, en-
tão no Grupo de Acesso D, o que Nilton
Santos quer dizer ao afirmar que não se
pode enxergar a “profissão carnavales-
co” como algo “homogêneo e estável”
(SANTOS, 2009, p. 76). A ausência de
regulamentações e demais exigências
profissionais específicas eram aspectos
notáveis na comissão carnavalesca da
qual eu fazia parte, marcada pela hete-
rogeneidade profissional (cada um dos
07 membros reunidos sob o salário co-
letivo de R$ 5 mil ao todo o que tota-
lizou R$ 714 reais individuais, ao final
do processo possuía uma “profissão
oficial” para além do fazer carnavalesco,
e nenhuma profissão se repetia) e pela
instabilidade financeira (o valor acorda-
do foi pago somente depois do desfile e
não houve qualquer contrato assinado).
Diz o antropólogo:
O lugar do carnavalesco como pro-
ssional estabelecido e disputado
por seus inventos artísticos deve ser
necessariamente contraposto a seu
outro lado, o da precariedade, e, por
vezes, da descartabilidade diante da
falta de um contrato de trabalho for-
mal respeitável e respeitado (SAN-
TOS, 2009, p. 75).
Ainda sobre a precarização das
relações trabalhistas no universo carna-
valesco do Rio de Janeiro, o jornalista
Renan Rodrigues, do jornal O Globo, es-
creveu o seguinte:
Em parte das Escolas de Samba,
mesmo entre as integrantes do Grupo
Especial, relatos de falta de paga-
mento de valores acordados para o de-
senvolvimento de tarefas no barracão.
O problema atinge até mesmo escolas
que, antes da abertura dos envelopes
com as notas na quarta-feira de cin-
zas, eram cotadas ao título neste car-
naval (2016). O desrespeito, é claro, é
mais corriqueiro com prossionais de
menor nome. (RODRIGUES, 2016).
A denúncia do jornalista mencio-
na os “prossionais de menor nome”, ou
seja, aquelas que ainda não passaram
por “escolas grandes” do Grupo Espe-
cial e, consecutivamente, não tiveram as
suas assinaturas xadas no “panteão”
da Marquês de Sapucaí. Na Intendente
Magalhães, a situação dos trabalhadores
é ainda mais delicada e o Barracão do
Samba, o lugar que centraliza as ativida-
des criativas nos arredores do palco dos
desles de Madureira, adquire o caráter
de centro nervoso de tais complicações
(mesmo, eis o dado interessante, entre
aquelas que são consideradas as mais
estruturadas escolas do cenário).
Em meados de 2014, atendendo
a um convite do carnavalesco Alexan-
dre Louzada (que então estava à frente
da escola de samba Portela), eu e Ga-
briel Haddad nos desligamos da Moci-
dade Unida do Santa Marta
XVII
e migra-
mos para o Grêmio Recreativo Escola
de Samba Acadêmicos do Sossego, de
Niterói. A “azul e branca do Largo da Ba-
talha”, fundada em 10 de novembro de
1969 e tendo a lira grega como símbolo,
foi inúmeras vezes campeã do carnaval
niteroiense e passou a deslar na cidade
do Rio de Janeiro em 1997. Em 2014,
a agremiação se preparava para deslar
no Grupo de Acesso B.
Ainda nas primeiras conversas tra-
vadas com a diretoria da entidade, nas -
guras do então presidente Gustavo Faria
Gomes e do ex-presidente e braço polí-
tico José Adriano Vale, apelidado Folha,
56
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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percebemos que as questões nancei-
ras também eram o calcanhar de Aquiles
da escola (na Mocidade Unida do Santa
Marta, durante os preparativos para o
carnaval de 2014, havíamos vivenciado
uma sucessão de crises acarretadas pe-
los rombos nanceiros consequência
imediata da ruptura de certos contratos
de locação da quadra de ensaios da es-
cola). Gustavo não apenas “chorou” a
diminuição do valor do “contrato de tra-
balho” (que, nos termos legais, com rma
registrada em cartório, nunca existiu) que
propusemos (nalmente acertado em R$
15 mil o total a ser dividido entre os
dois carnavalescos) como enfatizou uma
obrigatoriedade: o enredo a ser desen-
volvido deveria tratar das relações entre
África e Brasil, uma vez que este havia
sido o pedido da Prefeitura de Niterói às
03 escolas do município que deslavam
no carnaval carioca (Unidos do Viradou-
ro, então no Grupo Especial; Acadêmicos
do Cubango, na Série A; e Acadêmicos
do Sossego, na Série B). O objetivo da
Prefeitura era promover o projeto “En-
contros com a África”, previsto para 2015
(mas que acabou se materializando ape-
nas em 2016).
Não se podia negar o pedido da
Prefeitura por uma questão objetiva: ele
condicionava o recebimento da subven-
ção municipal, um trunfo para a trinca
de escolas, que, além da subvenção
anual concedida pela Riotur, gozava do
privilégio de ter uma outra fonte de ren-
da originária do Poder Público. O amplo
conhecimento da dupla subvenção fa-
zia com que o Acadêmicos do Sossego
fosse uma das escolas mais bem vistas
do carnaval da Intendente Magalhães:
com fama de “boa pagadora”, sustenta-
va positivos comentários de bastidores,
tanto que inúmeros artistas sondavam
a vaga de carnavalesco da escola vi-
venciamos, por conta disso, um quadro
de permanente ameaça (por mais que
confiássemos no acordo apalavrado
com a diretoria, sabíamos que a ausên-
cia de um contrato formal nos tornava
bastante vulneráveis diante de propos-
tas de trabalho a menores valores ou
até valor nenhum o problema direto
da inexistência de um piso salarial, con-
forme o registrado por Maria Laura Ca-
valcanti e Nilton Santos).
O maior desao enfrentado pela
escola era a ausência de quadra. “Qua-
dra” é o nome como é conhecida a sede
de uma escola de samba, lugar onde são
realizadas reuniões, atividades festivas
(aniversários, feijoadas, shows, etc.) e,
é claro, as disputas de samba-enredo
(sequências de apresentações, com jul-
gamentos e eliminações semanais, dos
sambas que pleiteiam a preferência da es-
cola para embalar a apresentação ocial)
e as maratonas de ensaios que culminam
no desle. Por questões contratuais que
nunca nos foram totalmente reveladas - a
noção de “segredo” (NATAL, 2014), muito
presente entre as escolas de samba - o
Acadêmicos do Sossego se viu despeja-
do da quadra localizada na Rua Jornalista
Sílvia Thomé, no ano de 2009. Na ausên-
cia de uma sede própria, passou a utilizar
como local de ensaios (depois de ampla
negociação com a Prefeitura) a estrutura
provisória do Mercado Popular do Largo
da Batalha, uma tenda situada na Ave-
nida Rui Barbosa. Sem iluminação ade-
quada ou sistema de som, o espaço do
Mercado se convertia em território híbri-
do: nas manhãs de sábados e domingos,
albergava produtores e comerciantes de
pescados e hortifrutigranjeiros; quando
caía a noite, recebia a escola de samba
e demais manifestações circundantes do
universo carnavalesco terminados os
ensaios, por vezes ocorriam “descidas de
Santos” (incorporações de entidades de
Umbanda e Candomblé).
Problemas derivados da “condição
degredada” eram muitos, sobrando episó-
dios conitivos. As relações entre feirantes
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e sambistas não eram amistosas, o que
caracterizava um quadro de disputa es-
pacial. A diretoria da agremiação acusava
os comerciantes de sabotagem: suposta-
mente atrasavam o desmonte das bancas
e deixavam o local sujo para prejudicar
a organização do Sossego. Além disso,
a escola se via sem um espaço xo para
guardar objetos: materiais de outros car-
navais, mesas, cadeiras, caixas de som,
frigobares, bandeiras e instrumentos mu-
sicais, para car em poucos exemplos. O
principal empecilho, no entanto, era a im-
possibilidade de cobrar ingressos (um pro-
blema de arrecadação): devido à ausência
de “paredes”, além da precariedade das
instalações, não havia como limitar a en-
trada das pessoas na tenda. Refém dos
valores comercializados no bar, a escola
não obtinha lucro: os ensaios custavam
caro, dada a logística de transporte de
coisas (todos os instrumentos da bateria e
todas as mesas e cadeiras, em especial),
sem falar nos cachês dos músicos.
Um tanto impressionados com a
complexidade das relações entre sam-
bistas e feirantes, eu e Gabriel Haddad
optamos por pensar um enredo que, de
alguma forma, falasse do hibridismo
que caracterizava o momento da escola
uma espécie de denúncia em tom de
brincadeira, ao sabor carnavalizante.
Encontramos um caminho narrativo na
obra “Made in Africa”, de Luís da Câma-
ra Cascudo. Nesse livro, os capítulos
“O mais popular africanismo do Brasil”,
sobre a palavra “banana”, e “Guerras do
ananás e do abacaxi”, sobre a etimolo-
gia do fruto de mesmo nome, sugerem
que o tráfico negreiro e os movimentos
diaspóricos transatlânticos levaram o
abacaxi brasileiro para a África, onde
se popularizou (especialmente na re-
gião entre Angola e Senegal), e trou-
xeram a banana africana para o Bra-
sil, onde foi prontamente incorporada
à dieta alimentar da população e, mais
do que isso, tornou-se um símbolo de
brasilidade – para o bem ou para o mal,
dados os estereótipos.
As trocas (comerciais e simbó-
licas) de bananas e abacaxis se de-
senharam, ao nosso gosto, enquanto
conjunto de possibilidades: estéticas,
uma vez que poderíamos fugir dos cli-
chês da África de savana e mergulhar
no visual tropicalista afro-brasileiro; fi-
nanceiras, posto que sabíamos que
a escola receberia, graças às negocia-
ções realizadas com diretores em co-
mum, doações de grandes esculturas
da Unidos de Vila Isabel (entre elas,
09 bananas e 01 índio); e mesmo te-
máticas em sentido estrito: atendería-
mos ao pedido da Prefeitura, falaría-
mos das relações entre África e Brasil
a partir de um viés inusitado e ainda
não explorado no carnaval, dialogarí-
amos com a geografia da cidade-sede
(Niterói possui o Morro do Abacaxi e a
Enseada do Bananal) e, o que julgáva-
mos o mais importante, brincaríamos
com a condição híbrida da escola, que
se via obrigada a ensaiar em uma feira
lugar em que eram comercializados,
todos os dias, bananas e abacaxis.
Abraçando de vez a brincadeira, de-
mos à narrativa um título intencional-
mente longo: “Banananás: o encontro
da Rainha Mariola Banana Pacova do
Congo e d’Angola com o Rei Amazôni-
co Ananás Ibá-Caxi, da corte dos aba-
caxis de Serpa”.
Se o enredo foi bem recebido pelos
representantes da Prefeitura da cidade, o
mesmo não se pode dizer com relação a
uma parte signicativa dos componentes
da escola. Em linhas gerais, esperavam a
“África convencional”, que julgavam “mais
apropriada” para o universo da Intenden-
te Magalhães. Isso se reetiu na “safra”
dos sambas concorrentes: não houve um
destaque positivo, o que obrigou a direto-
ria a propor a junção de duas obras (uma
leve e jocosa, impregnada do espírito
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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das marchinhas, e outra mais descritiva,
considerada “pesada”). O resultado foi
assimilado com estranhamento e em mo-
mento algum houve uma comemoração
expressiva fato que acendeu as lanter-
nas da preocupação.
As fantasias da escola foram con-
feccionadas em um ateliê de fundo de
quintal, administrado pela Ialorixá (mãe
de santo) Lúcia Santos. Localizado no
bairro Viçoso Jardim, no mesmo espa-
ço em que funcionavam dois terreiros
(um de Umbanda e um de Candomblé),
o ateliê, bem como o Barracão do Sam-
ba, revelou-se um espaço de disputas,
conitos e, principalmente, segredos. Os
carnavalescos e os dirigentes da esco-
la não podiam entrar em determinadas
salas das construções (onde parte do
material para a feitura das fantasias era
guardado), uma vez que não eram inicia-
dos nos rituais afro-brasileiros. Além dis-
so, era comum a percepção de que os
funcionários, em sua maioria Filhos-de-
-Santo, utilizavam de linguagem cifrada
(termos em yorubá) quando precisavam
falar algo que não podia chegar ao co-
nhecimento dos artistas. Obviamente,
eu e Gabriel Haddad jamais tivemos to-
tal domínio sobre a confecção das rou-
pas, o que gerou alguns quadros de ten-
são agravados devido às pendências
nanceiras. O orçamento total de cada
fantasia (material mais mão-de-obra) gi-
rou em torno de R$ 250, um preço ele-
vado para o padrão da Intendente Ma-
galhães, mas irrisório se comparado aos
valores com que são comercializadas as
fantasias de alas do Grupo Especial, que
podem chegar a R$ 1,5 mil.
A imersão no Barracão do Samba
ocorreu 03 semanas antes do carnaval,
quando eu e Gabriel Haddad começamos
a dar as coordenadas de trabalho a uma
equipe contratada pela diretoria. A che-
fe de adereçaria, Ana Maria Alves Silva,
encarregava-se de distribuir as atividades
que eu e Gabriel listávamos, adequando
as tarefas às habilidades manuais de cada
um. Diferentemente das outras agremia-
ções que produziam as alegorias no es-
paço coletivo, o Acadêmicos do Sossego
possuía uma sala de trabalho equipada
com ventiladores e mesas um trunfo
negociado com a administração do Barra-
cão em virtude do fato de que o presiden-
te Gustavo havia realizado empréstimos
para algumas coirmãs que estavam com o
pagamento do condomínio atrasado. No-
vamente, um jogo de poder.
Faltando duas semanas para o
desle, os problemas explodiram e a
tranquilidade do trabalho se viu abalada:
devido a triangulações nanceiras mal
explicadas entre a presidência e um dos
diretores da escola (que cara responsá-
vel pelo pagamento de ferreiros, carpin-
teiros, aderecistas e iluminadores), parte
dos trabalhadores alegou não ter recebi-
do o valor acordado no prazo estipulado
e decidiu cruzar os braços. As tensões se
avolumaram porque o presidente, doen-
te e acamado, não podia comparecer ao
Barracão; a palavra do diretor, “homem
de conança” dele, era inabalável: os pa-
gamentos estavam corretos e não havia
motivo para a “greve”. Assustados com a
lentidão do andamento dos trabalhos, eu
e Gabriel Haddad tentávamos, sem su-
cesso, administrar a crise. Quando falta-
vam 07 dias para o desle, o carro abre-
-alas ainda estava na “fase da madeira”,
ou seja, sem qualquer decoração.
O trabalho de carpintaria foi na-
lizado apenas na quarta-feira da sema-
na que antecedia os desles. Em virtude
dos atrasos, o processo de decoração da
alegoria teve de ser feito às pressas, em
exatos 06 dias (contando com a terça-
-feira de carnaval, dia do desle, quando
o carro alegórico já havia sido retirado do
Barracão do Samba e aguardava os últi-
mos preparativos na rua, debaixo de chu-
va). Última agremiação a deslar na noite
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de desles do Grupo B, já com os primei-
ros raios de sol da quarta-feira de cinzas
no céu, o Acadêmicos do Sossego cru-
zou a Intendente Magalhães com beleza
e alegria, mas pecou em pontos centrais,
como evolução (abriu 03 “buracos” es-
paçamentos entre alas) e samba-enredo
(a música se “arrastou” no decorrer do
desle). O júri, valendo-se do olhar téc-
nico, não aprovou a “bananada”: apesar
de bem avaliada nos aspectos plásticos
e de ter gabaritado o quesito “enredo”, a
escola terminou em 9º lugar, exatamente
no meio da tabela da classicação nal.
Passado o desle, descobrimos que a
Prefeitura de Niterói, que havia prometi-
do a subvenção de R$ 250 mil, liberara
apenas R$ 200 mil, fato que gerou um
sem-m de confusões envolvendo os
pagamentos restantes. A escola, que no
período pré-carnavalesco se dera ao luxo
de emprestar dinheiro para algumas coir-
mãs, saiu do desle de 2015, orçado em
R$ 350 mil, endividada e com a autoes-
tima ferida. O “Rei Abacaxi”, ao nal, se
revelou espinhoso e azedo.
IV – Conclusões
“Arena de enfrentamento” que é
(CAVALCANTI, 1994, p. 71), o multiface-
tado carnaval do Rio de Janeiro expressa
a combinação nem sempre pacíca de
“heterogeneidade e diversidade” (VE-
LHO, 2008, p. 09), marcas indeléveis das
grandes metrópoles globais. Como visto,
o cenário carnavalesco centralizado na
Estrada Intendente Magalhães, que pos-
sui no Barracão do Samba o seu cama-
rim maior e que se conectado a terri-
tórios dos mais distantes e improváveis,
como o Largo da Batalha ou os terreiros
consagrados a Omolu e ao Caboclo Sete
Flechas da mãe de santo Lúcia Santos,
todos em Niterói, do outro lado da Guana-
bara, se apresenta, ao olhar etnográco,
enquanto manancial investigativo. Eis um
contraponto à elitização do megaevento
ncado na Sapucaí: há, sim, outros es-
paços carnavalescos a serem investiga-
dos. Como bem pontuou Gilberto Velho,
apesar da violência galopante e dos altos
índices de exclusão social, “com adapta-
ções, angústia e sofrimento a população
do Rio de Janeiro trabalha, canta, dan-
ça, faz festas como o carnaval” (VELHO,
2008, p. 26). Aqui, neste artigo, objetivou-
-se mostrar, em linhas gerais e inconclu-
sas, o quanto de trocas, tensões, dramas
e negociações se escondem por debaixo
da “capa de invisibilidade” dos desles
suburbanos o “carnaval de Madureira”
retratado por Tarsila cresceu e continua
vivo, pulsante, surpreendente.
Como surpreendente e desaado-
ra se esboçou a história do carnaval de
2016 da escola de samba Acadêmicos do
Sossego. Na quinta-feira após as “cinzas
redentoras” poetizadas por Carlos Drum-
mond de Andrade, o presidente Gustavo
faleceu. Ele, que não participara do desle
porque entrara em coma (vítima de uma
infecção hospitalar e de complicações res-
piratórias atreladas a um quadro de obesi-
dade mórbida), partiu e levou consigo uma
série de respostas para questionamentos
(nanceiros, administrativos, políticos)
que apertaram os sapatos da agremia-
ção às portas do desle. Ainda sem qua-
dra e endividada até o pescoço, a escola
não sabia o que viria a seguir. O tesou-
reiro da antiga administração, Luiz Carlos
Santos, assumiu a presidência, negociou
a permanência dos carnavalescos e dos
demais segmentos (todos, sem exceção,
com pendências nanceiras) e deu início
aos trabalhos que desembocaram em um
enredo sobre a obra do poeta Manoel de
Barros (autor do livro “Meu quintal é maior
do que o mundo”), que completaria 100
anos em 19 de dezembro de 2016. Inti-
tulado “O Circo do Menino Passarinho”, o
enredo redigido por mim e Gabriel Haddad
também homenageava a memória da es-
cola, que deslara uma série de enre-
dos sobre natureza e infância.
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apesar dos incontáveis problemas
que se encadearam ao longo dos prepara-
tivos (entre eles, o maior: a transferência
dos feirantes para a nova sede do Merca-
do Popular do Largo da Batalha, um espa-
ço com 270 metros quadrados e 32 boxes
xos, e a posterior demolição da tenda
provisória para a construção de uma pra-
ça o que desalojou duplamente a esco-
la, obrigada a negociar o aluguel de um
espaço recreativo chamado Clube da Tor-
re), a agremiação azul e branca terminou
a apuração de 2016 como a campeã do
Grupo B, conquistando a cobiçadíssima
vaga para deslar, em fevereiro de 2017,
na Marquês de Sapucaí. As serpentinas
que enrolaram tal vitória exuberante, po-
rém, isso é prosa para um outro enredo e
para outras saladas de frutas.
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Recebido em 15/07/2016
Aprovado em 02/08/2016
I Lenardo Augusto Bora. Doutorando (bolsista CNPq)
do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Lite-
ratura Teoria Literária da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Brasil. Contato: Leonardobo-
ra@gmail.com
II Sobre o assunto, ver FERREIRA, 2012, p. 166-171.
É necessário registrar que a Estrada já sediava, desde
1989, alguns dos desles de blocos da cidade do Rio
de Janeiro.
III Um dos mais signicativos é o trabalho desenvol-
vido por Ricardo José de Oliveira Barbieri durante o
Mestrado em Antropologia da UFRJ, origem do livro “A
Acadêmicos do Dendê quer brilhar na Sapucaí”. Ver
BARBIERI, 2012.
IV Sobre o assunto, é importante a leitura de PEREIRA,
Aline Valadão, 2008, p. 173-194.
61
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
V Nas palavras do teórico, “o dia 18 de fevereiro de
1855 é saudado pelos primeiros historiadores do carna-
val brasileiro como a data de nascimento da folia carna-
valesca moderna no país. O evento que teria marcado
essa verdadeira revolução foi o desle de um grupo de
cerca de 80 pessoas o Congresso das Summidades
Carnavalescas que, segundo José de Alencar, seria
o primeiro ‘passeio de máscaras’ a se realizar na corte
(...).” In: FERREIRA, 2012, p. 91.
VI “Concentração” é o nome que se dá ao período de
tempo e ao espaço físico em que as escolas de samba
se preparam para o desle, organizando as alas e os
carros alegóricos de acordo com o roteiro enviado ao
corpo de jurados.
VII No comparativo com as cifras do Grupo Especial, a
questão ganha contornos de absurdez: cada uma das 12
escolas do “1º Grupo” recebeu, em 2016, excluídos os
patrocínios privados e as injeções de dinheiro provenien-
te dos “patronos” (agentes, em sua maioria, vinculados
ao Jogo do Bicho, havendo, também, casos conhecidos
de tracantes e milicianos), o montante de aproximada-
mente R$ 6 milhões (05 vezes mais em relação ao valor
concedido às escolas da Série A e mais de 40 vezes o
valor concedido às escolas da Série B).
VIII “Beiço”, “volta” e “calote” são expressões utilizadas,
no universo do carnaval, para denir o não pagamento
de um valor devido.
IX Tal fato havia sido detectado por Maria Laura Ca-
valcanti quando da pesquisa de campo (que gerou a
sua tese de Doutorado em Antropologia), no barracão
da Mocidade Independente de Padre Miguel, em 1991
e 1992. No livro “Carnaval Carioca dos bastidores ao
desle”, versão revista da tese, a autora arma que os
interlocutores Renato Lage e Lilian Rabello, então car-
navalescos da escola da Zona Oeste carioca, entendiam
que as cobranças nanceiras se apresentavam como
um dos mais complicados pormenores dos bastidores
da criação: “Fechar o contrato era um aspecto especial-
mente sofrido em sua (Renato Lage) relação com a es-
cola. (...) A situação era, em suma, a seguinte: o contrato
se fechava abaixo de suas expectativas, entretanto no
decorrer do ano ganhavam no nal mais do que o nego-
ciado. Cabe lembrar a natureza muito particular desse
contrato: ‘É mais na palavra comenta Renato bem
poucos fazem’”. In: CAVALCANTI, 1994, p. 64/65.
XI No período de 2014 a 2016, Marcos Falcon foi vice-
-presidente da Portela. Nas eleições de 29 de maio de
2016, a chapa encabeçada por ele foi a vencedora por
aclamação. Falcon presidirá a escola até 2019.
XII Sobre o impacto cultural da Cidade do Samba, ver
BARBIERI, 2008, p. 125-144.
XIII Apesar da presença de sistema antichamas em to-
dos os barracões, um incêndio de grandes proporções
consumiu uma ala do complexo (04 galpões, sendo que
01, utilizado para atividades culturais, estava vazio),
em 07 de fevereiro de 2011. Na ocasião, as escolas de
samba Portela e União da Ilha do Governador perde-
ram milhares de fantasias e parte das alegorias que le-
variam para o desle; a Acadêmicos do Grande Rio, a
mais atingida pelas chamas, perdeu absolutamente tudo
– e precisou reconstruir às pressas (porém sem o medo
do rebaixamento, uma vez que a Liga Independente das
Escolas de Samba, em parceria com a Riotur, optou por
não rebaixar qualquer escola, naquele ano) as fantasias
e as alegorias do enredo sobre Florianópolis.
XIV Nesse ponto, também é válida a leitura de Maria
Isaura Pereira de Queiroz: “Existe uma relação visível
entre a densidade da população de um subúrbio, a ri-
queza do ‘seu’ banqueiro do bicho e o sucesso da ‘sua’
escola de samba.” In: QUEIROZ, 1999, p. 99.
XV Nesse ponto, é preciso atentar para uma das pon-
derações de Maria Laura Cavalcanti: o ciclo de todo
carnaval de escola de samba é adiantado, anal, “a
confecção de um desle começa mal terminado o car-
naval do ano anterior, com a denição de um novo
enredo a ser levado pela escola à avenida. Dessa for-
ma, na maior parte do tempo, o ano carnavalesco está
sempre um ano na frente do calendário corrente, pois
nele tudo converge para o seu desfecho festivo.” (CA-
VALCANTI, 1994, p. 15).
XVI Naquele momento, eu participava de uma comis-
são da qual também faziam parte os desenhistas Rafael
Gonçalves (cenógrafo e gurinista pela EBA-UFRJ), -
tor Saraiva (cineasta pelo IACS-UFF) e Gabriel Haddad
(formado em Relações Internacionais pela Unilasalle), o
jornalista Fábio Fabato (formado pela UFF e autor de
uma série de livros sobre as escolas de samba), o an-
tropólogo Vinícius Natal (mestre em antropologia urbana
pela UFRJ) e o experiente carnavalesco (idealizador da
comissão e coordenador do projeto, assessor de im-
prensa da área de moda) Eduardo Gonçalves. Ao todo,
éramos 07 prossionais de diferentes áreas, todos em-
penhados em desenvolver para a escola do Morro Dona
Marta, de Botafogo, um projeto artístico que a tornasse
competitiva e livre do medo de “enrolar a bandeira”, ou
seja, encerrar as atividades carnavalescas.
XVII Dos 07 membros originais da comissão, resta-
ram 04 (eu, Gabriel Haddad, Rafael Gonçalves e Vitor
Saraiva) para o carnaval de 2014. Ambos os desles
(2013 e 2014) foram vitoriosos, conduzindo a escola
para o Grupo B. Após o nosso desligamento, Rafael e
Vitor permaneceram na escola, tendo elaborado o des-
le de 2015, que terminou em 5º lugar.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Os blocos de enredo do carnaval carioca: identidade e organização
Los blocos de enredo de carnaval de laciudad de Río de Janeiro:
Identidad y organización
The blocos de enredo carnival city of Rio de Janeiro: identity and
organization
Júlio César Valente Ferreira
I
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo apresentar as primeiras discussões
sobre a pesquisa em curso que tem os blocos de enredo que deslam no
carnaval carioca como objeto de estudo, diferenciando-os em relação
às demais manifestações do carnaval carioca a partir das perspectivas
ritualísticas e sócio-organizacionais. Desta forma, seu lugar e seus
signicados na conguração do carnaval carioca são inicialmente
debatidos a partir do referencial bibliográco sobre este carnaval, da
análise de matérias jornalísticas e do trabalho de campo empreendido.
Palavras chave:
Blocos de Enredo
Carnaval
Rio de Janeiro
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Resumen:
Este artículo tiene como objetivo presentar los primeros debates
sobre La investigación en curso que tiene los blocos de enredo que
deslan en el carnaval de la ciudad de Rio de Janeiro como objeto
de estudio, diferenciándolos en relación con otras manifestaciones
desde perspectivas ritualistas y socio-organizativa. De esta manera,
su lugar y su signicado en el contexto del carnaval de la ciudad de
Rio de Janeiro se discuten inicialmente a partir de las referencias
bibliográcas en este carnaval, el análisis de informes periódicos y
llevado a cabo el trabajo de campo.
Abstract:
This paper aims to present the rst discussions on the ongoing research
that has the blocos de enredo parades in the carnival city of Rio de
Janeiro as an object of study, differentiating them in relation to other
manifestations from ritualistic perspectives and socio-organizational. In
this way, their place and their meanings in carnival city of Rio de Janeiro
setting are initially discussed from the bibliographic references on this
carnival, newspaper clippings analysis and eld work undertaken.
Palabras clave:
Blocos de Enredo
Carnaval
Rio de Janeiro
Keywords:
Blocos de Enredo
Carnival
Rio de Janeiro
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Os blocos de enredo do carnaval
carioca: identidade e organização
1 – Introdução
O carnaval da cidade do Rio de Ja-
neiro não se resume aos desles das esco-
las de samba quando se observam as ma-
nifestações carnavalescas que possuem
caráter de competição. DaMatta (1997)
constatou que muitos outros grupos (na
época da primeira edição da publicação,
em 1979) compartilhavam o espaço carna-
valesco. Destes, o único grupo que ainda
mantém na atualidade este caráter compe-
titivo é o relativo aos blocos de enredo. A
existência deste tipo de agremiação tam-
bém faz relativizar a armação de que os
blocos de rua predominam unicamente no
carnaval de rua, contrariando o senso co-
mum dominante em publicações como as
de Motta (2011; 2014) e Pimentel (2002).
Apesar de serem distintas mani-
festações carnavalescas, no Rio de Ja-
neiro, as escolas de samba e os blocos
de enredo têm como origem as camadas
periféricas urbanas, além do fato de que
muitas escolas de samba (principalmente
aquelas pertencentes aos últimos grupos
de acesso) originaram-se de um ou mais
blocos de enredo. Mesmo com esta sepa-
ração, ressalta-se a obrigatoriedade, entre
os anos de 2011 a 2014, chancelada pela
Empresa de Turismo do Município do Rio
de Janeiro S.A. (RIOTUR
II
), de se trans-
formar blocos de enredo em escolas de
samba, e vice-versa, tendo como justi-
cativa os resultados dos concursos carna-
valescos do ano em questão. Por m, um
dado importante para o estabelecimento
do cenário deste estudo é a indicação do
crescimento do carnaval de rua a partir de
grupos organizados conhecidos generi-
camente como blocos de rua (BARROS,
2013) (FRYDBERG, 2014) (PIMENTEL,
2002), desde a década de 1990, formado
por blocos, cordões e bandas, que se or-
ganizam, ou não, em entidades represen-
tativas e são cadastrados na RIOTUR.
Sobre a produção bibliográca re-
lativa aos blocos, mesmo em publicações
especícas, como os escritos lançados
por Motta (2011; 2014) e Pimentel (2001),
não há menção aos blocos de enredo.
Aqui, encontra-se uma questão importan-
te a ser problematizada, que é a consta-
tação de que a expressão “bloco”, tão
usual no carnaval para identicar este tipo
de manifestação carnavalesca, não mais
contempla os blocos de enredo. Quando
o contorno é delimitado à produção aca-
dêmica sobre o carnaval no Rio de Janei-
ro, não há qualquer trabalho que tenha os
blocos de enredo como objeto de estudo
III
.
Aliado a esta questão, soma-se o fato das
pesquisas sobre o carnaval de rua imputa-
rem aos blocos de rua a responsabilidade
por um movimento de retomada ou renas-
cimento deste a partir do período compre-
endido entre as décadas de 1980 e 1990
(ARRAES, 2013; BARROS, 2013; HERS-
CHMANN, 2013; LEOPOLDI, 2010b; SA-
PIA; ESTEVÃO, 2012), invisibilizando
desta forma a existência e a atuação dos
blocos de enredo no carnaval carioca.
As referências aos blocos de enre-
do não aprofundam as questões relativas
a esta manifestação carnavalesca. Ba-
sicamente, encontram-se breves relatos
sobre o fato de existirem e o paralelismo
visual e musical com relação às escolas
de samba. O material mais extenso em
informações sobre os blocos de enredo
é encontrado em RIOTUR (1991), onde
se situam informações sobre os locais de
desles, os resultados dos concursos e
nome, endereço, data de fundação e co-
res das agremiações que eram liadas a
Federação dos Blocos Carnavalescos do
Estado do Rio de Janeiro (FBCERJ) na-
quele momento. Entretanto, atualmente,
nem mais as publicações do poder público
65
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
abordam os blocos de enredo. No mate-
rial mais recente sobre o carnaval carioca
publicado pela municipalidade (RIOTUR,
2014), somente as escolas de samba e os
blocos de rua são contemplados.
A obrigatoriedade por força de re-
gulamento da transformação de blocos
de enredo em escolas de samba, e vice-
-versa chamou a atenção para a existên-
cia de uma manifestação carnavalesca, os
blocos de enredo, atualmente pouco divul-
gada, mas que ainda se estabelece como
contraponto às escolas de samba, no que
tange às competições carnavalescas na
cidade do Rio de Janeiro, e aos blocos de
rua, com relação às possibilidades de for-
matação dos desles encontrados no car-
naval de rua da cidade.
2 O carnaval dos blocos de enredo
e suas leituras
Sobre as denições relativas às
manifestações carnavalescas, Leopoldi
(2010a) aponta que elas revelam essen-
cialmente aspectos externos, geralmente
relativos aos cortejos empreendidos, mi-
nimizando elementos signicativos que
emergem em seu contexto social. Para o
presente momento deste texto, este tipo de
denição será útil para caracterizarmos ini-
cialmente o objeto de estudo em questão,
os blocos de enredo, diferenciando-o dos
demais tipos de blocos carnavalescos.
Não a possibilidade de se es-
tabelecer uma categoria monolítica para
se tratar dos blocos carnavalescos que
deslam no Rio de Janeiro (simplesmen-
te considerando-os todos como blocos).
Entender os princípios básicos de suas
diferenciações auxiliará a continuidade da
pesquisa, visto a grande quantidade de
agremiações que se identicam e que são
identicadas como blocos carnavalescos.
Em linhas gerais, apresentam-se três de-
nominações usualmente adotadas quando
se abordam os blocos carnavalescos que
deslam na cidade do Rio de Janeiro. As
denições de tipicações dos blocos car-
navalescos que deslam no carnaval ca-
rioca postas a seguir são propostas neste
artigo, tendo como base DaMatta (1997) e
Pereira (2003).
Os blocos de rua deslam no for-
mato de procissão
IV
, sem o uso de fantasia
obrigatória e sem necessariamente esta-
rem liados a ligas, associações ou fede-
rações de qualquer natureza. Os blocos de
empolgação deslam no formato de para-
da
V
, sem obrigatoriedade de alegorias ou
enredo, mas com todas as fantasias iguais
(atualmente, de forma geral, reduzida a
uma camisa padronizada) e com o mes-
mo tipo de estatuto de liação vericado
nos blocos de rua, sendo também conhe-
cidos como blocos de embalo. Os blocos
de enredo possuem estrutura competitiva,
estética visual e musical semelhante às
escolas de samba e deslam no formato
de parada, sendo todas as agremiações
deste tipo originadas e organizadas na
FBCERJ, fundada em 1965.
Pelo fato de existirem semelhanças
visuais e musicais entre os blocos de en-
redo e as escolas de samba e da origem
de muitas escolas de samba ter sido um
ou mais blocos de enredo, corroborando
o apontamento citado anteriormente de
Leopoldi (2010a), tende-se a identicar os
blocos de enredo como escola de samba
de proporções reduzidas. Diversos au-
tores centram esta similaridade com as
escolas de samba para caracterizar este
tipo de manifestação carnavalesca. “Os
blocos de enredo eram escolas de sam-
ba em escala reduzida, que deslavam e
competiam” (COSTA, 2001, p. 177). “Nas
noites de sexta e sábado deslam na In-
tendente Magalhães os blocos de enredo
dos grupos de acesso. São grupos pe-
quenos, protótipos de escolas de samba
[...]” (FERREIRA, 2008, p. 98; grifo meu).
“Os blocos de enredo podem ser denidos
66
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
como miniescolas de samba’, uma vez
que além das fantasias são confecciona-
das também algumas alegorias” (SAN-
TOS, 2012, p. 21; grifo meu).
Porém, destaca-se que nem to-
das as visões sobre os blocos de enredo
comungam deste tipo de caracterização
rasa. Ainda caminhando na análise de
seus aspectos externos e estabelecendo
uma identidade relacional e marcada pela
diferença, Valença (1996) arma que os
blocos de enredo possuem estrutura orga-
nizacional muito próxima (e não igual) à
das escolas de samba, sublinhando esta
capacidade gerencial como um dos traços
diferenciadores destes blocos em relação
aos demais. Barbieri (2009) acentua a si-
milaridade da estrutura competitiva dos
blocos de enredo em relação às escolas
de samba, mas pontua diferenças com
relação aos quesitos e aos graus de im-
portância dados aos mesmos durante o
julgamento das apresentações. Diferente-
mente das escolas de samba, que até a
primeira metade da década de 1990 so-
mente realizavam seus desles competi-
tivos na região central da cidade,RIOTUR
(1991) salienta que os blocos de enredo
sempre realizaram seus desles também
em locais situados nas zonas suburbanas
da cidade do Rio de Janeiro.
2.1 – Perspectiva ritualística
Especicamente tratando dos des-
les das escolas de samba, DaMatta (1997)
particulariza este ritual dentro de todo rito
que representa o carnaval. Para o autor,
estes desles são arenas de encontro, nas
quais as possibilidades de confronto entre
as classes sociais são potencializadas,
buscando equacionamentos estabeleci-
dos através dos mecanismos de neutrali-
zação e inversão por meio da ostentação
e da organização dos segmentos subal-
ternos, onde a hierarquização social sofre
uma operação de tradução para represen-
tar uma linguagem competitiva. Codican-
do esta análise para o objeto de estudo
desta pesquisa, os desles dos blocos de
enredo apresentam estas características
em grau reduzido, bem como seu alcance
de mobilização, por contarem com mon-
tantes de recursos nanceiros inferiores
em relação às escolas de samba (incluin-
do aquelas pertencentes aos últimos gru-
pos de acesso), pela maior diculdade
de estabelecerem redes de apoio com as
escolas de samba das principais divisões
hierárquicas (FERREIRA, J., 2012) e por
se estabelecerem mais próximos de suas
bases territoriais. Acrescenta-se que ou-
tro elemento importante nesta questão é
o local de desle, pois somente o Grupo 1
da FBCERJ (principal divisão hierárquica
da entidade) desla na região central da
cidade, o qual estabelece outro patamar
de comunicação simbólica (FERREIRA,
2008)
VI
.
Como ritual, arma-se a hipótese
de que os desles dos blocos de enre-
do operam de forma semelhante que as
escolas de samba, sendo aqui também
importantes as considerações de Leopol-
di (2010a), o qual não estabelece uma
dualidade entre estrutura e communitas,
conforme posto por Turner (2008), identi-
cando no desle um princípio estruturante,
o qual aponta para a análise do carnaval
também a partir de uma perspectiva sócio-
-organizacional.
2.2 – Perspectiva sócio-organizacional
Estabelecendo uma relação biu-
nívoca com a perspectiva sócio-organi-
zacional, o ritual dos desles dos blocos
de enredo possibilita a edicação de pro-
cessos de massicação e individualização
dos componentes em relação ao cotidiano
da agremiação. Para Leopoldi (2010a), no
plano organizacional, as escolas de sam-
ba (e, pela hipótese que se adota nesta
pesquisa, os blocos de enredo) controlam
67
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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suas individualidades a partir do poder
autoritário e patronal de seu corpo diri-
gente. Conforme a data do desle vai se
aproximando, esta organização amplia
sua base participativa, voltando-se mais
para o mundo exterior, o qual se agrega
e naliza esta integração no desle, for-
mando uma estrutura dual e conciliatória,
mas sempre provisória. Controlando seu
centro organizacional e aberto à participa-
ção de outros segmentos, estas agremia-
ções servem de ‘arena de mediação entre
segmentos com interesses social e politi-
camente contrários’ (DAMATTA, 1997, p.
125). Além destas considerações serem
válidas para o entendimento da dinâmica
interna dos blocos de enredo, aqui amplia-
-se o escopo das mesmas para abarcar o
relacionamento entre a FBCERJ com os
blocos carnavalescos liados a esta e com
outros órgãos.
Construção identitária
Focando o estabelecimento das
tipologias das manifestações carnavales-
cas no Rio de Janeiro, observa-se que,
no início do século XX, as classicações
representativas dos tipos de agremiações
não se encontravam cristalizadas e eram
utilizadas de forma indistinta. Moraes
(1987) realizou esta operação de estru-
turação, sendo este discurso reproduzi-
do em outras obras sobre o carnaval do
Rio de Janeiro, como as de Costa (2001),
RIOTUR (1991) e Valença (1996).
Porém, contrariando RIOTUR
(1991), que atesta a existência dos blocos
de enredo desde o início da FBCERJ, a
partir das pesquisas em jornais, pode-se
inferir que a nomenclatura em questão
surgiu após mais de dez anos de existên-
cia da Federação.
Construção espacial
A produção de lugares carnavales-
cos revela a festa como um processo de
disputas multiplamente presente na série
de relações que conectam os atores inseri-
dos neste espaço em instâncias e escalas
diferentes (FERREIRA, 2005). Congurar
um lugar carnavalesco representa denir
as formas de uso e quem será incluído ou
excluído daquele espaço. Este princípio or-
denador teve como um dos mais importan-
tes mediadores a participação da impren-
sa ao estabelecer concursos para premiar
o melhor rancho, cordão, bloco e etc. Os
padrões de julgamento destes concursos
auxiliaram a formatar estas categorias, que
se estruturam ao longo dos anos.
Esta pesquisa aponta para um ele-
mento importante relativo à participação
dos blocos de enredo na conguração do
espaço carnavalesco do Rio de Janeiro, o
qual é a questão dos relacionamentos com
os poderes executivo e legislativo através
de canais de comunicação com vereado-
res, deputados, secretários e órgãos ad-
ministrativos relacionados ao turismo, pois
a formulação e execução das políticas de
cultura de incentivo ao carnaval implemen-
tadas pela prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro não partem da secretaria de cultu-
ra. Além do estabelecimento de redes de
apoio, estas relações auxiliaram os blocos
carnavalescos no fomento à organização
das competições, geridas através da FB-
CERJ, onde se optou por estabelecer um
espraiamento dos locais de desle, con-
gurando lugares carnavalescos em diver-
sos pontos da cidade.
Organização para a competição
Considerando o carnaval um ritu-
al onde ocorrem operações de inversão e
neutralização, DaMatta (1997) destaca que
ocorre uma inversão organizatória, pois
grupos se ordenam para “brincar”. Media-
dos por entidades gestoras e regulamen-
tos, os concursos traduzem uma linguagem
competitiva que conjuga o valor fundamen-
tal da igualdade com a moldura hierarqui-
zada característica de nossa sociedade.
68
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A lógica da competição permeou os
encontros das agremiações no período do
carnaval e era desejada por estas, confor-
me aponta Ferreira, F. (2012). Para Caval-
canti (2006), o dinamismo e a força destas
agremiações vêm justamente desta natu-
reza competitiva
VII
, pois, independente da
classicação no concurso, sempre é ne-
cessário recomeçar, terminando um ciclo
carnavalesco e iniciando outro em segui-
da, subsidiado por tensões entre pressões
por inovações estéticas musicais e visuais
e por manutenção de elementos conside-
rados tradicionais, claramente pendendo
para a valoração dos elementos visuais
em detrimento dos musicais. Para a auto-
ra, ao lado de seu aspecto ritual, esta lógi-
ca competitiva estabeleceu a importância
dos desles a partir da permanência dos
mesmos no imaginário da cidade.
Construção das redes de apoio
Para a consecução dos desles e,
em muitos casos, das atividades em suas
quadras, as agremiações carnavalescas
necessitam estabelecer relações com ou-
tros atores sociais.
A premissa aqui assumida é a de
estruturar o campo do carnaval carioca
como mais um lugar de luta congurado
socialmente onde se contesta ou reproduz
a hegemonia. Para Storey (2015), a hege-
monia é uma forma de diálogo que, de uma
forma ou outra, promove espaços para a
manifestação dos subalternos ser consi-
derada. Esta abordagem entende o su-
balterno como parte atuante do poder he-
gemônico, com grau de inuência menor,
porém existente, não sendo somente uma
resistência passiva. Desta forma, possibili-
ta-se compreender de forma mais explícita
que as transformações das manifestações
carnavalescas ao longo do tempo não são
apenas decididas pela classe dominante.
Seguindo esta linha de raciocínio, observa-
-se em Augras (1993) a armação de que
o processo de negociação empreendido
pelas escolas de samba, mais que uma
simples submissão aos poderes públicos
e às classes dominantes, expressou um
comportamento pragmático destas agre-
miações para sua expressão, expansão e
reconhecimento por parte da cidade. Par-
tindo desta mesma lógica, postula-se nesta
pesquisa que o mesmo processo ocorreu
por parte dos blocos de enredo
VIII
.
Para o crescimento das manifes-
tações carnavalescas ligadas às cama-
das sociais subalternas da cidade, fun-
damental foi o reconhecimento por parte
do poder público, incluindo a distribuição
de subvenção nanceira como forma de
apoio à preparação dos desles
IX
. Este
tipo de valorização representou também
importante estímulo para a criação de inú-
meras agremiações nos mais diferentes
pontos da cidade, atraindo também agre-
miações de cidades pertencentes à região
metropolitana do Rio de Janeiro.
Aspecto importante desta relação é
apontado por Diniz (1982) e Zaluar (1985)
ao sinalizarem a cooptação de lideranças
locais como uma das bases de sustenta-
ção da máquina clientelista que operou no
quadro político do Rio de Janeiro da -
cada de 1960 até a primeira metade da
década de 1980. Segundo as autoras, a
articulação com blocos carnavalescos e
escolas de samba representava a possi-
bilidade de se cooptarem lideranças em
zonas suburbanas, onde estas agremia-
ções eram praticamente a única atividade
aglutinadora dos moradores da localidade,
tornando-se, também consequentemente,
em instâncias de defesa dos interesses da
comunidade.
A mudança posterior do quadro
político do Rio de Janeiro representou a
confecção de um novo desenho à máqui-
na clientelista, onde a aproximação com
lideranças locais reformulou-se através da
incorporação e potencialização de outros
espaços de cooptação. Diferentemente
69
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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das escolas de samba (de forma especial
aquelas pertencentes às principais divisões
hierárquicas), as quais desde a década de
1950 incorporaram o mecenato dos res-
ponsáveis pelo jogo do bicho como forma
de se capitalizarem para a realização de
seus desles e demais atividades (CAVAL-
CANTI, 2006) (CHINELLI; SILVA, 1993), a
hipótese que esta pesquisa postula aponta
para a dependência praticamente única dos
poderes públicos para o nanciamento das
apresentações dos blocos de enredo, ten-
do a alteração do quadro político do Rio de
Janeiro assentado estas relaçõesem novas
bases, as quais, por exemplo, podem ser
estabelecidas como uma das causas da
greve dos blocos de enredo em 1988.
Organização para o desle
Quando assumem um princípio
ordenador para seus desles em cará-
ter competitivo, as agremiações carna-
valescas adotam uma série de preceitos
organizativos que balizam a preparação
do desle como tempo de apresenta-
ção, quantidade de deslantes, número
de carros alegóricos, número mínimo de
integrantes em alas obrigatórias, dentre
outros que são especicados no regula-
mento da competição, o qual pode variar
anualmente (CAVALCANTI, 2006).
Ampliando a abrangência do mode-
lo descrito por Cavalcanti (2006) e Leopoldi
(2010a) para incluir os blocos de enredo,
destaca-se a existência de uma hierarquia
da organização formal, responsável pela
administração da agremiação, e outra da
organização carnavalesca, responsável
pela preparação e execução do desle,
colocando em cena diversas formas de ex-
pressão artística e grupos sociais distintos
entre si. Para os blocos de enredo, a mobi-
lidade de membros destas hierarquias para
ocuparem ao mesmo tempo postos em
outras agremiações carnavalescas é ne-
cessária para a sobrevivência dos primei-
ros. Primeiramente, pelo fato de que, caso
se cobrasse dedicação plena, os blocos
de enredo poderiam correr o risco de não
ter mais componentes e dirigentes. Outra
questão é que a participação destas pesso-
as em outras agremiações com mais recur-
sos materiais estabelecem redes de apoio
importantíssimas na preparação do desle
e na execução do mesmo, possibilitando,
por exemplo, a obtenção de esculturas,
fantasias para desmontagem e reciclagem,
peças para completar a bateria da esco-
la, baianas para completarem a ala e não
serem punidas pelo regulamento, ritmistas
para completarem a bateria, chassis para
carros alegóricos, diretores de harmonia
para auxiliarem o desle da agremiação,
componentes para completarem o número
mínimo de deslantes exigido no regula-
mento, dentre outros insumos.
3 – Identidade e organização
Criticando o fato de que se estabe-
leceu praticamente uma fórmula única para
se discutir o carnaval, Ferreira, F. (2012)
alerta para o fato de que, neste debate ten-
de-se a não discutir as construções narrati-
vas, adotando-se uma abordagem natura-
lizada, a qual não compreende os objetos
como produtos de discursos, de narrativas.
Desta forma, considerando a pes-
quisa em seu início, após o contato inicial
com o corpo dirigente da FBCERJ, optou-
-se pela consulta às matérias jornalísticas.
Um aspecto importante sobre a consoli-
dação das manifestações carnavalescas
no Rio de Janeiro é fornecido por Ferrei-
ra (2005) ao destacar a participação da
imprensa como importante mediadora ao
estabelecer concursos para premiar o me-
lhor rancho, cordão, bloco e etc.
3.1 – Os blocos carnavalescos
no carnaval carioca
Os blocos carnavalescos sempre
compuseram a paisagem do carnaval ca-
70
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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rioca. Em entrevista ao Jornal do Brasil
em 4 de março de 2011, e transcrita em
parte por Andrade (2012), o professor e
pesquisador Felipe Ferreira, coordenador
do Centro de Referência do Carnaval da
Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro, rearma esta existência:
Os blocos, na verdade, nunca deixa-
ram de existir. Eles estavam é meio
fora do foco da mídia. Em Madureira
e outros bairros da zona norte, sempre
foram fortes. O que houve é que com
esse esgotamento das escolas de
samba o número deles cresceu muito
na zona sul e no centro, onde tudo o
que acontece tem mais repercussão
na mídia (ANDRADE, 2012, p. 44).
Ao dar voz aos gestores da FB-
CERJ, a construção identitária amplia o es-
pectro das similaridades visuais e musicais
e estabelece alguma forma de contraponto
às escolas de samba. Em matéria publica-
da pelo Jornal do Brasil em 8 de fevereiro
de 1978, e transcrita por Pereira (2003), o
então presidente da FBCERJ, Mário Silva
explicava a diferença entre blocos de em-
polgação e blocos de enredo:
O que é o seguinte: chamava-se
embalo, mas com esse nome dava a
impressão de que estava todo mundo
embalado, no sentido negativo do ter-
mo, nós da Federação criamos o nome
de empolgação. São blocos sem en-
redo, mais autênticos, de samba livre.
Agora, embora livres, eles devem obe-
decer a uma norma reguladora, que
é para não haver indisciplina. Bloco
de enredo é diferente: são blocos,
como o próprio nome diz, com enredo.
têm uma organização semelhante
à escola de samba, mas não são pe-
quenas escolas de samba. (PEREIRA,
2003, p. 68; grifo meu)
Esta forma de identicar os blocos
de enredo é raticada pelos membros da
atual diretoria da FBCERJ. Ao serem soli-
citados para denirem os blocos de enre-
do, os membros da diretoria da federação
os identicam como “a escola para uma
escola de samba”. O constante posiciona-
mento relativo à caracterização de seus
liados como agremiações diferentes das
escolas de samba pode ser encontrado ao
longo dos anos nas matérias jornalísticas,
onde elementos diferenciadores são pro-
jetados e/ou implementados. Como exem-
plo, na matéria publicada pelo Jornal do
Brasil (1972), o presidente da FBCERJ
admite a introdução de instrumentos de
sopro como diferenciador musical.
Na matéria publicada pelo Jornal do
Brasil (1978), um trecho importante da
fala do então presidente da FBCERJ, so-
bre a não comunicação entre as divisões
hierárquicas dos blocos de enredo e das
escolas de samba, permitindo identicar a
questão da constituição de um grupo fe-
chado de agremiações que se identicam
como escola de samba, não permitindo o
uso deste estatuto por outras.
Não há esta passagem – diz ainda Má-
rio da Silva O bloco é um conjunto
diferente de escola de samba, mesmo
quando apresenta enredo. As escolas
de samba formam um grupo fechado,
de 44 associações. Agora, se abrir ou-
tra vaga, pode entrar qualquer outra
organização que deseje transformar-se
em escola. Seja bloco, frevo ou rancho.
Quando a Arranco [G.R.E.S. Arranco] e
a Arrastão [G.R.E.S. Arrastão de Cas-
cadura] passaram de bloco para esco-
la de samba, ainda havia vaga. Agora,
não mais. São 44 certas. (JORNAL
DO BRASIL, 1978, p. 2, grifo meu)
Uma possível estratégia de di-
ferenciação com relação às escolas de
samba reside na construção de uma
menor complexidade de sua estrutura
organizativa, sem criar mecanismos im-
peditórios de liação de novos membros
71
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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na FBCERJ, conforme pode ser lido na
matéria publicada pelo Jornal do Brasil,
onde o presidente à época da FBCERJ
declarava que “o reinado de Momo vai ter
bloco que não acaba mais, pois eles são
mais fáceis de criar e com qualquer esfor-
çozinho pode-se criar mais um” (JORNAL
DO BRASIL, 1967, p. 10).
No debate sobre a construção iden-
titária dos blocos de enredo, constatação
importante é que esta denominação so-
mente aparece nas matérias jornalísticas
a partir da década de 1970, isto é, após a
criação da FBCERJ. A primeira referência
a esta categoria no Jornal do Brasil data de
outubro de 1976, em O Globo é de novem-
bro de 1976 e em O Fluminense é de feve-
reiro de 1977. Nota-se também que as no-
tícias sobre a FBCERJ na década de 1960
não utilizavam a categoria blocos de enre-
do, mas sim blocos carnavalescos, como a
vericada no Correio da Manhã (1967).
Sobre a dualidade descrita por
DaMatta (1997) com relação ao caráter
dos desles, onde se visualizava nos
blocos carnavalescos o que era identi-
cado como “desle de carnaval”, não se
transformando em “teatro ambulante”,
característica imputada aos desles das
escolas de samba, este discurso apon-
tado é vericado, por exemplo, no depoi-
mento do organizador do Bloco Foliões
de Botafogo, onde ele ressaltava que
organizaria a agremiação para o des-
le, ‘mas integrado às suas verdadeiras
tradições’(O GLOBO, 1973, p. 5), consi-
derando que os blocos estavam procu-
rando seguir o exemplo das escolas de
samba, armando ser esta uma opção
equivocada. Desta forma, constata-se
uma disputa sobre um conceito de tra-
dição a ser exercido pelos blocos carna-
valescos, podendo ser um caminho para
compreender o surgimento anos depois
da separação dos blocos carnavalescos
liados à FBCERJ em blocos de enredo
e blocos de empolgação.
3.2 – A federalização dos blocos
carnavalescos como resultado
de processos de negociação
Como exemplo da abordagem
naturalizada explanada por Ferreira, F.
(2012), visualizando a mesma no refe-
rencial teórico encontrado sobre a cria-
ção da FBCERJ, cita-se o início do ca-
pítulo dedicado aos blocos de enredo na
obra publicada por RIOTUR (1991), a
qual pretende dar conta da memória do
carnaval carioca.
Em plena ascensão das escolas de
samba, na década de 60, os blocos
carnavalescos se unem e se reestru-
turam fundando a FBCERJ em 1965,
com duas categorias: blocos de enre-
do e blocos de empolgação (popular-
mente, conhecidos como de embalo)
(RIOTUR, 1991, p. 99).
Desta forma, tem-se uma visão
simplista da organização da FBCERJ e
de suas filiadas, entendendo este pro-
cesso como natural, quase automático,
para a organização dos festejos des-
te tipo de manifestação carnavalesca,
ocultando todas as questões de conflito
e negociação inerentes a este proces-
so. Além disso, outra questão que surge
desta citação encontrada em RIOTUR
(1991) seria o fato de que todos os blo-
cos carnavalescos fundaram e manti-
veram-se na FBCERJ. Na realidade, a
leitura dos jornais indica que este pro-
cesso de federalização não envolveu
todos os blocos existentes e nem ocor-
reu de forma imediata.
A própria fundação da FBCERJ
não foi um evento único resultante das
movimentações promovidas pelos blocos
carnavalescos. Esta criação também so-
freu um hiato temporal com processos de
negociações e conitos. As matérias vei-
culadas pelo Diário de Notícias (1964) e
pelo Diário Carioca (1965) retratam dois
72
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
momentos distintos de fundação da enti-
dade representativa destas agremiações.
Além disso, blocos carnavalescos como
Cacique de Ramos, Bafo da Onça e Bo-
êmios de Irajá nunca estiveram liados à
FBCERJ, conforme declara o presidente
da Federação no nal da matéria publica-
da pelo O Globo (1975).
Desta forma, o processo que
ocorreu com as escolas de samba, três
décadas antes, o qual envolveu negocia-
ção e conito entre agremiações, entida-
des representativas e o poder público,
conforme apresenta Ferreira, F. (2012) e
Silva (2007), pode ser adotado e trans-
portado para a análise da federalização
de certo número de blocos carnavales-
cos do carnaval carioca.
3.3 – A FBCERJ e a disputa por hege-
monias no carnaval carioca
Desde sua fundação, a FBCERJ
busca conformar um lugar próprio no cam-
po do carnaval carioca ao se inserir na
arena de disputas pela primazia na festa
carnavalesca do Rio de Janeiro, objeti-
vando principalmente a captação de mais
recursos para suas liadas nos contratos
de prestação de serviços com a RIOTUR
e o uso das principais pistas de desle do
carnaval, situadas no centro da cidade.
Analisando as matérias jornalísti-
cas, nota-se que uma das primeiras con-
quistas da FBCERJ foi a xação dos dias
dos desles de suas liadas. Antes, os
concursos dos blocos geralmente ocor-
riam em dias anteriores ao carnaval, con-
forme mostram as matérias publicadas
pelo Diário Carioca (1964) e Diário de No-
tícias (1962; 1966).
Logo no primeiro ano em que a
FBCERJ organizou o desfile dos blocos
carnavalescos diretamente com a Se-
cretaria de Turismo foram obtidas duas
conquistas, conforme mostra a maté-
ria publicada pelo Diário de Notícias
(1967). Em primeiro lugar, fixou-se o
sábado de carnaval como o dia dos blo-
cos carnavalescos, sendo considerada
a manifestação que abriria os festejos
carnavalescos da cidade. Em segundo
lugar, a partir deste ano em questão,
os blocos carnavalescos filiados à FB-
CERJ passaram a receber subvenção
financeira diretamente da Secretaria
de Turismo, através de repasses feitos
pela federação, não mais obrigando as
agremiações a negociarem com a muni-
cipalidade, mas tendo então a FBCERJ
como entidade representante.
Com isso, ressalta-se uma intensa
colaboração da FBCERJ com o poder pú-
blico como forma de se legitimar e cons-
truir seu lugar carnavalesco. No caso dos
blocos, o crescimento do número de -
liados à FBCERJ e o espraiamento dos
mesmos pelo tecido urbano, devidos à
menor complexidade organizacional para
a montagem de um bloco carnavalesco e
à liberdade de se liar à FBCERJpodem
ter sido potencializadosao longo das -
cadas de 1970 e 1980 por conta desta
associação. A evolução do número de
blocos de enredo e de escolas de samba
é mostrada na Figura 1.
Por exemplo, em 1984, segun-
do matéria publicada pelo O Fluminense
(1984), os desles na cidade do Rio de
Janeiro contaram com a apresentação de
212 blocos carnavalescos liados à FB-
CERJ, sendo 150 blocos de enredo (di-
vididos em doze grupos) e 62 blocos de
empolgação (divididos em quatro grupos),
e 44 escolas de samba (divididas em qua-
tro grupos). Neste período temporal, situa-
-se a pesquisa desenvolvida por Zaluar
(1985), onde os membros das diretorias
dos blocos de enredo e dos blocos de em-
polgação deixam clara a existência de um
mecenato oriundo de lideranças políticas
executivas e legislativas com o uso do
aparelho público.
73
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
3.4 As crises de representatividade
da FBCERJ
Dentro da arena de disputas do
campo do carnaval carioca, três momen-
tos foram importantes na aceleração do
processo de esvaziamento da FBCERJ
e na consequente transformação de mui-
tos blocos de enredo em escolas de sam-
ba, sendo estes processos considerados
como crises de representatividade da FB-
CERJ e entendidos nesta pesquisa como
dramas sociais (TURNER, 2008).
Apesar de possuírem origens dis-
tintas, nem sempre situadas na FBCERJ,
mas nas entidades gestoras dos grupos
das escolas de samba, estes uxos serão
tratados nesta pesquisa como crises de re-
presentatividade da FBCERJ. A perda na
quantidade de liados a seu quadro signi-
cou a redução no número de divisões hie-
rárquicas dos blocos de enredo e, conse-
quentemente, a diminuição do número de
locais de desle e dos lugares carnavales-
cos deste tipo de manifestação carnavales-
ca, reduzindo seu capital simbólico junto a
RIOTUR como promotora do carnaval de
rua na cidade do Rio de Janeiro.
Porém, antes destes momentos, os
mesmos tiveram como preâmbulo o conito
pelo uso da principal pista de desle da ci-
dade, quando esta é transferida para a Rua
Marquês de Sapucaí, em 1978. Segundo
RIOTUR (1991), a partir de 1979, ocorre a
inclusão do desle das escolas de samba
da segunda divisão hierárquica na principal
pista de desle da cidade, o que demanda a
cessão de um dos dias de uso por parte dos
blocos carnavalescos liados à FBCERJ.
Com a construção da Passarela do Samba
(popularmente, conhecida como Sambódro-
mo), em 1984, na rua em questão, a disputa
pelo uso desta pista intensica-se, opon-
do escolas de samba e blocos de enredo,
conforme mostram as matérias publicadas
pelo Jornal do Brasil (1983) e Última Hora
(1984), onde inclusive relata-se a votação
de um projeto na Câmara dos Vereadores
da Cidade do Rio de Janeiro no intuito de
assegurar o uso da Passarela do Samba no
sábado de carnaval pelos blocos de enredo.
Drama 1 – A greve de 1988
Em 1988, devido ao não acordo
entre a RIOTUR e a FBCERJ sobre a uti-
lização da Passarela do Samba para os
desles dos blocos de enredo e sobre o
valor a ser pago à segunda pela presta-
ção de serviços no carnaval através dos
desles e o número de agremiações con-
templadas, os blocos liados à FBCERJ
não deslaram naquele ano (O GLOBO,
1987; 1988). Por conta deste quadro, blo-
cos que compunham a FBCERJ desde a
época de sua fundação, na segunda me-
tade da década de 1960, como Canários
das Laranjeiras, Difícil É o Nome e Unidos
da Vila Kennedy, dentre outros, posterior-
mente solicitaram liação à Associação
das Escolas de Samba da Cidade do Rio
de Janeiro (AESCRJ).
Importante frisar a diferença de pos-
tura do presidente da RIOTUR comparan-
do as notícias. Ao comentar sobre a conr-
mação da greve, na matéria publicada em
O Globo (1988), o mesmo reconhece que
‘(...) os blocos são uma rede capilar e que é
através deles que a comunidade está pre-
sente’ (O GLOBO, 1988, p. 15). Estas ob-
servações vão de encontro ao exposto por
Diniz (1982) e Zaluar (1985) sobre a impor-
tância destas agremiações como atividade
aglutinadora dos moradores da localidade.
Drama 2 – O conflito entre LIESA e
AESCRJ
Em 1994, uma alteração na hie-
rarquia competitiva das escolas de sam-
ba, pois as duas entidades organizadoras
dos desles destas agremiações entram
em conito, LIESA e AESCRJ. Com isto,
responsável pelos desles das principais
escolas de samba, a LIESA cria outra
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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liga (Liga Independente das Escolas de
Samba dos Grupos de Acesso LIES-
GA) dedicada aos desles das escolas de
samba das divisões hierárquicas inferio-
res (O GLOBO, 1994), independente da
AESCRJ. Desta forma, para se manter
representativa dentro do carnaval cario-
ca, a AESCRJ liou um grande número
de blocos de enredo neste período, quan-
do então a LIESGA é desfeita, retornando
todos os grupos de acesso para o contro-
le da AESCRJ (O GLOBO, 1995).
Drama 3 – A desintegração da AESCRJ
Em 2010, a AESCRJ e a FBCERJ
unicam (ou são obrigadas a unicar
pela RIOTUR
X
) as estruturas hierárqui-
cas, atitude esta a qual forçaria que es-
colas de samba transformassem-se em
blocos de enredo e vice-versa.
Entretanto, entre os componentes
do novo corpo diretor da AESCRJ, há uma
disputa pelo comando da entidade, a qual
gera por parte da presidência da AESCRJ
a criação de um denominado Grupo de
Avaliação, passando este a ser a última
divisão hierárquica. Para a composição
deste novo grupo, são convidadas esco-
las de samba que foram obrigadas a se
liarem à FBCERJ e blocos de enredo e
blocos de empolgação que também dese-
jassem mudar de estatuto. Por m, sem
uma solução de consenso, em 2016, duas
entidades são criadas para gerir os des-
les das escolas de samba que estavam
sob o comando da AESCRJ: a LIESB e a
ACSN. Esta última entidade passa a admi-
nistrar o Grupo de Avaliação, agora deno-
minado Série E, e continua o processo de
aceitação de liação de antigos blocos de
enredo e de blocos de empolgação.
Figura 1 - Evolução do número de escolas de samba e de blocos de enredo
75
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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4 – Conclusões
Apontar para os blocos de enredo
não somente nos revela uma face pouco
conhecida e divulgada do carnaval cario-
ca, como também localiza a origem de
muitas escolas de samba (principalmente
aquelas que hoje não se encontram no
primeiro grupo da hierarquia competiti-
va), além dos aspectos de concentração
/ dispersão dos lugares carnavalescos
pelos bairros da cidade do Rio de Janei-
ro. Mesmo com o decréscimo no número
de entidades liadas, merece destaque o
fato de que, ainda hoje, a FBCERJ é a
única entidade gestora de desles carna-
valescos com caráter de competição na
cidade do Rio de Janeiro que organiza
suas apresentações em três locais dife-
rentes ao mesmo tempo. Atualmente, as
escolas de samba organizam-se em qua-
tro entidades gestoras diferentes; e cada
uma organiza seus desles em apenas
uma pista em um dia ou mais.
Esta pesquisa surgiu como con-
sequência de uma memória que emer-
giu e que até então tinha sido silenciada
com as duas primeiras crises de repre-
sentatividade dos blocos de enredo ao
longo das últimas duas décadas. Quan-
do em 2011, há a imposição da transfor-
mação de escolas de samba em blocos
de enredo (e vice-versa), esta última
retorna à esfera pública, interpelando
as escolas de samba, os blocos de rua
e os poderes públicos com relação ao
projeto de carnaval atuante na cidade
do Rio de Janeiro, o qual os enfraque-
ce substancialmente na arena de dis-
putas pela primazia dos festejos carna-
valescos. Neste caso, identifica-se um
silêncio que se constituiu como forma
de resistência diante do excesso dos
discursos considerados representativos
e marcadores identitários do carnaval
carioca (escolas de samba e blocos de
rua) a espera de uma oportunidade de
voltar a se comunicar.
Armando a condição de não serem
somente uma etapa de passagem para
que agremiações carnavalescas tornem-
-se escolas de samba, os blocos de enre-
do colaboram na conguração do carnaval
carioca, a partir de uma identidade própria
em contraponto a essas agremiações, ao
conformarem novos lugares carnavales-
cos para os desles em formato de para-
da, ao armarem a possibilidade de uma
estética visual e musical mais simples e
de uma estrutura organizacional menos
complexa (baseada praticamente de for-
ma exclusiva em integrantes moradores
da localidade) para se desenvolver um
desle de carnaval no formato de parada
e ao estabelecerem canais de negociação
em moldes próprios com os poderes -
blicos responsáveis pela organização do
carnaval na cidade do Rio de Janeiro.
Por m, cabe destacar também
que, a partir da década de 1990, uma
mudança da política de fomento ao car-
naval, fomentada pelas administrações
municipais seguintes, com a redução e a
reorientação do investimento público, as
quais potencializaram nos blocos de enre-
do os efeitos das crises de representativi-
dade na FBCERJ.
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Recebido em 15/07/2016
Aprovado em 01/08/2016
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Júlio César Valente Ferreira. Doutorando em Memória
Social Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNI-
RIO). Professor do Departamento de Engenharia Mecâ-
nica Centro Federal de Educação Tecnológica Celso
Suckow da Fonseca (CEFET/RJ). Brasil. Contato: julio.
ferreira@cefet-rj.br
II Autarquia da Secretaria Especial de Turismo da Cida-
de do Rio de Janeiro encarregada pela execução da po-
lítica municipal de turismo, sendo também responsável
pela organização do carnaval da cidade.
III Esta situação também ocorre quando se verica o
estado da arte da produção acadêmica sobre os blocos
de empolgação (blocos de embalo) do carnaval do Rio
de Janeiro. Sobre os blocos carnavalescos, somente
constatam-se pesquisas tendo como objeto de estudo
os blocos de rua.
IV Baseado em DaMatta (1997), entende-se que o des-
le em formato de procissão prevê o cortejo de pessoas
percorrendo diversas ruas e avenidas orientado pelo
caminho traçado e executado por um núcleo central,
o qual neste caso é representado pelos intérpretes e
músicos e sistemas móveis de amplicação do som ge-
rado por estes.
V Baseado em DaMatta (1997), entende-se que o
desle em formato de parada prevê a preparação de
uma avenida ou rua para o ritual e nela se destacam
locais por onde devem passar os deslantes, onde
deve car a plateia e o lugar destinado às autoridades
e comissão julgadora.
VI Cabe uma ressalva de que o discurso de igual-
dade e inversão presente em Bakhtin (2009) é va-
lidado por autores como Leopoldi (2010b) e Sapia
e Estevão (2012) para os blocos de rua, os quais
consideram que estas manifestações se estabele-
cem hoje como contraponto às escolas de samba
com relação às redes empreendidas para a conse-
cução de seus desfiles, por recusar a linguagem
competitiva (enunciando um discurso “purificado” e
igualitário de inversão) e pela forma de conformar
o lugar carnavalesco.
VII Uma interessante observação e que pode vir
a ser uma temática de continuidade da presente
pesquisa é o fato dos blocos de empolgação terem
praticamente desaparecido do cenário carnavales-
co carioca após os mesmos desligarem-se da FB-
CERJ e terem criado uma entidade própria, a qual
aboliu o concurso, na década de 1990. Atualmente,
não há uma entidade representativa deste tipo de
bloco carnavalesco e as poucas agremiações que
ainda se identificam como blocos de empolgação
(ou de embalo) apresentam-se praticamente como
blocos de rua, obtendo verba pública de financia-
mento de seus desfiles via participação individual
nos editais publicados pela RIOTUR e pela Secre-
taria Estadual de Cultura.
VIII Sobre os blocos de rua, os trabalhos de Barros
(2013), Herschmann (2013), Leopoldi (2010b) e Sa-
pia e Estevão (2012) apontam as décadas de 1970 e
1980 como marcantes no esvaziamento do carnaval
de rua e Leopoldi (2010b) identifica os mesmos como
subalternos rebeldes no carnaval normatizado do Rio
de Janeiro, pois as escolas de samba têm-se ‘(...) en-
quadrado nesse processo de domesticação da vida
não oficial, uma vez que não parecem mais instigar
nos participantes da festividade carnavalesca e nos
que a ele assistem comportamentos que enfatizam a
rebelião contra a ordem estabelecida, como aconte-
cia antes.’ (LEOPOLDI, 2010b, p. 33). Para Hersch-
mann (2013), esta denominada retomada do carnaval
de rua, protagonizada por atores sociais da classe
média, se estabelece em um ritmo de crescimento
exponencial dos blocos de rua a partir da primeira
década do século XXI, ocorrendo uma expansão tem-
poral, com desfiles ocorrendo desde o mês de janeiro
até uma semana após o carnaval, e espacial, princi-
palmente nas ruas da região central da cidade e da
zona sul. Sem possuir o caráter competitivo e regras
a serem seguidas no tocante aos aspectos visuais e
musicais, nestes trabalhos uma identificação dos
blocos de rua como representantes de um discurso
contra um denominado princípio organizador do car-
naval de rua. Porém, Andrade (2012) afirma que os
poderes públicos tem procurado apoiar e normatizar
o carnaval dos blocos de rua, no intuito de manter o
controle espacial sobre o acesso às ruas da cidade e
explorá-los como uma atração turística que sirva de
contraponto às escolas de samba. Neste caso, se-
rão identificados também processos de negociação
como os verificados nas escolas de samba, estando
evidentemente sobre outras bases de sustentação.O
capital simbólico representado pelos blocos de rua
para a cidade do Rio de Janeiro passou a ser utili-
zado pela municipalidade como atrativo para o es-
tabelecimento de parcerias com o capital privado na
promoção do carnaval de rua (FRYDBERG, 2014).
IX Atualmente, além desta subvenção (tratada hoje
como contrato de prestação de serviços), a possi-
bilidade de captação de verba através de diversas for-
mas de patrocínio, incluindo o que se denomina “enredo
patrocinado”. A capacidade de construir redes de apoio
deste tipo é diretamente proporcional à possibilidade
de exposição da marca do patrocinador na mídia. Des-
ta forma, os blocos de enredo e as escolas de samba
que deslam nos últimos grupos de acesso basicamente
montam seus desles a partir da subvenção nanceira
fornecida pelo poder público.
X Nos contatos iniciais com os membros da diretoria da
FBCERJ, os mesmos informaram que esta operação de
unicação das divisões hierárquicas foi ordenada pela
RIOTUR. Na matéria publicada no Extra (2011), a RIO-
TUR isentou-se de responsabilidade sobre a ação.
79
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Carnaval de rua no Rio de Janeiro: afetos e participação política
Carnaval callejero en Rio de Janeiro: afectos y participación política
Street carnival in Rio de Janeiro: affects and political participation
Jorge E. Sapia
i
Resumo:
O crescimento do Carnaval de rua no Rio de Janeiro tem contribuído
para mudar imagens e imaginários pela via da multiplicação de
experiências e narrativas que enfatizam o valor de uso da cidade.
Essa multiplicidade de experiências carnavalescas deixa entrever
uma disputa pela identidade da festa. O artigo se propõe a pensar,
a partir da noção de festa, central em autores como Bakhtin e
Lefebvre, as representações e disputas em torno do espaço público
e do direito à cidade.
Palavras chave:
Cultura Urbana
Música
Carnaval
Rio de Janeiro
Festa
80
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El crecimiento del carnaval de la calle en Rio de Janeiro contribuyo
para mudar imágenes e imaginarios por el camino de la multiplicación
de experiencias y narrativas que enfatizan el valor de uso de la ciudad.
Las múltiples experiencias carnavalescas que existen hoy en la ciudad
dejan ver una diputa por la identidad de la esta. El artículo se propone
pensar, partiendo la noción de esta, central en autores como Bakhtin y
Lefebvre, las representaciones y luchas que se dan en la ocupación del
espacio público y en la reivindicación del derecho a la ciudad.
Abstract:
The growth of street Carnival in Rio de Janeiro fosters changes in
image and mindset throughout the population. That is due to the
events’ ability to promote the exchange of multiple experiences and
narratives both which emphasize the city’s use value. This wide scope
of Carnival-related experiences brings forth a dispute on the denition
of the festival’s identity. This paper intends to analyze the various
opinions and controversies regarding the public space and city rights.
The analysis will be guided by the notion of festival, which is central in
the works of authors such as Bakhtin e Lefebvre.
Palabras clave:
Cultura Urbana
Musica
Carnaval
Rio de Janeiro
Fiesta
Keywords:
Urban Culture
Music
Carvnival
Rio de Janeiro
Festival
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Carnaval de rua no Rio de Janeiro:
afetos e participação política
1 - Introdução
A revista Insight Inteligência publi-
cou, em 2001,o artigo Carnaval.com: ago-
nia ou êxtase da razão pura? do economis-
ta Wouter Pieter Harten Jr. O autor informa
que no início do novo milênio o tráfego car-
navalesco na infovia é pequeno, que a Inter-
neté “que nem o baile do Copa, para uns
poucos privilegiados”,e que está longe de
ser, concluímos, o Cordão do Bola Preta,o
maior bloco do pais
II
e o mais tradicional do
Rio de Janeiro, transformado em 2007, em
Patrimônio Cultural imaterial da cidade.
Harten Jr. pesquisou num site de
busca na WEB que disponibilizou, nos
informa, pouco mais de 2.300 endereços
para a entrada Carnaval, o autor conclui
que, no período indicado, “não se trans-
pira carnaval na internet”, prudente, po-
rém, acrescenta, “ainda”. O artigo ativou
na memória a música de Nelson Motta
e Lulu Santos: Como uma onda. Os ver-
sos iniciais armam que Nada do que foi
será, de novo, do jeito que já foi um dia”.
Como se vê, os compositores recuperam,
em formato pop, a concepção mobilista de
Heráclito de Éfeso, isto é, a ideia de que
tudo é uxo, tudo é movimento, “Panta rei
(Tudo Passa). A frasenos remete também
às diversas concepções da modernidade,
entendida como movimento que rompe
com a tradição,como aquiloque designa o
novo, o transitório;aquilo que Baudelaire
classica comofugidio e contingente e que
Marx e Engels sintetizam, no Manifesto
Comunista, como o movimento que des-
mancha no ar tudo o que é sólido.
Estimulado pela dúvida deixa-
da no artigo, repeti a experiência - nes-
tes tempos estranhos do pós-Carnaval
de 2016 - pesquisando em dois sites de
busca –Bing e Google. O resultado foi o
seguinte:a procura por “Carnaval no Bra-
sil” disponibilizou, no Bing, 13.900.000
entradas e no Google 21.500.000. Pro-
curando por “Carnaval”, numa espécie de
lógica carnavalesca do liberou geral, apa-
receram 69.700.000 entradas. Os núme-
ros indicam primeiro uma mudança signi-
cativa no mundo virtual e segundo, uma
relação estreita entre Carnaval virtual e o
real num processo de fertilização potente.
As transformações observadas no
Carnaval de rua no Rio de Janeiro, dizem
respeito tanto aos formatos da festa, quan-
to às representações em disputa sobre a
cidade e sobre seus imaginários. São inú-
meros os olhares que hoje tentam captar o
movimento e as potencialidades da festa,
atravessada por processos sociais bási-
cos de competição, cooperação e conito.
Além da cidadania, que se constrói nos
processos de fruição da cidade e que ob-
serva, com preocupação, as transforma-
ções orientadas por processos de gentri-
cação em curso, outros atores – mercado,
mídia, turismo e poder público- identi-
cam, no crescimento, ativos importantes
que contribuem com a construção de uma
imagem positiva e rentável da cidade.
Marc Augé (1997, p. 171) nos diz
que a cidade tem como característica a
pluralidade posto que existe singularmente
nas lembranças e na imaginação de todos
aqueles que a habitam e a frequentam. Ao
mesmo tempo, a multiplicidade de experi-
ências, falas, ações criativas, afetivas e ge-
nerosas, nos evocam a imagem que Luis
García Montero fez sobre sua cidade na-
tal, Granada: “Cada persona tiene una ciu-
dad que es un paisaje urbanizado de sus
sentimientos” (MONTERO, 1972). Ambas
imagens são reveladoras das cartograas
afetivas que se entremeiam no espaço ur-
bano no tempo do Carnaval, mas não ape-
nas. Pensar esses processos associativos,
essas formas múltiplas de ação coletiva,
82
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
exige que se leve em consideração os sen-
timentos e os afetos que costuram os even-
tos a lugares especícos. Que se conside-
re a relação dos sujeitos como bairro, com
suas instituições primordiais, entre elas, o
botequim, assim como às novas formas de
estar juntos na cidade e de percorrê-la.
Na tentativa de compreender uma
realidade que envolve processos diversos,
Marina Bay Frydberg (2014) propôs uma
periodização do Carnaval de rua no Rio de
Janeiro em quatro momentos distintos: a
virada do século XX com o surgimento de
blocos, ranchos e cordões que disputaram
o lugar do Carnaval no contexto da im-
plantação da ordem republicana; as déca-
das de 1950 e 1960 a partir a criação em
1956, no bairro de Catumbi, do bloco Bafo
de Onça e da fundação, em 1961, do blo-
co Cacique de Ramos, além da hoje cin-
quentenária - Banda de Ipanema. A Banda
teve o privilégio de mostrar,durante o perí-
odo autoritário, a importância da reunião,
da comunicação, do diálogo e da desa-
nação, num contexto que privilegiava a or-
dem, a disciplina e o monólogo. O terceiro
momento - período inscrito no processo
de redemocratização do país - corres-
ponde ao que denominamos de retomada
do Carnaval de rua (SAPIA; ESTEVÃO,
2012). O quarto momento está relaciona-
do ao que Herschmann (2013) descreve
como o boom dessa nova manifestação
performática e musical na cidade.
No início do século XXI o Carnaval de
rua cresceu, em termos do número de agre-
miações, (505 blocos foram registrados na
RIOTUR no carnaval de 2016) e de público,
(estima-se em 5.300.000 foliões)
III
. A partir de
2012, o modelo carioca de festa foi ocupan-
do espaços em outras capitais do sudeste do
país. São Paulo e Belo Horizonte são exem-
plos desse crescimento e ajudam a visualizar
uma cena carnavalesca múltipla epolifônica,
da qual participam setores cada vez mais
amplos da juventude. Mas, além disso, inte-
ressa chamar a atenção para o ponto de con-
uência entre as questões que mobilizaram
os atores da retomada, atores com vínculo
estreito com formas de participação política
que caracterizaram o período,e os proces-
sos de intervenção política que se deixam
perceber na ação desenvolvida pelos blocos
e coletivos musicais que eclodiram no início
deste novo milênio. Os movimentos de junho
e julho de 2013 (SAPIA; ESTEVÃO, 2014;
FRYDBERG, 2014) mostraram um processo
de carnavalização da participação política. A
ideia de carnavalização em Bakhtin se refere
ao inacabamento, ambivalência e ao movi-
mento de desestabilização, à lógica das per-
mutações, à subversão e ruptura em relação
ao mundo ocial. Observamos hoje que a
alegria, desestabilizadora, está presente nas
pautas que questionam o modelo neoliberal
de exclusão em curso e, localmente, na de-
fesa da democracia e da constituição, ame-
açada, segundo a leitura privilegiada por es-
ses atores, pelo processo de impeachment
da presidenta Dilma Rousseff, interpretado
por esses coletivos como golpe.
2 - Transições
É consenso que nas décadas de
1970 e1980 o Carnaval de rua era uma
opção pouco valorizada. A incorporação
pelas camadas da classe média urbana
de novas pautas e valores difundidos nos
anos autoritários do milagre econômico,
contribuíram para seu declínio. Nelson da
Nóbrega Fernandez
IV
sugere que a difusão
crescente do automóvel, a oferta de novos
espaços turísticos, a revalorização do es-
paço comunitário e uma lógica antiurbana
e decididamente rural da contracultura
abriram, no Rio de Janeiro, caminho para
a procura e ocupação das regiões serra-
nas e dos lagos, esvaziando a cidade, no
periodo carnavalesco. Fernandez propõe
considerar, como indicadores que comple-
tam o quadro de penúria e esvaziamen-
to da festa de rua, a existência de uma
associação entre Carnaval e alienação,
além de considerar o papel desempenha-
83
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
do pela consolidação da Indústria Cultural
vista como principal instituição mediadora
entre o Estado autoritário e a sociedade.
Como veremos, houve um mo-
vimento de ressignicação do Carnaval
que se deu no contexto de construção
e ocupação do espaço público caracte-
rísticos dos processos de liberalização e
democratização
V
.A luta pela Anistia e o mo-
vimento das Diretas Já, nós falam de pro-
cessos de politização da sociedade que
foram sendo construídos, como atesta a
bibliograa sobre movimentos sociais ur-
banos, por novas formas de participação
orientadas por uma multiplicidade de proje-
tos e de memórias que, naquele contexto,
se apresentavam como possíveis. Foi um
processo de invenção de novos direitos, de
atualização da cidadania entendida, basi-
camente, como o direito a ter direitos.
Hoje, no quadro do mal-estar contem-
porâneo que, para Olgária Matos (1988), se
expressa num sentimento de monotonia ou
“tédio crônico” que conduz a um desinves-
timento em valores, os coletivos que pela
arte investem na alegria e se mobilizam em
defesade direitos ameaçados por um mo-
vimento conservador global profundamente
agressivo (SAPIA; ESTEVÃO, 2014), pro-
duzem, entendo, uma certa oxigenação da
política na contemporaneidade.
As celebrações e as festas ocupa-
ram e ocupam um lugar importante na ci-
dade e traduziram e traduzem a vontade
compartilhada de recuperação do espaço
público interditado ontem e de construção e
ocupação de novos espaços hoje. Essa foi
a lógica dos processos de transição política
que ocorreram em diversas realidades
VI
.
As festas são movimentos coleti-
vos com capacidade de abrir frestas pelas
quais se constróem outras narrativas que
promovem memórias sobre a cidade e so-
bre os laços que os cidadãos estabelecem
com seus territórios ou com seus bairros.
Para Mikhail Bakhtin a festa é base e fun-
damento essencial da civilização humana
“é a festa que, libertando de todo utilita-
rismo, de toda nalidade prática, fornece
o meio de entrar temporariamente num
universo utópico” (1987, p. 240-241). Uto-
pia no sentido de sonho, de projeto, de es-
perança que, orientada por valores como
o direito à diferença e o direito à cidade,
entendido por Lefebvre (2008) como uma
forma superior dos direitos, estrutura for-
mas de ação social peculiares.
Esta relação entre política e carna-
val pode ser vista em outras experiências,
ela nos fala da invenção de um espaço
temporal compartilhado, afetivo, criativo,
de reconhecimento do eu e do outro, como
observa Coco Romero em A História de un
viaje coletivo, subtítulo do livro La Murga
Porteña. Trata-se de uma investigação so-
bre as formas de viver o Carnaval nas ruas
da cidade de Buenos Aires. (ROMERO,
2013, p. 22). Romero resgata a dimensão
crítica, constitutiva da política e nos conta
que essa modalidade de expressão carna-
valesca- com longa tradição na Andalucía,
particularmente na cidade de Cádiz - chega
na cidade pela mão da imigração espanhola
que desembarca na capital portenha no m
do século XIX. O autor situa a Viagem coleti-
va como uma forma de resistência e mostra
como, apesar das tentativas de conter, se-
gregar, proibir esta modalidade cujo cenário
privilegiado é a rua, a praça pública, com o
retorno da democracia na década de 1980,
voltou a fazer parte da realidade cultural da
cidade. Neste caso, uma fusão entre arte
e política resultado de uma maior politização
dos grupos que agregaram “uma carga sim-
bólica a la esta y un mayor acercamiento
de la murga al compromisso social” (2013,
p. 29). Esta modalidade de ocupação do es-
paço público mantém uma relação de con-
tinuidade com suas origens carnavalescas,
no sentido de produzir uma crítica à ordem
estabelecida que resulta de uma modalida-
de discursiva que pode ser compreendida
como de crônicas da cidade.
84
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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No Rio de Janeiro, além do Bafo da
Onça e do Cacique de Ramos – chamado
por Beth Carvalho da Sierra Maestra do
Samba - e do Clube do Samba, organiza-
do por João Nogueira e considerado des-
de então “um dos mais belos quilombos
de resistência cultural da nossa história”
(PIMENTEL, 2002 , p .52), a juventude
dos setenta transitava por outros lugares.
Olinda, no Recife, foi e continua sendo
uma forte referência. Búzios e Arraial do
Cabo, na Região dos Lagos, contribuíram
com o modelo carnavalesco que sensibi-
lizaria a rapaziada. Em Búzios nasceu o
Bloco Carnavalesco Lítero Musical Euter-
pe Charme da Simpatia. Arraial do Cabo
mostrou, também, o caminho de bloco
com samba autoral a partir da experiência
do Bloco Se não quiser me dar, me em-
presta meu amor, frequentado por foliões
que criariam, em 1985, o Bloco Simpatia é
quase amor
VII
. De alguma maneira, a lógi-
ca performática que hoje se faz presente
nas novas modalidades de participação
carnavalesca estava presente no Charme
da Simpatia, bloco não territorializado, que
deslou, em 1975, em Ipanema, Botafogo
e Vista Alegre, num tempo em que colocar
um bloco na rua era quase uma revolu-
ção - conforme conta o poeta e composi-
tor Chacal em Uma história à margem. O
bloco foi tomando forma nas peladas do
Clube Caxinguelê, que era:
uma espécie de Embaixada da Suíça.
Ali a gente podia se reunir sem levan-
tar suspeita de formação de quadrilha.
Anal, era uma simples pelada. E mui-
tos dos livros, almanaques, sambas,
calendários, shows e artimanhas da
Nuvem Cigana e do bloco carnavales-
co Charme da Simpatia foram urdidos
ali, antes, durante e depois daqueles
embates titânicos (...)Eles vinham do
movimento estudantil e das batucadas
em Búzios, onde já ensaiavam o Bloco
Carnavalesco Lítero Musical Euterpe
Charme da Simpatia. Eles queriam ter
algum tipo de ação que não fosse a luta
armada ou mesmo a tradicional política
dos grupos de esquerda. Juntou-se a
febre com a vontade de ferver.
O Charme permitiu sentir o “enorme
prazer de estar junto, de poder falar, de
ocupar a rua”
VIII
, e fez a ponte entre o se-
gundo e o terceiro momento do Carnaval
de rua. Na realidade, integrantes do Char-
me e do movimento de poesia marginal
Nuvem Cigana, participaram da criação e
da ala dos compositores do Bloco Suvaco
de Cristo,criado em 1986, e do Bloco das
Carmelitas, fundadoem 1990. Deslaram
também no emblemático Cacique de Ra-
mos, como relata Chacal
IX
:
Participei de uma saída no Cacique.
Meio-dia. Avenida Antônio Carlos. Um
calor colossal. As mulheres à frente do
bloco. A bateria no meio e os homens
atrás. No meio do desle, em frente às
autoridades, os caciques em círculo
sentaram na Avenida. E um lenço com
lança-perfume rolou na roda. Levanta-
ram zuados e seguiram o desle. Na
saída do percurso, como de hábito, a
polícia caiu de pau. Os índios recua-
ram, tiraram as hastes das alegorias
de mão e arremessaram na polícia.
Uma nuvem de lanças cobriu a Aveni-
da Antônio Carlos. Como dizia um dos
célebres dísticos da Nuvem Cigana,
esse de Ronaldo Bastos: “enquanto
houver bambu, tem echa.
Estamos em um contexto político
e social atravessado, como todas as tran-
sições, por momento de imensa euforia e
de posterior desencanto. Entre nós, o qua-
dro de euforia participativa entrou em de-
clínio a partir de uma sequência de fatos
que podem ser lidos na chave da derrota
do campo popular. Ilustram as tensões do
período a própria derrota das Diretas Já; o
falecimento do candidato consensual, Tan-
credo Neves; a assunção da Presidencia
por José Sarney; os sucessivos fracassos
dos planos econômicos implementados no
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mandato deste último e a espiral inacio-
nária. Tensões que contribuiram para o es-
morecimento do entusiasmo anterior como
observa José Murilo de Carvalho (2001),
Havia ingenuidade no entusiasmo. Ha-
via a crença de que a democratização
das instituições traria rapidamente a
felicidade nacional. Pensava-se que o
fato de termos reconquistado o direito
de eleger nossos prefeitos, governa-
dores e presidente da República seria
garantia de liberdade, de participação,
de segurança, de desenvolvimento, de
emprego, de justiça social.
Passada a euforia inicial, tomou
forma um sentimento de descrença,
desesperança que levou à retração do
espaço público previamente ativado.
Descrença, aumento da violência e a
proliferação de barreiras, grades, cance-
las e enclaves forticados foram criando
um novo modelo de segregação espacial
e transformando a qualidade de vida pú-
blica em muitas cidades.Tudo foi conver-
gindo para acentuar a lógica cultural con-
temporânea que enfatiza a prática social
da presenticação, da satisfação pessoal
e imediata e de um individualismo, que
Jurandir Costa (1988) qualica como
perverso, produtor de práticas culturais
de despolitização radical do mundo.
Interessa pontuar que na contra-
mão desse contexto de franca desmobi-
lização, surgem novos personagens na
cidade que resolvemocupar a rua como
festa carnavalesca. Conforme lembra
Batkhin, as festas emanam dos ideais e
são “uma forma primordial da civilização”
(BAKHTIN, 1987). Para Albuquerque Jr.
(2011, p. 17), são campo de lutas simbó-
licas entre diferentes “projetos, sonhos,
utopias e delírios” que acionam o desejo
de diversos atores de botar o bloco na rua,
como diria o compositor Sérgio Sampaio e
de desfrutar da liberdade, de preservar a
alegria proporcionada pelo encontro, e de
recuperar, talvez, o imaginário que orien-
tou as utopias das décadas anteriores.
No início da década de 1980 algu-
mas instituições funcionaram como elos
dessa identidade festiva, que viam na rua
um espaço a ser ocupado. quem veja
esse movimento como uma negação à
inauguraçao do Sambódromo, que embo-
ra idealizado por duas guras libertárias, o
arquiteto Oscar Niemeyer e o antropólogo
Darcy Ribeiro, foi considerado como um lu-
gar que delimitava uma fronteira de exclu-
são dos setores populares.José Savio Leo-
poldi sugere que o crescimento do Carnaval
de rua encontra-se associado à crescente
formalização dos desles das escolas de
samba que as teriam afastado do espírito
carnavalesco próprio do universo festivo de
Bakhtin. Essa crescente formalização te-
ria levado a um deslocamento dos foliões
que encontrariam nos blocos as qualidades
“essenciais da humanidade destacados por
Bakhtin, ou seja, a igualdade, a alegria, o
despojamento, a improvisação, a criativi-
dade, o uso desregrado da linguagem e do
corpo, a ausência da formalidade e da hie-
rarquia”. (LEOPOLDI, 2010, p. 43).
Podemos argumentar também que
uma associação entre Escolas de Sam-
ba e sociedade do espetáculo, conforme
discutida por Guy Debord. O espetáculo,
que para Debord (1997) é uma relação
“entre pessoas mediatizada por imagens”,
gera uma sociedade que anula a vida “em
proveito da contemplação passiva de ima-
gens” com indivíduos que, em vez de vive-
rem em primeira pessoa, olham as ações
dos outros (JAPPE, 1999). O espetáculo
“dissocia, aparta e isola, enquanto o ‘ao
vivo’ valoriza o contato, favorece a liga-
ção, cria uma efervescência” (GALARD,
2004). No sentido inverso, e como forma
de recusa do espetáculo, que separa pal-
co e espectadores, Bakhtin entende que o
Carnaval é para ser vivido e não para ser
observado e a rua se constitui em espaço
adequado à participação.
86
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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3 - Botequins
Se é verdade que, “enquanto houver
bambu, tem echa”, também deve sê-lo que
enquanto houver botequim há bloco. Todos
os relatos sobre o mito fundador rearmam
a importância do botequim no processo de
criação dos coletivos carnavalescos. Trata-
-se de uma instituição peculiar da cultura
carioca que tem diversas funcionalidades:
ponto de encontro, espaço de sociabilida-
de, de prestação de pequenos serviços, -
como indican Vadico e Noel Rosa em Con-
versa de botequim. Carlos Sandroni, em
Feitiço Decente, mostra comonesse espaço
nasce uma nova forma de fazer samba, o
samba moderno, associado ao bairro cario-
ca do Estácio de Sá, ao bloco Deixa Falar e
aos novos instrumentos de percussão –sur-
do de marcação, cuíca e tamborim (SAN-
DRONI, 2001; VILHENA; CASTRO, 2013).
Para Sandroni, os blocos e botequins pos-
suem características comuns: são públicos
e mais abertos socialmente econtribuiram
para aumentar a capacidade de circulação
do samba na cidade.
Sabemos que instituições seme-
lhantes foram lugares de armação e
constituição da esfera pública burguesa
nos séculos XVIII e XIX (HABERMAS,
1986). Os cafés e suas tertúlias são es-
paços de sociabilidade característicos da
experiência urbana moderna, sede de
identidades estéticas, literárias e políticas.
Com a precisão e delicadeza que a ca-
racteriza, Monica Pimenta Velloso abre o
segundo capítulo do seu livro Modernismo
no Rio de Janeiro com a seguinte epígra-
fe de Lima Barreto: “Por que havemos de
viver longe uns dos outros, quando sabe-
mos que a verdadeira força da nossa triste
humanidade está na sociabilidade, na tro-
ca mútua de ideias?” e que melhor lugar
para a promoção dessa sociabilidade que
os cafés, locais de encontro do fenôme-
no social moderno da boemia como estilo
de vida. Enquanto locais de encontro e de
trabalho, “os cafés são o lugar do imaginá-
rio onde se presencia a evolução da moda
e a criação de novos tipos humanos, como
o pilier (o habitué), do qual Baudelaire e
Verlaine se tornaram a expressão mais
conhecida. (VELLOSO, 1996). Para esse
espaço de fertilização de trocas políticas,
culturais e musicais, conuiram alguns
dos atores que entre 1984 e 1990, coloca-
ram o bloco na rua.
Uma das instituições na qual se com-
partilhava a leitura de que o mundo das es-
colas de samba estava mais para o espetá-
culo do que a participação popular era um
bar de nome peculiar: Barbas. A direção se
encontrava nas mãos de alguns ex-presos
políticos da última ditadura. O bar, instala-
do em Botafogo, bairro forte tradição car-
navalesca (ZELAYA, 2015), se tranformou
nesse início dos anos de 1980 num espaço
libertário. No Barbas promoviam-se deba-
tes, organizam-se lançamentos de livros e
shows, que colocavam em contato novos e
antigos sambistas. O local foi ponto de en-
contro de ex-exilados, ex-presos políticos,
e de uma militância que tinha abraçado
os novos movimentos sociais, particular-
mente as associações de moradores, que
oresceram na passagem dos anos 1970
para 1980. Várias dessas lideranças, além
de participar da criação dos blocos do ter-
ceiro momento,marcavam presença tanto
nos desles, quanto nas atividades rituais
dos blocos. Podemos argumentar que era
um tempo romântico em que era possível
sustentar os gastos dos desles através de
ação entre amigos que compravam anual-
mente as camisetas, frequentavam festas,
numa época em que a administração da
agenda ainda era possível, como relata a
atual presidente do bloco de Segunda “o
mais interessante para quem brinca o car-
naval de rua é que a gente acaba deslan-
do em todos os blocos... compro a camisa
dos meus supostos rivais porque sei que é
isso que nancia a festa”
X
.
As camisetas, criadas por artistas
plásticos, desenhistas e cartunistas que in-
87
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
sistentemente colocam sua arte a serviço
do coletivo, reforçam a identidade das agre-
miações e são símbolos de prestígio e de
inclusão. Na classicação nativa trata-se de
camisetas e não abadás. O abadá é uma
classicação que remete ao carnaval baia-
no que se espalhou pelo país na década de
noventa. A espetacularização e força midiá-
tica do Carnaval baiano contribuiu para se-
dimentar a ideia de que fora dos desles das
escolas de samba não existia Carnaval no
Rio de Janeiro. O imaginário do abadá é tão
forte que é comum ouvir dos novos brincan-
tes da festa carioca essa classicação.
Os foliões desse terceiro momen-
to estabeleceramuma relação mais direta
com universo do samba. O samba, como
discute Ulloa (1998), entendidocomo
acontecimento, como encontro, que con-
voca e reúne. Anoção de circuito, propos-
ta por Magnani (1966), isto é, aquilo que
“une estabelecimentos, espaços e equipa-
mentos caracterizados pelo exercício de
determinada prática” em espaços urbanos
não contíguos e conhecidos basicamente
pelos seus usuários, é útil para identicar
os lugares onde se desenvolvem o que
Felipe Trotta (2004) denomina de “experi-
ências musicais sociais” que promovem “a
circulação de música pela sociedade” e le-
gitimam determinados repertórios. Os cir-
cuitos ligados ao universo do samba reve-
lam ruas (Ouvidor e do Mercado); Clubes
(Renascença); botequins (Bip-Bip e Can-
dongueiro) só para citar alguns dos circui-
tos que podem ser vistos, também, como
lugares de memória (POLLAK, 1992).
Na nossa leitura, a relação entre
o circuito de samba e de choro discutido
por que aconteceu no bairro carioca da
Lapa e os blocos do terceiro momento e
o Carnaval de rua é direta. Particularmen-
te pelo papel que teve nesse processo a
inauguração do bar Coisa da Antiga, mais
conhecido como Lavradio 100, um velho
antiquário transformado em espaço de cir-
culação musical e de encontros, fora do
período carnavalesco, dos organizadores
e foliões dos blocos da retomada. O pro-
dutor cultural Lefê Almeida foi idealizador
do movimento que revitalizou o que ele de-
nominava de MPC ou Música Popular Ca-
rioca. Fundador do Bloco do Barbas, com-
positor dos blocos de Segunda, Meu Bem
Volto Já, Simpatia é Quase Amor, Suvaco
do Cristo e folião entusiasmado, acionou,
com muita competência, seu capital social
nos empreendimentos que contribuíram
com a revitalização musical do bairro O
arco da velha, o próprio Lavradio 100 e,
posteriormente, o café Musical Carioca da
Gema. Como descreve em Lapa 2000 Me-
mórias de um produtor musical:
O carioca mostrou a força da sua cul-
tura e o seu poder de resistência com
a criação dos blocos carnavalescos,
que reacenderam a chama do nos-
so carnaval de rua. Como veremos
adiante, foi muito importante o apoio e
a presença de seus dirigentes, compo-
sitores e integrantes, nos bares onde
começou isto que chamo de ‘Movi-
mento Musical da Lapa’.
Ao observar a extensa programação
musical desses empreendimentos musicais
é possível identicar, músicos e composito-
res dos blocos da retomada e daqueles que
contribuiriam com o crescimento do Carna-
val no início do século XXI transformando
a cidade. Aparecem nas memórias da pro-
gramação musical os nomesdos músicos
que formaram, por exemplo, o Cordão do
Boitatá, matriz de uma enorme quantidade
de movimentos musicais que hoje cruzam
a cidade de norte a sul.
4 - Mercado e conitos
Em 2014, se comemorou 30 anos
da inauguração do Sambódromo ou,
como titulou o caderno especial do Jornal
O Globo, da Avenida de Sonhos: “Passa-
rela para delírios, requebros e tradições.
88
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Endereço de crenças, paixões, lágrimas,
êxtase. Moldura da maior festa popular do
Brasil”
XI
. Ficou claro, também, que ores-
ceu na cidade uma pulsante e arrebatado-
ra manifestação carnavalesca que ocupou
as ruas transformando a espacialidade e a
temporalidade do Carnaval. Os números
do Carnaval de rua são eloquentes.
Na tentativa de compreender o fe-
nômeno da rua, o poder público munici-
pal, através da RIOTUR, iniciou em 2009
um processo de registro e mapeamento,
orientado por uma leitura positivista que
prometia ordem no Carnaval de Rua.
Como o cenário não estava vaziocriou-
-seum diálogo bastante frutíferocom as
associaçõesque tinham se organizado na
virada do século XXI para pensar, exata-
mente, o crescimento da nova modalidade
festiva (SAPIA; ESTEVÃO, 2012)
Segundo RIOTUR, em 2016 o Car-
naval gerou na economia da cidade uma
renda estimada em U$S 782 milhões. Para
o secretário de Turismo, Antonio Pedro Fi-
gueira de Mello, o Carnaval coloca em fun-
cionamento uma operação de guerra da
qual participam dez órgãos públicos muni-
cipais e estaduais que contribuem para que
o Carnaval de rua comprove “seu sucesso
e sua importância no fomento do turismo
e da economia da cidade”
XII
. A ênfase no
turismo e na economia suscita críticas dos
atores, que entendem que a preocupação
com o quantitativo desvia a atenção da di-
mensão cultural da ocupação do espaço
urbano com atividades simbólicas não re-
vestidas de preocupação instrumental.
O crescimento não só se reete na
disputa pelo espaço do Carnaval como le-
vouà formação de associações orientadas
pela necessidade de enfrentar problemas
comuns: elevados gastos dos desles de-
correntes do aumento do número de foli-
ões; necessidade de uma infraestrutura
que comporte tal crescimento: carros de
som com maior volume, baterias maiores,
segurança, contratação de agentes para
o controle do trânsito das ruas por onde
passam os cortejos, etc.
Há, nesse novo espaço em disputa,
uma demarcação de fronteiras e elabora-
ção de identidades sociais que confron-
tam visões essencialistas e não essencia-
listas
XIII
. As primeiras ancoradas em uma
identidade xa ou permanente conside-
ram que o carnaval do Rio deva ter, como
referência, o universo do samba. As ma-
nifestações não essencialistas, têm cres-
cido exponencialmente nos últimos anos
e estão mais próximas da ideia da identi-
dade como “celebração móvel”, isto é, de
uma identidade “formada e transformada
continuamente em relação às formas pe-
las quais somos representados ou inter-
pelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam” (HALL, 2002).
O crescimento fez também com
que outros atores do mercado descobris-
sema festa de rua e sua potencialidade na
divulgação de marcas. A jornalista Flavia
de Oliveira divulgou em sua coluna Negó-
cio & Cia. do Jornal O Globo dados que
apontam para essa descoberta. Convida-
da a falar num painel sobre “Oportunida-
des e negócios e a lógica do patrocínio”,
mostrou dados interessantes: as marcas
Afghan, Cantão, DressTo, o Blue Man
Group. Tim, Via Mia, Kenner, Limits, Arma-
dillo, Joana João, Nestlé, Maria Filó, CDL-
-Rio, Antarctica, o Shopping Botafogo, o
Norte Shopping, Ambev e até a tradicional
loja de aviamentos Caçula “vem alteran-
do o mix de produtos da seção carnaval,
desde 2010, em razão do crescimento do
carnaval de rua”
XIV
.
Paulo Miguez, em sua dissertação
de mestrado Carnaval baiano: as tramas
da alegria e a teia de negócio,chamou a
atenção para essa relação entre festae
mercado. Argumenta que a compreen-
são do Carnaval “como um fenômeno que
se realiza em rede, supera a tentação, no
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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mínimo saudosista, de imaginar a festa
realizando-se independente do negócio,
como se possível fosse negar o caráter de
mercadoria que os espaços, todos eles,
adquirem no capitalismo”(MIGUEZ, 1996,
p.10). Miguez sugere, ainda, que a festa
“vive o conito entre ser festa ou espetá-
culo, entre render-se ao prazer ou assu-
mir-se como negócio”, alimentando-se,
precisamente, desses conitos, portanto,
é necessário mapeá-los, pensá-los.
O jornal O Globo mudou, também,
sua linha editoral em relação à festa das
ruas. Abandonou a pauta sobre a “de-
sordem” e instituiu concurso e premia-
ção para o melhor bloco da cidade. Essa
mudança pode-se ser vista no artigo de
Gilberto Scoeld Jr., editor de cidade do
jornal o Globo
XV
:
Os cariocas claramente resgataram
a autoestima perdida em anos de in-
segurança e, pelo que pude perceber,
voltaram às ruas. Eu digo rua como
espaço público, tanto que durante o
Carnaval, decidimos aqui no jornal
aumentar o espaço de cobertura dos
desles dos blocos de rua porque
aquela manifestação, repleta de gente
alegre e fantasiada, me pareceu muito
mais espontânea do que a Hollywood
que desde sempre acontece no Sam-
bódromo um espaço privado e caro,
diga-se de passagem.
Observa-se no artigo a marcação
de fronteiras entre duas formas de feste-
jar. A que enfatiza o espetáculo com sua
clássica separação entre atores e espec-
tadores e a dimensão bakthiniana que
ignora essa distinção, pois “os especta-
dores não assistem ao Carnaval, eles o
vivem, uma vez que o Carnaval pela sua
própria natureza existe para todo o povo”
(BAKHTIN, 1987). Da mesma forma Peter
Burke (2010) discutindo a cultura popular
na Idade Moderna salienta que o “local do
carnaval era ao ar livre” e que pode ser
visto como “uma peça imensa, em que as
principais ruas e praças se convertiam em
palcos, a cidade se tornava um teatro sem
paredes” sem distinção marcante entre
atores e espectadores.
No cenário contemporâneo, ca-
racterizado por uma tendência de priva-
tização e comercialização da atividade
cultural orientada pelo urbanismo de em-
belezamento, as estratégias voltadas para
a produção de imagens que possam exer-
cer atração “dos uxos globais do capital”
(RIBEIRO, 2002) se fazem presente no
Carnaval de rua, espaço considerado ade-
quado para a consolidação de marcas no
mercado (SAPIA e ESTEVÃO, 2013).
No Rio de Janeiro, alógica agres-
siva do marketing da empresa vencedora
do concurso que licitou a decoração da
cidade tem sido alvo de diversas críticas.
A superexposição da marca transformou
a cidade, nos últimos carnavais, em um
outdoor gigante. A mercadicaçãodas for-
mas culturais, acentuadas no modelo de
acumulação do mundo pós fordista, trans-
formou muitas agremiações em suporte da
marca hegemônica de cerveja. Em tempos
de acumulação exível o investimento na
construção da imagem através de diversas
estratégias de patrocínio pode resultar num
sucesso claramente lucrativo o que torna
esse investimento “tão importante quanto
o investimento em novas fábricas e maqui-
nário”, desta maneira, diz Harvey, o “pa-
trocínio corporativo das Artes [...] é o lado
prestigioso de uma escala de atividade
que inclui tudo [...] desde que se mantenha
constantemente o nome da empresa diante
do público” (HARVEY, 1992, p. 152 e 260)
5 - A Construção de Afetos
Diz Adam Potkay em seu livro A His-
tória da Alegria, que a alegria é “o deleite
da mente em razão de algo que ocorre ou
parece certo que ocorrerá em breve”. Uma
90
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rápida olhada nos jornais cariocas, nas re-
des sociais, nas conversas nas praias e
nos botequins, é suciente para perceber
a presença de uma alegria compartilhada
associada à proximidade do Carnaval.
A pesquisa realizada por Hersch-
mann sobre o quarto momento do Car-
naval carioca, mostra o desenvolvimento
de um movimento musical de rua, no qual
participam músicos tanto amadores quan-
to prossionais, que através da sua arte
ressignicam a cidade permitindo a cons-
trução de “territórios criativos capazes de
alavancar em alguma medida o Desen-
volvimento Local Sustentável desta urbe”
(HERSCHMANN, 2013).
Teresa Guilhon e Ricardo Costa,
pensando nas redes de afeto e pertenci-
mento criadas em torno dos blocos, se per-
guntam: Quanto de transformação pode
produzir uma experiência artística? Para
eles a gênese dos blocos, desse período
histórico, pode ser explicada por “vetores
de caráter geracional (a angústia da glo-
balização, a euforia da redemocratização
e a urgência da pacicação) reverberaram
e conuíram de algum modo” para o seu
surgimento. Além das referências geracio-
nais o bloco vai construir sua identidade
enfatizando em seus enredos
O patrimônio local (o negro, o samba,
o trabalho, a arte popular e a história
e evolução urbana [...] Essas linhas
apontavam para a arte e a cultura e
foram aos poucos se entrelaçando e
cerzindo um acervo poético, fazendo
uma costura de várias redes. Que,
gradualmente, transformaram-se num
tecido com o qual se fez uma fantasia
que perdura, se espalha e transforma
a realidade à sua volta
XVI
A juventude ao descobrir os blocos,
seus circuitos e trajetos, parece ter desco-
berto, que a melhor maneira de conhecer
uma cidade é perder-se nela (BENJAMIN,
2000, p. 71) e se perderé uma boa forma
de encontrar os acessos a uma cidade
que está pronta para ser descoberta.Essa
descoberta permite desfazer a imagem e
o imaginário que contaminou as leituras
sobre a cidade no período anterior, articu-
ladas à ideia hegemônica de uma cidade
cindida em dois universos incomunicá-
veis, o do mundo do asfalto e do mundo
da favela, local de moradia das “classes
perigosas” e, por extensão, local onde a
institucionalidade democrática não vigora.
A “cidade partida” funcionou mais
como construção ideológica que ajuda a
entender a proliferação de enclaves forti-
cados, isto é,de modelos de segregação
espacial nas grandes urbes, restringindo os
acessos à cidade e acentuando os meca-
nismos de exclusão global. Beatriz Jagua-
ribe (2007) trabalha a ideia de “porosidade”
para contrapor às leituras que enfatizam a
cidade cindida; a ideia de porosidade nos
permite atentar para os processos de ferti-
lização e trocas culturais que os novos for-
matos carnavalescos viabilizam.
Jailson de Souza e Silva também
descontrói essa ideia preferindo falar de
“Estado partido” uma vez que, “dominado
pelo interesse em servir apenas a grupos
sociais especícos, não cumpre a seu pre-
tenso ‘papel universal’”. Essa cisão di-
culta a formação da “Pedagogia da Convi-
vência” que sustenta as práticas sociais e
culturais urbanas do que ele denomina de
“novo carioca”. (SILVA, 2012, p. 21).
Neste sentido entendemos que os
diversos coletivos artísticos que se orga-
nizam e mobilizam, antes, durante e de-
pois do Carnaval enfatizam a ideia de inte-
gração, da inclusão e do direito a cidade,
contribuindo com a tessitura de um ima-
ginário que trabalha a partir da perspecti-
va da cidade compartilhada ou da Cidade
Cerzida, para utilizar a noção Adair Rocha
(2012).Entendemos que, pelo caminho do
encontro e da arte, são tecidas na cidade
91
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
novas formas de sociabilidade que ajudam
a superar a lógica da cisão.
Considerações nais
O movimento de blocos produziu
novas imagens e imaginários que dão
novo sentido à cidade. Os blocos da reto-
mada carnavalesca tiveram papel impor-
tante nas trasformações produzidas em
algumas áreas da cidade incorporadas
a um circuito do samba e do carnaval. A
Lapa e o histórico território denominado
de pequena África são dois exemplos. É
necessário investigar, ainda, quantos ou-
tros circuitos foram inventados por essa
enorme quantidade de manifestações car-
navalescas queressignicam a cidade.
Se os acontecimentos, persona-
gens e lugares são vetores de produção
de memória, individual e coletiva, suas
“sedes”, isto é, os diversos botequins
espalhados pela cidade, e seus trajetos,
reproduzidos durante os cortejos carna-
valescos, podem ser considerados como
lugares de apoio à memória transforman-
do-se, por conseguinte, em lugares de co-
memoração. O caráter aglutinador da festa
projeta-se além do tempo e do espaço do
carnaval, através de redes de sociabilida-
de que colocam em circulação, na esfera
pública, novas formas de imaginação, de
criatividade social, de manifestações artís-
ticas que, por seu lado, estimulam novos
olhares e narrativas assim como desaos
aos formuladores de políticas públicas e
aos atores da sociedade civil que traba-
lham na realização da festa.
As manifestações que se dissemina-
ram na cidade e no país, a partir de junho
de 2013, podem ser lidas, também, como
experiência carnavalescaproduzida por
diversos coletivos de cultura, mídia ativis-
tas, movimentos sociais e militantes inde-
pendentes que utilizam as novas tecnolo-
gias de comunicação como plataformas de
participação política. (SAPIA; ESTEVÃO,
2014; FRYDBERG, 2014). Recentemente,
em Abril e Maio de 2016, coletivos do Car-
naval de rua, utilizando ferramentas como
o Twitter e Facebook, marcaram posição
em defesa da democracia através de ma-
nifestos públicos e de ocupação, pela arte
e pela alegria, da rua. O coletivo Carnaval
pela Democracia, criado nas redes sociais,
organizou dois eventos na Cinelândia, pal-
co histórico das lutas pela democracia, e
publicou no Facebook um manifesto assi-
nado, inicialmente, por 47 blocos. O ma-
nifesto Militantes e foliões do carnaval de
rua: Não, golpe de novo, Não! propõe:
O Carnaval de rua tem mostrado sua
potência transformadora no Rio de Ja-
neiro e em diversas outras cidades do
país. A festa carnavalesca e o Carna-
val de rua, particularmente, nos con-
voca anualmente com suas pautas
democráticas, agregadoras e transfor-
madoras [...] pela sua capacidade de
produzir afetos e convida a cada um
de nós, militantes da alegria, a lutar
por uma cidade e um país inclusivo e
não excludente. [...] Neste momento
histórico de reexão e luta, momento
de fala e não de silêncio, os militan-
tes e foliões do carnaval de rua, seus
músicos e compositores estão dispos-
tos a mostrar sua vontade de ocupar
a cidade com a ação que os constitui:
arte, irreverência, critica e alegria.
Os coletivos #Ocupa Carnaval,
#Povo sem medo e o bloco Nada Deve
Parecer Impossível de Mudar e o Cordão
do Boi Tolo que tem um histórico de pro-
moção de cortejos lúdico-políticos, aderi-
ram à convocatória. Outros, ainda, deni-
ram posição em favor da democracia em
manifestos divulgados em suas páginas
Facebook: a Sebastiana (Associação In-
dependente dos Blocos de Carnaval de
Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro
da Cidade de São Sebastião do Rio de Ja-
neiro) fundada em 2000 pelos blocos da
92
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
retomada e Tambores de Olokun, criado
em 2012 e inspirado no maracatu de ba-
que virado do Recife. Blocos de Olinda, da
cidade de São Paulo e Brasília, também
se mobilizaram em defesa da democracia,
dos direitos ameaçados e do que é lido
como golpe.
De alguma forma os processos de
carnavalização da política se vinculam à
perspectiva aberta por Bakhtin, uma vez
que as formas e símbolos da “linguagem
carnavalesca estão impregnados do lirismo
da alternância e da renovação, da consci-
ência da alegre relatividade das verdades e
autoridades no poder” (BAKHTIN, 1987) ou
ainda, com Oswald de Andrade que propõe
a redescoberta do Brasil “pela invenção e
surpresa” dois elementos presentes nas
manifestações carnavalescas que são tam-
bém manifestações de vida e esperança.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Recebido em 13/07/2016
Aprovado em 02/08/2016
I Jorge Edgardo Sapia. Mestre em Sociologia pelo IU-
PERJ. Professor do Instituto Brasileiro de Medicina de
Reabilitação Centro Universitário IBMR. Brasil. Conta-
tos: jorgesapia@gmail.com ; jorge.sapia@ibmr.br
* Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada
no I Seminário Carnaval em Andamento realizado pelo
Programa de Pós-graduação em Artes (PPGARTES) da
UERJ e do Centro de Referência do Carnaval (CRC) 1 e
12 de novembro de 2015.
II Cf. http://cbn.globoradio.globo.com/grandescober-
turas/carnaval-2013/2013/02/06/CORDAO-DA-BOLA-
-PRETA-QUER-ASSUMIR-O-POSTO-DE-MAIOR-BLO-
CO-DE-CARNAVAL-DO-MUNDO.htm consultado em
10/09/2013.
III Cf. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carna-
val/2016/noticia/2016/01/riotur-divulga-cancela-
mento-de-23-blocos-do-carnaval-de-rua-do-rio.
html (acessado em 25/06/2016)
IV FERNANDEZ, Nelson da Nóbrega. Comunicação
apresentada na mesa Nosso Bloco Está na Rua, no se-
gundo Seminário Desenrolando a Serpentina organiza-
do pela Sebastiana, no IAB, Rio de Janeiro, 2009.
V Sobre os diversos processos de transição de regimes
autoritários ver O`DONNELL, G.; SCHMITTER, F. (org.)
Transições do Regime Autoritário: Primeiras conclusões.
São Paulo: Ed. Vértice, 1988
VI Para o caso de Portugal, ver o artigo de Carlos
Fortuna e Augusto Santos Silva, “A cidade do lado da
cultura: Espacialidades sociais e modalidades de inter-
mediação cultural”. Em SANTOS, Boaventura de Sou-
za (org.). A Globalização e as Ciências Sociais. São
Paulo: Cortez, 2011. Para o caso espanhol, ver Adriá
Pujols Cruells. “Ciudad, Fiesta y Poder en el Mundo
Contemporaneo”, México. 2006.
VII Entrevista com Luiz Paulo Velozo Lucas, Gustavo
Mello e Ary Miranda, fundadores do Bloco Simpatia é
quase amor. Realizada em Julho de 2011.
VIII Entrevista com Claudio Lobato, fundador do bloco
e produtor, junto com Paola Vieira do lme As Incríveis
Artimanhas da Nuvem Cigana. Apresentado na 1ª edi-
ção carioca do Festival Internacional de Documentários.
Abril de 2016.
IX Cf.http://www.hotsitespetrobras.com.br/cultura/uplo-
ad/project_reading/0_Trecho_Online_Uma_historia_a_
margem.pdf
X Cf. “A animação volta às ruas”, Jornal O Globo
27/01/1995. Do mesmo teor é a matéria titulada “Blo-
cos revitalizam o carnaval de rua”, caderno Zona Sul
01/02/1996 ou ainda a matéria de Lucila de Beaure-
paire armando “que nos últimos anos dobrou o núme-
ro de blocos”. Jornal O globo 09/02/1997.
XI Cf. Jornal O Globo. Caderno especial 23 de feve-
reiro de 2014.
XII Cf.http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janei-
ro/2015-02-23/carnaval-de-rua-cai-no-gosto-
-de-turistas-diz-pesquisa-da-riotur.html e http://
www.rotadosamba.com/riotur-balanco-carnaval-
-carioca-2015 Acessados em 21/09/2015. Ver
também https://confiramais.com.br/carnaval-rio-
-de-janeiro-rj-blocos-rua-programacao-desfile/
Acessado em 25/06/2016
XIII Sobre os primeiros indicamos o artigo do produ-
tor cultural Lefê Almeida. “O poder de resistência dos
cariocas” publicado na editoria de Opinião do jornal o
Globo em 25 de fevereiro de 2007 e o artigo “Muito blo-
co, pouco samba”, do Músico Henrique Cazes publica-
do na editoria de Opinião do Jornal O Globo em 24 de
fevereiro de 2012. As posições não essencialistas po-
dem ser encontradas no Manifesto do Carnaval Nôma-
de Cf.http://carnavalnomade.blogspot.com.br/2010/12/
manifesto-do-carnaval-nomade.html
XIV Dados apresentados por Flavia de Oliveira no
IV Seminário Desenrolando a Serpentina. 12 de ou-
tubro de 2013
XV Cf. http://oglobo.globo.com/rio/o-rio-de-espacos-
-publicos-8979920#ixzz2etITR9gO. consultado em
25/09/2013
XVI Os autores são fundadores do bloco carnavalesco
Escravos da Mauá.
Cf. http://www.livro.debaixoparacima.com.br/redes-de-
-afeto-e-pertencimento-no-carnaval-de-rua-da-regiao-
-portuaria-carioca/
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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O Carnaval do Mindelo, Cabo Verde: reexões sobre a festa e a cidade
El Carnaval de Mindelo, Cabo Verde: reexiones sobre la esta y la ciudad
The Carnival of Mindelo, Cape Verde: reections on the festival and the city
Juliana Braz Dias
i
Resumo:
Este artigo traz algumas reexões sobre a relação entre o carnaval
e a Cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente (Cabo Verde). Tal
relação desenrola-se em um processo de inuências mútuas, onde
um age na constituição do outro, de modo dinâmico. Desenvolvo,
especialmente, três pontos. Primeiro, numa perspectiva histórica,
demonstro como o carnaval deve ser compreendido na sua vinculação
à singularidade da formação social na Ilha de São Vicente. Em
segundo lugar, trato das formas como o carnaval tem desaado os
limites internos à cidade, marcada pela coincidência de fronteiras
entre bairros e estratos sociais. Por m, abordo a questão da escala,
apresentando o dilema vivido pelos habitantes de São Vicente, entre
a pequenez da Ilha e o crescimento da sua festa maior, o carnaval.
Palavras chave:
Carnaval
Cidade
Escalas
Mindelo
Cabo Verde
96
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
En este artículo se reexiona sobre la relación entre el carnaval y
la Ciudad de Mindelo, en la Isla de San Vicente (Cabo Verde). Esta
relación se desarrolla en un proceso de inuencias mutuas, donde uno
actúa en la constitución del otro, dinámicamente. Discuto, en especial,
tres puntos. En primer lugar, en un enfoque histórico, trato de mostrar
cómo el carnaval debe entenderse en su relación con la singularidad
de la formación social en la Isla de San Vicente. En segundo lugar,
presento las formas en que el carnaval ha desaado los límites internos
a la ciudad, marcada por la coincidencia de los límites entre los barrios y
estratos sociales. Por último, se aborda el tema de la escala, mostrando
el dilema del pueblo de San Vicente, entre la pequeñez de la Isla y el
crecimiento de su esta más grande, el carnaval.
Abstract:
This article is a discussion on the relationship between the carnival
and the City of Mindelo, in São Vicente Island (Cape Verde). This
relationship unfolds in a process of mutual inuences where one acts
in the constitution of another, dynamically. The discussion aims at three
points, in particular. First, with a historical perspective, I demonstrate
how carnival should be understood in its relation to the uniqueness
of the social formation of São Vicente Island. Second, I presenthow
carnival has challenged the internal limits of the city, usually marked
by the coincidence of boundaries between neighborhoods and social
strata. Finally, I address the issue of scale, focusing on the dilemma
experienced by the people of São Vicente, caught between the
smallness of the Island and the growth of its biggest party, the carnival.
Palabras clave:
Carnaval
Ciudad
Escalas
Mindelo
Cabo Verde
Keywords:
Carnival
City
Scales
Mindelo
Cape Verde
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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O Carnaval do Mindelo, Cabo Verde:
reexões sobre a festa e a cidade
Introdução
Naquele 11 de fevereiro de 2015,
uma quarta-feira que antecedia ao car-
naval, estava em festa o Aeroporto In-
ternacionalCesária Évora, na Ilha de
São Vicente, em Cabo Verde. Era che-
gada de voo vindo de Amsterdã, trazen-
do gente ansiosa para se juntar aos fes-
tejos pelas ruas da Cidade do Mindelo.
Muitos eram turistas, avisados de que
aqueles seriam dias ideais para expe-
rimentar a musicalidade e a animação
que fazem conhecida a pequena ilha
atlântica. Outros tantos eram cabo-ver-
dianos emigrados, filhos da terra que
um dia deixaram o país natal em busca
de uma vida melhor, mas que não dei-
xam escapar a oportunidade de voltar,
ainda que por uns dias, e reviver o
aconchego e a alegria de São Vicente.
A recepção dos recém-chegados
foi à altura de suas expectativas. Logo
à frente do aeroporto, deparavam-se
com uma cena impactante: passistas,
rainhas e uma porta-bandeira, em trajes
coloridos, dançavam sob sol escaldante
ao somproduzido pelos integrantes da
bateria.Poderiam ser confundidos com
uma escola de samba brasileira, não
fosse pela paisagem ao redor. As ca-
racterísticas rochas nuas da Ilha, cas-
tigadas pelo clima árido, serviam como
moldura para uma estátua de Cesária
Évora, a mais renomada filha da terra,
que parecia olhar serena para a passis-
ta em movimento.
O carnaval de São Vicente tem
sido pensado, por especialistas e gente
comum, através desse prisma comparati-
vo. O Brasil é sempre uma referência im-
portante a balizar as reexões sobre os
festejos que animam as ruas da pequena
ilha. Mas se o olhar para o outro lado do
Atlântico não pode ser evitado, tampouco
deve ofuscar o que Cabo Verde tem de
próprio. Neste artigo, direciono a atenção
para o carnaval de São Vicente em sua
relação com a cidade, a ocupação dos
espaços urbanos e a questão da escala.
Busco revisitar um tema abordado por
vários outros autores que se dedicaram
ao estudo dos festejos de carnaval, so-
bretudo no Rio de Janeiro, atenta agora
às singularidades da experiência carna-
valesca pelas ruas do Mindelo.
Venho desenvolvendo pesquisas
de caráter etnográco sobre a cultura
popular em Cabo Verde mais de 15
anos. Minha atenção tem se voltado em
especial para o gênero musical conheci-
do como “morna”, um dos principais sím-
bolos da identidade nacional cabo-ver-
diana (DIAS, 2004; 2008; 2010; 2011a;
2011b;2012a; 2012b; 2012c; 2014). A
importância da música em Cabo Verde é
revelada nas formas de sociabilidade lo-
cais e na maneira como os cabo-verdia-
nos se pensam enquanto uma totalidade
original. Sua relevância extrapola ainda
a dimensão simbólica e ganha peso em
projetos voltados para o desenvolvimento
do país, no âmbito das “economias criati-
vas” (FURTADO, 2014).
Apenas mais recentemente
(nos últimos dois anos), comecei a
incluir,entre as formas de cultura popu-
lar por mim analisadas,o carnaval.
II
Seu
impacto é igualmente notável nos pro-
cessos de construção de identidade e
nos projetos que buscam inserir a cul-
tura popular no universo do turismo, a
fim de torná-la cada vez mais atrativa
ao visitante e economicamente rentá-
vel para a população local. Diferente da
morna, que mobiliza os cabo-verdianos
em nível nacional, o carnaval está rela-
cionado mais diretamente à Ilha de São
98
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Vicente, uma das dez ilhas que com-
põem o arquipélago. existem atual-
mente alguns trabalhos voltados para
a análise desse festejo, a exemplo da
obra de Moacyr Rodrigues (2011), al-
guns artigos (SANSONE, 2012; VIEIRA
FILHO, 2015) e outras investigações em
andamento.
III
Considero, contudo, que
o carnaval de São Vicente é ainda um
fenômeno pouco explorado em termos
antropológicos, podendo render discus-
sões interessantes tanto em sua sin-
gularidade, quanto nos aspectos que
o conectam a festejos semelhantes no
Brasil e em outras partes do mundo.
O que desenvolvo neste artigo
são algumas reflexões iniciais sobre
a relação do carnaval com a cidade,
no contexto cabo-verdiano. Como afir-
mam Cavalcanti e Gonçalves (2009,
p. 10), “[f]esta pública e urbana por
excelência, o carnaval conclama os
cidadãos a reivindicarem territórios
para a folia rua, avenida, passarela,
pista, quadra, terreiro, praça, salão,
palco, terraço, onde quer que se pos-
sa acender sua faísca”. Essa relação
entre a festa e a cidade desenrola-se
em um processo de influências mútu-
as, onde uma age na constituição da
outra, de modo dinâmico. Neste traba-
lho, aponto para três desdobramentos
da relação entre o carnaval e a Cidade
do Mindelo. Primeiro, num plano histó-
rico, demonstro como o carnaval deve
ser compreendido na sua vinculação
à singularidade da formação social na
Ilha de São Vicente. Em segundo lu-
gar, trato brevemente das formas como
o carnaval tem desafiado os limites
internos à cidade, que, no tempo co-
mum, está marcada pela coincidência
de fronteiras entre bairros e estratos
sociais. Por fim, abordo a questão da
escala, apresentando o dilema vivido
pelos mindelenses, entre a pequenez
da Ilha e o crescimento da sua festa
maior, o carnaval.
A cidade, o porto e o florescer da
cultura popular
São Vicente foi, das ilhas de Cabo
Verde, a última a ser habitada. Se a ca-
rência de água impedia o uso daquelas
terras vulcânicas para a agricultura e a
criação de gado, frustrando os que ali
tentavam viver, a existência de uma baía
perfeita, quase desenhada à mão, trou-
xe à ilha sua possibilidade de desenvol-
vimento. Ao redor da baía, transformada
em porto, nasceu o povoado que viria
a constituir a Cidade do Mindelo, único
aglomerado urbano da Ilha de São Vicen-
te, onde se concentra a maior parte da
população da Ilha, que alcançamenos de
80 mil habitantes, segundo dados do cen-
so de 2010 (Instituto Nacional de Estatís-
ticas de Cabo Verde, 2016).
Foi em meados do século XIX, em
um período de intensos fluxos comer-
ciais e migratórios no espaço atlântico,
que a Ilha recebeu atenção especial.
Navios a vapor cruzavam o oceano e
necessitavam realizar escalas para re-
abastecimento de combustível. Nesse
quadro, a localização de Cabo Verde
como último ponto de parada possível
na travessia atlântica revelou-se ideal
para a criação de estações carvoeiras
– e a baía segura, de águas profundas,
que recorta o litoral de São Vicente foi
então preparada para a construção do
Porto Grande:
Junto ao porto, rapidamente cres-
ceu a cidade. As estações carvoeiras
empregavam grande quantidade de
pessoas no trabalho de descarga, ar-
mazenamento e recarregamento do
carvão. Mas o porto demandava mais.
Demandava pessoal para trabalhar na
venda de água e alimentos (também
essenciais no reabastecimento dos
navios), além de certa infraestrutura
para receber os passageiros em trân-
sito. Fez-se igualmente necessária a
99
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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instalação de mecanismos administra-
tivos e políticos do Estado português
(DIAS, 2004, p. 97).
A Cidade do Mindelo cresceu ra-
pidamente, a partir dos deslocamentos
populacionais com origem nas ilhas vi-
zinhas (Santo Antão e São Nicolau).Min-
delo ganhou fama no arquipélago pela
vida agitada, o uxo de gente, novidades
vindas de fora. No ano de 1888, quando
o Porto Grande vivia sua melhor fase,
desembarcaram no Mindelo 169.440
passageiros em trânsito (CORREIA E
SILVA, 2000, p. 131). Eram pessoas de
nacionalidades diversas que traziam
vida e transformavam o cotidiano.
O contexto portuário foi especial-
mente signicativo para imprimir na cidade
que nascia seu caráter cosmopolita. E tal
abertura ao mundo teve consequência di-
reta na criação de novas formas de lazer e
de sociabilidade. A cultura popular em São
Vicenteé fruto desse trânsito de pessoas,
ideias, valores e coisas. Nos esportes, por
exemplo, é notável a inuência inglesa.
A população de São Vicente gaba-se por
serem lhos da única ilha de Cabo Verde
onde oresceram práticas como o golfe
e o críquete. No campo musical, outros
movimentos mostraram-se relevantes.
Atribui-se aos marinheiros vindos do Bra-
sil a inuência no gosto e na prática musi-
cal cabo-verdiana. O país-irmão, do outro
lado do Atlântico, é referência importante.
Nos discursos que se ouve em Cabo Ver-
de, menciona-se sempre que a contribui-
ção de São Vicente à conguração atu-
al da morna, o gênero musical nacional,
está associada a apropriações de modos
brasileiros de tocar e falar (DIAS, 2011a).
Igualmente, relacionam-se aos uxos inte-
ratlânticos as cores do carnaval de São Vi-
cente, com traços brasileiros reelaborados
e ressignicados pelos ilhéus.
O Porto Grande teve seu auge em
ns do século XIX, mas mesmo nas déca-
das seguintes, com sua gradual decadên-
cia, ainda era fundamental porta de entra-
da de práticas estrangeiras, rapidamente
incorporadas no modo de ser dos minde-
lenses. No Brasil, na cidade do Rio de Ja-
neiro, as escolas de samba começaram a
surgir na década de 1920 (CAVALCANTI,
1995, p. 22).Segundo a cronologia apre-
sentada por Cavalcanti (ibid., p. 23), com
base na crônica carnavalesca, a primeira
escola de samba carioca (“Deixa Eu Fa-
lar”, do bairro do Estácio) teria sido criada
no nal daquela década. Em seguida, seria
formada a Mangueira e, em 1932, a esco-
la “Vai Como Pode”, mais tarde conhecida
como Portela. Ao que tudo indica, o surgi-
mento do carnaval no Mindelo, no forma-
to de grupos organizados, é praticamente
contemporâneo ao fenômeno no Brasil:
Grupos como Florianos datam de
1920, com orquestra própria, com a
sua sede, fazendo os seus famosos
bailes, constituído, principalmente,
de pequenos funcionários públicos;
outros aparecem, como Nacional
(1939), onde surge o primeiro an-
dor, representando o avião Lusitânia,
que levou Gago Coutinho e Sacadura
Cabral ao Brasil em 1922, que escalou
o Porto Grande; Sousa Cruz (1936) da
Ribeira Bote, Grupo Monte dos Amo-
res (1936) do Monte Sossego (RO-
DRIGUES, 2011, p. 57).
Noto, com isso, que não se trata
de uma influência tardia, com Cabo Ver-
de apropriando-se de um estabeleci-
do fenômeno carioca. Dos dois lados
do Atlântico, o carnaval foi sendo criado
como produto de configurações sociais
específicas, mas conectadas por fluxos
de várias ordens, cruzando o oceano.
Ainda hoje a semelhança entre
o carnaval carioca e o mindelense pro-
voca calorosas discussões. Como uma
pesquisadora brasileira em terras cabo-
-verdianas, fui recorrentemente questio-
100
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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nada a respeito de minha opinião sobre
o assunto. De maneira geral, procura-
vam pelo meu aval, a m de fortalecer o
argumento de que o carnaval do Mindelo
é, de fato, como o do Brasil – guardadas
apenas as diferenças nas suas propor-
ções (tema de que tratarei adiante). Em
termos de uma pesquisa de cunho an-
tropológico, penso que o mais relevan-
te seja, por um lado, observar a impor-
tância dessa conexão com o Brasil no
modo como a população de São Vicente
constrói sua singularidade frente às de-
mais ilhas (DIAS, 2004; 2011a); por ou-
tro lado, atentar-se aos uxos históricos
e não-hegemônicos (RIBEIRO, 2010),
feito pelas mãos de gente simples, so-
bretudo marinheiros, protagonistas na
construção de um mundo atlântico.
Para melhor compreensão do car-
naval do Mindelo, o cosmopolitismo que
até hoje caracteriza São Vicente não é o
único aspecto da formação social da Ilha
a ser ressaltado.Mesmo a organização
espacialda cidade, com traços próprios
do mundo urbano, era uma característi-
ca que, no século XIX, surpreendia os
cabo-verdianos até então acostumados
a uma existência baseada na agricultura
e que se adequava bem às manifesta-
ções de cultura popular nascentes.
Intimamente associada ao con-
texto portuário, a Cidade do Mindelo
reuniu, ainda muito cedo, as vantagens
e as desvantagens das aglomerações
urbanas modernas. A população da ci-
dade era formada, em larga medida, por
um proletariado portuário. Os campone-
ses pobres das ilhas vizinhas que che-
gavam para trabalhar no Porto Grande
precisavam enfrentar um processo de
mudança profunda, passando a integrar
uma nova classe social. Como argumen-
ta Correia e Silva (2000, p. 122-124), a
transformação desse grupo em opera-
riado urbano deu-se por meio de uma
verdadeira socialização empreendida
pelos ingleses, proprietários das com-
panhias carvoeiras sediadas no Min-
delo. Os ingleses empenharam-se na
construção de bairros operários em São
Vicente, nos moldes das concentrações
urbanas da Inglaterra industrializada, al-
terando o cotidiano da população e suas
relações com o tempo e o espaço.
[...] o crescente proletariado sanvi-
centino desenvolvia progressivamen-
te um modo de ser peculiar, nas prá-
ticas e valores que compartilhavam
e nas formas culturais a que davam
origem. Foi nesse meio, entre essas
pessoas, que ganhou projeção a mor-
na, experienciada em situações dire-
tamente relacionadas ao cotidiano da
população de trabalhadores. Ao m
de um longo dia de trabalho, era ao
violão, ao som das mornas, que mui-
tos homens do porto encontravam
seu merecido descanso tocando
seu instrumento à soleira das portas,
no movimento das tabernas ou mes-
mo na diversão dos bailes a pau-e-
-corda (DIAS, 2004, p. 101).
Foi também nesse contexto por-
tuário que surgiram as condições de
desenvolvimento das práticas carnava-
lescas. O carnaval do Mindelo, como
fenômeno urbano, ainda hoje reete as
desigualdades que caracterizam a cida-
de. Os diferentes bairros, associados a
diferentes estratos sociais, revelam for-
mas diversas de brincar o carnaval. E a
festa apresenta-se como objeto privile-
giado para uma análise dos vínculos e
das rupturas que marcam esse espaço
citadino heterogêneo.
E o carnaval desce à Morada...
No tratamento que dá ao carnaval
carioca, Maria Laura Cavalcanti tem ar-
gumentado recorrentemente sobre a re-
lação entre os desles das escolas de
101
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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samba e a cidade do Rio de Janeiro: “[s]
ua capacidade de articulação social, de
estabelecer mediações socioculturais
entre diferentes bairros e regiões da ci-
dade, entre morro e asfalto, foi, e é ain-
da hoje, de fato, ímpar” (CAVALCANTI,
2009, p. 9).Se o carnaval carioca tem
início, ainda nos anos 1920, de forma
estraticada “a cada camada social,
um grupo carnavalesco, uma forma par-
ticular de brincar o carnaval” (CAVAL-
CANTI, 1995, p. 23) –, as escolas de
samba teriam demonstrado sua incrível
capacidade de mediação, desorganizan-
do as antigas distinções.O foco da au-
tora no caráter mediador das relações
sociais que se desenvolvem a partir do
carnaval carioca apresenta continuida-
de com a clássica análise de DaMatta
(1997) sobre o fenômeno: um ritual ca-
paz de elaborar mediações e encontros,
inventando um momento igualitário.
Tal dimensão do carnaval pode
também ser investigada no caso minde-
lense, resguardando suas especicida-
des. Na vida cotidiana, a Cidade do Min-
delo está espacialmente organizada em
bairros, cujas fronteiras coincidem com
aquelas que separam diferentes camadas
da sociedade. No centro da cidade, está
a região conhecida como Morada. Nela
reside a elite do Mindelo intelectuais,
comerciantes, administradores. Nas zo-
nas periféricas, de maneira geral, estão
os bairros que, “como no passado, são
ainda hoje verdadeiros dormitórios de
homens que tanto trabalhavam no mar”
(RODRIGUES, 2011, p. 39) e, em terra,
nas ocupações mais precárias, como a
construção civil e serviços domésticos. E
é nos bairros Lombo, Ribeira Bote, Mon-
te Craca, Fonte Felipe, Bela Vista, Monte
Sossego, entre outros que vive grande
parte dos artistas envolvidos no carnaval
(ibid., p. 47). A distribuição da festa por
esses espaços e estratos sociais é com-
plexa e está associada a distintos modos
de brincar o carnaval em São Vicente.
Aqui, limito-me a lançar algumas informa-
ções e ideias, a serem desenvolvidas em
outro momento.
De forma um pouco simplista, é
possível dividir o carnaval mindelense
em três tipos de evento: os Bailes, os
Mandingas e os desfiles dos Grupos de
Carnaval. Os Bailes acontecem sobre-
tudo no sábado de carnaval. São even-
tos fechados, organizados em hotéis,
destinados a elite local. Paga-se caro
pelo ingresso, que dá direito a música
ao vivo, jantar e concurso de fantasias,
com prêmios cobiçados.
os Mandingas remetem às
camadas mais pobres da população
mindelense. Trata-se de uma prática
relativamente nova, que vem ganhando
destaque ano a ano. São grupos que
partem dos bairros periféricos, desfilan-
do pela cidade e agregando multidões,
adornados de maneira muito caracte-
rística. Os corpos mestiços de jovens
cabo-verdianos são pintados com uma
mistura de óleo de cozinha e o preto
extraído das pilhas. A pele, que ganha
assim um tom negro, muito escuro, é
combinada ao vestuário, composto por
saias de saco, plástico ou sisal, além de
outros acessórios, como colares e lan-
ças, objetivando alcançar o aspecto de
um “africano selvagem”, imaginado.
gritos de guerra, danças e músicas pró-
prias dos grupos de Mandingas. Desfi-
lam pelas ruas da cidade nas tardes de
domingo, começando no primeiro do-
mingo de janeiro e seguindo até aquele
que antecede a terça-feira de carnaval.
No domingo imediatamente após o car-
naval, realizam ainda o evento conhe-
cido como o Enterro dos Mandingas.
Trata-se de uma prática complexa, que
inspira reflexões de várias ordens. Opto
aqui por apenas sinalizar a presença
muito importante dos Mandingas, con-
centrando-me, mais detidamente, nos
Grupos de Carnaval.
102
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Estes últimos têm longa história.
São a feição do carnaval mindelense que
mais se aproxima da festa carioca. Tra-
ta-se de grupos organizados, que desfi-
lam pelas ruas da Morada na terça-feira
de carnaval o local e o dia mais nobres
do festejo. Semelhantes às escolas de
samba do Rio de Janeiro, os principais
Grupos de Carnaval estão vinculados
ao local onde estão sediados, acionan-
do pertenças:Cruzeiros do Norte (bairro
Cruz João Évora), Monte Sossego (bair-
ro de mesmo nome) e Vindos do Orien-
te (Morada). Depois de ensaios diários
que acontecem ao longo de um período
de mais ou menos um mês, descem to-
dos à Morada, compostos por andores
e diversas alas, movimentando-se em
passos coreografados, ao som da bate-
ria, cujo ritmo difere sensivelmente dos
sambas-enredos brasileiros. Os grupos
oficiais participam de uma competição,
com critérios rígidos e jurados anôni-
mos, que premiam a melhor música, o
melhor carro alegórico, a rainha de ba-
teria, o mestre-sala, a porta-bandeira,
e 2ª damas, rei e rainha, além do melhor
grupo no geral.
Pode-se dizer que, em certo sen-
tido, o desle dos Grupos de Carnaval
tem um caráter igualitário, permitindo
que coletivos de pertenças diversas, re-
lacionados a bairros e estratos sociais
diferentes, possam se reunir todos na
região mais prestigiosa da cidade, em
um concurso que os nivela. Como
apontava DaMatta,
[...] a ideia de competição (isto é, con-
curso entre iguais) é algo banido do
universo hierarquizado. Nele, ninguém
deve subir por meio de provas, o que
colocaria o desempenho adiante de
outros critérios muito mais importan-
tes, como o nascimento, a residência,
a cor da pele etc. (os critérios subs-
tantivos). Mas no carnaval tudo é feito
por meio de concursos, de modo que
o idioma da sociedade se transforma.
De uma linguagem hierarquizada,
passamos a uma linguagem competiti-
va e igualitária, que se procura pro-
mover uma oportunidade para todos
(DAMATTA, 1997, p. 148).
Porém, assim como no universo
brasileiro, também em Cabo Verde o
caráter igualitário do carnaval não reina
soberano. Saídas são encontradas para
manter atuantes no carnaval as diferen-
ças que imperam na vida cotidiana. Em
São Vicente, se a terça-feira gorda é o
dia do desle competitivo, a segunda-
-feira de carnaval é reservada ao desle
de um grupo especial, o Samba Tropi-
cal. Este não é aberto a todos (RODRI-
GUES, 2011, p. 61), nem compete com
ninguém. Considerado mais luxuoso e
renado, atrai especialmente a elite lo-
cal, além de gente de fora da Ilha e da
diáspora, em condições de pagar pelos
trajes de preços elevados.
Em “Um carnaval à francesa: a
construção da folia na cidade de Nice”,
Ferreira (2009) realiza interessante com-
paração entre a organização do espaço
urbano e os estilos de carnaval em Nice
e no Rio de Janeiro. O autor argumenta
que a metrópole brasileira não teve seu
crescimento aliado à incorporação de
novos espaços, e sim à sobreposição de
diferentes“cidades”, com aproximação fí-
sica de habitantes de diferentes origens
sociais. Tal disposição espacial teria fa-
vorecido uma situação em que “diferen-
tes jeitos de brincar carnaval dialogas-
sem uns com os outros, inuenciando-se
mutuamente e dando espaço para o sur-
gimento das mais variadas formas de
diversão” (FERREIRA, 2009, p. 32). Em
contraste, a forma de desenvolvimento
urbano da cidade de Nice, com a manu-
tenção da Cidade Velha e a construção
da parte moderna na outra margem do
rio Paillon, teria levado a existência de
diferentes carnavais, com espaços pró-
103
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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prios e relativo isolamento entre si. A se-
gregação seria a marca do organizado
carnaval niciense.
Tal análise mostra-se inspiradora
para um estudo do carnaval mindelense.
Aqui, com planos de desenvolvimentos
futuros, limito-me a sugerir que a fes-
ta, em São Vicente, combina episódios
de encontros(com misturas e dissolu-
çãotemporária das fronteiras internas à
cidade) a situações de conitos e dis-
tanciamentos. Uma análise mais detida
sobre essa ambivalência necessita com-
binar os modos de organização espacial
da cidade às características próprias
dessa sociedade crioula, fruto do colo-
nialismo português, onde historicamente
os diversos estratos sociais estiveram
sempre em contato intenso. Trata-se de
uma sociedade estraticada mas não se-
gregada, e que tem nas manifestações
de cultura popular uma de suas grandes
forças unicadoras.
IV
Um carnaval no diminutivo
Neste trabalho em que levanto
uma série de questões sobre o carnaval
do Mindelo visando investigações futuras,
abordo, por m, o problema da escala e
sua inuência no festejo em particular,
no que toca ao desle dos grupos compe-
titivos. Para tanto, é necessário retomar
a relação do carnaval mindelense com o
Brasil, que frequentemente traz à tona a
reexão da população de São Vicente so-
bre as dimensões de sua festa.
A relação entre São Vicente e o
Brasil cou eternizada nos versos do
compositor Manuel D’Novas, cantados
por Cesária Évora:
Carnaval de São Vicente
(Manuel D’Novas)
J’a’mconchia São Vicente
Na sê ligria na sê sabura
Ma’mcapudfazê ideia
S’na carnaval era mas sab
São Vicente é um brasilin
Cheidiligriacheidi cor
Ness três dia di loucura
Ca ten guerra ê carnaval
Nessmorabezasen igual [...]
Carnaval de São Vicente
(Manuel D’Novas)
Eu já conhecia São Vicente
Na sua alegria e nos seus prazeres
Mas eu não podia ter ideia
De que no carnaval era mais gostoso
São Vicente é um brasilzinho
Cheio de alegria e cheio de cor
Nesses três dias de loucura
Não há brigas, é carnaval
Nessa cordialidade sem igual [...]
Chamo atenção especial para o
verso “São Vicente é um brasilzinho” (no
original em crioulo “brasilin”). Esse ver-
so revela, de forma condensada, não
a proximidade entre Brasil e Cabo Ver-
de, mas também o contraste entre suas
dimensões. A Ilha de São Vicenteé, nas
palavras dos próprios cabo-verdianos,
“um grãozinho de terra”. A Cidade do
Mindelo conta com aproximadamente
70.000 habitantes, enquanto o Rio de
Janeiro abriga mais de 6 milhões de pes-
soas e,se levarmos em conta toda a
região metropolitana, chegamos a mais
de 12 milhões de habitantes, na terceira
maior conurbação da América do Sul.
Apesar de a população do Min-
delo nutrir significativa autoconsciência
sobre seu tamanho reduzido, começa
104
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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a enfrentar recentemente a necessida-
de de reavaliar as dimensões do seu
carnaval. As ruas da Morada que tra-
dicionalmente foram palco para a festa
começam a se mostrar pequenas para
Grupos de Carnaval cada vez maiores
e um público crescente. Retomo aqui a
situação descrita na abertura deste ar-
tigo. Além da população local, que par-
ticipa em massa da festa, o carnaval
atrai turistas nacionais e estrangeiros,
resultado, entre outros fatores, do forte
investimento do governo na espetacu-
larização do evento, movimentando a
economia frágil da Ilha de São Vicente.
V
Notória também é a grande quantidade
de migrantes cabo-verdianos que, de-
pois de meses distantes da terra natal,
voltam para desfrutar da alegria carna-
valesca em São Vicente, trazendo mo-
vimento, cores e ruídos à cidade. E a
população local desenvolve sentimen-
tos ambíguos com relação a isso.Trata-
-sedos dilemas de uma festa popular
que cresce, revelando sua vivacidade,
ao mesmo tempo em que encontra di-
ficuldades de se expandir mantendo
suas características originais.
Uma das iniciativas tomadas pelo
governo local a m de organizar o auxo
de pessoas durante o carnaval de São
Vicente foi a instalação de cordas ao
longo das principais avenidas da Mora-
da, impedindo que o público atravesse
os espaços a serem preenchidos pelos
Grupos de Carnaval durante o desle
competitivo. A medida é polêmica, ge-
rando a insatisfação de grande parte da
população, que se acumula nas calça-
das tentando se acomodar minimamen-
te, como podemos observar na g. 1.
Fig. 1: A organização das ruas para o desle de carnaval (Mindelo, 2015). Foto da autora
Por causa do grande auxo de
pessoas, outra medida tomada pelos
administradores diz respeito à seguran-
ça. A polícia e o exército são acionados
durante todo o evento com o objetivo de
evitar incidentes violentos e de manter o
público no local a ele reservado, organi-
zando o uso do espaço urbano durante a
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Fig. 2: Desle do grupo campeão, Vindos do Oriente (Mindelo, 2015). Foto da autora
festividade. Os habitantes têm, portanto,
o uso da cidade controlado por medidas
que estabelecem limites na circulação ur-
bana. E o clima de festa é alterado pela
presença ostensiva da força do Estado.
Outro tema de discussão frequen-
te entre a população do Mindelo no que
tange ao carnaval é o fato de que os gru-
pos ociais, que integram a competição,
têm crescido consideravelmente em -
mero de participantes. Para se ter ideia,
o Grupo Carnavalesco Monte Sossego
levou em torno de 3.000 integrantes às
ruas durante o Carnaval 2015 quase
5% da população da Ilha. Trata-se de
uma marca histórica que se revela, por
exemplo, na maior ala de baianas pre-
senciada no festejo.
A dimensão dos carros alegóri-
cos tem se mostrado outro problema
recorrente ao longo do percurso por
entre ruas e avenidas da Morada, com
muitas árvores e fios de eletricidade.
Muitas vezes provocam o atraso dos
grupos de carnaval e a consequente
perda de pontos na criteriosa avalia-
ção dos jurados. Os carros alegóricos
localmente “andores” transformam
o uso das pequenas ruas e principais
avenidas do Mindelo, num impacto vi-
sual de volume e cor.
Trava-se uma verdadeira luta
pela ocupação de espaços da cidade
não apenas pelos membros dos gru-
pos oficiais, mas também pelo numero-
so público, personagem ativo da festa,
que ocupa janelas, varandas e terraços
em busca de melhor visão do evento.
Como podemos notar na fig. 2, constrói-
-se um quadro impactante. Por um lado,
podem ser observados os usos criativos
dos espaços urbanos, na vitalidade dos
formas de cultura popular. Por outro,
transparecem os limites físicos desses
mesmos espaços para comportar um
número crescente de participantes do
maior evento da cidade.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Fig. 3: “Grupo de animação” em desle pela Morada (Mindelo, 2015). Foto da autora
Diante de tal quadro, uma dúvida pre-
enche as discussões da população mindelen-
se, do cidadão comum aos responsáveis pela
elaboração de políticas públicas: a alternativa
mais apropriada seria a construção de um
sambódromo como feito no Brasil? Seria
esta a solução de um carnaval que, há tem-
pos, tem como critério de excelência a festa
carioca, com seu padrão “made in Brazil”? A
pergunta continua gerando reexões e poucas
certezas diante das alterações que provocaria
no estilo cabo-verdiano de brincar o carnaval.
A contenção do público nas cal-
çadas, da maneira como vem sendo
realizada, tem sido alvo de muitas críti-
cas. Em particular, ela é associada à di-
minuição do número de “grupos de ani-
mação”, isto é, pequenos grupos que se
reúnem de forma mais espontânea para
exibir fantasias inusitadas e performan-
ces criativas e bem humoradas durante
os intervalos dos desles dos Grupos de
Carnaval ociais, a exemplo do que se
observa na g. 3.
Não são raros os discursos de
cunho mais purista que veem nos “gru-
pos de animação” o que de mais espon-
tâneo e autêntico há no carnaval min-
delense. São discursos que lamentam a
diminuição dessas performances frente
ao crescimento dos aspectos mais turís-
ticos do carnaval do Mindelo aqueles
mais grandiosos, cheios de brilho e cor,
que se assemelham ao carnaval carioca.
As iniciativas do próprio governo são am-
bivalentes. Enquanto se considera a ins-
talação de arquibancadas e a espetacu-
larização do carnaval visando o turismo,
foi tomada uma iniciativa na direção con-
trária em 2016, objetivando a preserva-
ção e o estímulo aos grupos “espontâne-
os”, supostamente mais “autênticos”. É o
Prêmio Kakoy, resultado dos esforços do
Centro Nacional de Artesanato e Design
em parceria com a Câmara Municipal de
São Vicente, que veio laurear a criativida-
de da população local que se apresenta
nos “grupos de animação”.
107
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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O dilema do carnaval cabo-verdiano
encontra paralelo em diversas manifestações
da cultura popular, em contextos variados.
No próprio carnaval carioca, não foi sem de-
saos que se criou a monumental Passarela
do Samba, com 85.000 metros quadrados e
lugares para uma plateia de 59.092 pessoas
(CAVALCANTI, 1995, p. 29) certamente,
um elemento transformador da experiência
de se brincar carnaval no Rio de Janeiro:
A construção de arquibancadas na
Avenida Rio Branco, em 1962, com a
venda de ingressos ao público, iniciou
o irreversível processo de comerciali-
zação do desle, e a procura, muitas
vezes dramática, por parte das esco-
las de um lugar adequado para o seu
carnaval. O sucesso dos desles fez
com que, de ano a ano, as arquibanca-
das crescessem. [...] A construção da
Passarela do Samba em 1984 coroou
essa evolução, e representou o reco-
nhecimento e a extraordinária amplia-
ção do potencial econômico dos des-
les (CAVALCANTI, 1995, p. 26-28).
O interesse pelo caso cabo-verdia-
no no que toca aos dilemas da espetacu-
larização do carnaval e sua inserção no
universo das “economias criativas” está no
momento inicial em que ainda se encontra,
quando se torna possível analisar de per-
to as diversas dimensões desse proces-
so, com suas particularidades locais. O
signicativo exemplo do gigantesco Bra-
sil, país-irmão do outro lado do Atlântico,
e a simultânea valorização da pequenez
cabo-verdiana são parte fundamental do
modo local de experienciar os dilemas da
espetacularização da cultura popular.
Longe de buscar aqui uma respos-
ta para tal dilema, procuro apenas indicar
como esta é uma questão relevante a ser
trabalhada pela antropologia. Aliás, todo
este artigo congura-se, ao m, como um
conjunto de insights e sugestões para in-
vestigações futuras, revelando a riqueza
do carnaval do Mindelo para se pensar a
relação entre a festa e a cidade, nas suas
múltiplas congurações.
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Recebido em 27/07/2016
Aprovado em 11/08/2016
I Juliana Braz Dias. Doutora em Antropologia. Profes-
sora da Universidade de Brasília, Brasil. Contato: jbra-
zdias@hotmail.com
II Minha pesquisa sobre o carnaval em São Vicente
foi realizada no âmbito do projeto “Transformações do
mundo de circulação nas formas estabelecidas de so-
ciabilidade”, desenvolvido através de uma parceria entre
a Universidade de Brasília e a Universidade de Cabo
Verde, com nanciamento do Programa Capes/AULP
(Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao En-
sino por meio da Mobilidade Docente e Discente Inter-
nacional). O trabalho de campo teve lugar na Cidade do
Mindelo, entre novembro de 2014 e fevereiro de 2015.
III No artigo “Ambivalências identitárias em Cabo Verde:
da história à etnograa” (DAUN E LORENA, 2015), a au-
tora faz menção ao seu projeto de doutorado, intitulado
“História colonial e processos de construção identitária
em Cabo Verde: um estudo sobre o carnaval do Min-
delo”, desenvolvido no Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa.
IV A esse respeito, ver a análise desenvolvida em ou-
tra ocasião (AUTOR, 2004) sobre os chamados “bailes
nacionais” em Cabo Verde, que no passado colonial reu-
niam, em um único evento, elite e povo, imersos em atos
de música e sociabilidade. Longe de ser uma comprova-
ção da “harmonia social do mundo luso-tropical”, o fenô-
meno era apenas mais um exemplo, no universo colonial
cabo-verdiano, da existência de certa acomodação às
desigualdades de poder, com a convivência regular en-
tre pessoas de diferentes estratos sociais.
V Em maio de 2016, o recentemente empossado Mi-
nistro da Cultura, Abraão Vicente, armou que não pou-
pará esforços para garantir que o carnaval mindelense
seja um “ex-líbris nacional e internacional”, atraindo
turistas e movimentando a economia da Ilha de São Vi-
cente. Ver: http://carnaval.sapo.cv/carnavaldomindelo/
artigo/abraao_vicente_vamos_garantir_que_o_carna-
val_do_mindelo_seja_um_ex_libris-47552qhr.html.
109
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O bairro do Recife e a Economia Criativa:
do Carnaval Multicultural ao Paço do Frevo
El barrio de Recife y la Economia Creativa:
del Carnaval Multicultural hasta lacreacióndel Paço do Frevo
Recife City District and the Creative Economy:
from Multicultural Carnival to Paço do Frevo´s creation
Carla Lyra
i
Resumo:
Este artigo tem como tema as transformações culturais e urbanas
do Bairro do Recife ocasionadas pelo desenvolvimento de um polo
tecnológico, obras na área portuária para o desenvolvimento do turismo
e a construção de museus. Algumas questões foram levantadas:
qual a importância da memória e do patrimônio no processo de
regeneração e renovação do bairro do Recife? Como as políticas se
articulam para a construção da paisagem urbana recifense? Qual
o papel da cultura nesta transformação urbana? Neste contexto, o
carnaval, a patrimonialização do frevo e a construção do Paço do
Frevo e sua relação com o bairro de São José serão analisados a
partir da Teoria Ator-Rede de Latour.
Palavras chave:
Políticas de valorização
do patrimônio imaterial
Economia Criativa
Bairro do Recife
Carnaval
110
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo tiene como tema las transformaciones culturales y
urbanas del barrio de Recife ocasionadas por el desarrollo de un
polo tecnológico, obras en la área del puerto para el desarrollo del
turismo y la construcción de museos. Surgieron algunas preguntas:
¿Cuál es la importancia de la memoria y patrimonio en el proceso de
regeneración y renovación del barrio de Recife? ¿Cómo las políticas
están articuladas para la construcción del paisaje urbano? ¿Cuál es el
papel de la cultura en la transformación urbana? En este contexto, el
carnaval, el frevo, los museos y su relación con el barrio de São José
serán analizados con la teoria actor-red de Latour.
Abstract:
This article examines the cultural and urban transformations in
Recife city district as a result of the creation of a software technology
complex, tourism-oriented development and the building of museums
in Recife´s Port area. Some questions were raised such as: what is the
importance of memory and heritage in the process of rehabilitation and
renewal in Recife City District? How have different policies impacted
Recife’s urban landscape? What is the role of culture in this process
of urban transformation? In this context, Carnival, frevo, museums
and their connections with São José´s district will be approached with
Latour´s Actor-Network Theory.
Palabras clave:
Políticas de valorización
del patrimonio inmaterial
Economía Creativa
Barrio de Recife
Carnaval
Keywords:
Intangible heritage
policies’ patrimony
Creative Economy
Recife City District
Carnival
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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O bairro do Recife e a Economia
Criativa: do Carnaval Multicultural ao
Paço do Frevo
Introdução
Este artigo apresenta algumas re-
exões resultantes da pesquisa de tese de
doutorado Cartograas da Manguetown
que tem como tema as transformações cul-
turais e urbanas do bairro do Recife entre a
década de noventa e a atualidade, ocasio-
nadas pelo desenvolvimento de um parque
tecnológico e obras na área portuária para
o desenvolvimento do turismo. Como parte
da renovação do bairro do Recife, a cons-
trução de novos equipamentos culturais
como os museus Paço do Frevo e Cais do
Sertão
II
inaugurados em 2014. A pesquisa
se debruçou sobre algumas questões tais
como: qual a importância da memória e do
patrimônio (cultura, ciência e tecnologia) no
processo de regeneração e renovação do
bairro do Recife na atualidade? Como as
políticas se articulam para a construção da
paisagem urbana recifense? Qual o papel
da cultura nesta transformação urbana?
A memória das recongurações dos
usos do patrimônio no bairro foram anali-
sadas a partir da década de noventa tendo
como marco o surgimento do movimento
Manguebeat
III
. A Teoria Ator-Rede foi uma
ferramenta metodológica utilizada para des-
vendar a inter-relação entre o Movimento
Manguebeat, a criação do Porto Digital e
as políticas de regeneração urbana e cul-
tura através de uma abordagem sobre as
interconexões de quadros de memória dos
diferentes atores que participaram desses
processos. Foi desenvolvido um estudo de
caso sobre o bairro do Recife e territórios
em conexão como o bairro de São José tra-
zendo à tona questões como economia cria-
tiva, cooperação público-privada, modelos
de cidade-mercadoria, museus e carnaval.
Diedrich (2013) argumenta que as
cidades portuárias estão especialmente
expostas a mudanças tecnológicas e eco-
nômicas que resultam em transformações
do seu espaço e o modo mais simples de
preservar esse patrimônio seria a musei-
cação. Neste cenário, os museus e o seu
capital simbólico seriam uma estratégia
para conquistar a inserção da cidade pri-
vilegiada nos circuitos culturais internacio-
nais como foi o caso do Museu Gugge-
nheim em Bilbao (ARANTES, 2000).
Os museus e seus acervos cons-
troem marcas de memória, paisagens e
narrativas na produção de identidade no
Bairro do Recife e estabelecem conexões
entre atores e lugares. Conhecer o proces-
so de criação desses equipamentos cultu-
rais é uma oportunidade de vislumbrar es-
tas conexões entre os modelos de cidade
global. Yúdice (2006) argumenta que os
bens e processos simbólicos dinamizam
o turismo - no estudo de caso em ques-
tão seriam o complexo Porto Novo Recife
(composto por antigos armazéns 12 e 13
do Porto do Recife ao lado do Marco Zero
e os centros comerciais), as indústrias au-
diovisuais (Porto Mídia) e os museus (Cais
do Sertão e Paço do Frevo) e estariam
vinculados ao desenvolvimento urbano.
O bairro do Recife, o Porto Digital
e a Economia Criativa
A regeneração urbana do bairro do
Recife na atualidade é impulsionada por
novos atores como o Porto Digital, que
tem como missão promover a revitaliza-
ção do sítio histórico
IV
desde 2000, quan-
do o Governo do Estado de Pernambuco
lançou o projeto Porto Digital Empreendi-
mentos e Ambiente Tecnológico. O Bairro
do Recife foi escolhido para este projeto
por apresentar uma disponibilidade de es-
paços ociosos e custo relativamente baixo
para empresas, localização central na ma-
lha urbana, capacidade de impulsionar a
112
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
revitalização do bairro histórico e resgatar
o caráter funcional e simbólico do local; e,
por apresentar uma grande oferta de equi-
pamentos e manifestações culturais exi-
gidas pelos novos grupos de investidores
(GIRÃO, 2005). Por sua vez, o processo
de regeneração da área portuária (Opera-
ção Porto Novo) e a construção do museu
Cais do Sertão estão relacionados às po-
líticas de Economia Criativa no segundo
ciclo da gestão Eduardo Campos (PSB)
entre 2007 e 2014, o que ocorreu simulta-
neamente à criação da Secretaria de Eco-
nomia Criativa do MINC
V
em 2008.
Em função de sua importância
crescente, a economia criativa motivou
a realização de estudos e políticas para
fomento do setor pelos governos. A Eco-
nomia Criativa abrangeria as atividades
econômicas ligadas aos segmentos de-
nidos pela UNESCO: patrimônio natural e
cultural, espetáculos e celebrações, artes
visuais e artesanato, livros e periódicos,
audiovisual e mídias interativas, design
e serviços criativos. As expressões “eco-
nomia criativa” e “indústrias criativas” são
relativamente recentes e constituem pro-
dutos da “terceira revolução industrial”
relacionados diretamente ao paradigma
de produção da sociedade contemporâ-
nea baseada na era pós-industrial, pós-
-fordista, do conhecimento, da informa-
ção e do aprendizado (MIGUEZ, 2007).
Reis (2007) remonta as origens do con-
ceito ao termo Creativenation na Austrá-
lia em 1994. No Reino Unido,foi utilizado
para contextualizar o programa de indús-
trias criativas como resposta a um qua-
dro socioeconômico pós-industrial global
no programa de reposicionamento mun-
dial da imagem do país CreativeBritain
ou Cool Britain. No Brasil, o termo surgi-
ria em 2004 com o encontro promovido
pela UNCTAD que elaborou o documento
“Consenso de São Paulo”.
Neste contexto, foi elaborado o
Plano Brasil Criativo (BRASIL, 2011)
que deniu quatro forças impulsionado-
ras do desenvolvimento: a organização
exível da produção, a difusão das ino-
vações e do conhecimento, a mudança
e adaptação das instituições e o desen-
volvimento urbano do território resultado
de uma dinâmica econômica local. Este
plano apresenta um escopo dos setores
criativos
VI
em concordância com os pa-
râmetros da UNESCO
VII
, onde o setor do
patrimônio imaterial é considerado tradi-
cional, por ser transmitido por gerações,
e vivo, por ser transformado, recriado e
ampliado pelas comunidades e socieda-
des em suas interações e práticas so-
ciais, culturais, com o meio ambiente e
com a sua própria história. Os recursos
culturais urbanos incluem, não apenas o
patrimônio histórico, industrial e artísti-
co, as paisagens e os marcos urbanos,
mas também, o patrimônio imaterial -
tradições, festivais, rituais, gastronomia,
lazer entre outros.
Conexão São José - paisagem cultural
e sonora
Você sabe lá o que é isso
Batutas de São José, isso é
Parece que tem feitiço
Batutas tem atrações que,
Ninguém pode resistir
Um frevo desses bem faz,
demais a gente se distinguir
(João Santiago, 1952)
A invenção da paisagem é, sobre-
tudo, a invenção de uma cultura e suas
linguagens. A tradição do frevo nasceu no
Bairro de São José e o Bloco Batutas de
São José foi fundado em 1932 no Pátio de
São Pedro
VIII
tendo completado 82 anos
de história em outro bairro, Afogados. Os
blocos carnavalescos foram inspirados
nos conjuntos de portugueses e italianos
do nal do século XIX, sendo oriundos
113
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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das reuniões familiares dos bairros de São
José, Santo Antônio e Boa Vista.
O surgimento dos clubes carna-
valescos com elementos integrantes dos
desles militares acrescido da inuência
das procissões religiosas ocorreu após a
abolição da escravatura negra. As rivalida-
des entre as agremiações sempre foram
uma constante no carnaval de Pernambu-
co e capoeiras, “brabos” e “valentões” pra-
ticavam “exercícios de capoeiragem” em
frente aos cordões carnavalescos. Por
outro lado, “[...] a festa carnavalesca trazia
à cena os novos protagonistas da história:
o povo comum, o trabalhador assalariado
pobre e a massa dos marginalizados, e os
revelava com uma força tal que os fazia
ainda mais ameaçadores” (SARMENTO,
2010, p. 34).
Memórias submersas, patrimônio
cultural e transformação no espaço urba-
no. Na década de 1970, grande parte do
Bairro de São José foi destruído: a Igre-
ja dos Martírios, uma parte do patrimônio
histórico do Recife e o seu carnaval de
rua. De acordo com Rogério Proença Lei-
te, os usos promovidos por processos de
gentrication
IX
podem alterar a paisagem
e imprimir outros sentidos às relocaliza-
ções da tradição e aos lugares nos espa-
ços da cidade. Qual o signicado destas
relocalizações? Que conexões são esta-
belecidas ao longo do tempo?
As transformações urbanas no
bairro de São José na década de setenta
foram narradas por documentários como
o “Martírios de São José”, cujo argumen-
to descreve a situação de um cenário
onde a destruição do patrimônio cultural
(Igreja dos Martírios) e abertura de gran-
de avenida (Dantas Barreto) ocasionou o
declínio do bairro:
A maior parte dos cidadãos que tra-
balham em São José não conhecem
sua história, tampouco sabem que por
cima do Camelódromo edicava-se
uma Igreja. O lme representará tais
“fantasmas” em consonância com os
depoimentos de alguns personagens,
como Dona Sevi e Dona Edite, gu-
ras históricas, que vivem em São José
mais de 60 anos, arquivos vivos e
ativos importantíssimos de serem me-
morados. Ambas tem vitalidade e são
referências no bairro. O depoimento
do Maestro Edson Rodrigues. Intelec-
tual do frevo, o maestro passou a in-
fância nos blocos de São José e teste-
munhou o declínio do frevo na região
após a construção da avenida. Depoi-
mentos de especialistas, como o histo-
riador Dirceu Marroquim e a arquiteta
urbanista Rosane Piccolo Loretto
X
.
O estudo de caso sobre o Bairro do
Recife nos remeteu também à memória da
criação de paisagens sonoras na cidade.
As transformações urbanas (des) guram
a cidade. Os museus (re) signicam estes
espaços de esquecimento e memória na
suas exposições.
A palavra frevo seguiu esta trajetória.
A agitação, efervescência e grande
reboliço das multidões nas ruas, a
pular e saltar ao som das vibrantes
marchas carnavalescas, invocavam a
imagem da fervura. Porém, a palavra
queria dizer mais. Seu sentido remetia
a um contexto mais amplo que o da
festa, vinculando-se, de uma forma
ou de outra, à conjuntura social, polí-
tica e cultural vivenciada pela cidade.
(ARAÚJO, 1996, p. 377).
A paisagem sonora do frevo percor-
re ruas e, ao longo do tempo, o carnaval
se (re) inventa e ocupa outros espaços.
Para compreender os processos de relo-
calização e patrimonialização é importante
levar em consideração as colocações de
Canclini (1999), que aponta que as contra-
dições no uso do patrimônio têm a forma
que assume a interação entre o setor pri-
114
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
vado, o Estado e os movimentos sociais,
o que pode ser ilustrado pelo depoimento
abaixo sobre a organização do carnaval
do Recife desde os seus primórdios:
O carnaval, tradicionalmente percebi-
do como a festa de todos, revelou-se
às elites e às autoridades como um
meio extremamente ecaz para tenta-
rem se aproximar das camadas popu-
lares. (ARAÚJO, 1996, p. 394).
Do Bairro de São José para o Bairro
do Recife - um carnaval multicultural
Fluxos culturais e políticos que
reinventam o carnaval no bairro do Recife
e na cidade no século XXI. Castells (1999,
p. 40) argumenta que a desestruturação
das organizações, a deslegitimação das
instituições, o enfraquecimento de movi-
mentos sociais e expressões culturais faz
com que a busca da identidade seja tão
poderosa quanto à transformação econô-
mica e tecnológica.
A partir do ano 2001, com o advento
da administração do Partido dos Trabalha-
dores, sob a gestão do prefeito João Pau-
lo, o Carnaval do Recife sofreu uma remo-
delação em seu modelo de organização e
adotou os conceitos de valorização da di-
versidade cultural, multiculturalismo e des-
centralização. O mapa do Carnaval era o
grande desao da gestão para ordenamen-
to da ocupação do bairro. De acordo com o
texto elaborado pela Prefeitura, o Carnaval
Multicultural pretende ser “democrático, po-
pular e diversicado” e busca oferecer ao
folião espetáculos acessíveis a todos, tanto
no âmbito espacial como no social através
da instalação de polos de animação espa-
lhados por toda a cidade, oferecendo uma
maior diversidade de atrações, bem como
de ritmos variados
XI
. Foi elaborado um ro-
teiro dos polos carnavalescos no centro
do Recife que consistiu em polos-palco de
grandes atrações locais e nacionais, como
o Marco Zero, a Praça do Arsenal da Mari-
nha, a Rua da Moeda, a Avenida Guarara-
pes, o Pátio do Terço e de São Pedro e os
diversos polos descentralizados espalha-
dos pelos subúrbios recifenses.
O marketing do carnaval - que teve
como slogan e marca “Recife capital Mul-
ticultural do Brasil, Carnaval Multicultural’
- é fortalecido na concepção do Museu
Paço do Frevo como parte de um pro-
cesso iniciado com o Plano do Complexo
Cultural Recife Olinda
XII
que aponta-
va, desde 2003, o museu como um espa-
ço de atração para o turismo.A produção
de imagens, eventos, festivais, ícones ar-
quitetônicos, espaços públicos renovados
seriam a matéria-prima do marketing ur-
bano e a cultura um meio para ressaltar
a identidade da cidade e demarcar seu
lugar no panorama mundial (VAZ, 2004).
Com a cidade pós-industrial, são difundi-
das novas formas de intervenção através
dos planos estratégicos e dos projetos ur-
banos focados na produção de serviços,
informações, símbolos, valores, estética,
conhecimento e tecnologia.
A (re)invenção do passo do frevo no
Paço
XIII
O passo surgiu de um processo de
elaboração lento e espontâneo. Os
populares que acompanhavam os
passeios das agremiações – mas que
não pertenciam às mesmas e não
participavam das ensaiadas mano-
bras sentiam-se contagiados pelas
marchas excitantes, executadas pelas
orquestras [...] Os movimentos ágeis
e denidos dos corpos, por sua vez,
retornavam aos músicos e inspiravam
novos acordes, num processo inces-
sante de troca, improvisação e criação
coletivas. (ARAÚJO, 1996, p. 362).
A criação do Paço do Frevo fortale-
ce a memória e a imagem do carnaval
XIV
.
115
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A história do frevo é contada a partir da
construção de uma linha do tempo, foto-
graas e vídeos. As exposições de longa
duração celebram personagens, músicos,
passistas, costureiras e agremiações,
mostrando a história e a tradição do frevo
e documentos e informações encontram-
-se reunidos no Centro de Documenta-
ção Maestro Guerra Peixe. No Paço está
instalada também uma escola de música
para formar novos músicos e novos re-
pertórios e uma escola de dança que está
focada em atividades de formação, trans-
missão e difusão.
Para descrever o contexto do sur-
gimento do Paço do Frevo no Bairro do
Recife é fundamental compreender as
políticas públicas do Plano Municipal de
Cultura e as políticas de preservação
adotadas nas últimas décadas do sécu-
lo XX no mundo, que se pautaram pela
ampliação do conceito de patrimônio,
compreendendo os bens de caráter na-
tural, imaterial e material (móvel ou imó-
vel). No Brasil, nesta denição ampliada
de patrimônio coube ao Estado a função
de resguardar as manifestações das cul-
turas populares, indígenas, afro-brasilei-
ras e as de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional, xando
também datas comemorativas de alta sig-
nicação para os diferentes segmentos
étnicos nacionais nos Artigos 215 e 216
da Constituição Federal. O Estado deve
assumir com a participação da sociedade
seu papel no planejamento e fomento das
atividades culturais, na preservação e va-
lorização do patrimônio cultural material e
imaterial do país e no estabelecimento de
marcos regulatórios para a economia da
cultura, sempre considerando em primei-
ro plano o interesse público e o respeito à
diversidade cultural.
O Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial
XV
tem um papel de pro-
dução de conhecimento sobre o bem cul-
tural imaterial em todos os seus aspectos
culturalmente relevantes, sendo aplicado
àqueles bens que obedecem às seguintes
categorias: celebrações, lugares, formas
de expressão e saberes, ou seja, as práti-
cas, representações, expressões, lugares,
conhecimentos e técnicas que os grupos
sociais reconhecem como parte integrante
do seu patrimônio cultural. Com o Regis-
tro, os bens recebem o título de Patrimônio
Cultural do Brasil e são inscritos num dos
quatro livros de registro de acordo com a
categoria correspondente.
Em 2003, a UNESCO lançou a
Convenção para salvaguarda do patrimô-
nio cultural imaterial e, em 2005, é ado-
tada na UNESCO a Convenção sobre a
proteção e promoção da diversidade de
expressões culturais, um documento ju-
rídico de validade internacional que visa
orientar e legitimar os países na elabora-
ção e na implementação de políticas cul-
turais próprias para proteção e promoção
da diversidade cultural, assim como insti-
tuir novos padrões de cooperação e rela-
ções internacionais. Em 2007, o Frevo foi
registrado como patrimônio imaterial do
Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histó-
rico e Artístico Nacional (Iphan) e inscrito
na lista representativa do Patrimônio Ima-
terial da Humanidade pela UNESCO em
2012. Para tal, foi realizado o seu inven-
tário
XVI
no qual se procurou perceber o
Frevo em seus vários aspectos: político,
social, cultural, estético, antropológico,
turístico e comercial
XVII
.
Na sua pesquisa sobre a patrimo-
nialização do Frevo, Sarmento (2010)
buscou analisar o impacto e a interferên-
cia das novas políticas ociais de patrimô-
nio sobre manifestações e expressões da
chamada “cultura popular”, enfocando as
práticas patrimoniais como um sistema
simbólico de transmissão, construção e
reprodução de valores culturais na cons-
tituição de identidades e representações
coletivas. A reprodução do saber, da cren-
ça ou da arte de determinado grupo social
116
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ocorre enquanto estes se apresentam vi-
vos, dinâmicos e signicativos para a vida
e circulação dos bens, de ritos ou de sím-
bolos entre as pessoas.
Nesse processo, o autor analisou
como a concepção de patrimônio cultural
amplia o leque de saberes e de institui-
ções envolvidas com a gestão e promo-
ção do frevo, identicando controvérsias
sobre a patrimonialização tais como ideo-
logias, instituições, políticas e interesses,
que são também permeadas com conitos
e contradições inerentes ao campo de ba-
talha no momento de elaboração e con-
testação de distintas e instáveis represen-
tações de memórias e identidades. São
estes processos que marcaram a criação
do Paço do Frevo e a sua gestão compar-
tilhada entre a Fundação Roberto Marinho
e a Prefeitura da Cidade do Recife.
Em maio de 2013, a Prefeitura do
Recife sinalizou que considerava ade-
quado o modelo de gestão pública indi-
reta através de uma Organização Social
(OS).Dessa forma, o Paço do Frevo
XVIII
consiste num espaço cultural da Prefeitu-
ra do Recife, sendo sua gestão realizada
pelo Instituto de Desenvolvimento e Ges-
tão (IDG). As Organizações Sociais são
um dos exemplos dos novos mecanismos
de gestão das parcerias público-privadas
que tiveram sua origem a partir da crise
scal dos anos 1980/90, com a descen-
tralização das funções dos Estados na-
cionais onde foi colocado em xeque o
modelo teórico do desenvolvimento urba-
no de base tradicional. As redes de polí-
ticas públicas e de governança reetem
esta mudança na relação entre Estado
que conduz a novas tendências em dire-
ção à gestão compartilhada e interinstitu-
cional, setor público, o setor produtivo e o
terceiro setor (TORRES, 2007).
Por outro lado, com relação à le-
gislação verica-se que o princípio das
políticas de salvaguarda do patrimônio
imaterial é fortalecer e dar visibilidade às
referências culturais dos grupos sociais
em sua heterogeneidade e complexida-
de, promovendo a apropriação simbólica
e o uso sustentável dos recursos patrimo-
niais. O Plano integrado de salvaguarda
do Frevo é um documento que sintetiza
uma série de recomendações e diretrizes
cujo objetivo é assegurar a continuidade,
a vitalidade e as vias de sustentabilidade
do Frevo em suas múltiplas dimensões.
São medidas que visam garantir a viabi-
lidade do patrimônio cultural imaterial tais
como: a identicação, a documentação, a
investigação, a preservação, a proteção,
a promoção, a valorização, a transmissão
e revitalização deste patrimônio em seus
diversos aspectos.
O Plano de salvaguarda constitui-
-se em “um instrumento difusor de alcance
local e supraregional de ações de valori-
zação, reconhecimento e estímulo ao pa-
trimônio, tendo como protagonistas as co-
munidades, os grupos e os indivíduos que
criam, mantêm e transmitem esse patrimô-
nio, associando-os ativamente à gestão
do mesmo” (CARVALHO, 2013, p. 120).
Desse modo, músicos, maestros, compo-
sitores, arranjadores, cantores, passistas,
foliões, dançarinos, produtores e integran-
tes das agremiações assumem um papel
central no planejamento das políticas de
salvaguarda do Frevo, participando ativa-
mente do diagnóstico de eventuais proble-
mas e/ou aspectos da manifestação que
precisam ser mais valorizados e na ideali-
zação de ações que assegurem suas vias
de sustentabilidade
XIX
.
O Paço do Frevo e o bairro do Recife
O Paço do Frevo ocupa o territó-
rio do Bairro do Recife incorporando na
paisagem a memória do Frevo. Com re-
lação ao bairro do Recife, o Paço tem
como objetivo especíco “contribuir para
a revitalização do Bairro do Recife e seu
117
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
entorno”
XX
. Segundo o Plano museológi-
co, um dos objetivos do espaço Paço do
Frevo é estabelecer a relação entre a ori-
gem do frevo (as ruas dos bairros do Re-
cife, de São José e de Santo Antônio) e
o Paço. O museu é um exemplo de como
as políticas culturais se articulam às po-
líticas urbanas para o fortalecimento de
“territórios”, tornando visível as conexões
entre memória e espaço.
Manifestação originada no Carnaval
do Recife, nascida entre camadas po-
pulares urbanas, o frevo passou a ser
visto como símbolo de identidade cul-
tural para os pernambucanos. Neste
contexto, ele representaria a coesão
social, a síntese dos elementos étni-
cos formadores do tipo brasileiro o
índio, o negro e o branco – ao mesmo
tempo em que revelaria e expressaria
a face local e individualizada de uma
formação histórica com característi-
cas próprias e especícas. (ARAÚJO,
1996, p. 21).
Appudarai (2004) utiliza o termo
“bairro” para se referir a formas sociais
efetivamente existentes em que a locali-
dade, enquanto dimensão ou valor, se re-
aliza de vários modos. Os bairros seriam
comunidades caracterizadas pela sua re-
alidade espacial ou virtual e pelo seu po-
tencial para reprodução social. Os bairros
seriam intrinsecamente o que são porque
“[...] se opõem a outra coisa e derivam de
outros bairros produzidos” (p. 243). O
patrimônio imaterial preservado no Bairro
do Recife ganha os seus contornos em
outros bairros como o de São José que,
além de berço do Frevo, abriga o Pátio de
São Pedro, tombado como patrimônio his-
tórico cultural pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico de Pernambuco.
Territorialidade, espacialidade que
o frevo utilizou como palco principal
como cortejo, das classes menos pri-
vilegiadas na rua: os operários, os ne-
gros alforriados, tudo isto encontrou
no frevo uma expressão mais acaba-
da para isto. Dito isto, quando a gen-
te pensa no museu a gente pensa no
grande suporte, enquanto ícone ima-
gético que pode contribuir para o mer-
cado das cidades, mercado do uxo
internacional do turismo que exige que
a cidade apresente elementos diferen-
ciadores, atrativos, sendo ampliado
XXI
.
As cidades seriam convertidas em
produtos de consumo através de estra-
tégias de marketing promovido pelo ca-
pital nanceiro e imobiliário, assim como
pela indústria do turismo e do entrete-
nimento. Esse modelo de criação de ci-
dades-commodities ou cidades-negócio
possuiria, dessa forma, um caráter in-
tervencionista, tecnocrático e manipu-
lações da noção de diversidade cultural
como slogan publicitário, a invenção de
“lugares de memória” e “políticas monu-
mentalizadoras” (DELGADO, 2007).
O Plano Museológico do Paço do
Frevo descreve que ele nasceu com o
propósito de se “[...] armar como um es-
paço de referência cultural, arquitetônica
e histórica para todo o Brasil, contribuin-
do para perpetuar a riqueza do frevo, um
dos principais ícones da identidade per-
nambucana, reconhecido pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional como patrimônio cultural imaterial
brasileiro e patrimônio da humanidade”,
ou seja, como Centro Nacional de Refe-
rência do Frevo.
O Paço do Frevo faz parte de uma
cadeia da economia da cultura no sentido
de que com as suas atividades consegue
atacar uma grande deciência do frevo
que era a sazonalidade. O frevo era uma
expressão sazonal, carnavalesca. En-
tretanto, o Paço do Frevo busca mostrar
que o frevo é um grande ativo, um grande
recurso que pode ser “consumido” duran-
te todo o ano mobilizando várias cadeias
118
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
culturais, criativas e econômicas. O Paço
criou o Programa frevo empreendedor,
ou seja, a ideia de um espaço diferencia-
do que apontaria para a sustentabilidade
dos grupos com a formação de progra-
mas musicais como estratégia para cons-
truir novos mercados e criar a conexão
do frevo com outros circuitos. Uma estra-
tégia desenhada foi a de realizar alguns
cursos e algumas ações tais como: ges-
tão de carreira, programa de qualicação
em música, aprimoramento das orques-
tras de rua - seja no sentido da técnica re-
pertório ou da organização - e atividades
como a criação de um mailing para que
os músicos pudessem ganhar autonomia
e organizar suas carreiras.
Desta forma, o Paço do Frevo seria
um “museu catalisador de experiências”
e um ator no desenvolvimento de territó-
rios criativos e incubadoras artísticas. Na
programação Hora do Frevo, consolida-
-se a formação de novos grupos e a re-
aproximação de grupos que praticamente
foram extintos. Um espaço para provocar
o encontro e a convivência fazendo sur-
gir novas possibilidades do Frevo no mer-
cado da música e da arte: novos grupos,
criações e atos criativos, intercâmbios
culturais. Para isto, uma rádio online está
sendo formatada e um estúdio será im-
plantado no museu.
O museu seria visto como uma
“plataforma”, cada vez menos conserva-
dor e autoritário, passando a ser solidário
e colaborativo, engajador das pessoas e
com o papel de capilarizar e se articular a
outras redes. O Paço já recebeu um uxo
de 200 mil pessoas desde a sua inaugu-
ração em 2014. Isto possibilitou a gera-
ção de empregos diretos e indiretos: ba-
res, restaurantes, guias, taxistas e toda
uma cadeia que se movimenta para este
serviço ser executado
XXII
. A memória do
frevo localizada no território do Parque
Tecnológico e o Cais do Sertão na área
portuária fortalece, desta forma, o marke-
ting de uma cidade multicultural e de ne-
gócios criativos.
O museu Cais do Sertão, por sua
vez, faz parte de uma estratégia da Secre-
taria de Desenvolvimento Econômico do
Estado para implantação de um potencial
cluster
XXIII
metropolitano de negócios cria-
tivos entre o Bairro do Recife e o Centro
Histórico Criativo. Esta estratégia de ressig-
nicação do território Recife/Olinda pelos
negócios criativos se apoia na ênfase em
negócios transmídia e na articulação si-
nérgica de 5 hubs
XXIV
em implantação ou a
serem implantados/adaptados: Portomídia,
Polo da Moda, Museu Luiz Gonzaga (Cais
do Sertão), Fábrica Tacaruna em Peixinhos,
Museu do Futuro Imaginário em Olinda.
Fluxos econômicos com tecnolo-
gia somada ao investimento em equipa-
mentos culturais para atração do turismo.
Em 2015, o Porto Digital comemora seus
quinze anos de existência no bairro do
Recife. Entre os seus resultados, a ins-
talação de 260 empresas e a geração de
oito mil empregos com um faturamento
de um bilhão e trezentos mil reais por ano
e a conquista pela segunda vez do título
de melhor parque tecnológico do país
XXV
.
A revitalização do Porto do Recife e a o
Parque Tecnológico consolidam uma rede
de parcerias público-privadas no territó-
rio do bairro do Recife ao mesmo tempo
que o carnaval e o Paço do Frevo fortale-
cem a identidade do bairro. Um exemplo
de como “as redes modicam de forma
substancial a operação e os resultados
dos processos produtivos e de experiên-
cia, poder e cultura” (CASTELLS, 1999,
p. 565). Entretanto, bairros que possuem
um patrimônio cultural tombado e espa-
ços culturais, muitas vezes não são inte-
grados a esses novos circuitos. Recupe-
rar a memória desses espaços como o
bairro de São José torna-se fundamental
para a compreensão da realidade atual
do bairro do Recife e os “deslocamentos
das tradições” e negócios.
119
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Recebido em 14/04/2016
Aprovado em 29/07/2016
I Carla Elizabeth Pereira e Lyra. Doutora em Memória
Social (UNIRIO).Brasil. Contato: clyra2@gmail.com
II Bairro do Recife se torna laboratório urbanístico. Di-
ário de Pernambuco, Recife, 20 abr. 2014. Vida Urbana.
III Emergindo da “periferia da periferia”, da lama, o Man-
guebit (como foi chamado pelos grupos que o constitu-
íam), ou mangue beat (como cou conhecido por meio
da mídia nacional), vai transformar a cidade do Recife
(PRYSTHON, 2005).
IV Em 1998, aconteceu o tombamento do Bairro do
Recife pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan) sob portaria federal 263/98 e pela
Prefeitura do Recife mediante lei nº 16.290/97. Três as-
pectos que destacaram a importância nacional do Bair-
ro: a relevância paisagística, arquitetônica e urbanística
(LEITE, 2009).
V Informações coletadas a partir de entrevista e da pági-
na do Ministério da Cultura. Disponível em: <http://www.
cultura.gov.br/secretaria-da-economia-criativa-sec>.
VI Os setores criativos são aqueles cujas atividades
produtivas têm como processo principal um ato criativo
gerador de um produto, bem ou serviço, cuja dimensão
simbólica é determinante do seu valor, resultando em
produção de riqueza cultural, econômica e social.
121
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
VII Disponível em: <http://www.unesco.org/new/pt/brasi-
lia/culture/world-heritage/intangible-heritage/>.
VIII Informações sobre o Pátio disponíveisem: <http://
www.patiodesaopedro.ceci-br.org/saopedro/pt/>.
IX O termo gentrication foi usado pela primeira vez
na década de 1960 por Ruth Glass, socióloga alemã,
para explicar as mudanças ocorridas nos bairros lon-
drinos, onde as camadas populares foram substituí-
das pelas médias. Tal processo evoluiu de forma -
pida, marcando o urbanismo contemporâneo (SMITH,
2006). Sobre o processo de enobrecimento ou gentri-
cation no bairro do Recife ver: Nery, N. S.; Castilho,
C. J. M. A comunidade do Pilar e a revitalização do
bairro do Recife: possibilidades de inclusão socioes-
pacial dos moradores ou gentricação. Humanae, v.
1, n. 2, p. 19-36, dez. 2008.Disponível: <http://www.
esuda.com.br/revista_ humanae.php>.
X Sinopse do vídeo Martírios de São José. Disponí-
vel em: <http://www.youtube.com/ watch?v=nu7Pg_
z9DTI&feature=youtu.be>.
XI Prospecto da Prefeitura do Recife sobre o Carnaval
Multicultural, 2012.
XII O projeto Complexo turístico cultural Recife-
-Olinda: no território do passado, a construção do
futuro previa intervenções programadas para acon-
tecer num período de 15 a 20 anos, numa faixa lito-
rânea entre os centros históricos destas duas cida-
des. O Plano elaborado a partir do ano de 2003 foi
identificado como instrumento de planejamento de
uma rede cultural que articularia a construção da
paisagem urbana recifense.O complexo foi definido
como “território que sintetiza a expressão da cultura
local e que pode tornar esta identidade como vetor
estratégico para seu desenvolvimento” (PREFEITU-
RA DO RECIFE, 2007).
XIII Um trocadilho entre passo do frevo como movimen-
to corporal e Paço como local de habitação suntuosa
para a realeza ou o episcopado; palácio, ou seja, a ideia
de criar um palácio do frevo.
XIV O projeto conta com o patrocínio do Banco Nacio-
nal de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
da Companhia Energética de Pernambuco (Celpe), do
Governo do Estado de Pernambuco, por meio de sua
Secretaria de Turismo e da Empresa de Turismo de
Pernambuco (Empetur), do Instituto Camargo Cor-
rêa, do Instituto Votorantim, do Itaú, da Rede Globo
e apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) e do Ministério da Cultura, por meio
da Lei de Incentivo à Cultura.
XV Elaborado a partir do Decreto 3.551/2000 como
um instrumento legal de preservação, reconhecimento
e valorização do patrimônio cultural imaterial brasileiro
composto por bens que contribuíram para a formação da
sociedade brasileira.
XVI O Inventário Nacional de Referências Culturais
(INRC) é um dos principais instrumentos para a iden-
tificação e documentação de bens culturais sob a
perspectiva da atual política de valorização do patri-
mônio imaterial originada pelo decreto 3551, de 4
de agosto de 2000.
XVII Dossiê do Frevo (Patrimônio Imaterial do Brasil).
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XVIII Disponível em: <http://www.pacodofrevo.org.br/>.
XIX O Plano integrado de salvaguarda do Frevo está
estruturado em sete eixos de atuação: espaço do fre-
vo, documentação, transmissão e informação, divulga-
ção, apoio às agremiações, direito autoral, marcas e
patentes e economia da cultura do frevo, nos quais se
encontram detalhadas uma série de ações e projetos,
bem como atividades e papéis a serem desempenha-
dos pelo poder público e pela sociedade civil de forma
complementar e colaborativa.
XX O imóvel onde funciona o Paço do Frevo é protegi-
do por legislação especíca do Iphan e pela legislação
municipal como Zona Especial do Patrimônio Histórico-
-Cultural 09 – ZEPH-09.
XXI Entrevista com Eduardo Sarmento, Gerente do
Paço do Frevo, 2015.
XXII Dados obtidos a partir da entrevista supracitada.
XXIII Cluster seria no mundo da indústria como “[...]
uma concentração de empresas que se comunicam por
possuírem características semelhantes e coabitarem no
mesmo local. Elas colaboram entre si e, assim, se tor-
nam mais ecientes” (FGF/SEC, 2013, p.13).
XXIV Um hub funciona como a peça central, que
recebe os sinais transmitidos pelas estações e os
retransmite para todas as demais. Todas as placas
são ligadas ao hub ou switch, que serve como uma
central, de onde os sinais de um micro são retransmi-
tidos para os demais.
XXV Dados obtidos no site: www.portodogital.com.
122
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Carnaval, uma festa democrática? Discussão sobre segregação social
e o direito à cidade a partir do universo carnavalesco do Rio de Janeiro
¿Carnaval, una esta democrática? Una discusión sobre la segregación social
y el derecho a la ciudad desde el universo carnavalesco de Río de Janeiro
Carnival, a democratic festivity? Discussions about social segregation
and right to the city in the carnival universe of Rio de Janeiro
Thaís Cunegatto
I
Resumo:
O objetivo deste artigo é discutir o carnaval carioca enquanto uma
festa urbana nacional, um patrimônio imaterial e uma política pública
que aciona identidades sociais e se constrói e reconstrói na medida
em que o Brasil e a cidade do Rio de Janeiro se transformam. O texto
inicia sua discussão partindo da premissa que o ritual carnavalesco
das escolas de samba se constitui em um universo urbano que
engendra relações entre o poder público e as camadas populares
para a posteriori discutir os processos de segregação urbana ligados
à construção de uma identidade nacional. Por m, o artigo busca
reetir sobre as múltiplas dimensões de poder dadas num processo de
ocialização e patrimonialização de uma festa, bem como os intensos
processos de negociação e agência intrínsecos das relações entre
poder público e as camadas populares que vivenciam cotidianamente
o carnaval há gerações.
Palavras chave:
Carnaval
Identidade nacional
Política pública
Agência
Festa popular
123
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El propósito de este artículo es discutir el carnaval de Río de Janeiro
como una esta urbana nacional, un patrimonio inmaterial y una política
pública que desencadena las identidades sociales que construye
y reconstruye la medida en que Brasil y la ciudad de Río de Janeiro
cambian. El texto comienza su argumentación partiendo de que los
rituales carnavalescos de las escuelas de samba constituyen un universo
urbano que engendra las relaciones entre el gobierno y las clases
trabajadoras, para despues discutir sobre los procesos de segregación
urbana vinculada a la construcción de una identidad nacional. Por
último, el artículo busca reexionar sobre las múltiples dimensiones de
poder dadas en el proceso de formalización y patrimonialización de la
esta, así como los intensos procesos de negociación naturales de las
relaciones entre el gobierno y las clases trabajadoras que diariamente
experimentan el carnaval durante las generaciones.
Abstract:
The objective of this essay is to discuss about the carnival from Rio de
Janeiro as a national urban festivity, intangible cultural heritage and also
a public policy that actuates social identities, building and rebuilding
itself as Brazil and the city of Rio de Janeiro changes. The essay starts
its argument from the premise that the samba school’s rites of carnival
constitutes an urban universe that creates relations between the public
power and the popular masses and a posteriori discusses about the
process of urban segregation connected to the development of a national
identity. Lastly, the essay will reect about the multiple dimensions of
power given in the process of ofcialization and patrimonialization of a
festivity as well as the intense processes of negotiation and agencies
inherent to these relations between public power and popular masses
that experience the carnival for several generations.
Palabras clave:
Carnaval
Identidad nacional
Política pública
Agencia
Fiesta popular
Keywords:
Carnival
National identity
Public policy
Agency
Popular festivity
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Carnaval, uma festa democrática?
Discussão sobre segregação social e
o direito à cidade a partir do universo
carnavalesco do Rio de Janeiro
Contextualizando o nascimento e a con-
solidação das escolas de samba cario-
cas no universo sociopolítico brasileiro
A criação das escolas de samba
é parte do processo de urbanização das
festas populares brasileiras e seu surgi-
mento pode ser pensado como a concre-
tização – lúdica, festiva - do processo de
urbanização da cidade do Rio de Janei-
ro. Assim como a cidade, a festa carna-
valesca no contexto carioca passou por
processos que visavam aproximá-la do
modelo civilizador europeu. As ideias
de modernidade e de progresso cons-
tituíam fortemente o imaginário político
da época. Neste sentido, as palavras
inscritas na bandeira brasileira “Ordem
e Progresso”, serviam de lema estatal e
foram colocadas em prática no processo
de constituição de uma identidade brasi-
leira. O carnaval, elemento festivo cons-
titutivo desta identidade, assim como di-
versas outras instâncias da vida social,
passou por medidas de “regulamenta-
ção” e ordenação impostas durante o
governo Vargas.
O samba moderno é aquele ca-
racterístico das escolas de samba. De
acordo com Farias (1995) o ritmo é fru-
to daquilo que José Murilo de Carvalho
chama de “pequena África carioca”. Ou
seja, o autor em questão refere-se a um
uxo de imigrantes, oriundos da Bahia,
em sua maioria descendentes de africa-
nos mulçumanos, que reelaboram sua
música e sua religião através da criação
dos “ranchos”. Os “ranchos” tiveram seu
ápice quando se deslocam para a Praça
XV, considerado o território da moderni-
dade carioca à época. Esse é um mo-
mento crucial, quando o carnaval ganha
notoriedade e começa uma trajetória
que o fará ser concebido como o “maior
espetáculo da Terra”.
De acordo com Maria Goldwas-
ser (1975, p. 11), desde o surgimento
das escolas de samba até a consolida-
ção do carnaval enquanto festa popular
oficializada e subvencionada pelo Esta-
do, inúmeros processos de adesão às
exigências governamentais, que iam ao
encontro aos processos de moderniza-
ção e, consequente “limpeza” e “orde-
nação” marcam as transformações do
carnaval visto, até então, como uma
anti-festa caótica a uma empresa buro-
craticamente organizada.
O primeiro concurso de escolas
de samba ocorreu em 1929 e marca uma
tentativa de conter a folia das ruas, de
restringir o espaço da festa com a utili-
zação de cordas e de cavalos, a m de
diminuir o caos festivo de outrora e im-
por a ordem na festa carnavalesca. Esse
processo de construção de uma festa
mais “deglutível” aos olhos governamen-
tais é marcado, como assinala Maria
Isaura de Queiroz (1992), pela invenção
de uma tradição, evento esse explicitado
na criação da ala das baianas em 1932,
que tornava obrigatória a lembrança da
origem africana do samba enquanto fe-
nômeno festivo e social.
O processo de adesão às normas
do Estado, tais como a criação de espa-
ços de contenção, tornam possível, em
1935, a ocialização por parte do gover-
no federal da festa carnavalesca. Farias
(1995) destaca que o carnaval carioca
se torna nesse período um “fato social
total”, evocando o pensamento maussia-
no (2003). Cabe salientar que durante o
Estado Novo, período ditatorial instau-
rado por Getúlio Vargas, o nacionalismo
era um valor exaltado e a construção de
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um orgulho nacional era vivenciada em
várias esferas da vida social.
Em 1930, as exigências do gover-
no federal às escolas de samba eram
coerentes com os valores defendidos
por uma sociedade capitalista industrial,
ou seja, o modelo de sociedade ao qual
o Brasil se transformava nessa época.
As imposições contribuíam para afas-
tar o carnaval carioca de suas origens
africanas e populares, a tal ponto que os
jurados selecionados para a avaliação
do concurso não eram mais pertencen-
tes às camadas populares e subalternas
nas quais o carnaval teve sua origem,
mas pertenciam a uma elite intelectual
oriunda das classes médias.
Nestes termos, os carros alegó-
ricos, a comissão de frente, o desfile
dividido em alas, enfim, todos esses
elementos são pertencentes ao carna-
val das Grandes Sociedades, de certa
forma, impostos às escolas de samba.
A adesão por parte das escolas aos te-
mas nacionalistas inculcados pelo go-
verno federal, bem como os processos
de censura a determinados temas evi-
denciam a dinâmica de patrimonializa-
ção da festa carnavalesca carioca, que
mais tarde tornar-se-á um patrimônio
nacional brasileiro.
De acordo com Monique Augras
(1993), em 1939 foi criado o Departa-
mento de Imprensa e Propaganda (DIP),
cujo objetivo era regularizar as normas
carnavalescas. Neste regulamento,
como tentativa de contenção à chama-
da expansão comunista, o maior temor
do período da Guerra Fria, tornava-se
obrigatória a apresentação de temas ex-
clusivamente nacionais, como forma de
combate ao comunismo pela via de um
nacionalismo exacerbado.
Esta época é marcada por um
processo de mercantilização da cultu-
ra popular, no qual as empresas e as
casas noturnas tiveram um papel de-
cisivo. Este período coincide com uma
forte influência do movimento intelec-
tual modernista, que evocava o primi-
tivismo originário da nação brasileira.
Esses ideais vão ao encontro da cons-
trução de uma identidade brasileira
atrelada à noção de mestiçagem, e que
encontram no carnaval das escolas de
samba, uma série de elementos que
corroboram o discurso identitário de
um Brasil constituído na e pela mistura
harmônica das três raças
II
.
É um período contraditório atra-
vessado por momentos de adesões, de
resistências, de confrontos, enfim, de
negociações, onde se trava uma bata-
lha entre o carnaval enquanto expres-
são artística e popular e a necessária
resposta às exigências dos diferentes
patrocinadores, sejam eles ligados aos
governos, às empresas privadas, ou
mesmo, à contravenção. Portanto, é
nesse ínterim que se configura e se for-
ja o “maior espetáculo da Terra”.
A gura do bicheiro, do mecenas,
aparece com força desde o período da
criação das escolas de samba. Não à toa
a gura de Natal se sobressai, conhecido
por suas atividades com jogo do bicho e
mecenas da tradicional Portela, ganha o
apelido de “patrono da alegria”. Investir
no carnaval carioca torna-se uma forma
de obtenção de reconhecimento, ou ain-
da, de prestígio político e econômico.
O reconhecimento do carnaval en-
quanto festa nacional não garantia o -
nanciamento público às mesmas, o que
as tornava dependentes ao auxílio nan-
ceiro dos mecenas do jogo do bicho. O
investimento dos bicheiros no carnaval
carioca possibilitava, assim, uma mar-
gem de manobra às escolas de samba,
que sofriam com a falta de investimento
público durante a década de 1940.
126
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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A proibição por parte do gover-
no à utilização ao espaço público antes
ocupado pelas Grandes Sociedades e
Ranchos, ou seja, a Avenida Rio Branco,
bem como a falta de investimento, não
impendiam o mesmo de utilizar o carna-
val como uma festa patriótica e símbolo
do país. Esse paradoxo entre a falta de
um suporte nanceiro atrelado a um reco-
nhecimento simbólico por parte do públi-
co, permitiu aos bicheiros desempenhar
um papel fundamental na emergência e
na consolidação das escolas de samba
na cidade de Rio de Janeiro.
O declínio denitivo dos Ranchos
e das Grandes Sociedades deu-se na
década de 1950. O patrocínio do jogo
do bicho fez do carnaval das escolas
de samba uma festa luxuosa, que cati-
vou toda a população brasileira. Mesmo
que em sua origem a festa tenha surgi-
do como uma festa popular, aos poucos,
a elite carioca começou a participar do
dito “carnaval de avenida”. Em 1956, as
escolas de samba conquistam a Avenida
Rio Branco e, posteriormente, a Presi-
dente Vargas, símbolo da modernidade
da época e ponte situada entre a rica
Zona Sul carioca e a massa de trabalha-
dores oriundos do “resto da cidade”.
A partir de 1970 o carnaval se tor-
na, de acordo com Edson Farias (1995),
um evento cosmopolita, mais especica-
mente, no sentido de que os brasileiros
não moradores da cidade do Rio de Ja-
neiro são interpelados a conceber a fes-
tividade carnavalesca carioca enquanto
evento nacional, ao mesmo tempo em
que os turistas do mundo inteiro são
convidados a conhecer e a participar da
grande festa nacional.
O carnaval, nesse sentido, atua-
liza o mito da comunhão humana evo-
cando a espontaneidade e a democracia
de uma festa em que “todos” participam.
Maria Isaura de Queiroz (1992) ressalta
que não apenas a comunidade carnava-
lesca vê o carnaval enquanto um espaço
democrático, como também, a socieda-
de brasileira o percebe dessa forma. É
a partir desta constatação que DaMatta
(1978) formula sua hipótese do carnaval
enquanto rito de unicação da socieda-
de brasileira, que seria, por sua vez, an-
corado nos valores das camadas popu-
lares. Vale ressaltar que esse ponto de
vista é altamente criticado por ignorar as
assimetrias e as violências simbólicas
apontadas acima.
DaMatta (1985) mostra que a se-
paração entre a esfera pública e a pri-
vada é uma característica típica das
classes médias e altas da sociedade
brasileira, que se ancora num modelo
europeu de civilização, porém nas clas-
ses populares essa lógica não opera da
mesma maneira. O espaço da rua, para
as camadas populares, pode ser visto
como uma extensão do espaço domés-
tico, fenômeno que pode ser constata-
do pelas portas de suas casas sempre
abertas, que convidam os vizinhos a en-
trar e a compartilhar de seus espaços de
“intimidade”, pelos jogos de futebol em
meio às ruas e nas festas de bairro que
mobilizam toda a comunidade. DaMatta,
a partir de suas reexões inclui o carna-
val, ao percebê-lo enquanto um ritual de
communitas oriundo da expressão sim-
bólica das camadas populares, que faz
do espaço da rua uma mistura entre a
esfera pública e a espera privada.
Em diálogo com DaMatta, Edson
Silva de Farias (1995) se indaga sobre
a extensão da esfera privada, princi-
palmente no que tange a relação entre
o carnaval e o poder público, questio-
nando se o poder público abre, de fato,
todas as ruas da cidade para a festa
carnavalesca. Na eminência de uma
resposta negativa, o autor arma que as
ruas abertas a “todos”, as ruas destina-
das aos turistas são aquelas conhecidas
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e vivenciadas cotidianamente por uma
elite da zona sul carioca.
Os anos 70, marcados pela dita-
dura militar em quase toda a América
Latina, não foram diferentes no Brasil,
coincidindo com um período de grande
investimento do capital público nas es-
colas de samba. O período entre 1960
e 1980 é conhecido como um momento
de intensificação de acumulação capita-
lista, onde as escolas de samba come-
çam a se “vender” como um produto às
empresas privadas. O governo federal
brasileiro, ao mesmo tempo incentiva
a festa carnavalesca e se coloca como
detentor do monopólio das manifesta-
ções legítimas da cultura brasileira. É
o momento da semi-nacionalização do
carnaval. Os investimentos governa-
mentais focam-se na construção de es-
paços mais confortáveis para receber os
turistas estrangeiros e na elaboração de
inúmeras regras e regulamentos, com o
intuito de enquadrar a competição car-
navalesca e impor uma ordem à festa
antes vista como caótica e profana.
A duração do desle de cada es-
cola também foi objeto de controle. Em
1971 foi estabelecido o Fundo Geral do
Turismo, que xa o tempo máximo de 75
minutos de apresentação por escola de
samba. As escolas, nesse momento, são
subvencionadas e submetidas a um con-
trato de prestação de serviço ao gover-
no, dentro do qual os critérios de julga-
mento estabelecidos pelo poder público
evidenciam critérios tais como a duração
do desle, o número de participantes e a
denição de temas (que em sua maioria
exaltam o Brasil pós 1964), como eviden-
cia José Luiz de Oliveira (1989, p. 69-70).
A sociedade brasileira se moder-
nizava com a ajuda massiva do governo
federal em vários setores. O carnaval,
enquanto festa urbana, também é sub-
metido a esse processo de moderniza-
ção e de adequação ao mercado capi-
talista onde o papel da mídia se torna
marcante e decisivo na história da socie-
dade brasileira.
O controle, a cronometragem do
tempo, neste caso, é a adequação ao
“tempo do consumo”. É a troca da liber-
dade e da exibilidade pela norma e o
rigor. Nas palavras do secretário de tu-
rismo do Estado do Rio de Janeiro em
uma entrevista ao jornal Última Hora em
01/03/1968, a extravagância do tempo
incontrolado dos desles tornava anti-tu-
rístico o carnaval carioca, sendo assim,
o controle do tempo era uma forma de
respeito aos turistas.
A televisão funcionou, nesse sen-
tido, como instrumento de normatização
da identidade brasileira face à cultura
capitalista, onde o eixo Rio de Janeiro
e São Paulo eram seus representantes
maiores. Vale salientar que a Rede Glo-
bo de Comunicações sempre pertenceu
à elite brasileira: a rica família Marinho,
patrocinada pela ditadura militar à ser-
viço da elite brasileira, em consonância
com interesses do poder público.
Em 1971, ocorre a primeira trans-
missão integral do desle carnavalesco.
Três anos mais tarde, a transmissão dos
bailes de carnaval é suspendida e o foco
se concentra apenas nos desles das es-
colas de samba. Em 1976, a Rede Globo
contrata 232 prossionais que atuam den-
tro da avenida para a exibição do carna-
val carioca. Em 1988, a Rede Globo paga
$800.000 pela exclusividade no direito de
imagem do carnaval de avenida carioca.
Desta forma, a Rede Globo passa a cons-
truir ainda mais uma imagem hegemôni-
ca do carnaval que circula pelo mundo e
que engendra novas paisagens de poder
virtual que vende imagens sobre o país.
Vale ressaltar que o direito de
imagem sobre o desle das escolas de
128
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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samba no carnaval carioca foi objeto de
disputa entre as emissoras Rede Globo
e Manchete, mas o grande poder eco-
nômico e político da primeira assegurou-
-lhe a exclusividade.
É preciso enfatizar que durante
os anos de 1930, para que o carnaval
fosse reconhecido enquanto festa na-
cional, as escolas de samba tiveram
que passar por um processo de adap-
tação que se constituía em atenuar e,
mesmo, camuflar as origens africanas.
Nos 1970, o retorno da ideia de África
Negra e dos elementos do candomblé
tornaram-se necessários para a cons-
trução do carnaval como um evento
cosmopolita e altamente turístico que
conta as origens do país. Trata-se de
um período, de acordo com Cavalcanti
(1999), de reinvenção das tradições re-
lacionadas às origens do carnaval.
Percebe-se, no entanto, que o car-
naval sempre esteve ligado aos grandes
movimentos pelos quais passou a socie-
dade brasileira. Nesse sentido, refuto a
armação disseminada entre os brasilei-
ros que vêem o carnaval como um culto
de alienação do povo, como uma prática
despolitizante, ou ainda, como uma polí-
tica de “pão e circo” moderna. Para com-
preender o processo de consolidação do
carnaval enquanto festa nacional e sob a
perspectiva midiática de um espetáculo
cosmopolita é necessário dar-se conta
da intensa negociação dos conitos es-
tabelecidos entre o Estado-nação e as
camadas populares, que perpassa toda
a história do carnaval carioca.
Se em um primeiro olhar identifi-
camos a apropriação e a domesticação
da cultura popular brasileira por deter-
minados grupos, uma análise mais aten-
ta desvelará a existência de um jogo
contínuo de adesão e de resistência por
parte do Estado e das escolas de sam-
ba (representantes das camadas po-
pulares), processo, aliás, em constate
reformulação e negociação. O carnaval
é, antes de tudo, uma festa que coloca
em evidência os jogos políticos contem-
porâneos, figurando como um espaço
onde o lúdico e o político se encontram,
em um processo simbiótico que pode
passar desapercebido se deslocado da
compreensão daquilo que seria próprio
ao contexto sociocultural brasileiro.
O ritual no universo urbano
Segundo Michel Feuillet (1991),
o carnaval nunca foi uma festa cristã: «
Christianiser ainsi la naissance du car-
naval reste surprenant dans la mesure
l’Église non seulement n’a jamais
instauré une telle festivité dans son ca-
lendrier le carnaval n’apparaît évidem-
ment pas dans la temporalité officielle,
mais elle n’a pas cessé de la condamner
comme étant une manifestation païen-
ne, comme œuvre de Satan » (FEUIL-
LET, 1991, p. 19). Assim, a igreja sem-
pre esteve atenta a este evento social,
mesmo que nunca o tenha incorporado
oficialmente em calendário festivo.
Em uma tentativa de concilia-
ção a Igreja Católica de Salvador, por
exemplo, começa a fazer referências à
quarta-feira de cinzas, ressignicando-a
como um dia de puricação e, para tan-
to, passa a realizar uma das mais belas
católicas missas do ano. Michel Agier
(2000) narra que a missa da quarta-feira
de cinzas é ministrada por um bispo, que
insistentemente lembra aos éis que o
tempo dos pecados vividos durante a
festa deve ceder lugar à puricação no
período da quaresma.
A lavagem das escadarias da
Igreja é, também, um ritual de purifica-
ção do espaço e das pessoas que vi-
venciaram a intensidade da festa pagã.
A tentativa da Igreja católica de relem-
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brar os limites cristãos é uma maneira
de restabelecer a ordem, mostrando
que a religião reconhece os pecados do
carnaval e os perdoa a seus fiéis.
Ao inverter a ordem moral da vida
burguesa, a subversão dos valores es-
tabelece a possibilidade de uma outra
ética de vida mediante a suspensão da
moral cristã - que não deixa de existir, no
entanto, como referência complementar
antagônica. É a experiência alucinatória,
o despertar dos sentidos face à musica-
lidade exuberante e o desejo dos cor-
pos, que restabelecem os ritos profanos
na cidade festiva como um “espaço de
celebração” (MAFFESOLI, 1994) onde o
profano critica as divindades cristãs.
O carnaval é associado à celebra-
ção da Páscoa pela Igreja. Esta “incor-
poração” foi uma tentativa bem-sucedida
de dominação e de controle sobre as de-
mais festas pagãs, que persistiram ape-
sar do advento do cristianismo.
O carnaval ganhou outros signi-
cados e representações com o passar
do tempo, pois ao longo dos anos parece
ter “colonizado” outras festas (DUBOIS,
1979). A noção do tempo do carnaval foi,
assim, enriquecida e ampliada. Na ver-
dade, a festa carnavalesca contemporâ-
nea ocorre em vários lugares do mundo,
incluindo a América do Sul e América do
Norte, ampliando o tema da revitalização
ou ressurreição, da ruptura e ao mesmo
tempo da adesão à estrutura social. É
um momento de communitas (TURNER,
1974), fora da vida cotidiana, de “exalta-
ção da impertinência e do grotesco”, en-
m, é a história do triunfo da vida sobre
a morte. (DUBOIS, 1979).
Pensar os carnavais como even-
tos rituais que jogam com o imaginário
social e, mesmo, com os estereótipos
de grupos sociais, não é uma perspecti-
va analítica inovadora no campo antro-
pológico, ela está presente na grande
maioria dos trabalhos sobre o carnaval.
A utilização deste conceito não banali-
za tal análise, ao contrário, incentiva os
pesquisadores a decifrar o que esses
rituais contemporâneos dizem sobre a
vida social.
Vários autores têm aceito o desa-
o de pensar o mundo urbano a partir de
um ritual e de seus desdobramentos. No
caso do Carnaval, pensado como um ri-
tual urbano e contemporâneo, é preciso
concebê-lo relacionado à dinâmica da ci-
dade. Embora a origem do carnaval seja
rural, o seu apogeu e a forma como ele
existe atualmente encontram-se imersos
no processo de urbanização e de globa-
lização, ou seja, no universo característi-
co das cidades como expressão da vida
urbana, mais ou menos cosmopolita.
O carnaval é o tempo de festa por
excelência, conforme aponta DaMatta
(1979). É o momento do extraordiná-
rio, mas sempre relacionado ao ordi-
nário/ao cotidiano de muitas maneiras.
É um evento performático indicador
de certos processos culturais, que na
percepção de seus próprios agentes
ocupa um tempo e espaço fora das ati-
vidades diárias, distanciadas das ativi-
dades cotidianas (TAMBIAH, 1985). O
carnaval age como um dispositivo de
mudança de perspectivas que é, por
certo, promovida pela própria socieda-
de (CAVALCANTI, 2010).
Duvignaud (1973, p. 186) ressal-
ta que o carnaval enquanto momento
de transe permite ao homem e à co-
letividade superar a “normalidade” e,
assim, alcançar um estado de espírito
onde tudo é possível, porque duran-
te o transe o homem não é humano,
pois adere a uma natureza. O autor
demonstra como o período festivo abre
espaço para o indivíduo tornar-se ou-
tro, “a descoberta do outro modifica o
130
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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sujeito que se engaja nesse confronto
na mesma medida em que transforma
o primeiro” (1973, p. 187). Esta oportu-
nidade de se colocar no lugar do outro,
ou mesmo de jogar com os papéis so-
ciais predeterminados revela o poder
transformador da festa. As celebrações
carnavalescas cariocas têm um caráter
urbano que permite aos sujeitos joga-
rem, considerando diferentes aspec-
tos, com suas identidades sociais.
A cidade é o espaço onde o indi-
víduo desempenha suas múltiplas iden-
tidades sociais. De acordo com Georg
Simmel (1985), a metrópole permite
uma multiplicidade de papéis sociais
que são acionados em interação, por
meio de uma lógica da modernidade
baseada na individualidade. Neste sen-
tido, o autor descreve os espaços urba-
nos onde as relações são baseadas no
comércio e o fluxo de dinheiro envolven-
do interações monetárias guiadas pela
lógica e pela divisão social do trabalho,
nas quais o indivíduo é multifacetado e
livre para experimentar os vários aspec-
tos da sua identidade, desempenhando
papéis sociais distintos.
O carnaval é um ritual em que
várias identidades são ativadas e o in-
divíduo vive a experiência de colocar-se
no lugar do outro. Durante o carnaval, o
sujeito pode ser alguém que ele nunca
seria na vida real. O carnaval é o mo-
mento em que as pessoas se misturam e
as identidades se perdem ou alteram-se
temporariamente, tornando-se, assim,
um ritual popular que joga com várias
categorias socioeconômicas: pobres e
ricos, e de gênero, homossexual, hete-
rossexual, masculino e feminino.
Conforme Ruben Oliven (1979),
nos estudos das Sociedades Comple-
xas, o cenário urbano apresenta uma
aparente homogeneização das classes
sociais, devido à intensificação capita-
lista industrial. O autor ressalta, porém,
os perigos desta análise que não leva
em conta que este processo de acumu-
lação de capital diferencia os habitan-
tes das sociedades brasileiras de forma
desigual e assimétrica e que as classes
baixas podem oferecer resistência à di-
fusão destas “orientações culturais pa-
dronizadas”. Neste sentido, Oliven afir-
ma que diferentes grupos sociais têm
práticas e orientações diferenciadas
no que tange a “aspectos que têm con-
sequências e significados diversos de
acordo com a posição social tais como
questões políticas” (1980, p. 35)
Esta homogeneização também é
discutida por Cavalcanti (2010), quando
a autora considera o carnaval como uma
festa da cultura popular, um evento com
características populares. Problematizar
a palavra “popular” se torna importante.
Se pensarmos a dimensão do popular
adicionada ao caráter urbano da vida
contemporânea, podemos entender que
tal característica não pode reduzir-se a
condição econômica. A autora explica
que o popular não deve ser pensado
apenas em contraposição à cultura de
elite, mesmo que não possamos negli-
genciar tal ponto. Nas sociedades com-
plexas nas quais os atores sociais jogam
com os estereótipos e acionam suas
identidades de acordo com suas neces-
sidades, a dimensão popular é também
uma dimensão política que é revelada
nos conitos sociais.
De acordo com Gilberto Velho
(1994), as grandes cidades tais como o
Rio de Janeiro, passaram por um proces-
so de modernização violento que afetou
seriamente o sistema de valores e as
relações sociais. A expansão da econô-
mica de mercado, a industrialização, a
migração e a valorização da cultura de
massa, contribuíram para o crescimento
do individualismo. Nesse processo, as
ideologias individualistas ganharam es-
131
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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paço ao mesmo tempo em que o cam-
po de possibilidades socioculturais, bem
como as alternativas e as escolhas de
estilos de vida se diversicavam. Segun-
do o autor, as camadas populares e as
demais minorias começaram a ser reco-
nhecidas e se fazer visíveis na socieda-
de. Dessa forma, a difusão de valores
individualistas signicou um enfraqueci-
mento das formas tradicionais de domi-
nação associadas a uma visão de mun-
do hierarquizante.
A noção de individualismo,
muito discutida por Simmel (1985) no
seio da sociedade moderna, aponta
para uma noção de sociedade percebi-
da enquanto um espaço de competição
e de conflito, mas também, um espaço
de sociabilidade. O conflito, nos ensina
Simmel, desdobra-se numa forma de
socialização. Nesse sentido, o espaço
carnavalesco é um momento de socia-
bilidade que passa pelo conflito da com-
petição e, ao mesmo tempo, estabelece
relações de parceria e de filiação.
O carnaval como patrimônio:
entre o poder e o popular
No ano de 2007, o Instituto do Pa-
trimônio Histórico Nacional (IPHAN) reco-
nheceu o samba carioca como parte do
patrimônio cultural imaterial do Brasil. É
permitido sugerir a partir da compreensão
do contexto histórico e político onde nas-
ceram as escolas de samba - que a no-
ção de patrimônio é intrínseca à formação
deste gênero musical.
Na década de 1930 quando o car-
naval carioca foi escolhido como a fes-
ta emblemática do país, portanto como
um símbolo de identidade nacional para
atender os interesses políticos e ideoló-
gicos da época, a festa carnavalesca foi
conduzida em direção ao título de patri-
mônio nacional. Como indica Oliveira Pa-
vão (2007), o reconhecimento do samba
como um símbolo nacional aconteceu
em dois momentos distintos da história
do Brasil: em 1930 - no período do Es-
tado Novo - e época do nascimento das
escolas de samba, durante um “pacto
corporativo entre o estado e as classes
trabalhadoras” foram feitos os primeiros
investimentos governamentais. E em
2007, quando o IPHAN ocializou o car-
naval como patrimônio cultural imaterial,
o que lhe trouxe mais reconhecimento e,
consequentemente, mais investimento
governamental que privado.
Michael Herzfeld (1997) mostra
como o Estado-nação não dita as
regras de autoridade, mas também se
adapta igualmente aos atores sociais,
da mesma forma que os atores sociais
se adaptam à história. Herzfeld (1997)
faz uma importante reexão sobre a re-
lação entre o Estado-nação e a agência
dos seus cidadãos. O conceito de “inti-
midade cultural” desenvolvido pelo autor,
demonstra a existência de uma barreira
protetora que os grupos sociais formu-
lam para assegurar seu espaço coletivo.
“A intimidade cultural” corresponde aos
valores e aos códigos compartilhados
internamente por grupos sociais, que se
revelam somente quando já fazemos par-
te dessa intimidade, construída nas rela-
ções cotidianas. O conceito de “poética
social”, crucial para pensarmos as rela-
ções entre os grupos sociais com o Esta-
do-nação, seria esta apresentação criati-
va do grupo social, que revela e esconde
as informações de intimidade cultural
conforme o contexto, esta apresentação
é considerada por Herzfeld (1997) como
uma performance de grupos sociais que
geram o que eles deveriam ou não reve-
lar sobre eles mesmos, em função do pú-
blico que os observa.
O conceito de “poética social” de
Herzfeld (1997) ajuda a compreender o
processo de patrimonialização de algu-
132
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mas festas de caráter popular. A poética
social é, assim, uma forma de agência
que cria táticas (Certeau, 2008) de ação
e de reação de grupos sociais para deter-
minadas ações do Estado e vice-versa,
que tem estado presente no nascimento
do carnaval de avenida, perdurando até
a sua consolidação como patrimônio cul-
tural imaterial. Este longo processo de
negociação, ainda hoje presente entre o
poder do Estado e o poder das “classes
populares” explicita o caráter político e
identitário do carnaval carioca.
Como sugere Jeròmê Nicolas
(2006), podemos analisar a festa car-
navalesca como Marc Abèles (2007) e
Henri-Pierre Jeudy (1990), sob a óptica
de um “sub-sistema político” decorren-
te do sistema social global, onde es-
tudos sobre ações políticas, tensões,
conflitos e relações de força e poder se
fazem pertinentes. A festa parece-me
mais como um sistema unitário e sin-
gular auto-determinado atravessado de
tensões, que dispõe de autonomia sufi-
ciente, portanto, detentor de equilíbrio
e de coerência estrutural para exercer
“influência” a posteriori e in fine sobre o
sistema social global.
Fábio Pavão (2012) ressalta que
o avanço do processo de mundialização
produziu um movimento que pode ser
considerado paradoxal, pois ao mesmo
tempo em que parece impor certa ho-
mogeneização da cultura, reivindica a
valorização de traços culturais nacionais
e locais. Stuart Hall (2006), por sua vez,
mostra que de um lado as forças domi-
nantes da homogeneização cultural ame-
açam reduzir as peculiaridades locais
ao modelo ocidental e, particularmente,
àquele dos Estados Unidos. Por outro
lado, existe o processo que tenta descen-
tralizar e distanciar estes modelos oci-
dentais. De acordo com Hall, não su-
ciente poder para confrontar ou inibir a
inuência exercida pelo modelo totalizan-
te, porém criam-se dispostitivos e táticas
que subvertem e traduzem esses valores
universalisantes em valores locais.
Neste contexto, a noção de patri-
mônio cultural imaterial ganha sua força
como um processo de retorno ao mito
original e às práticas tradicionais, para
resignica-las no processo de recons-
trução da identidade de uma nação. O
arquivo criado e apresentado para o pe-
dido de reconhecimento do samba cario-
ca como patrimônio ao IPHAN arma os
processos de negociações com o Estado
Nação, destacando o importante papel
dos “sambistas” que conseguiram obter
o reconhecimento e a aceitação do go-
verno sobre a forma de ocialização do
carnaval sem “calar as formas autênti-
cas praticadas no Rio de Janeiro”, como
sugere o laudo que reivindica o samba
enquanto patrimônio imaterial, conr-
ma a intensa participação do samba na
construção da identidade nacional.
O carnaval, em sua forma ima-
ginária, é revelado como um arranjo
de elementos performativos que con-
tribuem para definir uma dualidade da
prática do carnaval e o universo polifô-
nico em que é construído nesse ritual. A
alegria e o prazer de jogar com as nor-
mas sociais, de reverter a lógica domi-
nante, de sublimar e substancializar as
relações sociais, permitem que todos
os participantes dos carnavais – atores
e espectadores detenham instâncias
organizadoras de forma conjunta a cria-
rem um outro universo, projetando-o
para a cena pública.
O momento de liminaridade do ri-
tual é propício para este jogo com a re-
alidade social. Neste sentido, DaMatta
(1997) mostra que no momento ritual
uma inversão de valores, uma mudança
de regras sociais. Maria Isaura Pereira
de Queiroz (1992), analisando o Carna-
val do Rio de Janeiro destaca que, em
133
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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última análise, nada é invertido, “nem os
papéis e valores sexuais, nem as hierar-
quias, nem os modelos políticos”. Quei-
roz mostra como a estrutura das danças
carnavalescas cariocas apresentam os
mesmos valores do cotidiano, mesmo
através de paródia ou da sátira.
É importante notar que pouco im-
porta se houver uma inversão propria-
mente dita ou um travestimento da re-
alidade social. O objetivo do jogo com
os imaginários sociais que são ence-
nados durante o ritual carnavalesco é,
de diversas formas, a construção desse
espaço político e social que reinven-
ta a realidade social. Ele permite que
seus participantes joguem com as hie-
rarquias de muitas maneiras. A criação
deste espaço liminar, discursivo e políti-
co, destaca os conflitos sociais ao mes-
mo tempo que permite a sociabilidade
de diferentes grupos sociais.
Como observado em análises de
Herzfeld, Abélès e Certeau, os atores
sociais não são totalmente sujeitos às
imposições do Estado, bem como o Es-
tado não é indiferente às contestações
do povo. É um jogo político em que
os atores sociais tentam sempre com-
preender as regras e as dinâmicas do
imaginário, para com eles jogar bem.
O ritual, assim, não serve apenas para
manter uma estrutura, mas para ne-
gociar com a dinâmica desta estrutura
social, manifestando um momento de
crítica social onde as pessoas (em prin-
cípio) sem voz podem gritar.
O universo carnavalesco na cidade do
Rio de Janeiro
O carnaval não é exclusivo à ci-
dade Rio de Janeiro, pois o evento car-
navalesco é uma festa que acontece por
todo o país, de norte a sul Belém, Sal-
vador, Recife, São Paulo, Porto Alegre.
Cada capital, cada cidade, cada comuni-
dade urbana ou rural faz acontecer o seu
carnaval e, assim, evidencia as particu-
laridades da região onde é festejado. O
carnaval é, nesse sentido, um fenômeno
festivo que ncou raízes na cultura bra-
sileira, tornando-se a sua festa nacional.
Embora a festa carnavalesca ocorra em
todo Brasil, nota-se que foi o Rio de Ja-
neiro o palco, por excelência do carna-
val de avenida, do carnaval espetáculo
que atrai turistas do mundo inteiro, por
consequência é o carnaval que agencia
grandes somas de subvenções governa-
mentais, e fortes investimentos do setor
público, fato que aumenta ainda mais sua
escala e gera, ainda, mais retorno turís-
tico para o evento. Cabe salientar que
os carnavais que não se encontram no
eixo carioca também recebem incentivo
público e privado, representando enor-
memente a cultura brasileira, porém foi
o carnaval carioca o eleito como a festa
que apresenta o Brasil para o mundo.
Após tal constatação uma ques-
tão surge: por que o carnaval carioca e
não o carnaval de Salvador foi escolhido
como representante festivo brasileiro,
sendo que a cidade de Salvador, assim
como a do Rio de Janeiro, são territórios
de valorização e presença da descen-
dência africana no Brasil?
O carnaval de Salvador (Bahia)
não era conveniente enquanto símbolo
de uma mestiçagem harmônica, visto
que a cidade na época do Estado Novo
era composta por uma maioria negra,
cerca de 80% de sua população, perten-
centes às camadas populares e muitas
delas à margem da sociedade.
Tanto o carnaval de Salvador
como de o Rio de Janeiro possuem ori-
gens nas festas afrodescendentes. Sal-
vador representou um espaço de gran-
de expressão dos “folguedos negros”,
dos espaços festivos e folclóricos de
134
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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intensa celebração da cultura africana,
principalmente através da música e da
dança, onde as tradições africanas são
exaltadas e comemoradas. A grande
concentração de negros na cidade de
Salvador evidenciava à época, a força
da descendência africana na cidade
após o período escravagista. Duran-
te os séculos XVI e XVII grande parte
dos escravos chegavam nos portos da
Bahia e do Rio de Janeiro, e ficavam
para trabalhar nas atividades ligadas à
produção de cana de açúcar.
Em 1817, o Brasil contava com
3,6 milhões de habitantes, sendo 1,9
milhões escravos, ou seja, mais da me-
tade da população. Em 1850, em virtu-
de da intensa necessidade de mão de
obra para o cultivo do café na região
Sudeste, o número de escravos africa-
nos passou para 3,5 milhões.
A inuência da cultura africana se
fazia presente, e se faz até os dias de
hoje, em todo o território nacional. As
raízes africanas são partes constituintes
de nossa cultura, porém não podemos
esquecer que Rio de Janeiro era a cida-
de sede da coroa portuguesa e, posterior
capital republicana, onde os valores con-
servadores e escravocratas eram con-
testados, mas também, exacerbados. A
cidade do Rio de Janeiro foi também o
palco dos esforços de negação dessa
inuência relacionada à presença negra.
Após a abolição da escravatura, durante
o período republicano fez-se necessário
a criação de uma identidade brasileira.
A construção identitária brasileira aludia,
assim, ao mito da democracia racial e
celebrava a mestiçagem enquanto valor
constituinte da nação. Essa eminente
exaltação da mestiçagem étnica nada
mais foi que uma tentativa de silencia-
mento e ocultação do longo período de
exploração sofrido pela população afro-
descendente, que propunha uma união
de raças, onde negros seguiriam sem
nenhum processo de reparação frente
aos danos e as injustiças que os mes-
mos sofreram por séculos.
Refletir sobre a valorização do
carnaval nesse eixo Rio-São Paulo, nos
obriga a pensar no Brasil e suas divi-
sões políticoadministrativas. A região
Sudeste, considerada como a mais “de-
senvolvida econômica e culturalmente,”
torna-se o epicentro do Brasil, fato este
que explica o motivo pelo qual a cidade
do Rio de Janeiro é considerada a eter-
na capital nacional aos olhos do mundo,
mesmo que em 1960 tenha cedido o -
tulo à Brasília.
A cidade do Rio de Janeiro se ex-
pandiu signicativamente no m do -
culo XIX, nela havia mais de 800.000
habitantes e, junto com eles, muitos
problemas sanitários, de emprego, de
moradia e, ainda, epidemias de varíola,
tuberculose e febre amarela assolavam
a cidade carioca. No início do século XX
durante a administração de Francisco
Pereira, avenidas e parques foram cria-
dos e uma « limpeza social » foi reali-
zada. As políticas higienistas demoliram
as casas que julgavam sem condições
de higiene e, dessa forma, zeram com
que milhares de pessoas da classe po-
pular perdessem suas casas e fossem
obrigadas a se deslocar para a perife-
ria. As políticas de higienização visavam
adequar a cidade e torná-la viável à elite
brasileira que a praticava. Nessa época,
os valores europeus ganhavam força.
O Rio de Janeiro torna-se um
centro irradiador de cultura para todas
as outras cidades do país tornando-se
a porta de entrada das novidades oriun-
das da Europa, pois era através dele
que o Brasil conhecia o “exterior”. O Rio
de Janeiro passa a ser o representante
do mundo no Brasil, ao mesmo tempo
em que é o representante do Brasil no
mundo, tornando-se o símbolo da bra-
135
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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silidade tanto na esfera nacional como
internacional.
Nessa época estar no Rio de Ja-
neiro significava ser moderno. A cidade
aspirava ao sucesso. Para ser vitorioso
tanto na vida profissional como acadê-
mica, as pessoas eram instigadas a se
instalar na capital nacional da época.
Nesse sentido, nada mais lógico, me-
diante um processo de construção de
identidade nacional, que investir numa
festa popular que, assim como a cida-
de, passou por um processo de “lim-
peza sociocultural” e domesticação, ou
seja, o carnaval carioca.
Desta forma, tanto o carnaval ca-
rioca como a cidade do Rio de Janeiro,
tornaram-se símbolos do país, bem como
elementos de construção e de consolida-
ção da identidade brasileira. O carnaval
de avenida carioca torna-se, assim, uma
política pública, uma manobra governa-
mental de reconstrução e de criação de
uma unidade brasileira a partir da domes-
ticação dos extratos populares da festa
adicionados aos elementos de grandio-
sidade das antigas Grandes Sociedades.
O processo de adaptação do carnaval
carioca às exigências governamentais
torna-o mais palatável à elite brasileira,
fazendo-o assim, consagrar-se como a
festa nacional, por excelência.
Segundo Fabio Pavão (2007),
a partir da década de 1940, o samba
carioca tornou-se um dos principais
estereótipos de representação da cul-
tura brasileira, sendo incorporado à
indústria cultural americana, fato esse
explicitado na imagem de Zé Cario-
ca, um papagaio sambista que apa-
rece nas telas de Walt Disney como
demonstração de uma política de boa
vizinhança dos Estados-Unidos para
com o Brasil, fenômeno perceptível na
exaltação de Carmem Miranda, que
fez fama em Hollywood.
A multiplicidade regional das ex-
pressões culturais carnavalescas en-
contradas em todo o território brasileiro
é homogeneizada a partir do samba dos
“morros” e das periferias do Rio de Ja-
neiro. O samba carioca, dessa forma, se
superpõe às outras festas e práticas re-
gionais. As razões pelas quais o samba
carioca, oriundo de camadas marginali-
zadas torna-se a imagem do brasileiro
no exterior é também objeto de estudo
de Hermano Vianna (1995).
De acordo com o autor, a partir
do governo de Getúlio Vargas um novo
modelo de autenticidade e de identidade
nacional foi forjado com base no referen-
cial intelectual que percebia o Brasil en-
quanto um território de mestiçagem, mas
também como um espaço da democra-
cia racial, como destaca Darcy Ribeiro
em sua obra O povo brasileiro (1995). O
samba carioca conuía com os ideais de
construção identitária: numa mistura das
raízes africanas e da colonização euro-
peia (o Entrudo), a festa carnavalesca
se transformava no representante maior
do “mito das três raças”. Nesse proces-
so, o samba carioca expressão da cul-
tura popular urbana do Rio de Janeiro,
conquista o lugar de música nacional e
eleva o carnaval carioca também a festa
nacional. As outras expressões festivas
e musicais são levadas à uma posição
secundária e tornam-se submissas à
uma imagem homogeneizadora do sam-
ba e do carnaval carioca (Vianna, 1995).
Considerações nais
O discurso que o carnaval é uma
festa democrática é muitas vezes re-
petido pela comunidade carnavalesca
e pela sociedade brasileira em geral.
Partindo da premissa defendida nesse
artigo de que a análise da festa carna-
valesca carioca pode servir para a com-
prensão dos processos socio-políticos
136
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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brasileiros e serve como um universo
refletor da realidade conflitual vivencia-
da no seio dessa mesma sociedade,
podemos elaborar uma pergunta mui-
to importante no contexto político atual
brasileiro, onde um golpe de Estado se
estabelece: Qual é o significado da de-
mocracia no Brasil? No carnaval cario-
ca, seja ele o de avenida ou o de “blo-
cos”, o direito das classes populares à
cidade se estende, se amplifica, porém
as fronteiras seguem a existir, não são
apagadas, apenas flexibilizadas.
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Recebido em 25/07/2016
Aprovado em 11/08/2016
I Thaís Cunegatto. Doutoranda em Antropologia
pela Université Laval. Québec, Canada. Contato:
tcunegatto@gmail.com
II O mito das três raças, ideia desenvolvida mais pro-
fundamente nas obras de Darcy Ribeiro, porém bem
difundida no senso comum, via a sociedade brasilei-
ra como uma mistura harmônica das inuências afri-
canas, europeias e indígenas. Obviamente essa «
harmonia » camua um processo de exploração e de
tentativa de dizimação dos africanos e indígenas da
sociedade brasileira.
138
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Blocos carnavalescos: culturas populares, culturas híbridas
no carnaval de rua do Rio de Janeiro
Bloques carnavalescos: culturas populares, culturas hibridas
en el carnaval de calle de Rio de Janeiro
Carnival street bands (blocos): popular cultures, hybrid cultures
of street carnival in Rio de Janeiro
Rita Fernandes
I
Resumo:
Este artigo traz uma reexão sobre o Carnaval de Rua do Rio no
século 21, especialmente diante do fenômeno da multiplicidade de
agremiações e diversidade de formatos, matizes e intenções, e as
disputas de signicados e de representatividade em que se colocam
os agentes envolvidos blocos, associações e poder público –, que
buscam ancorar-se em conceitos como “cultura popular”, “tradição” e
“identidade” para justicar seus espaços de legitimidade. Para conduzir
essa análise e demonstrar as diculdades de conceituações nesses
campos, é proposto um diálogo entre as ideias dos historiadores Marta
Abreu, com uma análise de seu texto “Cultura Popular: um conceito e
várias histórias”, e de Nestor Canclini, com seu livro “Culturas Híbridas”.
Palavras chave:
Carnaval de rua
Blocos carnavalescos
Cultura popular
Culturas híbridas
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo presenta una reexión sobre el Carnaval de Calle de Rio
de Janeiro en el siglo XXI, especialmente a la luz del fenómeno de
la multiplicidad de agremiaciones y diversidad de formatos, matices
e intenciones, y a las disputas de signicado y representatividad en
que se colocan los agentes envueltos - bloques, asociaciones y poder
público - que buscan armarse en conceptos tales como “cultura
popular” y “tradición” para justicar sus espacios de legitimidad.
Para llevar a cabo este análisis y demostrar las dicultades de
conceptualizaciones en estos campos, se propone un diálogo entre
las ideas de los historiadores Marta Abreu, expuestas en el texto
“Cultura Popular: un concepto y una gran cantidad de historias”, y las
de Néstor Canclini, presentes en su libro “culturas híbridas”.
Abstract:
This article presents a reection on Rio de Janeiro’s Street Carnival
in the 21st century, especially in light of the phenomenon of the
multiplicity of associations and diversity of formats, shades and
intentions, as well as disputes over meanings and representativeness
as presented by those involved street bands (known as blocos’),
associations and public authorities – that seek anchoring in concepts
such as “popular culture”, “tradition” and “identity” to justify their
spaces of legitimacy. To conduct this analysis and demonstrate the
difculties of dening concepts in these elds, a dialogue is proposed
between the ideas of historians Marta Abreu, with an analysis of her
text “Popular Culture: a concept and various stories” and those of
Nestor Canclini, in his book “HybridCultures”.
Palabras clave:
Carnaval de calle
Bloques carnavalescos
Cultura Popular
Culturas híbridas
Keywords:
Street Carnival
Carnival street bands
(blocos)
Popular culture
Hybrid culture
140
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Blocos carnavalescos: culturas
populares, culturas híbridas no
carnaval de rua do Rio de Janeiro
O texto “Cultura Popular, um concei-
to e várias histórias”, de Martha Abreu, traz
uma interessante reexão sobre as dicul-
dades no uso do termo “cultura popular” que
pode ser estendida ao Carnaval de rua do
Rio, na sua versão atual, com mais de 500
blocos espalhados pela cidade, com dife-
rentes formatos, narrativas, organizações
e intenções. A cidade vive uma verdadeira
febre carnavalesca, a exemplo do que acon-
teceu no início do século 20, quando tam-
bém se viu tomada por grupos de foliões
organizados nas mais diversas formas, com
os corsos, os cordões, os ranchos e ainda a
presença de algumas sociedades carnava-
lescas. (BEI, 2007; FERREIRA, 2004).
Houve um crescimento fenomenal
do número de agremiações e de foliões na
última década 504 blocos autorizados pela
Empresa de Turismo do Município do Rio
de Janeiro – Riotur e mais de 5 milhões de
pessoas nas ruas do Rio, em 2016 – e, em
paralelo, um crescente interesse da mídia
sobre o tema. Com essa grande onda que
o Carnaval de rua se tornou, veio também a
disputa por protagonismos e de signicados
por parte dos vários agentes envolvidos,
como os grupos organizadores de blocos
de rua, as ligas, a mídia e o poder público.
Com o poder de movimentar mais
de R$ 2 bilhões de reais na cidade, oriun-
dos dos gastos com hospedagem, bares
e restaurantes e outros serviços
II
, num es-
paço de tempo de praticamente 45 dias,
o fato é que a atividade começou a inte-
ressar muito ao mercado a partir dos anos
2000 – pela visibilidade, abrangência e
ressonância que os blocos desfrutam na
sociedade contemporânea, não mais ape-
nas no Rio, que serviu de modelo para ou-
tras cidades, mas especialmente aí. E a
disputa entre os grupos passou a se dar
em torno de questões como legitimidade,
autenticidade e tradição. Entre alguns dos
motivos dessa disputa, a corrida pelas ver-
bas de patrocínio disponíveis no mercado
para este segmento.
Há, entre os diferentes agentes, al-
gumas tentativas de classicações, como
a que gira em torno das representações
de uma “verdadeira cultura popular”, por
exemplo, como se isso fosse possível ou
necessário para balizar quem tem mais ou
menos direitos como em relação às disputas
de uso do espaço público (quem pode ou
não ocupar qual rua, qual o lugar de cada
um); quem está nas representações da “tra-
dição” do Carnaval; quem deve ter direito ao
dinheiro público e por quê. “Cultura popular
é um dos conceitos mais controvertidos que
conheço”, escreve na abertura de seu texto
Abreu (2003, p. 83). Compartilhando com
Bourdieu (1996) o quanto é complexo tran-
sitarmos sobre a noção do que é “popular”
Se, a despeito de suas incoerências e
incertezas, e também graças a elas, as
noções pertencentes à família do “popu-
lar” podem prestar muitos serviços, e até
no discurso erudito, é porque elas estão
profundamente encerradas na rede de
representações confusas que os sujei-
tos sociais engendram, para as neces-
sidades do conhecimento corriqueiro do
mundo social e cuja lógica é a da razão
mítica. (BOURDIEU, 1996, p. 18)
Na questão do dinheiro público -
-se uma das principais disputas em torno
dos signicados. Mesmo que houvesse
por parte da gestão municipal atual algu-
ma disposição na criação de editais e de
linhas de fomento para os blocos
III
, umas
das maiores diculdades seria estabelecer
categorias e enquadramentos que conse-
guissem classicar, de forma equânime,
as mais de 500 agremiações, entre outros
problemas apontados por Frydberg.
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Blocos que concorrem aos editais de
incentivo scal na área da cultura,
geralmente não tem suas propostas
contempladas, pois são considerados
inaptos a participarem de tais editais.
Essas decisões não reconhecem os
blocos de carnaval como passíveis de
incentivos do poder público, os asso-
ciam aos acontecimentos mercadoló-
gicos que visam o lucro. Podemos vi-
sualizar, assim, a diculdade do poder
público, nas suas mais variadas ins-
tâncias, em reconhecer o carnaval de
rua como expressão da cultura popular
possível de ser valorizada, incentivada,
reconhecida como manifestação artís-
tica e cultural e, desta forma, nancia-
da pelos editais que tem como objetivo
promover a cultura nacional através da
legitimação do Estado da sua impor-
tância. (FRYDBERG, 2014, p.11)
No Rio, hoje, blocos de dife-
rentes origens, tamanhos, matizes e for-
mações. grupos como Monobloco,
Bloco da Preta e Sargento Pimenta, com
suas estruturas prossionais que, para
setores mais críticos, reproduzem com
seu modelo uma faceta da comercializa-
ção ou da mercantilização do Carnaval
de rua carioca.
Há outros, chamados de “tradicio-
nais” tanto pela imprensa quanto pelos
próprios agentes
IV
, como o Cordão da Bola
Preta, o Suvaco do Cristo e o Simpatia é
Quase Amor, para citar alguns, e que fa-
zem do discurso da “autenticidade” sua
bandeira. E ainda outros, que traba-
lham no campo da “resistência”, e que se
autodeclaram os representantes da cultura
popular, como o Boi Tolo e outros da Des-
liga. Tomando o termo tradicional para um
breve exercício, por exemplo, termo tão
complexo em si mesmo, como narra Abreu
em seu texto; que critérios deniriam o que
é ‘tradicional’ no Carnaval de rua, se desde
ns do século 19 se passou por tantas
modicações e formas de organização?
Sobre disputa de representação e
de legitimidade, usando o termo cultura po-
pular, por exemplo, um dos representantes
do bloco Boi Tolo e da Desliga dos Blocos
do Rio
V
, Diogo Eduardo, dene o que pensa
sobre o assunto em entrevista a um blog:
VI
O carnaval é uma manifestação de
cultura popular e cultura popular não é
feita nem por vanguarda nem por meia
dúzia de intelectuais. É feita pela mas-
sa que vai para a rua e toma um espa-
ço que é dela. A praça é do povo, então
ela tem que ser tomada. O problema é
como o mercado e o Estado percebem
isso. Esse é o grande x da questão.
Este artigo se propõe a pensar
como é difícil, talvez mesmo impossível,
estabelecer limites classicatórios para o
Carnaval de rua carioca, em um cenário
de tanta diversidade. Peter Burke si-
nalizava em seu livro Cultura Popular na
Idade Moderna (2010) que o termo “cul-
tura popular” dá uma falsa impressão de
homogeneidade e que seria melhor usá-
-lo no plural. Já Abreu (2003) começa seu
texto destacando que cultura popular é um
dos conceitos mais controversos que co-
nhece, e o quanto tem sido utilizado com
objetivos e em contextos tão diversos des-
de o século 18, quase sempre carregados
de juízos de valor, idealizações, homoge-
neizações e disputas teóricas e políticas.
Essa discussão esteve na pauta
dos seminários “Desenrolando a Serpenti-
na” realizados pela Sebastiana
VII
em 2014
e em 2015, onde o debate esteve centra-
do no fato de que o carnaval dos blocos,
no Rio, tem sido tratado apenas dentro do
campo do Turismo e longe do da Cultura,
numa lógica das vantagens econômicas
da atividade para a cidade, desde que o
prefeito Eduardo Paes assumiu a prefei-
tura e começou a normatizar a atividade
VIII
. Por estar no quadro de responsabilida-
des desta secretaria, que se atém muito
mais aos aspectos operacionais e econô-
142
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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micos da festa, o Carnaval de rua não tem
contado com um outro olhar que aborde
a sua representatividade cultural, sob ou-
tras óticas, para a cidade. Nesse impasse,
vai crescendo geometricamente o número
de agremiações ano a ano, sem que haja,
de fato, uma política pública que benecie
os blocos. Entre contradições da atuação
municipal, pautada por diretrizes de uma
política neoliberal, a mesma prefeitura que
negocia o direito de uso da marca “Carna-
val de rua” a empresas, como um produto,
se utiliza da imagem de uma “legítima ma-
nifestação cultural popular espontânea”
para reforçar a identidade carioca atrela-
da ao discurso institucional de legitimação
da “vocação da cidade”. Em entrevista,
o subsecretário especial da Empresa de
Turismo do Município do Rio de Janeiro
Riotur no ano de 2013, Pedro Guimarães,
declarou: “O carnaval de rua é uma ma-
nifestação cultural que traduz a identida-
de da cidade, uma manifestação cultural
espontânea das pessoas, e o carioca tem
orgulho desse estilo de vida, traduzido por
essa maneira de brincar o carnaval”.
IX
O texto de Martha Abreu joga um
pouco de luz nesse debate ao discorrer
sobre as várias interpretações da cultu-
ra popular, desde o pensamento dos fol-
cloristas, passando pelos sociólogos da
Universidade de São Paulo e pelos mar-
xistas, até chegar ao pensamento mais
atual de Nestor Canclini, com seu concei-
to de “culturas híbridas”
X
. Para uma inter-
pretação dos fatos mais recentes, a aná-
lise do antropólogo argentino em muito
nos pode ajudar. Mas, para o maior apro-
fundamento desse tópico, dedicaremos
a segunda parte deste artigo, no qual fa-
remos considerações mais especícas.
Nesse momento, convém iniciarmos esta
reexão reconhecendo que cultura popu-
lar é mesmo um conceito muito difícil de
ser denido, cheio de contradições, e que
envolve jogos de interesses políticos, que
o cercam ao longo dos tempos, como de-
monstra Abreu (2003).
Culturas populares
Será na própria história do concei-
to, criado no séc. XVIII, e nos seus diver-
sos signicados, que a autora irá buscar a
chave para explicar o conjunto de dicul-
dades que lhe são atribuídas quando ten-
tamos interpretá-lo. Folclore? Tradição?
Aquilo que é genuíno do povo, sendo este
entendido como o conjunto de pessoas de
classes sociais mais baixas e menos des-
providas? Contraponto ao conceito do que
é erudito? Aquilo que é de consumo da
grande massa, e que está em vantagens
de mercado sobre outros ativos culturais?
Seguindo a história, vamos encontrar
múltiplas respostas em diferentes períodos
para a pergunta ‘O que é cultura popular?’.
E veremos que, seja qual for o sentido es-
colhido, a resposta sempre vem carregada
de juízos de valor, de enquadramentos ou
de homogeneizações, de disputas, de em-
bates entre oposições como tradicional-mo-
derno, urbano-rural etc. Martha Abreu cita
Roger Chartier, historiador contemporâneo,
para mostrar ser “impossível saber o que é
genuinamente do povo, pela diculdade ou
mesmo impossibilidade de se precisar a ori-
gem social das manifestações culturais, em
função da histórica relação e do intercâmbio
cultural entre os mundos sociais, em qual-
quer período da história” (CHARTIER, 1995).
Cabe lembrar a armação que a au-
tora faz de que cultura popular não é um
conceito que possa ser denido “a priori,
como uma fórmula imutável e limitante”.
Parece oportuna essa possibilidade de
encararmos a cultura popular muito mais
como uma perspectiva, uma espécie de
ponto de vista em relação ao que um deter-
minado grupo social produz como cultura.
Traz uma visão mais importante para se
criar possibilidades de se evidenciar dife-
renças e colocar em perspectiva realidades
culturais multifacetadas. Anal, esse pare-
ce ser o caráter da cultura popular na mo-
dernidade. E podemos nos transportar aqui
143
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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novamente ao universo do Carnaval de rua
carioca, com sua pluralidade e as inúmeras
possibilidades de signicados, de formas
de organização e agentes diversos.
O desenvolvimento do termo cultu-
ra popular no Brasil sempre esteve ligado
à construção de um pensamento sobre
identidade cultural, em qualquer dos perí-
odos que possam ser estudados desde o
século 19. A cultura popular foi tida como
folclore por muito tempo por alguns gru-
pos, entendendo folclore como um conjun-
to de tradições culturais de um país ou de
uma determinada região, aquilo que valo-
riza o tradicional e tudo o que o permeia a
autenticidade da cultura popular era con-
siderada fundamental para legitimar a ver-
dadeira singularidade nacional.
Assim como em outros países da
América Latina, o folclore no país ser-
viu para a formação dos estados-nação,
consolidando identidades nacionais. Tan-
to que, desde Silvio Romero, intelectuais
apontam a cultura popular, com ênfase na
música, como expressão da nossa iden-
tidade desde o m do século XIX. Essa
abordagem vai ganhar força de fato em
todo o território nacional a partir da década
de 1930, “quando consagrou-se a estreita
união entre a identidade nacional, a misci-
genação e a positiva e rica cultura popu-
lar nacional”, como aponta Abreu. E, nos
marcos desse movimento, destacam-se
a obra do sociólogo Gilberto Freyre, com
seu Casa Grande & Senzala, publicado
em 1933, e as grandes ações do governo
de Vargas, que vai se apropriar da cultura
popular levando-a para a tutela do Estado,
como fez com o samba e as escolas de
samba, por exemplo. É nesse movimento
que surge o sentido de autenticidade e uma
direta vinculação ao conceito de tradição
naquilo que é considerado popular. E aqui
o carnaval ganha a chancela de cultura po-
pular como símbolo de legitimação de uma
identidade nacional. As escolas de sam-
ba, que são a expressão mais importante
do carnaval desta época, vão representar
esse papel. A historiadora Rachel Soihet,
em seu livro “A subversão pelo riso”, mos-
tra que esse movimento, no entanto, não
se deu de forma unilateral, como pregam
alguns autores, tendo como agentes o pró-
prio governo e os líderes populares:
Vargas, a partir de sua ascensão, va-
le-se da música popular e das agre-
miações carnavalescas como veículo
para a integração dos populares ao
seu projeto de construção da nacio-
nalidade. Paralelamente, toma vulto o
esforço de líderes populares, para ar-
mar sua participação no sistema, ga-
rantindo a presença reconhecida das
manifestações nas ruas da cidade.
Dessa coincidência de interesses re-
sulta o predomínio popular no Carna-
val, tornando-se o samba sua música
característica. (SOIHET, 2003, p. 121)
Mas, voltando aos folcloristas, se
estes valorizavam o caráter tradicional e
autêntico, como traços de uma identidade
cultural e étnica, idealizando um autênti-
co “povo rural”, como se este estivesse
fora de um sistema de dominação de clas-
ses, os sociólogos da USP nas décadas
de 1950 e 1960, liderados por Florestan
Fernandes, vão deslocar a reexão para
um contexto voltado à modernização e às
questões relacionadas às desigualdades
sociais. Os folcloristas vão sofrer inúme-
ras críticas da academia, por defenderem
uma prática tida como não-cientíca e por
estarem do lado das forças conservado-
ras do governo e por não considerarem a
cultura como um embate entre os extra-
tos subalternos e as classes dominantes.
Marta Abreu arma que desse movimento
crítico e feroz resulta a repercussão nega-
tiva que o termo folclore acabou adquirin-
do, chegando mesmo a conotações como
“anedótico” e “ridículo”.
Para os sociólogos ligados à USP,
não se poderia pensar mais em “integra-
144
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ção cultural”, como defendiam os folcloris-
tas, que seria necessário considerar as
mudanças sociais eminentes de uma so-
ciedade cheia de conitos, em que a cul-
tura popular autêntica não teria como ser
produzida pelo povo, pois este se tornara
o proletariado. Ganha espaço no discur-
so dos acadêmicos as discussões sobre
desigualdades de classe e o debate sobre
cultura popular transfere-se para o campo
da alienação e de uma não-consciência,
consolidando visões muitas vezes precon-
ceituosas sobre o que é cultura popular:
“cultura fragmentada, conservadora, pre-
sa às tradições, obstáculo às mudanças
sociais”, entre outros adjetivos.
Dessa abordagem também vão par-
ticipar, a partir da década de 1970, os inte-
lectuais marxistas inuenciados pelo pen-
samento de Gramsci, em que “as culturas
subalternas, em sua perspectiva, seriam o
resultado da distribuição desigual dos bens
econômicos e culturais, ao mesmo tempo
em que poderiam oferecer uma forma de
oposição à cultura hegemônica, dos seto-
res dominantes” (ABREU, 2003, p. 88). E,
do pensamento marxista, surgem as bases
de reexão sobre o caráter de resistência
dos setores populares, oprimidos em suas
condições de vida e cultura.
Se o conceito da cultura nas so-
ciedades civilizadas foi sendo denido a
princípio no campo de disciplinas como o
folclore, a antropologia social e a sociolo-
gia, na década de 1970 o seu estudo
passa a interessar à historiograa. Car-
lo Ginzburg (apud ABREU, 2003, p. 89)
aprofundou a discussão de questões que
foram cruciais para os historiadores, como
a relação entre a cultura das classes su-
balternas (termo cunhado por Gramsci) e
a das classes dominantes. Ginzburg põe
em debate até que ponto existe subordi-
nação entre as classes e busca enten-
der a circularidade da cultura
XI
(SOIHET,
1998, p. 16). Essa discussão proposta por
Ginzburg foi parte de um movimento mui-
to mais amplo de historiadores ligados à
história social nessa década, que resga-
ta a perspectiva da cultura na história e
também da história vista a partir do povo.
Estão também envolvidos na discussão
de cultura popular e se tornam autores
referenciais Peter Burke, Mikhail Bakhtin,
Robert Darnton e E. P. Thompson.
Burke (apud ABREU, 2003, p. 90)
foi um dos primeiros autores a falar da
cultura popular de forma global e é res-
ponsável pelo termo “biculturalidade”,
para mostrar que os representantes da
elite conheciam e participavam da cultu-
ra popular, sem abandonar a sua. O his-
toriador chamou atenção para “a possibi-
lidade de signicados diferentes, quando
práticas culturais eram compartilhadas”.
E, ao voltarmos atrás nas investigações
sobre o Carnaval, veremos, dentro des-
sa perspectiva de Burke, como o conceito
se aplica no Brasil aos cordões, às gran-
des sociedades e depois aos ranchos, no
período entre o nal do século 19 e mea-
dos do século 20. Assim escreveu Soihet,
destacando a conguração dos ranchos e
principalmente a sua musicalidade:
Temas e artistas eruditos estavam pre-
sentes nessas agremiações; e suas
melodias inspiravam compositores
dos segmentos médios a produzir mú-
sicas de idêntico estilo. Congurava-
-se a circularidade cultural, fruto de
estratégias e da resistência dos popu-
lares. (SOIHET, 1998, p. 95)
Em contraposição à Burke, E. P.
Thompson (apud ABREU, 2003, p. 91)
destaca que a discussão sobre cultura po-
pular deve ser inserida no movimento das
classes trabalhadoras em defesa de seus
costumes e face às pressões que sofriam
dos diferentes agentes de dominação. O
historiador criticou muito a visão da tradi-
ção, entendida como sobrevivência e ma-
nutenção de um passado, destacando que
a tradição deveria ser “compreendida, em
145
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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termos políticos, como um local de dispu-
tas e conitos entre interesses opostos”.
Abreu chama a atenção para este ponto
como a maior contribuição de Thompson
nos estudos da cultura popular:
O autor recomenda muita atenção
para os perigos de se trabalhar com
uma ideia de cultura popular como
uma perspectiva ultraconsensual e
simplicadora, que determinadas de-
nições antropológicas podem sugerir,
como por exemplo a que foi utilizada
por Peter Burke no trabalho de 1978
[...]. Nas suas reexões, cultura é um
conjunto de diferentes recursos, em
que há sempre uma troca entre o escri-
to e oral, o dominante e o subordinado,
a aldeia e a metrópole. É uma arena
de elementos conitivos localizados
dentro de especícas relações sociais
e de poder, de exploração e resistência
à exploração. (ABREU, 2003. p. 91-92)
Conrmando o caráter contraditório
e ao mesmo tempo político do conceito,
a partir da década de 1960, no Brasil, a
cultura popular passa a fazer parte dos
discursos dos movimentos de esquerda e
assume o sentido de resistência de clas-
se ou, inversamente, da necessidade de
tomada de consciência das classes opri-
midas. E vai parar nos novos movimentos
culturais que querem expressar as posi-
ções da esquerda brasileira que começa a
ser silenciada pela ditadura militar.
depois uma outra tendência,
mais atual, relacionada aos pensadores
das indústrias culturais e da comunicação
de massa, que associa cultura popular
ao tamanho do público consumidor dos
ativos culturais. Popular seria aquilo que
atinge um grande público, que tem maior
consumo entre os diferentes “produtos”
ofertados no mercado. Por essa visão,
poderíamos considerar o Carnaval de rua
do Rio um grande exemplo da cultura po-
pular anal, são mais de cinco milhões
de pessoas, segundo dados da Secretaria
Municipal de Turismo.
Diante de tantas possibilidades ex-
ploradas até aqui, não dúvida de que
a compreensão da relação entre culturas
tradicionais e populares e as pressões im-
postas pela modernidade são um marco na
compreensão do conceito em si, em qual-
quer dos períodos que se analise. É a essa
maleabilidade de compreensão do que se
trata a cultura popular que Martha Abreu se
refere quando arma ser um conceito difícil
de denir e controverso por natureza, pois
se presta a um e a outro lado do pensa-
mento político, histórico e social. Mas pro-
ponho avançarmos nesta reexão por no-
vas abordagens, as quais considero mais
pertinentes à análise do fenômeno atual
dos blocos de rua, dentro do pensamento
do antropólogo Nestor Canclini, que discor-
re sobre o conceito de culturas híbridas.
Culturas híbridas
Dialogando com o texto de Martha
Abreu, a classicação de cultura popular
proposta por Canclini, em seu livro Culturas
Híbridas, parece a mais pertinente para o
estudo do Carnaval de rua do Rio. O autor
propõe que “as culturas populares conse-
guem ser, atualmente, prósperas e ao mes-
mo tempo híbridas”, e “o desenvolvimento
moderno não teria suprimido as culturas
populares”. Em sua concepção, as culturas
tradicionais desenvolveram-se e modica-
ram-se por diferentes motivos, mas a produ-
ção cultural dos setores populares se man-
teve independe de qualquer fator, sejam
por razões econômicas ou culturais. Como
arma Abreu, “o importante, diferentemente
da perspectiva folclorista, não seria buscar
o que não muda: mas por que muda, como
muda e interage com a modernidade”.
Essa perspectiva se adequa bas-
tante aos blocos de rua do carnaval do Rio
na contemporaneidade, que nenhuma
146
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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classicação anterior pode ser capaz de
descrever a pluralidade do que acontece
no período momesco na cidade, com seus
atores e agentes. Hoje, não parece ser pos-
sível fechar uma classicação única sobre
o que é um bloco carnavalesco, sem consi-
derar a multiplicidade de formas possíveis
dentro desse universo. Considerando-se
características “tradicionais” do carnaval
de rua antes dos anos 1980, bloco poderia
ser denido como um conjunto de pessoas
deslando ao som de sambas e marchi-
nhas, em forma de cortejo, fantasiadas ou
não, tendo uma bateria (conjunto de per-
cussões) como base rítmica (PIMENTEL,
2003). Mas a própria organicidade do car-
naval carioca vem demonstrando sua muta-
bilidade a cada ano. Se no primeiro período
da chamada retomada do carnaval de rua-
XII
, a partir de 1984, temos um conjunto de
blocos com características um pouco mais
homogêneas, a partir dos anos 2000, com
a chegada do Monobloco e outros que vão
apostar em novos ritmos, vamos encontrar
variações de formas e novas expressões
que não param mais a partir daí.
Atualmente, o Rio de Janeiro vive uma
espécie de explosão do seu Carnaval
de rua, à semelhança das primeiras dé-
cadas do século passado, a cidade é
invadida por agrupamentos de foliões
organizados das mais variadas formas.
Chamados indiscriminadamente de
bandas ou blocos, esses grupos po-
dem deslar cantando um único samba
composto especialmente a cada ano,
ao som de marchinhas carnavalescas
tradicionais ou de ritmos variados como
maracatu, ciranda ou rock. O acompa-
nhamento musical pode ser uma ba-
teria, ao estilo das escolas de samba,
uma bandinha “furiosa” ou uma mistura
de vários instrumentos (BEI, 2007, p. 7).
Os blocos do período de 1984 a
2000, fundados na Zona Sul da cidade,
têm algumas características em comum,
como a sátira política e a crítica social.
Deslam como cortejos e nascem com al-
guns elementos oriundos da formação mu-
sical dos ranchos e das escolas de samba,
como usar apenas um samba, autoral e te-
mático, que muda de ano para ano, e que
é disputado em concorridas festas para a
escolhas do samba do ano em questão.
Além disso, contam com baterias seme-
lhantes às das escolas, com os mesmos
instrumentos e sob o comando de um ou
mais mestres de bateria. Todos os blocos
deste período deslam com baterias, como
é o caso do Simpatia É Quase Amor, até
hoje sob o comando de Mestre Penha, for-
mado no bloco de enredo Canarinhos das
Laranjeiras, e do Imprensa Que Eu Gamo,
que em seu primeiro desle saiu com a ba-
teria da Mangueira e manteve por muitos
anos a bateria da São Clemente.
Outra característica desse conjunto
de blocos da retomada é o uso de camise-
tas autorais, com charges ou desenhos de
artistas plásticos, como uma marca de au-
tenticidade. Não signicam um “passapor-
te” de entrada ao bloco, como os abadás da
Bahia, por exemplo, pois o carnaval do Rio
não comporta nenhum tipo de restrição de
entrada, áreas exclusivas e vips. As cami-
setas funcionam como elemento de perten-
cimento, item de identidade para quem quer
ser “Suvaco”, “Simpatia”, “Barbas”, e por aí
vai. Usar a camiseta de um desses blocos é
uma espécie de passaporte, uma forma de
ser reconhecido como parte do grupo.
Essa conguração vai mudar com
a chegada do Monobloco e de vários ou-
tros blocos que nasceram das escolas de
percussão
XIII
, que surgem na primeira -
cada dos anos 2000. Uma nova geração
de instrumentistas começa a ser formada
na cidade, seduzida pela possibilidade de
integrar as baterias dos grandes blocos na
época do carnaval, e, ao mesmo tempo,
pela possibilidade de novos encontros que
as aulas propiciam. O tamborim é o instru-
mento mais procurado, adotado por uma
maioria de mulheres que encontram seu
147
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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espaço nas baterias, originalmente mascu-
linas. A música tocada nos desles deixa
de ser apenas uma, e os blocos adotam de
tudo um pouco, adaptando ritmos e com-
positores para a batida do samba: entra o
pop, o rock, o funk, o xote, o hip hop e ou-
tros nunca pensados no ritual do carnaval.
Na sequência aos blocos de per-
cussão, surgem os blocos temáticos, ini-
ciados com a experiência do bloco Exalta
Rei, formado por um grupo de músicos que
explora as canções do “Rei” Roberto Car-
los. Seu primeiro desle se em 2009,
na Urca, e, a partir daí alguns grupos car-
navalescos adotam a brincadeira de ce-
lebrar ou um cantor (Toca Raulllll!!!), um
grupo musical (Sargento Pimenta), um tipo
de ritmo (Chora Me Liga, Fogo e Paixão),
um tema (Zoo Bloco, Super Mario Bloco,
Desliga da Justiça). Dos blocos temáti-
cos, chegamos ao neofanfarrismo, que é
o movimento das novas fanfarras, não no
modelo tradicional das fanfarras militares,
apesar de usarem os mesmos instrumen-
tos. São grupos musicais com uma “pega-
da” mais política”, como se auto denem.
Diferente de todos os anteriores, não usam
carros de som, tendo como base um grupo
musical instrumental de sopros e não mais
com a prevalência das percussões. Fazem
parte desse grupo agremiações como Or-
questra Voadora, Dama de Ferro, Siderais,
Virtual, Sinfônica Ambulante, entre outros
atuais. Sobre as fanfarras:
O neofanfarrismo foi uma ideia que a
gente começou a usar depois, já no -
nal de 2008. Fui um dos que abraçou
logo este rótulo. Tem um babado polí-
tico nesta ideia [...]. A gente defendia
a ideia de que é “neo” porque somos
diferentes politicamente das fanfarras
tradicionais, fanfarras militares e de
pracinhas de cidades do interior. Não
é uma reformatação das fanfarras,
mas um posicionamento mais crítico
perante o mundo. (HERSCHMANN;
FERNANDES, 2014, p. 35)
Diante de tamanha diversidade, inte-
resses, intercâmbios, não como homo-
geneizar o Carnaval de rua do Rio dentro
de qualquer uma das classicações de cul-
tura popular apresentadas na primeira parte
deste artigo. Sabemos que é arte feita pelo
povo, espontaneamente. Mas de qual povo
estamos falando? Não se pode denir o Car-
naval dos blocos por classes sociais, como
se fosse uma manifestação xa e apenas de
um extrato. Nunca foi, basta um retrospec-
to na própria história do Carnaval para ver
o quanto as classes foram se misturando
e se alternando ao longo das diversas ma-
nifestações, como as sociedades carnava-
lescas, os cordões, os ranchos, as escolas
de samba, a partir de meados do século 19.
Tampouco podemos falar em tradição e pre-
servação, pois é fato que o carnaval muda e
se renova continuamente. Marta Abreu res-
salta em seu texto que “o popular não é mo-
nopólio dos populares”, que “o popular não
se concentra em objetos. O importante são
as mudanças de signicados resultantes de
interações” e ainda que “o popular não é vi-
vido pelos agentes sociais como manuten-
ção melancólica das tradições”.
Por isso, os argumentos de Can-
clini sobre hibridismos parecem ser apro-
priados para trabalhar conceituações em
relação a esse Carnaval, no século 21,
longe das oposições entre tradicional e
moderno, local e nacional, entre outras
que não servem. Eis alguns exemplos,
como o do bloco Sargento Pimenta, que
toca a música dos Beatles em suas apre-
sentações. O bloco não desla em corte-
jo, contrariando formações originais dos
blocos de rua, e se apresenta em palco
xo no Aterro do Flamengo, para mais de
180 mil pessoas, segundo dados da Polí-
cia Militar. Também não nenhum ele-
mento de tradição no Sargento Pimenta,
se levarmos ao pé da letra algumas ideias
como as defendidas pelo produtor cultural
e compositor de blocos Lefê Almeida, de
que Carnaval seria uma manifestação cul-
tural ligada ao samba, em artigo publicado
148
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
no jornal O Globo
XIV
. Como diz Canclini,
nada é puro, as culturas são híbridas, e
assim parece ser o que acontece por aqui.
Por hibridismo, Canclini dene os proces-
sos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas
estruturas, objetos e práticas. É preciso
desconstruir a divisão entre o culto, o po-
pular e a cultura de massa.
Outro exemplo é o bloco “Feitiço
do Villa”, formado por músicos de orques-
tra, que em um desle celebrou a música
clássica comemorando Heitor Villa-Lobos.
Saiu uma única vez, em 5 de março de
2011 (Dia Nacional da Música Clássica),
naquele ano um sábado de Carnaval. Era
formado por músicos eruditos que decidi-
ram fazer arte popular, como denem em
suas páginas nas redes sociais:
Somos um grupo de músicos, produ-
tores e empreendedores culturais que
amamos a música clássica e também
gostamos de carnaval (ou vice-versa).
Decidimos organizar o bloco Feitiço do
Villa porque, em 2011, o 5 de março,
Dia Nacional da Música Clássica, caía
um sábado de carnaval. Fazem parte
da diretoria do bloco o maestro Car-
los Prazeres; os músicos Edu Krieger,
Marcelo Caldi e Roberto Rutigliano;
os empreendedores culturais Heloisa
Fischer e Luiz Alfredo Moraes, de Vi-
vaMúsica!; as produtoras Ana Paula
Emerich e Cecília Valle.
Canclini cita alguns exemplos
para “hibridação”:
Algo frequente como a fusão de melo-
dias étnicas com música clássica [...];
as reelaborações de melodias inglesas
e hindus efetuadas pelos Beatles, Pe-
ter Gabriel e outros músicos”. E acen-
tua que o mais importante é o processo
em si, e não o resultado. Vejo tanto de
sua teoria no que acontece hoje em dia
com os quase 600 blocos da cidade,
que convivem por cerca de dois meses
em múltiplas manifestações culturais
intituladas de forma homogênea “car-
naval de rua”, sendo que as caracterís-
ticas entre elas são totalmente distintas
e nem sempre convergentes. É como
diz o sociólogo, “frequentemente a hi-
bridação surge da criatividade individu-
al e coletiva [...]. Busca-se reconverter
um patrimônio [...] para reinseri-lo em
novas condições de produção e merca-
do (CANCLINI, 2013, p. XX).
A hibridação interessa tanto aos se-
tores hegemônicos quanto aos populares,
que querem apropriar-se dos benefícios
da modernidade. “Esses processos inces-
santes, variados, de hibridação, levam a
relativizar a noção de identidade”
XV.
.Assim,
a antiga abordagem de carnaval como
identidade nacional poderia ser deslocada
para o da heterogeneidade e de hibrida-
ção, como propõe Canclini. O estudo dos
processos culturais, e nesse caso o Carna-
val de rua do Rio, mais do que nos leva a
armar uma identidade, nos leva a pensar
a heterogeneidade das culturas populares,
sua função de mutação e os ajustes sociais
que se produzem ao longo do tempo, como
condição de sobrevida da própria cultura,
a exemplo da criativa ocupação dos terri-
tórios como são as ruas do Rio de Janeiro.
São novos tempos que ainda precisam ser
investigados. Tudo muito novo, mutante,
mas sem dúvida, popular.
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tercom [E-book / recurso eletrônico].
SOIHET, R. A Subversão pelo Riso: estudos do
carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Var-
gas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
Recebido em 15/07/2016
Aprovado em 17/08/2016
I Maria Rita Dias de Almeida Fernandes. Mestranda do
Programa de Mestrado Prossional em História, Política
e Bens Culturais, CPDOC/FGV, jornalista e economista.
Brasil. Contato: ritafernande@gmail.com
II Dados da Riotur em seu balanço nal de Carnaval,
publicado pelo órgão em seu site e divulgado para toda
a imprensa.
III existe um edital de fomento para o Carnaval – não
apenas direcionado para os blocos, mas para todas as
modalidades carnavalescas – lançado anualmente pela
Secretaria Estadual de Cultura. Esse edital prevê o va-
lor de R$ 1 milhão para atender todas as manifestações
carnavalescas do estado do Rio, incluindo-se aí os mais
de 500 blocos de rua da capital.
IV Dirigentes de blocos e associações e ligas
V Desliga dos Blocos do Rio é um grupo de blocos as-
sociados com um discurso de valorização da tradição,
que defende a ocupação da cidade de forma espontâ-
nea, sem normas e legislações. Por isso, a maioria dos
blocos associados a Desliga dos Blocos sai no carnaval
sem pedir autorização para a prefeitura.
VI Informações disponíveis no Blog Acesso - http://
www.blogacesso.com.br/?p=5838 acesso em 12 de
julho de 2016.
VII A Sebastiana é a Associação Independente de Blo-
cos da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da Cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro, a primeira que surgiu
no período da retomada do carnaval de rua, em 2000.
Realiza anualmente este seminário, desde 2003, para
debater os desaos e as questões diretamente ligadas à
festa, seu crescimento e sua relação com a cidade.
VIII A Riotur, órgão da Secretaria Municipal de Turismo,
lançou um primeiro decreto exigindo que os organizado-
res dos blocos dessem entrada em pedidos de autoriza-
ção de desles em fevereiro de 2009.
IX Informações em Blog Acesso - http://www.blogaces-
so.com.br/?p=5838 – acesso em 12 de Julho de 2016.
X CANCLINI, N. Culturas Híbridas: Estratégias para en-
trar e sair da Modernidade. São Paulo: EdUSP, 2013.
XI Rachel Soihet dedica seu livro a pesquisar a partici-
pação dos segmentos subalternos no Carnaval do Rio
de Janeiro, de 1890 ao tempo de Vargas. Os conceitos
de interpenetração e de circularidade cultural estão no
centro de suas pesquisas, que analisam as formas de
atuação dos chamados “subalternos” diante dos obstá-
culos com os quais têm que confrontar.
XII O que vem sendo chamado de retomada do carna-
val de rua no Rio corresponde a dois períodos distintos,
como explica Micael Herschmann em seu “Apontamen-
tos sobre o crescimento do carnaval de rua”: o primei-
ro, mais tímido, mas precursor, data de 1984 com a
chegada de blocos como Barbas e Simpatia É Quase
Amor na Zona Sul do Rio, depois de um longo período
com pouca atividade do carnaval de rua. E o segundo,
chamado de o boom do carnaval, o que começa na pri-
meira década dos anos 2000, com uma explosão de
agremiações por toda a cidade.
XIII Bangalafumenga, Empolga às 9, entre outros.
XIV Lefê Almeida. “O poder de resistência dos cariocas”
publicado na editoria de Opinião do jornal O Globo em
15 de fevereiro de 2007.
XV CANCLINI, 2013: Introdução, p. XXIII .
150
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Sambantropologia
Sambantropology
Sambantropologia
Vinícius Ferreira Natal
I
Resumo:
O Presente artigo apresenta uma breve etnograa da ala de
compositores do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de
Vila Isabel, relativizando o papel do pesquisador em relação à
proximidade e características especícas com o campo das escolas
de samba do Rio de Janeiro, propondo a “Sambantropologia” como
um método de pesquisa particular e situacional.
Palavras chave:
Escolas de Samba
Antropologia Urbana
Música
Arte
Cultura Popular
151
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El presente artículo presenta una breve etnografía del ala de
compositores Grêmio Recreativo Unidos Escuela de Samba de
Vila Isabel, relativizando el papel del investigador en relación
con la proximidad y características específicas con el campo de
las escuelas de samba de Río de Janeiro, proponiendo, para
terminar, “Sambantropologia” como método de investigación
individual y situacional.
Abstract:
The present article presents a brief ethnography of the wing of
composers Grêmio Recreativo States Samba School of Vila Isabel,
relativizing the role of the researcher in relation to proximity and
specic features with the eld of the samba schools of Rio de Janeiro,
proposing, to nish, “Sambantropologia” as a method of individual
and situational research.
Palabras clave:
Escuelas de Samba
Antropología urbana
La música
Arte
La cultura popular
Keywords:
Samba Schools
Urban Anthropology
Music
Art
Popular culture
152
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Sambantropologia
Quando tentado a trabalhar com a
perspectiva antropológica, um dos meus
maiores questionamentos era como
pesquisar um tema tão próximo ao meu
cotidiano e vivência sem pôr em xeque
uma pretensa objetividade cientíca exi-
gida pelos padrões acadêmicos. Desde
minha infância frequentava as reuniões
da ala de compositores da Vila Isabel,
junto à minha avó, a compositora Ivaní-
sia. Natural foi escolhê-la (ou ser esco-
lhido) como minha escola de coração.
Com o passar dos anos e meu crescente
envolvimento, dei-me conta de que ou-
via mais samba do que qualquer outro
gênero musical: tocava na bateria de
diversas escolas de samba, coleciona-
va desles gravados em tas VHS e até
os tradicionais desenhos da juventude
eram substituídos pelos desles da Vila
em momentos de lazer.
Sem nenhum amigo sambista, era
taxado de louco. Não ligava, pois sabia
que “meu mundo” era o que batucava.
Cresci e logo percebi meu lugar “do lado
de dentro”, observando os problemas,
confrontos, alianças e outras característi-
cas com o apuro de quem vivencia uma
situação cotidiana.
Como lidar com isso, se decidi-
ra, então, estudar o meu próprio cotidia-
no dentro da Antropologia? Fazia-me um
“Sambontropólogo?
Estranhar o familiar. Nunca essa
armativa faria tanto sentido:
o estudo do familiar oferece vantagens
em termos de possibilidades de rever
e enriquecer os resultados das pesqui-
sas. Acredito que seja possível trans-
cender, em determinados momentos,
as limitações de origem do antropólo-
go e chegar a ver o familiar não neces-
sariamente como exótico, mas como
uma realidade bem mais complexa do
que aquela representada pelos mapas
e códigos básicos nacionais e de clas-
se através dos quais fomos socializa-
dos (VELHO, 1978, p.131).
Ricardo Barbieri em “A Acadêmi-
cos do Dendê Quer Brilhar na Sapucaí
também explora esse tema. Antropólogo
inserido no meio do “mundo do carnaval”,
relata sua diculdade em estudar um uni-
verso familiar, onde “Foi necessário me
concentrar no esforço de estranhar o fami-
liar, por conviver com o cotidiano das es-
colas de samba, e desempenhar funções
neste meio (as de intérprete e composi-
tor)” (BARBIERI, 2013, p. 32).
Quando falamos em pesquisa so-
cial é necessário transformar o exótico
em familiar e o familiar em exótico. Via
de mão dupla, pois pertencer a uma cul-
tura não necessariamente signica que a
conheçamos e, quando não, precisamos
torná-la familiar para podermos operar
dentro dela e com isso compreendê-la
(DAMATTA, 1978, p. 4). Na experiência
antropológica a subjetividade então se-
ria inerente à pesquisa, que tem também
por “vocação” cientíca a busca de objeti-
vidade em dados e resultados.
Maria Laura Cavalcanti, por sua
vez, também observa a necessidade do
estranhamento na pesquisa antropológi-
ca, armando que, no campo, o conhe-
cimento antropológico não se daria pelo
que se passa de fato entre os nativos,
e sim através de uma visão organizada
e percebida pelos antropólogos do que
ocorre nessas experiências. Logo,
uma percepção aproximativa, mediatiza-
da, permeada pela subjetividade, entre
os atores pesquisados e pesquisador.
Esse contato, entretanto, pode mesmo
ocasionar mudanças em ambos os lados:
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Consideremos então a nós mesmos
como um bando de nativos, um gru-
po social cuja vida prossional ganha
forma entre o campo, a etnograa e
a academia. Se a etnograa é, como
quer Claude Lévi-Strauss, uma certa
experiência de objetivação da subjeti-
vidade, creio que quem a exercita de-
senvolve também gradualmente uma
noção de pessoa peculiar. Um eu am-
bivalente e diverso que, com o ir-e-vir
reetido e sistemático entre múltiplas
realidades e sistemas classicatórios,
cruza zonas de perigo que o ameaçam
por vezes de dissolução. O exercício
prossional de um certo tipo de media-
ção, a mediação entre sistemas cogni-
tivos e morais, visando à produção de
conhecimento novo, deixa o sujeito/
antropólogo potencialmente muito per-
to da metamorfose [...]. (CAVALCAN-
TI, 2003, p. 134).
Como “sambantropólogo”, pretendi
observar os dados criticamente, em uma
espécie de equilíbrio analítico. Conside-
rando minhas opiniões e posicionamen-
tos, cervejas e pessoalidades introjetadas
em meu próprio ethos, busquei o exercí-
cio do fazer antropológico analisando as
relações e os desdobramentos dos fatos,
mesmo quando isso colocava em xeque
meu próprio bem-estar.
Pesquisador e militante
Nesse sentido, percebi que minha
posição no processo de pesquisa era cla-
ramente vinculada às minhas percepções
do que entendia como um projeto de es-
cola de samba possível - e que deveria -
ser realizado. Por mais que houvesse um
discurso do “observar o familiar” (VELHO,
1978) e do privilégio da subjetividade do
pesquisar, ainda é caro pensar um posi-
cionamento mais aguerrido e combativo
quando se trata de uma pesquisa cientí-
ca, majoritariamente observada como
um meio objetivo de busca de “verdades”,
quase que assumindo um ranço positivista
de construção de saberes e narrativas.
Porém, como lidar com essa pro-
blemática se os moldes acadêmicos ainda
bebem na fonte de um ocidentalismo eli-
tista que teima em privilegiar as narrativas
européias ou, quando não, as que a esse
modelo são moldadas e aceitas como ver-
dadeiras, em detrimento de tantas outras
que são silenciadas?
Runo (2014, p. 47) arma: “O que
o regime colonial tem feito é reduzir a
multiplicidade que está presente no mun-
do, divulgando que o que está fora da
premissa de “verdade” legitimada pelo
cânone histórico está sob a condição
de subalterno, atrasado, impuro, entre
outras signicações”.
Uma dessas estratégias ociden-
tais, portanto, é moldar verdades, esta-
belecer parâmetros para se considerar
que A é verdade e B, nem tanto. Logo,
por mais que a subjetividade hoje seja
aceita em um discurso ocial acadêmi-
co, a prática se constrói totalmente ao
revés, funcionando em dispositivos de
desautorização por proximidade, sub-
jetividade excessiva e até mesmo uma
maneira de utilizar a ciência - Santa Ci-
ência! - como um mecanismo de atingir
objetivos escusos, apropriar-se do ob-
jeto e utilizá-lo em benefício próprio de
projeto de poder.
Dentro desse molde, interessei-me
não por reproduzir essas narrativas, mas
sim fazer sobressair as próprias narrativas
nativas dos sujeitos pesquisados e, dessa
forma, me colocar como um sujeito ativo
dentro da escola de samba.
II
Como diz Pâmela Passos (2013):
Nesse sentido, campo e pesquisa-
dor não são preexistentes, mas co-
154
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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-emergem à medida que lançamos
luz ou tiramos o foco de iluminação
de determinadas variáveis (NASCI-
MENTO e COIMBRA, 2008). Trata-
-se, portanto de afirmar um modo de
pesquisar que escapa das formula-
ções prontas e que nos possibilita
sair do lugar arrumado do cientista
para nos misturar com o campo e,
nessa mistura, nos aproximar da-
quilo que, muitas vezes, fica ausen-
te do trabalho final. Interessa-nos
aquilo que fica de fora, os desacer-
tos, as indecisões, os desvios e di-
ficuldades. Isso também compõe a
pesquisa e a constitui.
III
Nesse sentido, Luiz Runo (2014,
p.16) também nos brinda:
Defendo a noção de que as práticas
culturais da afro- diáspora estão as-
sentadas e são orientadas por outras
formas de racionalidade que se dife-
renciam do modelo de pensamento
moderno ocidental. Nesse sentido,
suas lógicas de funcionamento reve-
lam múltiplos conhecimentos, outras
epistemologias que apontam cami-
nhos possíveis diante da pobreza de
experiência produzida pela linearida-
de de uma única narrativa explicativa
de mundo e de um único modelo de
conhecimento.
É nesse caminho que sou Sam-
bantropólogo e construo esse estudo:
dando luz às narrativas nativas, buscan-
do sempre evidenciar os atores e suas
falas; mais ainda, equacionando as fa-
las e agindo em uma contra-hegemonia
de um discurso ocidental que privilegia
a fala de quem detém o poder simbóli-
co. Porém, sem esquecer do velho copo
de cerveja, a caneta e o papel do sam-
ba, os dramas e o coração acelerado de
cada emoção vivida pelas ruas de Vila
Isabel. Esse é o alimento e sem ele não
nada. Nada.
E então, agora, falaremos de uma
Sambantropologia concreta, a tecnica-
mente vivida nos botecos, escola de sam-
ba e bairro de Vila Isabel.
Vila Isabel...
As lembranças de infância são,
como brincadeira, difusas e escorrega-
dias. Era dia de carnaval. Minha mãe
me levara ao carnaval de um coreto
próximo ao Largo da Freguesia, em Ja-
carepaguá, para assistir aos bate-bolas
e desfilar com minha fantasia recém-
-comprada de Batman.
Diferente das outras crianças, não
tinha o mínimo medo de bate-bola. Ti-
nha indiferença e achava, até certo pon-
to, bobo. Tinha medo, sim, de palhaços.
Odiava tanto que era o único da minha
idade que não via o programa da Vovó
Mafalda, no SBT. Preferia o Vídeo Game
ou a bolinha de gude...
Lembro que logo ao chegar no
Largo, pedi à minha mãe:
- Vamos voltar logo. Quero ver mi-
nha avó na Vila.
- Filho, chegamos agora. Espera
um pouco.
Ficamos eu e uma amiga fanta-
siada de índia brincando de serpentina,
mas logo quis vir embora. Compramos
um balão de Pato Donald e viemos. A in-
diazinha - Raquel, o nome dela - cou.
Eu, o balão de Pato Donald e minha mãe
viemos embora.
Não é que nos 10 minutos de cami-
nho do Largo da Freguesia até minha casa
o Pato Donald resolveu voar? Fiquei pos-
sesso, pois tinha planos de guardá-lo no
meu quarto. Anal, era um pato que voava!
Fiquei olhando o balão ir embora,
mas ele não sumia. Andava, andava e
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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ele subia. Até uma hora que sumiu e
eu também havia cado feliz, pois havia
sido uma distração que me fez chegar em
casa mais rápido.
Logo cheguei em casa e liguei a
TV. Estava deslando a Vila Isabel, com o
enredo “A Vila Vê o Ovo e Põe Às Claras”.
Fiquei ssurado procurando minha avó,
quando uma grande galinha apareceu na
tela; logo atrás, achei minha avó e meu
carnaval estava completamente dotado de
sentido. Ali era a festa.
Poucas horas depois, chegou ela,
contando que o desle havia sido um as-
co, que ela tinha saído atrás de um carro
com uma galinha bem feia, onde a chuva
fazia a palha ter um cheiro horroroso. Bin-
go! Era ela mesma! Mais festa!
A partir disso minha ligação com a
agremiação crescia: passei a frequen-
tar os ensaios consideravelmente, ingres-
sando na bateria em 2000, tendo meu
primeiro desle em 2002. A partir daí, anu-
almente ensaiei e desle na escola, entre
altos e baixos.
Porém, em 2014, após um desas-
troso carnaval, houve eleição para pre-
sidência da escola. A então candidata à
presidente, Elizabeth Aquino, mais conhe-
cida como Dona Beta, convidou-me para
assumir a Direção Cultural da escola caso
fosse eleita, pois conhecia o trabalho que
exercia no Centro Cultural Cartola como
pesquisador e achava bastante positivo.
Com a vitória consolidada, pude assumir
essa tarefa dentro da agremiação.
O mais curioso é que, meses an-
tes, havia defendido uma dissertação no
PPGSA - UFRJ a respeito das ideias de
cultura e memória no G.R.E.S. Acadêmi-
cos do Salgueiro, investigando as diferen-
tes narrativas forjadas pelo Departamento
Cultural da escola e o único fundador vivo,
Djalma Sabiá (NATAL,2014). Estranhava-
-me o fato, ainda mais que, vivendo sem-
pre no o da navalha entre a objetividade
e a subjetividade das pesquisas acadêmi-
cas, pudesse empreender tal função.
Nesse momento, meu “eu antro-
pólogo” cedeu lugar ao “eu sambístico”, o
coração falou mais alto e aceitei o desa-
o, reunindo uma equipe de, inicialmente,
5 torcedores, número que cresceria pro-
gressivamente até o momento, com o ob-
jetivo de organizar o acervo e empreender
um trabalho de valorização da memória da
escola, ponto que considerava bastante
sensível na sua organização.
Cabe perder um tempo nesse pon-
to explicando o que, anal, era o Depar-
tamento Cultural do G.R.E.S. Unidos de
Vila Isabel formado, célula que seria uma
das principais constituidoras do meu es-
paço de fala.
O Departamento Cultural
O trabalho desenvolveu-se com
bastante diculdade. Não é segredo,
para quem vive o cotidiano das esco-
las de samba, ou mesmo trabalha com
cultura popular, que, na maioria das ve-
zes, a memória é relegada a segundo
plano. As escolas de samba, com um
ritmo “sempre pra frente” (CAVALCAN-
TI, 1994) e focadas no desle anual, ca-
nalizam grande parte de seus esforços
para “colocar o carnaval na rua”, como
os sambistas dizem a respeito de na-
lizar a preparação do desle a contento
do desle principal de carnaval. Logo, a
memória, assim como outras esferas ad-
jacentes de uma escola de samba que
não passam objetivamente pela prepa-
ração do carnaval, acaba sendo tratada
de modo coadjuvante.
Porém, entendia, como Pollack
(1998), que a memória era parte impor-
tante da constituição social do sujeito;
156
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ainda, que atua como uma forma de se
singularizar em meio a uma vasta malha
de informações e temporalidades, princi-
palmente quando lidamos com um ritmo
incessante, acelerado e blasé na cidade
(SIMMEL,2005). Passado, presente e
perspectivas de futuro bailam juntos em
um mesmo espaço, disputando atenção
e, por mais que tenhamos como parâ-
metro de vivência o presente, o passado
precisa estar lá, pois foi vivido. Dessa
forma, tal tempo pode servir como a mar-
ca de um território, mostrando-se como
uma possibilidade válida de valorização
de experiência.
Como nas outras escolas em que
conhecia minimamente a realidade, a si-
tuação de descaso em que encontrei a
memória na agremiação era caótica.
Com orçamento de zero reais ini-
ciais, percebi que não conseguiria rea-
lizar o trabalho de organização do acer-
vo de forma solitária. Convoquei, então,
alguns amigos mais próximos que ha-
viam sido meus estagiários em meu tra-
balho no Centro Cultural Cartola, junto
a componentes da agremiação com o
objetivo de traçar um plano de ação e
organização emergenciais para o ma-
terial. Foram realizados, assim, dois
eventos denominados de “Mutirão Cul-
tural”, buscando tratar, de maneira bem
concisa, a memória da agremiação.
157
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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A partir de então, organizou-se um
grupo de interessados em empreender o
trabalho, de forma não remunerada, mas
capaz de entender e compartilhar o sen-
timento de necessidade de preservação
da memória da agremiação. Os pesquisa-
dores, atualmente, são Beatriz Barcelos,
Dalton Cunha, Daniel Guimarães, Dani-
lo Garcia, Fabiane Melo, Fadla Martins,
Hugo de Oliveira, Leonardo Marques, Na-
thalia Sarro, Ricardo Nicolay Tadeu Goes
e Thales Nunes.
Paralelo ao trabalho de documenta-
ção foram realizados eventos que visavam
dar conta de uma evocação de memória
da escola, como o “Cine Debate Kizomba”,
onde, pela facilidade de acesso que pos-
suía ao Centro Cultural Cartola, foi realizada
uma exibição do desle campeão de 1988
seguindo-se de debate com participantes do
desle da época, além de depoimentos com
componentes antigos da agremiação, bus-
cando guardar, em áudio e vídeo, as memó-
rias tecidas por esses sambistas.
158
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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É a partir da formação de tal grupo
e ações que o meu lugar de fala começa a
se constituir: por entre sonhos de criança
sambista e devaneios de um pesquisador,
o meu entendimento de pesquisa e função
social ganhavam contornos.
***
Passados os momentos iniciais de
trabalho, minha atuação no Departamen-
to Cultural cara cada vez mais visível e
perceptível no cenário interno do G.R.E.S.
Unidos de Vila Isabel. Ao mesmo tempo,
decidira realizar o trabalho de tese sobre
os compositores de Vila Isabel, baseado
mesmo naquelas observações pessoais
vividas durante toda minha infância.
As ruas de Vila Isabel são rechea-
das de núcleos de sociabilidade e entrete-
nimento, denominados aqui como bares e
botecos, onde muitos compositores passam
horas a o conversando, bebendo ou mes-
mo divulgando informalmente seus próprios
sambas. Durante todo o ano, nas noites do
bairro, muitos desses compositores pro-
movem rodas de samba nas mais diversas
localidades visando divulgarem seus tra-
balhos musicais na localidade. Durante a
elaboração desse projeto, foram mapeadas
diferentes rodas de samba, observando a
ocorrência de, muitas vezes, a realização de
rodas conjuntas com o “encontro” de um ou
mais compositores em um só evento
IV
.
O cotidiano desses compositores
se altera e sugere um maior esforço no
período de escolha do samba-enredo da
escola de samba a ser cantado no ano
corrente: diante de uma série de apresen-
tações, uma comissão julgadora, geral-
mente composta por membros da escola,
vota em uma apresentação nal e escolhe
o samba campeão. O que parece ser um
processo simples e direto do ciclo anual
carnavalesco ganha contornos dramáticos
e tensos dentro da escola de samba
V
.
A ala de compositores da Vila Isa-
bel agrupa diferentes sujeitos que, a priori,
possuem a capacidade de compor letras
e melodias, formando assim um grupo de
interesse e sociabilidade. O grupo pos-
sui largo número de associados, sendo
a grande maioria moradora do bairro de
Vila Isabel. A ala possui duas guras em
sua constituição de maior destaque den-
tre os membros: Martinho da Vila, cantor e
compositor de maior destaque no cenário
musical brasileiro e André Diniz, professor
de História e detentor do maior número
de títulos de disputa de samba de enredo.
Desde 1994, André Diniz venceu 15 de 20
disputas realizadas, sendo derrotado ape-
nas uma vez, ocialmente.
O fato do último ter conquistado
tantas vitórias sucessivas acabou por
ocasionar um mal estar dentro do gru-
po dos compositores da escola, gerando
um processo de desintegração e esva-
ziamento reetido mesmo no número de
sambas em disputa na escola
VI
. A acusa-
ção é que a culpa de todo esse processo
devia-se aos chamados “escritórios” de
disputa de samba, liderados por André
Diniz e com ocorrência na maioria das
escolas do Grupo Especial.
Os compositores denominam de
escritórios os grupos de indivíduos que se
alocam na categoria “compositores” e que
disputam em diversas escolas de samba
do grupo especial, o principal grupo na hie-
rarquia competitiva do desle das escolas,
formando assim um cartel de disputas de
samba. Para conseguirem concorrer des-
sa forma, os diferentes sambas são assi-
nados por “pombos
VII
”. Os escritórios são
formados a m de captar o maior número
possível de vitórias, visando acumularem
gorda quantia de premiação pela vitória e
de direitos autorais
VIII
.
A crítica ao sistema dos escritórios
provêm principalmente de compositores à
margem desse processo. Geralmente mais
159
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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velhos e com maior experiência em dispu-
tas de samba desde a década de 1960,
armam que os escritórios excluíram o
verdadeiro compositor. Aquele que ralava
no morro e era quem realemnte amava a
escola
IX
”. Ou ainda, atestam que os escri-
tórios “serviram para mostrar quem manda
de verdade é o dinheiro. O sambista não
tá com nada
X
”, acabando por reetir a ten-
são entre um modelo tradicional, ligado ao
morro, ao “pé no chão”, à raiz, muito herda-
do do pensamento folclorista brasileiro que
ainda perdura em alguns aspectos atuais
(GONÇALVES, 2013) versus o moderno,
ligado as inovações, ao dinheiro e ao luxo
da escola de samba (JUNIOR, 2009)
XI
.
Dessa forma, percebi que deveria
analisar esse processo em curso dentro da
ala de compositores do G.R.E.S. Unidos de
Vila Isabel, procurando desvelar caracterís-
ticas peculiares a respeito não só do siste-
ma de produção de sambas nas escolas de
samba do Rio de Janeiro
XII
e da importância
do dinheiro nesse processo, mas também
de como esses compositores, sejam de
escritório ou “antigos”, atuam e negociam
dentro do bairro suas próprias identidades
e projetos, em meio a sucessos e fracas-
sos de suas trajetórias intentadas (VELHO,
2003; BOURDIEU, 2006).
O Voto
Após o carnaval de 2015 e um
amargo 1lugar, muito se especulou so-
bre os rumos da escola. A então presiden-
ta, Elizabeth Aquino, a “Dona Beta”, renun-
ciaria em breve. Rumores davam conta
de que seu mandato estava afastando os
componentes da escola e era cercado de
escolhas erradas: desde o ex-carnavales-
co, Max Lopes, até a escolha do samba-
-enredo, que não rendera pontos como
os do “André Diniz” nos anos anteriores e
havia prejudicado muito a escola. Após o
ocorrido, as informações davam conta que
o então vice-presidente, Luciano Ferreira,
também renunciaria e o cargo caria livre
para o Superintendente, Bernardo Belo, li-
gado ao patronato do jogo do bicho e bra-
ço direito de Capitão Guimarães, assumir
o comando da escola.
Como previsto, Beta renunciou e
após o ocorrido, um silênio profundo in-
comodava dentro da agremiação. Espe-
culava-se que haveria novas eleições e
o ex-presidente, Wilson Vieira Alves, o
Moisés, seria candidato, o que inquieta-
va muitos. Porém, em uma reviravolta do
jogo político da escola, Luciano Ferreira,
que era dado como um “lho” de Beta e
que, certamente, renunciaria, decidira
continuar no cargo.
Após calorosas discussões inter-
nas, houve trocas de cargos dentro da
escola, mas o mesmo fez questão de me
manter como Diretor Cultural, tecendo
numerosos elogios ao trabalho realizado
pelo grupo. Seguiu o baile e a prepara-
ção para o carnaval de 2016, com lan-
çamento de enredo - sobre Miguel Arra-
es - e início do processo de escolha do
samba para o desle.
Porém, haveria uma novidade na
presidência de Luciano: retornavam ao co-
mando da escola Evandro Luís do Nasci-
mento, o Evandro Bocão, Leonel e André
Diniz, compositores vencedores acusados
de “ganharem sempre”
XIII
. Essa seria uma
mudança signicativa na formulação da dis-
puta de sambas de enredo: De 18 concor-
rentes do ano anterior, o número de obras
que disputaram foi de 9; também diminuiu
o tempo de disputa, que de 8 semanas
passou para 4 semanas, com a justicativa
de diminuir os gastos dos compositores.
Eu, que vivenciara sempre ao lado
de minha avó todo o processo de disputas
de samba, considerava como uma oportu-
nidade de pesquisa ímpar. Porém, como
fazê-lo? Faltava-me ainda o foco da pes-
quisa. Anal, o que pesquisar? Não sabia.
160
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Minha intimidade com o tema e atores se
tornava um impeditivo de qualquer ação e,
por esse mesmo motivo, sabia que qual-
quer passo precipitado poderia ser arruinar
o campo. Decidi realizar um acompanha-
mento “Descompromissado” - Sambantro-
pologia pura - e observar o desenrolar dos
fatos sem me cobrar que, de fato, estava
pesquisando. Sem papel e lápis. Nada.
Foi que durante a nal de sam-
ba-enredo que a realidade social vira o
livro de ponta-cabeça e começa a história
outra vez:
- Você é o Vinícius, do Cultural, não é?
- Sou sim.
- Toma. aqui uma pasta pra você
julgar o samba-enredo.
- Mas o Luciano não me avisou
nada - Disse, absolutamente estarrecido
com a notícia.
- Sim, não falou. Mas ninguém sa-
bia. Me entrega no nal, por favor, mar-
cando um X no campeão.
O diretor de Harmonia saiu. Eu não
saí. Fiquei. Parado e sem ação.
O ato de julgar o samba tornaria-se
algo extremamente complexo para o meu
entendimento - e para minhas pretensões,
mesmo, pois em nenhum momento dese-
java tal feito. Sabia bem o que representa-
va votar em um samba em uma nal. Era
posicionar-se politicamente e, enquanto
um momento de grande tensão dentro da
escola de samba, poderia signicar abrir
portas de pesquisa, mas também fechar
outras muitas; poderia até mesmo gerar o
entendimento de afronta ou desao, visto
que votar em uma parceria poderia sig-
nicar, para muitos, a convocação de um
duelo e uma situação de desao e enfren-
tamento. Disputa de samba é rivalizar entre
grupos e, caso assumisse alguma parceria
como de preferência explícita, isso poderia
ser interpretado como uma “chamada ao
combate” por minha parte, pois também
era ator e dominava os códigos nativos.
Eram 4 as parcerias nalistas:
1- J.P, Claudio Emiliano, Marcos
Trappani, Kaoma e Beto Habilidade
2- Martinho da Vila, André Diniz,
Martnália, Arlindo Cruz e Leonel
3- Jaiminho Harmonia, Thales Nu-
nes, Hugo Oliviera, Bonsucesso e Ser-
jão da Vila
4- Alcyr Higino, Professor Lacerda
e Jurandir Terra
A partir das apresentações, decidi
dividir a responsabilidade da escolha e
reunir toda a equipe do Departamento Cul-
tural presente na quadra, realizar uma vo-
tação interna, para que assim fosse anun-
ciado o voto. Todos gostaram do samba
de Jaiminho Harmonia que, coincidente-
mente ou não, era parceiro de Thales Nu-
nes, membro do nosso Departamento
XIV
.
A favor do samba campeão, votaram
18 pessoas: Eduardo Katata, presidente
da ala dos compositores; Cíntia, da Velha
Guarda, Aladir, da Velha-Guarda, Alair, das
Baianas, Verinha, das Baianas; Edson e
Claudinha, da ala de passistas; Edson, da
Harmonia; Décio Bastos, diretor de Harmo-
nia; Coxinha, diretor Financeiro; Olício Al-
ves dos Santos, Diretor de Adminsitração;
Bocão, diretor de carnaval; Mestre Mug,
presidente de Honra da bateria; Sandra
Arueira, diretora de projetos; Alex de Sou-
za, carnavalesco; Juninho, vice-presidente;
Mestre Wallan, mestre de bateria.
Proclamado o samba campeão, fui
saindo da quadra e, conforme saía, era para-
benizado. Sabia bem o porquê: para alguns
componentes, havia rivalizado diretamente
com a “rma”, apelido que davam à parce-
ria campeã. Disseram-me que eu fui o único
que “honrava a camisa da Vila Isabel”, e que
“tinha coragem” para enfrentar o “Esquema”.
Não era inocente no jogo. Sabia
do signicado que esse voto teria, mes-
mo não possuindo a intenção de causar
desconforto, porém não poderia imaginar
161
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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repercussão tão grande. Após mais uma
cerveja e ouvir diversos elogios, resolvi ir
para casa e reetir sobre todo o ocorrido.
Além da bebedeira, precisava curar a res-
saca do mal-estar gerado por um simples
X numa folha de papel.
***
Demorei duas semanas até vol-
tar à quadra de ensaios. chegando,
mais elogios à minha postura de “emba-
te”. Havia um ensaio de canto, visando
a gravação do vídeo clip da agremiação
junto à Rede Globo, mas a quadra não
estava cheia como nas disputas de sam-
ba, o que é um movimento natural na
maioria das agremiações.
Percebo, então, que o processo
de disputa de samba-enredo mobiliza
todo o corpo de componentes atuantes -
há os que só participam nos meses mais
próximos ao carnaval - organizando gru-
pos de torcida em torno da torcida de um
samba; as parcerias funcionam como
emblemas onde se “é” o samba de al-
guém, ou seja, se torce para que o sam-
ba saia vitorioso do embate.
Durante a disputa há um processo
de crescimento exponencial de envolvi-
mento da escola, lotação da quadra e visibi-
lidade midiática, aproximando-se da noção
de Drama Social de Victor Turner (1967).
Esse conceito permite enxergar
a construção da integração social como
feita através das crises e conitos que
eclodem entre os diferentes no curso de
um processo social. Na interpretação
desse conceito proposta por Cavalcan-
ti (2007, p. 130), no que diz respeito ao
tema da integração social, “a continuida-
de da sociedade Ndembu (talvez pudés-
semos falar, sobretudo, da continuidade
de um sentido de pertencimento a um
amplo grupo social) repousaria, em úl-
tima instância, na continuidade de uma
“comunidade de sofrimento”, cujas ten-
sões e conitos se expressariam e, de
algum modo, resolver-se-iam ritualmen-
te nos ritos de cura e de aição”.
Yvonne Maggie também utilizou o
Drama Social para analisar e interpretar o
cisma em um terreiro de Umbanda na ci-
dade do Rio de Janeiro nos anos 1970. A
autora trabalha com a perspectiva de Tur-
ner, citando-o: “Pode-se algumas vezes ir
além da superfície de regularidades sociais
e perceber as contradições e conitos ocul-
tos no sistema social. Os tipos de mecanis-
mos corretivos empregados para lidar com
o conito, o padrão de luta faccionalista e
as fontes de iniciativa para acabar com a
crise, todos claramente manifestados no
drama social, fornecem pistas valiosas so-
bre o caráter do sistema social.” (TURNER
apud MAGGIE, 2001, p.17)
Dessa forma, o conceito de Drama
Social permite entender a dinâmica dos con-
itos entre os atores, evidenciando os dife-
rentes valores e posicionamentos em jogo.
Turner divide o drama social em
4
XV
, e aqui adaptamos a moldura por ele
proposta às nalidades de organização de
nosso relato:
1) A ruptura, gerada pela divisão
da escola em diferentes parcerias para a
disputa pelo direito de representar a agre-
miação em desle.
2) A expansão da crise, com o de-
senrolar disputa e o agravamento das ten-
sões geradas pela disputa.
3) O agravamento da crise e ação
reparadora, com o nal da disputa e es-
colha do samba, o posterior esvaziamento
da escola, descontentamentos e reclama-
ções sobre a escolha, mas com a posterior
volta do ritmo e ensaios e dos perdedores
ao cotidiano da agremiação.
4) O desfecho com a relativa re-
composição da ordem no desle ocial,
mesmo que em pouco tempo os mesmos
162
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
compositores novamente se organizem
em parcerias para reiniciar o ciclo.
Ao passo que as primeiras semanas
mobilizam quase somente os compositores
envolvidos e entes mais próximos, as eta-
pas nais arregimentam um número consi-
derável de torcedores e simpatizantes.
A nal de samba, evento no qual se
escolhe o “hino” da agremiação, é expres-
são máxima do conito gerado entre os
compositores. Todos estão em busca da
vitória onde, para tal feito, dispendem - ou
conseguem quem o faça - enormes quan-
tis para que o objetivo seja realizado.
Logo após o momento da vitória,
um esavaziamento da quadra e um afrou-
xamento das relações. Muitos que torciam
por um samba perdedor acabam se afas-
tando da escola - muitos revoltados com o
resultado - onde será necessário um tem-
po de distância da escola para que o sen-
timento se refaça e o componente volte a
frequentar os ensaios.
Usa-se o chavão “agora o samba é
da escola”, signcando que, mesmo não
sendo favorável à vitória de um samba,
o componente deve cantar a plenos pul-
mões o samba escolhido pela agremiação
nos ensaios e dia ocial de desle.
Seguem-se os ensaios que desagua-
rão no carnaval e, por m, fecha-se o ciclo
do Drama Social. A escola sempre deslará
em busca de seu melhor resultado possível.
Apito nal
Relações sociais são tecidas a
cada instante. O fato de interagirmos com
indivíduos distintos em nossa sociedade
embasa o surgimento - ou rompimento
- de laços entre sujeitos. Esse modelo in-
terativo permite considerar as relações so-
ciais no ambiente urbano como uma porta
de entrada interessante para entender o
mundo das escolas de samba cariocas.
Inspirada nos estudos promovi-
dos pela chamada Escola de Chicago, que
acompanharam a vertiginosa urbanização
daquela cidade nas primeiras décadas do
século XX, a Antropologia Urbana enxerga
a cidade como um palco onde atores dife-
renciados encenam interações diversas:
dramas são vividos, alianças são feitas, des-
feitas, refeitas. Nesse ambiente social hete-
rogêneo composto por diferentes camadas,
segmentos e grupos sociais, múltiplas visões
de mundo operam como diversos prismas
sob os quais podemos enxergar um fato.
Para Simmel (2005), a vida urbana
torna possível encontrar pessoas de origens
e identidades sociais diferentes, articuladas
e inseridas em um mesmo meio. Nesse es-
paço compartilhado, o conito e o dinamis-
mo assumem papel central no uxo de inte-
rações entre diferentes camadas e grupos
sociais. Com o decorrer dos estudos urba-
nos, a cidade passaria a rmar seu espaço
como um lugar possível de estudos antropo-
lógicos. Gilberto Velho aborda o assunto:
[...] A Antropologia, tradicionalmen-
te, tem estudado os “outros” e eu me
propus estudar “nós”. É evidente que
outros autores já o zeram, mas a An-
tropologia Urbana ainda engatinha e
enfrenta sérios problemas de metodo-
logia. [...]. Na Antropologia Urbana ain-
da se está muito na fase das intuições,
das primeiras tentativas. Há uma razo-
ável polêmica e, relativamente, pou-
cos resultados (VELHO, 1973, p. 11).
Ao mesmo tempo, Roberto DaMatta
iniciava na década de 1970 o entendimen-
to do carnaval como um processo sócio-
-ritual, onde a observação da festa através
de um “close up”, ou seja, a evidência de
um episódio pontual, descortinaria proces-
sos vividos pela sociedade de um modo
mais abrangente (DAMATTA, 1980).
163
Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Mesmo vendo um carnaval diminu-
to em conitos, o autor contribui decisiva-
mente para a visão do festejo como um ri-
tual, característica preservada por grande
parte dos estudos antropológicos sobre o
tema na atualidade (CAVALCANTI, 1995;
SANTOS, 2009; GONÇALVES 2007; ERI-
CEIRA,2009; BARBIERI, 2010,).
Tanto do ponto de vista artístico
como do administrativo, são diversos os
setores que compõem uma escola de sam-
ba, que emerge como um mosaico, onde
cada qual detém função especíca e inter-
ligada a todas as demais: a ala da bateria
é responsável por dar o ritmo ao samba de
enredo, que por sua vez é composto por
um ou mais compositores; a gura do car-
navalesco concebe o enredo e desenha
croquis de fantasias, alegorias e adereços;
a velha-guarda é composta por sambistas
idosos, entre outros. Apesar de poderem
possuir visões distintas e encararem o pro-
cesso ritual de desle a partir de diferentes
perspectivas (CAVALCANTI, 1994), todos
os componentes de uma escola de sam-
ba desembocam na Avenida Marquês de
Sapucaí, a chamada Passarela do Samba,
localizada no centro da cidade do Rio de
Janeiro, com um objetivo em comum: de-
fender a sua agremiação no desle anual.
Esse processo reverbera então na
cidade, agitando diversas dimensões so-
ciais, como um fato social total (MAUSS,
1978). Movimenta a economia com valo-
res de patrocínios e venda de ingressos
que ultrapassam a cifra dos milhões, a po-
lítica com a querela da presença de ban-
queiros do jogo do bicho no controle das
agremiações - onde, obviamente, o sen-
tido de política das escolas de samba, o
entendimento de cultura da cidade do Rio
de Janeiro e o sentido de pertencimento a
uma manifestação festiva vai muito além
dos presentes apontamentos. São, por-
tanto, parte constitutiva da malha urbana,
absorvendo e expressando os conitos da
cidade (CAVALCANTI, 1994).
Minha inserção como pratican-
te desse meio foi fundamental para a
minha própria formação enquanto pes-
quisador, pois muito me intrigavam os
conitos existentes no cotidiano des-
sas instituições. Enxergadas por muitos
como uma organização uníssona e pa-
cíca - “A” Escola de Samba, festiva e
carnavalesca - observava que ela estava
longe de ser o lugar da equidade, mas
sim um espaço recheado de diferenças
em sua própria constituição.
Tal qual um mosaico formado, fun-
cionam como um campo onde diversos
atores transitam, dialogam e conituam,
utilizando seus simbolismos construídos
como formas de representação (BOUR-
DIEU, 1983; 1989), ou mesmo como ar-
ma Leach (1995, p. 121), que como com-
preende as regiões das Colinas de Kachin,
“Dentro desse sistema social maior exis-
tem, num período dado, um número de
subsistemas signicativamente distintos
que são interdependetes”. Entendê-las
como um organismo composto de muitos
prismas é essencial para a compreensão
dos atores que as compõem e suas atu-
ações na denição de suas trajetórias,
projetos e identidades em meio à cidade
(VELHO, 1973; 2003); também de como
esses atores encarnam a ação de uma
estrutura ritual e competitiva, onde as inte-
rações podem assumir o caráter de trocas
agonísticas (MAUSS, 1978) ou drama so-
cial (TURNER, 1967); ou ainda, atuam e
encenam suas próprias realidades.
Cada desle é, então, o apogeu de
um ciclo anual ininterrupto, sendo o início
e ao mesmo tempo, m. Nesse período,
a “rede de relações sociais trançada ao
longo do ano atinge o seu grau máximo
de expansão” (CAVALCANTI, 2006, p.
233) e é essa capacidade de expandir
essa rede que aguça a necessidade de
compreensão de como os desles absor-
vem e irradiam os conitos e as transfor-
mações pelos quais passa a cidade.
164
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Portanto, os compositores do
G.R.E.S. Um idos de Vila Isabel emba-
sam os rabiscos iniciais de uma pesquisa
de tese que, logicamente, ainda engati-
nha em seus devaneios. Os compositores,
logo, formam uma célula de um mosaico
bem mais amplo que deve ser levado em
conta se queremos observar as escolas
de samba como uma janela para se en-
xergar a vida social urbana.
O que me deixava agoniado com
um “não comprometimento” com a pes-
quisa, em um primeiro momento, onde
observei e escutei sem nenhuma com-
preensão sistemática, se transformou em
uma metodologia de pesquisa fundamen-
tal para a compreensão do objeto de estu-
do que tratava; mais ainda, para entender
o meu papel em todo esse circuito. Sam-
bantropologia, pois era deixar-se levar,
entre um olhar técnico e um gole de birita.
Em um texto intitulado “A Rua”,
João do Rio (2008) nos fala:
Para compreender a psicologia da rua
não basta gozar-lhe as delícias como
se goza o calor do sol e o lirismo do
luar. É preciso ter espírito vagabun-
do, cheio de curiosidades malsãs e
os nervos com um perpétuo desejo
incompreensível, é preciso ser aque-
le que chamamos âneur e praticar o
mais interessante dos esportes - a arte
de anar. É fatigante o exercício?
De pronto, respondo. Sim, o é. Mas
o objetivo aqui não é encarar a rua
como um espaço físico, mas sim em uma
perspectiva mais ampla, tal qual um “ou-
tro”. DaMatta (2003, p. 15) nos fala sobre
a dicotomia ente a casa e a rua, onde:
Falamos da “rua” como um lugar de
“luta” e de “batalha”, parte da “dura
realidade da vida”. O uxo da “vida”,
com suas contradições e surpresas,
pertence à rua, onde o tempo - medido
pelo relógio, pelo calendário e pelas
agendas - corre, voa e passa, fazendo
história. [...] Na rua não amor, con-
sideração, respeito ou amizade.
Ora, a rua, portanto, é o local da in-
certeza, do desatino, do andar sem rumo.
De encontrar o que não se busca e, mes-
mo assim, no nal de tudo, achar um sen-
tido espetacular na junção das peças do
quebra-cabeça que é a realidade social.
Rua, portanto, é o nosso incerto, o
arriscar, e assim também compreendo que
deve ser realizada uma pesquisa: emocio-
nada, sem receita de bolo, correndo peri-
gos e pondo-se à prova.
É dessa forma, portanto, que en-
caro os compositores de Vila Isabel: par-
te de um todo incoerente, mas que fazem
todo sentido no conjunto; parte, também,
de mim, um pesquisador que se tenta co-
erente, mas que, na realidade, se faz feliz
em produzir conhecimento nas brechas
loucas da incoerência emotiva de si.
Viva a Vila Isabel!
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Recebido em 13/07/2016
Aprovado em 02/08/2016
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Vinicius Ferreira Natal. Doutorando em Sociologia e
Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janei-
ro. Brasil. Contato: vfnatal@gmail.com
II E talvez tenha sido esse o principal motivo de minha mu-
dança da graduação em História para o mestrado e dou-
torado nas Ciências Sociais, pois, dentro do que buscava
como entendimento para trabalhar com a realidade social.
III Assumo, então, meu papel militante no sentido em
que busco, em um primeiro momento, entendendo a
dinâmica dos compositores dentro da escola de samba
Vila Isabel, e pensando minha atuação dentro de um
contexto mais amplo, que é a necessidade de valoriza-
ção das narrativas de matrizes negras e indígenas em
uma vertente contemporânea. Observamos, por exem-
plo, o PPGAS, do Museu Nacional, e outros Programas,
que aderiram em seus Programas de Pós-Graduação o
sistema de cotas para negros e indígenas.
IV Foram mapeadas as rodas dos compositores Dinny
da Vila, Arthur das Ferragens,Pagode do Arruda, dentre
outras iniciativas esporádicas de ensaios de blocos de
embalo, como o Kizomba, da cantora Mart´nália.
V Atualmente, também se encontra a prática, em outras
escolas, do contrato de um grupo de compositores para
a confecção do samba, ndando o processo de disputas
para a escolha do samba. Isso gera uma série de críticas
por parte do grupo de compositores alijados do processo
de composição, faceta a ser considerada durante percur-
so de pesquisa. No G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel, essa
hipótese foi levantada publicamente pelo então presiden-
te da Vila Isabel, Wilson Moisés, no ano de 2012.
VI Ao passo que em 2006 a escola teve 30 sambas em
disputa, no ano de 2014 a escola teve 6 sambas A alegação
por parte de outros compositores se dá pelo excessivo nú-
mero de disputas vencidas por André Diniz. para o car-
naval de 2015, com a ausência de André Diniz nas disputas,
o número de sambas passou a subir, chegando a 18.
VII Categoria nativa que designa o sujeito que assina
a autoria do samba, porém nem sempre os compondo
de fato, encobrindo e representando um grupo maior de
compositores que participa da disputa. Alguns os deno-
minam de “comprositores”, ou seja, os que compram um
samba já pronto e, de fato, não compõem.
VIII Segundo armou o compositor André Diniz, em de-
poimento dado ao Centro Cultural Cartola, ele em 2012
conseguiu ganhar em quatro parcerias distintas no Gru-
po Especial, o que chegaria a somar a quantia de R$
1.200.000,00 no montante geral de premiação, dividida
entre os patrocinadores dos gastos da disputa de sam-
ba - como gravação, torcida, fogos de artifício, cantores,
músicos, etc. Muitos desses patrocinadores são empre-
sas de pequeno e médio porte - e parceiros do samba.
IX Depoimento de Djalma Sabiá ao Centro Cultural
Cartola, em 2009.
X Depoimento de Monarco da Portela ao Centro Cultu-
ral Cartola, em 2011.
XI Sobre o processo de composição de samba, Muniz So-
dré descreve que “A comercialização do samba e a pros-
sionalização do músico negro se faziam, evidentemente, no
interior de um modo de produção, cujos imperativos ideoló-
gicos fazem do indivíduo um objeto privilegiado procurando
abolir seus laços com o campo social como um modo in-
tegrado. Compositor se dene como aquele que organiza
sons segundo um projeto de produção individualizado. Em
princípio, o músico negro teria de individualizar-se, abrir
mão de seus fundamentos coletivistas, para poder ser cap-
tado como força de trabalho musical”. A partir desse trecho,
inferimos que o processo de perda de espaço do composi-
tor passaria pela perda de espaço coletivo do sujeito, pas-
sando pela individualização do compositor. Não será o foco
desse texto, mas vale o questionamento para respostas
futuras: Há essa perda de coletividade? Em que medida a
individualização afeta os processos de composição?
XII Se considerarmos a existência de 72 escolas de
samba na cidade do Rio de Janeiro, onde cada uma
pode produzir até 20 sambas em disputa, em média,
chega-se ao número de 1480 sambas de enredo. Des-
se, ganham destaque somente os sambas vencedores,
gravados em um cd conjunto, dividido por hierarquia de
desle, e entoados no dia do desle ocial. Os números
são ilustrativos e aproximativos.
XIII Um episódio curioso envolve os referidos nomes
de Bocão, André Diniz e Leonel. Após o carnaval 2014,
a parceria haveria decidido ausentar-se da disputa de
samba-enredo, ocasionando quase que em três vezes
um aumento do número de inscritos na disputa para o
ano de 2015. Porém, o samba da parceria de Macaco
Branco logo disparou na preferência da escola. Ao pas-
so que a fofoca no espaço dava conta de que o samba
era de André Diniz, a parceria negava. Fato é que o sam-
ba foi eliminado na Semi-Final, onde muitos armavam
que “só foi cortado porque era do André”.
XIV A dúvida sobre a coincidência é posta bem em tom
provocativo mesmo, pois não se sabe a procedência do
gosto por um samba. Pode-se gostar de um samba por sua
letra marcante, melodia rica, ou mesmo pelas relações de
amizade tecidas. No caso do voto escolhido do Departa-
mento Cultural, todas as alegações realizadas na sala - in-
clusive a minha - foram de que “era o melhor samba”, e não
nos cabe julgar nosso próprio gosto a ponto de colocá-lo
em xeque. O momento de votação pode ser caracterizado
como um momento de alta tensão, podendo fazer até mes-
mo alguns votantes mudarem de opinião de forma repen-
tina. Por exemplo, o carnavalesco Alex de Souza, ao me
procurar uma semana antes armando ser um “absurdo
o samba do Jaiminho Harmonia não ganhar”, mudara de
opinião e votara no samba de Martinho da Vila.
XV As 4 fases em que Turner divide o Drama Social
são: 1- Ruptura ou separação de uma relação social; 2-
A instauração de uma crise ou sua intensicação; 3- A
tentativa de uma ação reparadora; 4- Desfecho da crise.
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Atrás do nosso bloco só não vai quem já morreu
- o corpo carnavalesco de Mário de Andrade
Detrás de nuestro bloque no sólo los que han muerto
- Carnaval en el cuerpo de Mario de Andrade
Behind our block will not only those who have died
- Carnival in Mário de Andrade’s body
Lucas Garcia Nunes
i
Resumo:
O referido trabalho busca apresentar algumas experiências de Mário
de Andrade no carnaval brasileiro, e provocar as consequências que
as vivências do escritor, políticas e artísticas reetiram em seu corpo
enquanto um vetor para as relações derivadas da rua, na multidão
de alegorias. Dessa forma é possível interpelar a territorialização,
considerando a ação disposta no corpo do poeta e as possíveis
trocas com o território; através da carnavalização, do exercício da
alteridade a partir da década de 1920.
Palavras chave:
Carnaval
Território
Mário de Andrade
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este trabajo tiene como objetivo presentar algunas de las
experiencias de Mário Andrade en el carnaval de Brasil, y hacer que
las consecuencias que las experiencias del escritor, político y artístico
reejan en su cuerpo como un vector para las relaciones derivadas
de la calle, alegorías multitud. Para que pueda llamar teniendo en
cuenta la acción territorial preparado en cuerpo y posibles cambios
del poeta con el territorio; por carnavalización, el ejercicio de la
alteridad desde la década de 1920.
Abstract:
This work aims to present some of Mário de Andrade experiences in
the Brazilian carnival, and cause the consequences that the writer’s
experiences, political and artistic reected in his body as a vector for
relations derived from the street, the allegories crowd. So you can
call upon the territorial considering the action prepared in the poet’s
body and possible exchanges with the territory; by carnavalização, the
exercise of otherness from the 1920s.
Palabras clave:
Carnaval
Território
Mário de Andrade
Keywords:
Carnival
Territory
Mário de Andrade
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Atrás do nosso bloco
só não vai quem já morreu - o corpo
carnavalesco de Mário de Andrade
O carnaval é sempre o mesmo e sempre novo
Com o turista ou sem o turista
Com dinheiro ou sem dinheiro
Com máscara proibida e sonho censurado...
(Carlos Drummond de Andrade)
O presente artigo propõe reetir so-
bre um momento especíco dentro de uma
lógica temporal produzida pelo pensamen-
to das políticas culturais brasileiras institu-
cionalizadas, na década de 1930. Período
que se inicia um movimento para legitimar
a cultura brasileira, devido, principalmen-
te, aos modernistas brasileiros. Mário de
Andrade mediará com registros e aponta-
mentos as investigações propostas acer-
ca do carnaval, tendo em vista sua efetiva
participação nas décadas de 1920, 1930 e
1940. Portanto trataremos do carnaval em
uma ótica especíca, porém sem descon-
siderar outras proposições que não foram
incluídas nas considerações de Mário.
Das relações construídas sobre o
carnaval estão o imaginário e as alego-
rias de Mário de Andrade, com o intuito de
provocar suas experiências (BENJAMIN,
1989), para ampliar os aspectos que en-
volveram os repertórios da participação do
escritor no cenário intelectual do país, e as
mudanças no âmbito urbano do Brasil. O
carnaval serve então como ferramenta de
uma perspectiva especíca para a compre-
ensão da ação disposta por Mário; a car-
navalização, levando em consideração os
territórios e suas respectivas dinâmicas.
Para tal é necessário interpelar o
território, assimilado a partir dos aponta-
mentos de Deleuze e Guattari. Nesse sen-
tido, as experiências serão de extrema im-
portância para assinalar as questões que
envolvem a ação, as relações corpóreas,
a cultura e a política.
O território é de fato um ato, que afe-
ta os meios e os ritmos, que os “ter-
ritorializa”. O território é o produto de
uma territorialização dos meios e dos
ritmos. [...] Um território lança mão de
todos os meios, pegar um pedaço de-
les, agarra-os. Ele é construído com
aspectos ou porções de meios [...].
territórios a partir do momento em que
expressividade de ritmo (DELEU-
ZE; GUATTARI, 2012, p. 127).
Deleuze e Guattari trabalham o ter-
ritório como sendo um resultado de um ato
dos meios e dos ritmos. Está diretamente li-
gado à funções, forças e grupos. No territó-
rio notamos os meios e ritmos, assim como
o tempo e o espaço. O produto do meio e
do ritmo envolve uma porção de códigos
que apontam o território com extensão de
ações e disputas. É nesse ambiente que
reetiremos sobre a prática carnavalesca.
O carnaval tem uma grande impor-
tância na formação e no fortalecimento da
imagem da cultura brasileira, não somente
o carnaval da cidade do Rio de Janeiro.
Esses apontamentos especícos permi-
tem desenvolver aspectos que existem
nas ruas, nas multidões, em festas públi-
cas, abertas e populares, para além dos
fechados salões dos mascarados. Mário
de Andrade nos apresenta algumas ale-
gorias que servem para desenvolver um
pensamento que percorre, através do car-
naval, a construção de um espaço, da rua
e da memória, além das inúmeras rela-
ções capazes que o espaço urbano permi-
te, na intersecção dos corpos (JACQUES,
2014). Os cenários apresentados pelo
escritor são especícos e descritivos de
suas experimentações. Sua curiosidade
fez com que incluísse seu corpo na massa
fantasiada e tomasse nota mentalmente
de suas derivas ao sabor de confetes, ser-
pentinas e outros estimulantes. No meio
170
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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da multidão tirou sua máscara de poeta e
colocou inúmeras outras, para brincar o
carnaval, inicialmente na cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro.
Para compreender a vivência de
Mário de Andrade ao sabor de uma festa,
criativa e dinâmica, com contribuições re-
lacionadas à rua, buscarei reexionar as
práticas espaciais e os sujeitos que estão
envolvidos nas diferentes manifestações
que formam o carnaval brasileiro, sobretu-
do no Rio de Janeiro. Essas experiências
irão interferir e inuenciar a forma com
que Mário esteve à frente do DeCult e as
ações propostas pela instituição na déca-
da de 1930. A dinâmica da modernidade,
incentivada, no Brasil carrega peculiarida-
des e contextos especícos de produção e
saber artístico/cultural, onde encontramos
alegorias em diferentes alas e páginas da
bibliograa de Mário.
Os registros a serem apresentados
são aspectos importantes neste desle,
pois, reproduzem uma prática da rua, da
multidão e da possibilidade da alteridade.
Interpretam momentos signicantes de vi-
vências abertas, produção do sentido dos
espaços e a construção de uma identidade.
São memórias que comunicam e difundem
práticas relembradas. Mário em seu poema
“Carnaval Carioca” de 1923 aponta uma
formação brasileira multicultural, híbrida,
de notória criatividade e representação; até
o momento não valorizada. Em sua experi-
ência, Mário, vestindo uma fantasia, busca
a distância do “eu mesmo”, para se afogar
entre a multidão e observar com liberdade
o que assistira na capital federal (PUCHEU;
GUERREIRO, 2011, p. 49).
O poeta, praticando o exercício de
se perder em uma multidão alegorizada
de divertimento público, assumiu e relatou
sua descoberta carnavalesca. O carnaval
é marcado por algumas mudanças e, uma
especíca, foi fundamental para modicar
o caráter da festa - a participação das “ca-
madas inferiores”. Antes de conhecer os
causos carnavalescos do modernista, ve-
remos um pouco sobre o carnaval em si.
As escolas de samba são associações
especícas dos estratos inferiores ur-
banos do Rio de Janeiro; datam de
ns da década de 20, época em que
as atividades carnavalescas “de rua”
eram ainda organizadas quase em
exclusividade pela burguesia citadina,
que detinha o privilégio legal de “se di-
vertir” durante o Carnaval, no que era
fortemente apoiada pelo comércio e
pela imprensa. Organizava então bai-
les de máscaras em clubes e teatros,
batalhas de confetes em algumas pra-
ças, brilhantes cortejos nas avenidas
centrais; tanto os ricaços passeavam
no corso as famílias brilhantemente
fantasiadas, quanto faziam deslar, na
noite da Terça-feira Gorda, os belos
préstitos das sociedades carnavales-
cas. Prêmios oferecidos pelas empre-
sas mais consideráveis e pelos jornais
mais populares estimulavam a compe-
tição entre os grupos de foliões. A po-
lícia aumentava sua vigilância durante
o Reinado de Momo e controlava de
perto as atividades para lhes garantir
“boa ordem”.
As camadas inferiores, principalmente
os grupos negros e mulatos, estavam
praticamente impedidos de se reunir e
dançar nas ruas e avenidas centrais,
e até mesmo nas de seus bairros; po-
diam apenas desempenhar o papel de
espectadores ao longo das calçadas.
Às vezes se revoltavam: grupos de
funcionários subalternos, de artesãos,
de operários, de doqueiros, aos quais
se juntava toda uma franja de desem-
pregados e de vagabundos, busca-
vam sambar nas proximidades das
grandes artérias centrais, desaando
a polícia, o que terminava muitas ve-
zes em conito que podia chegar ao
derramamento de sangue; considera-
dos fatores de desordem, tal ousadia
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
terminava sempre na cadeia (QUEI-
ROZ, 1992, p. 93).
Maria Isaura apontando um breve
histórico das escolas de samba e da orga-
nização e trajetória da festa, conclui que
as camadas populares não tinham efetiva
participação nos dias de festa e/ou eram
reprimidas. Ainda assim, participavam do
carnaval, tanto é que com o tempo e a ori-
ginalidade dos “excluídos” atraiu olhares
do público e de outras classes. Devido à
criatividade e às soluções dos negros, mu-
latos e trabalhadores, que “tudo que era
classicado “brasileiro” obtinha a aprova-
ção das camadas superiores” (QUEIROZ,
1992). Na década de 1920, o carnaval no
Rio de Janeiro, em Salvador, Recife e ou-
tras cidades estavam consolidados na
rua, levando a multidão a se esbaldar com
alegria e divertimento; os delírios da carne
eram vividos.
João do Rio, na virada do século
XIX para o XX, relatando os fazeres, dos
cordões da cidade do Rio de Janeiro, de-
senvolve os aspectos que a rua permite,
enquanto um espaço de livre acesso com
as divisões de classes estipulada. João
arma a rua como viva e possuidora de
alma e corpo.
Era em plena Rua do Ouvidor. Não se
podia andar. A multidão apertava-se,
sufocada [...]. A pletora alegria punha
desvarios em todas as faces. Era pro-
vável que do largo de São Francisco
à rua Direita dançassem vinte cordões
e quarenta grupos, rufassem duzentos
tambores, zabumbassem cem bom-
bos, gritassem cinqüenta mil pessoas.
A rua convulsionava-se como se fosse
fender, rebentar, de luxúria e de baru-
lho (RIO, 2012, p. 141).
O jornalista tem um importante pa-
pel no registro da memória da cidade, e do
carnaval. Os logradouros por onde cami-
nhava, na prática da aneire, são relata-
dos, em especial, nas crônicas que escre-
via aos jornais. Com uma semelhança no
método das errâncias, Mário vivencia e é
conduzido pela sua curiosidade desperta-
da: “Nada me escandaliza, porque verico.
Sou curioso e para mim é interessante e
objeto de observação.” (ANDRADE, 1988,
p. 29). Dessa forma que se apresenta en-
tre a multidão, perdido e pertencido, como
ele mesmo assume em carta ao poeta
Carlos Drummond:
Eu conto no “Carnaval Carioca” um
fato que assisti em plena Avenida Rio
Branco. Uns negros dançando o sam-
ba. Mas havia uma negra moça que
dançava melhor os outros. Os jeitos
eram os mesmos, mesma habilidade,
mesma sensualidade, mas era melhor.
porque os outros faziam um pou-
co decorado, maquinizado, olhando
o povo em volta deles, um automóvel
que passava. Ela não. Dançava com
religião. Não olhava pra lado nenhum.
Vivia a dança. E era sublime. Aquela
negra me ensinou o que milhões, mi-
lhões é exagero, muitos livros não me
ensinaram. Ela me ensinou a felicida-
de (ANDRADE, 1988, p. 22).
Mário era um experimentador
de diferenças e diversas expressões.
Trazida em forma de carta e de poe-
ma, claramente, nos permite conceber
a prática de observador, enquanto vi-
venciador de uma manifestação, obser-
vador também da vida, deixando seu
corpo perdido e sua mente acesa diante
de um turbilhão de sentidos, aflorados
justamente a partir da perdição de seu
corpo por completo. Em seu relato poé-
tico em Carnaval, a cena que descreve
ao amigo Carlos é a seguinte:
A mais moça bulcão polido ondulações
lentas lentamente
Com as arrecadas chispando raios
glaucos oiro na luz peluda de pó.
Só as ancas ventre dissolvendo-se em
172
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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vaivens de ondas em cio.
Termina se benzendo religiosa
talqualmente num ritual.
(Mário de Andrade)
Obviamente, Mário estava inuen-
ciado pelo Carnaval de Manuel Bandeira,
seu outro amigo moderno. Na curiosíssi-
ma ocasião – Mário – queria experimentar
o carnaval na cidade do Rio de Janeiro.
Separou alguns dias para “pular” e foi ao
Rio no ano de 1923. Nos primeiros dias -
caria pela cidade assistindo à rua, depois,
subiria para Petrópolis onde encontraria
Manuel Bandeira e sua família para, nova-
mente, voltar aos desles dos cordões na
Avenida Rio Branco. Trago boa parte dos
relatos e da poesia, por se tratar da prática
da cidade, por descrevê-las e registrá-las.
Fica a própria explicação de Mário de An-
drade para o causo:
Querido Manuel.
Depois perdoarás.
Foi assim. Desde que cheguei ao Rio
disse aos amigos: Dois dias de carna-
val serão meus. Quero estar livre e só.
Para gozar e observar. Na segunda-
-feira, passarei o dia com Manuel, em
Petrópolis. Voltarei à noite para ver os
afamados cordões.
Meu Manuel...Carnaval! Perdi o trem,
perdi a vergonha, perdi a energia...
Perdi tudo. Menos minha faculdade de
gozar, de delirar...Fui ordinaríssimo.
Além do mais: uma aventura curiosís-
sima. Desculpa contar-te toda esta por-
nograa. Mas... Que delicia, Manuel,
o carnaval do Rio! Que delícia, princi-
palmente, meu carnaval! Se estivesse
aqui, a meu lado, vendo-me o sorriso
camarada, meio envergonhado, meio
safado com que te escrevo: ririas.
Ririas cheio de amizade e perdão. (...)
Meu cérebro acanhado, brumoso de
paulista, por mais que se iluminasse
em desvarios, em prodigalidades de
sons, luzes, cores, perfumes, pânde-
gas, alegria que sei! Nunca seria ca-
paz de imaginar um carnaval cario-
ca, antes de vê-lo. Foi o que se deu.
Imaginei-o paulistanamente. Havia um
que de neblina, de ordem, de aristo-
cracia nesse delírio imaginado por
mim. Eis que sábado, às 13 horas,
desemboco na Avenida. Santo Deus!
Será possível!...
Sabes: quei enjoado. Foi um cho-
que terrível. Tanta vulgaridade. Tan-
ta gritaria. Tanto, tantissimo ridículo.
Acreditei não suportar um dia funça-
nata chula, bunda e tupinambá. Ca-
fraria vilissima, dissaborida. Ultima
análise: “Estupidez”!
Assim julguei depois de dez minutos
que não caria meia hora na cidade.
Mas, por isso talvez que tanto tenho
sofrido dos julgamentos levianos, jurei
para mim olhar sempre as coisas com
amor e procurar compreendê-las antes
de as julgar. Comecei a observar. Co-
mecei a compreender. Uma conversa
iluminava-me agora sobre uma ridícula
baiana que pouco vira. A pobreza de
uns explicava-me a brincadeira.
Admirei repentinamente o legitimo
carnavalesco, o carnavalesco cario-
ca, o que é só carnavalesco, pula,
canta e dança quatro dias sem parar.
Vi que era um puro! Isso me enton-
tece e me extasiou. O carnavalesco
legítimo, Manuel, é um puro. Nem las-
civo, nem sensual. Nada disso. Canta
e dança. Segui um deles uma hora
talvez. Um samba num café. Entrei.
Outra hora se gastou.
Manuel: sem comprar um lança-perfu-
me, uma rodela de confeti, um rolo de
serpentina, diverti-me 4 noites inteiras
e o que dos dias me sobrou do sono
merecido. E está porque não fui vi-
sitar-te. (ANDRADE, s/d, p. 79)
Esse ocorrido remete à questão a
respeito da memória, da construção espa-
cial de Mário de Andrade e sua curiosida-
de em conhecer uma cultura distante dos
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grandes teatros e das rodas intelectualiza-
das. O carnaval era de tamanha “pureza”
que Mário viajou pelos cordões e canto-
rias, observando as potencialidades que
seu sentidos despertavam, que se lança-
vam em perfumes e coreograas. Fica -
tida no texto acima a importância daquela
manifestação após o estranhamento e jul-
gamento das diferenças. Nesse momento
as classes se unem, cantando, gritando,
em busca de um objetivo único, a festa da
carne, o carnaval tão esperado por todos.
O cômico, o sujo e o elegante se unem
em cores e gritos de liberdade, com um
“Guarda civil indiferente”, são “almas far-
ristas”. No ano seguinte, volta ao Rio de
Janeiro com os modernistas e um convi-
dado especial, Blaise Cendras, o carnaval
de Madureira foi retratado na tela de Tarsi-
la Carnaval em Madureira.
Não na cidade do Rio de Janeiro
de São Sebastião gozou o carnaval. Em
Recife brinca o carnaval com um registro
em forma de diário no ano de 1929, que é
apresentado no Turista Aprendiz:
10 Domingo de carnaval. Desde
manhã pleno carnaval. Loucura. Tar-
de com Ascenso, Avelino Cardono
fui assistir à saída do maracatu Leão
Coroado com 9 bombos e uma por-
ção de gonguês. Depois foi a peregri-
nação através das ruas e dos frevos.
Caí no frevo por demais. Acabei no
Palace com amigos de improviso e o
José Pinto, cocaína e éter (ANDRA-
DE, 1975, p. 364).
No capítulo XII, sobre a Música Po-
pular Brasileira do Pequeno Ensaio da Mú-
sica Brasileira, Mário relata com um pouco
mais de detalhes de um dia de carnaval,
na mesma nação.
Tive ocasião de assistir, no Carnaval
de Recife, ao Maracatu da Nação do
Leão Coroado. Era a coisa mais vio-
lenta que se pode imaginar. Um tira-
dor das toadas poucos respondedores
coristas estavam com a voz completa-
mente anulada pelas batidas, fortíssi-
mo, de doze bombos, nove gonguês
e quatro ganzás. Tão violento ritmo
que eu não podia suportar. Era obriga-
do a me afastar de quando em quan-
do para...pôr em ordem o movimento
do sangue e do respiro (ANDRADE,
1987, p.177).
A sensibilidade na vivência e no re-
gistro de sua relação com o espaço e com
as feituras dos sujeitos envolvidos é notó-
ria, pois norteia a dimensão da necessida-
de em querer entender sobre o ocorrido.
No ano de 1922, anterior à experiência re-
latada, uma carta do tio Pio traduz os sen-
timentos de Mário, uma vez que a carta
enviada ao tio não foi encontrada nos ar-
quivos da família. As palavras do parente
dão conta da imensidão e da importância
que a festa tomava no espírito do poeta.
Eu li mais de uma vez a sua car-
ta de domingo de carnaval. Repeti a
leitura para me certicar bem se ali
havia algum requerimento, se V. que-
ria alguma coisa de mim. Vi que não;
a carta é puramente noticiosa, e vale
por um relatório pormenorizado dos
sucessos da famosa semana, e dos
sentimentos que eles criaram ou al-
ternaram na sua consciência (COR-
REA; ANDRADE, 2009, p. 55).
Com essas citações percebemos
quão rica é a experiência de Mário de An-
drade no carnaval, do interesse provoca-
do em (re)conhecer outros pedaços e for-
mas de viver o Brasil. A procura que ele
realizava, era, antes de tudo, uma atitude
política, uma armação de discernir um
território que produz, diferente das repro-
duções que o Brasil da oligarquia vivia.
O carnaval, pela perspectiva ma-
rioandradiana é um momento único de
liberdade da população, na rua pública,
174
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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de encontros. A “pureza” citada por Mário
em carta ao poeta Manuel Bandeira deixa
evidente o tratamento e a interpretação da
manifestação brasileira, rica e represen-
tante do Brasil, um encontro e uma festa
realizada para “agrar a banalidade” (PU-
CHEU; GUERREIRO, 2011, p. 28).
Os registros realizados pelos moder-
nistas a partir de 1922 servem como uma
ferramenta da construção da memória artís-
tica. Incluídos neste acervo estão as formas
que Mário de Andrade lembrou do carnaval.
Transbordando euforia, brincou o carnaval
em algumas linhas escritas em poema. A
construção da identidade nacional, tão ne-
cessária nesse período, é evidentemente
selecionada e indicada a partir de vozes
que assumem a representação da popula-
ção e interferem na prática cultural (BOURI-
DEU, 1989), grupos hegemônicos encami-
nham as fontes e as vozes que devem ser
priorizadas na contribuição de um reconhe-
cimento do que seria importante valorizar
enquanto manifestação cultural.
A produção da memória de Mário
de Andrade está além de suas obras e
experimentações, diga-se de passagem,
importantes para estabelecer um diálogo
entre os intelectuais e a confecção dos
elementos culturais no Brasil. Pode-se
assinalar: Aleijadinho, Padre Jesuíno do
Monte Carmelo e Portinari, que o escritor
evidenciou em suas críticas como nomes
de grande importância no campo artísti-
co brasileiro, pelas produções populares,
traços “puros”, contexto e elaboração re-
alizadas por mestiços e mulatos, além do
aspecto moderno, anexado a essas es-
pecícas produções artísticas. Tomando
a inuência de Mário como um recurso
de poder dentro das rodas intelectuais
brasileiras, o que cou foi a necessida-
de das instituições brasileiras em rear-
mar e enaltecer sua identidade através
das ações de Mário de Andrade, um mito,
santicado e representante do movimen-
to modernista brasileiro.
Contribuições da memória de -
rio de Andrade, relembrando o carnaval,
registrado em cartas, crônicas e também
adaptadas a um fazer artístico, dominado
pelo escritor. Este aporte não é somente
uma simples poesia, ou uma carta vigia-
da pelos pesquisadores do arquivo, é um
documento que ilustra e nos permite inter-
pelar uma determinada manifestação ar-
tística estabelecida no Brasil apontada por
uma voz de poder com grandes inuên-
cias nas contribuições do patrimônio cultu-
ral brasileiro. O reconhecimento identitário
sofre uma grande inuência e um enorme
peso da fonte que transmite a informação
e congura a atividade.
Para que nossa memória se benecie
da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso
também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que
haja sucientes pontos de contato en-
tre ela e as outras para que a lembran-
ça que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum.”
(HALBWACHS, 1990, p.12)
A citação de Halbwachs, que foi usa-
da por Pollack (1989, p.3) para situar a no-
ção e desenvolver os aspectos da memó-
ria, é um alerta para a construção de uma
memória “ocial” com partes de diferentes
pontos na formação do todo. O carnaval
carioca de Mário de Andrade está além de
uma poesia na informalidade de suas re-
cordações, é, sem sombra de dúvida, uma
narração (interpretada por ele) de uma ma-
nifestação constituída e ocializada pelo
povo, carregada de expressões de reco-
nhecimento, criativas e distintas dos bailes
em clubes e salões fechados. É uma crítica
aos olhos europeus que o brasileiro se dei-
xou dominar. Os modernistas se apropria-
ram da produção sem muitas regras, nos
espaços banais, que modelavam formas
alternativas e diferentes das propostas eu-
ropeias. O movimento moderno se debruça
nesses “fazeres mestiços”.
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A memória social é seletiva
(POLLACK, 1989) e organizada por vo-
zes hegemônicas que disputam as fon-
tes de representação da memória e a
construção da identidade e do patrimônio
cultural. Existe uma vasta produção de
discursos que buscam uma representa-
ção, mesmo que constituídas por grupos
minoritários com pouca força. Fica claro
que os espaços de produção desses dis-
cursos e das memórias é muito amplo e
por vezes não adentra os centros e ins-
tituições que promovem a escolha das
vozes e manifestações. O espaço, como
complementa Santos (2009, p. 61), é um
conjunto de xos e uxos. Desses, saem
novas propostas de interferência nos lu-
gares, de ações que modicam esses es-
paços, criando novos pontos de xos ou
estruturas de uxos.
O território como um todo se torna um
dado dessa harmonia forçada entre lu-
gares e agentes neles instalados, em
função de uma inteligência maior, situa-
da nos centros motores da informação.
A força desses núcleos vem de sua ca-
pacidade, maior ou menor, de receber
informações de toda natureza, tratá-
-las, classicando-as, valorizando-as e
hierarquizando-as, antes de redistribuir
entre os mesmo pontos, a seu próprio
serviço (SANTOS, 2009, p. 231).
Milton Santos defende o cuidado
que devemos ter com as vozes produtoras
e os espaços por onde circulam. A práti-
ca da alteridade exercida por Mário de
Andrade nas festas de carnaval indica a
preocupação em (re)conhecer os espaços
que criam e emitem suas informações, in-
dependente das variações artísticas e/ou
culturais. Embora preocupado em esta-
belecer um contato, mesmo que pontual,
com os produtores e agitadores culturais,
foi necessário estipular um recorte e uma
seleção do que foi transmitido. O “enjoo”
do escritor reete a inuência erudita que
a música e a arte construíram em sua for-
mação. Percebido este sentimento por
ele, resolveu então exercer um olhar sem
“julgamentos” nos espaços de circulação
popular no público. O lugar do outro se
torna objeto de observação do poeta, so-
litário na multidão, à deriva da música, da
dança, dos cordões e do carnaval.
O pré-conceito assumido por Mário
em sua carta ao amigo Bandeira foi esti-
mulado pela vida na “Paulicéia”, os conta-
tos que articulava e os lugares que viveu,
como o Conservatório Dramático de -
sica de São Paulo, onde se formou e le-
cionou, é de fato inuenciador da maneira
com que Mário se porta ao conhecer e ter
o contato com a multidão, o banal. Está in-
serido às provocações da urbes (CARERI,
2012) e da condução das técnicas meto-
dológicas de análise do poeta.
A rua é o território e o palco do en-
contro entre dançarinos, cantores, pobres,
ricos, poetas e caixeiros, neste espaço
relacional (HARVEY, 1973) é onde se
potencializam as relações e se congura
um discurso das práticas culturais, naque-
le momento artístico. Ali está o negro, o
branco e o mestiço, tudo que o modernista
necessita para formar a “pureza” em defe-
sa de um imaginário consolidado do na-
cional. A mistura das raças e os segredos
do Brasil (HOLANDA, 2011).
Na carta a Manuel Bandeira -
rio – relata sua vivência paulista. A memó-
ria transcende as fronteiras (BERGSON,
2004) e estabelece uma relação de com-
parações do inconsciente entre o atual e
o passado. A cidade de São Paulo se tor-
na referência para qualquer tipo de novas
experiências, o ponto de partida de sua
observação é o espírito paulista, mesmo
curioso e aprendiz como arma. “Carna-
val.../Minha frieza de paulista,/ policia-
mentos interiores,/ temores da exceção”
(ANDRADE, 1972, p. 111). Diretamente,
Mário se desculpa pela “frieza” inicial e o
“julgamento” que fez.
176
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Um caso semelhante a este, que
auxilia nas questões aqui levantadas é
alusiva à temática da memória e da cons-
trução de uma identidade a partir de vo-
zes/voz das experiências e do inconscien-
te. Em Italo Calvino, notamos semelhante
ocasião:
- Resta uma cidade que você jamais mencio-
na; Veneza.
Marco sorriu.
- E de que cidade você imagina que eu esta-
va falando?
O imperador não se afetou.
- No entanto, você nunca citou o seu nome.
E Polo:
- Todas as vezes que descrevo uma cidade
digo algo a respeito de Veneza.
- Para distinguir as qualidades de outras
cidades, devo partir de uma primeira que
permanece implícita. No meu caso, trata-se
de Veneza.
(Italo Calvino)
Nas Cidades Invisíveis de Calvi-
no, Marco Polo, é responsável por contar
e descrever os inúmeros lugares de suas
viagens pelos caminhos nos arredores do
reino. Descreve, então, diferentes cidades
e variações de cenários por onde passa,
costumes, relevos, pessoas etc.. Dentre
essas inúmeras descrições acontece que
o imperador ca curioso por saber da ci-
dade de Polo, faz-se a propósito o diálogo
acima, quando Khan questiona a cidade
natal de Marco Polo. A resposta não pode-
ria ser melhor. Da mesma forma, as lem-
branças de Mário de Andrade remetem à
sua cidade natal, a Paulicéia Desvairada,
às experiências anteriores que servem de
bagagem e forma uma “pré-experiência”
diante do novo. São Paulo e Veneza estão
no imaginário dos dois viajantes, estão -
xadas, diga-se de passagem, contribuem
para qualquer objeto de experimentação,
pois passam a ser uma referência, e a
construção do imaginário passa, antes
mesmo de iniciar o processo, pelas recor-
dações e vínculos com a cidade natal.
Percebe-se a memória carrega-
da pelo corpo do deambulante, Mário de
Andrade, dialoga com seu espírito e suas
relações diretas com os espaços ocupa-
dos e a composição de memória. O es-
paço carrega e instiga a memória, e caso
o espaço seja diferente e/ou novo, ainda
assim a memória reviverá passagens que
são referências na construção da narrati-
va (BERGSON, 2004, p. 101). Da forma
ilustrada, comparamos com o caso do im-
perador Kublai Khan e o viajante Marco
Polo, que era responsável por descrever
as cidades ao imperador, uma espécie de
“cônsul” do império.
A deriva de Andrade é uma maneira
de se estabelecer no espaço, sem pressa,
entre a multidão, sozinho e acompanha-
do (“o poeta solitário”), perdido e deso-
rientado. A tradução de suas vivências é
construída através de uma narrativa rica
em detalhes, com sensibilidade do olhar
de poeta, de curioso e de aprendiz; Polo,
com um pouco de obrigação em manter
o imperador informado. A observação é o
resultado da curiosidade do ser uído que
escorre pelas manifestações produzidas
pelo povo, que não são vozes e práticas
ociais (décadas de 1920 e 1930) emer-
gentes de ruelas, praças, vielas e em sua
maioria em logradouros públicos. Enxer-
gamos nessas experiências aspectos inte-
ressantes para produzir questões através
da superposição de narrativas dentro de
um recorte do tempo/espaço, distendendo
as multiplicidades das ruas e observando
os exercícios de territorialização.
O inconsciente está presente na
obra de Mário, o desejo de car pela cidade
de São Paulo, que explodiu demograca-
mente, economicamente e também na po-
lítica. Nostalgia nas lembranças da cidade
de São Paulo, dos seus primeiros passos
na Rua Aurora, depois a adolescência na
Rua Lopes Chaves, o prédio dos Correios
tão importante em sua suas comunicações
com amigos, políticos, artistas e familiares.
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Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016
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Essa relação entre memória, corpo e
construção da identidade pode ser aponta-
da através dos registros de Mário de Andra-
de ao longo de sua vida, deixando claro um
interesse pela rua (GUERREIRO, 2011), pe-
las transformações da modernidade (FON-
SECA, 2012). Este registro é construído
através das “sensações táteis e sensações
auditivas” (BERGSON, 2004) e, percebe-
mos claramente, com o Poema Testamento
de Mário de Andrade, em Lira Paulistana.
O poema exprime as relações cor-
póreas emergidas dentro do território que
resultam em uma narrativa da cidade. Par-
te dessa discussão inclui analisar as rela-
ções construídas, e, as dinâmicas dessas
experiências. Inúmeros elementos inuem
e interferem nessas relações. É um exercí-
cio de inventário que construímos das rela-
ções com as cidades. Dos deslocamentos,
das disputas, dos embates, da memória,
da vigilância e dos (re)conhecimentos. Má-
rio anunciou a produção mítica e simbólica:
Quando eu morrer quero car,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
(Mário de Andrade)
O testamento, na ótica que pro-
pomos, deixa claro a corpograa (JAC-
QUES, 2008) em forma de poema, divi-
dindo a memória em cada parte do corpo,
para cada parte da cidade que auxiliou as
potências do imaginário da organização
espacial vista e vivida por Mário.
A cidade de São Paulo estende em
suas vias inúmeros rastros, de uma maioria
de corpos em movimento, em um trânsito
de especícas pausas. As distâncias se di-
latam, o uxo aumenta. O testamento apre-
sentado é um caso especíco, um exemplo
dos caminhos que as cidades percorrem
dentro dos corpos e as relações construí-
das a partir dos deslocamentos realizados
e das narrativas produzidas no trânsito da
cidade e da lógica percorrida.
A inclusão de uma experiência para
questionar e causar provocações da qua-
lidade crítica dos processos das políticas
culturais, nesse caso a relação de Mário de
Andrade com o carnaval, tendo em vista a
disposição do exercício da alteridade como
uma potência; no olhar, das percepções e,
por m, do sensível é um exercício neces-
sário para problematizar o pensamento so-
bre a relação entre cultura e política.
Essas superposições de tempo e
espaço aparecem de forma pertinente, pois
atingem períodos onde o debate político
cultural recebe outros elementos. Dessa
forma as passagens e paisagens se tornam
cruciais para averiguarmos a problemática
178
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ao redor das instituições culturais. As re-
lações que se estenderam estão além do
embate produzido na formulação de uma
política cultural, sendo assim, o exercício
da alteridade e da territorialização permitem
desvincular limites, barreiras e fronteiras.
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Recebido em 28/07/2016
Aprovado em 12/08/2016
I Lucas Garcia Nunes. Mestre em Cultura e Territoria-
lidades pela Universidade Federal Fluminense. Brasil.
Contato: lgarcia@id.uff.br
II O Departamento de Cultura da cidade de São Paulo
foi a primeira instituição da cultura no Brasil.
III Cidade da região serrana do Estado do Rio de Ja-
neiro.
IV Consiste em produzir um mapa através das rela-
ções corpóreas.