DOSSIÊ “LEITURAS DO MUNDO: FORMAS DE
EXPRESSÃO CRIATIVAS E COMUNICATIVAS
DOSSIER “WORLD’S LECTURES: FORMS OF
EXPRESSION CREATIVITY AND COMMUNICATION
Apresentação do Dossiê
Dossier’s presentation
MARISA MELLO e RÔSSI GONÇALVES, editoras
Rodas culturais, UPP, funk e milícias:
uma análise da cultura urbana carioca frente às
políticas de segurança e às organizações criminosas
Cultural Circles, UPP, Funk and Militia:
an analysis of Rio de Janeiro´s urban culture in relation to
security policies and criminal organizations
ROSSI GONÇALVES e GUILHERME SANTOS
O sarau como estratégia de resistência poética e
reexão sobre novos territórios culturais
Soiree as poetic resistance strategy and reection on
cultural new territories
IDEMBURGO FRAZÃO
Torcedores organizados: enigma como contrapeso
ao fantasma da razão esclarecida
Football supporters groups:
enigma as counterweight to the ghost of the enlightened reason
GUSTAVO COELHO
Cidade Maravilhosa:
O Rio de Janeiro representado pelas letras
Wonderful City: Rio de Janeiro represented by the letters
PRISCILLA OLIVEIRA XAVIER
Práticas de leitura na contemporaneidade:
experiências em bibliotecas na cidade do Rio de Janeiro
Reading practices in contemporaneity:
libraries’ experiences in the city of Rio de Janeiro
MARISA S. MELLO
Mudar de corpo em ode aos invisíveis
Changing body in ode to the invisible ones
ANA HUPE
Carnet de routes: following Blaise Cendrars in Brazil
Diário de bordo: seguindo Blaise Cendrars no Brasil
LUCA FORCUCCI
Veredas abertas da América Latina
ANTONIO ALBINO CANELAS RUBIM
Cultura: a dádiva da sociedade
Culture: the social’s gift
JÚLIO AURÉLIO VIANNA LOPES
O jornalista e o assessor de imprensa no cinema
noir através do lme A Embriaguez do Sucesso
The Journalist and the PR professional in Film Noir in
the movie Sweet Smell of Success
ALEX SAMPAIO PIRES e MICHELE NEGRINI
Seguindo a constituição da Joalheria
contemporânea
Following the constitution of the Contemporary Jewelery
ANA NEUZA BOTELHO VIDELA
Experimentos Audiovisuais entre Ramagens
Otonianas: uma leitura ecossistêmica
comunicacional sobre a representação da
Amazônia na arte de Otoni Mesquita
Creative ramications: An ecosystem reading on the
Amazon by Art Otoni Mesquita
ÍTALA CLAY DE OLIVEIRA FREITAS e RAFAEL DE FIGUEIREDO LOPES
Espetáculo “O²”:
aproximações entre a prática de aula e a criação artística
“O²” show:
approximation between class practice and artistic creation
LARA SEIDLER DE OLIVEIRA
Ano VII nº 12 - out/2016 a mar/2017
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
ARTIGOS
ENSAIO
ARTICLES
ESSAY
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano VII nº 12 - out/2016 a mar/2017
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Isabel Babo - Universidade Lusófona do Porto, Portugal
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano VII nº 12, (OUT/2016 a MAR/2017). – Niterói, RJ: [s. N.], 2016.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário / Summary
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ / DOSSIER’S PRESENTATION
DOSSIÊ: “Leituras do mundo: formas de expressão criativas e comunicativas”
DOSSIER: “World’s lectures: forms of expression creativity and communication”
MARISA MELLO e RÔSSI GONÇALVES, editoras 06
DOSSIÊ / DOSSIER 10
Rodas culturais, UPP, funk e milícias: uma análise da cultura urbana carioca
frente às políticas de segurança e às organizações criminosas
Cultural Circles, UPP, Funk and Militia: an analysis of Rio de Janeiro´s urban culture
in relation to security policies and criminal organizations
ROSSI GONÇALVES e GUILHERME SANTOS 11
O sarau como estratégia de resistência poética e reexão
sobre novos territórios culturais
Soiree as poetic resistance strategy and reection on cultural new territories
IDEMBURGO FRAZÃO 26
Torcedores organizados: enigma como contrapeso
ao fantasma da razão esclarecida
Football supporters groups: enigma as counterweight
to the ghost of the enlightened reason
GUSTAVO COELHO 35
Cidade Maravilhosa: O Rio de Janeiro representado pelas letras
Wonderful City: Rio de Janeiro represented by the letters
PRISCILLA OLIVEIRA XAVIER 57
Práticas de leitura na contemporaneidade:
experiências em bibliotecas na cidade do Rio de Janeiro
Reading practices in contemporaneity:
libraries’ experiences in the city of Rio de Janeiro
MARISA S. MELLO 71
Mudar de corpo em ode aos invisíveis
Changing body in ode to the invisible ones
ANA HUPE 89
Carnet de routes: following Blaise Cendrars in Brazil
Diário de bordo: seguindo Blaise Cendrars no Brasil
LUCA FORCUCCI 110
Espetáculo “O²”: aproximações entre a prática de aula e a criação artística
“O²” show: approximation between class practice and artistic creation
LARA SEIDLER DE OLIVEIRA 123
ARTIGOS / ARTICLES 140
Cultura: a dádiva da sociedade
Culture: the social’s gift
JÚLIO AURÉLIO VIANNA LOPES 141
O jornalista e o assessor de imprensa no cinema noir
através do lme A Embriaguez do Sucesso
The Journalist and the PR professional in Film Noir in the movie Sweet Smell of Success
ALEX SAMPAIO PIRES E MICHELE NEGRINI 158
Seguindo a constituição da Joalheria contemporânea
Following the constitution of the Contemporary Jewelery
ANA NEUZA BOTELHO VIDELA 180
Experimentos Audiovisuais entre Ramagens Otonianas: uma leitura ecossistêmica
comunicacional sobre a representação da Amazônia na arte de Otoni Mesquita
Creative ramications: An ecosystem reading on the Amazon by Art Otoni Mesquita
ÍTALA CLAY DE OLIVEIRA FREITAS e RAFAEL DE FIGUEIREDO LOPES 195
ENSAIO / ESSAY 216
Veredas abertas da América Latina
ANTONIO ALBINO CANELAS RUBIM 217
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apresentação do Dossiê
“Leituras do mundo:
formas de expressão criativas
e comunicativas”
7
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O dossiê Leituras do mundo:
formas de expressão criativas e
comunicativas propõe uma reflexão
acerca das diversas formas de leitu-
ra e compreensão de textos, sons e
imagens, considerando-se o texto em
suas possibilidades amplas de su-
porte, reconhecidas ou não pelo câ-
none, isto é, a diversidade de vozes
culturais a partir principalmente de
manifestações artísticas e culturais.
Novas formas de leitura criam outras
formas de cidadania. O conceito am-
pliado de leitura aqui empregado pro-
cura constituir olhares mais demo-
cráticos e generosos com as formas
simbólicas de dar sentido à existên-
cia dos grupos sociais.
Foram aceitos artigos que ana-
lisam produtos artísticos provenientes
de práticas literárias diversas, da mú-
sica, das artes cênicas e visuais, tais
como imagens, danças, performances,
pichação, grafite, relatos biográficos;
eventos ou processos de expressão
cultural, como saraus, rodas culturais;
e as que refletem sobre práticas de le-
tramento e leitura, em queas práticas,
linguagens e atores sociais se combi-
nam num paradigma digital.
Uma das maneiras de diversifi-
car as miradas foi através da diversi-
dade disciplinar aqui presente. Pode-
se verificar um olhar interdisciplinar
também em cada um dos textos, e
tambémno diálogo que se pode esta-
belecer entre eles, através dos concei-
tos de leitura de contextos; práticas e
experiências ativas e reflexivas, que
permeiam a todos.
Rôssi Alves, organizadora do
dossiê e professora do Programa de
Pós-Graduação em Cultura e Territo-
rialidades, e Guilherme Santos, mes-
trando do mesmo Programa, apresen-
tam os silenciamentos que as rodas
culturais e os bailes funk sofrem com
a constante repressão por parte de
policiais militares e milicianos. Não
bastasse a sempre difícil tarefa de
obtenção de documentos junto aos
órgãos públicos para que essas ma-
nifestações culturais se realizem, há
toda sorte de intervenções causadas
por agentes militares e paramilitares,
que, muitas vezes, caracterizam-se
pela violência física.
Do diversificado espaço de per-
formance nas ruas e praças, com as
rodas culturais, para os saraus, a cida-
de pode ser lida pelas vozes plurais de
poetas e MCs que criam lugares pou-
co prováveis para a arte. Assim, dialo-
gando com as rodas culturais, temos
Leituras do mundo: formas de expressão criativas e comunicativas
World’s lectures: forms of expression creativity and communication
Marisa Mello e Rossi Gonçalves
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
os saraus. Idemburgo Frazão, poeta,
músico e professor da UNIGRANRIO,
destaca a importância dos saraus e da
construção de lugares para a poesia,
nos últimos anos, por atores cerca-
dos ainda por alguma invisibilidade,
como Moduan Matus, importante mili-
tante cultural da Baixada Fluminense.
Atesta, então, as possibilidades que a
agência de artistas da periferia abre
para se pensar o campo da literatura
e das artes, bem como reflexões iden-
titárias locais.
Essa expressividade, podemos
senti-la em torcedores organizados:
enigma como contrapeso ao fantasma
da razão esclarecida.Gustavo Coelho,
professor da Escola de Educação da
UERJ, através da leitura etnográfica,
e de uma série de conceitos, das torci-
das organizadas de futebol, explora a
complexidade de símbolos que esses
grupos criam e dos quais se reapro-
priam. Experiências, saberes, relatos,
performances, vozes de vidas estig-
matizadas realçam o vigor do diaadia
de jovens de territórios populares; e
a capacidade de construção de uma
zona subjetiva que celebra o enigma,
essa “insolubilidade patente”, esse
“devir-ilimitado”.
Priscila Oliveira Xavier, douto-
randa do Instituto de Pesquisa e Pla-
nejamento Urbano e Regional da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro,
faz uma leitura histórica da cidade do
Rio de Janeiro e sua associação com
o termo Cidade Maravilhosa, a partir
das formas escritas de representar a
cidade. Especificamente pelo ofício
das letras, as cidades foram temati-
zadas à exaustão nos primeiros anos
da República. Nos textos, principal-
mente de jornais, as cidades deixam
de ser o cenário do que se conta e
passam a ser contadas, ganhando
feições, afetos e personalidade. E, no
fenômeno de conferir legibilidade e
distinção às cidades, o Rio de Janei-
ro passou a ser representado como
Cidade Maravilhosa.
O texto de Marisa S. Mello, pós-
doutoranda do Programa de Pós-Gra-
duação em Cultura e Territorialidades,
e uma das organizadoras do dossiê,
procura justamente apreender um
conceito ampliado de leitura a partir
das bibliotecas; especialmente foca-
do em duas, localizadas na região da
Central do Brasil, a Biblioteca Parque
Estadual e a Estação Leitura. Interes-
sa à autora identificar o público fre-
quentador das bibliotecas e o contexto
onde se inserem; os diversos usos da
biblioteca que fazem seus frequenta-
dores; bem como os diferentes modos
de leitura de mundo que se apresen-
tam na contemporaneidade a partir
desses espaços.
A pesquisa de Ana Hupe locali-
za-se na fronteira entre escrita e artes
visuais. Seus trabalhos apresentam-
se como formas experimentais de tex-
tos ou dispositivos de escrita e leitura.
Atravessam situações sociais ligadas
a práticas de descolonização, pós-
colonialismo e diferentes futurismos.
Sua tese de doutorado em linguagens
visuais, pela UFRJ, procura se aproxi-
mar das histórias dos livros e pessoas
para compreender nosso futuro-no-
presente. Utilizando o afrofuturismo,
Ana intenta desconstruir estereótipos
sobre o Brasil e a África como lugar
do precário, e apresenta uma propos-
ta de releitura descolonizada da histó-
ria a partir dos imigrantes e dos fluxos
migratórios, sobretudo mulheres ne-
gras, em geral alijadas da fala pública.
Luca Forcucci desenvolve pes-
quisa sobre propriedades do som,
do espaço e da memória. O campo
de possibilidades por onde explora a
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
experiência se expressa em criações
artísticas de arte sonora. O autor par-
te de um conceito de escuta expandi-
da sobre as inúmeras possibilidades
de ouvir o que o mundo nos ofere-
ce. Aqui, Luca apresenta seu projeto
Carnet de Routes (Diário de Viagem /
Road Book), que explora, em fotogra-
fias, vídeos, instalações e performan-
ces, paisagens sonoras e paisagens
da cidade mapeadas em viagens pelo
Brasil e nos textos de Blaise Cen-
drars. Usa os conceitos de acaso e a
viagem como metáfora de represen-
tação da experiência.
Lara Seidler, professora do De-
partamento de Arte Corporal da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro e
coordenadora do Projeto de Pesquisa
D.O.A. (Dança e Outras Artes), que
acontece no âmbito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro,apresenta
a metodologia usada no espetáculo
O², que busca integraro sensível e o
criativo.As potencialidades do corpo,
através da dança contemporânea, são
iluminadas a partir da vivência e da
recriação de algumas práticas, abor-
dagens e técnicas, principalmente a
prática do pilates, a respiração e a
meditação, a partir dos princípios da
educação somática (soma-corpo).
Os textos aqui apresentados
reforçam o dinamismo de expressões
culturais que nem sempre são com-
plexificadas. Fotografia, música ele-
trônica, sarau, roda cultural e bailes
funk, torcidas organizadas de futebol,
práticas de leitura ecorpo abrem cam-
pos múltiplos de leitura da cidade, dos
agentes culturais, da cultura, em seus
desdobramentos artísticos, sociais
epolíticos. Aproveitamos a ocasião
para agradecer aos colaboradores e
convidá-los a essas trocas/misturas/
críticas – leituras do mundo tão diver-
sas, porém com um sentido comum
em torno da transformação social.
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Dossiê
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Rodas Culturais, UPP, Funk e Milícias: uma análise da cultura urbana
carioca frente às políticas de segurança e às organizações criminosas
Ruedas Culturales, UPP, Funk y Milicias: un análisis de la cultura
urbana de Río de Janeiro frente a las políticas de seguridad y a las
organizaciones criminales
Cultural Circles, UPP, Funk and Militia: an analysis of Rio de Janeiro´s
urban culture in relation to security policies and criminal organizations
Rôssi Gonçalves
I
Guilherme Santos
II
Resumo:
Este trabalho visa reetir sobre a cultura urbana do Rio de Janeiro em
meio a disputas políticas e territoriais. A pesquisa tem por objetivo trazer
alguma contribuição para o campo das políticas públicas, valendo-se
das relações e conversações entre as rodas culturais (que se esforçam
para desenvolver pontos culturais nas áreas menos favorecidas, visando
ao desenvolvimento social) e os bailes funk (que são objurgados por
conta de diversos apontamentos de responsabilidade e julgados um
meio de disseminação da violência e exaltação ao tráco), a partir
das instalações de UPPs e milícias. Tais agentes do Estado impõem
uma série de regras e restrições para o desenvolvimento de eventos
culturais e os grupos milicianos alegam combater o narcotráco, porém
sobrevivem através de extorsões e outros modos ilegais. Ao analisar o
embate de interesses sociopolíticos de todos os lados, percebe-se que
chegar a um equilíbrio de forças é possível, mas não antes de passar
por um vasto campo de batalhas. E estas se dão no campo simbólico e,
mais duramente, nos territórios mais carentes de cultura.
Palavras chave:
UPP
Cultura Urbana
Repressão
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este trabajo tiene como objetivo reexionar acerca de la cultura urbana
de Río de Janeiro en medio de disputas políticas y territoriales. La
investigación tiene como objetivo aportar una contribución al campo de las
políticas públicas, aprovechando las relaciones y conversaciones entre
las Ruedas culturales (que se esfuerzan por desarrollar puntos culturales
en las zonas desfavorecidas, dirigida al desarrollo social) y los bailes
Funk (que son reprendidos en nombre de varias notas de responsabilidad
y juzgados como un medio de propagación de la violencia y el tráco
de exaltación) a partir de las instalaciones de UPP y milicias. Tales
agentes estatales imponen un conjunto de reglas y restricciones para el
desarrollo de eventos culturales y grupos de milicianos pretenden luchar
contra el tráco de drogas, pero sobreviviendo a través de la extorsión
y otras formas ilegales. Mediante el análisis del combate de intereses
socio-políticos de todos los lados, está claro que llegar a un equilibrio
de fuerzas es posible, pero no antes de atravesar un vasto campo de
batalla. Y las batallas se dan en el campo simbólico, y de forma más
cruel, en las zonas más pobres de cultura.
Abstract:
The major purpose of this article is to present a contribution to the eld
of public politics, using the relations and conversations between the
cultural activities (that endeavor to develop cultural points in the less-
favored areas, focused on social development) and the funk parties
(that are judged as encouraging and dissemination of violence and
drug trafcking), after UPP and militia groups were installed. This
agent of the State has imposed a series of rules and restrictions for
the development of cultural events, and the militia groups claim to
ght against the trafc, but are surviving through extortions and other
illegal ways. When examining the clash of political interests, we get
to the fact that achieving a balance between forces is possible, but
not before crossing a vast battleeld. And these battles happen at the
symbolic eld and, harshly, in territories that most need culture.
Palabras clave:
UPP
Cultura Urbana
Represión
Keywords:
UPP
Urban culture
Repression
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Rodas Culturais, UPP, Funk e Milícias:
uma análise da cultura urbana carioca
frente às políticas de segurança e às
organizações criminosas
Todo mundo sabe que o funk é da favela
todo mundo sabe que morro de amor por ela
todo mundo sabe o nosso funk é de raiz
vem da comunidade e se espalhou pelo país
(Bob Run, MC Galo, MC Junior e Leonardo)
Ocupações e retomadas
O ano de 2013 tem sido apontado
como aquele em que as pessoas redes-
cobriram as ruas, disputando-as para ns
variados, mas, sobretudo, para apossar-
-se de um espaço que, sendo público, vive
sob controle dos aparelhos de repressão.
As ruas ocupadas por moradores do Rio
de Janeiro que reivindicavam, entre tantas
outras lutas, a redução no preço das pas-
sagens, muito embora seja o registro mais
frequente na memória da cidade, quando
o assunto é o espaço público ocupado
pelo “povo”, não foi o instaurador de uma
modalidade em que o cidadão carioca se
apropria da cidade a sua maneira - festiva,
crítica, reivindicativa.
Alguns anos antes dessa forma
de apropriação do espaço público, co-
letivos de arte urbana (organizações
sem ns lucrativos, com trabalho de in-
tervenção urbana e propostas de ação
e denúncia social) organizavam-se para
ocupar praças e outros espaços ociosos
através de movimentos culturais plurais,
reinventando uma cidade, revelando os
impasses e possibilidades de um espaço
público democrático:
O direito à cidade, como comecei a
dizer, não é apenas um direto condi-
cional de acesso àquilo que já existe,
mas sim um direito ativo de fazer a
cidade diferente, de formá-la mais de
acordo com nossas necessidades co-
letivas (por assim dizer), denir uma
maneira alternativa de simplesmente
ser humano. Se nosso mundo urbano
foi imaginado e feito, então ele pode
ser re-imaginado e refeito. (HARVEY,
2013, p.33)
Os coletivos culturais apropriam-
-se, então, da cidade, no sentido de,
através das ações nas ruas, conquista-
rem o seu “próprio” (Certeau, 1994), isto
é, um lugar de poder, de organização,
previsão. Um espaço de sustentação
que a rua, em seus múltiplos aspectos,
ajuda a construir.
Através de uma modalidade artísti-
ca em que várias expressões encontram
um lugar para se manifestarem, as Rodas
Culturais ousam levar, para as ruas, artes
que ainda são pouco reconhecidas pelas
esferas de legitimação artística. Ousam
reinventar uma cidade.
Milton Santos (1996) aponta que a
cidade como espaço de construção está
buscando outras formas de entendimen-
to. E que estas têm partido de jovens,
artistas, ativistas; são grupos que estão
problematizando e buscando modos ou-
tros de entendimento, outras formas de
exercer a cidadania. Ignoradas por se-
tores de cultura e lazer, desprovidas de
aparelhos culturais e tendo seu lazer
quase que restrito a um circuito de ba-
res e esquinas de bate-papo, áreas do
subúrbio do Rio de Janeiro e de outros
municípios estimularam uma organização
cultural e social – a Roda Cultural - que
praticamente absorve todo o Rio de Ja-
neiro, inclusive indicando uma metodolo-
gia de ocupação para outros estados.
O termo ocupação está sendo usa-
do aqui com a acepção que o notabilizou
nos últimos anos: apossar-se, habitar de
14
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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forma anti-hierárquica, sem lideranças,
organizar-se de modo apartidário. Muito
utilizado pelos jovens que ocupam as ruas
é, também, o vocábulo revitalizar - levar
vida ao que se encontra abandonado. Tal
uso, no entanto, é um evidente confronto à
utilização que o poder público, em sua sa-
nha gentricadora, faz da palavra. Nesse
sentido, a roda cultural:
Trata-se de um grande encontro de
jovens, unidos pela ideia de ocupar
lugares públicos e levar diretamente
arte e cultura às pessoas de forma
horizontal e interativa, realizando as
Rodas Culturais, semanalmente, em
diversos bairros do Rio de Janeiro,
com a participação de poetas, músi-
cos, grateiros, artistas plásticos, for-
mando uma grande rede cultural (...)
(ALVES, 2013, p. 38)
Entretanto, se atualmente a cida-
de do Rio de Janeiro conta com cerca
de cento e vinte eventos de arte de rua,
o que é festejado por artistas, público e
produtores, a ocupação raramente é fá-
cil.
III
Apesar da lei do artista de rua de-
clarar que as festas na rua prescindem
de autorização dos órgãos públicos –
desde que gratuitas, com duração máxi-
ma de quatro horas, dispensem palco e
respeitem os decibéis denidos-, o que
há pela cidade é muita movimentação
cultural sendo cancelada, proibida por
lhe ser exigida uma série de documentos
desnecessários.
IV
E muitas vezes os organizadores
dos eventos são pressionados, porque,
não obstante a existência da lei do artista
de rua, o que justica a realização da festa
sem procedimentos burocráticos, há a lei
estadual de eventos que prevê, para fes-
tas de propósitos, tamanhos e estruturas
muito diferentes, a mesma regulação.
V
Há casos inúmeros assim, já apon-
tados em outros artigos. Porém, busca-
-se aqui falar do quanto essa ocupação
dos coletivos artísticos tem se abatido
por conta de uma outra “ocupação” dos
espaços da cidade, promovida pelo esta-
do, e que não conta com a participação
popular. É a retomada das favelas pela
UPP - Unidade de Polícia Pacicadora.
Essa política pública de segurança teve
início em 2008 e tornou mais evidentes
os sinais de fracasso em 2016 com a fa-
lência do Estado do Rio de Janeiro. Este
m simbólico do projeto de pacicação
das favelas do Estado tem, também,
como marco simbólico a demissão do
secretário estadual de Segurança do Rio
de Janeiro, José Mariano Beltrame, que
cou uma década à frente da secretaria
e foi o principal responsável pela implan-
tação das UPPs.
O projeto de pacicação conta, ain-
da, com 38 unidades no Estado do Rio de
Janeiro. Em centenas de favelas do Rio de
Janeiro, a UPP é imposta como um méto-
do de domínio do espaço público em que
o morador, raramente, é parte da constru-
ção de uma proposta de cidade.
Retomada é o termo utilizado
pela UPP para indicar a prática exerci-
da pela nova polícia nas favelas. Numa
consulta a alguns dicionários, depreen-
de-se que retomar significa: (re+tomar)
1- Tornar a tomar: Retomar o navio,
retomar o rumo, retomar de alguém al-
guma coisa. 2 - Reconquistar: Retomar
a praça. Retomou ao inimigo as trin-
cheiras. 3 Reaver, recobrar: Retomar
o prestígio.
VI
E mais: Recuperar; tomar
novamente; reaver aquilo que se havia
perdido. Reconquistar; recuperar o que
já se havia ocupado anteriormente: re-
tomou o território.
VII
A Unidade de Polícia Pacicadora
(UPP) é um programa de Segurança Pú-
blica estabelecido pela Secretaria de Se-
gurança do Rio de Janeiro cujo principal
objetivo é a retomada de comunidades
15
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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dominadas pelo tráco que aterroriza o
estado. Ao instalar uma UPP numa de-
terminada comunidade, assim tornando-
-a uma “comunidade pacicada” - jargão
utilizado pelos policiais para se referir à
retomada da comunidade -, a visão inicial
é aproximar o Estado e população. A pa-
cicação através do programa visa avan-
çar no desenvolvimento socioeconômico
da comunidade.
VIII
A proposta de reconquista foi for-
mulada pela Secretaria de Segurança
Pública, colocada em prática, com rela-
tivo “sucesso”, na comunidade do Morro
Santa Marta-Botafogo, em 2008. O traba-
lho nessa comunidade sempre foi enten-
dido, pela polícia e governantes, como o
mais bem-sucedido caso de pacicação
de favelas cariocas.
Em relevante artigo sobre a reto-
mada da categoria pacicação, Oliveira
(2014) observa que:
As razões para a escolha do ter-
mo “pacicação” para descrever as
ações atuais nas favelas de início não
cam claras. Talvez a intenção fosse
somente de, através da aplicação da
palavra, conferir às ações da Polícia
Militar e das Forças Armadas as mes-
mas qualidade cívica e intenção hu-
manitária atribuídas, nas autorrepre-
sentações do Brasil, às atividades de
Rondon e de seus sertanistas, trata-
dos como heróis e benfeitores. (OLI-
VEIRA, 2014, p. 5)
O termo, trazido pelos coloniza-
dores, até então, havia sido usado com
os índios. E muito à semelhança do mo-
vimento de pacificação dos índios, em
que estes eram considerados o “outro”
a ser reeducado, tem se dado a orien-
tação da atual política de segurança, a
UPP - uma gestão imposta às favelas e
a qual nem todos os moradores obede-
cem sem problematizar.
Sob a proposta de trabalhar com
policiais novatos na função, aliar repres-
são mais branda à transformação do po-
liciamento nas favelas com a UPP social
- programa coordenado pelo Instituto Pe-
reira Passos com objetivos seguintes:
Contribuir para a consolidação do
processo de pacicação e a promo-
ção da cidadania local nos territórios
pacicados; promover o desenvolvi-
mento urbano, social e econômico nos
territórios; efetivar a integração plena
dessas áreas ao conjunto da cidade.
(RIO+SOCIAL, 2016)
-, o que se vê é que essa determinação
não tem encontrado suporte. Motivada por
eventos como Copa do Mundo e Olimpía-
das, acirramento da violência, cidade pa-
ralisada por atentados a comércio e ôni-
bus, tomar militarmente as favelas foi a
“solução” encontrada pelo poder público.
Tal projeto, por cerca de uns três
anos, gerava dúvidas quanto a sua efe-
tiva funcionalidade. Debatia-se sobre
erros e acertos, condenava-se a gentri-
cação a que algumas comunidades fo-
ram submetidas, a substituição de uma
gestão ditatorial - a dos comerciantes de
drogas por outra semelhante, a dos po-
liciais. Porém, eram questões, normal-
mente suplantadas pela “ilusão” de paz,
pela quase ausência de tiros e guerras
nas favelas com UPP.
Moradores de comunidades mes-
mo reconhecendo que a UPP, sobretudo
a Social, não se realizava no cotidiano
das favelas como havia sido prevista,
mantinham certa esperança e algum
contentamento com a paz local.
IX
No site
da UPP, encontra-se uma informação
que aponta a complexidade dessa políti-
ca de segurança
X:
Mudanças - A retomada de territórios
antes dominados pelo tráfico repre-
16
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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sentou uma mudança de compor-
tamento dos moradores. Dados do
Disque-Denúncia mostram que hou-
ve uma brusca alteração no ranking
de preocupações dos moradores
dessas comunidades, de forma que
os denunciantes, em vez de se quei-
xarem da violência de traficantes, li-
gam para reclamar, por exemplo, do
lixo e do barulho.
Entretanto, passados nove anos
da instauração dessa política, mesmo a
comunidade-modelo entrou em crise. Tor-
turas, extorsões, abusos de autoridade,
intolerância, descompasso com os dese-
jos e necessidades das comunidades são
alguns dos problemas que marcam a rela-
ção das UPPs com as áreas pacicadas.
Os últimos dois anos, mais propriamente,
foram sintomáticos no desmoronamento
da política pública pacicadora. Se existia
alguma incerteza sobre este conjunto de
ações da secretaria de segurança, fatos
graves tornaram tal sentimento mais cla-
ro e intenso. E dentre vários segmentos
da vida cotidiana, revirados pela atuação
da UPP, a cultura é, de certo, uma das
maiores vitimadas.
O projeto de retomada prevê am-
plo domínio sobre a vida nas comunida-
des. Isso impacta, diretamente, no ir, vir
e fazer do morador. Sendo o morador
visto como conivente com as atividades
ilegais do comércio de drogas, o policial
se vê munido de um poder recuperador
sobre os habitantes das favelas. Ou seja,
não as atividades do tráco são des-
baratadas, mas a comunidade tem que
ser reeducada. Assim, o que hoje ocor-
re nessas comunidades é muito seme-
lhante ao processo a que índios foram
submetidos com a pacicação: perda da
autonomia, tutelação.
Desse modo, formas culturais em
desacordo com as legitimadas pelas ins-
tâncias hegemônicas e policiais cam im-
pedidas de ocorrerem. Dentre essas, o
funk, sob a sua forma mais abrangente e
pública, o baile, foi banido das comunida-
des pacicadas.
Bailes funk, rodas culturais e a militari-
zação da cidade
Movimento cultural que, no Rio de
Janeiro, nunca ocupou um lugar de sosse-
go, o funk já foi o movimento da garotada
do subúrbio e zona sul, esteve e, com cer-
ta frequência ainda aparece nas novelas
globais, nos programas de maiores audi-
ências, em casas noturnas badaladas, é
cultivado pela elite (em momentos espe-
ciais) e por segmentos sociais outros.
Porém é criminalizado por policiais,
moradores (sobretudo de áreas nobres),
mídia, entre tantos; já sofreu duas CPIs
XI
,
teve bailes proibidos em todo o município,
seu público é marginalizado e o movimen-
to cultural é, ainda hoje, um caso aos cui-
dados da Secretaria de Segurança.
Uma signicativa alteração nessa
situação de marginalidade que o movi-
mento vive deu-se com a criação do edital
do funk da Secretaria Estadual de Cultura-
RJ, em 2012. O edital, que já passou por
três edições - 2012, 2013, 2014 -, foi cria-
do para nanciar produtores de bailes de
favelas sobretudo pacicadas - e outros
produtos relacionados à cultura funk.
A publicação de um livro, lança-
mento de um cd, produção de uma ocina
de funk, entre outras formas semelhantes
de obras, não encontraram resistência por
parte da polícia. Mas o baile, sua mais fes-
tiva e característica expressão, enfrentou
diculdades para se realizar.
Recuando uns anos, encontra-se
um registro que muito provavelmente aju-
da a explicar a forma excludente como a
UPP se relaciona com o baile funk - a re-
17
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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solução 013. Essa resolução – revogada
em 2013- foi de autoria do ex-governador
do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Ca-
bral Filho, e do secretário de segurança
pública, José Mariano Beltrame. Foi as-
sinada em 2007 e proibia que eventos
culturais, esportivos e sociais fossem re-
alizados sem o consentimento das autori-
dades responsáveis pelo policiamento de
determinados locais. Ou seja, em favelas
ocupadas por UPP, o poder de autorizar
ou não qualquer manifestação cultural
cabia - e ainda é assim- à polícia paci-
cadora. Os maiores alvos sempre foram
os bailes funk, já que os mesmos, segun-
do a própria polícia, atraem violência e o
tráco de drogas:
Para realizar qualquer tipo de manifes-
tação cultural ou evento deve-se obe-
decer as exigências de acordo com
a quantidade de público, entre outros
quesitos. Existem legislações estadu-
ais e municipais que devem ser cum-
pridas para que o evento ocorra dentro
das normas de segurança que envol-
vem diversos órgãos de todas instân-
cias (...) Os eventos mais problemáti-
cos para a polícia são os bailes funk
sem autorização nanciados por tra-
cantes. Eles querem aumentar a ven-
de de entorpecentes com execução de
“músicas” de apologia às drogas e a
prostituição (...) (SELEMA, 2016)
Situação, no mínimo, bizarra, em
que uma Secretaria de Cultura apoia uma
expressão cultural, nanciando, com 20
mil, três edições de baile - caso do últi-
mo edital -, e a Secretaria de Seguran-
ça impede a execução do projeto. Dessa
forma, os produtores contemplados pelo
edital, mesmo de posse da verba, não
puderam, por longo tempo, sob censura
da UPP, realizar o baile.
A principal atividade, a mola do funk
é o baile. Em 2013 houve a neces-
sidade de reformulação do edital.
Porque os capitães de UPP dizem:
“Este produtor cultural não tem con-
dição, não tem dinheiro. Quem está
fazendo o baile é a boca (comércio
de drogas). Se eu liberar este baile,
vão dizer que tô compactuando, que
tem arrego...”. Isso tornou mais la-
tente a necessidade de o estado pa-
gar esta conta. O edital é mais um
recurso simbólico. A gente não pode
criminalizar um ator cultural porque
teve apoio nanceiro do comércio de
drogas. É preciso ressignifcar este
ator. E há uma série de medidas para
ressignicar o produtor cultural e o
edital é um passo. (GOMES, entre-
vista telefônica, 2015)
XII
Para que os bailes fossem realiza-
dos e, enm, o edital se executasse, foram
necessárias inúmeras reuniões, envolven-
do produtores de baile funk, agentes da
Secretaria de Cultura, de Segurança, mo-
radores e policiais da UPP local.
Alguns bailes aconteceram sob a
regulação da Secretaria de Segurança
– horário, tipo de música, dia, tudo de-
terminado pela UPP. E, após as edições
previstas pelo edital, não houve outros
bailes. Algumas das comunidades con-
templadas pela verba do edital estão
entre as que carregam histórico de con-
itos violentos promovidos pela UPP lo-
cal - como a comunidade da Chatuba - e
também de bailes famosos - como o do
Chapéu Mangueira, que voltou a acon-
tecer, vinte anos depois, e apenas sob a
tutela do edital.
A sinalização da repressão intensa
ao baile funk neste texto deve-se à neces-
sidade de reetir sobre a criminalização
de movimentos culturais jovens. Ainda
que produzidos em situações diferentes-,
já que o baile acontece em espaços fecha-
dos, não públicos, e as rodas culturais são
realizadas nas ruas e praças, e não em
clubes e outros espaços culturais de fave-
18
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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las pacicadas-, o cotejo dos movimentos
culturais é pertinente.
Funk e rep são movimentos cultu-
rais que partilham de muitas semelhan-
ças. E elas dizem respeito não apenas
à origem dos gêneros musicais, mas à
marginalização de que são vítimas. Re-
lacionados à juventude negra e favelada,
principalmente, os movimentos não têm
inserção favorável na mídia hegemônica,
nem na crítica cultural. Evidente que o rep
sofre a segregação de modo bem menos
intenso que o funk. De certa maneira, por
ter surgido sob a marca de música politi-
zada, ele se situa num lugar menos des-
confortável. Outras particularidades, de
certo, contribuem para tornar o rep um
gênero menos reprimido: é um dos ele-
mentos do movimento Hip Hop
XIII
, cristali-
zou-se a ideia de ser este gênero uma fer-
ramenta para a transformação social e a
tomada de consciência; só recentemente
as tendências na música rep se pluraliza-
ram, abordando sexo, drogas, baladas e
não tematizando só a questão social; por
não ter cado restrito aos guetos, já que é
um ritmo que rapidamente ocupou a zona
sul carioca. São algumas possibilidades a
justicar por que sobre esse gênero recai
menor perseguição.
Diferentemente, e ao contrário do
que se suporia, as Rodas Culturais, em
locais pacicados/miliciados, ocorrem
sem tantas importunações. Para reetir
sobre esse fato, este trabalho focará três
rodas culturais em áreas militarizadas.
São elas: Roda Cultural do Terreirão,
Roda Cultural de Manguinhos e Roda
Cultural de Olaria.
Roda Cultural do Terreirão
A Roda Cultural do Terreirão ca na
zona oeste da cidade do Rio de Janeiro,
na comunidade do Terreirão, Recreio - fa-
vela não pacicada, mas sob controle da
milícia – grupo paramilitar, com histórias
de truculência e abusos excessivos, talvez
até maiores que os da UPP – formada por
ex e atuais policiais, bombeiros, militares-,
que atua, sobretudo na zona oeste e age
de modo muito semelhante à UPP, no que
tange à restrição das liberdades individu-
ais nas comunidades!
Grupos de extermínio que ofereciam
proteção e investiam nos negócios
imobiliários já existiam desde os anos
1970 em algumas favelas da zona
oeste da cidade do Rio de Janeiro,
como em Rio das Pedras, povoada por
migrantes nordestinos que se organi-
zaram para impedir a entrada de tra-
cantes, mas acabaram reféns dos que
ofereceram segurança privada desde
o início. A outra novidade é a presença
maior, com dimensão só agora conhe-
cida, de policiais e bombeiros nessas
milícias. O que as difere dos grupos
de extermínio é, sobretudo o controle
exercido sobre o território e o envolvi-
mento com atividades comerciais que
extrapolam a venda do serviço de se-
gurança, tais como a cobrança de taxa
indevida das cooperativas de trans-
porte alternativo, a venda inacionada
de botijão de gás, a venda do gatonet
(sinal pirata de TV a cabo), a cobrança
de pedágios e de tarifa para proteção.
(ZALUAR, 2008, p 91)
Julio Cesar da Costa, o organiza-
dor da roda e também presidente da ONG
Onda Carioca, disse, em entrevista há
dois anos, que nunca havia sofrido inti-
midação por parte da milícia. Creditava o
relacionamento cordial ao reconhecimen-
to que o trabalho da ONG tem no local.
Como a ONG desenvolve projetos com os
moradores da comunidade do Terreirão,
essa era uma possibilidade de entender a
tranquila convivência:
Por enquanto a milícia não se manifes-
tou sobre a roda. Temos conhecimen-
19
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to que já estiveram na roda e, inclusi-
ve, essa semana nos procuraram na
praça para perguntar se estava tudo
bem e tal, se havia morador de rua e
se colocando à disposição para ajudar
na segurança do local. Foi uma abor-
dagem ainda sem constrangimentos.
(COSTA, entrevista por email, 2015)
Essa roda, em território de milícia,
em seus dois anos de existência, não apre-
sentava relato de violência. Ao contrário,
havia uma certa perplexidade pelas cons-
tantes edições sem repressão-da PM e de
grupos paramilitares. Os impasses que o
organizador encontrava eram, sobretudo,
da ordem da burocracia do município.
Entretanto, em janeiro do ano em
curso, o organizador foi intimado por mi-
licianos a desligar o som e a dissolver a
roda. Mais grave: houve intimidação ao
público com relação ao uso de drogas e
agressão física a três rapazes que es-
tavam portando cigarros de maconha.
Essa investida gerou pânico e grande
receio de a roda ser silenciada, não po-
dendo mais se realizar, e de haver mais
atos brutais - embora assustadora e
inaceitável, a ação da milícia não teve
desdobramentos e a edição de fevereiro
ocorreu sem problemas.
Organização do evento e públi-
co não enfrentaram a milícia; não houve
resistência, ao contrário do que ocorreu,
quando a PM interveio na realização da
roda, um ano antes. Resiste-se à PM, po-
rém, a milicianos, não. Ainda que infrutífe-
ras, as denúncias contra os excessos da
polícia podem ser feitas. A ação de milicia-
nos é absoluta.
Para além do delicado relaciona-
mento com as forças repressoras da cida-
de, a roda cultural do Terreirão se distingue
de muitas outras pelo apelo que tem junto
à comunidade, escassa de lazer e equi-
pamentos culturais. A roda, por ter apoio
de infraestrutura da ONG Onda Carioca
é, provavelmente, a mais bem estruturada
da cidade. Embora frequentada por MCs e
público de outras regiões, a comunidade
está em local de difícil acesso e a maior
frequência é de moradores da área.
Essa roda tem uma gramática que
difere das demais, muito possivelmen-
te por ser uma “roda de comunidade”.
Percebe-se o enorme envolvimento en-
tre os moradores e as atividades - dança,
grate, batalha de rima... À exceção da
batalha de rima, em que há participação
de MCs de bairros diversos, as demais
atrações são plenamente protagonizadas
pelos moradores do local.
Há ali uma forma singular de apro-
priação do espaço. Se a fronteira públi-
co/artista já é borrada nas rodas cultu-
rais, no Terreirão esse esboroamento é
mais radical: os moradores que formam
o público da roda são os fomentadores
na maior parte do evento. Dançando,
brincando, ocupando o palco ou nas
batalhas de break, são eles os artistas.
São eles que conduzem o espetáculo.
E, de acordo com organizador, a adoção
da roda cultural pela comunidade ajuda
a explicar a rara interferência da milícia
local no projeto.
Isso, no entanto, não isenta a
Roda Cultural do Terreirão de problemas
em sua realização. Com dois anos de
existência, a roda funcionou sem alvará
por muito tempo. Baseada na lei do ar-
tista de rua, sem problemas com público
e recebendo esporadicamente a visita da
polícia – uma visita cortês até então-, só
muito recentemente o movimento foi im-
portunado pela PM.
Em abril de 2016, os organizadores
da Roda Cultural do Terreirão –– protoco-
laram, junto à Polícia Militar, o projeto de
sua iniciativa cultural, que ganhou grandes
proporções em seus mais de 12 meses na
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Praça do Futuro (Recreio dos Bandeiran-
tes), reunindo até cerca de 4 mil pessoas.
Na expectativa de que tal formali-
zação lhes asseguraria o exercício de sua
cidadania e que, a partir de então, a PM
acompanharia o evento oferecendo se-
gurança aos frequentadores, a organiza-
ção da roda foi surpreendida dias depois,
quando a própria Polícia Militar interrom-
peu o evento, exigindo o desligamento
dos equipamentos e solicitando com vee-
mência uma série de documentos.
Nesta primeira intervenção que a
roda sofreu, a indignação com tamanha
discrepância não fez o evento acabar:
a roda continuou, à capela, sob a ame-
aça da apreensão dos equipamentos e
do encaminhamento do organizador à
delegacia em caso da não obediência
às exigências. Descontente, mas não
desencorajado, o organizador mantém-
-se em constante contato com os órgãos
reguladores do espaço público, a m de
obter documentos e garantir a execução
do evento a salvo de interdições.
Roda Cultural de Manguinhos
A Roda Cultural de Manguinhos
ca no Complexo de Manguinhos, zona
norte do Rio de Janeiro, numa favela pa-
cicada há cerca de três anos, ao lado da
Cidade da Polícia. Essa roda acontecia
no campo de São Cristóvão, numa praça
bem cuidada, cercada por grades, em lo-
cal de grande circulação de pessoas. Há
cerca de quatro anos ela foi transferida
para o vizinho bairro de Manguinhos. E,
de acordo com o organizador, Sahel, o
deslocamento deu-se, sobretudo, porque
a região, além de ser uma área com raras
opções de lazer, tem potencial para atrair
público mais diverso.
As primeiras edições da roda em
seu novo local foram numa área contígua
à da Biblioteca Parque. Entretanto, logo
depois, com ns de melhor acomodação
e infraestrutura, a roda foi realocada. Des-
sa vez, no CRJ – Centro de Referência
da Juventude - vinculado à secretaria de
Esporte, Lazer e Juventude. Lá, segundo
Sahel, foi possível construir uma parceria
mais rme com os funcionários:
Vi o lugar aberto e entrei. Lá encontrei
grate e break, tinha a estrutura. Vi
que em Manguinhos, a roda teria u-
xo maior. O CRJ está apoiando, dan-
do todo suporte e as caixas de som.
Lá, nós temos uma sala para reunião,
para guardar equipamento. (SAHEL,
entrevista por telefone, 2016)
A comunidade de Manguinhos re-
cebeu a UPP em 2013. Área próxima ao
estádio do Maracanã, ela faz parte do “cin-
turão de segurança do Maracanã” – proje-
to de proteção para a Copa do Mundo e
Olimpíadas - e recebeu não só a polícia
pacicadora, como também a Cidade da
Polícia – espaço com o objetivo de abrigar
inúmeras delegacias e agilizar a troca de
informações e investigações.
XIV
Dessa forma, e pelas narrativas de
repressão aos bailes funk em áreas paci-
cadas, esperava-se que a roda cultural
sofresse forte intervenção da UPP local,
principalmente sendo o movimento hip
hop, com o qual a roda cultural tem es-
treita relação, tão afeito à contestação de
fundamentos morais impostos. O embate,
nesse caso, estaria dentro do previsível.
No entanto, é o próprio organizador
quem declara: “Uma vez, tive problema
com a UPP. Eles vieram ver o que era a
roda. Acharam estranho! Mostrei os docu-
mentos, disse que era uma ação para a
comunidade e eles foram embora.”
XV
Achar a roda um evento “estranho”
é comum e até compreensível, já que a
Roda Cultural é uma reunião de lingua-
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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gens artísticas que se dão ao mesmo
tempo, numa metodologia ainda pouco
comum na cidade – apesar de inúmeras
rodas terem surgido nos últimos anos.
Têm-se histórias de imensa diculdade de
se obter licença para o evento e de em-
bargamento do mesmo por conta de sua
morfologia incomum.
Outra situação de confronto, e que
não foi adiante, envolveu o mesmo organi-
zador, Sahel, com a UPP local:
Uma vez, estava guardando as caixas
de som no carro. A polícia mandou
parar. Eu estava com livros, som, mi-
crofones etc. Eu falei que não ia parar,
porque já tinha passado ali com peso
– duas caixas de mais ou menos 90
quilos. Eu disse que não ia admitir que
ele me revistassem, que se eles qui-
sessem me revistar, deveria ter sido
cedo, quando eu estava com peso,
carregando as caixas e ninguém aju-
dou. E não fui revistado. Fui embo-
ra. Isso foi na entrada do Mandela (o
outro lado da favela de Manguinhos.
(SAHEL, entrevista por telefone, 2015)
Os inúmeros casos de rodas cul-
turais reprimidas pela polícia na cidade
assinalam a evidência de um conito
latente entre polícia militar e manifesta-
ções culturais jovens, em local público.
Contudo, no trato com a UPP, a situação
é singular. A Roda Cultural de Vila Isa-
bel, que durante anos realizou-se numa
movimentada praça do bairro, há cer-
ca de dois anos foi noticada pela sub-
prefeitura da Tijuca de que não poderia
mais manter-se naquele lugar. Foi trans-
ferida, então, para o antigo Jardim Zoo-
lógico, situado também em Vila Isabel,
na subida do Morro dos Macacos - co-
munidade pacicada. Durante o tempo
em que ocorreu no jardim, nunca houve
intervenção dos organizadores e públi-
co pela UPP local. E, provocando uma
integração mais ampla no bairro, a roda
cultural viu crescer a frequência de mo-
radores da comunidade.
Roda Cultural de Olaria
A Roda Cultural de Olaria realiza-
-se numa praça central no bairro de Olaria
- ladeado por dois complexos de favelas:
Alemão e Vila Cruzeiro - subúrbio da ci-
dade carioca e, diferentemente das outras
duas rodas aqui problematizadas, não se
situa em favela. Entretanto, a análise des-
sa roda cultural e sua relação com a cida-
de justica-se, porque, ainda que fora das
comunidades e do alvo da polícia pacica-
dora e da milícia, a roda cultural de Olaria
é constantemente reprimida, tendo seus
organizadores já sido multados e sofrido
diversos constrangimentos por policiais:
Eles (polícia) querem dinheiro, en-
quanto qualquer roda acontecer e
não chegar nada até eles vai ser essa
guerra. Eles ganham dinheiro de todos
os estabelecimentos, todos os bares,
todos os eventos, menos das rodas
culturais. Para eles, somos um bando
de maconheiros, mas se pagar o ar-
rego ca tudo certo. Como aqui não
tem arrego, vai ser sempre essa luta.
(MASSAL, entrevista pela rede social
Facebook, 2016)
E a intransigência tem sido cons-
tante e irascível. Como a maioria das ro-
das culturais e outros eventos com público
pequeno – de 50 a 400 pessoas – a Roda
Cultural de Olaria não possuía licença
para ocupar a praça, até que um funcioná-
rio da região administrativa esteve no local
e multou a Roda Cultural:
Para início de conversa... Essa multa
é referente a Roda Cultural de Ola-
ria. Tudo começou quando deixaram
uma noticação na grade da quadra,
noticando o evento, deixando claro
que se acontecesse a Roda, recebe-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ríamos multa. Detalhe: a noticação
não foi entregue em mãos... Paramos
a Roda... E estamos no corre dos do-
cumentos. Mesmo assim chega essa
multa (...) Estamos lá fomentando cul-
tura estimulando a prática de espor-
tes, estamos lá formando caráter....
Fazer o povo se instruir. Trazer entre-
tenimento e lazer de graça, ocupando
o espaço público, é passível de multa
nesse país de merda... Apenas esta-
mos fazendo o trabalho deles sem
sequer cobrar algo em troca... Nunca
pedimos nada a nenhum político. Nun-
ca tivemos apoio de nenhuma parte
do poder... Acho que entendi porque
fomos multados: eles não querem
igualdade intelectual entre o povo e
o poder... Vou além ... Vamos correr
atrás e a Roda de Olaria vai voltar...
Eu prometo! Vamos fazer valer o de-
creto de lei do Sr. Prefeito que legitima
o CCRP. (NEURÓTICO, 2015)
Em seus quatro anos de ocupação,
essa roda cultural tem sido extremamente
penalizada. Não bastasse ter sido proibida
e multada, foi intenso o percurso para anu-
lar a multa - até o prefeito Eduardo Paes
foi acionado, quando esteve num evento
público na favela da Maré. Outras multas
foram aplicadas ao longo do ano de 2015
e só meses depois a roda teve seu fun-
cionamento normalizado: “Agora, apare-
ceu um policial dizendo que precisamos
da autorização do batalhão. Toda quinta,
eles estão indo lá, inventando denúncia.
Eles querem dinheiro! E se continuar, va-
mos denunciar. Mas isso pode ser ruim
pra gente.” (MASSAL, 2016)
Todavia, é um desao entender a
causa de tamanha perseguição ao even-
to, se a roda está amparada pela lei do
artista de rua, pelo decreto da prefeitura
- que reconhece as rodas culturais como
movimentos culturais da cidade - e o nada
a opor da Região administrativa
XVI
. E é um
dos organizadores quem tece considera-
ções bastante razoáveis para justicar a
intolerância da polícia e outras instâncias
públicas com a Roda Cultural de Olaria:
Estava estudando sobre Olaria e des-
cobri que era um bairro extremamente
militar e na época da ditadura quem
entrasse no batalhão não saía. Todos
tinham medo de vir pra cá. Ouvi isso
de um policial que era da PM na épo-
ca. E a galera que mora aqui, a maio-
ria é ex-PM. Então, não aceita a ocu-
pação da praça com som. (MASSAL,
entrevista por Facebook, 2016)
A Roda de Olaria também já fora
vigiada por P2 (grupo de inteligência da
PM), de acordo com um de seus integran-
tes, inclusive com ameaça de levar preso
um dos organizadores. A disputa não ape-
nas simbólica pelo território, na zona da
Leopoldina, expõe um dos aspectos mais
perversos da polícia militar e parece apon-
tar para uma longa e turbulenta luta pela
cultura de rua. E, como Harvey observa,
só munido de determinação e organização
que o cidadão terá a cidade que deseja:
O direito inalienável à cidade repousa
sobre a capacidade de forçar a aber-
tura de modo que o caldeirão da vida
urbana possa se tornar o lugar cata-
lítico de onde novas concepções e
congurações da vida urbana podem
ser pensadas e da qual novas e me-
nos danosas concepções de direitos
possam ser construídas. O direito à ci-
dade não é um presente. Ele tem que
ser tomado pelo movimento político.
(Harvey, 2013, p.34)
Como forma de denúncia e para
conquistar a simpatia e adesão de um pú-
blico mais extenso, a Roda de Olaria pro-
duz vídeos explicativos sobre a ocupação,
promove campanhas sociais, abaixo-assi-
nados
XVII
e incentiva o público do evento
a participar das reuniões no Batalhão da
Polícia Militar do bairro. Táticas para des-
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construir um imaginário negativo que se
tem sobre o rep e seus seguidores.
Considerações nais
A mais potente forma de organiza-
ção cultural e artística da cidade do Rio de
Janeiro, nos últimos anos, é a ocupação
das ruas por coletivos de arte e ativismo -
trabalho realizado pelos coletivos das Ro-
das Culturais, entre outros. O movimento
Funk é, muito provavelmente, a maior ex-
pressão carioca de jovens dos subúrbios.
Interessante, assim, vericar que é sobre
essas atividades juvenis que recaem as
mais absurdas arbitrariedades da polícia e
guarda municipal.
Em janeiro de 2016, blocos de
carnaval concentraram-se na Praça XV,
Centro do Rio de Janeiro, e saíram em
desle pelas ruas do Centro. Foram im-
pedidos violentamente, pela guarda mu-
nicipal, de fazer o pré-carnaval, o que
deu oportunidade de um debate maior
acerca da ocupação dos espaços públi-
cos na cidade. Essa mobilização em tor-
no das delimitações sobre o que pode,
quem pode e como se pode usar as
ruas como lugar de arte e cultura foi res-
ponsável por uma alteração no decreto
44617, que dispõe sobre a realização de
eventos culturais no Estado do Rio de
Janeiro. Poucos dias após o enfrenta-
mento entre foliões e guardas, o gover-
nador inseriu os blocos carnavalescos
entre as manifestações que dispensam
autorizações prévias.
Embora bastante ruidoso, o deba-
te gerado pela repressão aos blocos não
foi muito distinto daqueles a que artistas e
produtores de cultura de rua promovem.
Como explicar, então, que manifestações
como baile funk e rodas culturais não se-
jam ouvidas pelas instâncias de poder –
sobretudo com a mesma eciência com
que os blocos carnavalescos foram?
Uma chave para pensar essa
questão talvez esteja na gramática que
esses eventos apresentam e nos seus
atores. Jovens, adolescentes, normal-
mente moradores de comunidades ou
outros espaços desassistidos, orga-
nizando festas de culturas com longo
percurso de marginalização, em que há
reunião de centenas de pessoas, so-
bretudo adolescentes e jovens, estes
parecem formar um segmento que se
quer silenciado, invisível, desprivilegia-
do pelo poder público.
O carnaval, a rentável e maior
festa brasileira, dada a sua magnitude
tem grande poder de articulação e este
aspecto é denidor na negociação sobre
a realização de eventos. Os grupos so-
ciais e produtores culturais envolvidos
possuem meios mais insinuantes para
terem a pauta atendida. O próprio esta-
do têm interesse na melhor e maior or-
ganização da festa.
Entretanto, ao tratarmos de expres-
sões artísticas que ainda não constituem
receita ou outra forma de ganho para o es-
tado, casos do funk e das rodas culturais
(embora gerem empregos informais), a
campanha a ser executada é, infelizmen-
te, mais árdua e, na maioria das vezes, o
desfecho não é feliz.
Neste momento, com a troca de
prefeito e secretarias, um percentu-
al elevado de rodas está inativo, por
não possuir a licença solicitada. A re-
solução municipal que dispensava os
coletivos de buscarem documentos
em diversos órgãos, assinada pelo
antigo prefeito, não foi renovada, ain-
da. E os esforços de mobilização têm
sido intensos.
“Na pista, pela vitória, pelo triun-
fo. Conquista, se é pela glória, uso
meu trunfo! A rua é nóiz!” (Emicida
– Triunfo)
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Recebido em 09/03/2017
Aprovado em 18/03/2017
25
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Rossi Alves. Pós-doutorado em Estudos Culturais.
Professora do curso de Produção Cultural e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades,
Universidade Federal Fluminense. Brasil. Contato: ros-
sialves14@gmail.com
II Formado em Jornalismo. Mestrando no Programa de
Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades, Universi-
dade Federal Fluminense. Contato: guilhermemarcelino-
dossantos@gmail.com.
III Dados recolhidos pelas bolsistas de iniciação
científica (CNPq e FAPERJ) desta pesquisa e ex-
postos na página da rede social Facebook. Dispo-
nível em https://www.facebook.com/Arte-de-Rua-
-e-Resist%C3%AAncia-205085576508714/?fref=ts
Acesso em 01 jan. 2017.
IV Disponível em: http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Le-
gislativos/contlei.nsf/50ad008247b8f030032579ea0073
d588/67120c4c1ae54a6603257a14006d2b1d?OpenDo
cument. Acesso em: 03 abr. 2016.
V Disponível em: https://www.legisweb.com.br/
legislacao/?id=265890. Acesso em: 03 abr. 2016.
VI Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/mo-
derno/portugues/index.php?lingua=portugues-
-portugues&palavra=retomar. Acesso em: 15 abr. 2016.
VII Disponível em: http://www.dicio.com.br/retomar/
Acesso em: 15 abr. 2016
VIII Disponível em: http://www.upprj.com/ Acesso em:
15 mar. 2016
IX Moradores da comunidade do Morro dos Maca-
cos, Vila Isabel, pacificada em 2011, falam frequen-
temente sobre o terror que viviam quando havia in-
vasão de facções rivais, o que não acontece com a
comunidade pacificada.
X Disponível em: http://www.upprj.com/. Acesso em:
10 jan. 2017.
XI Disponível em: http://www.terra.com.br/reporterterra/
funk/dia3_not4.htm. Acesso em: 05 jan. 2016.
XII Ex-Coordenador de Cultura, Cidadania e Juventu-
de da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janei-
ro. E atual Coordenador de Políticas para Juventude
na Secretaria de Estado de Esporte, Lazer e Juventu-
de do Rio de Janeiro
XIII Hip hop é um gênero musical, criado nos Estados
Unidos durante a década de 1970, nas áreas centrais
de comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas
da cidade de Nova Iorque. Afrika Bambaataa, reconhe-
cido como o criador do movimento, estabeleceu quatro
pilares essenciais na cultura hip hop: o rep, o DJ, bre-
akdance e o grafti.
XIV Disponível em: http://www.policiacivil.rj.gov.br/exi-
bir.asp?id=17701. Acesso em: 10 fev. 2016
XV Entrevista telefônica realizada com Sahel em 5 de
abril de 2015.
XVI Decreto municipal 36201, de agosto de 2012.
XVII Sem o amparo necessário para a sequencia
das Rodas em Olaria, foi criada um abaixo assinado
para que o 16º Batalhão de Polícia Militar do Es-
tado do Rio de Janeiro conceda a documentação
necessária para o funcionamento regular da Roda.
https://secure.avaaz.org/po/petition/16o_Batalhao_
de_Policia_Militar_do_Estado_do_Rio_de_Janeiro_
Conceda_a_documentacao_necessaria_para_o_
funcionamento_regul/share/?new
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O sarau como estratégia de resistência poética e reexão sobre novos
territórios culturais
Los saraus
1
como estrategia de resistencia poética y reexión acerca
de nuevos territorios culturales
Saraus
2
as a strategy for poetic resistance and reection on new cultural
territories
Idemburgo Frazão
I
Resumo:
O presente trabalho intenta, em termos gerais, reetir sobre a
importância dos saraus na literatura brasileira, apontando para a
utilização dos mesmos como espaço de resistência cultural, social
e política. Mais especicamente, intenta-se tratar dos saraus em
territórios periféricos da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro,
partindo da menção à trajetória histórica dos saraus da COOPERIFA
(Cooperativa Cultural de Periferia). Dar-se-á ênfase à obra de Moduan
Matus, um importante militante cultural da Baixada Fluminense, que
inicia sua atuação poética na década de 1970, quando escrevia
seus poemas em muros e portas de lojas fechadas. Suas atividades
artísticas são realizadas, ainda hoje, em espaços diversos, que vão
dos quintais às praças públicas. O estudo da obra de Matus e da
importância dos saraus como forma de resistência cultural permitirá
que se traga à luz importantes reexões identitárias locais.
Palavras chave:
Lugar
Território
Marginalidades
Baixada Fluminense
Moduan Matus
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Resumen:
Este trabajo pretende, en general, reexionar sobre la importancia
de los saraus en la literatura brasileña, apuntando a su uso como un
espacio de resistencia cultural, social y política. Más especícamente
delos saraus en las zonas periféricas de la Baixada Fluminense en
Río de Janeiro, desde la mención de la trayectoria histórica de las
veladas de Cooperifa (Cooperativa Cultural de la Periferia).Daremos
énfasis a la obra de Moduan Matus, un importante activista cultural de
la Baixada Fluminense, que inicia su actuación poética en la década
de 1970, cuando escribía sus poemas en las paredes y puertas de
tiendas cerradas. Sus actividades artísticas se llevan a cabo hasta los
días de hoyen diversos sitios, que van desde los jardines hasta las
plazas públicas. El estudio de la obra de Matus y de la importancia de
los saraus como modo de resistencia cultural permitirá traer a la luz
importantes reexiones de identidad local.
Abstract:
This work aims, in general terms, to reect on the importance of the
saraus in Brazilian literature, pointing out their use as a space of cultural,
social and political resistance. More specically, the saraus in peripheral
territories of the Baixada Fluminense, in Rio de Janeiro, starting with
the historical trajectory of the sarau of COOPERIFA (Cooperativa
Cultural de Periferia). We will emphasize the work of Moduan Matus,
an important cultural activist from the Baixada Fluminense, who began
his poetic actuationin the 1970s, when he wrote his poems on walls and
front doors of closed street stores. Hisartistic activities are still carried
out in different venues, which may go from backyards to public squares.
The study of Matus’ work and the importance of the sarau as a form of
cultural resistance will bring to light important local identity reections.
Palabras clave:
Lugar
Territorio
Marginalidades
Baixada Fluminense
Moduan Matus
Keywords:
Place
Territory
Marginalities
Baixada Fluminense
Moduan Matus
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O sarau como estratégia de resistência
poética e reexão sobre novos
territórios culturais
A Reexões a partir das várias nu-
anças do termo marginal, na contempo-
raneidade, têm aberto um vasto caminho
(interdisciplinar) de discussões sobre o
surgimento e/ou ampliação de novos
territórios poético-culturais, no campo
da literatura e da cultura como um todo.
A marginalidade, como aqui se propõe,
relaciona-se às gurações de obras e
eventos que, de alguma maneira se des-
viam da tradição canônica. Entenden-
do poiesis como a capacidade criativa
inerente a qualquer linguagem artísti-
ca (cultural por excelência) – mais que
como mera instância do poético – o pre-
sente trabalho intenta trazer para a dis-
cussão o retorno recente de atividades
e eventos que, há décadas passadas
(caso queiramos, séculos) guravam
nos espaços de vivência, criação ou re-
cepção de artes: os saraus.
Presente no cotidiano dos aman-
tes da arte contemporânea, em várias de
suas possibilidades de manifestação e
classes sociais, os saraus, em princípio,
para as novas gerações, podem parecer
ser genuinamente pós-modernos, com
performances, dramatizações criativas,
com o apoio ou não da música (apon-
tando aqui para o exemplo do Rap (Ri-
thm and poetry). Mas, como se sabe, em
muitos momentos da cultura ocidental,
independente de suas denominações
e guardadas as diferenças temporais e
estéticas, os saraus atraíram a atenção
e tornaram-se ponto de encontro e pra-
zer de diversas gerações. Para dar um
exemplo histórico, pode-se remeter ao
período neoclássico da arte ocidental, à
participação do poeta Domingos Caldas
Barbosa, nos salões brasileiros e por-
tugueses. A importância de Barbosa na
literatura, até bem pouco tempo não era
destacada. Seu trabalho dava grande
ênfase à música e ao que hoje denomi-
namos cultura popular. Era nos saraus
que esse artista brasileiro brilhava. Mas
só caram para a posteridade poucos
relatos sobre suas performances. Nos
poucos comentários que passaram para
a história sobre as mesmas, guram a
rivalidade do poeta carioca com o co-
nhecido árcade português Manuel Maria
Barbosa du Bocage. O irreverente poe-
ta português ridicularizava as modinhas
que deram fama a Caldas Barbosa.
Caso tivesse sido possível, no pe-
ríodo neoclássico da literatura ocidental,
gravar o som e a imagem das participa-
ções de Barbosa, talvez se pudesse ter
antecipado os debates atuais sobre a
saudável e importante relação entre a li-
teratura e outras linguagens artísticas. A
oralidade é uma das marcas dos genuí-
nos saraus, já que a parte escrita se en-
volve nas performances e, muito se per-
de, quando não se registra em imagem
o evento em que ocorre o sarau. Mesmo
sendo um evento em si, o sarau é mais
que um encontro para recitações e per-
formances. Há inúmeras formas de sa-
raus – que vão das simples, com a apre-
sentaçãoem cômodos de uma casa, de
um apartamento; em um jardim, em uma
rua - aos grandes eventos, da Zona sul
do Rio de Janeiro, ou na periferia de São
Paulo. É também comum a organização
de saraus em escolas e por parte das
editoras para divulgar seus livros. Os ti-
pos de saraus que mais se ampliam, na
atualidade, são aqueles em que os parti-
cipantes criam um clima de festa e con-
fraternização. A marca do sarau é o en-
contro, a troca. Não se trata apenas de
ouvir, ler, cantar ou falar. Trata-se de inte-
ragir, de trocar ideias e informações.
Na atualidade, tem chamado bas-
tante a atenção, a utilização dos saraus
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como mecanismo de reexão e enfren-
tamento de problemas socioculturais,
políticos (e, mesmo, econômicos). Nas
últimas décadas do século XX e primei-
ras do terceiro milênio, os saraus, que já
existiam, ampliaram-se também nos es-
paços periféricos, tornando-se lugar de
vivência poético-reexiva. Partindo do
entendimento do termo “lugar” enquan-
to espaço identitário apropriado (nas
duas acepções dessa última palavra)
por determinado grupo, seguindo o pen-
samento do geógrafo sino-americano
Yi-fu Tuan, arma-se, aqui, neste texto,
que os chamados escritores marginais
(como se auto denominou o escritor Fer-
rez, no princípio de seu aparecimento
para o grande público, ou de periferia,
como preferem muitos). Atualmente se
apropriaram de maneira criativa, dos
velhos e históricos saraus. Então, o sa-
rau se tornou um lugar próprio para o
desenvolvimento das atividades cultu-
rais de muitas comunidades, assumindo
diversos desenhos e linguagens ditas
não-canônicas, sendo assim apropriado,
apossado pelos moradores da periferia.
O lugar, segundo Tuan (1983, p.
198), “é um mundo de signicado organi-
zado”. Só se familiariza com o lugar, ao
longo do tempo, nem sempre determina-
do. Contrapondo-se ao que Marc Augé
denomina não-lugar, o lugar tem uma re-
lação mais afetiva com o sujeito. Arma-
-se, então, aqui, no que diz respeito ao
retorno dos saraus, enquanto manifesta-
ções artístico-culturais, que os mesmos se
tornaram um lugar de vivência comunitária
da cultura, através das manifestações ar-
tísticas, que incluíam, além da literatura,
performances e atividades musicais.
Saraus de Periferia
Tendo como principal expoente
os autores Ferrez, Sérgio Vaz e Sacoli-
nha, como costuma armar a socióloga
e pesquisadora Érica Peçanha do Nas-
cimento(2009), o hoje conhecido movi-
mento da poesia marginal de periferia,
que se intitulou COOPERIFA (Cooperati-
va Cultural de Periferia) deu aos saraus
uma nova roupagem, dotando-o de uma
condição mais “bélica”, espaço de crítica
e enfrentamento do “status quo” . Além
da abertura para novas manifestações
poéticas, artísticas, os saraus tornaram-
-se ambientes propícios para a reexão
identitária, para a organização social dos
moradores da periferia, que têm-se aqui,
como exemplo, o caso da conhecida co-
munidade do Capão Redondo.
Torna-se importante, aqui, a remis-
são às discussões abertas pelo escritor
e pesquisador João César de Castro Ro-
cha (2006) sobre o que ele denominou,
em um de seus trabalhos no campo da
literatura, Dialética da marginalidade,
referente à maneira independente como
o grupo poético aqui citado se relaciona
com os meios de criação e difusão cul-
tural. Segundo João César, a dialética
da marginalidade surge no diálogo com
as reexões sobre a dialética da malan-
dragem, relativas à identidade brasileira,
mantidas por Antônio Cândido, ao longo
de décadas. Nas gurações da dialéti-
ca da malandragem, entende-se que há
uma relação entre o sujeito cultural (no
caso o malandro), com instâncias diver-
sas das classes sociais. O malandro é
aquele que “se dá bem”, por saber “se
virar”, “dar um jeitinho”, utilizando as ar-
timanhas, apreendidas e desenvolvidas
no convívio com a própria sociedade. Ou
seja, a malandragem consiste em sobre-
viver, e mesmo ascender socialmente, a
partir da camaradagem conseguida no
contato com diversos setores sociais.
A expressão Dialética da Malan-
dragem surge nos estudos de Cândido
sobre a obra Memória de um Sargento
de Milícias, de Manuel Antônio de Almei-
da, que tem como protagonista um anti-
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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-herói, cujas façanhas “pícaras, ao invés
de ridicularizá-lo, derrotá-lo, elevam seu
“status”. Um bom exemplo disso têm-se
no momento em que, no romance pica-
resco de Almeida, Leonardo Pataca Filho
é promovido, exatamente quando é pre-
so pela milícia (polícia) da época. Esse
pícaro, de acordo com Antônio Cândido,
seria o prenúncio do que, hoje, se en-
tende por “malandro brasileiro”, mas não
propriamente no sentido que recebe em
obras comoCidade de Deus, de Paulo
Lins, quando malandragem se relaciona
ao crime, à infração de leis. Polêmica, já
em suas básicas signicações, a palavra
malandro pode ser observada em suas
diversas acepções, que, nem sempre,
hoje, funcionam em termos negativos,
como é o caso das guras de artistas
como Cartola, Carlos Cachaça, Moreira
da Silva. Como se pode ver na conhe-
cida obra de Chico Buarque “Ópera do
Malandro”: “mas o malandro pra valer,
trabalha, mora lá longe, chacoalha, no
trem da central”.
Nas reexões de João César, que
foram expostas até aqui, subjaz a ideia
de que há um ponto dialogal entre a dia-
lética da malandragem e a dialética da
marginalidade, que está centrado nos as-
pectos identitários e culturais brasileiros.
E o ponto diferencial se encontra, segun-
do César, na independência forjada pe-
los atores sociais de periferia (escritores
marginais de periferia). Esses marginais,
que se diferenciam fundamentalmente
dos ditos poetas marginais da década de
1970, por não pertencerem à classe mé-
dia, também, como esses, criam e divul-
gam independentemente suas obras. Os
marginais enfrentam, com seus próprios
recursos e inventivas, o chamado sistema
literário (cultural), canônico, por excelên-
cia. Utilizam espaços alternativos, como
bares, campos de futebol, para desenvol-
ver seus trabalhos e não têm apoio, nem
mesmo de suas famílias, em termos eco-
nômicos, como acontecia com a geração
mimeógrafo, de 1970. Por isso, João Cé-
sar arma que, enquanto na dialética da
malandragem há, ainda, uma espécie de
subserviência às classes dominantes, na
dialética da marginalidade há um enfren-
tamento, que tem como estratégia uma
espécie de “guerra de relatos”. O margi-
nal de periferia não depende do apoio da
classe média, nem tão pouco da acade-
mia para existir (e sobreviver). Mas é pre-
ciso observar, aqui, após essa armativa
de que, nos últimos anos, como ocorreu
também, em décadas anteriores, com os
(antes independentes) poetas marginais
da década de 1970, suas obras têm sido
publicadas por editoras importantes, per-
tencentes ao mercado editorial estabe-
lecido e divulgadas pela mídia. Autores
como Ferrez têm sido convidados para
partir de eventos em vários países. Os
saraus, que eram marcantes na década
de 1970 – com participações de poetas e
escritores da classe média carioca, am-
pliaram seu âmbito de atuação, atingindo
também as periferias.
Como se sabe e se disse, há ins-
tantes, os saraus não são propriedade
apenas das periferias, ou da classe mé-
dia, o próprio exemplo dado, há pouco,
tendo o poeta árcade Caldas Barbosa
como principal personagem, ratica isso.
Inúmeros grupos, oriundos de diferentes
classe sociais, têm nos saraus um dos
seus eventos favoritos.
O presente trabalho intenta, mais
especicamente, tratar dos saraus em
um território que, embora distante da
comunidade paulista do Capão Redon-
do, tem com ela certa relação identitá-
ria, pelo fato de as discussões que aqui
ocorrerão se inserirem nas reexões
acerca das marginalidades. Utiliza-se,
aqui, a palavra destacada, no plural, pro-
positadamente, para dar ênfase à plura-
lidade que a mesma assumiu, na con-
temporaneidade e, principalmente, ao
estigma que marca o espaço central das
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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reexões fundamentais deste trabalho: a
Baixada Fluminense.
Em tempos não muito distantes (e
ainda atuais) a Baixada Fluminens era
tida como um dos locais mais perigosos
e violentos do Brasil. E sua produção cul-
tural pouco percebida ou apreciada. A mi-
gração nordestina para a região, dotando
o local de um novo desenho identitário,
tendo o cordel, a feira e as tradições cul-
turais nordestinas passando para o coti-
diano de grande faixa do território metro-
politano uminense.
A reflexão sobre os novos territó-
rios poéticos, ponto de partida do tex-
to aqui apresentado, acrescenta-se a
marcante questão identitária e o grande
desconhecimento por parte do grande
público das atividades culturais e das
produções poéticas baixadenses. A
lembrança dessa região é sempre mar-
cada, como já se adiantou, pela proble-
mática da violência, como se a isso se
resumisse o cotidiano da localidade.
Trata-se, em realidade de um espaço
rico em termos de manifestações cultu-
rais, marcado pelas afinidades psicoló-
gicas, sociais e culturais.
A gização e o gizador
Edgard Vieira Matos (nascido
em Nova Iguaçu-RJ, em 25 de julho de
1954), mais conhecido como Moduan
Matus, nome adotado em 1974, quando
começou a escrever poemas (alguns de
protesto contra a ditadura de 1964). Sua
primeira publicação ocorreu em 10 de
junho de 1979, na revista Equipe, núme-
ro 13. O reconhecimento poético veio a
partir de 1978, quando, devido ao pouco
espaço conseguido para a publicação
de seus poemas, passou a escrevê-los
a gis, nas portas das lojas (quando fe-
chadas), nos centros comerciais da Bai-
xada Fluminense, nos municípios do Rio
de Janeiro, Niterói e São Gonçalo (mas,
principalmente, em Nova Iguaçu). As
portas de aço com ranhaduras pintadas
com tinta fosca e escura, reetiam bem
os poemas, sucintos, escritos de forma
clara, para que os passantes pudessem
lê-los caminhando. A gização chegou a
virar um movimento de poetas. O gru-
po foi batizado com o nome de “caco de
Vidro”, na década de 1990. Daí desem-
bocando em outros movimentos poético-
-culturais. (MATUS, 2016)
Da poesia alternativa da década
de 1970 – no período da gização – aos
saraus em bares e em quintais e praças,
na atualidade, Moduan Matus se impõe
enquanto autor que não cedeu á sedução
das facilidades editoriais. Além de um
poeta de extrema, mais pouco divulgada
produção, é um pesquisador da cultura
baixadense e um ativista cultural. Dos
problemas sociais, às festas, aso saraus,
as poesias de Matus, além da inegável
qualidade artística e da reexão crítica
sobre o seu lugar, articulam discussões
bem atuais inerentes às identidades lite-
rárias contemporâneas.
A presença e a atuação de Modu-
an matus, na Baixada Fluminense, ten-
do como vertente importante de seu tra-
balho poético questões do local e uma
grande inclinação ao concretismo, apon-
tam para uma forte afetividade em rela-
ção a um espaço considerado periférico
em relação à cidade do Rio de janeiro. O
olhar que o eu lírico, nas poesias do au-
tor, lança sobre as cidades baixadenses
é fundamentalmente crítico. Entretanto,
há a percepção de que tais críticas têm
sentido construtivo. Tais críticas partem
de um vasto conhecimento, tanto das
mazelas, quanto dos pontos positivos da
Baixada, em especial, de Nova Iguaçu.
Assim, o espaço baixadense, onde o po-
eta vive, há anos, com sua família, seus
amigos, torna-se um lugar, no sentido
dado por Tuan. É desse (e nesse) es-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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paço que sua voz poética se irradia. A
identidade do poeta assume as cores da
realidade (e dos estigmas) de seu lugar.
O termo marginal, para muitos, forte de-
mais, ou errôneo, para reetir acerca da
obra de um poeta que participa, há dé-
cadas, também de alguns espaços, hoje
tornados canônicos, como o CEP 2000,
liderado por Ricardo de Carvalho Duarte,
o Chacal, dentre outros. A marginalida-
de, em Moduan, não se situa totalmen-
te em sentido sócio-econômico, como
ocorreu com o já citado poeta Ferrrez.
(NASCIMENTO, 2006)
Em realidade, a situação poéti-
ca do poeta iguaçuano dialoga com a
problemática da marginalidade, quando
se pensa na exclusão, ou na “oclusão”
do seu lugar de fala. Entra em ques-
tão, como se pode perceber, o próprio
olhar das elites, tanto sócio econômicas,
quanto culturais e (e mesmo de certo
setor acadêmico). Não se trata, efeti-
vamente, e uma marginalidade de base
econômica, mas em termos de dicul-
dade de acesso ao grande público, ou
de certa maneira, em certo sentido, de
auto-exclusão. Moduan Matus foi citado
por Heloisa Buarque de Holanda e Car-
los Messeder Pereira, por suas poesias
da década de 1970 (HOLANDA, 1982),
quando iniciou sua caminhada poética,
com sua peculiar gização, mas não teve
a divulgação ampliada, depois disso.
Moduan constrói, à sua maneira,
uma trajetória peculiar, como muitos ou-
tros da baixada, do presente e do passa-
do, lembrando em suas atitudes no cam-
po da cultura, de solando Trindade, poeta
defensor da cultura de matriz africana,
que viveu por algum tempo na Baixada, e
radicalizou-se. Denitivamente, em Umbu
das Artes, no Estado de São Paulo. Outro
autor fundamental para a baixada também
deve ser aqui mencionado: Francisco Bar-
boza Leite. Esse autor, contemporâneo
e amigo de Trindade, era um multi-artista
cearense, preocupado com questões cul-
turais da Baixada, autor do Hino do muni-
cípio de Duque de Caxias.
Marginalidades Identidades subalternas?
No que diz respeito à questão das
identidades – escritas, aqui, sempre,
propositadamente no plural – autores
como Zigmunt Bauman (2004) e Stuart
Hall (2014), em textos já bastante co-
nhecidos no meio acadêmico, afirmam,
cada um com suas peculiaridades refle-
xivas, que o pertencimento e a identi-
dade não são sólidos como se pensa-
va, ainda sobre a vigência dos Estados
Nacionais. As identidades e o pertenci-
mento são negociáveis. Ao se discutir
sobre as novas territorialidades em ter-
mos sócio-políticos, abre-se, também
para os estudos das ciências humanas,
novos e ricos caminhos especulativos,
no que diz respeito aos campos de atu-
ação das disciplinas acadêmicas, da
cultura e das linguagens artísticas. Ra-
tificando o que aqui se diz, o polonês
Bauman afirma que:
tornamo-nos conscientes de que o
‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não
têm a solidez de uma rocha, não são
garantidos para toda a vida, são bas-
tante negociáveis e revogáveis e de
que as decisões que o próprio indiví-
duo toma, os caminhos que percorre a
maneira como age - e a determinação
de se manter rme a tudo isso são
fatores cruciais, tanto para o ‘perten-
cimento’, quanto para a ‘identidade’.
(BAUMAN, 2004, p. 17)
Entretanto, pertencer, a um deter-
minado” lugar”, ou comunidade (no sen-
tido europeu), em locais centrais, como
a Polônia – ocaso de Bauman -, ou à Ja-
maica, caso de Stuart Hall -,diferencia-
-se bastante de pertencer a uma comu-
nidade no sentido brasileiro. Ou seja, o
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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pertencimento a uma comunidade como
o Capão Redondo, o complexo do Ale-
mão, ou à Baixada Fluminense, situa, ou
liga, de imediato, o sujeito identitário a
um estigma, a uma visão ou condição,
se não de excluído, de subalterno, no
sentido que lhe atribui Gayatri Spivak,
em seu “artigo-livro” Pode o subalterno
falar? (2014). Nesse pequeno e precioso
texto, a estudiosa indiana aponta para
as gurações de uma sociedade em que
a mulher ainda não conquistou – ou, não
se apropriou - efetivamente, de seu lugar
de fala. Embora não trate, efetivamente
da problemática das territorialidades tex-
tuais ou mesmo da exclusão social, em
sentido amplo, Gatyi permite, com suas
reexões, que se possa criar um diálogo
reexivo aproximando diversos “locus“ e
discurso, onde não há “potência de voz.”
É o que acontece com as chamadas mi-
norias – que na maioria das vezes se
constitui como maioria numérica. E esse
é o caso das mulheres, dos negros, dos
pobres e de tantos outros, no Brasil.
Moduan Matus impõe sua voz a
partir da visão crítica e de sua atuação
efetiva(e afetiva) na dinamização da arte
na Baixada Fluminense. A poesia des-
se ativo poeta é metamorfósica, em ter-
mos de temática e de estratégias textu-
ais. E há um veio identitário percorrendo
as inúmeras trilhas poéticas abertas por
sua arte e por suas atividades artísticas
como um todo, em meio a um olhar pre-
concebido das elites dominantes. Desde
o início de sua produção, a criatividade
está a serviço da ação, nos campos mui-
tas vezes minados, em vários sentidos,
das periferias. Desde as gurações, no
período complexo em termos de liber-
dade de expressão e criação da poesia
marginal, nos anos 1970, até os dias de
hoje, passando, como já foi mencionado,
pela ênfase na poesia concretista, Mo-
duan Matus participa e organiza eventos
artísticos. Aproximando a poesia das ar-
tes plásticas, da música, da gastronomia.
Bares, escolas. Universidades, praças,
quintais, continuam sendo seus espaços
mais frequentados, sempre que possível,
iluminando, tirando beleza da cultura bai-
xadense das sombras.
Conclusão
Em um momento em que a ace-
leração marca as atitudes cotidianas,
os saraus se revitalizam, ampliando seu
campo de atuação em lugares pouco es-
peráveis ou prováveis. Tais lugares ocu-
pam espaços culturais, mas, fundamen-
talmente, afetivos. Utilizados por atores
sociais de diversas classes, esses even-
tos, marcados pela apresentação oral de
obras artísticas, hoje são utilizados por
vários grupos como forma de resistência
e fortalecimento de identidades locais.
Abriram-se vários novos territórios poé-
ticos, exatamente a partir da utilização
dos saraus como forma criativa indepen-
dente. Daí a denominação marginal, que
alguns grupos utilizam para se autode-
nominar, tendo como exemplo mais co-
nhecido, COOPERIFA (Cooperativa de
autores da periferia). A marginalidade
aponta para formas de exclusão. Poetas
de locais como o Chapadão ou a Baixa-
da Fluminense buscaram a divulgação
de suas obras, mas terminam por ceder
ao mercado editorial. Autores como o
Iguaçuano Moduan Matus, embora tam-
bém se vinculem, em alguns momentos
de suas carreiras, a editoras, têm uma
inclinação marginal, por permanecerem
seguindo caminhos alternativos, não
canônicos, ou pouco canônicos (o que
inclui a internet). Mesmo não utilizando
a gização, como zera, nas décadas de
1970 e 1980, o poeta baixadense am-
plia suas participações em espaços al-
ternativos, o que não signica que tais
espações sejam pouco frequentados.
Ao contrário, há uma tradição poética
na Baixada Fluminense que é pouco co-
nhecida do grande público. Professores
34
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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e pesquisadores como o próprio Modu-
an, têm lutado pela preservação e pela
divulgação da cultura local.
Ao longo do desenvolvimento des-
te artigo, tentou-se a partir de reexões
sobre a importância dos saraus para a
cultura contemporânea e da obra do po-
eta Moduan Matus, trazer para a discus-
são questões inerentes a aspectos cultu-
rais que, de várias maneiras, desaam o
cânone literário e/ou cultural. Da gização
de Moduan, aos saraus dos quintais da
Baixada Fluminense, ou da COOPERI-
FA, da comunidade do Capão Redondo,
pôs-se em destaque, aqui, a utilização de
caminhos alternativos e não menos eca-
zes de desenvolvimento de trabalhos e
eventos culturais que dinamizam a cena
artístico-cultural brasileira.
Bibliograa
AUGÉ, Marc. Não lugares: uma introdução
a uma antropologia da super-modernidade.
Campinas: Papirus, 1994.
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da experiência. Londrina: Eduel, 2013.
Recebido em 08/03/2017
Aprovado em 15/03/2017
1 Reuniones com n literário y poético.
2 Poetic gatherings
I Idemburgo Frazão. Doutor em literatura comparada
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor
em Ciências Humanas e Letras na UNIGRANRIO, Bra-
sil. Contato: idfrazao@uol.com.br
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Torcedores organizados:
enigma como contrapeso ao fantasma da razão esclarecida
Barras Bravas:
enigma como contrapeso al fantasma de la razón esclarecida
Football supporters groups:
enigma as counterweight to the ghost of the enlightened reason
Gustavo Coelho
I
Resumo:
A partir de alguns relatos etnográcos conduzidos no seio de torcidas
organizadas de futebol, assim como através de imagens que compõem
seus cotidianos,materiaisem cruzamento teórico com autores como
Simmel, Gumbrecht, Mauss, Hubert, Clastres, Durand, Durkheim,
Maffesoli e alguma inuência na losoa de Nietzsche,este artigo
esmiúça esse universo, particularmente seus paroxismos intimamente
relacionados à temática do Mal. Desses cruzos entre empiria e teoria,
então, sugerimos que universos jovens e populares de nossas cidades,
mesmo sendo constantemente reduzidos sob a máquina do discurso
determinante e criminalizador, podem guardar em seus complexos
cotidianos, ricos reservatórios de formas de viver, de imagens, de
narrativas, de rituais, de experiências estéticas, de epifanias, que
operam como “tecnologias” encantadas na defesa e garantia cotidiana
da manutenção de uma zona subjetiva que celebra o indeterminado,
o enigma, em contrapeso ao fantasma do desencantamento pela
determinação racionalista, esclarecida.
Palavras chave:
Estudos da subjetividade
Antropologia
Juventude
Epistemologia
Imaginário
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
A partir de algunos relatos etnográcos conducidos en el seno de
barras bravas de fútbol, así como a través de imágenes que componen
sus cotidianos, materiales en cruzamiento teórico con autores como
Simmel, Gumbrecht, Mauss, Hubert, Clastres, Durand, Durkheim,
Maffesoli y alguna inuencia en la losofía de Nietzsche, este artículo
detalla este universo, particularmente sus paroxismos íntimamente
relacionados a la temática del Mal. De eses cruzamientos entre empírea
y teoría, entonces, proponemos que universos jóvenes y populares de
nuestras ciudades, incluso siendo constantemente reducidos bajo la
máquina del discurso determinante y criminalizador, pueden guardar
en sus complejos cotidianos ricos reservatorios de formas de vivir,
de imágenes, de narrativas, de rituales, de experiencias estéticas, de
epifanías, que operan como “tecnologías” encantadas en la defensa
y garantía cotidiana da manutención de una zona subjetiva que
celebra lo indeterminado, o enigma, en contrapeso al fantasma del
desencantamiento por la determinación racionalista, esclarecida.
Abstract:
From some ethnographic reports conducted within football supporters
groups, as well as through images from their everyday lives, materials
in theoretical intersection with authors as Simmel, Gumbrecht, Mauss,
Hubert, Clastres, Durand, Durkheim, Maffesoli and some inuence
on the philosophy of Nietzsche, this article explores this universe,
particularly its paroxysms closely related to the theme of Evil. From
these crosses between empiricism and theory, then, we suggest that
young and popular universes of our cities, despite being constantly
reduced under the determinant and criminalizing speech machine,
can save in their complex everyday lives, rich reservoirs of ways of
living, images, narratives, rituals, aesthetic experiences, epiphanies,
operating as enchanted “technologies” in defense and guarantee of
a subjective zone that celebrates the indeterminate, the enigma, in
counterweight to the ghost of disenchantment by the rationalist and
enlightened determination.
Palabras clave:
Estudios da subjetividad
Antropologia
Juventud
Epistemologia
Imaginario
Keywords:
Subjectivity
Antropology
Youth
Epistemology
Imaginary
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Torcedores organizados:
enigma como contrapeso ao fantasma
da razão esclarecida
Era jogo do Fluminense contra o Fri-
burguense pela primeira rodada do Cam-
peonato Carioca de 2012 no Estádio de
Moça Bonita em Bangu
II
. Dudu, da Torcida
Organizada Young Flu, que foi meu princi-
pal auxiliar na pesquisa, denitivo em es-
pecial para uma entrada bem feita no cam-
po, apresentou-me a um torcedor já antigo
da torcida que naquele momento expunha
para venda algumas camisas-pirata do Flu-
minense na praça em frente ao Estádio.
– Esse aqui, é o Xoxó, com ele você vai
ouvir muita história! – apresentou-me Dudu.
Ah se você quer ouvir história,
pega meu telefone que nessa torcida eu já
vivi tudo, tudo mesmo, você nem imagina.
Olha aqui – disse ele arregaçando uma
das mangas e exibindo seu ombro – essa
tatuagem aqui eu z na cadeia.
Era uma tatuagem com a inscrição
Young Flu, bem pequena, feita provavel-
mente com tinta de caneta mesmo, como
é comum em tatuagens feitas em presídio,
resultando em uma cor gasta meio esverde-
ada e em letras não alinhadas, o que corro-
bora a construção do imaginário do desgas-
te e da ruína como índices corporais, e que
carregam justamente em sua degradação,
os indicativos da experiência vivida. Um
imaginário que fora ainda rearmado pela
maneira como Dudu o apresentou, não por
acaso seguido prontamente da exibição da
tatuagem como cartão de visitas naquele
nosso primeiro contato. Ao exibi-la, ele ain-
da bateu três vezes uma de suas mãos com
relativa força sobre o ombro tatuado, o que
fazia vibrar não somente o ombro batido,
mas o arsenal memorial que aquele corpo
carregava. A isso, ele seguiu dizendo:
A Young Flu é a minha vida! Para
você ter uma ideia, eu coloquei Young Flu
nos nomes dos meus lhos.
– Sério? Como assim?
– É sério, posso te mostrar as identi-
dades deles, o mais novo é Marcos Young
Flu e a menina é Mariana Young Flu. Se
você quiser, me liga e a gente marca de
conversar, é muita história.
Diante do baixo conhecimento me-
morial que em boa parte dos casos temos
de nossos próprios nomes de família, cuja
ancestralidade, por mais que a carregue-
mos, muitas vezes segue desconhecida
durante toda nossa vida, esse senhor pa-
rece ter se dado conta de que o elemen-
to memorial que constitui com mais força
as bases de sentido de sua vida, ou ainda,
aquilo que melhor lhe põe em contato com
o mundo e que encheu seu reservatório de
histórias, é justamente sua longa e intensa
vivência na Young Flu. Sendo assim, ainda
que tal batismo de seus lhos soe, à primei-
ra vista, como loucura, ele possui o mesmo
sentido que qualquer outro sobrenome de
família, ou seja, exprime a comum vontade
de que uma matriz memorial não seja es-
quecida, abrindo caminho, portanto, à con-
tinuidade de determinada herança cultural,
de uma espécie de segredo passado pelo
nome aos seus descendentes.
Outro ponto que me chamou atenção
nessas nossas primeiras palavras, menos
anedótico do que este último, porém mais
signicativo ao que nos importa nesse arti-
go, foi o fato de ele ter prontamente revela-
do sem muita cerimônia, seu passado como
presidiário. Tal informação, parecia ter-me
sido passada como mero fato histórico, dito
aparentemente de maneira despretensiosa,
ao nal de um frase, descentralizada, deixan-
do em segundo plano aquilo que agora con-
sidero sua função primordial, atuante menos
conscientemente que inconscientemente.
Primeiramente, ter estado preso assume
nessa situação, uma função somente positi-
va, bem diferente da negativação comum às
38
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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durezas enfrentadas por quem carrega esse
passado na sociedade em geral. Cabe en-
tão a pergunta: do que se trata tal positivida-
de nesse cenário particular? Sugiro, para co-
meçarmos a reetir sobre isso, pensarmos
no aspecto ambivalente que a vida em pre-
sídio assume no imaginário social, em geral
mais ou menos compartilhado. Por um lado,
um lugar que representa o m da liberdade,
o encarceramento total e que, portanto, age
como fantasma ameaçador coletivo a m de
agirmos de tal maneira que possamos evitar
sermos levado a esse lugar. No entanto, por
outro lado, a própria dureza de seus muros,
o próprio rigor nas trancas de suas celas,
também aviva a curiosidade geral sobre o
seu cotidiano carregado de segredos, refor-
çados ainda pela também paradoxal sedu-
ção que nos causa essa comum sensação
de liberdade atrelada ao vitalismo de inten-
sidades e irresponsabilidades intimamente
relacionado ao imaginário da vida do crime
– fator amplamente utilizado nos romances,
policiais ou não, no teatro, no cinema e cla-
ro, fator também de alta fertilidade no seio
de diversas culturas jovens. É, no entanto,
o conceito de “enigma” que acredito seja o
mais determinante ao que desejo desenvol-
ver aqui. Anal, tanto a imagem da cela bem
trancada, serve à manutenção desse enig-
ma, como também a atração, própria de tal
sedução proibida, assume a mesma função
nessa proteção do enigma.
Georg Simmel (2010)
III
chegou a bre-
vemente desenvolver a função sociológica
que o segredo assume nos rituais, no coti-
diano, nos laços sociais, na mútua solidarie-
dade a m de produzir tanto os fatores de
coesão quanto os de exclusão no seio de so-
ciedades secretas, mas que talvez, de ma-
neira menos reforçada, estejam também em
funcionamento em todo tipo de agrupamen-
to, mesmo nos mais efêmeros. Como pre-
tendo complexicar o conceito desenvolvido
de maneira um tanto ligeira sob a alcunha
de “segredo” por Simmel, nele restrito a esse
papel sociológico estrutural, decidi pelo uso
de uma outra palavra que poderia até ser-
vir de sinônimo a “segredo”, mas que a meu
ver tem maior peso – “enigma”. Se “segredo”
transmite a ideia de algo conhecido por um
grupo de pessoas que pode, mediante algu-
mas manobras e intenções, revelá-lo ou não
a outras, podendo então constituir elemento
de posse, sendo também algo de conteú-
do denido, capaz de ser “esclarecido” com
uma simples vontade de seu proprietário, e
cujo acesso sanaria em denitivo uma curio-
sidade, o “enigma” pode supor uma insolu-
bilidade patente, que é bem o caso do con-
ceito que pretendo desenvolver neste artigo.
Em outras palavras, para somente introduzir
momentaneamente o que está em jogo, ser-
-lhe apresentado não leva a possuí-lo, já que
por natureza ele é incapturável, transborda e
resiste diante de qualquer tentativa de de-
nição; é mais um contato de comunhão que
de controle, mais adentrar numa vibração di-
nâmica impedindo qualquer xação do que a
oferta de um domínio, é lançar-se num “de-
vir-ilimitado” que opõe obstáculo a qualquer
possessão da vida.
Por ora, retomemos alguma empiria.
Os grupos de jovens que estudo acabam
compartilhando uma série de característi-
cas similares às das sociedades secretas, o
que ca evidente em suas frequentes sus-
peitas quanto ao meu trabalho, especial-
mente quando encontrava jovens ainda não
conhecidos em minha experiência de cam-
po. Eu não compunha ainda seu cotidiano,
não havia, então, estado ritualisticamente
nem próximo do seu enigma e, portanto,
havia sobre mim uma espécie de local de
fronteira, onde a gestão mais rigorosa des-
se enigma assumia um papel fundamental.
Por exemplo, em Paris
IV
, quando conver-
sava com um jovem torcedor de 27 anos,
negro e que também já estivera preso du-
rante dois anos, ao ser perguntado sobre
uma briga que havia acontecido algumas
semanas antes na Praça da Bastilha contra
torcedores do Zagreb, time da Croácia, ele
respondeu em tom de voz bem baixo, pare-
cendo preocupar-se com quem eu realmen-
te era e com quem, por azar, pudesse estar
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por perto: “Não, sobre isso eu não falo.” – o
que eu ouvi como sendo “sobre isso eu não
falo com você”, anal, diante da importância
do episódio, era óbvio que naquela semana
ele tinha sim falado sobre isso por diversas
vezes com seus companheiros.
Daí, portanto, que para esse tipo de
pesquisa, a qualidade está intimamente liga-
da à presença empírica por longa duração do
pesquisador nos locais de socialização, ao
chão do cotidiano, especialmente naqueles
onde a segurança de si poderá estar nota-
damente em risco, ou seja, onde a condição
de “estar junto”, ou “no bonde”
V
com eles,
opere uma suciente repressão da posição
destacada de “pesquisador”, possibilitando
algum nível de aglutinação, embora não to-
tal, para que justamente através dessa exi-
bilização da sua “posição”, possam passar
doses desse enigma. Talvez assim, pouco
a pouco, ao miúdo, de segredo em segredo
(e agora são mesmo segredos) como esse
que o parisiense recusou me contar, você
possa ir paulatinamente “sentindo” o enigma.
Em resumo, o “estar junto” tão recorrente na
obra de Maffesoli, aqui não é somente uma
expressão que sintetiza uma tendência de
nossa época de justaposições em oposição
à modernidade divisora, mas também uma
urgência metodológica. Somente a análise
esfriada e posicionada subjetivamente no
exterior, “acima” do vivido, de onde se “fala”
dele, que o “transcreve” sem se “inscrever”,
funcionando na lógica “sujeito e predicado”, e
de lá operando pela expressão de certezas,
cujo tipo por excelência é um jornalismo que
dicilmente permite expressar dúvidas sobre
o que acabara de ver pela primeira vez, não
dá mais conta. É justamente, então, quando
se pensa, dotado de uma qualidade moral
superior, ter acessado determinado enigma e
logo imediatamente, “ao vivo”, o “desvelado”,
dado a ele uma expressão nal, uma “infor-
mação”, aí está dada, então, a forma de seu
mais baixo nível de compreensão. É, portan-
to, a crença na transparência do “desvelado”,
o estado mais “vedado” da “velação”, para
usarmos termos heideggerianos (2010).
Como bem disse Simmel (2010, p.
388), “a sociedade secreta compensa ain-
da o momento de exclusão próprio de todo
segredo”. Um segredo, portanto, é elemento
que por um lado pode isolar aquele que o
conhece, mas que encontra na comunidade
sua compensação, lhe permitindo um pa-
radoxo fundamental, o de continuar sendo
segredo ao mesmo tempo em que é com-
partilhado por alguns, o que Simmel (2010,
p. 388-389) bem resumiu assim: “não é en-
tão contraditório que o segredo seja tanto
favorecido quanto destruído pela socializa-
ção”. Já o enigma, forma mais desenvolvida
do segredo, poderíamos dizer, justamente
pois, pela socialização conduzida na própria
continuidade da convivência, sendo reforça-
do por rituais de iniciação e de passagem,
passa a ser sentido não em seu conteúdo,
uma vez que não o possui em limites cogni-
tivamente discerníveis, o que o igualaria ao
destrutível segredo, mas, em sua forma, em
seu modo de inscrição, traz à frente da cena
o corpo, os humores, a experiência estética,
como locais por onde encontra boa condu-
tibilidade, necessitando para isso, portanto,
da ssura das barreiras do monopólio da
racionalidade cognitivo-instrumental (SAN-
TOS, 2011) concentrada no indivíduo, as
quais, se permanecessem bem ncadas,
emperrariam sua circulação. Assim, o enig-
ma garante sua indestrutibilidade, garante
sua insolubilidade, já que não possui valor
de dureza, não se estabelecendo em par-
te alguma mesmo estando por todo lado,
inclusive nos pequenos segredos aqui e ali
revelados. No entanto, para entender o que
quero dizer, faz-se necessário compreender
também a dimensão formal do segredo, o
qual contém sim um conteúdo que pode ser
contado, diferentemente do enigma, mas
tem sua importância não somente no reper-
tório desse contado possível, tendo-a tam-
bém e principalmente na gestão econômica
feita por aqueles que o possuem, em sua
gradativa e seletiva contação. No mesmo
sentido, Simmel (2010, p. 394) também dis-
se, “o pathos do segredo, que é sempre per-
ceptível e que se deve sempre preservar, dá
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ao laço formal ao qual ele está ligado, uma
importância superior àquela do conteúdo.”
Trata-se de um papel importante
que assume no fortalecimento dos elãs
sociais, nas narrativas que vão por esse
processo sendo aqui e ali compartilhadas,
assim compondo um manancial moven-
te de forte capacidade agregadora, já que
nesse universo, “ter histórias” é análogo a
“ter marcas”, a “ter vivências”, e portanto,
ser voz sempre convocada a mais uma
contação. Em outras palavras e tentando
apontar melhor a diferença entre segredo
e enigma, a expressão “essa tatuagem eu
z na cadeia”, seguida da armação de que
possui muita história para contar, quer nas
entrelinhas dizer “guardo comigo um vas-
to repertório de histórias secretas que é
preciso você ouvir para entrar em contato
com esse nosso mundo”, ou seja, ele es-
taria disponível a me ofertar alguns segre-
dos, certamente motivado por eu ter sido
apresentado a ele por um outro integrante,
também experiente e também fonte acu-
mulada de vasto repertório de histórias, o
Dudu, disponibilidade imediata que muito
provavelmente não aconteceria se eu o
abordasse como um absoluto desconheci-
do, determinantemente destacado de seu
cotidiano, ou seja, conduzido em minha to-
talidade pela racionalidade cognitivo-instru-
mental não implicada, fora “de todo rito”.
Continuando, então, no que há
nas entrelinhas desse encontro, “em todo
caso, a razão porque fazemos essas lou-
curas, não tem explicação”, e aqui sente-
-se o enigma, sempre aparecendo assim,
escondido numa negação, forma única
que pode “aparecer”, “devir-louco” para
usarmos expressão deleuziana (2011), li-
mite instransponível à estreiteza de nos-
sa linguagem viciada na instrumentação
de objetivos informativos e transparentes.
O segredo, portanto, arma-se numa ar-
mação, enquanto que o enigma só pode
armar-se negando, em função da ausên-
cia patente de conteúdo enunciável que o
caracterize, estando então em estado de
invisibilidade mesmo que sentido por todo
lado, inclusive nos segredos.
Tal característica formal do segredo
no jogo social lhe confere uma dimensão
muito mais ampla aproximando-o então do
enigma, já que não se trata, portanto, de
simplesmente descobrir alguma coisa que
lhe será nalmente mostrada, o que seria
conferir ao conteúdo uma superioridade.
O segredo, então, requer um cuidado, ou
seja, não pode acontecer sem que seu
conteúdo seja bem guardado e mostra-
do somente após longo e no esforço na
manutenção temporária de seu desconhe-
cimento, cuidado de cujo rigor depende a
magicidade do jogo “esconder x mostrar”,
denitivo à intensidade que se experimenta
no último momento. Perceber sua ação for-
mal, então, é dar atenção à sua dimensão
inconsciente, aos seus efeitos invisíveis,
ao enigma que esse manejo torna presen-
te sem que no entanto seja capturado. Em
outras palavras, trata-se de, aos poucos,
tanto pelos rituais mais bem formalizados,
quanto pelos quase imperceptíveis peque-
nos rituais do cotidiano, perceber tanto as
transformações corporais e psíquicas em
curso nos gestos, nas maneiras de dizer,
nos valores compartilhados, nas imagens
oferecidas, nos traços, em suma, em seus
impactos formais, esse mistério inapreen-
sível do enigma que tem no segredo ape-
nas uma de suas variantes e que nutre uma
espécie de intriga popular dissimulada, es-
corregadia, insubordinada no impedimento
da vitória da maquinaria normativa cogni-
tivo-instrumental empenhada na xação
das suas subjetividades. O enigma, então,
como arma negativa à opressão epistemo-
lógica colonizadora regida pela raciona-
lidade de tipo instrumental, como esque-
ma que embaralha e impede a instalação
plena de qualquer engenharia epistêmica
empenhada no interrompimento do dina-
mismo vital pela instalação de uma ordem
estabelecida imobilizadora, movimento de
resistência portanto. Voltando, então, a
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Simmel, nesse trecho ele parece aproxi-
mar o que chama de segredo, da noção de
“enigma” que aqui desenvolvo:
um fato sociológico primário, uma certa
maneira de estar junto, uma coloração,
uma qualidade formal das relações, que
determinam, numa ação recíproca dire-
tamente ou indiretamente com os outros,
os hábitos do membro do grupo ou do
próprio grupo. (SIMMEL, 2010, p. 393)
Penso que em diversos momentos
da etnograa base a este artigo, podemos
perceber a circulação desses segredos,
sentindo a riqueza do repertório desses
jovens. No entanto, como já dei a enten-
der, há uma diferença de qualidade relativa
à variação da intensidade de suas doses,
estando ao que me parece, o enigma mais
exposto pelo embaçamento promovido na
sublime sensação oferecida quando das
doses mais intensas. Com isso quero dizer
que há uma evidente injeção de vitalismo no
ambiente e nos corpos envolvidos, quando
frequentemente põem em cena o que há de
mais bizarro, escatológico, absurdo, bruto,
surreal, violento, tenso, arriscado, portanto
Mal, seja no momento mesmo que se vive
um episódio desse tipo, seja quando se
está compartilhando alguma memória vivi-
da. Em outros termos, ter acesso à história
é acessar um segredo, mas é no absurdo
surrealista que força a barra da inexplicabi-
lidade, que põe a carga no que transborda
a normatividade, deixando o fundamental
paradoxo acontecer, que então nos é ofe-
recido o enigma ofuscado por ele mesmo.
Para pensar um pouco o papel antropoló-
gico dessas intensidades e seus efeitos no
imaginário, vamos a algumas situações,
tanto vividas por mim durante a pesquisa
etnográca, quanto que me foram conta-
das por alguns dos praticantes.
Voltando de um jogo do Fluminen-
se contra a Ponte Preta em Campinas, já
era tarde da noite no meio da estrada, em
algum ponto próximo à divisa de São Pau-
lo com o Rio de Janeiro, Xoxó, o mesmo
da tatuagem, estava de pé no corredor do
ônibus recontando suas histórias.
Fig. 1: Torcedores na caravana da Young Flu
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– Meu irmão, hoje é lazer isso aqui
rapaz. Quem se lembra do Renê Paraíba?
E o William, porra, hoje é lazer a Young
cara. A gente ia para o jogo, chegava ma-
chucado e voltava machucado só de apa-
nhar dentro do ônibus, nem precisava ter
porrada com outra torcida. O “Passa Fome”
batia igual um caralho! O Carlinhos Cape-
ta da bateria, ele te batia de maceta! Renê
Paraíba te dava era chute! Ele te pres-
sionava... “Escala o time! Quem vai jogar
hoje?” Porra, lembra o “Pé na Cova”? Por-
ra... e o falecido, como se chamava mes-
mo?... E aqueles dois lá de Piedade... O
Donty e o Dentinho, vai tomar no cu, porra
maluco, caralho! “Escala o Time! Canta o
Hino! Que dia foi fundado o Fluminense?
Que dia foi fundada a Young? Quem é o
presidente da Young? Quem é o presiden-
te do Fluminense? Quem é o Massagista?”
Cruz credo – relatava Xoxó, lembrando os
interrogatórios de perguntas que serviam
e seguem servindo como uma espécie de
falso júri ritualístico para que uma resposta
mal dada sirva de licença a alguns golpes
fundamentais ao processo de iniciação. –
Hoje é “passeio tricolor”. Não tem um ba-
tom, não tem um ketchup, não tem mos-
tarda, não tem maionese, não tem papel
higiênico sujo, não tem mais nada disso.
Cara, era demais. “Vai dormir? Tá beleza
então, dorme aí, tranquilidade...” Era cruel
cara. Sofri pra caralho... Tomar no cu. –
Nesse momento, o ônibus deu uma nova
parada. – Porra, vai parar de novo? O que
está acontecendo, ô Barba? Porra, come
farinha cara! Minha avó mandava eu co-
mer farinha. Come farinha com maisena e
vinagre porra, está com caganeira e toda
hora a gente tem que parar!
Parece-me que há um recorrente
mecanismo, quase sempre em operação
quando se trata de recontar o passado de
uma cultura e compará-lo ao presente, que
é a tendência inconsciente de intensicar
as experiências passadas mais do que de
fato foram e enfraquecer as atuais mais do
que de fato são. Trata-se, a meu ver, de
um saber popular que age a m de resis-
tir a um tipo de apaziguamento natural de
todas as coisas, ou seja, que pela força
do absurdo, do exagero, busca lambuzar
o presente com aquilo que lhe dá dinamis-
mo, impedindo que o fantasma da morte
pelo enfraquecimento, pela inércia, dê m
à cultura. As doses exageradas com que
se relatam o que há de raiz é, portanto, o
que lhe serve de húmus, garantindo sua
perduração, o que se reete também nos
apelidos, índices dessas radicalidades de
raiz que são transferidos por meio desse
batismo extraocial (Passa Fome, Capeta,
Pé na Cova). O enigma é esse alimento,
e sinto ser inegável o papel do Mal como
ingrediente prioritário de tal receita que
mantém viva a memória pelo prazer da
dor, o que já fora bem indicado em dife-
rentes momentos pelo maldito Nietzsche,
como podemos ver nesse trecho:
Quando o homem julgava necessário
criar uma memória, isso era acom-
panhado sempre de sangue, de már-
tires, de sacrifícios; os mais espanto-
sos holocaustos e os compromissos
mais horríveis (como o sacrifício dos
primogênitos), as mutilações mais re-
pugnantes (como a castração), os ri-
tuais mais cruéis de todos os cultos
religiosos (porque todas as religiões
foram em última análise sistemas de
crueldade), tudo isso tem sua origem
naquele instinto que soube descobrir
na dor o auxílio mais poderoso da me-
mória. (NIETZSCHE, 2007, p. 59)
Seguindo com outros relatos con-
tados nessa mesma viagem pelo mesmo
Xoxó, percebemos bem a função similar
entre o que havia de violento no relato an-
terior e no que há de surrealista e escato-
lógico nos próximos.
– Escuta essa, essa virou lenda.
Nem me lembro mais em qual viagem foi,
mas o Samuel, o Capeta e o Passa Fome
desceram do ônibus em uma barraca na
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Dutra e roubaram um porco e um cabrito
da senhorinha lá! Cara, olha o absurdo,
agora você imagina um porco e um cabri-
to viajando com a gente em um ônibus já
podre de merda do banheiro!
– Outra lenda, pra fechar... Não
me lembro bem, mas acho que foi via-
jando para Campos. Na volta, paramos
para fazer um rango, aí já viu, todo mundo
roubando comida como sempre e aí me
chega a polícia rodoviária, revista todo
mundo e não encontra nada. De repente,
se escuta aquele grito seco junto com cho-
ro, adivinha... Tucano vem carregado pelo
colarinho, ele tinha roubado a estátua de
uma santa, mas não era qualquer estátua.
Era enorme! Era maior do que ele, e ele
ainda cou tentando escondê-la embaixo
da camisa! Puta que o pariu, geral mijou
nas calças de tanto rir... E detalhe, ele ar-
gumentou com o policial que era pra mãe,
uma senhora muito religiosa.
Há, portanto, no repugnante, uma
ambivalência que lhe confere um papel pre-
cioso na comunhão das gentes, justamente
pela sua capacidade de pôr em conuência
os contrários, de fazer emergir o que há de
comum no dicotômico. “Quanto pior, me-
lhor”, “há males que vem para o bem” diz a
sabedoria popular. E quanto a isso, a antro-
pologia está também plena de exemplos,
como esse relato de Pierre Clastres quanto
à jocosidade dos Yanomami.
Os jovens, em particular, adoram os
ditos jocosos: “Vem conosco até o
pomar. Vamos te enrabar!”. Em nos-
sa viagem aos Patanawateri, Hebewe
chama um garoto de uns doze anos:
“Se me deixares te enrabar, te dou
meu fuzil”. Todos ao redor dão garga-
lhadas. É um gracejo muito comum.
Os jovens são muito impiedosos com
os visitantes de sua idade. Por algum
pretexto, levam-nos até o pomar e ali
os dominam para desatar o cordão
que prende o pênis, suprema humilha-
ção. Brincadeira comum: você dorme
inocentemente na rede, quando uma
detonação o mergulha numa nuvem
nauseabunda. Um índio veio peidar a
dois ou três centímetros de seu ros-
to...” (CLASTRES, 2011, p. 43)
Sobre tal propriedade germinativa
e criadora do Mal, que precisa, como vi-
mos, ser tomada em doses vez ou outra
exageradas para garantir a perduração de
tudo, Jung também já tratou em seus es-
tudos sobre a libido, partindo em determi-
nado momento de uma análise do Fausto
de Goethe, como nesse trecho particular-
mente signicativo:
Novamente o diabo entrega a Fausto
o instrumento milagroso, assim como
no início, aproximando-se de Fausto
sob a forma do cão negro, responde
à pergunta deste ‘Mas quem és tu?’,
com as palavras:
Uma parte daquela força,
Que sempre quer o mal, e
sempre cria o bem. (GOETHE, apud
JUNG, 2011, p. 154)
Tal ambivalência que faz do Mal prin-
cípio propulsor de tudo, do melhor e do pior,
e que o torna, portanto, ingrediente funda-
mental ao que venho chamando de enigma,
traz em si, no sentido aqui proposto, todas
as características da junção, incluindo aí até
mesmo o seu contrário, o Bem, que nesse
jogo é diairético, age inversamente sempre
pela cisão, empenhando-se na retirada do
Mal de cena, trabalhando na lógica do es-
clarecimento ideal, contra-enigma portanto.
Percepção que encontra amparo nos es-
tudos de Gilbert Durand sobre os regimes
diurnos e noturnos do imaginário, no qual
o primeiro incluiria os símbolos carregados
do sentido da separação, do desgarrar-se
do mundo, da ascensão, da transcendên-
cia, do enquadramento binário, onde pode-
mos colocar para o nosso estudo, a pulsão
esclarecedora, o Bem do colonizador, en-
quanto o segundo, o noturno, incluiria as
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simbologias de religação, da ambivalência,
do mundo em sua complexidade, do des-
censo, da aceitação de nossa condição
mortal, ou seja, o Mal, o dinamismo, o enig-
ma subalterno. Nas palavras de Durand:
Pode-se mesmo dizer que todo o sen-
tido do Regime Diurno do imaginário
é pensamento “contra” as trevas, é
pensamento contra o semantismo das
trevas, da animalidade e da queda, ou
seja, contra Cronos, o tempo mortal.
[...] Todas as representações e todos
os atos são “encarados do ponto de
vista da antítese racional do sim ou do
não, do bem ou do mal, do útil e do
prejudicial...” (DURAND, 2002, p. 188)
E quanto à passagem ao regime noturno
do imaginário ele diz:
A representação não pode, sob pena
de alienação, permanecer constante-
mente com as armas prontas em esta-
do de vigilância. O próprio Platão sabe
que é necessário descer-se de novo
à caverna, tomar em consideração o
ato da nossa condição mortal e fazer,
tanto quanto pudermos, bom uso do
tempo. [...] Enm, a esquizofrênica tra-
tada por Séchehaye está no caminho
da cura quando ganha horror ao exclu-
sivo mundo da iluminação e se religa
a um ritual e a um simbolismo noturno.
(DURAND, 2002, p. 193)
Portanto, ascende, desliga-se,
separa-se, eleva-se, racionaliza-se, mas
conforme se avança nessa trajetória, que
geralmente crê-se linear rumo à negação
do mundo logo esclarecido, em algum
momento há a curva de retorno, e é o
Mal, o enigma, como elemento primor-
dial do que Durand chama de regime no-
turno, que assume nessa curva o papel
de ponto de convergência, uma espécie
de ímã terrestre, um sentido gurado da
gravidade, poderíamos dizer, já que não
à toa é sobre a simbólica da queda e da
descida que Durand vai se dedicar em
boa parte de seus estudos. Por m, esta-
mos mais em encruzilhadas que em vias
retas. Levando em conta, então, nosso
material empírico, tanto as memórias
contadas carregadas de exageros e sur-
realismos, assim como os momentos de
risco vividos, a tensão que já se supõe
a quem veste a camisa de uma torcida
organizada, as rezas que precedem a sa-
ída de suas caravanas e caminhadas, as-
sim como os momentos hipertroados de
quando estão em grandes aglomerações,
são performances em algum grau in-
conscientes que abrem caminho às sen-
sibilidades desse regime noturno, desse
religamento ao mundo, já que provocam
excitações comuns ao que de fato está
em jogo – doses do enigma na comunhão
com o corpo social, com o corpo coletivo,
com o todo, numa sociedade colonizada
pela lógica fragmentadora da ditadura do
esclarecimento racional cuja base de cál-
culos é o indivíduo autossuciente. Algo
que Jean-Marie Guyau (2008), ao tratar
da aceitação de nossa condição mortal
como elemento dos prazeres inerentes
ao risco, em texto de 1884, chamou de
experiência “sublime”, na acepção mais
ampla e rica do termo, indicando a ex-
periência de entrar em contato com algo
grandioso, majestoso, não apenas no co-
mum sentido de elevado, transcendente
ou de tudo o que fora expurgado das im-
purezas. Afastando-se dessa dicotomia,
o sentido dado por ele, aceita que há algo
de puro no impuro, que há algo de gran-
dioso no que nos antecede e, portanto,
há uma excitação “sublime” quando en-
tramos em contato com o que está para
além de nós mesmos, o enigma, eu diria,
e tudo isso, entendido também como par-
te integrante de uma “ordem” mais am-
pla, uma “ordem” cósmica que supõe o
caótico, o aspecto menos controlável do
sensível, ou seja, uma ordem que sabe
bem que logo chegará uma curva do Mal,
uma dose de enigma impedindo o apri-
sionamento do mundo em seu esclare-
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cimento bem calculado, liberando-se da
contenção da homogeneização e dispa-
rando um “devir-plural”.
O perigo encarado por si ou por outro
– destemor ou dedicação – não é uma
pura negação de si e da vida pessoal: é
essa vida mesma levada ao sublime. O
sublime, na moral como na estética, pa-
rece estar sempre em contradição com
a ordem, que constitui mais propria-
mente a beleza; mas isso não passa de
uma contradição supercial: o sublime
tem as mesmas raízes que o belo, e a
intensidade dos sentimentos que ele
supõe não exclui uma certa racionalida-
de interna. (GUYAU, 2008, p. 129)
VI
Ultrapassando, então, as dicoto-
mias, podemos chegar a dizer que está
em curso não o m da racionalidade, mas
a emergência de uma outra racionalidade
mais do interior, que resgata o sensível
como um de seus elementos, mesmo que
tenha justamente nessa sua característica,
uma predisposição a seguir como que clan-
destina à maior parte das consciências,
mas que segue atuante sob o cinismo da
consciência. Precisamente o que Maffesoli
relacionou a um “hiper-racionalismo”:
...faço referência a Jacob Boehme,
que dizia existir “um jogo alegre da
eterna geração” capaz de permitir a
manutenção de tudo que é / está. Se-
guir tal pista não é dar provas de ir-
racionalismo; é antes uma espécie
de “hiper-racionalismo” à moda de C.
Fourier, que integra à análise social
parâmetros até então dela comumente
excluídos. (1985, p. 35)
Poderíamos, então, seguir trazen-
do diversas outras memórias de situa-
ções paroxísticas como as contadas pelo
Xoxó, assim como episódios etnográcos
vividos por mim com esses dois últimos,
mas para o momento, esses relatos já
são sucientes ao que me proponho que
é perceber esse vitalismo irradiado tan-
to no risco vivido quanto na carga dada
aos absurdos nessas histórias contadas,
como indicativo das sensações corporais,
da epifania portanto, que experiências
que suspendam de nós mesmos o domí-
nio sobre nós mesmos, ao menos por um
tempo, ou seja, que lancem nosso corpo a
uma espécie de relaxamento do controle,
mergulhando-o numa espécie de espaço
análogo a um dinamismo inaugural, ori-
ginário, que ao mesmo tempo comporta
a imanência de nossa morte e de nosso
renascimento, é capaz de provocar. Ainda
que soe estranho, então, aos ouvidos da
humanidade esclarecida e todo o reino por
ela erguido, há uma espécie de imperativo
estrutural na humanidade que, em muitos
momentos, encontrou sociedades mais
hábeis em seu manejo melhor equilibrado
– a indissociabilidade entre prazer e per-
da de si, duas dimensões amalgamadas
das quais depende a epifania que funda
a experiência estética. Relaxado do auto-
controle, portanto, o corpo vê diluir-se os
cuidados que costuma tomar na sua pre-
servação, suspendendo assim o tempo
em sua concepção linear como parâmetro
condutor de uma rigorosa economia de si,
cujo gestor é a consciência. Nesse esta-
do, o tempo ca sobrepujado ao espaço,
restando ao corpo a platitude da presença
que, para ser sentida, tateada, apreendida
enquanto tal, alarga os poros de todos os
sentidos desse corpo, o qual, nessa condi-
ção, só pode sentir-se se atravessado, daí
o parentesco estreito entre a comunhão
e a dor, entre as iniciações de todo tipo
e o esgotamento corporal que elas susci-
tam, entre a morte e o renascimento – o
enigma. Nesse sentido, toda experiência
estética comporta uma violência, supõe,
para acontecer, um corpo desarmadura-
do, forte porque frágil e por isso bom con-
dutor de sensações. Tal sabedoria, adubo
primordial em tantas e tantas sociedades
e que lhes protegia de qualquer desnutri-
ção por falta de fascínio, no entanto, no
reino da humanidade esclarecida moder-
46
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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na, por excelência pequeno-burguesa, ou
melhor, usando palavras da molecada que
pesquiso, “mongoloides que nunca briga-
ram na vida”, encontra uma diculdade
tão dura quanto sua base epistemológi-
ca em render-lhe espaço. Nas palavras
de Nietzsche, quando em “O Nascimento
da Tragédia” fazia reverência à sabedoria
dionisíaca em contrapeso aos homens de
segura consciência:
Existem homens que, por falta de expe-
riência ou por estreiteza de espírito, se
afastam de semelhantes fenômenos,
como se afastam de “doenças conta-
giosas”, e na segura consciência de
sua própria saúde os ironiza ou os la-
mentam. Esses infelizes não suspeitam
da palidez cadavérica e do ar de es-
pectro de sua “saúde”, quando diante
deles passa rugindo a vida ardente dos
sonhadores dionisíacos. (2007a, p. 31)
Para desenvolvermos melhor, en-
tão, essa sabedoria sacrical frequente-
mente convocada quando uma socieda-
de, comunidade, grupo ou tribo precisam
remediar seus laços com a comunhão,
quando é preciso reatar o Corpo “Socie-
tal” (MAFFESOLI, 2011), será preciso ul-
trapassar as dimensões limitadas do indi-
víduo, essa que estamos acostumados a
usar como base de reexão. E para pen-
sar sobre isso, o campo dos estudos da
religiosidade parece-me muito profícuo.
Por exemplo, percebo em diversos mo-
mentos no estudo de Durkheim (1996)
sobre a vida religiosa, algumas reexões
que se aproximam desse conceito de for-
ça mais ou menos imperativa que intimi-
da a consciência a m de abrir caminho
à coesão de grupo, o que se formos ter
como parâmetro o sujeito autônomo lho
do iluminismo, será entendido exatamente
como no trecho abaixo, como uma sensa-
ção de “obrigação”, noção que só pode ser
utilizada se tratamos de um ser “de cons-
ciência”. Em todo caso, ao nal do trecho,
Durkheim mesmo aponta essa incapaci-
dade de atribuirmos à análise a categoria
da consciência, nalizando a reexão com
uma expressão interessante – uma força
“confusamente sentida”:
Portanto, se ele se comporta desta ou
daquela maneira, [...] não é somente
porque as forças que nele residem são
em princípio sicamente temíveis, é
porque ele se sente moralmente obri-
gado a comportar-se assim; tem o sen-
timento de que obedece a uma espécie
de imperativo, de que cumpre um de-
ver. [...] Todos os seres que comungam
do mesmo princípio [...] se consideram,
por isso, moralmente ligados uns aos
outros; têm deveres denidos de assis-
tência mútua, de vendeta, etc., [...] mas
não saberíamos dizer até que ponto ela
[a força] é expressamente consciente,
em que medida, ao contrário, não é
apenas implícita e confusamente sen-
tida. (1996, p. 192-193)
Sintetizando, a euforia das situa-
ções aqui contadas e de tantas outras des-
se cotidiano, assim como o interesse por
inscrever sensações de alta intensidade fí-
sica quando se conduz batizados, rituais de
iniciação e passagem, parece-me demons-
trar bem os efeitos extravagantes desse
contato mágico com a força do conjunto,
do qual o corpo não pode sair incólume,
e abandonando a questão propriamente
religiosa, podemos dizer que se trata por
m de uma resultante aparição sensível
do enigma, a materialização concreta, en-
quanto marca no sensível, do que é abs-
trato, talvez. É nesse sentido, também, que
entendo esse outro trecho de Durkheim:
...uma espécie de força anônima e im-
pessoal que se manifesta em cada um
desses seres, sem no entanto confun-
dir-se com nenhum deles. Nenhum a
possui inteiramente e todos dela parti-
cipam. Ela é independente dos sujeitos
particulares em que se encarna, tanto
assim que os precede como sobrevive
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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a eles. Os indivíduos morrem; as gera-
ções passam e são substituídas por ou-
tras; mas essa força permanece sem-
pre atual, viva e idêntica. (1996, p. 190)
Força que também interessa a Ma-
ffesoli e que ele, em certa ocasião, chamou
de “saber incorporado”, expressão que vai
nos auxiliar na proposição desse choque
epistemológico denitivo que, a meu ver,
esses jovens nos ofertam – aquele que re-
conhece e devolve ao corpo, sua condição
de órgão produtor de saberes, complexi-
cando assim a própria noção moderna de
“saberes”, uma vez que convoca as dimen-
sões do sensível, da presença, da sicali-
dade, à sua elaboração. Dimensões essas
que até então precisaram ser interditadas
desse processo, a m de que, desgarrada
dessa fonte de incapturas, dessa imanente
ginga nunca plenamente capturável que é
o corpo, a consciência pudesse triunfar e
abrir caminho ao reino da humanidade es-
clarecida. O maior impedimento da susten-
tação desse reinado, no entanto, estava no
seu próprio interior, ou melhor, em sua pró-
pria superfície que mesmo após severas
tentativas de separação, seguia ali dando
contornos físicos, atribuindo presença a
este “ser” que tentava transcender-se por
si mesmo, mantendo nele uma terrível gra-
vidade, um enigma que não se deixa es-
clarecer. E essas juventudes, em meio a
tantas outras potências contemporâneas,
são eloquentes em exibir desavergonha-
das as ssuras indicativas da saturação
desse projeto, em sentir-se bem ao nível
do chão. Nas palavras de Maffesoli, então:
Existe um “sensus naturae” que sabe,
de um saber incorporado, que existe
uma força natural responsável por to-
das as manifestações da vida. Força
multiforme, sob muitos aspectos inde-
nida, algo espontânea, e que escapa
às institucionalizações excessivamen-
te rígidas. E que está, igualmente,
além e aquém dos enrijecimentos con-
ceituais. (2007, p. 89)
É claro, no entanto, que tais apa-
rições de tal força enigma não se dão
a todo tempo de maneira exagerada,
como as que privilegiei aqui. Vale desta-
car, portanto, que mesmo nas manobras
mais sutis do dia, mesmo nos gestos
mais despretensiosos, ela também está
ali comportada, quieta porém operante.
Não me parece haver, então, nenhuma
ação, mínima que seja, uma piscada
de olhos que seja, conduzida absoluta-
mente, em sua totalidade, pelo indivíduo
encerrado em si mesmo. Porém, ain-
da assim, não se pode menosprezar a
constante antropológica segundo a qual
toda sociedade sempre abriu espaço a
alguns eventos extraordinários, justa-
mente a m de fazer emergir doses mais
vigorosas dessa fonte originária que ao
mesmo tempo está em todos e não se
pode ser apreendida por ninguém. Será
então para desenvolvermos melhor essa
recorrência das experiências de exagero
e sua função, que iremos à superfície pri-
mordial de seus efeitos, o corpo e o con-
ceito de epifania como sensação sentida
na experiência estética. Nas palavras de
Gumbrecht (2010, p. 140), com quem a
partir de agora estabelecerei intensa tro-
ca, depois de assumida inspiração em
Jean-Luc Nancy, epifania trata-se da
“sensação [...] de que não conseguimos
agarrar os efeitos de presença, de que
eles – e, com eles, a simultaneidade da
presença e do sentido – são efêmeros”.
A epifania, então, disparada sem-
pre por uma experiência estética e portan-
to inscrita no empírico, ao passo que nos
nutre com sensações que recarregam o
corpo da sua própria existência e de sua
presença, sendo ele ponto de sinergia da
experiência vivida, por outro lado, não nos
oferece como compensação econômica,
algum sentido acabado, esclarecido e li-
vre de equívocos, que possa, através do
trabalho intelectual, da “interpretação”,
preencher com algum “sentido”, com al-
gum “esclarecimento”, esse vazio deixado
48
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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pela experiência de despossessão de si,
oferta que garantiria o imediato processo
de reintegração de posse. A “aquisição”
do sentido, portanto, que trabalharia feito
anestesia no apaziguamento do dinamis-
mo disparado pela epifania, é justamente
o que ela esquiva-se em nos oferecer. A
experiência estética, então, opera como
resistência à lógica de loteamento da ra-
cionalidade cognitivo-instrumental, uma
vez que, se esta funciona acumulando
propriedades de “sentido”, a outra fun-
ciona mais na lógica do dispêndio
VII
, cujo
efeito por excelência é o corpo extasiado.
Pensando, então, esse corpo mo-
derno assujeitado ao reinado vigoroso
do cognitivo, Gumbrecht, em diversos
momentos, sustenta uma reexão muito
aproximada daquela noção de “saturação”
em Maffesoli:
Aquilo de que, pelo contrário, sentimos
falta num mundo tão saturado de sen-
tido e, portanto, aquilo que se trans-
forma num objeto principal de desejo
(não totalmente consciente) na nossa
cultura – sem surpresa nenhuma, no
contexto desse livro, admito (e espero)
– são fenômenos e impressões de pre-
sença. (GUMBRECHT, 2010, p. 134)
Disso, a partir dessa consagração
de uma economia mais dispendiosa que
avarenta, podemos caminhar então com
a reexão em torno da íntima proximi-
dade entre a experiência estética, seus
efeitos epifânicos, e o “deixar-se” cair em
exageros, o que anteriormente fomentou
a expressão “toda experiência estética
comporta uma violência”. Como o uso da
palavra “violência” em um sentido de po-
sitividade, reconhecendo nela uma fun-
ção social armativa, dispara em nossas
mentalidades demasiadamente corrompi-
das por uma concepção avarenta de si,
um alerta, esta acaba por constituir um
tabu. Assim então, vale uma parada para
desenvolvermos melhor a noção de “vio-
lência” como elemento, nas mais variadas
doses, necessário ao acontecimento esté-
tico, que aqui nos interessa.
... minha principal reação à objeção
de que posso estar promovendo a
“estetização da violência” é que, se
insistíssemos numa denição da es-
tética que excluísse a violência, não
só eliminaríamos apenas o aparato de
guerra, a destruição de edifícios e os
acidentes de tráfego, mas também fe-
nômenos como o futebol americano,
o boxe e o ritual da tourada. Permitir
a associação da experiência estéti-
ca à violência, ao contrário, ajuda a
compreender por que certos fenôme-
nos e eventos se nos revelam tão ir-
resistivelmente fascinantes – embora
saibamos que, pelo menos em alguns
desses casos, essa “beleza” segue
junto da destruição de vidas. (GUM-
BRECHT, 2010, p. 144-145)
Em primeiro lugar, é preciso de-
sassociar o reconhecimento da dimensão
estética da violência, de uma logo auto-
mática legitimação ética de qualquer ato
violento, da qual sei corro o risco de ser
acusado, ainda que não seja o caso. Em
outras palavras, a sensação de epifa-
nia não é regida por réguas morais que,
graduadas do Mal ao Bem, condicionem
seu acontecimento somente ao avanço
em direção à última extremidade. Não
por acaso, é comum que a intensidade
de uma epifania venha de maneira ambí-
gua acompanhada de um repúdio, como
o que podemos ter diante da imagem de
uma cidade bombardeada, ou de um la-
mento revoltado quando testemunhamos
um assassinato. Em todo caso, a função
catártica que o assassínio, como tema
principal no teatro antigo, na tragédia gre-
ga, teve no elevado enlaçamento empá-
tico do corpo de todos os envolvidos na
cena, impedindo inclusive que utilizemos
as categorias cindidas de “personagem”
e “espectador” para compreendê-la, as-
49
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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sim como a alta expectativa e audiência
que capítulos de novelas contemporâne-
as alcançam quando da morte de algum
de seus personagens, dão sinais de que
essa relação indissociável entre epifania,
catarse, experiência estética, comunhão
e sacrifício violento, segue como um eco
arcaico muito presente. Nesse sentido,
não é surpreendente que o espectador
popular, mesmo hoje, ainda interponha o
ator televisivo quando o encontra na rua,
no mercado, no shopping, chame-o pelo
nome do personagem e cobre dele com
autoridade, uma outra postura “na nove-
la”, lançando sobre o corpo dele, inclusi-
ve, os humores da paixão, seja de raiva
ou de amor. Algo de parentesco próximo
ao funcionamento do coro na tragédia
grega descrito por Nietzsche, assim como
do teatro na Idade Média citado por Gum-
brecht, atitudes que aos olhos do homem
esclarecidamente civilizado só podem ser
frutos de uma ingenuidade lamentável:
De fato, tínhamos sempre pensado
que o verdadeiro espectador, fosse
quem fosse, devia ter sempre ple-
na consciência que é uma obra de
arte que está diante dele e não uma
realidade empírica, enquanto o coro
trágico dos gregos é necessariamen-
te obrigado a reconhecer, nas perso-
nagens em cena, seres que existem
materialmente. O coro das Oceânides
crê verdadeiramente ver diante de si o
titã Prometeu e se considera tão real
como considera real o deus que está
em cena. (NIETZSCHE, 2007a, p. 58)
A copresença de atores e espectado-
res na cultura medieval parece ter sido
uma copresença “real”, na qual não se
excluía o contato físico mútuo – de fato,
esse contato era tão pouco excluído,
que os espectadores das representa-
ções da Paixão no nal da Idade Média
chegavam a “executar” o corpo do ator
que representava Cristo, apedrejando-
-o. (GUMBRECHT, 2010, p. 54)
Sendo assim, a “desmedida”, o “êx-
tase”, para usarmos termos que estarão no
próximo trecho também retirado de Nietzs-
che em “O Nascimento da Tragédia”, são
dimensões que não se alcançam por meio
da reexão, do pensamento, mas sim pela
experiência estética, portanto são também
elementos protagonistas nos sazonais
cuidados a que se dedicam comunidades
com mito, a m de evitar a ameaça da ple-
na individuação, contra a qual a “desmedi-
da”, o “êxtase”, o sacrifício, portanto, são
frequentemente convocados a atuar.
O indivíduo, com toda a sua ponde-
ração e sua medida, submergiu no
esquecimento de si do estado dionisí-
aco e esqueceu os preceitos apolíne-
os. A desmedida se revelou verdade;
a contradição, o êxtase nascido da
dor falava espontaneamente de si, do
coração da natureza. (NIETZSCHE,
2007a, p. 45-46)
Se, então, é de experiências que
lancem o corpo em gestos, movimentos,
comportamentos, linguagens, expres-
sões, reconhecidamente movidas não
exclusivamente pela sua dimensão dirigi-
da, mas por algo para além e para aquém
de si mesmo; se é um corpo (des)possu-
ído, então, que é convocado a suspen-
der a memória de si para performatizar
a memória coletiva
VIII
, de grupo, da tribo;
se esse corpo trágico, então, é levado a
periodicamente perder-se, morrer e re-
nascer, logo, será justamente de meca-
nismos de “violência”, numa acepção do
atravessamento de nossa subjetividade,
da dinamização de nossa inércia pessoal,
que os exageros necessários serão cons-
truídos. Em todo caso, por “exagero”, ou
por “violência”, não se pode compreen-
der apenas suas versões hipertroadas,
como as que naturalmente parecem es-
tar mais destacadas neste artigo, mas
também as hipo que ao revés, geralmen-
te por privações, também rompem com
a “vida bem calculada” moderna, como
50
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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os jejuns, os isolamentos monásticos,
o virtuoso combate que as meditações
de diversos tipos impõem à emersão de
qualquer pensamento, tudo isso também,
operando repressões ao reinado do si
mesmo esclarecido. “Anal, muito a
experiência estética tem sido associada
a acolher o risco de perder o domínio so-
bre nós mesmos – pelo menos por algum
tempo”(GUMBRECHT, 2010, p. 145).
Repressões de si podem encontrar
catalizações de diversos tipos e diferentes
intensidades, ou seja, voltando ao nosso
cotidiano, não é preciso estar disposto a
frequentar assiduamente situações de bri-
ga para que o imaginário sedimentado a
partir delas, encontre na sua subjetividade
uma recepção prazerosa. Os combates ir-
radiam e os efeitos de contágio próprios
desses exageros podem ser percebidos
nessa franca fala do Bozo, membro da ba-
teria da Young Flu:
Cara, eu nunca gostei de briga, sei lá,
não faz parte de mim, sempre fui mais
calmo. Mas por outro lado, eu gosta-
va de ouvir que a Young colocou al-
guma outra torcida para correr, eu me
amarrava em car sabendo. Também
sempre gostei do “Duende Verde”,
tenho vários adesivos, desenhos de
bandeiras, tudo guardado. E de qual-
quer maneira, é um monstro, é Mal,
né? (Bozo em entrevista realizada em
abril de 2013)
Assim como em Paris, enquanto
aguardávamos a chegada dos ônibus para
a caravana que nos levaria à Toulouse
para assistir ao jogo do PSG contra o time
da casa, chegou a notícia de que um gru-
po de torcedores do próprio PSG, mas, no
entanto, rivais tradicionais daquele grupo
com quem eu estava, também viajariam
e em maior número do que “nós”. Dian-
te disso, David, que eu sabia “não era de
briga” e já havia me confessado que não
gostava disso, virou-se para mim e disse:
– Hoje estou com uma vontade de dar uns
chutes em alguém. – disse encenando no
ar a mímica de um chute que, pelo que
percebi, simulava atingir alguém que já
estivesse no chão.
Em um soco, em um abraço, em
um canto, em um bonde que marcha pu-
lando e soltando morteiros, em uma ca-
misa, em uma história absurda, por todo
lado o enigma, o todo, o corpo societal
circula e acimenta uns aos outros. Seja
vivendo com mais frequência esses exa-
geros, seja sendo atingido de maneira
mais sutil por essas irradiações dos seus
prazeres, ou mesmo quando se chora a
morte de um amigo, ou ainda se come-
mora meio friamente a morte de um rival,
o que é inegável é o papel fundante do
Mal no erguimento e na perduração do
todo. É nesse sentido, então, que em
nossa época, ao que se chama mais ou
menos provisoriamente de pós-moderni-
dade, como aponta bem o trecho seguin-
te de Maffesoli, estaria em curso esse
retorno do Mal, do Mito, algo ao mesmo
tempo revigorante e destrutivo. Em uma
palavra, uma época de “crise”.
Nunca será demais insistir nessa for-
te característica da pós-modernidade:
a rearmação dos fatores impessoais
exatamente onde, numa perspectiva
de horizonte curto, os observadores
sociais, limitam-se a recitar a ladainha
do individualismo. Com efeito, o de-
sejo do grupo, aquilo que chamamos
de ideal comunitário, é uma tendência
de fundo. [...] Um vitalismo que temos
diculdade de levar em conta porque
comporta, logicamente, um certo ex-
cesso. A vida e o gasto estão intima-
mente ligados. E, como observa V.
Jankélévitch, referindo-se a Guyau
e a Simmel, o próprio da vida é pro-
vir de um impulso “semi-inconsciente,
de uma pulsão instintiva originária das
profundezas escuras”. (MAFFESOLI,
2007, p. 82-83)
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Figura 2: Bandeira do Duende Verde
Figura 3: Bandeira da Força Jovem do Vasco com o Eddie
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Da mesma maneira, alguns sím-
bolos que tais sociedades ou grupos
sintetizam e que passam a lhes servir
de ícone representativo, são carrega-
dos dessas mesmas características. Em
nosso caso, por exemplo, a presença
quase unânime de motivos monstruo-
sos e bélicos na elaboração dos símbo-
los de cada torcida organizada, como o
Duende Verde de boca aberta e dentes
aados no caso da Young Flu, o Eddie,
morto-vivo da Força Jovem do Vasco, o
Tazmania da Bamor do Bahia, o canhão
de três canos da Torcida Jovem do Fla-
mengo, a caveira da morte da Torcida
Jovem do Botafogo, utilizada em dese-
nho semelhante pela Torcida Os Faná-
ticos do Atlético Paranaense, a própria
morte com sua foice da Fúria Indepen-
dente do Paraná e da Comando Verme-
lho do CRB de Alagoas, assim como a
recorrência de animas em formas an-
tropomórcas como o urubu musculoso
da Raça Rubro-Negra e da Cearamor, o
cachorro bravo da Fúria Jovem do Bota-
fogo, o leão tanto da Torcida Jovem do
Sport como da Torcida Uniformizada do
Fortaleza, o rato da Torcida Jovem Fa-
nautico, o macaco da Camisa 12 do In-
ternacional, o galo da Galoucura do Atlé-
tico Mineiro e da Torcida Jovem do Galo
do Treze de Campina Grande, a cobra
coral armada com duas metralhadoras
da Torcida Inferno Coral do Santa Cruz,
o dragão da Torcida Trovão Azul do Con-
ança de Sergipe, o touro negro da Tor-
cida Falange Tricolor do Fluminense de
Feira de Santana, entre outras.
Figura 4: Cabeça do Duende Verde na sede da Young Flu
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Figura 5: Cachorro da Fúria Jovem do Botafogo
Figura 6: Tanque da Torcida Jovem Fla
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Todas são imagens que carregam
em si o tema da morte, ou ao menos da
imanência dela, sendo a frequência de
dentes, bocas, garras aadas e a foice,
portanto, instrumentos de corte, de trinca,
indicativos de uma morte por dilaceramen-
to, gura ambivalente do imaginário que
por ser recorrente em uma série de ima-
gens arquetípicas de contornos variados
em diversas narrativas míticas, ocupou
um bom pedaço dos estudos de Durand
(2002, p. 84), para quem, “na maior parte
dos casos, a animalidade, depois de ter
sido o símbolo da agitação e da mudança,
assume mais simplesmente o simbolis-
mo da agressividade, da crueldade”. Mais
adiante, ele ainda rearma: “o animal é as-
sim, de fato, o que agita, o que foge e que
não podemos apanhar, mas é também o
que devora, o que rói” (DURAND, 2002,
p. 90). E indo mais especicamente para
a boca e em alguns casos o bico, e aqui
guardamos associação também à lâmina
da foice e às garras também frequente-
mente protuberantes, Durand diz:
... é assim a boca que passa a sim-
bolizar toda a animalidade, que se
torna o arquétipo devorador [...]. Re-
paremos bem num aspecto essencial
desse simbolismo: trata-se exclusiva-
mente da boca armada com dentes
acerados, pronta a triturar e a morder,
e não da simples boca que engole e
que chupa que [...] é a exata inversão
do presente arquétipo. [...] É, portan-
to, na goela do animal que se vêm
concentrar todos os fantasmas ter-
ricantes da animalidade: agitação,
mastigação agressiva, grunhidos e
rugidos sinistros. (2002, p. 84-85)
Aqui, cabe, então, deixarmos mar-
cado esse dinamismo próprio de toda
monstruosidade, essa gura que con-
tornos extravagantes ao caos originário
que precede toda criação, logo, sendo
todo monstro, portador de um “devir-dio-
nisíaco” embaralhador das cartas, ato
que antecede o recomeço do jogo. Não,
por acaso, então, trata-se de uma gura
mítica que por toda parte ativa as preo-
cupações em sua domação, imanência
de todo devir pré-remodelagem, por isso
um “agitador” milenar, do qual poucas
vezes a humanidade igualou o sentido
do seu possível domínio ou morte após
dura batalha, com a plena e denitiva
anulação de sua potência. É recorrente,
nesse sentido, portanto, que a monstru-
osidade carregue em si uma espécie de
predisposição a múltiplos renascimen-
tos, uma eternidade pautada em suces-
sivas mortes, como é o próprio caso do
Duende Verde utilizado pela Young Flu
que, originado da história em quadrinhos
do Homem-Aranha, é um de seus vilões
mais poderosos, reaparecendo sempre,
mesmo após ter sido dado como morto,
algo próximo das guras de “morto-vivo”,
como o Eddie e a própria Morte com a
Foice, que dá à morte a condição de vi-
vente, de movente e não a inércia na
qual se assenta boa parte das paranoias
modernas com a morte nda. Sendo as-
sim, então, todo monstro potencialmente
eterno porque morre muitas vezes, não
é surpreendente que haja nele também
uma dimensão divina, como apontaram
Mauss e Hubert no célebre estudo sobre
o sacrifício, mais precisamente no capítu-
lo dedicado ao sacrifício do deus, a partir
de uma longa lista de combates mitológi-
cos entre um deus e um monstro, embate
que agra também uma ambivalência, a
divindade atribuída também ao monstro.
É uma diferenciação de outro tipo que
se devem os mitos cujo episódio cen-
tral é o combate de um deus com um
monstro ou com um outro deus. Tais
são, na mitologia babilônia, os comba-
tes de Marduk com Tiamat, isto é, o
Caos; de Perseu matando a Górdona
ou o dragão de Joppe, de Belerofon-
te lutando contra a Quimera, de São
Jorge vencedor do Dadjdjal; é também
o caso dos trabalhos de Hércules e,
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enm, de todas as teomaquias; pois
nesses combates o vencido é tão di-
vino quanto o vencedor. (MAUSS; HU-
BERT, 2013, p. 93)
Nesse caso, no lugar do simples
triunfo do Bem contra o Mal, que somos
hoje levados a usar como principal for-
ma de interpretação desses eventos, os
autores apresentam na sequência a fre-
quência com que, logo depois, o vitorio-
so, consternado com o m do vencido,
também morre – “para completar a prova
da equivalência desses temas, digamos
que sucede muitas vezes de o deus mor-
rer após sua vitória” (MAUSS; HUBERT,
2013, p. 94). Mauss e Hubert nos ofere-
cem assim uma concepção mais trágica,
atribuindo ao monstro e ao deus, a condi-
ção de serem “desdobramentos do mes-
mo gênio”, guras resultantes do afasta-
mento duplo diante do qual, a batalha não
é a consagração da divisão, como somos
acostumados a encarar a partir de nossa
concepção belicista do tipo aniquilante,
norma para o homem esclarecido, mas
sim, a própria ocasião do reencontro; os
golpes aqui, a falta de exemplos de um
covarde “correr da luta”, assentam-se
mais numa vontade epifânica, portanto
efêmera, porém frequente, de reunião
dos contrários.
Essas equivalências e alternâncias
se explicam facilmente se conside-
rarmos que os adversários confron-
tados com o tema do combate são
o produto do desdobramento de um
mesmo gênio. A origem dos mitos
desse tipo foi geralmente esque-
cida; eles são apresentados como
combates meteorológicos entre os
deuses da luz e das trevas ou do
abismo, entre os deuses do céu e
do inferno. Mas é extremamente di-
fícil distinguir com clareza o caráter
de cada um dos combatentes. São
seres de mesma natureza cuja di-
ferenciação, acidental e instável,
pertence à imaginação religiosa.
(MAUSS; HUBERT, 2013, p. 94)
Nesse mesmo sentido, é interes-
sante notar que em episódios mais tardios,
o Duende Verde também se apossa do
Homem-Aranha e o deixa psiquicamente
confuso quanto à sua identidade. Por ora,
retomemos Durand e a ambivalência da
boca, para concluirmos essa íntima proxi-
midade das categorias boca, dentes, morte
e renascimento. Se a boca e analogamen-
te as garras são, juntas, forças de dilacera-
ção, de destruição, símbolos que segundo
a psicanálise, como aponta o próprio Du-
rand, estão relacionados à sensação de
incompletude, o engolimento, o ventre e a
digestão formam um sistema onde esses
pedaços são reatados, se reacomodam, se
reembaralham e de onde podem voltar re-
nascidos, como aponta o trecho abaixo:
O engolimento não deteriora, muitas
vezes mesmo valoriza ou sacraliza.
“O engolido não sofre uma verdadei-
ra desgraça, não é necessariamente
vítima de um acontecimento infeliz.
Mantém um valor.” O engolimento
conserva o herói que foi engolido.
(2002, p. 206)
Em resumo, portanto, a partir da
costura entre alguns materiais etnográ-
cos e determinada plataforma teórica, este
artigo sugere que universos jovens e po-
pulares de nossas cidades, como é o caso
das torcidas organizadas neste nosso ar-
tigo, apesar de serem constantemente re-
duzidos sob a máquina do discurso deter-
minante e criminalizador, podemguardar
em seus cotidianos,ricos reservatórios de
formas de viver, de imagens, de narrativas,
de rituais, de saberes, de epifanias que
operam como “tecnologias” encantadas
na defesa e garantia cotidiana da manu-
tenção de uma zona subjetiva que celebra
o indeterminado, o enigma, em contrapeso
ao fantasma da imobilização pela determi-
nação racionalista, esclarecida.
56
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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SIMMEL, Georg. Sociologie: Études sur les formes
de la socialisation. 1er édition. Paris: Quadrige,
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Recebido em 10/03/2017
Aprovado em 15/03/2017
I Doutor em Educação pelo ProPEdUERJ. Professor
da Faculdade de Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Contato: coelhoguga@
gmail.com.
II Bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro.
III Todas as citações dessa obra foram feitas com tradu-
ção livre a partir da edição francesa.
IV Durante o estágio doutoral em modalidade sanduí-
che na Université Paris V – Sorbonne sob supervisão do
professor Michel Maffesoli.
V Para lançar mão de uma expressão do vocabulário
desses jovens.
VI Todas as citações dessa obra foram feitas com tra-
dução livre a partir da edição francesa.
VII Ver Bataille, A noção de dispêndio (2013).
VIII Não por acaso, é sabida a falta de memória que
resta ao corpo do (des)possuído após os mais variados
rituais que preveem possessão.
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Cidade Maravilhosa: o Rio de Janeiro representado pelas letras
Ciudad Maravillosa: Rio de Janeiro, representado a través de la literatura
Wonderful City: Rio de Janeiro represented by Literature
Priscilla Oliveira Xavier
I
Resumo:
O moderno marca a virada do século XIX para o século XX no Brasil,
construindo e se apropriando das cidadescomo espaços privilegiados
para a encenação do poder. No período, os imaginários moderno
e urbano se difundem na capital da república,inspirando e inando
a cultura.Especicamente pelo ofício das letras, as cidades foram
tematizadas à exaustão, sintomatizando o novo período.Nos textos
as cidadesdeixam de ser o cenário do que se conta e passam a ser
contadas, ganhando feições, afetos e personalidade.E no fenômeno de
conferir legibilidade e distinção às cidades, o Rio de Janeiro passou
a ser representado como Cidade Maravilhosa. Pretendemos nesse
trabalho lançar luzes sobre a associação entre o Rio de Janeiro e o
termo Cidade Maravilhosa, buscando a origem do termo e reetindo
sobre as formas escritas de representar o Rio de Janeiro.
Palavras chave:
Cidade
Representação
Imaginário
Literatura
Moderno
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Lo moderno marca el cambio del siglo XIX al siglo XX en Brasil,
construyendo y apropiándose de las ciudades como espacios
privilegiados para la escenicación del poder. En el periodo, el
imaginario moderno y urbano se difunde en la capital de la República,
inspirando e inando la cultura. Especícamente, a través del ocio
de las letras, las ciudades han sido tematizadas hasta la extenuación,
como un síntoma del nuevo periodo. En los textos, las ciudades ya
no son el escenario de lo que es narrado y pasan a ser ellas mismas
narradas, adquiriendo carácter, afectos y personalidad. Y en el
fenómeno de conceder legibilidad y distinción a las ciudades, Rio
de Janeiro pasa a ser representada como la “Ciudad Maravillosa”.
Nuestro objetivo, en este trabajo, es destacar la asociación entre
Rio de Janeiro y el término “Ciudad Maravillosa”, buscando el origen
de este término y reexionando acerca de las formas escritas de
representar a la ciudad de Rio de Janeiro.
Abstract:
The modern marks the turn of the 19th century to the 20th century in
Brazil, building and appropriating cities as privileged spaces for the
staging of power. In the period, the modern and urban imaginaries took
place in the capital of the Republic, inspiring and inating the culture.
Specically,through literature, the cities were themed to exhaustion,
illustrating the new period. In the texts, citiesare no longer the scenery
of what if being narrated and are themselves the narrations, gaining
features, affections and character. And in the phenomenon of granting
legibility and distinction to the cities, Rio de Janeiro starts being
represented as a “The Wonderful City”. We aim, on this work, to highlight
the association between Rio de Janeiro and the expression“Wonderful
City”, seeking the origin of the term and reecting on written forms of
representing Rio de Janeiro.
Palabras clave:
Ciudad
Representación
Imaginario
Literatura
Moderno
Keywords:
City
Representation
Imaginary
Literature
Modern
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Cidade Maravilhosa: o Rio de Janeiro
representado pelas letras
O Rio de Janeiro, a capital que inspira
Produzir uma reexão sobre as for-
mas escritas que, no início do séc. XX,
associavam o Rio de Janeiro ao termo “Ci-
dade Maravilhosa” pode à primeira vista
parecer uma tarefa simples, mas na prá-
tica é um desao. Ao nos aproximamosda
noção de representações de um espaço
e tempo, como condensação dos sentidos
conferidos ao mundo em um recorte es-
paço temporal, inevitavelmente nos enve-
redamos pela história cultural, bem como
em suas possibilidades e limitações.
Apenas para citar, entre as possi-
bilidades, temos acesso a fontes e me-
todologias que nos permitem leituras so-
bre o referido período. E entre os fatores
complicadores, a quantidade de fontes
disponíveis é imensa, e a conjuntura que
pretendemos complexa, de ebulição de
sentidos em torno de um repertório mo-
derno. Nos resta assim impor algum con-
trole na condução da reexão,propondo
um recorte coerente com nosso objetivo e
possibilidades e nos abrirmos às contribui-
ções variadas, para além da história, para
melhor contemplar as referências de cul-
tura, espaço e temporalidades.
Identicando o Rio de Janeiro, al-
cançamos uma conguração institucional
que por si diz bastante sobre a cidade.
Exercendo a capitalidade desde 1763,
como sede da colônia, passando pela
corte e império, chegando a república na
virada do século XIX para o XX, a cidade
carrega o repertório simbólico de um lon-
go período em função de destaque. Ins-
trumentalizada espacial, administrativa,
política e simbolicamente para expressar
um todo,se distingue na estética urbana
e engrena o séc. XX com a função de
encenar um novo tempo. Temos, portan-
to, emaranhadas nas formas concretas
e simbólicas da cidade as narrativas de
poder informadas por fenômenos como o
modo de compreender e agir pela razão,
a consolidação do sistema republicano e
o reordenamento da economia mundial.
E na cidade que encena o novo
período, conferimos destaque às atua-
ções dos romancistas, poetas, cronistas
e jornalistas do início do século XX e às
disputas travadas no campo da cultura.
Nos debruçamos sobre o quadro de re-
ferências, mesclando realidade e cção,
que expressam as transformações do iní-
cio do século XX que marcaram o Rio de
Janeiro e seus habitantes.
Justicando o peso que conferimos
ao papel da cultura no processo de tran-
sição, embora seja um exagero armar
que a cultura indicava como se compor-
tar e uir no espaço urbano, moderno e
civilizado, é inegável a contribuição como
mediadora da relação das pessoas com
um espaço novo e em transformação.E
o foco na forma escrita se assenta na
adaptação das narrativas à vida urbana.
A capacidade de evocar imagens, simbo-
lizar, ordenar e interpretar, despeito da
orientação factual ou ccional, entram em
compasso com as novas formas de atuar
no e representar o mundo.
As cidades em geral e o Rio de Ja-
neiro em especial são captados pelas le-
tras e representados na cultura. E nessa
conjuntura de conhecer e dar legibilidade
à cidade identicamos o surgimento da
representação do Rio de Janeiro como
“Cidade Maravilhosa”.Reetindo sobre o
contexto, a forma e a representação des-
colamos do senso comum o termo Cidade
Maravilhosa,naturalizado e estrategica-
mente trabalhado para a inserção do Rio
de Janeiro na competição pela atração de
capitais e turismo entre as global cities.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Em busca da autoria do termo
cidade maravilhosa
Em uma era de marcas e paten-
tes é frequente, e até compreensível, a
sanha pela identicação da autoria de
determinadas ideias, de modo a assentá-
-las como um produto. Produto não me-
ramente de um tempo, não singularmente
de uma sensibilidade, mas sim adaptável
a um mercado. Sem maior necessidade
aprofundamento crítico à ordem econo-
mia, buscamos a autoria do termo Cidade
Maravilhosa. E já iniciamos a busca com
algumas sugestões que guram entre o
senso comum e a literatura acadêmica.
Em “O Rio de todos os Brasis:
uma reexão em busca da auto-estima”
II
,
Carlos Lessa (2000), logo na introdução,
arma sem vacilar:
O Rio como projeto e sonho foi, na vi-
rada do século, a condensação do Pro-
gresso, tendo na largura das avenidas,
na opulência dos bulevares, no faiscar
da iluminação noturna e no circular ele-
gante pela Avenida Central uma com-
provação inequívoca. A população, nas
calçadas, teria a demonstração concre-
ta da modernidade do brasileiro. A Re-
pública fez do Rio o espelho da nação
como futuro feito presente.
Esta foi uma operação extremamente
bem sucedida: o Rio como cartão de
visitas do país e certidão de brasilida-
de, como lugar único que combinava a
natureza tropical com a modernidade
urbana, foi batizado Ville Merveilleuse
pela francesa Jeanne Catulle Mendes,
em 1912. Com a marcha de André Filho
para o Carnaval de 1935, consagrou-se
o epíteto como “hino ocioso” da cida-
de (LESSA, 2000, p.13)
Segundo o autor, em 1912 a fran-
cesa Jane Catulle batizou o Rio de Janei-
ro ao dar o título de Ville Merveilleuse à
sua coletânea de poemas sobre a cidade.
Investigando a referência bastante difun-
dida, alcançamos a informação de que
Jeane Catulle visitou o Rio de Janeiro de
Setembro a Dezembro de 1911. No perí-
odo as reformas promovidas por Pereira
Passos cintilavam, arrancando suspiros
dos estrangeiros e enchendo de orgulho a
na or da sociedade carioca.
A poetiza francesa desembarcou
no Rio de Janeirocom o objetivo de par-
ticipar de três conferências, uma delas no
Teatro Municipal. E como uma gura de
bons contatos e prestígio, esteve presen-
te até mesmo em uma audiência com o
então presidente da República, Washing-
ton Luis P. de Sousa. Com uma estadia de
pompa e interlocutores ávidos por suas
impressões sobre a cidade reluzindo mo-
dernidade, a autora escreve poemas de-
cantando o deslumbramento de sua visita.
Na coletânea de poemas em amor ao Rio
de Janeiro, expressou desde sua chega-
da até os passeios e a partida, exaltando
positivamente tudo o que vira e sentira,
como é notável em um trecho de“Arrivée
dans la baie de Guanabara”:
Jamais tant de splendeurs n’ont
ébloui les yeux !
C’est ici le pays de toute la lumière,
C’est ici le pays de la beauté plénière,
Des terrestres beautés et des beau-
tés des cieux.
III
(MENDÈS,1913)
Apesar do enorme prestígio da po-
etiza e desua gentil obrainspiradapelo en-
cantamento com o Rio de Janeiro, seria
precipitado conferir à Jane Catulle a auto-
ria do termo Cidade Maravilhosa. Primei-
ramente por se tratar de uma impressão
estrangeira sobre uma nação “recém cria-
da”, uma percepção de fora, sem maiores
enraizamentos,envolvimento ou compro-
misso com a construção do país,quiçá da
cidade. Posteriormente porque a época
era a de intervenções urbanas adaptan-
do as cidades às conveniências de uma
nova conguração econômicamundial e,
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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em corolário,ordenamento político. Nada
mais provável do que se afetar, estranhar
ou se apaixonar, pelo que ao mundo se
apresenta como novidade. Para além, o
uxo de pessoas inuentes, de políticos a
artistas,capazes de dizer e repercutir so-
bre os lugares, as pessoas e as institui-
ções acabava por chancelareste ou aque-
le lugar como relevante ou não aos ideais
e imaginário moderno.
Alcançamos com tais considera-
ções a ideia de que o dizer sobre as ci-
dades estava na ordem do dia, e que o
repertório do que se diz sobre as cidades
poderia ser limitado pelos ideais e imagi-
nário moderno. Optamos então por perse-
guir as possibilidades do termo “Cidade
Maravilhosa” já gurar nas escritas que
circulavam pela cidade do Rio de Janeiro.
Procedemos um levantamen-
to nos principais periódicos da época.
Renando, selecionamos os dois peri-
ódicos de maior circulação, A Notícia e
O Paiz, entre anos de 1900 e 1910. E
em cada um dos títulos tivemos nove
ocorrências,algumas delas em datas an-
teriores a visita de Jane Cattulle, endos-
sando a hipótese de que a poetiza pode
não ter sido exatamente a autora do ter-
mo.De início já podemos armar que ela
estava em compasso com o que era dito
sobre cidades em geral e repetitiva com
o que era dito sobre o Rio de Janeiro.
Nas primeiras referências no Jor-
nal A notícia temos a Cidade Maravilho-
sa como um termo aplicável a qualquer
cidade. Como no caso encontrado em
que a Cidade Maravilhosa é relacionada
a da Mil e uma Noites.Uma alusão à ci-
dade criada em uma dimensão fantasio-
sa, alastrada por um clássico da literatura
universal. Trata-se da segunda parte do
texto “O aranha Vermelha”:
Lufadas de perfume evolaram-se
com a fumaça do ópio pelas janelas
abertas, onde, como nos quadros
esculpidos pelas phantasias, appa-
reciam bellas mulheres perseguidas
por grotescos amantes.
Era, para imaginar-se em alguma ci-
dade maravilhosa das Mil e uma noi-
tes. (A Notícia, Rio de Janeiro, p. 3,
08 Març. 1901).
Uma segunda ocorrência do ter-
mo é encontrada na coluna “Registro”.
O autor faz entusiasmantes elogios ao
progresso e à paisagem urbana, jardins,
edifícios e boulevards. Porém, a Cidade
Maravilhosa a que se refere é Paris, ao
m identicada como Cidade da Luz:
Paris não muda: e creio, apezar de
minha inabalável conança na certesa
do progresso humano, que esta cida-
de maravilhosa sômente poderia ago-
ra mudar...para peor. Agora, para Pa-
ris, o progresso só poderia ser a perda
de certos feitos: mas como desejar tal
progresso, si esses defeitos são jus-
tamente um dos maiores encantos e
uma das mais raras bellezas da cida-
de da luz? B. (A Notícia, Rio de Janei-
ro, p. 2, 13 Jun. 1904)
Na mesma coluna, assinada pelo
autor, B., novamente registra-se Cida-
de Maravilhosa para falar de Paris. O
autor descreve fascinado, e com incli-
nação à distinções sociais, um concur-
so de janelas floridas que envolve os
habitantes da cidade:
Nem tudo é política e indústria, gra-
ças a Deus, nesta cidade maravilho-
sa. Aqui a Poesia creou e mantém o
seu domínio inviolável e perpétuo e
não deixa que as paixões grossei-
ras, os appetites damninhose baixos
avassalem a vida.
Nos últimos dias de maio, vae ser
disputado em Paris um concurso de
<<janellas oridas>>.
A ideia é uma belleza captivante.
62
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Não há aqui costureira, modista, gri-
selle modesta, Mimi-Pinson jovial e
pobre que não cultive, á janella de
sua água furtada
IV
, algumas ores
singelas. (A Notícia, Rio de Janeiro,
p. 2, 17Jun. 1904)
O primeiro aparecimento do termo
referindo-se ao Rio de Janeiro ocorre em
1907, em um texto intitulado “No Palácio
Monroe”. A rigor, trata-se de um peque-
no equívoco no sistema de busca que
acabou sendo incorporado por pesquisa-
dores e curiosos como uma aparição do
termo. Em uma leitura atenta percebe-se
que maravilhosa é a rapidez da constru-
ção e não a cidade.
Está ainda na lembrança de todos
os habitantes dessa cidade a mara-
vilhosa rapidez com que o general
Dr. Francisco Marcelino de Souza
Aguiar concluiu o Palácio Monroe,
para qual aproveitou o mesmo pla-
no e grande parte dos elementos
que serviram na architetura do Pa-
vilhão brasileiro na Exposição de S.
Luiz. (A Notícia, Rio de Janeiro, p.
3, 22 Maio 1907)
E a primeira aparição constando
o termo cidade maravilhosa relacionada
ao Rio de Janeiro em A notícia passa
a ser a de uma coluna intitulada “Dez
annos atrás”, em 1909. Antes de afirmar
que em 1909 é a data da primeira apa-
rição do termo no jornal A Notícia é pre-
ciso relatar que está indisponível para
consulta as edições no ano de 1908. E
para complicar um pouco mais a ques-
tão, há referências que assinalam o pe-
ríodo como o do surgimento do termo,
nas crônicas de Coelho Neto
V
. Isola-
damente trataremos da crônica do au-
tor, no capítulo seguinte, investigando
como mais uma sugestão de autoria do
termo “Cidade Maravilhosa”que ganha
destaque no senso comum e em refe-
rências impressas.
Retomando a ocorrência de 1909,
na coluna “Dez annos atrás”, o texto abor-
da a transformação da cidade, se inda-
gando sobre o que era o Rio de Janeiro e
o que a cidade passou a ser:
(...) e hoje, dez annos depois, passe-
ando essa cidade de tão belas ruas
novas, percorrendo as avenidas, res-
pirando um ar que não é das antigas
vielas infectadas, habitando uma nova
cidade maravilhosa e salubre, ouvindo
o aplauso do estrangeiro (...) (A Notí-
cia, Rio de Janeiro, p.2 , 06 Jun. 1909)
O trecho toma os “dez anos atrás”
como marco para a transformação da ci-
dade maravilhosa. Mais do que a estru-
tura urbana para o gozo de quem habi-
ta e transita pela cidade, ca marcado o
crédito dado à opinião dos estrangeiros.
Devemos ainda destacar o imaginário da
cidade modernizada, decantada no embe-
lezamento promovido por Pereira Passos,
no saneamento de Oswaldo Cruz e na re-
levância da impressão dos estrangeiros.
Há uma outra ocorrência da “Ci-
dade Maravilhosa” na coluna “Pequenos
Echos”, em “A notícia” em 1909. Antes
mesmo da visita de Jane Catulle, o autor
do texto publicado no jornal escreve que
a cidade já estava decantada por ilus-
tres estrangeiros.Discorre ainda sobre a
maravilha como um culto moderno e su-
blinha a inuência da transformação da
cidade para o desenvolvimento do mara-
vilhoso como religião:
O Rio tem já sido de tal modo decanta-
do por estrangeiros ilustres, que deve
ser hoje considerado pelos que ainda
não o conhecem como uma Cidade
Maravilhosa. (...) O progresso moder-
no é uma sucessão tão vertiginosa de
maravilhas umas às outras se eclip-
sando, que nenhuma, por mais espan-
tosa, já causa impressão. Entretanto o
gênio dos homens não esfria em nós
63
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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mais razão por inuência do nosso sol
e do nosso temperamento não nos po-
demos furtar ao culto do maravilhoso.
Esse maravilhoso é mesmo a mais
cultuada religião entre nós, a única
talvez que contadíscolos. Sobretudo
depois que se transformou a cidade,
essa religião desenvolveu-se espan-
tosamente. (A Notícia, Rio de Janeiro,
p.1 ,21 Set. 1909).
E já bem próximo da visita de Jane
Catulle, temos mais uma referência da
Cidade Maravilhosa em 1910, no texto in-
titulado “A Cidade”:
Dias como o de hontem, pela sua
doçura, a luz, a sua alegria são ver-
dadeiras dádivas do céo bordado de
leves nuvens, colorido de um meigo
azul, um quase dia de primavera, en-
m, que pouco falta a chegar, que é
mesmo possível que anteceda a sua
época própria, para depois se retirar
mais cedo o logar ao estio.
E por um dia assim que a cidade me-
lhor brilha nas suas pompas e galas,
ostentando os esplendores de uma
cidade maravilhosa, feita de ores
e revérberos, deitada numa innita
preguiça, á borda do grande golfo, à
sombra de suas orestas onde chal-
ram aves aos milhares. Quem a vir
assim, vindo de fora, não se admi-
rará de que a terra seja de poetas e
sonhadores; do que mais pasmará é
de que com uma natureza assim ella
tenha a vida intensa, que fervilha á
semana, na lufa-lufa dos seus sem
mil negócios. (A Notícia, Rio de Ja-
neiro, p.1, 15Ago. 1910)
O detalhe que grita no texto é a
natureza como medida da exaltação para
discorrer sobre a cidade. Que aliás, não
expressa nada inédito.Explorando as re-
presentações dos lugares desconhecidos
na América, onde aportavam os nave-
gantes estrangeiros, Sérgio Buarque de
Holanda (2002) trabalhou com a imagem
do paraíso, com o objetivo iluminar o mo-
tivo edênico no descobrimento e na co-
lonização do Brasil. Reetindo sobre as
percepções de tempo, de mundo e de
vida no período dos descobrimentos, o
autor desvenda um mundo fantástico em
par com a realidade que forjava a Améri-
ca Hispânica e lusitana. No trecho de “A
Notícia” o motivo edênico é retomado em
novas tintas, deslocando o olhar do dis-
tante para o próximo.
A potência das narrativas sobre a
cidade coladas à exuberância da natureza
reverbera em dois sentidos. Em um deles
sugere a cidade em uma relação harmo-
niosa com a natureza. E em outro uma
desvalorização do homem local, de suas
criações e capacidades. Anal, o que na
cidade é motivo de exaltação diz respeito
ao que o homem não criou.
Sobre as representações do lugar
que valorizam a natureza temos a reitera-
da indignação de guras públicas, mes-
mo anteriores ao referido trecho de jornal,
como fora objetivamente expresso por
Machado de Assis (1893), argumentando
o quanto a exaltação da natureza subesti-
ma a ação do homem:
“O meu sentimento nativista, ou como
quer que lhe chamem – patriotismo é
mais vasto, - sempre se doeu desta
adoração da natureza. Raro falam
de nós mesmos: alguns mal, poucos
bem. No que todos estão de acor-
do, é no pays féerique. Pareceu-me
sempre um modo de pisar o homem
e suas obras. Quando me louvam a
casaca, louvam-me antes a mim que
o alfaiate. Ao menos, é o sentimen-
to com que co; a casaca é minha;
se não a z, mandei fazê-la. Mas eu
não z, nem mandei fazer o céu e as
montanhas, as matas e os rios. Já os
achei prontos, e não nego que sejam
admiráveis; mas há outras coisas
64
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que ver.” (crônica de 20 de agosto de
1893 em A Semana)
Continuando a investida nas ocor-
rências do termo, passamos para o jornal
O Paiz, que na capa trazia a informação
de ser a folha de maior tiragem e de maior
circulação da América do Sul.No periódi-
co a Cidade Maravilhosa também aparece
inicialmente distante do Rio de Janeiro, no
texto “Paris e a exposição” (O Paiz, Rio
de Janeiro, p.2, 9 Fev. 1900). Mas logo
em 1904 está registrado em versos irre-
verentes, que com métrica e rima chafur-
dam no conteúdo que perscrutamos do
imaginário do Rio de Janeiro como cidade
moderna,em “Matriculados e não Matricu-
lados”. Trata-se de uma troça à repressão
municipal nas ruas em meio ao carnaval.
Essa gaiola bonita
Que vai ahi sem embaraços
É a invenção mais catita
Do genial Dr. Pereira Passos
As ruas de ponta a ponta
Subindo e descendo morros,
Por onde passa dá conta
Dos vagabundos cachorros.
Agarra! Cerca! Segura!
— Grita a matilha dos guardas —
Correndo como em loucura
Com um rumor de cem bombardas.
Terra sempre em polvorosa
Bem igual no mundo inteiro,
Cidade maravilhosa!
Salve, Rio de Janeiro!”
(O Paiz, Rio de Janeiro, p.2, 16 Fev.
1904).
No mesmo ano, meses depois,
temos uma ocorrência que dá conta da
transformação do urbano, em um enor-
me esforço de melhoramentos para o
desenvolvimento das forças econômicas
e progresso do Brasil, nas promessas
alinhadas na inauguração do governo
de Rodrigues Alves, no texto intitulado
“Uma obra política”:
A população compreendeu bem a
grandeza do serviço que o governo vai lhe
prestart, negando-se a crear embaraços
a sua acção, como queriam agitadores
prossionais, antes, facilitando todos os
accordos e sujeitando-se a todas as pres-
crições legaes no bom intent de ver trans-
formada, embellezada e saneada esta ci-
dade maravilhosa, de cuja fama e de cuja
força depende o equilíbrio da seiva econô-
mica em todos os orgãos do paiz. (O Paiz,
Rio de Janeiro, p.1, 4 Maio, 1904)
Em Dezembro do mesmo ano, ve-
ricamos uma nova ocorrência. Saindo do
imaginário urbano do progresso, embele-
zamento e saneamento, a Cidade Maravi-
lhosa está em uma narrativa de cção, no
texto “O mistério do natal”, assinado por
Coelho Neto, escritor já referido e cogita-
do como autor do termo:
Os olhos estendiam-se por uma Cida-
de Maravilhosa, toda construída em
mármore e porphydo, com enormes
templos, palácios que eram cidade-
las, jardins de redolentes alas, rios
beirados de árvores, com as rampas
matizadas de ores, Rolando águas
serenas, sobre as quaes brilhava a
tremelina do luar. (O Paiz, Rio de Ja-
neiro, p.1, 14 Dez. 1904)
Em Abril de 1905 o termo aparece
na coluna “O Dia”, assinada por Pangloss.
Entre outras coisas, Pangloss explica que
vindo de São Paulo, estando oito anos
ausente, tinha que falar dessa cidade
maravilhosa. A cidade maravilhosa é São
Paulo. E Pangloss é o nome usado por
Alcino Guanabara, que no mesmo ano de
1905 foi nomeado redator chefe de O paiz.
Também desvinculado ao Rio de Janeiro o
termo aparece em 1907, na coluna “Lucta
Romana”, rendendo homenagens a Raoul
65
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Le Boucher. A cidade maravilhosa é Sour-
gues, na França, onde o lutador nasceu.
O termo volta a aparecer relacio-
nado ao Rio de Janeiro no ano de 1908,
em Agosto e Novembro, para relatar como
a cidade estava preparada para receber
uma exposição nacional, com a participa-
ção dos prósperos Estados da República.
Organizando as ocorrências do ter-
mo, incitando mais compreensões do que
uma explicação denitiva, temos a “Ci-
dade Maravilhosa”até 1904 aparecendo
como referência a cidades reais e ctícias.
Em 1904 temos uma primeira referência
relacionada ao Rio de Janeiro, em “O
paiz”, e em 1909 em “A Notícia”.Em am-
bos os casos a referência dialoga com as
reformas de Pereira Passos, embebidas
no imaginário da cidade moderna.E a des-
peito das ocorrências relacionadas ao Rio
de Janeiro, o termo volta a aparecer para
tratar de outras cidades, reais ou ctícias.
Preenchendo a lacuna de 1908, do
Jornal “A Notícia”, abordaremos a referên-
cia de Coelho Neto, mais especicamente
o texto apontado como o que dá origem ao
termo “Cidade Maravilhosa”. Que por seu
turno, dá nome tambéma uma coletânea
de crônicas do autor.
As crônicas atualizando a cidade
Buscamos analisar o texto intitu-
lado “Cidade Maravilhosa”, de autoria de
Coelho Neto, supostamente publicado
no jornal “A Notícia”, em 1908, indicado
em publicações variadas e no senso co-
mum como sendo o autor do título de Ci-
dade Maravilhosa que representa o Rio
de Janeiro.
Primeiramente, damos conta do
formato do texto. Sintomatizando as ten-
dências do período, ousamos considerar
o texto como uma mescla das característi-
cas de um conto e de uma crônica. Como
conto possui narrador, poucos persona-
gens, um evento ápice, se dividendo em
começo, meio e m. Como crônica é uma
narração enxuta e cativante. Identicamos
ainda uma justaposição ou aglutinação
entre o factual e o ccional.O conto se
desenrola ao sabor da cção e a crônica
como descrição de fatos.
O híbrido nos faz recorrer à com-
preensão de que a alteração do ritmo da
cidade modernizada, a mudança da no-
ção e uso do tempo, provocou rebatimen-
tos em todos os aspectos da vida. Nessa
reconguração os periódicos foram os
responsáveis pelas mudanças nas for-
mas escritas,condicionando a produção
ao cotidiano e factual. Em grande me-
dida a crônica se desenvolve como um
formato que adaptava a literatura para
ser ministrada nos periódicos.E embora
pesem críticas ao formato, como uma li-
teratura menor, as crônicas rapidamente
caíram no gosto popular, impulsionando
a tiragem dos periódicos e incitando os
editores a contratar quem fosse capaz de
bem produzir no estilo.
Entre a objetividade jornalística e a
criatividade literária, as crônicas tematiza-
vam a dinâmica cotidiana e as transforma-
ções da vida com entusiasmo, descartan-
do da literatura tradicional os excessos de
estilos de linguagem. Por seu conteúdo,
tinham como função o entretenimento do
público letrado, consumidor de periódicos.
Mas como não há entretenimento inocen-
te, de carona com apura distração estava
a formação da opinião pública,a incitação
do imaginário eo condicionamento a novas
sensibilidades relacionadas à vida urbana,
para dizer o mínimo.
Retomando a argumentação de
que a cidade inspira os escritores e é te-
matizada nos textos do início do séc. XX,
apreendemos a tônica das produções e
expressões sensíveis em repertórios da
66
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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modernidade e das idiossincrasias de um
país periférico. O que em uma compreen-
são dura é reconhecer que, a despeito da
criatividade artística,as narrativas rever-
beravam em uma arena de conitos entre
referenciais tradicionais ou modernos, lo-
cais ou estrangeiros e entre a interioridade
e o racionalismo.
Além dos repertórios de ideais e
imaginários, a atividade dos cronistas deu
nitidez a um movimento paradoxal. Com
efeito, a produção de crônicas na cidade
foi dando lugar à cidade crônica.Descre-
vendo dinâmicas e conferindo caráter à
cidade em sintonia com o imaginário ur-
bano e moderno,as crônicas tornaram as
cidades conhecidas em suas particulari-
dades e afetos. No tocante à Cidade Ma-
ravilhosa, o impulso da imprensa livre e
a proliferação de crônicas tematizando o
urbano e o moderno fez com que o Rio de
Janeiro deixasse de ser o objeto, palco
ou cenário do que se conta e passasse a
ser o sujeito, sendo contada e ganhando
feições e personalidade.
Concluído um preâmbulo, como
um texto de forma literária e intenções
vacilantes encurralamos “A Cidade Mara-
vilhosa” de Coelho Neto, apontado como
origem do termo relacionado ao Rio de
Janeiro. Publicado no “artigo ‘Os sertane-
jos’, na página 03, do jornal ‘A Notícia’,
edição de 29.11.1908” (CAMPOS, 1965,
p. 76), “A Cidade Maravilhosa”, conta a
história de Adriana, uma professora da
povoação em Barretos. Descreve longa-
mente Barretos, como uma povoação cal-
ma, onde se vê poeira e bois passando,
só se ouve o coachar dos sapos, e onde
nada acontece. Adriana encara o dilema
entre se dedicar aos estudos para alçar
boa carreira ou ceder às cobranças do
pai para arranjar um bom casamento.Le-
vando adiante os estudos, Adriana arran-
ja um contato político que lhe agiliza uma
vaga como professora, em um povoado
distante. No povoado em que também
nada acontece, dá aulas e mora em um
quarto de pensão. E um dia, na pensão,
conhece um pintor viajante.
A aparição do pintor é o que dá for-
ça para o desenrolar da história. Na ca-
racterização do personagem que irá trazer
mudanças na história é possível tomar a
prossão de pintor como uma analogia ao
sujeito que cria e reproduz imagens de lu-
gares diferentes, como um elemento que
ui entre mundos, que comporta, reproduz
e cria representações.
Retomando, Adriana e o pintor têm
a oportunidade de se aproximar e conver-
sar. O pintor fala ser do Rio de Janeiro e
seduz a professora interiorana para lá ir
morar com ele, pois na cidade eles pode-
riam ser felizes. E numa noite de maior
entrosamento o pintor a leva pela mão
para a beira de uma estrada, alude para
um fogaréu longínquo e exclama:
- Linda cidade.
- Onde? perguntou Adriana. E ele
apontou o horizonte.
- Ali, pois então? Cidade Maravilho-
sa! Cidade do sonho, cidade do amor.
(NETTO, 1928 ,p.17)
Mas a história não termina na
cena de magia e encantamento. O des-
fecho, de cunho dramático, é o sumiço
do pintor, que deixa Adriana abalada.
Decidida, na companhia de uma amiga
vai até o local apontado pelo pintor.E
de perto se depara tão somente com os
vestígios da queimada que vira encanta-
da ao longe. Assombrada pela memória
da noite de magia e sedução, se põe a
chorar, sendo confortada pela amiga que
a leva de volta para casa.
Uma possível compreensão da crô-
nica de Coelho Neto está baseada na du-
alidade entre a real cidade do interior e a
cidade do sonho. O pintor é quem seduz
Adriana e incita seu imaginário apontando
67
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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para um fogaréu e verbalizando a Cidade
Maravilhosa. Em termos precisos, o local
apontado era uma alusão à Cidade Mara-
vilhosa e em tempo algum o Rio de Janei-
ro foi descrito como Cidade Maravilhosa.
O fato é que a cidade do Rio de Janeiro
passou a ser compreendida como a tal
“Cidade Maravilhosa”.
A ausência de relação entre a Ci-
dade Maravilhosa e o Rio de Janeiro na
crônica de Coelho Neto nos abre um mun-
do de dúvidas. Com usos anteriores e
posteriores, designando o Rio de Janeiro,
outras cidade e cidades ctícias, porquê
a autoria do termo Cidade Maravilhosa foi
conferida a Coelho Neto? Como o termo
tornou-se usual? Porquê o termo Cidade
Maravilhosa na crônica homônima, não
sendo inédito sequer nos textos do autor
VI
,
foi associada ao Rio de Janeiro? Tentando
iluminar essas e outras questões, aborda-
mos como indiciária a inscrição de Coelho
Neto em seu tempo.
As crônicas parnasianas de Hen-
rique Maximiliano Coelho Neto eram ca-
racterizadas pela pompa e formalismo,
sem regular artifícios retóricos. Inspirado
no consagrado estilo literário francês, o
escritor adaptava as paisagens a textos,
primando por elementos como a poesia,
ritmo, harmonia e beleza. Em “A Cidade
Maravilhosa” descreve Barretos como uma
povoação triste, de casas espaças, cujos
ruídos eram o de sapos, grilos e mugidos,
pintando uma paisagem na qual, em suas
palavras, os sonhos eram desfeitos. Já a
Cidade Maravilhosa era sugerida em opo-
sição a Barretos, a cargo do imaginário.
A obra de Coelho Neto era sabore-
ada e exaltada pelos ávidos e requintados
leitores da na or da sociedade carioca.
Escusado dizer que este apreço não era
dos mais abrangentes, e pertinente lem-
brar que o período era marcado por ten-
sões políticas que reverberavam no plano
cultural. Como já assinalado, de um lado
ideais inspirados na arte clássica e con-
servadora, e de outro lado ideais de rup-
turas artísticas que ertavam com a valori-
zação de uma identidade nacional.
Como capital da República, o Rio
de Janeiro era tanto o palco quanto o
elemento privilegiado para as disputas
políticas e culturais protagonizadas por
conservadores e modernistas. E pela jun-
ção de elementos e dinâmica do contex-
to é de se intuir que Coelho Neto tenha
se tornado um dos alvos para críticas.
Pelos hábitos que cultivava, conteúdo e
forma do que produzia e público ao qual
se destinava, pesavam-lhe as acusações
de que seu trabalho era tão casado com
o estilo que se divorciava da literatura
como elemento de transformação social,
uma vez que todo capricho na forma não
incorporava como questão o político, o
social ou o moral.
Apesar das críticas ao posiciona-
mento do autor em relação a um movi-
mento cultural, que deu origem a Semana
de Arte Moderna, é necessário incorpo-
rar mais conteúdos para complexicar a
questão. Anal, Coelho Neto foi um pro-
ssional que reagiu, a seu modo e dentro
de seus limites, contra a produção literária
engessada em crônicas. Por seu gosto,
cultuava a forma parnasiana, valorizava
a imaginação em detrimento da observa-
ção do cotidiano. Produzia textos longos,
salpicados de termos raros. Sobre a forma
do seu texto, diziam ser enfadonha, acu-
savam faltar trivialidade em sua inspiração
e atacavam o excesso de termos pouco
usuais como um exibicionismo intelectual.
A despeito do posicionamento e
comprometimento literário, a necessidade
de prover recursos parece ter falado mais
alto que o idealismo. Coelho Neto passou
a escrever crônicas, mas não sem nelas
marcar algum teor romântico ou naturalis-
ta, conforme mencionados em “A Cidade
Maravilhosa”. E dando ouvidos às vozes
68
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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em defesa do autor, Fountoura (1944) ar-
ma que “Eu prero ver nêle um puro ide-
alista que deveria ter vivido numa época
em que o Estado alimentasse os gênios,
como Deus alimenta os pássaros para
que cantem sem a miséria das contas a
pagar.” (FONTOURA, 1944, p.124).
Anal, quem criou a cidade maravilhosa?
Sem denir uma origem e autoria,
nos resta elaborar proposições sobre o
emprego do termo relacionado ao Rio de
Janeiro, nos questionando sobre sua ade-
são pela população e sua ecácia simbóli-
ca. Optamos por compreensões do termo
como uma construção entre o inconscien-
te coletivo e a representação social.
Lapidando os conceitos, ambos
têm uma matriz na psicanalítica, no en-
tanto o inconsciente coletivo tem uma
abrangência universal e a representação
social se congura mais local e cultural-
mente, dando suporte para estudos co-
municacionais.
O conceito de inconsciente coletivo
parte da análise de sonhos e interpreta-
ção dos símbolos oníricos. Desenvolvida
por Jung (1964), a abordagem tinha como
nalidade desvendar a comunicação entre
o consciente e o inconsciente. Analisan-
do delírios e alucinações de psicóticos,
Jung (1964) percebeu que havia imagens
padrões relacionadas a mitos, lendas,
contos e demais manifestações que não
tinham origem nas percepções, memórias
ou experiências conscientes. E chamou
de imagens primordiais as recorrências
de modos universais de experiência e de
comportamento. Tal psique partilhada é a
compreensão do inconsciente coletivo.
As representações sociais, por seu
turno, se realizam nas relações mediadas
pela linguagem, como fruto da união entre
a cultura e a comunicação. A ocorrência se
dá em um contexto social, determinação
espaço temporal, e ganha impulso ampa-
rada por suportes técnicos. Os conteúdos
do inconsciente coletivo são apropriados,
reelaborados e disseminados por institui-
ções e indivíduos.
Conforme descreve Moscovici
(1981) “As representações sociais dizem
respeito a “um conjunto de conceitos,
armações e explicações originados no
cotidiano, no desenrolar de combinações
interindividuais”. Em outros termos, é o
dizer sobre algo que adquire importância
para uma dada coletividade. E por ser e
estar para as interações e a coletivo, às
representações sociais não cabem autoria
ou propriedade, posto que são essencial-
mente susceptíveis de transformações na
medida do compartilhamento.
Considerações sobre a cidade maravilhosa
Encaminhado algumas conside-
rações a partir da busca pela origem do
termo Cidade Maravilhosa em expressões
literárias no período institucional do Rio de
Janeiro como capital da república, a par-
tir de dois possíveis autores, Jane Catulle
e Coelho Neto, e o levantamento em dois
importantes periódicos, entre os anos de
1900 e 1910, frisamos alguns pontos.
Primeiramente, não podemos de-
dicar à Jeane Catulle a autoria do ter-
mo. Antes da visita da poetiza o termo
já figurava nos periódicos para se refe-
rir ao Rio de Janeiro, a outras cidades
modernizadas e até a cidades fictícias.
Não seria improvável que o termo figu-
rasse em conversas ilustradas ou frívo-
las. E sem nenhum demérito à obra da
autora, os elementos escolhidos para
descrever a cidade na poesia eram pró-
ximos aos usados nos textos dos perió-
dicos para falar de uma cidade qualquer
ou do Rio de Janeiro.Que por seu turno,
eram mais de uma ordem natural, místi-
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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ca ou de afetos do que propriamente do
urbano construído.
Uma segunda observação se vol-
ta justamente para o que é descrito sobre
uma cidade e o que é descrito sobre o Rio
de Janeiro. Seja a cidade o que for, ela se
torna o que dela é narrado. E por conta
das narrativas não é preciso ir a Londres
para imaginar o Big Ben, o tâmisa e um
dia cinza. Não é preciso conhecer Paris
para saber da Torre Eiffel. Veneza não é
Veneza sem uma feira e um passeio de
gôndola. E nesses recortes narrativos,
nesses roteiros imagéticos, o Rio de Ja-
neiro estava sendo construído. E a cons-
trução narrativa do Rio de Janeiro induz
um retorno ao motivo edênico, fazendo,
no entanto, o maravilhamento escoar de
um mundo distante e desconhecido para o
mundo conhecido e próximo.
Atentamos ainda para o termo “Ci-
dade Maravilhosa” sendo acionado em
um contexto de pelejas políticas e pujan-
ça cultural, vide a articulação entre a arte
pela arte ou a arte engajada
VII
. Nele a ci-
dade é tanto um palco quanto um objeto.
Um palco por ser o espaço privilegiado
para encenações, onde a diversidade de
narrativas ganha visibilidade e as dispu-
tas acontecem. E um objeto na medida
em que é incorporada pelas narrativas,
sendo pensada, elogiada, criticada, pro-
jetada e poetizada.
Pela quantidade e variações das
aparições do termo abdicamos da tare-
fa de especicar uma origem ou autoria.
Pois, conforme vericamos, a primeira
aparição do termo relacionado ao Rio de
Janeiro, nos versos de uma paródia à vigi-
lância do poder público, não fez com que
dali em diante ele identicasse exclusiva-
mente o Rio de Janeiro. E mesmo a apari-
ção do termo nas crônicas de Coelho Neto
estão mais para uma constituição ccional
de uma cidade do que para a descrição ou
elogio à cidade do Rio de Janeiro.
Sobre a inserção do referido es-
critor, sinalizado como um provável autor
do termo Cidade Maravilhosa, insinuamos
uma escrita apegada ao período colonial,
em uma orientação clássica, entre a par-
nasiana e o naturalismo. Porém, pressio-
nada pelo teor mais dinâmico e factual,
compassada com a república, a objetivi-
dade cientíca e o ritmo da modernidade
enxertados nas crônicas.
Factual, crítica, elogiosa, poética
ou ccional, as narrativas conuíram para
um só movimento: o de dar legibilidade
ao Rio de Janeiro como ambiente urbano.
Assim como metáfora de Ítalo Calvino, so-
bre o cristal e a chama, no limiar do drama
urbano, em que “a tensão entre a raciona-
lidade geométrica e emaranhado de exis-
tências humanas” (CALVINO, 1997, p.85),
temos narrativas sensíveis da cidade ver-
sus a ciência do urbano.
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crônicas dos anos 20. Rio de Janeiro: Ed. Rio
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Recebido em 22/02/2017
Aprovado em 15/03/2017
I Priscilla Oliveira Xavier. Doutoranda do Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Contato: pris-
cillaxavier@gmail.com
II A obra faz parte da Coleção Metrópoles, da Edito-
ra Record. O autor, convidado a falar sobre sua cida-
de, examina o Rio de Janeiro como lugar, memória,
representação, sonho e projeto global no imaginário
nacional e local.
III Em uma tradução nada rigorosa, sobretudo por con-
ta do teor poético e expressões da época, é notável
os rasgados elogios em êxtase com a cidade, desta-
cando elementos da natureza: “Nunca tanto esplendor
deslumbrou os olhos! / Esta é a terra de toda a luz, /
Esta é a terra da beleza plenária / Belezas terrestres e
belezas do céu.
IV Uma parte do telhado que no período era frequente-
mente destinada aos criados.
V Coelho Neto publicou o “artigo ‘Os sertanejos’, na
página 03, do jornal ‘A Notícia’, edição de 29.11.1908”
(CAMPOS, 1965, p. 76). A informação circula e chegou
a ser usada na página pessoal do prefeito Eduardo Paes
até 2014. No entendo, a página e seu conteúdo foram
retirados do ar. Embora seja possível ver um link com
a informação em um prole em homenagem a Coelho
Neto no Facebook em https://www.facebook.com/fami-
liacoelhonetto/. Acesso em: 17 Set. 2016, na postagem
cujo título é “Há 105 anos, Rio era chamado de Cidade
Maravilhosa pela 1ª vez / Eduardo Paes, prefeito do Rio”.
VI Conforme já abordamos, no texto de cção “Mistério
do Natal” (O Paiz, Rio de Janeiro, p.1, 14 Dez. 1904),
Coelho Neto usara o termo Cidade Maravilhosa.
VII A arte e a cultura foram campos férteis para equalizar
críticas e propostas para ressignicar e impulsionar um
país que engrenava na república e ensaiava um urbano
moderno em um espaço exemplar limitado, insuciente
para redimir as muitas faltas do país. A potência da arte
e da cultura na capital se alastrou, ligando artistas de
diferentes estados em um movimento de ruptura com
os conceitos clássicos europeizados e adesão a ideias,
elementos, técnicas e sensibilidades em referência ao
nacional. E o projeto de uma cultura autenticamente bra-
sileira culminou na Semana de Arte Moderna, em 1922.
71
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Práticas de leitura na contemporaneidade:
experiências em bibliotecas na cidade do rio de janeiro
Prácticas de lectura en la contemporaneidad:
experiencias en bibliotecas de la ciudad de Rio de Janeiro
Reading practices in contemporaneity:
libraries’ experiences in the city of Rio de Janeiro
Marisa Schincariol de Mello
I
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo principal apresentar uma investigação
acerca das múltiplas práticas de leitura em bibliotecas localizadas na
cidade do Rio de Janeiro. Para a realização deste estudo, buscamos
delimitar o universo de frequentadores, suas práticas de leitura na
biblioteca, os mediadores entre os textos, sons, imagens e a leitura, bem
como as relações entre os espaços das bibliotecas e os territórios onde
estão inseridos. Investiga-se ainda qual a importância e a função da
leitura para os que a praticam, nos níveis objetivo, subjetivo, simbólico
e imaginário. Através de entrevistas e da observação participante,
procuramos trazer à tona a relação dos usuários com os livros, outros
conteúdos, mídias e suportes. Cada vez mais, observamos práticas
que combinam leitura, oralidade e escrita em um cenário transmidiático.
Com os resultados, procura-se também contribuir com informações
sobre a experiência dos usuários para a formulação e avaliação das
políticas públicas de leitura e aquelas voltadas para as bibliotecas.
Palavras chave:
Rio de Janeiro
Bibliotecas
Práticas de leitura
Leitura do mundo
Experiências
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El presente artículo tiene por objetivo principal presentar una
investigación acerca de las múltiples prácticas de lectura en
bibliotecas ubicadas en la ciudad de Rio de Janeiro. Para la
realización de este estudio, buscamos delimitar el universo de sus
frecuentadores, sus prácticas en la biblioteca, los mediadores entre
los textos, sonidos, imágenes y la lectura, además de las relaciones
entre los espacios de las bibliotecas y los territorios que las abarcan.
Investigamos además cual es la importancia y función de la lectura
para sus practicantes, en los niveles objetivo, subjetivo, simbólico e
imaginario. A través de entrevistas y de la observación participante,
buscamos recuperar la relación del público con los libros y otras
formas de lectura del mundo, a través de otros suportes, como el
audiovisual, la música, etc. Cada vez más, observamos prácticas que
combinan lectura, oralidad y escrita en un escenario transmediático.
A partir de los resultados se pretende contribuir para la formulación y
evaluación de las políticas públicas de lectura y bibliotecas.
Abstract:
The major purpose of this article is to present a research on the
multiple reading practices in libraries in the city of Rio de Janeiro.
We attempted, rstly, to dene the universe of its users, their reading
practices at the library, the mediators between the texts, sounds,
images and reading, as well as the relationships between the libraries´
venues and the territory in which they are set in. It is also analyzed what
is the importance and function of the reading for those who practice
it, in objective, subjective, symbolic and imaginary levels. Through
interviews and participant observation, we tried to highlight the users´
relationship with books, other contents, medias and formats. We
increasingly observe practices that combine reading, orality and writing
in a transmedia scenery. Thus, we hope to contribute with information
on the experience of the users for the formulation and evaluation of
public reading and libraries´ policies.
Palabras clave:
Rio de Janeiro
Bibliotecas
Prácticas de lectura
Lectura de mundo
Experiencias
Keywords:
Rio de Janeiro
Libraries
Reading practices
Reading the world
Experiences
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Práticas de leitura na
contemporaneidade:
experiências em bibliotecas na cidade
do Rio de Janeiro
O Segundo Chartier (1998), a his-
tória das “possibilidades de ler” não trata
apenas de uma habilidade, mas da ativa
elaboração de signicados dentro de um
sistema de comunicação. A leitura não é
um ato natural ou passivo de sujeição ao
texto, mas se congura como um proces-
so cognitivo, semiológico, culturalmente
demarcado, social e histórico de caráter
complexo e interativo entre a mensagem
e o conhecimento; uma prática de reapro-
priação e de recriação do mundo através
da interpretação. O comportamento leitor
determina a força motivadora das práticas
de leitura, que é inuenciada pelos contex-
tos socioeconômicos e pelas competências
leitoras, compostas por diversas formas de
combinação possíveis entre leitura, ora-
lidade e escrita (METODOLOGIA, 2015;
CHARTIER, 2011; ZILBERMAN, s.d.).
Nas páginas que se seguem, pro-
curamos observar, auscultar e reetir so-
bre as práticas de leitura e as relações
entre a cultura e as territorialidades, es-
pecialmente a partir das bibliotecas. A
metodologia adotada buscou aproximar-
-se do tema por vias diversas, desde o
levantamento das políticas e dados ge-
rais existentes sobre leitura, com análise
de bibliograa pertinente ao tema, até o
estudo de caso comparativo entre duas
bibliotecas, através da observação par-
ticipante e da realização de entrevistas
com usuários, funcionários e gestores.
Mediações da leitura
Ao buscar delimitar o sujeito ocul-
to que lê, nos deparamos primeiramente
com os meios de comunicação, quer se-
jam escritos, como livros, jornais e revis-
tas; audiovisuais, como a televisão e o ci-
nema; sonoros, como o rádio e o telefone;
e hipermídia, como a internet. Seguindo
a proposição de Jesús Martín-Barbero
(2009) em tentar ir além dos meios, bus-
camos principalmente identicar as me-
diações, aqui entendidas como o contexto
onde a prática da leitura acontece.
A prática da leitura que ocorre em
casa, em geral a partir das famílias, se-
ria muito difícil de delinear. Dessa manei-
ra, para traçar um quadro mais geral da
leitura no Brasil, utilizamos as pesquisas
de indicadores. O Instituto Pró-Livro pro-
moveu quatro edições, nos anos de 2000,
2007, 2011 e 2015, de uma pesquisa inti-
tulada Retratos da Leitura no Brasil, sendo
o primeiro levantamento mais abrangente
realizado sobre o assunto no país.
II
A pesquisa Retratos da Leitura
no Brasil de 2016 aponta os principais
locais onde as pessoas leem: em casa
(81%), na sala de aula (25%) e na bi-
blioteca (29%) – sendo que 14% leem
em bibliotecas escolares ou da faculda-
de, enquanto apenas 8% em bibliotecas
públicas. Há ainda outras modalidades
de leitura que são cada vez mais fre-
quentes, como a leitura em trânsito,
que geralmente ocorre no trajeto casa-
-trabalho-casa (11% declararam ler no
transporte público ou no avião).
III
Como
mapear esses contextos?
Em relação à quantidade de livros
lidos por ano, segundo a Pesquisa, en-
tre todos os entrevistados, a média era
de 1,8 em 2000 (26 milhões de leitores);
4,7 em 2007 (66,5 milhões de leitores);
4,0 em 2011 (71,9 milhões de leitores); e
4,96 em 2015.
IV
Os resultados gerais da
pesquisa em 2011 revelaram uma enor-
me concentração: 66% dos livros estão
nas mãos de apenas 20% da população
(FAILLA, 2012).
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A última edição da pesquisa clas-
sicou como não leitores aqueles que
não leram um livro, inteiro ou em parte,
nos três meses anteriores à pesquisa e
eles representaram um total de 44% da
amostra. Desses, apenas 9% dos entre-
vistados disseram ter diculdade para a
leitura, o que revela também a falta de
estímulo à prática. As razões alegadas
por muitos entrevistados dessa catego-
ria foram falta de tempo (32%), desinte-
resse (28%), falta de paciência (13%) e
preferência por outras atividades (10%).
Entre todos os entrevistados, são con-
siderados não alfabetizados um total de
8% da amostra, enquanto 21% têm até
a 4ª série, faixa em que as práticas de
leitura ainda não estão consolidadas. A
maior parcela de não leitores está entre
os adultos idosos (representando 73%
dos entrevistados nessa categoria) e
mais pobres.
V
A pesquisa demonstrou
que a porcentagem de leitores aumen-
ta signicativamente nas categorias com
maior renda familiar, enquanto a porcen-
tagem de não leitores diminui. Isso leva
à conclusão de que o poder aquisitivo é
signicativo para a constituição de leito-
res assíduos.
VI
A classicação do leitor como
aquele que leu um livro inteiro ou em par-
tes nos últimos três meses, no entanto,
é insuciente para dar conta das práticas
de leitura, que estão cada vez mais di-
versicadas e fragmentadas em modali-
dades, linguagens, suportes e janelas.
A partir da pesquisa realizada e dos de-
bates recentes sobre as transformações
no campo da leitura (METODOLOGIA,
2015), identicamos uma faixa grande
intermediária entre os/as leitores/as assí-
duos/as e os analfabetos funcionais, que
não consegue reconhecer determinadas
práticas que as pesquisas quantitativas
não conseguem alcançar. É muito difícil
determinar onde começa e onde termina
uma experiência de leitura. Aqui, dessa
maneira, partimos de um conceito am-
pliado de leitura, considerando, a partir
dos preceitos de Paulo Freire, que a leitu-
ra do mundo precede a leitura da palavra,
valorizando as práticas que contribuem
para dar sentido à vida daqueles que as
praticam e não apenas as que se referem
à leitura de textos e livros.
Um dos dados que chama aten-
ção na pesquisa Retratos da Leitura de
2015 é que, se somados, 50% dos cerca
de 5 mil entrevistados indicaram o em-
préstimo, com parentes, conhecidos ou
em bibliotecas, como o principal meio
de acesso ao livro. Portanto, meios não
mercantis de acesso ao livro.
VII
A signi-
cativa incidência da obtenção de livros
por meios não comerciais revela uma
modalidade de transação em que as edi-
toras não penetram, mas que são de im-
portância fundamental para a leitura no
país. Os circuitos de empréstimos tan-
to pessoais quanto de bibliotecas, bem
como a reciclagem de livros usados no
mercado secundário, constituem áreas
de pesquisa que merecem ser desenvol-
vidas (FAILLA, 2012).
Já no que se refere às bibliote-
cas, 66% dos entrevistados não as fre-
quentam. Apenas 20% as frequentam
com alguma regularidade, dos quais
47% são estudantes.
VIII
A população que
não frequenta as bibliotecas públicas
tem como principal argumento a falta de
tempo, a distância e a falta de interes-
se pela leitura e por frequentar esse tipo
de equipamento. Ao mesmo tempo, são
os equipamentos culturais mais existen-
tes nos municípios brasileiros. Isso abre
uma possibilidade para os espaços das
bibliotecas se reinventarem, ampliarem
suas funções e suportes de leitura para
encantarem um número maior de usuá-
rios. O que na prática não acontece. O
primeiro Censo Nacional de Bibliotecas
Públicas Municipais, realizado em 2009 e
publicado em 2010, apontou um número
insuciente de bibliotecas por habitante,
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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além da precariedade da infraestrutura
das existentes; acervos limitados e de-
satualizados; falta de acesso ao univer-
so digital; baixa frequência; limitação do
uso da biblioteca para obrigações esco-
lares; entre outras questões (MARQUES
NETO, 2015, p. 131).
Além dessas pesquisas quantita-
tivas e nanciadas pela indústria do li-
vro, é importante realizar análises que
levem em conta o contexto complexo e
dinâmico em que as práticas de leitura
acontecem na contemporaneidade; o
que motivou essa pesquisa em bibliote-
cas. A leitura não é um ato passivo de
sujeição aos textos e conteúdos, ou uma
prática homogênea, desde a quantidade
e frequência, passando pelos suportes,
gêneros literários e o tipo de experiên-
cia que proporciona. Ou seja, até chegar
ao receptor, a mensagem passa por me-
diações diversas, conforme a organiza-
ção da sociedade. O uso ou a recepção
dos produtos também varia conforme o
contexto em que se insere. Os mesmos
conteúdos são objeto de diferentes usos
e investimentos sociais, às vezes de ca-
ráter oposto e contraditório (LAHIRE,
2004). As razões alegadas pelos que
leem também são variadas. A pesquisa
qualitativa acrescenta dados, questio-
na princípios, metodologias, e oferece
a oportunidade de enriquecer os dados
com a experiência e os referentes dos
envolvidos nesse processo.
A escola constitui-se em um espa-
ço fundamental de aprendizagem, valori-
zação e consolidação da leitura, coope-
rando com o processo de legitimação da
literatura e da escrita. Sua história ao lon-
go do século XX compreende diferentes
losoas educacionais, concepções relati-
vas aos processos de ensino e modos de
organização do aparelho pedagógico. Nos
últimos vinte anos, o tema do fomento à
leitura na escola vem sendo estudado sis-
tematicamente, e o resultado aponta para
um fracasso relativo às políticas de inser-
ção da prática no ambiente escolar.
Regina Zilberman (s.d.) chama a
atenção para o fato de que a leitura como
prática, nas suas várias acepções, em
nossa sociedade ainda é hegemonica-
mente um “produto da escola e critério
para ingresso e participação do indivíduo
na sociedade” e responsável “por distin-
guir o homem alfabetizado e culto do anal-
fabeto e ignorante”. Ao mesmo tempo,
afastou o homem comum da cultura oral.
“Nesse sentido, cooperou para acentuar a
clivagem social, sem, contudo, revelar a
natureza de sua ação, pois colocava o ato
de ler como um ideal a perseguir.”
IX
A abordagem acadêmica da lei-
tura vincula-se aos interesses das clas-
ses dominantes, e é derivada de uma
denição especíca de homem letrado,
de padrões elevados e renados, mais
vinculados aos padrões estéticos domi-
nantes. Para Donaldo Macedo, quando
o ensino e o desenvolvimento da leitura
funcionam como mera decodicação do
código escrito, centrado na produção de
leitores que respondam apenas a requi-
sitos básicos para atender aos anseios
da sociedade contemporânea, sem pre-
ocupação em transformá-la, trata-se de
uma perspectiva utilitarista da leitura. A
perspectiva da leitura do ponto de vista
cognitivo dá destaque à construção de
signicados a partir da dialética do indi-
víduo com seu mundo objetivo. Segundo
Freire, deve-se partir da palavra mundo
e do mundo que se pode criar a partir
dela, ao invés de apenas decodicar as
palavras (FREIRE; MACEDO, 2013).
Não cabe aqui desenvolver o de-
bate sobre a prática pedagógica, pois se-
ria assunto para outro estudo, mas a es-
cola enquanto espaço de sociabilidade e
mediação tem centralidade na construção
de sujeitos históricos críticos e atuantes.
A leitura é uma, claro que não a única,
76
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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das maneiras de construir o conhecimen-
to em diálogo com a realidade concreta.
Fica latente no debate sobre a leitura na
escola que, muitas vezes, foi destituído
o caráter de entretenimento da atividade,
desvinculando a prática do prazer e do
estímulo à imaginação.
Quando se torna a via principal e
muitas vezes exclusiva de acesso à lei-
tura, o sistema escolar destitui o lugar
do livro como um guia, “um texto ao qual
se pergunta a arte de viver”. Segundo
Bourdieu, um dos efeitos do contato mé-
dio com a literatura erudita via escola é
o de destruir a experiência popular, des-
pojando as pessoas de sua própria ex-
periência, uma vez que elas se afastam
de seus contextos e modos próprios de
usar os textos, e os aproximam do que
deniram que merece ser lido, ou seja,
os bons livros; e do bom modo de apro-
priação, ou como aquele livro deve ser
lido. O cidadão médio encontra-se “en-
tre duas culturas, uma cultura originária
abolida e outra erudita que se frequen-
tou o suciente para não poder mais fa-
lar da chuva e do bom tempo, para sa-
ber tudo o que não se deve dizer, sem
ter mais nada para dizer” (BOURDIEU;
CHARTIER, 2011, p. 241).
Cabe destacar que, além da esco-
la, existem outras formas de letramento
relacionadas às práticas culturais do co-
tidiano, contrariando a ideologia domi-
nante acima mencionada. O conceito de
letramento permite compreender os usos
sociais da escrita e da leitura sob uma
perspectiva mais ampla que a escolar e
formal da alfabetização. Adriana Facina
vem investigando como as práticas de
letramento se estabelecem nos espaços
populares, como as favelas cariocas. Se-
gundo a pesquisadora,
[...] o cotidiano da favela é marcado
por uma série de atividades culturais,
tais como escolas de samba, grupos
de hip-hop, bailes funk, quadrilhas
de festa junina, grupos de dança e
teatro, grate, ocinas de fotogra-
a, poesia etc. Nessas iniciativas
encontramos diversas práticas de
letramento, ou seja, é possível com-
preender os múltiplos sentidos atri-
buídos à linguagem, aos diferentes
modos de ler, escrever e falar que
caracterizam as histórias e trajetó-
rias desses grupos.
X
A leitura não é a atividade cultural
mais praticada pelos brasileiros e brasi-
leiras, que, em seu tempo livre, dedicam-
-se em primeiro lugar a ver televisão.
Escutar música ou rádio vem em 2º lu-
gar, usar a internet em 3º, reunir-se com
amigos ou família em 4º, assistir a lmes
em 5º, usar o WhatsApp em 6º e escre-
ver em 7º lugar. Usar Facebook, Twitter
ou Instagram aparece em 8º lugar. Ler
ocupa a 9ª posição.
XI
Esse dado reforça
que, em toda a segunda metade do sécu-
lo XX, foi acentuando-se o lugar ocupado
pelos meios de comunicação de massa
na vida social, que acabam por se tornar
o espaço-chave da socialização, muitas
vezes mais que a família e as escolas.
Os meios de comunicação de
massa desenvolveram-se no Brasil a
partir dos anos 1920, primeiramente com
o rádio, que ampliou sua audiência ao
longo da década seguinte, com os pro-
gramas de auditório, músicas variadas
e a radionovela. Quanto ao cinema, nas
décadas de 1930 e 1940, já havia nos
Estados Unidos, por ocasião do desen-
volvimento da indústria cinematográca
de Hollywood, a relação entre o livro na
lista dos best-sellers e a possibilidade de
este virar lme, por exemplo. No Brasil,
as adaptações das obras literárias, espe-
cialmente para o cinema e a televisão,
ocorreram principalmente a partir da
década de 1960. E foram fundamentais
para ampliar os leitores, que se interes-
sam pelos livros após as adaptações.
XII
77
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Nos anos 1950, a TV desenvolve-
-se e a partir de então ocupa um lugar
cada vez maior na vida do brasileiro. O
que melhor caracteriza o advento e a con-
solidação da indústria cultural no Brasil
é o desenvolvimento da TV, e a maioria
das produções de nossa indústria cultural
giram em torno dela (ORTIZ, 2006). Nos
termos de Renato Ortiz, referindo-se ao
livro Dos meios às mediações, de Jesús
Martín-Barbero:
Numa terra de indígenas, negros,
imigrantes e mestiços, governada
por interesses oligárquicos, cabe-
rá aos meios de comunicação um
papel preponderante de “mediador
cultural”, isto é, de atuação neste
processo de formação nacional.
Processo que não se restringe a
este ou aquele país. […] é na ver-
dade parte de um traço mais geral
de um conjunto de sociedades lati-
no-americanas.
XIII
Até 1960, apenas doze cidades
brasileiras possuíam emissoras televisi-
vas. No nal da década de 1980, a Rede
Globo já estava presente em 98% dos mu-
nicípios brasileiros e com o total de sua
programação transmitida em cores.
Ao analisar a cultura de massa,
Jesús Martín-Barbero procura superar
duas leituras predominantes: a primeira,
hegemônica nas escolas de comunica-
ção, reduz a comunicação a um proble-
ma dos meios, e se abstém de analisar
outros aspectos da realidade social. A
segunda relaciona a cultura de massa ao
problema da degradação da cultura, que
se torna um todo homogêneo envolven-
do indivíduos, classes e grupos sociais.
Para o autor, o massivo encontra-se li-
gado ao longo e lento processo de “ges-
tação do mercado, do Estado e das cul-
turas nacionais”, e aos “dispositivos que
nesse processo zeram a memória popu-
lar tornar-se cúmplice com o imaginário
de massa”. Para ele, “a cultura de massa
é a primeira a possibilitar a comunicação
entre os diferentes estratos da sociedade
[...] enquanto o livro manteve e até refor-
çou durante muito tempo a segregação
cultural entre as classes”. (MARTÍN-BAR-
BERO, 2009, p. 132).
Martín-Barbero contribuiu para
os estudos de recepção, principalmente
das mensagens veiculadas pelos meios
de comunicação de massa, por meio de
sua teoria das mediações culturais, em
que a abordagem do contexto se torna
fundamental para a compreensão dos
múltiplos dispositivos socioculturais que
envolvem a emissão e a recepção das
mensagens. A recepção midiática, para
Martín-Barbero, é um processo de in-
teração em que o receptor interpreta
a mensagem a partir de seu repertório
sociocultural. Assim, o eixo do debate,
segundo o pesquisador, deve se deslo-
car dos meios para as mediações, isto
é, para as articulações entre práticas
de comunicação e movimentos sociais,
para as diferentes temporalidades e para
a pluralidade de referências culturais.
Para Silviano Santiago, os críticos
modernistas distinguiram a produção cul-
tural entre o espetáculo, manifestação le-
gítima e autêntica da cultura, e o simula-
cro, entretenimento da indústria cultural e
a parte diabólica do sistema. O espetáculo
levaria à reexão, e o simulacro apenas
serviria para matar o tempo. O grande ini-
migo a ser combatido por educadores e
intelectuais seriam os meios de comunica-
ção de massa, e os principais valores a
serem preservados seriam os da arte e da
literatura eruditas (SANTIAGO, 2004, p.
130). Entretanto, no mundo contemporâ-
neo, abre-se a possibilidade de aprimora-
mento do ato da leitura, que transcende a
experiência da escrita fonética e adentra o
mundo das imagens e da oralidade. A ex-
pansão da mídia colocou em diálogo e em
tensão práticas culturais diferenciadas.
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Bibliotecas: usuários e usos
As bibliotecas constituem um es-
paço importante de mediação entre os
sujeitos e o mundo da leitura. O objetivo
inicial da pesquisa foi realizar um estu-
do comparativo das práticas de leitura
em duas bibliotecas, e a escolha levou
em consideração a localização de am-
bas. Tanto a Biblioteca Parque Estadual
quanto a Biblioteca Estação Leitura es-
tão situadas na região da Central do Bra-
sil, que aglutina diversas modalidades
de transporte público na cidade, perto
da Saara, dedicada ao comércio popu-
lar, local de grande circulação de traba-
lhadores e trabalhadoras, pessoas em
situação de rua, estudantes, crianças,
criadores, constituindo territorialidades.
Segundo Haesbaert, além da dimensão
política, a territorialidade diz respeito
também às relações econômicas e cultu-
rais; ou seja, como as pessoas utilizam
o espaço, se organizam a partir dele e
como dão signicado a ele. “Todo terri-
tório é, ao mesmo tempo, e em diferen-
tes combinações, funcional e simbólico”
(HAESBAERT, 2004, p. 3).
O segundo elemento foram os
usuários das bibliotecas. Ao observá-los,
procuramos informar sobre as práticas de
leitura das classes trabalhadoras, caso se
comprovasse que a maioria dos usuários
das bibliotecas fossem oriundos das clas-
ses médias e das camadas mais desfavo-
recidas economicamente, o que se conr-
mou a partir da pesquisa.
A primeira biblioteca estudada foi
a Biblioteca Estação Leitura, localizada
no interior da estação de metrô da Cen-
tral do Brasil, que faz integração entre as
linhas do metrô, o trem e um terminal de
ônibus, com a circulação de mais de 100
mil trabalhadoras/es por dia somente na
estação do metrô. A localização a colo-
ca como incentivadora de uma modali-
dade cada vez mais comum de leitura,
que ocorre no traslado entre a casa e o
trabalho, cujos suportes mais frequentes
são o celular, tablet, periódicos e livros.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exem-
plo, as/os trabalhadoras/es demoram em
média três horas por dia no transporte
público, onde se pode observar muitos
usuários lendo, trocando mensagens ou
jogando no celular.
Foram realizadas 68 entrevistas
semiestruturadas com seus usuários da
Estação. Conforme informou a Bibliote-
ca, o número de frequentadores mulhe-
res é maior que o de homens, e esse
dado foi corroborado pelas entrevistas.
Quanto à idade, identicamos uma gran-
de diversidade; porém, a maioria está
na faixa de 41 a 50 anos ou cima de 60
anos. A escolaridade dos usuários em
sua maioria foi na rede pública de ensi-
no e alcança, no mínimo, o ensino médio
completo. A renda familiar de até cinco
salários mínimos corresponde a 47 dos
68 entrevistados, e apenas 3 usuários
armaram ter renda familiar acima de 10
salários mínimos.
XIV
Todos os usuários entrevistados
armaram acessar a biblioteca pelo me-
nos uma vez por mês, e a maioria ar-
ma não acessar outras bibliotecas. Mais
de 70% dos entrevistados armam gos-
tar muito de ler e indicam essa como a
prática cultural que mais realizam em seu
tempo livre, por iniciativa própria. Outras
atividades citadas, em menor proporção,
foram passear/sair; ir ao cinema; ou-
vir música; praticar atividades físicas; ir
ao teatro; ver lme; viajar; ver TV; estar
com a família; computador; dançar; praia/
piscina; namorar. A maioria dos entrevis-
tados leem mais de 10 livros por ano e
armaram estar lendo um livro no mo-
mento da entrevista. Os frequentadores
da biblioteca preferem os livros de cção
e os romances. Trata-se de um grupo de
leitores que declarou estar ampliando
sua capacidade de leitura conforme vem
79
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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frequentando regularmente a biblioteca.
Os maiores inuenciadores da prática,
segundo as declarações, foram mãe, pai
e outros familiares; a iniciativa própria; e
apenas 10% da amostragem armaram
ser a escola. Sessenta por cento dos en-
trevistados acessam a internet todos os
dias, a maioria para pesquisa pessoal;
em seguida, aparece o acesso com o m
de estabelecer contatos sociais; seguido
pelo uso prossional e para o estudo.
A Estação Leitura está no trânsi-
to, na passagem dos usuários, por isso
seu espaço precisa ser compacto e os li-
vros em sua totalidade não podem estar
à mostra. A solução encontrada foram
vitrines sob a curadoria das gestoras da
biblioteca, todas mulheres. As entrevis-
tas e a observação do cotidiano da Es-
tação Leitura apontam que os maiores
referenciais para os leitores e leitoras
são as vitrines de livros que circundam a
biblioteca e a pequena exposição mon-
tada no corredor da estação de metrô,
ao lado da Estação. E as mediadoras,
que são as profissionais atuantes na bi-
blioteca, em sua maior parte da área de
biblioteconomia, também influenciam as
práticas leitoras, pois atuam na media-
ção entre os livros e a leitura. Na hora
de escolher um livro, as profissionais
da biblioteca ocupam um papel central,
verificam a ficha de cadastro do leitor
para indicar livros que dialogam com o
gosto do usuário, mas também sugerem
novos títulos, que contribuam para di-
versificar os gêneros. Ressaltam que o
índice de inadimplência na devolução
dos livros é muito baixo.
Durante todo o ano de 2014, Graci-
liano Ramos foi o escritor brasileiro mais
lido entre os usuários da Estação; e Vidas
secas o livro mais solicitado. Ocorre que,
durante boa parte do ano, a exposição em
cartaz na Galeria Estação Leitura – Arte
e Literatura
XV
era justamente baseada na
edição comemorativa sobre os 70 anos
de publicação do livro Vidas secas, com
imagens do fotógrafo Evandro Teixeira
(Editora Record, 2008). Nas paredes, fo-
ram reproduzidos imagens do fotógrafo
e trechos do livro. As vitrines sugeriam
outros livros de Graciliano e todo mês os
livros eram trocados, dialogando com as
temáticas relacionadas com a conjuntura
ou com o calendário da cidade. Em todas
as exposições, vericou-se na sequência
uma grande solicitação de livros do es-
critor, que dialogassem com ele ou com
um de seus temas. Essa relação entre a
exposição e a demanda por livros conti-
nua a ser observada, sistematicamente,
a cada novo projeto.
A segunda biblioteca estudada
reabriu dois meses depois da Estação,
em março de 2014. Trata-se da antiga
Biblioteca Pública Estadual, que, após a
reforma que durou mais de quatro anos e
teve um investimento de 71 milhões, pas-
sou a ser denominada Biblioteca Parque
Estadual (BPE).
XVI
Outro fator de grande
interesse, que se agrega aos acima men-
cionados, foi justamente a denominação
Parque e a vinculação imediata com o
projeto colombiano dos Parques Biblio-
teca; ainda que também dialogue com
outros modelos, como o francês, espe-
cialmente do Centro Georges Pompidou
(BPI), e as bibliotecas públicas alemãs. A
BPE se propôs explicitamente a ampliar
suas funções e reformular sua estrutura.
O prédio foi inteiramente reformado para
abrigar este que seria o modelo da políti-
ca estadual de investimento na marca Bi-
bliotecas Parque, especialmente voltada
para áreas de conito social.
O projeto aponta para um conceito
de biblioteca que vai além de um local com
uma determinada coleção de livros dispo-
nível para leitura e empréstimo. Trata-se
de um centro de atividades culturais, infor-
mação e lazer,
XVII
com diversos suportes.
Seu acervo conta com 3 milhões de músi-
cas, 20 mil lmes, 200 computadores com
80
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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internet gratuita, além de mais de 200 mil
livros e documentos. Os prossionais da
biblioteca são de diferentes áreas: há des-
de a função de mediador social, passando
por bibliotecários, a arte-educadores.
Na Biblioteca Parque Estadual, fo-
ram realizadas 100 entrevistas semies-
truturadas com usuários de idades diver-
sicadas, entre 15 e 65 anos. Destes,
94% dos entrevistados armou saber ler
e escrever. Sobre a escolaridade, 57%
estudam atualmente, apenas 2% nunca
frequentaram a escola, e 71% dos entre-
vistados possuem o ensino médio comple-
to; a maioria na rede pública de ensino.
Sessenta e cinco por cento trabalharam e,
ao serem questionados sobre a renda fa-
miliar, 36% possuem de 1 a 3 salários mí-
nimos de renda mensal; 20% estão entre
4 e 5 salários mínimos; e apenas 18% têm
renda acima de 5 salários.
XVIII
Ao serem questionados sobre a fre-
quência, a maioria utiliza a biblioteca com
regularidade.
XIX
Sobre os usos, a maior
parte arma ler livros (inclusive a maioria
arma que prefere ler no papel), quadri-
nhos, revistas ou jornal. Mas os usos não
se limitam a esse suporte: a metade usa
a internet, nos computadores da biblio-
teca, alguns levam seu próprio computa-
dor e outros usam o celular. Os usuários
também vão ver lme, descansar, passar
o tempo, trabalhar ou acessar a progra-
mação paralela, tais com a exposição, o
teatro, palestras e o programa educativo.
Quando perguntados sobre o tipo de ma-
terial que costumam ler, a maioria arma
ler jornais; em seguida, livros de literatura,
revistas e textos na internet.
Contrariando a média nacional, a
maior parte dos entrevistados armaram
gostar de ler em seu tempo livre e que a
leitura é um de seus passatempos favo-
ritos; em segundo lugar, estão atividades
físicas, ver lmes e séries; em seguida,
atividades culturais; ver TV foi menciona-
do por apenas 5% dos entrevistados. Cin-
quenta e sete por cento armam ler atual-
mente mais do que há um ano atrás; 19%
leem com a mesma frequência; e apenas
15% leem menos. O argumento mais
apresentado para não lerem com mais fre-
quência é a falta de tempo (54%). A maio-
ria arma não ter diculdade para ler, mas
os que têm alguma limitação armam que
leem muito devagar.
A maioria arma costumar escre-
ver (66%); em primeiro lugar, mensagens
de texto no celular, mensagens em redes
sociais, documentos acadêmicos ou da
escola, e-mail, documentos de trabalho e
pensamentos/reexões. Sobre as razões
que os levam a escrever, estão o estudo,
a comunicação com outras pessoas, ex-
pressar-se, o trabalho e para aprender e
melhorar o vocabulário.
Sobre quem inuenciou a leitura,
em primeiro lugar são as famílias (33%)
e em seguida iniciativa própria (30%). A
escola apareceu apenas em terceiro lugar
(16% dos entrevistados). Sobre a relação
entre os produtos audiovisuais e a litera-
tura, quase a metade arma que um pro-
grama de televisão ou lme os fez se
interessar por um livro. Oitenta e seis por
cento dos usuários entrevistados acessa a
internet. Sobre o uso, são mais frequentes
as redes sociais, as notícias e, em terceiro
lugar, pesquisa pessoal ou curiosidades.
Cinquenta e seis por cento armam reali-
zar atividades na internet vinculadas com
o que estão lendo.
Experiências vivas: leitura de livros;
leitura fragmentada horizontal e leitura
do mundo
A análise das entrevistas procurou
identicar as principais características
das práticas de leitura através da identi-
cação dos suportes de leitura; dos con-
teúdos mais acessados; a frequência e
81
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
o local de realização mais frequente da
prática. Também se procurou apreender
a maneira como as pessoas se sentem
em relação ao tema, a força motivado-
ra das práticas de leitura, impulsionada
pelo contexto social. Foi levado em conta
o que a leitura representa como prática
coletiva, as predisposições impostas pe-
los contextos socioeconômicos e pelas
competências leitoras. A prática da leitura
ocorre por um lado de maneira vertical,
imposta, enraizada, unívoca e, por outro
lado, de forma horizontal, conversacio-
nal, compartilhada. Assim como o leitor
faz uma operação de caça, esta pesquisa
também procurou encontrar o leitor nô-
made, que muitas vezes se esconde no
silêncio da leitura, da tela ou dos fones de
ouvido, tendo como suportes um celular,
um livro em papel ou digital, a internet,
conteúdos audiovisuais e tantos outros,
cada vez mais diversicados.
As falas revelam o caráter contra-
ditório e complexo que envolve a prática.
Luiz Fernando tem 18 anos e cursa o ter-
ceiro ano do ensino público. Ao longo da
entrevista, contou-nos que estuda e tra-
balha. Mesmo sem nunca ter nalizado
um livro, atualmente está lendo um sobre
o tema da ostentação. Para ele, ler “aju-
da a gente a se expressar”. Identica que
precisa ler mais, embora esteja constante-
mente utilizando as redes sociais para se
comunicar. Mesmo que arme não gostar
de ler, a leitura é vista de maneira positiva:
Estudo e trabalho. (...) Preciso ler
mais. (...) Não é perda de tempo,
mas também não é o que eu gosto
mais de fazer. (...) Ler ajuda a gente
a se expressar. (...) Uso muito Face-
book e WhatsApp.
A resposta mais frequente da
pergunta aberta por quais razões você
lê foi: para se informar, se atualizar e
adquirir mais conhecimento; em segui-
da, aparecem o prazer, o gosto, o inte-
resse, o entretenimento, o lazer, frases
como “para passar o tempo”, “distra-
ção”, “ocupar a mente”, “curiosidade”,
“para viajar”, “relaxar”, “viver outra rea-
lidade”, “válvula de escape”, “fuga”. Ou
seja, a leitura têm duas funções princi-
pais identificadas pelos leitores: infor-
mar/cultivar e distrair/dar prazer.
Segundo Chartier (2011), as decla-
rações concernentes ao que as pessoas
dizem ler são uma referência pouco se-
gura em relação a suas práticas reais, em
razão do que o autor dene como efei-
to de legitimidade. Quando perguntadas
sobre o que leem, em geral entendem a
pergunta como: o que é que eu leio que
merece ser declarado? Então, muitas ve-
zes, a resposta vem carregada não do
que elas leem verdadeiramente, mas do
que lhes parece legítimo, que pode ou
não estar em seu repertório. Aquilo que
principalmente a escola apresentou como
boa leitura e leitura correta.
Nas entrevistas, a diferença entre
práticas reais e declaradas gera vários
desdobramentos, desde a autopercepção
do informante em relação aos seus atos
de leitura, como a invisibilidade de muitas
práticas, carentes de legitimidade, menos
prestigiadas ou condicionadas, ou quan-
do se referem a contextos desviantes do
modelo disseminado, como a leitura de
trechos, páginas da internet, redes so-
ciais
XX
ou em trânsito, durante o desloca-
mento. Para evitar que isso ocorra, adota-
mos uma metodologia de elaboração dos
questionários tanto com perguntas aber-
tas, que evitam sugestionar o leitor e dar
mais liberdade a suas falas; quanto procu-
rando captar as práticas invisibilizadas e,
por último, o contraditório nos discursos e
mesmo o não dito, que se deixa entrever
através dos comportamentos e da obser-
vação participante.
Paula, 39 anos, frequentadora da
Biblioteca Parque Estadual, é moradora
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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do bairro Tanque, tem segundo grau com-
pleto cursado na rede pública de ensino,
renda familiar de um salário e atualmente
trabalha e faz um curso ao mesmo tempo.
Arma não gostar de ler, mas considera a
prática importante para se informar:
Eu acho isso aqui muito interessante,
pra quem nunca veio a uma bibliote-
ca, é muito bom. Na biblioteca, gosto
de ouvir música e escrever. (...) Leitu-
ra, desde pequena, não gosto. Mes-
mo eu não gostando, acho importan-
te, até porque você está interagindo
com alguma coisa, vendo novidades.
Eu particularmente não sou muito fã.
Não tenho paciência para ler. Leio
para me informar.
Patricia, de 19 anos, em situação
de rua, estudou até a oitava série e ar-
ma que frequenta a BPE todos os dias,
desde que abriu:
Gosto de fazer um monte de coisas
aqui. Às vezes vejo lmes (...). Carre-
go meu celular, vejo a internet, Face-
book, Youtube, pesquisa. Vejo mais as
redes sociais, para procurar trabalho,
ver documentos e para me comunicar.
(...) Eu leio mais por curiosidade. Leitu-
ra é muito bom. Se faltar alguma coisa
no universo, não pode ser a leitura. Te-
nho bastante concentração, é difícil eu
me distrair. Quando estou com o livro,
esqueço o mundo, esqueço a pessoa,
esqueço tudo, horário. (...) Eu gosto
de poesia. Quando co triste, co o
dia todo vendo poesias, acalma o co-
ração. Se você estiver triste, pode ler
uma poesia; se quiser saber mais so-
bre o mundo, pode ler. Porque a gente
tem que saber mais sobre o mundo.
(...) A minha avó, que lia bastante e
era professora, falava que biblioteca
era para livro. Nunca tinha visto uma
biblioteca com computador, lme, tea-
tro, musical. Biblioteca moderna, acho
bom. Se não tivesse a biblioteca, o dia
seria péssimo. Porque aqui no centro
não tem nada de bom.
A leitura de textos é perpassa-
da por duas dimensões principais, que
muitas vezes ocorrem simultaneamente,
não necessariamente de forma harmo-
niosa. Há a leitura orientada, oriunda da
obrigação escolar ou universitária, e/ou
relacionada ao trabalho, e a leitura feita
por livre escolha. A maioria das pesso-
as arma ler mais por prazer do que por
obrigação. Sobre as relações entre leitu-
ra condicionada e prossional ou autos-
sugerida, obrigação e prazer na leitura,
muitas vezes, especialmente na escola,
verica-se uma dicotomia onde o prazer
se atrela ao dever e se anula. A leitura
por prazer tende a ser mais ressaltada
nas falas, enquanto a leitura condicio-
nada e a leitura fragmentada (nas redes
sociais, mensagens de texto no celular,
por exemplo) não costumam ser mencio-
nadas, a menos que se pergunte expli-
citamente. O fato de a maior parte dos
leitores frequentes armarem que leem
por prazer demonstra a necessidade de
fortalecer a formação de leitores, basea-
dos nesse interesse.
Valter, estudante de 26 anos,
morador de Vila Isabel, cursando o en-
sino superior, por exemplo, separa a
leitura por iniciativa própria das leitu-
ras universitárias:
Leio livros de cção e romance, e os
livros da faculdade. (...) Leio muito por
iniciativa própria. Eu procuro livros que
estão comentados. Não sei se você
conhece uma rede social chamada
Skoob. Tenho um perl. Vejo o perl
das pessoas que leram livros pareci-
dos com os meus. Busco me informar
e ler. (...) Leio no meu tempo livre. No
início do período. Durante a época
de provas, nem pego o livro, pois sei
que não vou conseguir ler. (...) Quan-
do leio por iniciativa própria, escolho
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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livros que me interessam. Quando leio
por obrigação, vejo um índice maior
de dispersão. (...) Eu gosto de ler jus-
tamente porque estou buscando um
entretenimento, cultura. Você cria opi-
nião sobre outras coisas. E você viaja
para outros universos.
Muitas vezes ouvimos a respos-
ta “não leio regularmente”, e em segui-
da “respondo e-mails, utilizo as redes
sociais e pesquiso na internet” todos os
dias. Os próprios leitores tendem a achar
a leitura do livro, especialmente em pa-
pel, “mais leitura”. Há uma tendência a
valorizar mais a leitura do livro em papel,
observada de forma generalizada entre
os leitores. A prática aparece agregada a
um valor positivo, pois, segundo os entre-
vistados, quem a pratica tem mais chan-
ces num mundo dominado pelas novas
tecnologias, onde o manejo da palavra
escrita é uma ferramenta de exercício de
poder e distinção social.
João Victor Soares da Cunha, 22
anos, morador da Tijuca e atualmente
cursando o nível superior, arma que
para “adquirir conhecimento, às vezes me
distrair, é uma forma de ver o mundo, de
adquirir informação do mundo, o que é
o mundo, que mundo é esse que vivo. É
uma das verídicas fontes de informação.
Porque não cono em tudo que leio na in-
ternet. Cono mais nos livros”.
Os depoimentos registram a mar-
ca herdada do sistema escolar do que re-
presenta a boa literatura, o que se pode
entrever na seguinte resposta dada à per-
gunta “O que é leitura”: “Um recurso que
faz com que a pessoa cresça cultural-
mente. Dependendo daquilo que ele leia,
pode ser um desserviço a ele.” O mes-
mo discurso aparece quando pergunta-
mos qual a função principal da biblioteca:
“Levar a cultura às pessoas”; “Transmitir
cultura para as crianças”; “Fornecer uma
leitura de alto nível para os interessados.”
Bem como na seguinte resposta sobre a
função da biblioteca:
O mais importante aqui tem que ser
a leitura. Não o encontro, o show, é
maravilhoso que se encontrem, mas
não é o principal. O mote tem que ser
o livro, o chamariz tem que ser o li-
vro, a leitura. Mas tudo bem que o
chamariz sejam outras coisas e que
as pessoas possam migrar para o
que eu acho mais importante nesse
lugar, que é a leitura. Tudo bem que
o caminho seja esse.
Ao mesmo tempo, na fala de outros
usuários apareceu um questionamento às
hierarquias que separam alta literatura e
de entretenimento, como a do ex-aluno e
agora professor da rede pública de ensi-
no, de 27 anos:
Ler abre tua mente, ler te faz pensar,
reetir, e junto com isso tem o entre-
tenimento. As pessoas às vezes des-
prezam a cultura de entretenimento
como se fosse algo menor. Eu leio
Machado de Assis porque ele é bom,
mas também porque ele consegue
me entreter. Senão, ele seria apenas
um cânone. A gente tem esse hábito
de separar literatura de entretenimen-
to de alta literatura, e a alta literatura,
quando ela entretém, é ainda melhor.
Além de ampliar minha visão de mun-
do, que é a parte subjetiva, mas por
entretenimento também.
Com a análise do material coletado,
identicamos os usuários das bibliotecas
a partir dos múltiplos usos que fazem do
espaço em três categorias. Os primeiros
acessam mais os conteúdos audiovisuais,
jogam na internet ou no celular e utilizam
a biblioteca como lugar de encontro e ócio
criativo. Os leitores multimídia, que aces-
sam diversos conteúdos, ao mesmo tem-
po ou separadamente, utilizam as redes
sociais, leem periódicos, principalmente
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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revistas, mas pouco acessam o acervo
de livros. Por m, os leitores assíduos,
que estão iniciados na prática de leitura a
partir dos livros, mas muitas vezes agre-
gam a internet como suporte, sem perder
a referência do livro em papel. Aparecem
aqui os leitores habituais de literatura, que
pegam livros emprestados; e/ou estudan-
tes, que se apropriam da biblioteca para
estudar com seu próprio material ou aces-
sam os livros acadêmicos do acervo.
Alan, de 31 anos, por exemplo,
com o primeiro grau completo e atualmen-
te em situação de rua, arma que usa a
internet, vê lme, lê jornal e revista de vez
em quando. Para ele, “leitura é bom para
esclarecer a cabeça”. Morador do Centro,
ele nos conta: “Eu venho na parte da ma-
nhã, antes do trabalho. Foi a primeira bi-
blioteca em que entrei. Eu co na internet,
vejo lme. Eu leio jornal, revista de vez em
quando.” Tainá, 17 anos, está no segun-
do ano do ensino médio da rede pública e
trabalha. Mora em Vila Isabel e frequenta
a biblioteca quase todos os dias, antes do
trabalho. Ao ser perguntada sobre o que
faz na biblioteca, respondeu: “Leio alguns
livros, alugo, mexo mais na internet e às
vezes tento assistir a um lme. (...) Venho
normalmente sozinha.” Sobre a principal
função de uma biblioteca, responde que
deve ser um “lugar onde você possa en-
contrar educação, mas de outra forma, de
outro modo”. Ao mencionar as razões para
ler, arma: “Lendo, eu pego conhecimen-
to. Mais que com o professor. Eu guardo
o que leio, e ainda posso ler de novo. (...)
Me distraio rápido, mas consigo ler bem.
Ler é aprender de uma forma diferente.”
Silmara, 15 anos, 1o ano do ensino
médio da rede pública, mora em São Cris-
tóvão. Usa mais a internet, para se comu-
nicar através das redes sociais, mas não
identica essa prática como leitura:
Tenho internet em casa, e acesso
todo dia. Mas não sou muito boa nis-
so [leitura]. Fico trocando mensagem
com meus amigos, familiares, namo-
rado. Tenho um grupo do colégio na
internet. Escrevo mais no computador
do que à mão.
Como desdobramento de cada tipo
de leitura, podemos dividi-las em profanas
e prossionais. As leituras prossionais
são comuns para pessoas que atuam en-
quanto críticos, pesquisadores, escritores
e outras atividades relacionadas direta-
mente aos textos, e por isso estão dota-
das de uma disposição estética para com
o texto. Bernard Lahire (2004, p. 181), com
base tanto na teoria estética de Bakhtin,
quanto na sociologia da produção e con-
sumo cultural de Pierre Bourdieu, consi-
dera que a apropriação dos textos se dá
na dicotomia entre disposições estéticas e
disposições éticas.
A disposição estética privilegia a
forma artística em detrimento do conte-
údo ou função, enquanto a disposição
ética rechaça a separação entre forma/
função, forma/conteúdo, modo de repre-
sentação/conteúdo representado (LAHI-
RE, 2004, p. 181). Os leitores profanos,
que possuem uma disposição de leitura
ética, ou seja, identicam-se ou recha-
çam as histórias que leem, são muitas
vezes considerados apenas consumido-
res e espectadores pela teoria do campo
cultural. Especialmente quando se trata
de best-seller e da chamada literatura de
entretenimento. No entanto, esta é a lei-
tura mais praticada, pois mesmo um lei-
tor prossional pratica a leitura profana,
vinculada a experiências sociais que lhe
são sensíveis – ou seja, a maior parte
das pessoas se identica com histórias
verdadeiras, reais, cotidianas, ou pelo
menos escritas como se fossem reais ou
verdadeiras (LAHIRE, 2004, p. 184). O
que varia, portanto, são as experiências
que as pessoas vivem. Além, é claro,
das desigualdades sociais a respeito do
acesso ao material impresso, bem como
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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o manejo linguístico e estilístico de cada
leitor, que inuenciam e demarcam as
escolhas de determinados textos em
detrimento de outros. Igor, de 34 anos,
cientista social com mestrado, traça uma
relação direta entre seus autores favori-
tos no momento por compartilharem com
ele uma disposição ética, além de res-
saltar a leitura por livre escolha:
Meu investimento agora é em litera-
tura brasileira, de gente jovem. Gen-
te que tem mais ou menos a mes-
ma idade, que está vivendo mais ou
menos a mesma coisa. Senti muita
falta disso na minha formação lite-
rária, sempre estava lendo pessoas
vivendo outras coisas, em outro tem-
po. Quando eu descobri quem esta-
va escrevendo sobre as coisas que
eu estou vivendo, exatamente, com
a minha idade, encontrando saídas
pras coisas desse tempo, foi maravi-
lhoso. É um investimento bem recen-
te, coisa de dois anos para cá. (...) E
é maravilhoso ler pelo prazer, e não
pelo trabalho, como eu fazia antiga-
mente, quando eu tinha que char,
produzir alguma coisa sobre.
Lahire destaca como fator de
identificação menos uma correspon-
dência entre situações escritas e vivi-
das e mais as possibilidades que cada
um tem de entrar no mundo do texto,
ao mesmo tempo relacionando-se com
o desconhecido, e, ao usar a imagi-
nação, ampliando e transformando o
conhecido (LAHIRE, 2004, p. 186). A
visão iluminista do tipo de leitura que
levaria à emancipação é aquela disci-
plinada e orientada por obras instruti-
vas ou conhecidas como de alta cul-
tura, escolhidas pelos especialistas,
incluídas no cânone. Os outros tipos
de leitura eram considerados nefastos,
inadequados e associados negativa-
mente à ociosidade. Ou seja, foi uma
visão de democratização autoritária,
e ainda persiste em larga medida na
formulação de políticas para a leitura,
especialmente nas escolas.
A cada dia aumenta a penetração
dos formatos digitais e dispositivos relacio-
nados no mundo do livro e da leitura. Esse
período vem sendo marcado, entre os lei-
tores, por um grande volume fragmentado
de leitura – estamos o tempo todo lendo
várias coisas ao mesmo tempo. Com isso,
a cognição mudou e continua mudando,
constituindo transformações aceleradas na
forma de ler, escrever, produzir e comparti-
lhar conteúdos culturais. As práticas de lei-
tura tendem a se lateralizar, horizontalizar e
bifurcar. Mas o livro não deixou de ser refe-
rência no cenário transmidiático, ele conti-
nua a ser debatido e apreciado. Ele apenas
perdeu o papel de exclusividade como su-
porte do texto (METODOLOGIA, 2015).
Novas formas de leitura criam no-
vas formas de cidadania; ser capaz de ler
os códigos digitais pode tornar-se parte da
construção da cidadania contemporânea.
No mundo digital, a leitura torna-se mais
coletiva (desindividualização do leitor). A
internet favorece que se resgatem escri-
tores, escritoras e livros desconhecidos.
XXI
O modo de ler o mundo signica acesso
aos bens culturais, e a biblioteca possui
um papel fundamental nesse processo;
por isso, as bibliotecas públicas podem
ser parte importante da transformação da
sociedade. Nas palavras de Rony, um dos
prossionais da biblioteca:
Pra mim, a função principal da biblio-
teca é incentivar a leitura. Mas não a
leitura do livro, a leitura cultural, do
mundo, do ser humano, do seu es-
paço, das pessoas, do ambiente que
você está. A biblioteca é um ponto de
integração cultural.
A diversicação de suportes per-
mite uma leitura mais horizontal, uma
vez que o número de conteúdos e infor-
86
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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mações disponíveis cresce de maneira
exponencial, principalmente no contexto
digital. No entanto, essa diversidade de
informações demanda uma capacidade
maior de edição dos conteúdos disponí-
veis. Num mesmo contexto, articulam-se
as diculdades em garantir as diferen-
ças culturais e a autonomia dos povos;
as desigualdades socioeconômicas e a
inserção no mundo digital (CANCLINI,
2009). Nos termos do autor:
A educação e a formação de leitores e
espectadores críticos costumam frus-
trar-se pela persistência das desigual-
dades socioeconômicas, e também
porque as políticas culturais se desdo-
bram num cenário pré-digital. Insistem
em formar leitores de livros, e, à parte,
espectadores de artes visuais (quase
nunca de televisão), enquanto a indús-
tria está unindo as linguagens e com-
binando os espaços: ela produz livros
e também audiolivros, lmes para o
cinema e para o sofá e o celular (CAN-
CLINI, 2008, p. 18).
que se diversicar as políticas
de incentivo à leitura, pois os públicos e
suportes são muito diversicados. Esta
fragmentação, que tanto nos assusta, nos
coloca o desao de ensinar a editar as
muitas versões existentes sobre um as-
sunto. A dispersão pode ser enriquecedora
quando se consegue acessar os diferen-
tes suportes e contrastar criticamente as
diversas versões em disputa, pois “a mera
abundância de informação que acumula,
na navegação digital, textos e imagens,
acontecimentos, opiniões e publicidade,
não constrói pontes num mundo rompido”
(CANCLINI, 2008, p. 19).
Às perguntas motivadoras, “por
que leem?” e “para que leem?”, encontra-
mos uma indicação: as pessoas leem para
construir seus projetos, para compreender
melhor seus contextos e dialogar com
suas experiências individuais, mas prin-
cipalmente coletivas, e compartilhadas. A
pedagogia crítica de Paulo Freire consi-
dera uma ação cultural para a liberdade
dos sujeitos em formação, preocupada
não apenas em nomear o mundo, mas em
transformá-lo. Por isso, Freire aponta para
os contextos sociais do qual fazem parte
os educandos, que em nosso caso intitula-
mos leitores de mundo, de palavras, sons
e imagens. A alfabetização emancipadora
de Freire pressupõe a valorização da pró-
pria história dos educandos, mas também
a apropriação dos códigos e culturas das
esferas dominantes em que uma perspec-
tiva sufoque a outra na formação da cons-
ciência e da subjetividade. Nessa concep-
ção, a subjetividade não é apenas um ato
individual, mas político; por isso, crítico, e
aponta para uma consciência do mundo. A
linguagem, expressa nos diversos supor-
tes, pode ser uma ferramenta de acesso
a um vasto universo de possibilidades de
intervenção no mundo, compreendendo a
realidade histórica social como um ato his-
tórico, político e não determinista. A cons-
ciência do mundo se constitui na relação
com o mundo; não é um ato apenas indi-
vidual, mas econômico, cultural, político e
também pedagógico.
Nesse sentido, cabe perguntar se
através das bibliotecas estamos contri-
buindo para a formação de cidadãos, ou
somente de consumidores. No mesmo
sentido, as políticas de incentivo à leitura
estão contribuindo para construir leitores
somente de textos, ou de contextos? É no
diálogo com o território que se pode poten-
cializar esse encontro. Não são os usuários
que devem apreender um modo correto de
usar bibliotecas, mas as bibliotecas que
devem aprender com seus entornos e con-
textos. Novas formas de leitura do mundo
podem criar novas formas de participação.
Com isso, ressalto o papel das bibliotecas
públicas na transformação da sociedade, e
também como espaços de construção de
políticas diversas de incentivo às leituras
do mundo, para transformá-lo.
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Bibliograa
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura:
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e Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger. Práticas
da leitura. São Paulo: Ed. Estação Liberdade,
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Recebido em 09/03/2017
Aprovado em 15/03/2017
I Marisa S. Mello. Doutora em História pela Universida-
de Federal Fluminense. Pós-doutoranda PNPD/Capes
do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territo-
rialidades (PPCult), Universidade Federal Fluminense.
Brasil. Contato: marisasmello@hotmail.com.
A bolsista de iniciação científica (Pibic/CNPq) Dé-
bora Rocha acompanhou a pesquisa desde o iní-
cio e contribuiu intensamente na coleta de dados
e análise dos resultados. A discente desenvolveu
sua pesquisa de conclusão no âmbito do curso de
produção cultural/UFF sobre os usos, práticas e
percepções dos usuários da biblioteca em situa-
ção de rua (2016).
II A primeira edição concentrou-se na identificação
da penetração da leitura de livros no Brasil e o aces-
so a eles. A segunda edição verificou em que circuns-
tâncias se dá a prática da leitura. A terceira pesquisa
procura avaliar e orientar as políticas voltadas para a
melhoria dos indicadores de leitura e acesso ao livro
do Brasil. A quarta edição ampliou o seu escopo de
análise ao incluir uma avaliação acerca das biblio-
tecas (inclusive as escolares), o acesso aos livros
digitais, o impacto de leituras e narrativas transmi-
diáticas e as práticas leitoras em diversos materiais,
suportes e ambientes, o que foi um ganho em relação
às edições anteriores.
III Disponível em: <http://prolivro.org.br/home/ima-
ges/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Bra-
sil_-_2015.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2017.
88
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
IV Disponível em: <http://prolivro.org.br/home/ima-
ges/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Bra-
sil_-_2015.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2017.
V Disponível em: <http://prolivro.org.br/home/ima-
ges/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Bra-
sil_-_2015.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2017.
VI Comentário sobre a pesquisa realizado por Maria
Antonieta Cunha, professora da Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
ex-secretária municipal de Cultura de Belo Horizonte
e secretária executiva do Plano Nacional do Livro e
Leitura (PNLL). Disponível em: <http://www.prolivro.
org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/48.pdf>. Acesso
em: 8 ago. 2011.
VII Disponível em: <http://prolivro.org.br/home/ima-
ges/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Bra-
sil_-_2015.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2017.
VIII Disponível em <http://prolivro.org.br/home/ima-
ges/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Bra-
sil_-_2015.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2017.
IX Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/
Ensaios/regina.html>. Acesso em: 2 mar. 2011.
X Projeto de mapeamento da produção cultural e das
práticas de letramento em três favelas do Complexo do
Alemão. Rio de Janeiro, 2011. Adriana vem realizando
ainda pesquisas semelhantes em outras favelas cario-
cas desde 2008.
XI Disponível em: <http://prolivro.org.br/home/ima-
ges/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Bra-
sil_-_2015.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2017.
XII Para mais sobre a relação entre leitura e meios
e adaptações literárias, ver Mello (2012).
XIII Disponível em: <http://resenhasbrasil.blogspot.
com.br/2008/12/dos-meios-s-mediaes-comunicao-cul-
tura-e.html>. Acesso em: 9 out. 2011.
XIV Considerando o salário mínimo no valor de R$
720,00 (2014).
XV A Galeria Estação Leitura – Arte e Literatura
constitui-se como um projeto à parte, mais voltado
para arte-educação e produção cultural. Consegue
verbas específicas para suas ações culturais (além
das exposições, performances artísticas, oficinas
com crianças e adolescentes). Há ainda algu-
mas ações culturais organizadas pela Biblioteca:
o evento “Encontro com Territórios”, realizado em
seis edições, que tem bate-papos com autores e
jornalistas, sessões de autógrafos e alguns lança-
mentos de livros.
XVI Disponível em: <http://www.ebc.com.br/educa-
cao/2014/03/biblioteca-parque-estadual-do-rio-vai-
-atender-a-15-milhao-de-pessoas-por-ano>. Acesso
em: 10 out. 2015.
XVII Disponível em: <http://www.cultura.rj.gov.br/
espaco/biblioteca-parque-estadual-bpe>. Acesso
em: 10 out. 2015.
XVIII Oito por cento não responderam; 9% não têm
renda xa ou ganham até 1 salário mínimo.
XIX Catorze por cento responderam que frequentam
todos os dias, 21% de duas a quatro vezes por sema-
na, 16% uma vez por semana e 10% uma vez ao mês;
9% disseram estar indo pela primeira vez e 5% esta-
vam visitando uma biblioteca pela primeira vez na vida,
sendo que, entre eles, todos disseram que “com cer-
teza pretendem voltar outras vezes e/ou passar a fre-
quentar regularmente”. Metade dos entrevistados não
frequenta outras bibliotecas; entre os que frequentam,
são públicas ou escolares.
XX Denominamos essa leitura de fragmentada, em
oposição à leitura de livros inteiros.
XXI As redes sociais vêm criando espaços de críticas
literárias e de obras derivadas. Uma das mais importan-
tes redes sociais de leitores é a Skoob, frequentada em
sua maior parte por jovens. Com as novas tecnologias,
a distância entre o leitor e o autor pode car menor, re-
duzindo a demanda por intermediários (distribuidores).
89
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Mudar de corpo em ode aos invisíveis
Cambiar de cuerpo en oda a los invisibles
Changing body in ode to the invisible ones
Ana Hupe
I
Resumo:
Este artigo entende a arte como processo de conscientização que
se contrapõe à alienação imposta pelo sistema pós-industrial. As
lacunas deixadas pela herança colonial são preenchidas com a força
rítmica da caminhada e pelo encantamento com o afrofuturismo para
desesteriotipar a África e Brasil como lugares do precário. Este texto
sonha um mundo sem fronteiras, em que as sujeições identitárias
escravizantes pulverizem no ar.
Descrições sobre a estada da autora na África do Sul, iluminadas
por trabalhos de artistas como Sean O’Toole, Superex, Sun Ra e
OctaviaButler, fazem reetir sobre a importância de práticas de
descolonização e de uma releitura dos uxos migratórios.
Palavras chave:
Descolonização
Afrofuturismo
Imigração
Derivas urbanas
90
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este artículo entiende el arte como proceso de concientización que se
oponea la alienación impuesta por el sistema posindustrial. Las lagunas
dejadas por la herencia colonial son ocupadas con la fuerza rítmica
de la caminada y por el encantamiento con el afro futurismo para des-
estereotipar África y Brasil como lugares de lo precario. Este texto
sueña un mundo sin fronteras, en el cual las sujeciones identidarias
esclavizantesse pulvericen en el aire.
Descripciones sobre la estada de la autora enSudáfrica, iluminadas
por trabajos de artistas como Sean O’Toole, Superex, Sun Ra y
Octavia Butler, hacen reexionar sobre la importancia de prácticas de
descolonización y de una relectura de los ujos migratorios.
Abstract:
This article understands art as a process of awareness that opposes
the alienation imposed by the post-industrial system. The gaps left by
the colonial heritage are lled with the rhythmic strenght of the walk and
the enchantment with Afrofuturism to de-stereotype Africa and Brazil as
places of precariousness. This text dreams of a world without borders,
in which the enslaved identitarian subjections pulverize in the air.
Descriptions of the author’s stay in South Africa, illuminated by works
by artists such as Sean O’Toole, Superex, Sun Ra and Octavia Butler,
reect on the importance of decolonization practices and re-reading of
migratory ows.
Palabras clave:
Descolonización
Afro futurismo
Inmigración
Derivas urbanas
Keywords:
Decolonization
Afrofuturism
Inmigration
Urban drifts
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Mudar de corpo em ode aos invisíveis
Imagens do movimento UCT Rhodes Must fall, organizado pelos estudantes da Universidade de Cape
Town, (encontradas em: http://imagineathena.com/tag/rhodes-must-fall/ e em http://www.rnews.co.za/ar-
ticle/3535/statues-effed-part-5-security-around-his-torical-statues, acesso em setembro de 2016). O mo-
vimento atenta ao desequilíbrio de oportunidades entre negros e brancos nas universidades da África do
Sul através dos símbolos coloniais presentes nos campi, como as estátuas e pinturas do acervo da UCT.
92
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Afrofuturismo
Entretanto, mais do que ênfase na
angústia do espaço de descontinui-
dade, a batida é uma descarga de
adrenalina alegre. O participante no
ritual entra no portal do “trance” e en-
contra possibilidades de uma liberdade
não ouvida no mundo da narrativa, o
mundo da dominação hierárquica onde
tempo e percepção são construções
das classes e raças no poder. Para os
descendentes de escravos, para quem
“trabalho” é ainda sublinhado pelas
não-qualidades de um sistema base-
ado na branca dominação europeia e
por rígidas classes hierárquicas, esse
“break” é um momento de liberação
que está grávido de anseios históricos
profundos e visões utópicas.
(CHUDE-SOKEI, 2008, p.30)
II
A batida da citação inicial é um es-
paço-tempo de elaboração, pausa para
compor a revolução de uma utopia ainda
refugiada, que no loop afrofuturístico ganha
democracia. O loop, neste caso, refere-se
à dinâmica da música eletrônica, despi-
da de início, meio e m, aonde entramos
e saímos ao sabor do prazer, denindo o
presente, o passado e o futuro, transforma-
dos em cometa. Numa fome de imaginar
possibilidades para além do presente atu-
al, de resistir à exploração linear da Histó-
ria, estruturada em modelos de hierarquias
que guardam preconceitos, cções de su-
perioridade de uma cultura sobre a outra,
volto minhas lentes ao afrofuturismo, termo
que vem de artistas afrodescendentes da
diáspora, nos EUA. Arquiteturas do afrofu-
turismo são o funk de George Clinton (das
bandas Funkadelic e Parliament), o jazz do
Sun Ra (Archestra) e o dub de Lee Scra-
tch Perry (Black Ark), além das criações
de DJs como Derrick May, de Detroit, que
potencializaram as descobertas tecnológi-
cas da Segunda Guerra Mundial, criando
um loop a partir das batidas dos refrãos em
sintetizadores, fervilhando as pistas com
novos ritmos techno, harmonia do homem
com a máquina.
Pelo estrangeirismo, a maior parte
dos imigrantes são alijados da fala públi-
ca, como a maioria da população negra,
e não participam do comum que constrói
a política, não partilham do sensível, para
lembrar Jacques Rancière
III
. (RANCIÈRE,
2004, p. 22) Visto binóculos que me ser-
vem como veículo para alcançar a cção
cientíca inclusiva dos livros de Octavia
Butler, de Samuel Delany e de Ishmael
Reed e dos lmes do John Akomfrah.
A denição de afrofuturismo não
cabe numa descrição enciclopédica, é
como um artifício mágico para visibilizar
os que estão à margem ou uma losoa
porosa e com identidade vaga; talvez uma
losoa de vida que mira o futuro da pers-
pectiva de quem teve a voz suprimida por
séculos a o, como Anastácia, representan-
te das escravas que eram castigadas por
se recusarem a dormir com seus senhores.
Foi forçada a usar um tapador na boca, a
Máscara de Flandres, que permitia enxer-
gar e respirar, mas não falar, como muitos
escravos que trabalhavam nas plantações,
obrigados a usar o tapador para não mas-
carem o caldo da cana, o café ou o cacau,
castigo que também emudecia. O subterfú-
gio afrofuturístico elimina a máscara e usa,
em seu lugar, a nave espacial como mídia
para comportamentos subversivos, para
desfazer a ligação inconsciente e imedia-
ta entre o negro e a escravidão. Pela di-
culdade de expurgar resquícios de uma
prática que orientou a economia mundial
durante 354 anos, a invenção de estraté-
gias fabulatórias aparece como maneira de
contestar e sobrepor o arquivo colonial.
As ideias que apresento aqui vêm
tanto do que vi e intuí nas ruas na África
do Sul, onde passei dois meses e meio: 45
dias num programa de residência artística
no Greatmore House Art Studios (Cidade do
Cabo) e o resto do tempo, pela costa leste
93
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
até Joanesburgo. Vêm também dos con-
ceitos teóricos que me aproximaram pela
primeira vez do afrofuturismo, quando z
parte desta pesquisa em Berlim, na Univer-
sität der Künste. A triângulação Brasil - Ale-
manha - África do Sul foi fundamental para
chegar a formulações expostas neste tex-
to, permeadas de microhistórias pessoais,
principalmente no tópico que descreve a ex-
periência de campo na África do Sul, uma
tentativa de restituir impressões a partir de
vivências. Vivências diferem de experiência,
porque são o vivido inseparável da constru-
ção de uma narrativa, um vivido preenchido
por fragmentos de outras vivências de ou-
tras pessoas contadas a nós e renarradas.
Entendi na Alemanha a necessida-
de de me aproximar da África: o brasileiro
está no meio do percurso, não é um nem
outro, já dizia Silviano Santiago referindo-
-se ao mestiço, cuja principal característica
é que a noção de unidade sofre reviravol-
ta, é contaminada em favor de uma mistu-
ra sutil e complexa entre o elemento euro-
peu e o elemento autóctone (SANTIAGO,
2000, p.15). Faria bem ao purismo europeu
misturar-se, prática brasileira desde 1500,
quando os colonos portugueses utilizaram-
-se da assimilação para dominação, dife-
rente do processo de colonização britânico,
orientado pela segregação. A mestiçagem é
rica e talvez tenha sido o fator que induziu a
modernidade brasileira a acreditar no Brasil
como o país do futuro, um bordão que nun-
ca chegou à realidade do hemisfério Sul.
Para desesteriotipar visões sobre a África
e o Brasil, tomo a posição de trabalhar com
a ferramenta afrofuturística, que dá ao con-
tinente africano, localizado no imaginário
universal no lugar de passado, de mutilado,
de miséria, um presente. O recurso afro-
futurístico facilita-me colocar no lugar do
outro, operar invertendo papéis; é uma ma-
nobra que traz a possibilidade de quebrar
a referência identitária que é escravizante,
permite perceber a cultura africana, marca-
damente negra, com emoções, tecnologia,
política e, principalmente, enxerga os africa-
nos antes do período das navegações eu-
ropeias. Às vezes, esquecemos que houve
um tempo anterior às colonizações, apesar
dos primeiros indícios arqueológicos do ho-
mem terem sido encontrados na África: so-
mos todos descendentes dos Khoi San da
África do Sul (os nativos, conhecidos como
bushmen). Os poucos homens da oresta
que restaram, sobem até hoje à montanha,
num ato de resistência ao modo de produ-
ção capitalista, colhem ervas e vendem nos
Centros das cidades sul-africanas, como
camelôs, vestindo tecidos de saco de bata-
tas, mesmo no calor.
O termo afrofuturismo vem do livro
de Mark Dery, Flame Wars, de 1993, em-
bora em 1992, Mark Singer já escrevesse
sobre cção cientíca negra. Aqui é usado
como uma tecnologia que serve ao discur-
so poético do colonizado - que quer nomear
no lugar de ser nomeado, quer “direitos de
signicar”. (BHABHA, 1998. p. 321) Apesar
de experimentos afrofuturísticos terem apa-
recido com as histórias do escritor W.E.B.
Dubois, há mais de um século, o movimen-
to ganha força com a música, no período
da luta contra a discriminação racial nos
EUA, conhecido como Movimento dos Di-
reitos Civis, entre 1954 e 1968. Socialista,
marxista, mais reconhecido pela defesa
do pan-africanismo
IV
e pela luta contra o
preconceito racial e igualdade de gêneros,
em 1930, Dubois escreve elogios sobre as
relações entre negros e brancos no Brasil,
depois de visitar o país. Interessada na su-
posta harmonia dessas relações, a Unesco,
logo depois da Segunda Guerra Mundial,
organiza uma expedição de pesquisadores
ao Brasil para investigar o diálogo entre ra-
ças no país, mas a conclusão foi desanima-
dora: havia tanto racismo quanto nos EUA
ou na Europa, embora manifesto de formas
diversas
V
. (ANDREWS, 1997, p. 95-105).
No mundo afrofuturístico, das letras
das músicas, mas também das invenções
literárias e dos lmes, a captura do negro
como escravo é reformulada como uma ab-
94
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
dução alienígena, uma vez que ele foi retira-
do de sua terra natal, obrigado a esquecer
sua própria língua e a se adaptar a um novo
planeta, a colônia. Olhar os negros como
alienígenas e imaginá-los em outros mundos
é radical, porque os africanos tiveram sua
imaginação sequestrada e formou-se uma
narrativa dominante sobre o povo negro, que
cria vidas limitadas. Juntar a África ao futuro
é um passo para problematizar o legado de
um inconsciente colonial, que ainda atraves-
sa o Brasil, onde o gingado afrofuturístico en-
contra respingos, faíscas de um brasofutu-
rismo que somando-se ao afro, transformam
as ex-colônias em naves: é pelo ângulo de
criar um mundo no espaço estreito da nossa
herança africana que está a possibilidade de
resistência, de rever a História.
Talvez pelo recente processo político
de independência das metrópoles, que se
deu no continente africano ao longo da se-
gunda metade do século XX, o discurso des-
colonizador ainda é muito fresco na África,
forte ao ponto de pensar que o Brasil esque-
ceu que foi colônia. Uma nova descoloniza-
ção, em que corpos-monumentos-escritos-
-ritos contribuem para o não-esquecimento
é o que cria o afrofuturismo, deixando-nos
atentos às origens dos produtos, aos meca-
nismos de controle, à quantidade de açúcar
que carrega uma latinha de Coca-Cola, dis-
tribuída de graça na favela em dia de domin-
go com show grátis na praça, para as crian-
ças descalças fazerem la e guardarem na
memória a mercadoria daquele dia alegre.
As ideias afrofuturísticas foram pri-
meiramente postas em prática pelos artistas,
para depois tornarem-se losoa ctícia pelo
historicismo, conceito que ajuda na releitu-
ra da opressão história contra os negros e
contribui para um reposicionamento de nós,
humanos todos, como parte de um cosmos
imenso, que não diferencia negro de branco,
pobre de rico, as capacidades de mulheres
e homens. Quebrando a divisão da socieda-
de em classes ou raças, o afrofuturismo, que
repensa e reposiciona as estratégias dos co-
lonizadores na África, aguça de forma imagi-
nativa a análise dos privilégios de uns países
em detrimento de outros e também a forma
de operação colonial no Brasil, como nos
constituímos no recalque da subjetividade,
como diria a psicoterapeuta e crítica cultural
Suely Rolnik, e reproduzimos as táticas dos
colonizadores dentro do país, quando explo-
ramos os nordestinos migrantes no Sudeste,
por exemplo, enquanto a África do Sul, tam-
bém parte dos BRICS (Brasil, Rússia, China,
Índia e África do Sul), faz o mesmo com os
trabalhadores imigrantes dos vizinhos Zim-
babuê e Moçambique. No frescor do desper-
tar, os “em desenvolvimento” poderiam expe-
rimentar um novo modelo para organizar as
relações, ao invés de reproduzir as práticas
coloniais. Ao inspirar formas fabulativas de
agir, o afrofuturismo delineia ideais da África
contemporânea para entendermos melhor
como a potencialização do legado africano
na literatura, arte e cultura brasileiras pode
traduzir-se na formulação de um presente-
-futuro habitáveis com uma diversidade ver-
dadeira. Rolnik percebe que somente agora,
cinco séculos depois da invasão europeia, o
Brasil consegue se livrar das imagens dos
rituais antropofágicos que performatizam a
tensão entre os povos que aqui viviam e os
europeus que ocuparam suas terras, trazen-
do uma potência armativa para estas ima-
gens, que modicam o modo como os efeitos
do outro são vividos nos corpos. Estamos
conseguindo reler Hans Staden, que descre-
ve o Brasil como um país povoado por come-
dores de homens, selvagens, ferozes e nus.
O livro foi um best-seller do século XVI na Eu-
ropa, traduzido para 79 línguas, e narra a su-
posta verdade da relação dos indígenas com
seu outro, quando de fato, é uma projeção da
relação que os europeus estabelecem com
seu outro. O recalque colonial vem do trau-
ma e do massacre dos povos nativos e é um
dispositivo ecaz de controle, que se mantém
até hoje, apontando para saberes dos corpos
a tal ponto humilhados que se inibem e inter-
rompem. O afrofuturismo pode ser uma arma
que ajuda a resgatar a conança neste saber
e fazer dele nossa bússola, para nos deslo-
95
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
car da posição de humilhados e atualizar os
elementos que para nós são inegociáveis,
como era o ritual antropofágico para a cultura
tupinambá
VI
, pode criar as condições para o
retorno do corpo-que-sabe – livre das seque-
las de seus traumas –, torna-se assim tarefa
incontornável de resistência ao atual estado
de coisas
VII
. Se mudarmos a relação com o
outro, ativamos novos espaços de invenção
nos nossos corpos, se olhamos para a cultu-
ra africana como lugar de potência, modica-
mos também a nós, habitados por ela.
As sociedades africanas, anterior-
mente ao período colonial, constituíram-se
pela mobilidade e circulação, as migra-
ções ocupando papel central nos mitos de
origem africanos: não há um grupo étnico
sequer que não tenha nunca se mudado.
Os mais de onze idiomas ociais num país
com cerca de um quarto da população bra-
sileira, como a África do Sul
VIII
, além das
variadas moedas como o Rand, a Libra, o
Yen ou o Dólar aceitas ao mesmo tempo
no Zimbabuê, que já nem tem mais moeda
ocial, são características que interessam
cada vez mais a um mundo pós-internet,
orientado pelo espírito do digital, que é
exível e instiga constantes inovações. A
ideia de que a África é lugar de pobreza
aonde se deve levar caridade é para turis-
tas britânicos aposentados, o afrofuturismo
elabora o continente como um laborató-
rio de futuro, onde se pode colher. Com a
chegada da eletricidade, que se estende à
possibilidade de expansão dos canais de
comunicação, o rural vem se urbanizan-
do, convidando adeptos a um novo estilo
de vida, assim como as cidades ganham
suas hortas orgânicas comunitárias. No ar,
um desejo à descentralização total, prome-
tendo um tempo em que não haverá mais
a separação entre rural e urbano. Enquan-
to o território europeu está todo ocupado,
sem áreas livres para expansão, na África
do Sul, ao contrário, viaja-se por quilôme-
tros circundados por montanhas, por vezes
com uma grade indicando propriedade pri-
vada, mas nenhuma construção.
No Brasil, também há muito espaço
que pode ser ocupado com um novo siste-
ma, mais comprometido com a liberdade,
se anteciparmos a superação das fronteiras
geopolíticas em função de um intenso tráco
virtual que obrigue a reformulação da ideia de
Estado-Nação. Conseguiríamos, assim, uma
transição a um mundo de livre circulação de
forma organizada e pacíca. Uma mentalida-
de e identidade pan-africanas já são discuti-
das há tempos, contrariando as atuais cons-
truções de muros das nações do Hemisfério
Norte. Em entrevista à Chronic, Mbembe co-
menta estatísticas de uxos migratórios con-
trários aos que comumente aparecem nas
manchetes de jornais, os de outros países
em direção ao continente africano:
Falei a você sobre o um milhão de chine-
ses. Em Angola ou Moçambique, nos úl-
timos cinco anos, testemunhamos o re-
torno de 18.000 portugueses, muitos que
deixaram o país durante a colonização,
outros apenas chegando. Há pessoas
chegando à África do Sul, marroquinos
vindo do Norte e estabelecendo-se nas
maiores cidades. (MBEMBE, 2015)
IX
Mbembe vai concluir o pensamento
aludindo ao Afropolitan Mindset, que seria
uma evolução do pan-africanismo, algo
que torna a África um ponto de encontro
de diversos movimentos migratórios, uma
mistura que aliada ao cosmos é capaz de
iluminar a visão sobre a cultura brasilei-
ra, ativando saberes reprimidos dos nos-
sos corpos e, por conseguinte, num plano
maior, de elevar o lugar marginal ocupado
por imigrantes no mundo, para que suas
(nossas) falas reverberem.
Práticas de descolonização: trabalho
de campo na África do Sul
Inspirada nos textos do escritor ni-
geriano Chinua Achebe, em Frantz Fanon
e em poetas sul-africanos contemporâne-
os como Vonani Bila e Louis Chude-Sokei,
96
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
que valorizam o microcosmo individual
potente, trago relatos sobre o que obser-
vei na África do Sul. Somos catequizados
desde a escola primária a nos afastar da
escrita em primeira pessoa, na tentativa de
alcançar um movimento que poderia ser
“universal”, termo ligado a valores e modos
de vida europeus e norte-americanos. O
ensaio Colonial Criticism (ACHEBE, 1978)
constata que o grande elogio a um roman-
ce africano é quando a história pode se
passar em qualquer lugar e pergunta se a
mesma questão é posta em relação a um
romance de John Updike ou de Philip Roth,
se os críticos literários procuram localizar
as histórias deles na África para testar se
são universais, sugerindo uma extensão
do horizonte universal que inclua o mundo
todo. Voltar-se às vivências é uma forma de
valorizar a presença física e a transmissão
oral de conhecimento, que apesar de terem
perdido espaço para o mundo digital, ainda
são uma rica ferramenta de aprendizado.
Começo a caminhada deparando-
-me com a frase There are other worlds out
here they never told you about, na sede da
Chimurenga (luta pela liberdade, em sho-
na), publicação e rádio PASS (Pan African
Space Station) independentes da Cidade
do Cabo, um centro vibrante de literatura,
artes visuais e new music. Chimurenga ca
no terceiro andar do Pan African Market, na
Long Street, centro da cidade, onde qua-
se não se veem brancos nas ruas, estão
connados nos carros, nas lojas, nos res-
taurantes ou nas casas com alarmes. Che-
guei até obedecendo meus pés rmes a
entrar em becos. Que importa a paisagem,
a Glória, a baía, a linha do horizonte? - o
que eu vejo é o beco. (BANDEIRA, 1936,
1978) Procuro o beco de Manuel Bandeira,
porém num sentimento contrário à melan-
colia (Mal deux pais, mal do país) dele; sigo
imbuída de uma euforia imensa. No beco,
o já desaparecido esconde-se dos de pele
clara, ensina que lho de negro com bran-
co é light skinned e que alisar os cabelos
é relax the hair, como se em estado natu-
ral fossem tensos. A linha do horizonte do
Centro de Joanesburgo também me convi-
da a conhecer de perto seus prédios altos
e luminosos que passariam a desavisados
como uma paisagem de Xangai, mas que
apresenta-se em ruínas, de perto. Os edi-
fícios supostamente executivos são ocupa-
dos por uma população que inventa novos
tipos de casa, dispõe varais coloridos e
barracas de camelô na calçada em fren-
te, ensinando que nem sempre as coisas
são como se apresentam ao longe e que
ccionalizar não é somente drible simbóli-
co, mas forma de sobrevivência. O histo-
riador Michel de Certeau compara o ato de
caminhar pela cidade – o contraste entre
ver a cidade do alto de um prédio como um
conjunto totalizante, onde o mapa urbano
torna-se um gráco que o olhar estratégico
pode dominar a partir de uma base usada
para gerir as relações com uma exteriorida-
de de alvos ou ameaças (CERTEAU, 1994,
p. 99); e a visão tática dos pedestres rea-
propriando-se dos espaços e dos detalhes
do cotidiano, onde os corpos obedecem
aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano
que escrevem sem poder lê-lo.
Neste tempo, sou a única por dez
quilômetros subindo a Market Street, uma
das principais ruas do Centro, às duas da
tarde e penso na separação por cor como a
desculpa mais perversa para manutenção
de privilégios, como mostra o conto do escri-
tor suíço Friedrich Dürrenmatt, A Epidemia
Viral (1971), onde os brancos sul-africanos
pegam um vírus e cam negros, a come-
çar pelo presidente, e passam a andar com
uma placa no pescoço para diferenciá-los,
identicando os negros-negros dos negros-
-brancos. Eram todos da mesma cor, mas
importava a cor original, a camada sublimi-
nar que apontasse a linhagem. A Escrava
Isaura, de Bernardo Guimarães, era notá-
vel pela exceção que representava na lite-
ratura: uma heroína supostamente negra.
Entretanto, a personagem se afasta das ca-
racterísticas negras, como vemos na pas-
sagem: És formosa e tens uma cor linda,
97
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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que ninguém dirá que gira em tuas veias
uma só gota de sangue africano (GUIMA-
RÃES, 1976, p. 29). Aliado ao aceleracio-
nismo dos nossos tempos, o afrofuturismo
pode ser usado a favor da digestão destes
recalques históricos, cujo desaparecimento
rápido poderia fundar corpos destemidos,
que desaem o Estado de segurança.
Não será com os mesmos corpos
construídos por afetos que até agora sedi-
mentaram nossa subserviência que sere-
mos capazes de criar realidades políticas
ainda impensadas. Mais do que novas
ideias, neste momento histórico no qual a
urgência de reconstrução da experiência
política e a necessidade de enterrar formas
que nos assombram com sua impotência
innita se fazem sentir de maneira gritante,
precisamos de outro corpo. Para começar
outro tempo político, será necessário ini-
cialmente mudar de corpo. Pois nunca ha-
verá nova política com os velhos sentimen-
tos de sempre. (SAFATLE, 2016, p. 29)
Em corpos ainda traumatizados pelo
extinto regime do apartheid, a língua das
salas de aula e da comunicação entre bran-
cos e negros, que desconheciam as fron-
teiras imperiais antes da colonização, é o
inglês. Encontram-se placas de rua em três
ou quatro idiomas diferentes, que respeitam
a diversidade, mas o território comum é o
inglês, língua com a qual nem todos se sen-
tem confortáveis. A escritora Miss Milli B, de
Joanesburgo, exemplica a relação con-
ituosa até hoje dos negros sul-africanos
com a língua inglesa
X
: “Esse homem negro
sul-africano não tem nenhuma ambição em
ser excelente no inglês.” Ele achou interes-
sante que eu o corrigisse numa língua que
não é a dele, numa língua que não é minha.
Ele disse que desejaria que eu tivesse feito
a correção relativa à minha língua materna,
o isiXhosa, que ele não fala. “Descolonizar
é uma prática, sabe.”, ele declarou. “Pode-
mos nos comunicar na língua do opressor,
mas eu não a respeito o suciente para que-
rer ser bom nela”. Silenciei quando percebi
que eu reencenava o que vi muitas vezes
na infância e que ele externalizou. “Você
me lembrou dos professores brancos que
nos forçavam goela abaixo essa língua.”,
ele disse com um sorriso que desarmou mi-
nha posição defensiva de forma que essa
troca desenvolveu como uma conversa en-
tre professor e aluno. Não me senti pior do
que me senti mal compreendida. Na minha
cabeça, eu não era um dos julgadores an-
glofônicos negros porque “Sou consciente”,
estou “acordada”, “entendo como o sistema
opressor funciona.”
XI
Diferente do sistema segregacionis-
ta implementado na África do Sul, o ultra-
colonialismo português baseava-se na ex-
ploração bruta de matérias-primas e mão
de obra e na ideologia de “Um Portugal”,
que favorecia o português como língua o-
cial única. Isso explica os candomblés, as
macumbas, os espiritismos contemporâne-
os como resultado de embates e negocia-
ções entre elite e povo, brancos e negros,
letrados e iletrados ao longo dos anos. Em
Moçambique, o mesmo, brancos, mestiços
e negros sentam juntos em mesa de bar,
o que se observa com mais raridade nos
países com histórico de colonização ingle-
sa. Em comum entre os ainda em desco-
lonização simbólica, os do “Sul Global”,
são cidades de nomes europeus ou ape-
nas com o adjetivo “Nova” na frente, como
New Barcelona ou Woodstock, em Cidade
do Cabo. Penso no irônico nome da favela
Nova Holanda, no Complexo da Maré, RJ,
que remete imediatamente à característica
da legalidade das drogas naquele país e
naquela favela. A menos de vinte metros
da movimentada Avenida Brasil, vendem
pó em sacolas plásticas brancas ordiná-
rias, de supermercado (a branca com um
coração vermelho escrito “Zona Sul” de-
nota o trânsito da cocaína pelas diferentes
áreas da cidade), postas em cima das me-
sas de bar, como barraquinhas vendendo
refrigerante no meio da rua, com crianças
ainda uniformizadas da escola brincando
correndo em volta.
98
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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A estratégia de nomeação em ho-
menagem é apropriada pelo Estado em
Khayelitsha, maior “favela” (township, “na-
vio da cidade”, o que está de fora, ancorado
no porto, à espera de autorização para pisar
em terra) da África do Sul. O nome signi-
ca “novo lar” em isiXhosa, língua falada em
Eastern Cape, estado sul-africano de onde
muitos foram removidos e deslocados para
começar aquela comunidade, em 1983. O
Estado intitulou a nova área na língua dos
vitimizados, Khayelitsha, o novo lar, que
não tinha característica de casa alguma e
hoje abriga 392 mil habitantes num mar de
residências feitas com um material ondu-
lante prensado (poliuretano?), arquiteturas
de emergência, de resistência. As paredes
ondulam, as portas, milhares de contêineres
iguais à máquina do tempona Ceilândia de
Branco Sai, Preto ca, lme de “cção cien-
tíca” de Adirley Queirós. Os tetos em ondas
carregam pedras para não serem levados
pelo vento, muito forte na região sul do conti-
nente africano, onde venta como em Jerico-
acoara, ponta nordeste brasileira, de frente
para o mar aberto, cabelos embaraçados.
Contânier, máquina do tempo,
em Branco Sai, Preto Fica, e
container em favela na África
do Sul. (Imagem encontrada em
http:// www.papodecinema.com.
br/artigos/confronto-branco-sai-
-preto-ca, setembro 2016 e fo-
tograa pela autora).
99
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Numa jornada inclusiva àquela fa-
vela, conversei com os moradores-artistas,
poets of spoken words”, muitos também ra-
ppers, cantores de hip hop. Organizei uma
ocina no dia 02 de janeiro, descolonizando
completamente o calendário escolar. Disse
que seria sobre cartazes, porque estava
bastante impressionada com as mensagens
por toda cidade de “Safe abortion painless
ou “Penis Enlargement” ou “Lost lover, call
Dr. Rahman” ou ainda pastores anunciando
igrejas, inclusive a brasileira Universal do
Reino de Deus, que tem uma sede enor-
me lá: “Jesus Christis the lord”. Éramos um
grupo de seis e propus que escolhêssemos
uma palavra, cujas letras seriam construí-
das por post-its contendo mensagens nos-
sas. Era preferível que a palavra tivesse
seis letras, uma para cada um, embora a
ideia da autoria coletiva apontasse para a
mistura completa de bilhetes que compo-
riam cada letra. Conversamos sobre black
power, o orgulho negro e o dia a dia daque-
les moradores, chegando a uma palavra:
Cultcha. Em isiXhosa, a língua materna
de todos ali, a pronúncia de Khayelitsha
é Kalt’sha ou Kultsha, que quando escrita
como se fala e com C, ca Cultcha, Khaye-
litsha misturada à cultura do muro.
Apropriar-se da estética comum às
ruas para sobrepor conteúdos que valori-
zassem a população dali aos pôsteres lo-
cais era a nossa “missão afrofuturística”.
Assim, “Safe Abortion, Lost Lover” virou
Enjoy your time, take a break, Black is tren-
dy” e ao Dr. Rahman, que trazia a pessoa
amada e vendia produtos para aumentar
o pênis, enviamos a seguinte mensagem:
Dr. Rahman, we have a common human
nature, Love enlargement”. Por razões da
história recente, uma das manifestações
Imagens da ocina Literate Landscape, em Harare, Khayelitsha, África do Sul, 2016.
Realizada na The Harare Academy of Inspiration, com apoio das curadoras Brenda Skelenge e Valerie Geselev.
100
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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artísticas mais encontradas em ambientes
populares é a poesia, que se tornou um
produto do mercado pop africano global.
Os slam poetry, rituais que se assemelham
às disputas de MCs, têm inuência hoje na
periferia de São Paulo, por exemplo
XII
. Na
África do Sul, na passagem dos anos 1990
para o ano 2000, a poesia vai deixando
um pouco de lado o tom político e ganha
um individualismo, a inuência do poeta
norte-americano Saul Williams: palavras
impregnadas do jogo do hip hop, num in-
formalismo baseado menos na qualidade
estética e mais na ressonância social como
uma forma de contestar o escritor solitário
e genial de romances, de valorizar o cara a
cara, característica do hip hop. Em 2007, a
poeta LeboMashile sai do palco para a tela
da TV e inicia um programa de televisão
que alcançou dois milhões de espectado-
res, transformando a poesia num sonho de
carreira para muitos jovens.
Esta pequena cena de poetas e ar-
tistas de Khayelitsha exercita e ensina uma
conduta descolonial que faz a máscara do
neocolonialismo que assombrou a África e o
Brasil do século XX, cair. Estabeleceram-se
nesses países valores démodé, rejeitados
pelas ex-metrópoles, centros de consumo
que exportavam objetos fora de moda e tam-
bém um discurso próximo ao do crítico de
arte, porque apontava a uma economia de-
citária. Cabe ao artista latino-americano do-
brá-lo, enterrar o geneticismo e o discurso de
fontes e inuência para justicar um trabalho,
atentar à deglutição dos artistas africanos,
valorizando o apontamento das diferenças:
Olhar para o que não se olharia, escutar
o que não se ouviria, atentar para o ba-
nal, o comum, o abaixo do comum. Negar
a hierarquia inicial que vai do crucial ao
anedótico, pois não existe o anedótico, e
sim culturas dominantes que nos exilam
de nós mesmos e dos outros, numa perda
de sentido que, para nós, não é apenas
sesta da consciência, mas um declínio da
existência... (VIRILIO, 1988, 2015, p. 44).
No Observatory (bairro da Cidade do
Cabo), a camiseta Africaisthe future desla;
o futuro é dispensar o carrinho e carregar
criança nas costas como Canguru, encon-
trar nas estantes da livraria da esquina, uma
seleção descolonizadora, onde ao lado do
Chinua Achebe, do Ngebe, do Fanon, habi-
tavam Philip Dick, William Gibson, pratelei-
ras de cção cientíca, gênero marginaliza-
do dentro da literatura, chamado por Gibson
de “Golden ghetto” (um gueto dourado é mí-
dia perfeita para afrofuturar). A loja cava ao
lado do Straight no Chaser, casa de música
experimental com as paredes cobertas por
fotos dos músicos africanos negros exilados
durante o Apartheid, cujo dono, Miles, um
jornalista branco do Zimbabuê, sabia tudo
de música e gesticulava numa performance
que parecia coreografada, falando da força
ancestral carregada na base da percussão
- e apontava para o lugar do útero. Contou
que o único ainda vivo da época da ban-
da Blue Notes era o baterista Louis Moho-
lo, que regressou há dez anos de Londres
para África do Sul e dias depois, tocou na
The Harare Academy of Inspiration, centro
cultural na casa de Brenda Skelenge, em
Khayelitsha, onde cheguei pela primeira vez
pelas vias da música e imaginei o lendário
do jazz, Moholo, no palco ao lado de Elza
Soares, A Mulher do m do mundo.
No Centro de Joanesburgo, o prédio
Ponte City, cilíndrico de 173 metros de altu-
ra, o mais alto da África do Sul, foi constru-
ído em 1975 e logo invadido por gangsters
e tracantes de drogas, como o edifício Ra-
jah, da Praia de Botafogo, temido nos anos
1990 pela ocina de motos do 13º andar
ou pelos quartos usados como bordel. No
alto do Ponte, havia um outdoor da Coca-
-cola que hoje é da Vodafone, luminoso e
lembrando o Hotel Nacional, abandonado
há mais de quinze anos, ao lado da Roci-
nha, sem que ninguém invadisse. A cção
cientíca brasileira clama por um realismo
mais fantástico que construa um squatt à
beira-mar. Curioso observar que o império
do capital assemelha o estado do Ponte
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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City e do antigo Rajah, agora chamado de
Ed. Solymar: ambos foram comprados e
reinaugurados após uma reforma estrutu-
ral. Não há o fora no capitalismo, ressoam
Antonio Negri e Michael Hardt (2001), ideia
que o afrofuturismo vai tentar desmentir,
avisando que se não é possível um ocu-
pa (ocupação de edicação abandonada)
à beira-mar, que se inventem outras beiras
atravessadas por outros mares.
Ponte City, no Centro de Joanesburgo (imagem feita pela autora, 2016) e Ed. Solymar (antigo Rajah, na Praia de
Botafogo, imagem encontrada em
http://wikimapia.org/27186345/pt/Edif%C3%ADcio-Solymar-Rajah#/photo/5197268, acesso setembro 2016)
Logo depois de escrever sobre a
precariedade tão óbvia quando pensa-
mos África ou Brasil, tomo uma rasteira de
Achille Mbembe, em On the post colony,
onde ele critica a comum associação da
África com o precário. A experiência hu-
mana africana só pode ser entendida atra-
vés de uma interpretação negativa:
A África nunca é vista como possuidora de
coisas e atributos propriamente parte da
natureza humana. Ou, quando é, suas coi-
sas e atributos são geralmente de menor
valor, pouca importância, qualidade pobre.
Em sua elementaridade e primitivismo,
que fazem da África o mundo por exce-
lência de tudo que é incompleto, mutilado,
inacabado, sua história reduzida a uma
série de revéses da natureza em seu que-
sito humanístico. (MBEMBE, 2001, p. 9)
XIII
Jaílson de Souza e Silva
XIV
, geó-
grafo fundador do Observatório de Fave-
las, na Maré (RJ), repete o mesmo dis-
curso da zona sul em relação à favela.
É pelo negativismo, do feio, do violento
que este espaço de cidade é enxergado
pelos moradores da elite, numa lógica
que se repete. Na tentativa de dissociar
esteriótipos, o afrofuturismo mostra a re-
alidade digitalizante africana, com a tor-
re wi- grátis no lugar de um orelhão em
Braamfontein (bairro de Joanesburgo),
com banquinhos em volta, onde mui-
tos meninos brincam no celular depois
da escola pelas ruas, por onde passam
pessoas elegantes, saia justa até o jo-
elho, salto-alto dourado, gravata colori-
da, celulares carregados por airtime, um
pouco de tempo no ar e tranças nagôs
feitas com Brazilian Hair.
102
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Em inglês, tudo parece mais com-
pleto, para os em processo de descoloni-
zação, mesmo que chamem táxi ao que,
na verdade, é uma van igual à “Central
- Alvorada”. De van ou a pé, é possível se
libertar da retórica da economia de mer-
cado, que pendura placas pela cidade
apontando para o “Centro para resolução
de conitos”, preocupada com a “tran-
sição total para a democracia” e com a
engenharia social em geral, orientando-
-se pelo passado. A trilha escolhida para
o passeio é a da África com potencial di-
gitalizante que sempre teve, nos fones
tocam Konono Nr.1, do Congo, TsheTsah
Boys do Nozinja, com 200 milhões de vi-
sualizações no Youtube, um fenômeno
na Nigéria, videoclipe e música criados
por ex-técnico de computador de uma
township, que aprendeu a usar os pro-
gramas de mixagem de música e abalou
a África inteira. Lembro do RD, também
técnico de computador e produtor musi-
cal de funk da Maré (a rasteirinha cole-
ciona milhares de likes no Youtube) e dos
meninos do passinho.
À luz das palavras de Mbembe, a
frase na saída do Museu do Apartheid, em
Joanesburgo ressoa: “Liberdade, responsa-
bilidade e democracia”. Infelizmente, ao lado
da maioria negra, com seus cantos e danças
pela igualdade, em 2016, ainda há uma mi-
noria branca que carrega uma swástica es-
condida, como a que encontrei em Simon’s
Town, a uma hora de trem da Cidade do
Cabo. Entre arquitetura inglesa predominan-
te e pinguins africanos, resolvo espiar o que
há por trás da placa “Toy’s Museum” com a
qual me deparo. Entrei direto, desatenta, até
a primeira vitrine, onde estatelada, constatei
uma passeata nazista de brinquedo, milhares
de manifestantes com a swástica afrikaaner
no braço (é uma adaptação da swástica do
Hitler), uma alegria racista total para as crian-
ças. Atônita, não ouvi os homens do balcão
de entrada alertando para a necessidade do
pagamento de um ticket para o museu. Não
consegui reagir no reexo, depois enumerei
mil possibilidades do que poderia ter dito.
Saiu apenas “- Coisas estranhas os senho-
res têm aqui”, ao que responderam, “- Tem
gente que gosta”. Logo à frente avisto uma
Fotograa feita pela autora na Cidade do Cabo, 2016.
103
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Imagens de 16 de fevereiro de 2016, no campus da UCT.
(encontradas em http://www.groundup.org.za/article/rhodes-must-fall-protesters-destroy-uct-artworks/
e http://www.newstatesman.com/politics/uk/2016/02/rhodes-must-fall-any-debate-money-talks,
acesso em setembro de 2016.)
placa de uma empresa de construção civil
com a logomarca parecendo uma swástica
adaptada. Na Alemanha, é inconcebível uma
swástica circular sem explicações, mesmo de
maneira subliminar, e por estar acostumada
com a violência deste símbolo, saí impacta-
da pela mensagem travestida de brincadeira,
de dentro daquele museu privado. Comparti-
lho da revolta que o povo negro sul-africano
dissipa, dissimula, em nome da democracia,
querendo crer na igualdade. A Organização
das Nações Unidas chegou a proibir a ven-
da de produtos derivados do petróleo vindos
da África do Sul até que a pressão interna-
cional casse insustentável e obrigasse os
brancos a abrirem a mesa de negociações
para acabar com o Apartheid. Sinto glória no
ar, o mundo inteiro em crise e na África do
Sul, a crise é a prosperidade, é o caminhar
de dreads orgulhosos, coloridos, é um salão
de tratamento de cabelos lotado em cada es-
quina, é elegância sem marca, sem etiqueta.
Em um vídeo documental a que assisti no
Museu do Apartheid, Winnie Mandela se le-
vanta e incendeia: “- Não temos armas, mas
temos petróleo e caixas de fósforos”. Fize-
ram uso destes fósforos os estudantes que,
em 16 de fevereiro de 2016, como parte dos
protestos #feesmustfall e #rhodesmustfall,
contra o privilégio de brancos nas acomoda-
ções estudantis no campus da Universidade
da Cidade do Cabo (UCT) e a privatização
do ensino público no país; queimaram pintu-
ras coloniais que eram parte da coleção da
Universidade de Cape Town, numa fogueira
em frente à UCT. Rhodes must fallé um mo-
vimento que começou em março de 2015,
quando estudantes e equipe da UCT se or-
ganizaram para clamar pela remoção da es-
tátua de Cecil Rhodes do campus, para, sim-
bolicamente, apontar à queda inevitável da
supremacia branca e do racismo ali.
104
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Houve poucos, porém alguns bran-
cos, indianos e mestiços que se envolveram
na luta anti-apartheid, como Ruth Slovo e Dr.
Neil Agget, torturado até a morte, na prisão
de Robben Island. Ainda assim, sentir-me
adrenalada de medo andando pelas ruas é
como vestir a pele de uma segunda catego-
ria. Joanesburgo é uma Black city que tenta
me enjaular o tempo todo, mas a contragosto
das recomendações, atravessei a ponte Nel-
son Mandela. Braamfontein é “seguro”, cheio
de lojinhas design, cafés com capuccino, ga-
lerias de arte exibindo fotos PB dos cabelos
afrodreads. Do outro lado, espetinhos de car-
ne, biltongs, tecidos coloridos, costureiras e
costureiros pelo meio da rua, milho no grill,
Náiques fake (muitos), “eternal happiness,
call now!!!”, um frio na barriga ao atravessar
embaixo do viaduto ao lado de dois mole-
ques carregando um pedaço de pau. Desco-
bri um coletivo de Soweto, comunidade onde
Nelson Mandela morava, em Joanesburgo,
chamado Smartees, formado por jovens esti-
listas que criam uma moda baseada em rou-
pas de grifes italianas falsicadas (made in
China). A glamourização do falso, a ironia da
cópia, é um caminho para denominarmos e
depois, salvarmos o mundo simbólico do Sul.
Só a cção salva
Quando toda a realidade parece
tender a um m, o ensaio The Truth of Fic-
tion (ACHEBE, 1978), aponta para a força
da cção e o papel da arte em persuadir a
imaginação e distribuir valores culturais que
desmantelem autoritarismos, como Guerni-
ca, de Picasso, que foi um esforço em criar
uma nova ordem de realidade, uma faceta
existencial contraposta ao fascismo. O artis-
ta inventa para sair dos problemas (não fugir,
mas encontrar soluções), como as crianças
que inventam papéis para si, ngem que
são pai e mãe ou professor e aluno. Falta ao
Centro o poder da imaginação, a capacidade
de recriar a si mesmo através dos olhos dos
outros, de se colocar no lugar do outro e a li-
teratura e a arte são vias para a identicação.
Uma pessoa insensível ao sofrimento dos
demais na sociedade não exercita a imagina-
ção, da qual, muitas vezes, o privilégio é um
adversário, criando uma grossa camada so-
bre a sensibilidade, que a distancia do mun-
do. O artista não possui classe social; almoça
com o presidente e janta com o morador de
rua; atravessa a divisão de classes exercitan-
do a imaginação a partir da identicação, a
conexão humana no seu lugar mais íntimo.
Na medida em que exercita uma reinvenção
da memória coletiva para lançar projeções,
o afrofuturismo quando aplicado à realidade
brasileira, é capaz de reformular a função do
pobre, do periférico e desamarra a narrativa
social encontrada nos jornais, lança a possi-
bilidade de cção ao narrador periférico, que
deixa de lado o lugar de sofrimento ou crime,
onde a sociedade o coloca e onde ele mes-
mo se vê, para deixar fruir o pensamento.
O citado lme brasileiro Branco
Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, criado na
Ceilândia, periferia de Brasília, termina com
a frase “a nossa memória, fabulamos nós
mesmos”, numa vontade de mostrar que a
memória tradicional é reacionária, embala o
passado numa cápsula como se tivesse sido
um tempo bom, embora tenha sido horrível.
O lme trata da amputação dos corpos pe-
riféricos pelo poder, espelha a realidade da
UPP proibindo os bailes funk na favela numa
amputação cultural semelhante à ocorrida
nos anos 1980, em Brasília, quando a black
music contrapunha-se aos homens brancos,
lhos de embaixadores, ouvindo The Cure.
Por negar um parâmetro de consumo, foi cor-
tada, proibida, porque potência é revolução.
Sensível às práticas perversas coloni-
zadoras, o artista sueco Nikolaj Cyon tentou
responder à pergunta “E se a África não tivesse
sido colonizada?” desenhando um novo mapa
do continente, usando a cartograa como um
processo de deslocamento, que está para a ge-
ograa, como a escrita está para a palavra fala-
da, é o registro, o que dene, prova de um acor-
do. Cyon constrói mapas sob o título de Alkebu
Lan, antiga palavra árabe para denir a África,
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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terra do povo negro, para mostrar os territórios
dos maiores grupos étnicos antes da Europa
chegar, se as fronteiras entre esses grupos ti-
vessem sido mantidas imóveis, em 1600.
Também pensando numa reformula-
ção de fronteiras, o coletivo dinamarquês Su-
perex na exposição You can´t eat identity, vai
até a ilha Anjouan, ao norte de Madagascar,
no Oceano Índico, para coletar material para
uma vídeoinstalação sobre os construtores de
barcos. A ilha ca a apenas 70 km de Mayot-
te, outra ilha, mas esta, território francês, pro-
tegido pelas câmeras de segurança e pela
agência Frontex. Mayotte era uma ex-colônia
francesa que voltou atrás e pediu para ser
francesa de novo, é o pedaço de Europa mais
longe do continente, para onde os tracantes
de gente, chamados localmente de sonhado-
res, atravessam por mar aberto pessoas de
uma ilha à outra, alguns em busca de um bom
hospital ou medicamentos ou apenas para
visitar parentes e amigos. Antes da fronteira,
eram todos muito próximos e hoje, apesar
da diculdade e do perigo da travessia, ainda
mantêm laços. Anjouan é um hyperlink para a
situação dos refugiados chegando à Europa,
que muitas vezes não se autodenominam re-
fugiados, são pessoas precisando experimen-
tar outras situações de vida. O vídeo do Su-
perex conta a história do mito de origem da
Europa, uma mulher libanesa, que resolveu
atravessar o oceano e foi seduzida por Zeus
e levada até a Ilha de Creta, inaugurando o
continente. Europa era uma mulher árabe.
No mesmo ímpeto de entender o sig-
nicado das fronteiras, o escritor e jornalista,
colaborador da Chronic (Chimurenga), Sean
O’Toole, vai a campo investigar as bordas
que separam a África do Sul de Moçambi-
que e do Zimbábue. São 62 quilômetros na
divisa com Moçambique e 268, com Zimbá-
bue
XV
. As primeiras congurações fronteiriças
eram orgânicas, feitas com plantas sisal que
atraíam macacos e elefantes, com a prote-
ção militar ao fundo. Nos anos 1980, o regi-
me do Apartheid construiu a fronteira elétrica
reforçando o comprometimento do Estado
em prover uma imagem de medo e inovação
com tecnologias de segurança: 330 km de
grade elétrica letal. Hoje, a grade não é mais
elétrica, mas continua a delinear o aqui e o ali.
Não é nada se comparada à cerca elétrica de
seis metros de altura de Melilla, território es-
panhol no norte da África ou aos 8m de altura
do muro do West Bank, em Israel. De acordo
com o geógrafo francês Michel Foucher, em
2012 havia cerca de 17 muros internacionais
cobrindo 7500 quilômetros, ou 3% das fron-
teiras existentes. Ele não havia contabilizado
o muro anti-imigrantes de 175km que está
sendo erguido pela Hungria desde 2015 ou
aquele que a Bulgária também constrói.
Para mergulhar na busca por territórios
espaciais (gaia, a Terra como um único orga-
nismo vivo, uma vez que seus componentes fí-
sicos estão num complexo interagente) e tem-
porais (antropoceno, referente ao período mais
recente da história do Planeta Terra, quando as
atividades humanas começaram a ter um im-
pacto global signicativo no planeta) utópicos,
que desmantelem o capitalismo neoliberal, es-
peculativo e colonizador, o exercício proposto
aqui, atentei às pequenas situações sociais
que encontrei durante dois meses na África do
Sul. O ponto de vista para uma escrita desco-
lonizadora que se deseja aqui, leva em conta
uma experiência plural da natureza, não é ex-
clusivamente humano. Atém-se à transmissão
de conhecimento oral, costume africano até a
chegada colonial, que impôs o livro como ob-
jeto sagrado e embora as fontes para os pen-
samentos aqui reunidos sejam em sua maioria
livros, artigos, lmes, vídeoclipes e músicas,
grande parte do que consegui captar da África
deriva de vivências e conversas. Experimentei
aprender a pronúncia para algumas palavras
em isiXhosa que colocam a língua de encon-
tro ao céu da boca, fazendo um estalo (clique)
que não imaginei que pudesse caber no dia a
dia, como quando imitamos o som do cavalgar
para uma criança. É perceptível que a vocali-
zação das línguas africanas inuencia o portu-
guês brasileiro, uma das razões pelas quais a
etnolinguísta Yeda Pessoa Castro acredita que
o brasileiro falado é mais próximo das línguas
106
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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africanas, principalmente da sociedade bantu
(Angola, Congo, Moçambique, entre outros po-
vos), oriundas da África-Subsaariana, do que
o português brasileiro escrito, mais próximo de
Portugal. Nossa forma vocalizada de falar é
bantu, nosso jeito de negar duas vezes, como
em: não vou, não, também. O momento, no
entanto, não é de negar, é de mesclar, sincreti-
zar e olhar adiante, valorizando nossa descen-
dência africana, como fazem os músicos Cadu
Tenório e Juçara Marçal e preenchendo lacu-
nas da História com elaborações inventivas.
Considerações nais
Minha proposta neste artigo foi anali-
sar obras artísticas que abalam estruturas de
poder numa situação de mundo fracassado,
ainda baseado num modelo de sujeição pela
lógica identitária, que vem pelo viés de lingua-
gem - cultura, derivado portanto, de uma matriz
branca, logocêntrica, europeia, além de textos
de teoria que questionam essas estruturas.
Também procurei construir experiências, que
fazem com que essas leituras se tornem mais
vivas, que dão corpo a essas leituras, o que é
inseparável da compreensão do meu próprio
processo de inventividade, criação, fabulação
artística. O deambular como ferramenta de
criar paisagem, como prática estética, como
espero que o texto tenha iluminado, são fun-
damentais para compreensão descolonizada
do mundo. Sair da cidade conhecida por to-
dos, à dos guias turísticos, para alcançar suas
margens invisíveis, territórios em transforma-
ção para enxergar o que está ao redor sem
medo do encontro com a alteridade radical,
e ir além, como fazia Helio Oiticica com suas
“errâncias urbanas”. Ele tinha o hábito de pe-
gar um ônibus e se deixar levar até o ponto
nal para ver onde dava. Os artistas talvez
sirvam como “coiotes”, os que ajudam os imi-
grantes ilegais a atravessar fronteiras.
Estes escritos moram numa bibliote-
ca de rua em Nutopia (New + utopia, nome
que em português soa ainda mais interes-
sante), micro-nação fundada no dia da men-
tira em 1973, por Yoko Ono e John Lennon,
que satirizavam os problemas de obten-
ção de visto do inglês Lennon, nos EUA, à
época. Nutopia não tem país, fronteiras ou
passaporte, somente pessoas e todos seus
cidadãos também são seus embaixadores
sem leis, que não sejam as cósmicas.
Imagem da exposição Leituras para mover o centro, CCBB RJ, 2016. Fotograa: Mario Grisolli.
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Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Trabalho realizado com a colaboração de Eliana
Moreira Frittrang (Brasil), Marilena Magdalena
(Angola), Mariana Sirem Bari (Guiné Bissau).
CCBB, 2016.
108
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Bibliograa
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2013, no evento Hemispheric Institute, Instituto
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vel em:http://hemisphericinstitute.org/hemi/pt/
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te-rolnik. Acesso em: 10 jul2016.
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rizonte: A utência Editora, 2016.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura dos trópicos.
2a edição. Rio de Janeiro:Ed. Rocco. 2000.
VIRILIO, Paul. Estética da desaparição. Rio de Ja-
neiro: Contraponto, 2015. (Coleção ArteFíssil, dire-
ção: Tadeu Capistrano)
Recebido em 08/03/2017
Aprovado em 20/03/2017
Texto construído a partir da recusa de duas imigrantes haitianas no Rio de Janeiro em autorizar o uso da
imagem para o trabalho. CCBB, 2016.
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
I Ana Hupe. Doutora em Linguagens Visuais pela EBA
– Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Conta-
tos: anahupe@gmail.com; anahupe.com
II Traduzido do trecho em inglês: But rather than emphasizing the
angstof this space of discontinuity, the beat is a joyful adrenaline
rush. The ritual participant enters into the gateways of trance and
encounters the possibilities of a freedom unheard of in the world
of narrative, the world of hierarchical domination where time and
perception are constructions of those classes and races in power.
For the descendants of slaves for whom “work” is still tainted by the
inequalities of a system based on White European domination and
rigid class hierarchies, this “break” is a moment of liberation that is
pregnant with deep-seated historicaly earnings and utopian visions.
III Continuando a descrição iniciada no capítulo anterior, trecho
traduzido pela autora: “A partilha do sensível revela quem pode ter
uma parte do que é comum para a comunidade com base no que
fazem e no tempo e no espaço em que esta atividade é realizada.
Ter uma “ocupação” em particular, assim, determina a capacidade
ou incapacidade para assumir o comando do que é comum para a
comunidade; (...) Do inglês: “The distribution of the sensible reveals
who can have a share in what is common to the community based
on what they do and on the time and space in which this activity is per-
formed. Having a particular ‘occupation’ thereby determines the ability
or inability to take charge of what is common to the community; (...)”
IV Movimento de libertação das colônias africanas e de
união dos países africanos.
V A partir de 1940 até o presente, os censos nacionais
vêm documentando disparidades persistentes entre as po-
pulações branca e não-branca em educação, realização
vocacional, ganhos e expectativas de vida. Levantamentos
realizados em pesquisas têm demonstrado que as atitudes
e estereótipos racistas referentes a negros e mulatos estão
amplamente disseminados por toda a sociedade brasileira.
VI Depois do ritual de matar o outro, comido por toda a tribo,
o guerreiro escolhido para a tarefa, sai em retiro de até um ano,
quando vai ganhando outros desenhos no corpo e até mesmo
outro nome, ao longo da assimilação desse devir da subjetivida-
de. Sensações e afetos que vão ser performatizados, vão tornar
sensíveis, no corpo, os efeitos dessa transformação pela qual o
guerreiro passou. O efeito dessa transformação para a tribo é
fundamental. A partir da absorção dos efeitos do outro no corpo,
a tribo passa por um processo de reinvenção de si. Os tupinam-
bás aceitavam facilmente abrir mão de vários aspectos da cultu-
ra deles, como também os retomavam com facilidade, se fosse
necessário, isso levou os jesuítas portugueses a considerarem
os indígenas “almas inconstantes”, que acabou por gerar o título
“A inconstância da alma selvagem” ao livro de Eduardo Viveiros
de Castro. O único valor do qual os tupinambás se recusavam a
abrir mão era o ritual antropofágico. Os portugueses queriam que
eles zessem isso para incorporarem os inimigos mortos como
escravos, eles preferiam dar um membro da tribo como escravo
a deixar de realizar o ritual, que era o coração daquela cultura.
VII ROLNIK, Suely. Disponível em: O retorno do corpo-
-que-sabe, palestra no SESC Vila Mariana, janeiro de
2013, no evento Hemispheric Institute, Instituto hemis-
férico de performance política. Disponível em: http://he-
misphericinstitute.org/hemi/pt/enc13-keynote-lectures/
item/2085-enc13-keynote-rolnik. Acesso em: 10 jul 2016.
VIII Hoje, o Brasil tem cerca de 200 milhões de habitan-
tes e a África do Sul, 50 milhões.
IX MBEMBE, Achille. The way I see it - The Internet is Afropoli-
tan. In: Chronic, Chimurenga. Março, 2015. Traduzido pela au-
tora do inglês: “I told you about the 1 million Chinese. In Angola
and Mozambique, over the last Five years, we have witnessed
there turn of 18.000 Portuguese, some of whom had left du-
ring the colonisation, others Just coming in. You have people
coming in from South Asia, Moroccans coming from the north,
and establishing themselves in major cities in South Africa.”
X O embate com a língua afrikaans é ainda mais acirra-
do, trata-se de um dialeto derivado do holandês, falado
pelos brancos sul-africanos.
XI MILLI B, Miss. Disponível em: http://missmillib.co.za/colu-
mn-that-time-my-privilege-got-the-better-of-my-sensibilities/.
Acesso em: 10 jan. 2016. Traduzido pela autora a partir deste
original: “This black South African manhas no ambitions to excel
in the English language. He thought it interesting that I should
correct him about a language that is not his own, in a language
that is not my own. He said he wished I had done it to him at-
tempting to speak my home language of is isXhosa, which he
does not speak. ‘’Decolonizing is practice, you know”, He decla-
red. ‘’We may communicate in the oppressor’s language but,
I don’t respect it enough to want to be good at it’’. I kept guard
of my words when I realized that I had Just reenacted a scene
I saw too many times and hated as a child but He externalized
them. ‘’You Just reminded me of my white school teachers who
used to beat this language in to us’’, he said with a smile that
disarmed my defensive position so that this exchange unfolded
like a conversation between a teacher and a student. I didn’t feel
bad more than I felt misunderstood. In my mind, I wasn’t one of
those judgmental Anglophile black people because I’m ‘’cons-
cious’’, I’m ‘’woke’’, I understand how oppressive systems work.”
XII A Flupp, em 2015, organizou o Rio Slam Poetry, com
16 poetas do mundo todo.
XIII MBEMBE, Achille. On the Postcolony. University of Califor-
nia Press. Berkeley and Los Angeles, California. 2001. Traduzi-
do pela autora do original: “Africa is never seen as possessing
things and attributes properly part of “human nature.” Or, when
it is, its things and attributes are generally oesser value, little
importance, and poor quality. It is this elementariness and pri-
mitiveness that makes Africa the world par excellence of all that
is incomplete, mutilated, and unnished, its historyr educed to a
series of set backs of nature in its quest for humankind.”
XIV Em palestra no Centro de Artes da Maré, em 19 de
maio de 2016, dentro do evento Micro utopias, organi-
zado pelo Creative Lab.
XV O´TOLLE, Sean. Three men, a fence and a dead
body. In: Chronic, Chimurenga, julho 2013. Disponível
em: http://chimurengachronic.co.za/three-men-a-fence-a-
-dead-body/. Acesso em: 19 Jan. 2016.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Carnet de routes: following Blaise Cendrars in Brazil
Diário de bordo: seguindo Blaise Cendrars no Brasil
Diario de bordo: siguiendo Blaise Cendrars en Brasil
Luca Forcucci
I
Abstract:
Carnet de Routes includes the idea of travel rst as a metaphor of the
experience of the work. The motivation starts with the observation of the
current practice of sound in the arts being still somehow a niche per se.
The aim resides in pushing the sonic practice further by exploring the
multimodal possibilities of sound and its plastic possibilities in relation to
space, body and perception by mean of compositions, sound installations,
performances, poetry and writings. It includes a visual and sensitive
aspect of sound by way of performance where the author / composer
leaves its responsibility to the audience, which in turn recompose the
sound away from the loudspeaker. The material is recongured to explore
the interrelations of all the media at disposal for the work itself. Therefore
the work is not a nal object per se, but the result of the addition leading
in neto the perception within the audience’s mind. It explores issues of
serendipity, psychogeography, affect and embodiment (of someone else).
Accordingly, sound may magnify situations and elds of possibilities beyond
phenomenological considerations and not as a creator of ambience;
rather, it is investigated towards philosophical and anthropological issues
about interiority and exteriority. In May 2016 I arrived in Brazil and two
days after, the president Dilma Rousseff was impeached. During the
next three months protests in the streets, the words and writings from the
streets slowly entered into my mind and works.
Keywords:
Perception
Serendipity
Space
Embodiment
Sound
Manifesto
111
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Resumo:
Carnet de Routes (ou Diário de Bordo) inclui a ideia de viagem primeiro
como uma metáfora da experiência da obra. A motivação começa com
a observação da prática atual de som nas artes sendo ainda, de alguma
forma, um nicho per se. O objetivo reside em levar a prática sônica além,
explorando as possibilidades multimodais do som e suas possibilidades
plásticas em relação ao espaço, corpo e percepção por meio de
composições, instalações sonoras, performances, poesia e escritos. Inclui
um aspecto visual e sensitivo do som por meio da performance, onde o
autor / compositor delega sua responsabilidade ao público - que, por sua
vez, recompõe o som para longe do alto-falante. O material é recongurado
para explorar as inter-relações de todos os meios disponíveis para a obra
em si. Portanto, a obra não é um objeto nal per se, mas o resultado
da soma, levando, no nal das contas, à percepção dentro da mente
do público. Explora questões de sorte e acaso, psicogeograa, afeto e
personicação. Nesse sentido, o som pode ampliar situações e campos
de possibilidades para além das considerações fenomenológicas e não
como um criador de ambiência; em vez disso, é investigado em relação a
questões losócas e antropológicas sobre interioridade e exterioridade.
Em maio de 2016 cheguei ao Brasil. Dois dias depois, a Presidente Dilma
Rousseff sofreu um impeachment. Durante os próximos três meses de
protestos nas ruas, suas palavras e seus escritos lentamente entraram
na minha mente e nos meus trabalhos.
Resumen:
Carnet de Routes (o Diario de Bordo) incluyela idea de viajeprimero como
una metáfora de la experiencia de la obra. La motivación empieza conla
observación de la práctica actual de sonido en las artes siendo aún, de
algún modo, un nicho per se. El objetivo reside en llevar la práctica sónica
más allá, explorando las posibilidadesmultimodales del sonido y sus
posibilidades plásticas en relación al espacio, cuerpo y percepción por
medio de composiciones, instalaciones sonoras, performances, poesíay
escritos. Incluye un aspecto visual y sensitivo del sonido por medio de la
performance, donde el autor / compositor entrega suresponsabilidad al
público - que, por su vez, recompone el sonido lejos del altavoz. El material
es recongurado para explorar las interrelaciones de todos los medios
disponibles para la obra en si. Por lo tanto, la obra no es un objeto nal
per se, pero el resultado de la suma, llevando, por n, a la percepción
dentro de la mente del público. Explora cuestiones de suerte y acaso,
psicogeografía, afecto y personicación. En ese sentido, el sonido puede
ampliar situaciones y campos de posibilidades para las consideraciones
fenomenológicas y no como un criador de contexto y ambiente; en cambio,
es investigado en relación a cuestiones losócas y antropológicas sobre
interioridad yexterioridad. En mayo del 2016 llegué a Brasil. Dos días
después, la Presidente Dilma Rousseff sufrió un impeachment. Durante
los próximos tres meses de protestos en las calles, las palabras y los
escritos de ellas lentamente adentraron mi mente y mis trabajos.
Palavras chave:
Percepção
Acaso
Espaço
Personicação
Som
Manifesto
Palabras clave:
Percepción
Oportunidad
Espacio
Encarnación
Sonido
Maniesto
112
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Carnet de routes:
following Blaise Cendrars in Brazil
It is from the body that one per-
ceives and lives the space and
that it happens
Henri Lefebvre
A kind of aesthetic osmosis be-
tween the artist and the viewer
via the artwork
Marcel Duchamp
Introduction
The point of departure of the
project Carnet de Routes (Diário de
Viagem / Road book), relies on sound-
scapes and townscapes mapped
on texts fromthe Brazilian travels of
the French / Swiss poet Blaise Cen-
drars (Rio de Janeiro, Minas Gerais,
Sao Paulo and from one novel, called
Moravigne, where there is the mention
of a fictional journey in the Amazon
Rainforest)and my own experience in
those locations. Cendrars went to Brazil
for the first time in 1924, and travelled
with a group of Brazilian Modernists
(Mário de Andrade, Tarsila do Amaral
and Oswald de Andrade among others)
on the invitation of the business man
and friend Paulo Prado. The memory
of Blaise Cendrads is vividly present
since we are both born in the same city
in Switzerland (La Chaux-de-Fonds).
How the experience can be embodied
on the base of writings from the past?
How can such experience be trans-
ferred to the audience? The proposal
includes soundscapes, texts, video
and photos collected between Decem-
ber 2008 - June 2016, and presented
between January and August 2016 in
Switzerland and Brazil.
In September and October2015,
Iconductedtheresearch on the writings,
the travels of Blaise Cendrars and the
Modernists at the Biblioteca Parque Es-
tadual na Avenida Presidente Vargas
in Rio de Janeiro.Moreover,my travel
in Brazil on his tracesincludes the idea
of serendipity emerging from sponta-
neous thoughts and fortuitous occur-
rences. Discovering, causality, acci-
dents, improvements, and knowledge
combine towards describing serendip-
ity, a term coined by Horace Walpole in
1754 (VAN ANDEL, 1994, p. 633). The
origin seems to be found in a Persian
fairy tale in which an ancient king sent
his sons to discover and experience
the world (the three princes of Seren-
dip) (MERTON; BARBER, 2004). In
following their quest, they had experi-
ences not those originally planned yet
accidental and coincidental - and which
took them to new horizons. Real or not,
the story behind serendipity highlights a
field of possibility for the sound walker.
Furthermore, serendipity is a contem-
porary issue on how we discover and
collect information and data through a
search engine, how one then build his
knowledge on such base and how one
can be ‘(re)directed’ by the algorithm.
The title Carnet de Routes includes the
travel as a metaphor of the audience’s
experiencebased on my own personal
travels in Brazil. Carnet de Routes are
roads crossing as a kaleidoscope of
experiences emitted by the author and
perceived by the audience as a mental
space in relation to the space the author
explored andfrom which visual mental
imagery is possibly generated.
Space
The term space derives from the
French espace and Latin spatium. The
later, from the point of view of this pro-
ject, refers to the Greek chôra as being
113
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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the distance between objects, sites and
places and according to Casey:
‘Chôra’ is ‘room’ that is filled, not va-
cant space (kenon) [...] Heidegger
remarks that the Greeks experi-
enced the spatial on the basis [of]
chôra, which signifies [...] that which
is occupied by what stand there,
the place belongs to the thing itself.
(CASEY, 1998, p. 353)
Moreover the idea of chôra as
a receptacle, not a void, in mental im-
agery, is viewed in Rickert’s proposal
as ‘a locatory matrix for things’ (…)
Chôra includes emotions, sensations,
and other marks and traces of psychi-
cal and material experience (RICK-
ERT, 2007, p. 259, 260, 261). Chôra
relates to the idea of space filled with
sound and how it leads to a) a defini-
tion of space by (moving) sound and
b) a merger defined by the relation of
sound and space. Therefore the space
is not a vacant space, but it exists be-
cause sound defines the space and
vice versa. Sallis cites Plato about
chôra as ‘a mass of wax or other soft
material on which the imprint of a seal
can be made’ (SALLIS in BOELL-
STORFF, 2011, p. 515). Moreover in
this sense, the project investigates the
space occupied by sound and the kind
of imprint is left in the mind of the lis-
tener, and which emerges the sound
and space relationship.
Extensive philosophical ques-
tions defining the space and how it is
perceived are proposed in The Poetics
Of Space by Gaston Bachelard (BA-
CHELARD, 1992). The development of
Bachelard is based on the poetic rep-
resentation of space as internally pro-
duced by the imagination. Bachelard
interprets metaphorically intimate
spaces by proposing the house as a
symbolic view of the body. Therefore,
the study of space within the human-
istic perspective is the study of ideas
and spatial feelings linked to sensa-
tion, perception and conception (SAN-
GUIN, 1981, p. 568). The sum of the
relationships of sound and space is
felt and is actually the atmosphere
that consequently affects and leads to
perception within the body of the audi-
tor. Böhme proposes that ‘the primary
“object” of perception is atmospheres’.
(BÖHME, 1993, p. 125). Therefore,
in the context of atmospheric archi-
tectures it is the felt architecture that
affect the body of the viewer/auditor.
Moreover, as claimed by Massumi, it
relies ‘on the irreducibly bodily and au-
tonomic nature of affect’ (MASSUMI,
2002, p. 28). In the current research,
affect includes the body as mental im-
age.However, in reference to Douglas
Kahn essays ‘Let Me Hear My Body
Talk, My Body Talk’, the artist and crit-
ic Seth Kim-Cohen underlines Kahn’s
thoughts about the role of the body,
percepts and ambience:
[…] the body’s role as a producer
and/or receiver of signals; the body’s
status as a component of the subject,
as a discrete object, or as an entity
that complicates this divide. Follow-
ing from this, I want to think about
how Cage, Turrell, and so many
contemporary artists working with
sound direct attention toward per-
cepts, toward the sensory conditions
of a given time and space. I want
to think about how this turn toward
a situation’s ambience downplays
other situational relations: issues of
interiority and exteriority, real versus
mediated experience, and how these
relations instantiate power in one lo-
cation, one actor, or another. (KIM-
COHEN, 2013, p. 18,19)
In relation to Kim-Cohen’s pro-
posal, sound is not approached here as
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a creator of ambience; rather, it is in-
vestigated towards the relationships be-
tween sound, space, body, perception,
and issues about interiority and exte-
riority. The latter issues are of particu-
lar interest and developed by exploring
the Glass House of the architect Mies
van der Rohe, with the idea of interpen-
etration of external and internal space
asthe work implies a connection among
sound, space and architecture, from a
Cagean point of view and as a meta-
phor of internal vs. outer spaces of the
body. Mies van der Rohe’s Glass House
includes Duchamp’s ideas found in The
Large Glass, as proposed by Lebel:
The design of the Glass thus can
never be seen by itself, apart from its
surroundings, but it is inscribed, as it
were, like the other image of a double
exposure, ceaselessly transformed
by a background of reections in
which that of the spectator himself is
included. (LEBEL, 1959, p. 68)
Cage, too, refers to Mies van der
Rohe’s architectural relations to the
environment, as influenced by Moholy-
Nagy, and through the idea of spatial
relations instead of volumetric ones, ac-
cording to Branden:
The discussion of architectural space
presented by Laszlo Moholy-Nagy in
the book The New Vision […] truly
spatial relations – as opposed to vol-
umetric ones – were only achieved
by modern architecture through the
mutual interpenetration of the in-
terior and exterior of the building.
(BRANDEN, 1997, p. 87)
Mies van der Rohe’s thoughts
on transparency are present in Cage’s
iconic piece 4’33’. The ideas are of si-
lence, and the interpenetration of the
interior, exterior, and the reflections of
the surroundings.
Deep and Heightened Listening
The focus of listening in the present
projectrelates on the late American com-
poser Pauline Oliveros and her concept
of deep listening (Oliveros 2005). Height-
ened listening observes each detail of the
sound, as proposed by Oliveros:
With heightened listening ability
one can detect the slightest dif-
ferences in sounds. This enables
acute voice recognition, echo de-
tection, spatial location, etc. Such
heightened listening substitutes
auralization for visualization (or
seeing) by creating sonic pictures
(OLIVEROS, 2010, p. 79).
She developed ‘a practice that is
intended to heighten and expand con-
sciousness of sound in as many di-
mensions of awareness and attentional
dynamics as humanly possible’ (OLI-
VEROS, 2005, p. xxiii). Oliveros specifi-
cally proposed sound imagining in her
sonic meditations (OLIVEROS, 1974).
Such ideas (sonic pictures and sound
imagining) contribute towards the devel-
opment of a new dimension in listening,
composing, and perceiving sound. The
heightened and deep listening modes
are paramount in the exploration of the
relation of sound and space, and for
the study of the visual imagery induced
by sound, it may relate to architectural
and environmental space visualisation
where the body of the observer/listener
is certainly present as well. If the lis-
tener experiences the space and envi-
ronment in their mental imagery while
listening, then I expect that they shall
perceive as well their body as part of
the environment that can be acted upon
(sense of agency), by claiming that the
first person experience is an environ-
ment, which necessarily involves the
observer/listener, and as such it might
appear in the mental image.
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Presentation
Museum of Fine Arts / Le Locle / Switzerland / January 23 2016.
Performance with sound, text cut-up, video, dancer (Crystal Sepúlveda) and Vic Muniz’s paintings.
Centro Municipal de Arte HelioOitica / Rio de Janeiro / Brazil / May - June 2016.
12 C Print 70x100 with text / 6 C Print 30x40 with text / Video 10’ / Sound Performance 30’.
Photo: Luca Forcucci
Photo: Luca Forcucci
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Photo: Luca Forcucci
Photo: Luca Forcucci
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Photo: Pedro Victor Brandão
Photo: Pedro Victor Brandão
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Photo: Pedro Victor Brandão
Photo: Pedro Victor Brandão
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Red Bull Station / São Paulo / July and August 2016.
• Container Steel 0.60 x 1 x 3 m / Black Ink & Urban Activity / Site-Specic;
• Digital print on voile fabric / 1 (4 x 2.80 m) 2 (4.25 x 2.90 m) 3 (4.25 x 2.90 m)
Spatial occupation 3 x 4 x 4.25 m;
Amplier Ampeg / Contact microphone / Urban Activity / Site-Specic.
Photo: Ignacio Aronovich
Photo: Ignacio Aronovich
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Photo: Ignacio Aronovich
Photo: Ignacio Aronovich
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Photo: Ignacio Aronovich
Photo: Ignacio Aronovich
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Festival Bigorna / São Paulo / June 2016.
Sound Performance 40’.
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Recebido em 08/03/2017
Aprovado em 24/03/2017
Luca Forcucci. PhD Sonic Arts, Montfort University, Uni-
ted Kingdom. Reino Unido. Contato: forcucci@gmail.
com; www.lucalyptus.com
Photo: Ignacio Aronovich
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Espetáculo “O²”: aproximações entre a prática de aula e a criação artística
Espectáculo “O²”: similitudes entre la práctica en clase y la creación artística
”O²” Show: approximation between class practice and artistic creation
Lara Seidler de Oliveira
I
Resumo:
O presente artigo apresenta a dinâmica de produção artística e acadêmica
desenvolvida no Projeto de Pesquisa D.O.A. (Dança e outras artes) do Departamento
de Arte Corporal da UFRJ e os aspectos peculiares presentes no processo de
pesquisa em dança, no que diz respeito à preparação corporal e à composição
coreográfica, baseados numa metodologia teórico-prática. Esse projeto de pesquisa
teve início em 2012 e traz como enfoque,no presente momento, a investigação
sobre a construção de diferentes qualidades gestuais que desencadearam o
espetáculo de dança contemporânea intitulado “O²” a partir da análise, vivência e
recriação de algumas práticas, abordagens e técnicas corporais já estabelecidas,
como:o Método Pilates, técnicas de meditação e a dança contemporânea, sob um
olhar somático-criativo.A partir da descrição do espetáculo, pretende-se discutir a
metodologia usada que se baseou primeiro, na identificação de alguns princípios que
regem essas técnicas, em seguida na recriação e diversificação desses princípios
em diferentes situações gestuais em aulas, e terceiro na criação de roteiros e cenas.
Toda experiência corporal nas aulas era conduzida a partir de estratégias baseadas
no pensamento somático (soma-corpo) introduzido pelo filósofo americano Thomas
Hanna na década de 1970 e que hoje é utilizada amplamente por professores e
artistas da dança que entendem e trabalham sobre a subjetividade da vivência
corporal, sobre os aspectos particulares da forma individual de sentir, perceber e
mover e que acessam questões que se apresentam somente na e durante a
experiência do corpo. O corpo, não entendido como carne morta, mas como corpo
vivo, onde se vê o “eu, o ser corporal” ou na prática onde o sujeito se vê como sujeito
e objeto da experiência. Além disso, o trabalho pretende apresentar a metodologia
criativa que permeou toda a prática de aula e de composição cênica, pautada nos
estudos desenvolvidos pela Professora Emérita Helenita Sá Earp, que ressalta
a importância do desenvolvimento da criatividade como atributo principal de um
professor ou de um bailarino, que baseia todo o saber sobre o corpo na dança em
princípios fundamentais da ação humana regidos pela noção de Movimento, Espaço-
Forma, Dinâmica e Tempo. A escolha de tais abordagens e práticas corporais,
não somente se limitaram à preparação corporal do intérprete, mas forneceram o
elemento temático na composição artística: a respiração. Neste sentido, o processo
de criação pretendia tecer a aproximação entre a prática de aula e a prática cênica
a partir da ideia primeira de que o ato de dançar não separa o ato criativo do ato
técnico, sobretudo, quando regido pelo pensamento de que o fazer na dança é
imbuído de um engajamento sensível, físico e criativo. Além disso, o estudo propôs
uma investigação específica no sentido de repensar, recriar algumas abordagens
corporais a partir de suas bases fundamentais para criação de novos estímulos/
exercícios e vivências corporais em aulas e, em conjunto, para elaboração de um
produto artístico proveniente de uma prática somática e criativa.
Palavras chave:
Prática corporal
Pensamento somático
Criação
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este artículo presenta la dinámica de la producción artística y académica
desarrollada en el Proyecto de Investigación D.O.A. (Danza y otras obras de
arte), Departamento de Arte Corporal de la Universidad Federal de Rio de
Janeiro (UFRJ) y los problemas especícos que intervienen en el proceso de
investigación en danza, con respecto a la preparación corporal y la composición
coreográca, con base en una metodología teórica y práctica. Este proyecto
de investigación iniciado en 2012 tiene como objetivo, en la actualidad, la
investigación sobre la construcción de diferentes cualidades gestuales que
llevaron al espectáculo de danza contemporánea titulado “O²”, a partir del
análisis, experiencia y demás prácticas, enfoques y técnicas corporales
establecidas, tales como: el Método Pilates, técnicas de meditación y danza
contemporánea bajo un aspecto somático-creativo. A partir de la descripción de
la serie, tenemos la intención de discutir la metodología utilizada, que se basa
en primer lugar en la identicación de algunos de los principios que rigen estas
técnicas, a continuación, en la recreación y la diversicación de estos principios
en diferentes situaciones gestuales en clase y tercero en la creación de guiones
y escenas. Cada experiencia corporal en la clase se llevó a cabo a partir de
las estrategias basadas en el pensamiento somático (soma-cuerpo) introducido
por el lósofo americano Thomas Hanna en los años 1970 y hoy en día es
ampliamente utilizado por los profesores y artistas de la danza que entienden y
trabajan en la subjetividad la experiencia del cuerpo en los aspectos particulares
de forma individual a sentir, percibir y moverse, y los problemas de acceso que
se presentan sólo en y por la experiencia del cuerpo. El cuerpo, entendido no
como carne muerta, sino como un “cuerpo vivo”, donde se ve el “yo, siendo el
cuerpo” o en la práctica en la que el sujeto es visto como sujeto y objeto de la
experiencia. Además, el trabajo pretende presentar la metodología creativa que
impregnaba toda la práctica de la clase y composición escénica, con base en
los estudios realizados por el Profesor Emérita Helenita Sa Earp, que pone de
relieve la importancia del desarrollo de la creatividad como principal atributo de
un maestro o un bailarín, que se basa en el conocimiento que todo el cuerpo
en la danza en los principios fundamentales de la acción humana se rige por la
noción de movimiento, la dinámica espacio-forma y hora. La elección de este tipo
de enfoques y prácticas corporales, no sólo se limita a la preparación del cuerpo
del intérprete, pero siempre y cuando el elemento temático en la composición
artística: la respiración. En este sentido, el proceso de creación destinado a
tejer lazos más estrechos entre la práctica de la clase y la práctica escénica
desde la primera idea de que el acto de bailar no separa el acto creador del
acto técnico, sobre todo cuando se rige por la idea de que hacer el baile está
impregnado de un compromiso sensible, físico y creativo. Además, el estudio
propone una investigación especíca para repensar, volver a crear algunos
enfoques del cuerpo y de sus bases fundamentales para la creación de nuevos
estímulos/ ejercicios y experiencias corporales en las clases y, en conjunto, para
el desarrollo de un producto artístico de una práctica somática y creativa.
Palabras clave:
Práctica corporal
Pensamiento somático
Creación
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Keywords:
This article presents the dynamics of artistic and academic production developed
in the Research Project D.O.A. (Dance and other art) of the Department of
Body Art at Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) and the peculiar
aspects present in the dance research process, regarding body preparation
and choreographic composition, based on a theoretical-practical methodology.
This research project began in 2012, and focuses on the current research on
the construction of different gestural qualities that triggered the contemporary
dance show entitled “O²” from the analysis, experience and recreation of some
practices, approaches and body techniques already established, such as:
Pilates, techniques of meditation and contemporary dance, under a somatic-
creative look. From the description of the show, it is intended to discuss the
methodology used that was based rst, the identication of some principles
that govern these techniques, then in the recreation and diversication of these
principles in different gestural situations in classes and third in the creation
of scripts and scenes. All bodily experiences in the classes were driven by
strategies based on somatic thinking (body-soma) introduced by the American
philosopher Thomas Hanna in the 1970s and widely used today by teachers and
dance artists who understand and work on the subjectivity of Bodily experience,
about the particular aspects of individual way of feeling, perceiving and moving,
and that access questions that arise only in and during the experience of the
body. The body, not understood as dead esh, but as a living body, where one
sees the “I, the corporeal being” or in the practice where the subject sees himself
as subject and object of experience. In addition, the work intends to present
the creative methodology that permeated all classroom practice and scenic
composition, based on the studies developed by Professor Emérita Helenita
Sá Earp, which emphasizes the importance of the development of creativity
as the main attribute of a teacher or a dancer, who bases all knowledge about
the body in dance on fundamental principles of human action governed by the
notion of Movement, Space-Shape, Dynamics and Time. The choice of such
bodily approaches and practices was not only limited to the body preparation
of the performer but provided the thematic element in the artistic composition:
breathing. In this sense, the creation process was intended to approximate
the practice of class and the scenic practice from the rst idea that the act of
dancing does not separate the creative act from the technical act, especially
when governed by the thought that doing in dance is imbued with a sensible,
physical and creative engagement. In addition, the study proposed a specic
research in the sense of rethinking, recreating somebody approaches from
their fundamental bases for the creation of new stimulus / exercises and
corporal experiences in classes and, together, for the elaboration of an artistic
product from a Somatic and creative practice.
Palavras chave:
Bodily practice
Somatic thinking
Creation
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Espetáculo “O²”: aproximações entre a
prática de aula e a criação artística
Sobre o espetáculo
O que pode ser tão instintivo e
natural, fio condutor da vida e da
morte, colocado em primeiro pla-
no da ação traz, nas suas inúme-
ras relações com os sentimentos,
olhares, tensões, provocações e
desafios? O limiar da vida e do
movimento de um corpo. O corpo
que sufoca, o corpo que toca, o
corpo que esvazia a si e preenche
o espaço de cores. O espetáculo é
para ser inspirado e expirado mais
do que assistido.
(autora)
O Projeto D.O.A. vem se desen-
volvendo desde 2012 e já produziu al-
gumas composições coreográficas que
estiveram em circulação dentro da Uni-
versidade e fora, em âmbitos nacionais
e internacionais. Entre elas: a instala-
ção performática intitulada “Conversas
na noite”, a instalação “Poéticas na
noite”, a performance intitulada “Caixa
preta”, “Integrar meus lares”, a expo-
sição fotográfica “Night Talks” e o es-
petáculo “Corpos Móveis”. No ano de
2016, o projeto se debruçou sobre a
relação mais direta sobre a prática de
preparação corporal e a atuação cêni-
ca e produziu o espetáculo intitulado
“O²”, baseado na temática respiratória
como inspiração.
Como uma das atividades mais
naturais do homem, a respiração, ela,
com tantas possibilidades de senti-
dos, já foi muito pensada ao longo da
história cultural da humanidade, sen-
do motivo de curiosidade de filósofos
e sábios e motivo de investigação bio-
lógica e artística.
O trabalho coreográfico “O2“
traz a respiração como principal obje-
to investigativo, transformando-a para
além de uma mera capacidade física,
investindo-a e investigando-a nas pos-
síveis construções poéticas através
das partes do corpo individual e do co-
letivo, delineando diferentes qualida-
des expressivas do gesto e da cena.
Seu significado no Dicionário Online se
refere ao: ato ou efeito de respirar, mo-
vimento duplo dos pulmões, de inspira-
ção e expiração; fôlego, processo me-
tabólico no qual o oxigênio molecular é
absorvido pelas células e na oxidação
de moléculas orgânicas, resultando na
liberação de energia para outros pro-
cessos metabólicos e na eliminação de
dióxido de carbono e água. Pode ter
como sinônimo: bafo, hálito.
II
Sua ori-
gem vem do latim respiratĭo, ōnis, onde
Re designa-se à outra vez e Spirare,
respirar. Abrange os dois atos: a inspi-
ração e a expiração.
III
O espetáculo conta com a seguin-
te equipe de pesquisa: coordenação,
direção, orientação, preparação corpo-
ral e criação de Lara Seidler, pesquisa,
criação e atuação de Eleonora Artysenk,
Edemir Junior, Maruan Sipert, Mauricio
Lima, Denize Souza e Maryana Caval-
cante; iluminação e cenário de Vanessa
Alves e produção: Denize Souza e Tarso
Oliveira, sendo premiado no Edital Cena
Aberta 2016 da FUNARTE onde ficou
em cartaz no Teatro Cacilda Becker no
Rio de Janeiro, além de ser premiado no
Edital Tiradentes Cultural 2017, onde re-
alizará apresentações e oficinas ao logo
do ano. No âmbito acadêmico, o traba-
lho foi premiado como melhor trabalho
na sessão de performance na XXXVIII
Jornada Giulio Massarani de Iniciação
Científica, Tecnológica, Artística e Cul-
tural - JICTAC 2016 da UFRJ.
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Práticas corporais
A dança é entendida em sua totali-
dade enquanto campo de saber legítimo
e historicamente delineada por suas atri-
buições artística, educativa e de saúde
e somente se faz presente, porque per-
tence, interage e participa da história do
pensamento social, cultural e cientíco
da humanidade. Os usos, hábitos e prá-
ticas do corpo dizem muito sobre a cul-
tura de um povo. Marcel Mauss (2003)
discorre em seu texto sobre as como os
diferentes usos do corpo podem moldar
suas posturas e suas formas de mover.
Os aspectos culturais de cada povo,
seus comportamentos e valores sociais
são determinantes no posicionamen-
to sociocultural do individuo, entendido
este como corpo e corporeidade, como
estrutura e como complexo em transfor-
mação. Nesse sentido, a corporeidade
ressalta que há um uxo de experiências
presentes e passadas no corpo; que o
corpo evoca sua história e integra seu
contexto social às suas novas experiên-
cias, recriando-se em outro num proces-
so uido e constante.
O corpo está em constante movimen-
to, e o movimento faz parte da natu-
reza do corpo, não existe estaticida-
de na corporeidade”. Neste sentido o
corpo não se separa da sua presença
enquanto ser em movimento, e que
responde em sua corporeidade num
entrelaçamento de ações especícas
mentais, emocionais e físicas. (EARP
apud LIMA, 2002, p.27-28)
Igualmente, nesta pesquisa, ree-
timos sobre como as práticas e aborda-
Fig 1: Cena do “sopro”. Bailarinos-criadores: Maurício Lima, Maryana Cavalcante, Maruan Sipert e Edemir Junior
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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gens técnicas do corpo podem delinear
formas de mover e entender a corporei-
dade ou como as diferentes técnicas de
movimento já desenvolvidas na dança,
nos oferecem uma leitura cultural do cor-
po através da história. E não menos, pode
fornecer pistas para o entendimento das
abordagens e práticas da dança na atu-
alidade e nos fornecer parâmetros para
o processo de criação e desenvolvimento
de novos estudos.
Sobre a Metodologia de pesquisa
O estudo partiu de um interesse
inicial sobre a importância de algumas
técnicas corporais para o trabalho de pre-
paração de bailarinos e alguns questio-
namentos foram dando um norte para o
desenvolvimento da pesquisa até corro-
borar para a criação cênica: que corpos
são formados a partir do trabalho espe-
cíco de determinada prática ou técnica
corporal? Como é possível recriar de-
terminadas práticas ou abordagens téc-
nicas do corpo? Como a recriação de
modelos já determinados pode inuen-
ciar na potência criativa e expressiva do
bailarino?Como é possível elaborar uma
composição artística a partir da recria-
ção, re-elaboração de determinados ele-
mentos técnicos já estabelecidos?
As práticas do Pilates e de téc-
nicas de meditação foram escolhidas
por também serem de conhecimento do
professor que as ministrava. Além dis-
so, toda prática de dança orientada nes-
te projeto se baseava em princípios de
conscientização para o movimento e de
uma conduta de estimulação à criativi-
dade a partir dos estudos desenvolvidos
por Helenita Sá Earp (1948). A pesquisa,
também, se desenvolveu sob inuência
direta do pensamento somático que des-
creve inúmeros modos de abordagem do
corpo, muito utilizado nos dias de hoje,
no campo da dança, como a técnica de
BMC (Body Mind-Centering) de Bonnie
Bainbridge Cohen (2002).
Essas duas abordagens, de Earp
e Cohen, deram o suporte metodológi-
co para a condução criativa e somática
do princípio da respiração elencados da
técnica de Pilates e das de meditação.
Dessa maneira, é interessante notar,
que a pesquisa revela um entrecruza-
mento de práticas corporais onde cada
uma teve um papel determinante na
construção de uma metodologia própria
na dinâmica do projeto de pesquisa: as
técnicas de Pilates e meditação ofere-
ceram mais diretamente a respiração
enquanto elemento a ser investigado e
os estudos de Cohen e Earp oferece-
ram a metodologia criativa e sensível
para o estímulo sensível ao movimento
e para diversificação do tema nas aulas
e na construção das cenas.
Em primeiro plano, houve um le-
vantamento teórico sobre a prática do
“Pilates”, chamada assim, com o nome
do próprio criador Joseph H. Pilates
(1880-1967). O reexo da ascendência
da cultura corporal holística que se ini-
ciou mais ou menos em nal do século
XIX e início do século XX, coincidiu com
a retomada da ideia de integração corpo-
-mente,precursora hoje nas concepções
da chamada Educação Somática. Em vá-
rias correntes de pensamento vemos esta
abordagem: losóca com Merleau-Pon-
ty, com a fenomenologia, na psicologia
de Freud, Jung e nas artes com François
Delsarte (1811-1871), Émile Jaques-Dal-
croze (1865-1950) e Rudolf Laban (1879-
1958), Gerda Alexander (Eutonia), Mat-
thias Alexander (Técnica de Alexander)
e até nas metodologias de Angel Vianna,
Rolf Gelewski e Helenita de Sá Earp.
O Pilates é um método de ativi-
dade corporal de caráter holístico, que
prioriza o trabalho da região do chamado
“centro”, ou seja, da região do tronco for-
129
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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talecendo e acionando conscientemente
a musculatura dessa região como a ab-
dominal e costal e fortalecendo e alon-
gando as outras partes do corpo. Seu
pensamento gira em torno de uma ação
pensante e concentrada buscando um
equilíbrio entre as cadeias musculares
do corpo, superciais e profundas. Seu
método utiliza, entre outros, do recurso
da ativação da respiração e do estímulo
imagético para o acesso às musculaturas
mais profundas, estabilizadoras e para
um movimento uído e livre. O equilíbrio
corpo-mente se reete também numa
prática que visa um corpo forte e exível.
Esse método teve grande repercussão na
preparação de bailarinos na década de
1930, segundo Brooke Siler (2008), atra-
vés da escola em Nova York e hoje é pra-
ticado por diversas pessoas com objetivo
de uma melhora na qualidade de vida.
Outra abordagem utilizada no
trabalho de preparação corporal dos
bailarinos foram algumas técnicas de
meditação. Sabemos que muitas técni-
cas respiratórias são utilizadas para di-
versos ns terapêuticos, porém foram
escolhidas técnicas simples com o ob-
jetivo de mobilizar a concentração, pro-
vocar descontrações indesejáveis e po-
tencializar um estado de prontidão para
o movimento, como por exemplo: contar
cada inspiração e expiração com intuito
de manter a mente concentrada na res-
piração (caso perdesse a contagem de-
veria recomeçar a contagem); o simples
ato de observar a respiração; respirar
em cada parte do corpo com intuito de,
através da imaginação, “acordar” as par-
tes do corpo, ou preparar-se psicologi-
camente para o movimento; respirar em
cada chakra
IV
, com intuito de energizar e
“abrir” cada um deles, segundo a loso-
a do campo de energia humana. Alguns
autores foram elencados para este con-
teúdo como Babara Ann Brennan (2006),
Tenzin Wangyal Rinpoche (2010) e Arílio
de Cerqueira Filho (2013).
A abordagem criativa
Os estudos de Earp (1948), que
digamos assim, através da contribuição
para um pensamento que preza pela
identicação de princípios da ação e de
sua articulação criativa e no entendimen-
to de uma corporeidade una e diversa,
conduziu toda a estruturação das aulas e
a criação de laboratórios de experimenta-
ção e roteiros cênicos.
Segundo o artigo do estudioso Car-
los Augusto Santana Pereira (2008) em
1939, com apenas vinte anos, Earp foi
uma das que introduziu a dança na univer-
sidade, numa época em que a Universida-
de Federal do Rio de Janeiro chamava-se
Universidade do Brasil. Ela integrava a ca-
deira de Ginástica Rítmica, onde a disci-
plina dança era inicialmente vinculada e,
três anos depois, se tornava autônoma.
A partir daí, Earp desenvolve sua didática
para a dança que logo ela denomina Ativi-
dades Rítmicas Educacionais sintetizando
a ginástica rítmica e as danças educacio-
nais que, nesta última categoria, era sub-
-dividida em danças regionais e dança na-
tural. Em 1943 ela funda o Grupo Dança
da UFRJ e somente em 1970 é criado um
departamento especíco para a dança,
o Departamento de Arte Corporal (DAC).
Em 1992 criava-se um curso de especiali-
zação em dança e enm, em 1994 o curso
de graduação em dança.
Numa universidade moderna,
onde os ideais militares perdiam suas
forças, Earp lutava contra um tratamen-
to conservador do corpo em prol de um
corpo livre e de uma dança democrática
através de uma metodologia aberta de
educação pelo movimento e pela dan-
ça possível em todos os corpos. É ob-
servado que, na mesma época, outros
movimentos pioneiros na implantação
da dança no Brasil aconteciam, como na
Universidade Federal da Bahia com Rolf
Gelewiski; o trabalho de Maria Olenewa
130
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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no Teatro Municipal e mesmo os traba-
lhos desenvolvidos por Angel e Klauss
Vianna em Minas Gerais, em seguida
na Bahia e nalmente no Rio de Janeiro
onde passaram a residir a partir de 1960.
Sobre uma estrutura cientíca da
Educação Física, Earp se esforça em
construir seu pensamento didático-artís-
tico, a partir da prática corporal simplória.
A reunião de conhecimento através das
ciências e da losoa e a incorporação
de várias áreas como artes plásticas, li-
teratura, siologia, biomecânica, física,
matemática, dentre outras, mostra a ten-
dência interdisciplinar do pensamento ar-
tístico e educacional da época moderna
(PEREIRA, 2010, p.76). Por este viés,
sua metodologia era baseada primordial-
mente sobre os movimentos básicos do
corpo humano, sua construção criativa e
a partir de um pensamento didático pro-
gressivo que visava o entendimento das
mais simples engrenagens do movimento
e suas complexidades.
Também é imprescindível relatar a
importância fundamental do pensamento
de Dalcroze através da Euritmiaque in-
uenciou Earp sobre aspectos do ritmo e
se tornou um dos pontos principais da sua
losoa. Com grande inuência de Laban
e Isadora Duncan, também, é claro, nos
pensamentos de Earp, a abolição da dico-
tomia entre corpo e mente e, também, a
íntima relação de arte e educação, como
observamos nas palavras de Pereira:
Expondo de maneira supercial, a
característica fundamental do pensa-
mento de Helenita reside no esqueci-
mento radical e denitivo, da distinção
entre corpo e mente o que isso signi-
ca? Signica que, tal como Duncan e
Laban, que balizaram suas reexões
no ataque a uma certa concepção de
movimento corporal padronizada do
corpo propalada na modernidade, He-
lenita também se posiciona neste ho-
rizonte, mas num direcionamento de
abandonar (que em hipótese alguma
quer dizer descartar) a célebre discus-
são, tentando empreender um novo
horizonte de possibilidade para o fazer
artístico da dança aberto por esses
autores (PEREIRA, 2010, p. 76).
Nos estudos da mestra Helenita
Sá Earp, o gesto é constante mudança.
A partir, da losoa univérsica de Rohden
(1984 e 2007) e da losoa oriental, a es-
tudiosa considera que a dança é o próprio
estado de criação. Pela linha do pensa-
mento místico, o corpo dançante é aquele
que representa mais do que o ato de criar,
que signica a transição de uma existên-
cia para outra, mas o “crear” que segue
as mesmas características do criar, porém
fazendo reetir a manifestação da essên-
cia em forma de existência, essência esta,
que signica a própria natureza humana,
enquanto natureza criativa.
Sua teoria Fundamentos da Dança
é explicada a partir da condição de ma-
leabilidade, tanto embasada pela mística
do movimento humano como pela sica-
lidade aprofundada através dos elemen-
tos da linguagem da dança presentes
nos Parâmetros da Ação Corporal. Seus
estudos são classicados de forma sis-
temática por estes parâmetros que, na
práxis da dança, organizam o movimento
em relações setoriais abertas e especí-
cas frente aos princípios cientícos do
movimento, denominados por essa pes-
quisadora como: Parâmetro Movimento;
Parâmetro Espaço/Forma; Parâmetro Di-
nâmica e Parâmetro Tempo. Os Parâme-
tros são denidos para a delimitação do
fazer criativo e da análise dos aspectos
de uma ação. Funcionam como gramáti-
ca do movimento, promovem uma forma
de organização dos pensamentos sobre
o corpo em movimento, sendo, portanto,
um modo de ver e perceber as ações ex-
perimentadas, ou seja, instauram possi-
bilidades de criação e reexão sobre o
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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gesto a partir de situações germinais, de
delimitações investigativas e de relações
criativas innitas.
Na abordagem prática das aulas
de técnica de dança, alguns princípios
geradores do movimento são abordados
de forma criativa, por exemplo: a ideia de
eixo corporal e o trabalho de equilíbrio e
desequilíbrio do corpo podem ser traba-
lhados nas várias relações de pé, no mes-
mo lugar ou do corpo em deslocamento,
em deslocamento com voltas com eixo
centralizado ou com eixo descentralizado
ocasionando desequilíbrios, ou pode ser
trabalhado em duplas, trios, em bases
de apoio no chão (sentada, ajoelhada...),
onde o centro de equilíbrio do corpo pode
ser provocado a desestabilizar-se.
Assim, na investigação das muitas
possibilidades que rondam um determina-
do princípio do corpo em movimento, são
criados, exercícios com repetições ou são
estimuladas experimentações livres. Além
de outros aspectos, a aula preza por uma
coerência com a progressão didática, os
níveis de aprendizagem motora e a sio-
logia como: etapas de aquecimento, es-
tímulo e desaquecimento. As aulas são
criativas e muitas das situações de movi-
mentos e exercícios são criadas na rela-
ção professor-aluno.
No pensamento acerca do movimen-
to criador – dança, Earp procura te-
cer reexões acerca de uma possível
ciência da arte coreográca enquan-
to uma dialética complementar entre
imaginário e mobilidade; tratando a
imagética como a pulsão originante
da criação do movimento e a inves-
tigação de conceitos de variação das
possibilidades do movimento dançan-
te como pólos complementares. Sua
investigação racional para subsidiar
uma epistemologia não-fundacionis-
ta, não-fechada na dança, se traduz
numa estética da inteligência das
possibilidades do corpo enquanto ser
em devir aberto (LIMA, 2002, p.2).
A forma de pensamento de Earp
contribuiu para entender que, nesta
pesquisa, o cruzamento das técnicas e
abordagens (Pilates, técnicas de medi-
tação, estudos de Earp e da educação
somática por Cohen) tinha como objeti-
vo não o de oferecer ao praticante um
somatório de experiências ou uma asso-
ciação justaposta de vários métodos, o
que poderia delimitar um certo aprisiona-
mento e uma rigidez, mas tinha o intuito
de, a partir delas, observar quais pode-
riam ser seus princípios geradores e daí,
criar e recriar novas formas de aborda-
gem corporal. Desse modo,pretendia-se
uma experiência livre de modelos e au-
tônomo do praticante frente ao princípio
técnico escolhido, no caso, a respiração.
Assim, foi eleita, como elemento técnico
comum as práticas corporais escolhidas,
a respiração. E esta, então, passou a
ser o objeto de pesquisa e investigação
do corpo e do movimento. Lima (2012)
endossa nosso objetivo maior, quando
critica a visão,às vezes equivocada,por
práticas que oferecem poucos subsídios
que estimulem a auto-consciência para
o movimento e prática de criação. Neste
sentido ele descreve:
Isto signica dizer que o intérprete é
formado por um somátório de aulas
realizadas em várias técnicas codi-
cadas de dança em métodos fecha-
dos de ensino. A apuração técnica e
o ecletismo corporal é obtido, neste
caso, pela multiplicidade das práticas
experimentadas.
E a prática da improvisação ca dire-
cionada, neste contexto, apenas para
ns de criação coreográca. os
Fundamentos da Dança de Helenita
Sá Earp propõem uma outra maneira
de preparar tecnicamente o intérpre-
te de dança sem o submeter a um
alinhamento justaposto de repetição
132
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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de modelos pré-codicados a priori,
pois não identica nesta metodologia
de ensino da dança, uma forma de
trabalho que reconhece a necessi-
dade de se estabelecer os princípios
do movimento e relações intrínsecas
entre si, o que leva com que haja
uma grande perda do potencial da
dança como forma de produção de
conhecimento em si mesma; como
também diculta e não garante seu
vínculo com outras áreas artísticas e
cientícas. Earp estabelece uma vi-
são de técnica que fornece subsídios
para a criação de diferentes práxis de
ensino da dança coadunadas com os
desaos da dança na atualidade. As-
sim, a visão de técnica se estabelece
para proporcionar o domínio, a trans-
formação e a criação de múltiplas
genealogias, tipos de movimentação
e estilísticas corporais em diversas
estruturas de aulas voltadas para
uma formação eclética do intérprete
na dança(LIMA, 2012,137-138).
Com base na inuência do pen-
samento criativo de Earp, o elemento
da respiração foi trabalhado nas aulas
de diversas maneiras. Os exercícios de
respiração e meditação foram reelabora-
dos e extrapolados no sentido em que a
respiração poderia seguir as “regras” de
um dado método, mas também poderia
ser deslocado para, por exemplo, todas
as partes do corpo, de um corpo para o
outro, em duplas, ou em diferentes qua-
lidades: resistidas, suavizadas... A respi-
ração também poderia ser contínua en-
tre inspiração e expiração, a inspiração
poderia ser apenas imaginada na cabe-
ça e a expiração na perna direita (ideia
das “partes que respiram”) ou na relação
respiração e movimento. A inspiração po-
deria seguir uma qualidade suave nos
braços e a expiração uma qualidade for-
te nos movimentos do tronco, ou até na
articulação com a apneia
V
, realizar movi-
mentos respirando ou não.
Nessa investigação criativa des-
se tema, os exercícios de alongamento,
fortalecimento, coordenação, agilidade,
atenção etc. eram organizados dentro de
uma progressão didática, improvisados ou
em sequências denidas. Vale ressaltar
o caráter artístico e técnico que as aulas
nesta metodologia criativa podem alcan-
çar. Muitas qualidades expressivas, ges-
tos interessantes e envolvimentos ativos e
criativos dos praticantes resultavam numa
tríade interessante entre: exercício, expe-
riência criativa e produção artística.
Este sentido teve grande impor-
tância nesta pesquisa: as aulas de dança
podiam ser coerentes com a preparação
corporal e ao mesmo tempo espaços de
produção artística e não mais pensadas na
dicotomia aula-ensaio, mas todas as aulas
podem ser pequenos espetáculos, pois o
corpo é o mesmo e a atribuição criativa da
aula permite este pensamento. Assim, as
aulas podiam ser pensadas como peque-
nas cenas e isso aproximou e integrou a
prática das aulas à prática cênica.
Estimulação em todas as camadas
O projeto acontecia duas vezes
por semana durante três horas por dia.
A partir desta dinâmica entre aula e cena
não aconteciam intervalos separando a
aula da montagem; ambos aconteciam
de maneira ligada. A aula desencadeava
laboratórios de experimentação que eram
seguidos de roteirização e composição de
pequenas cenas que logo foram organiza-
das e aperfeiçoadas num grande roteiro
coreográco, desencadeando o espetácu-
lo com duração de 40 minutos.
Havia um tempo para a experimen-
tação e prática do Pilates e das técnicas
respiratórias, mas era um “Pilates criati-
vo”, onde mais de seus princípios funda-
dores estavam presentes do que seus mo-
vimentos e nomenclaturas. A abordagem
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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se dirigia, como já foi descrito, à criação
e à experimentação corporal. Entretanto,
exigia, também, uma abordagem que pri-
masse pelo alcance mais aprofundado do
bailarino, na busca por uma experiência
incorporada, internalizada, sensível e rica,
coerente com a ideia de que o corpo, no
âmbito artístico, deve ser entendido em to-
das as suas camadas.
Na corrente de nossas reexões, a
leitura de Fritjof Capra (2006) ajudou a en-
dossar a linha metodológica do trabalho.
Ele traça um panorama da trajetória da
visão de mundo que, segundo ele, oscila
entre o cienticismo e o paradigma holísti-
co delineando processos cíclicos de trans-
formações culturais e sociais em todas as
civilizações. Segundo o autor, mesmo já
no século XXI e já em curso de mudança
de um período anterior de predominância
do pensamento cartesiano, ainda estamos
em processo de transformação da visão
da realidade mecanicista para uma pers-
pectiva ecológica, holística e integrada.
Capra consegue, apesar de sua
larga formação na área das ciências fí-
sicas, evidenciar paralelos entre a re-
volução da física moderna e suas res-
sonâncias em várias outras ciências no
que diz respeito às mudanças de valores
e pensamentos. Ao transitar por diferen-
tes áreas do saber, ele indica que ainda
se faz pertinente uma revisão sobre os
modelos conceituais e de mundo, “visões
de sistemas de vida, de mente, de cons-
ciência e de evolução, que corresponda
a uma abordagem holística da Saúde e
da Medicina de uma integração entre as
abordagens ocidental e oriental da Psi-
cologia e da Psicoterapia, uma nova es-
trutura conceitual para a Economia e a
Tecnologia e uma perspectiva ecológica
e feminista (CAPRA, 2006, s/p).
Não é difícil, partindo de sua leitu-
ra para uma aproximação com o univer-
so das práticas e abordagens técnicas
na dança. Identicar tendências concei-
tuais, características de abordagens e
pensamentos presentes nos modos de
ensinar, orientar, facilitar, treinar, esti-
mular ou educar foram se construindo
ao longo de uma relação imbricada com
padrões culturais utuantes.
Fica evidente que na escolha das
determinadas técnicas de trabalho corpo-
ral há um fator importante que é o tem-
poral e sócio-cultural que encaminha a
pesquisa para, além de fazer o entrecru-
zamento de técnicas, também faz no con-
frontamento entre ideais. O produto nal
dessas relações, aqui, é inteiramente in-
uenciado pela atualidade do pensamento
sobre o corpo. Entretanto, este trabalho
não se deterá em aprofundar estas ques-
tões, apenas se deterá nos aspectos téc-
nicos e metodológicos envolvidos no de-
senvolvimento do trabalho coreográco.
É interessante reetir sobre a con-
dução de pesquisas acadêmicas na arte
e mais especicamente na dança, onde o
corpo abre para perspectivas de estudo,
tanto de ordem cientíca e analítica, como
no caso do estudo anatômico, cinesiológi-
co ou siológico, como numa ordem que
foge aos parâmetros metodológicos da ci-
ência como as que protagonizam valores
empíricos e que convocam um corpo onde
o ser é sujeito e objeto da experiência.
Assim, o pensamento de Capra
acorda com a ideia de que o trabalho de
pesquisa corporal pode ser desenvolvido
no equilíbrio entre uma abordagem cien-
tíca e holística no âmbito da produção
acadêmica, o que pode oferecer margem,
também, às pesquisas realizadas em arte
e que necessitam de um espaço de dis-
cussão que consideram produções de
conhecimento que não se enquadram in-
teiramente no modelo cientíco:”o pensa-
mento cientíco não tem que ser necessa-
riamente reducionista e mecanicista, que
as concepções holísticas e ecológicas
134
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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também são cienticamente válidas” (CA-
PRA, 2006, p. 45).
Esse discurso motivou o processo
crítico da pesquisa desenrolando-se sobre
a metodologia empregada nas aulas e na
composição artística: a necessidade de
uma prática analítica das abordagens cor-
porais elencadas, no que diz respeito ao
seu contexto histórico, fundamentações e
funcionalidade e de uma prática criativa,
empírica, experimental e criativa nos mo-
mentos de prática nas aulas e nas cons-
truções cênicas.
A abordagem somática
Quando se está numa sala de aula
de técnica de dança, percebe-se que há
um comportamento peculiar do bailarino
que gira em torno de um objetivo de apren-
dizado e aperfeiçoamento que, na dança,
é entendido como um aprendizado corpo-
ral. Segundo Sylvie Fortin (1999), nas au-
las tradicionais de dança, a prioridade téc-
nica estava voltada para o desempenho
das habilidades motoras, mas que muitas
vezes levavam em consideração a experi-
ência emotiva e sensorial do aluno.
Desta forma, você veria bailarinos
com muita capacidade performática, mas
pouco conscientes de sua relação emo-
cional com os outros e com eles próprios.
A chamada educação somática
(soma-corpo), introduzida pelo lósofo
americano Thomas Hanna por volta de
1970, que a indica como um novo cam-
po de saber, onde corpo não se designa
como carne, estrutura física, morta, mas
num corpo vivo, presente e consciente.
Fortin ao discorrer sobre essa nova for-
ma de olhar o corpo vivo, cita Guimond
(1999, p. 6) armando que a educação
somática propõe uma nova relação con-
sigo e com os outros: aprender a sentir
o que se faz, saber o que se sente, não
mais se considerar como objeto, mas
agente consciente e criador de suas pró-
priasexperiências. Neste sentido, abor-
dagens que seguem esta linha de pensa-
mento para uma maior consciência para
o movimento,têm sido muito utilizadas
nas práticas de aulas de dança.
O objetivo do treinamento do dança-
rino é de conduzi-lo à representação
de diferentes escrituras coreográcas
com um organismo corporal ecaz,
seguro e expressivo, quer dizer, orien-
tado para o reconhecimento de toda a
carga signicante e emotiva do gesto.
Para o dançarino, a educação somá-
tica é então um meio e não um m.
(FORTYN, p. 4, 1999)
O bailarino é estimulado a experi-
mentar-se (enquanto corpo e sujeito des-
te corpo), em diferentes camadas de ati-
vação como física, siológica, psíquica,
emocional, sensorial e imaginária.
Hoje, as formas de trabalhar pre-
parar o corpo para mover têm alcançado
uma profundidade mesmo no sentido de
explorar o corpo em suas mais remo-
tas sensações, afeições e percepções,
o que evidentemente trabalha sobre o
que nos torna diferentes uns dos outros.
Portanto, é no tocante à individualida-
de, nas diferenças entre os sujeitos e
nos processos de subjetivação que es-
sas abordagens se interessam. Vemos,
por exemplo, o método BMC de Cohen
(2002) indicar que o nível ao que se pode
chegar se dá mais profundo que o per-
ceber, ou seja, está no campo ainda de
uma sensação, visceral, celular, queren-
do com isso torná-la o mais incorporado
possível daquele que a experimenta.
O processo de incorporação é um
processo de ser, não de fazer nem de
pensar. É um processo de conscienti-
zação no qual o guia e a testemunha
se fundem na consciência celular (...)
135
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A incorporação é a presença automáti-
ca, a clareza e a consciência, sem ter
que as procurar ou ser cuidadoso (CO-
HEN, P. 66, 2010). [tradução nossa]
Neste sentido, percebe-se a com-
plexidade e profundidade que um traba-
lho corporal pode alcançar, não somente
como contribuição para uma conduta de
um domínio do corpo com objetivos for-
mais e performáticos, mas como para a
mobilização de uma vivência consciente
do corpo, onde seu posicionamento é, ao
mesmo tempo, de ser objeto e sujeito da
experiência. Ou seja,valorizando, também,
os aspectos pertencentes à apropriação
consciente de seus gestos, o imaginário,
as sensações, ou os diferentes modos de
apreensão, de percepção de si no uxo
das experiências, indicando processos de
individuação e subjetivação.
Se há uma correlação possível entre
processos biológicos e sua apreensão
subjetiva (...) nos parece que esta re-
lação pode se compor de uma dimen-
são suplementar e se compreender na
lógica de um processo de individua-
ção, (BOTTIGLIERI, p.257, 2010) [tra-
dução nossa].
Na proposta desta pesquisa, a
condução das aulas de dança, apesar de
pretender preservar a experiência do/no
movimento com suas atribuições percepti-
vas, sensoriais e cognitivas, não pretendia
alijardo praticante exercícios e estratégias
para o desenvolvimento de habilidades
motoras. Trilhando caminhos duvidosos, a
pesquisa nas aulas e criações era desaa-
da na tentativa da busca pela performan-
ce engajada num mover consciente, e isto
não parece ser tarefa fácil: ambas exigem
caminhos particulares e necessitam de
tempo de trabalho.
Deve-se evitar os perigos de uma edu-
cação somática cognitiva a tal ponto
que os alunos quem paralisados para
a análise, ou ainda uma educação so-
mática com uma tal ênfase no senso-
rial que os alunos percam a sua motri-
cidade. (FORTIN, 1999, p. 4)
A solução encontrada foi de sem-
pre iniciar o trabalho do corpo com es-
tratégias de sensibilização, estimulando
o que Bonie Cohen denomina de visua-
lização e somatização: com utilização do
toque, por exemplo. Após esta etapa os
praticantes eram conduzidos a conecta-
rem os movimentos das partes do corpo
e de todo o corpo também com o intuito
de realizar um aquecimento articular, de
forma lenta, com uso de pausas, sempre
tendo a respiração como norte de todo
trabalho. Desse modo, também no intuito
de que eles não se desconectassem de
suas percepções e sensações ao longo
da execução de algum tipo de exercício
de equilíbrio, força ou alongamento, por
exemplo. Assim, a atividade era ampliada
nas relações do corpo e suas partes no
espaço, nos planos, nos diferentes níveis
ou alturas, em situações de apoios em
dois e em um pé, procurando desenvol-
ver as habilidades motoras, força, exibi-
lidade, coordenação motora, equilíbrio e
etc. Observamos a explicação de Cohen:
La visualisation é o processo pelo qual
o cérebro imagina (visualiza) elemen-
tos do corpo e informa o corpo que
ele (o corpo) existe (...) Por exemplo,
depois de ter observado a imagem de
uma estrutura do corpo, conserve esta
imagem na cabeça na sua busca, am
de tomar consciência desta parte do
corpo (visão cinestésica interna). A so-
matização é o processo pelo qual os
sistemas sensoriais cinestésicos (mo-
vimento), proprioceptivo (posição) e
tátil (tocar) informem o corpo que ele
(o corpo) existe (COHEN, P. 67, 2010).
[tradução nossa]
Assim, a dinâmica da pesquisa,
pautada na investigação da temática co-
136
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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reográca pela integração do sensível e
do criativo, foi motivando o processo de
composição artística, além de encorajaros
estudantes na busca por trabalhar no sen-
tido de uma reorganização global de suas
experiências a partir da respiração.
Algumas questões em torno da
forma como este tipo de trabalho estava
sendo vivenciado pelos bailarinos-pes-
quisadores, eram motivos de discussão
ao nal dos períodos. Conversas eram
frequentes entre os participantes a res-
peito de como eles percebiam os estímu-
los, quais caminhos imagéticos e senso-
riais lhes serviam de guia para mover ou
apenas como se sentiam durante a ex-
periência. Não é o objetivo, aqui, querer
mensurar se houve ganho na atividade
criativa e autônoma do bailarino. Entre-
tanto, além do próprio espetáculo que, de
alguma forma, pode dar visibilidade às
experiências corporais criativas ao lon-
go do processo, os bailarinos-criadores
foram estimulados a escrever um relato
pessoal sobre as cenas em que partici-
pavam ou não. Não nos interessa aqui a
descrição da cena, apenas as imagens e
as percepções individuais.
Cena do solo do bailarino Mauricio
Lima por Eleonora Artysenk
Mauricio, pouco é mais: Um balão,
enchendo pra esvaziar, um peixe sugando
pra soltar, uma faca - suavemente rasgan-
do o ar. Silêncio pra pensar se deve con-
tar. Chacoalhando pra centralizar, cair pra
erguer e recomeçar.
(Bolinho) Como é que é que seria
se fosse sua última inspiração? Como se-
ria se movimentar se fossem os únicos
instantes? Quem seria o sobrevivente?
Inspirar e expirar se tornam o ritmo do mo-
vimento, afetando o uxo, e a dinâmica da
sequência. Ying e yang* se tornam um:
ser forte, leve, contido-liberado, direto e
indireto acadaparte.
Cena do solo do bailarino Mauricio
Lima, por Lara Seidler
Aquele que o ar engasga. Respi-
ração como passagem, não que reside.
Não é o ar que fica, mas que transita
dentro-fora. O ífen quer dizer isso, não
é nem dentro nem fora, ela mora no
TAO, no caminho(no sentido taoísta) ou
talvez nem tenha uma morada. Ela pas-
sa, atravessa os espaços onde o corpo
se inclui, fazendo-o perder sua rigidez.
Qual é papel do sujeito então? Ele não
produz nada, nada dele se origina, pa-
rece mesmo que ele só sabe impulsio-
nar, jogar, empurrar e puxar, pois o ar
não lhe pertence.
O movimento do diafragma que im-
pede e dá passagem brinca com o ritmo
e com as cores que os ombros e mãos já
não resistem. Falar é só uma tentativa,
mas para quê se o mover já grita.
E por m: às vezes, na tentativa de
reter o ar, de agarrá-lo, tê-lo sob contro-
le, ele rasga, machuca e faz estafar o seu
quase dono, que se perde na sua perda.
Cena de grupo onde os bailarinos se
movem em apneia, por Lara Seidler
O ar onipresente, a todos perten-
ce, ele está em cada um, sim está, não
é. Dá o tom, traz o tempo uníssono, dá
a dica do começo e do m, mas claro,
a tentação de retê-lo é grande. E como
seria se mergulhássemos na imensidão
da inspiração sem cessar? Inspirar, ins-
pirar, inspirar, inspirar tão a fundo, na
ilusão de que esse ar que nos enche
completamente nos banhasse da mais
plena vitalidade, lá onde a morte passa
longe... ah, pura ilusão. Na tentativa de
não deixá-lo ir, ele, o ar, sai à força, for-
çando a passagem, até abrir sua saída.
O que nos resta apenas é aproveitar o
tempo em que ele está dentro, aí a nos-
sa dança tem o tempo de sua compa-
nhia, tempo curto.
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Cena onde os bailarinos cam em la
e em contato uns com outros, por
Maryana Nunes
Estamos todos perdidos, necessi-
tamos do outro, dependemos dele, nos
apoiamos nele, nos condicionamos a ele,
vamos um atrás do outro sem nunca ter
coragem suciente pra andar sozinho.
Nossa respiração acelera em pensar na
solidão, o tempo congela e camos pa-
ralisados. Perdidos, quase achados, mas
juntos, e juntos vamos nos segurando
para não cair, para não nos perdermos de
novo. O medo toma o lugar do erro e do
acerto, tira a possibilidade de mudanças,
pois o desconhecido nos assusta e por
isso é melhor assim, juntos, sempre jun-
tos pra tudo. O toque conforta, dá segu-
rança, acalma e afasta os medos. E as-
sim seguimos em frente sem olhar o que
está ao nosso redor.
Cena onde os bailarinos cam em la
e em contato uns com outros por
Eleonora Artysenk
Dependo do outro para respirar,
uma linha conectada, é preciso se mos-
trar para continuar, o olhar une, nos
tornando caçadores de oxigênio, pre-
cisamos do mesmo ar que é invadido
e expulsado, buscamos, roubamos, so-
pramos, dividimos e compartilhamoso
que nos move.
Cena onde acontecem vários solos ao
mesmo tempo, por Lara Seidler
O que conversam quando os mo-
vimentos se encontram com suas respira-
ções? Como eles falam? Como saem suas
palavras e seus gestos? Com que cores
pintam esses corpos que brincam com o
Fig 2: bailarinos em apneia:
Maruan Sipert, Eleonora Artysenk, Maryana Nunes, Maurício Lima, Denize Souza e Edemir Junior
138
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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movimento inspirado e expirado. O corpo
que nos fala, ca marcado de ar que entre
e que sai: rápido, lento, ligado, pausado,
puxado, uído, pontuado...
Aquele que dança consegue en-
tão, brincando, movendo, dançando e,
somente no gerúndio, marcar e deixar vi-
sível aquilo que não vemos, mas usamos
e desejamos: o oxigênio.
Cena de um duol onde as bailarinas se
tocam, por Denize Souza
Quando um simples toque pode
mudar até mesmo aquilo que temos de
mais orgânico: a respiração.
Neste momento não só o ar invade
o nosso corpo sem bater na porta, sem
pedir licença, mas também um outro cor-
po que anseia por tocar e ser tocado.
De repente todo o ar que temos
dentro de nós, naquele instante segue
apenas uma direção, a direção que o
sentido do tato clama através da pele.
Pelo contato toda e qualquer alteridade
se condensa, somos nós e ao mesmo
tempo somos também o outro. Tudo que
grita em um corpo pode ser completa-
mente ouvido pelo outro, sem ruídos,
sem que nenhuma palavra precise ser
dita ou sussurrada. Existem coisas que
só um corpo pode dizer ao outro.
Estes registros foram utilizados
como material interessante para o exer-
cício da prática de atuação cênica, pois
são indícios de aspectos particulares e
individuais das experiências dos bailari-
nos, além disso, reetem um pouco da
carga subjetiva que alimenta por dentro
os movimentos organizados no espaço,
lhes dão cor, força e sentido.
A partir dessas discussões, asdúvi-
das que ainda cercam a condução meto-
dológica desse processo de pesquisa ser-
vem como estímulo para sua continuação,
sobretudo, na possibilidade de estímulo a
novas formas de abordagense metodolo-
gias no trabalho do corpo.
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uso de máquinas. São Paulo: Summus, 2008.
Recebido em 10/03/2017
Aprovado em 25/03/2017
I Lara Seidler de Oliveira. Doutora em Artes Visuais
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docen-
te do Departamento de Arte Corporal da Universidade
Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Projeto
de Pesquisa D.O.A. (Dança e outras artes) da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro. Brasil. Contato:
laraseidler@yahoo.com.br
II Dicionário Online. Disponível em: https://www.dicio.
com.br/respiracao/. Acesso em: 07 mar. 2017.
III Dicionário Etimológico. Disponível em: http://www.
dicionarioetimologico.com.br/respiracao/. Acesso em:
07 mar. 2017.
IV Segundo Filho (2013), em sânscrito significa cír-
culos, ou vórtices de energias sutis que têm movi-
mentos circulares de contração e expansão no sen-
tido horizontal e vertical. Os chakras são centros de
força, que distribuem e transformam os fluxos ener-
géticos essenciais provenientes da troca energética
do corpo e do meio.
V Apneia (do em grego: ἄπνοια, a = prexo de nega-
ção e pneia = respirar) designa a suspensão voluntá-
ria ou involuntária da ventilação, ou a interrupção da
comunicação do ar atmosférico com as vias aéreas
inferiores e pulmões.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Artigos
141
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Cultura: a dádiva da sociedade
Cultura: el don social
Culture: the social’s gift
Júlio Aurélio Vianna Lopes
I
Resumo:
O texto retoma a discussão conceitual sobre o fenômeno cultural,
através dos conceitos genérico, hierárquico e diferencial de cultura,
para propor um conceito, baseado em reexões contidas no “Ensaio
sobre a dádiva” de Marcel Mauss. Concebida como dádiva entre
grupos e seus membros, a cultura assumiria conotações que
cessariam as contradições entre os três conceitos clássicos e
seriam pertinentes às atuais formulações sobre politicas, direitos e
diversidade cultural.
Palavras chave:
Dádiva
Cultura
Conceitos
142
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El artículo se analizan los conceptos genérico, jerarquico y diferencial,
a proponer um nuevo concepto, basado en teoria del Don (Marcel
Mauss). Mientras Don entre grupos y sus miembros, cultura converge
los três conceptos clássicos y es pertinente a actuales formulaciones
de políticas, derechos y diversidad cultural.
Abstract:
The paper contains a conceitual reection on culture through
generical, hierarchical and diferencial – in order to propose another
concept, based in Marcel Mauss gift’s theory. As gift from groups to its
members, culture resumes relevant aspects of classical concepts and
is sintonized with contemporary cultural policies, rights and diversity.
Palabras clave:
Don
Cultura
Conceptos
Keywords:
Gift
Culture
Concepts
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Cultura: a dádiva da sociedade
Tudo vai e vem como se houvesse tro-
ca constante de uma matéria espiritual
que compreendesse coisas e homens,
entre os clãs e os indivíduos, reparti-
dos entre as funções, os sexos e as
gerações. (Marcel Mauss, 1925)
1. Revisitando conceitos de cultura
Desde a primeira vez que foi cunha-
da em termos cientícos (culture), a cultu-
ra carrega mais de um signicado. Concei-
tuada como “complexo de conhecimentos,
crenças, arte, moral, leis, costumes ou
qualquer capacidade ou hábito adquirido
como membro da sociedade” (TYLOR,
1871, p. 1), a cultura – termo equivalen-
te ao de civilisation, então ainda preferido
pela etnologia francesa e contraposto ao
germânico Kultur (CUCHE, 1999, p. 47-
49) conuía sentidos contraditórios
que carregavam, a rigor, vários conceitos
distintos.
Tais conceitos podem ser agrupa-
dos em três modalidades: hierárquico, di-
ferencial e genérico (BAUMAN, 2012, p.
55, 63 e 79).
Como conceito hierárquico a cultura
qualica a personalidade humana,de modo
a contrastar pessoas “incultas” de “cultas”
e estas entre as mais ou as menos dota-
das (Ibidem, p 55-63). De fato, se trata de
um conceito arraigado na mentalidade oci-
dental pré-cientíca e do qual provêm ten-
dências universalistas de abordagem da
cultura (Ibidem). É a formulação conceitual
que destaca a dimensão de complexidade
intrínseca aos vários ingredientes do fenô-
meno e especicados pelo longo elenco
contido na supracitada denição de Tylor.
Como conceito diferencial a cultu-
ra – realidade plural – contrasta socieda-
des (e seus grupos e subgrupos) espe-
cícas. Projetando a notória diversidade
entre pessoas à variabilidade de grupos
(inclusive sociedades), o conceito ancora
tendências relativistas de abordagem da
cultura (Ibidem, p. 63-79) que se opõem
frontalmente à perspectiva vertical adota-
da pelo conceito anterior (Ibidem). Na ci-
tação supra de Tylor, consiste na correla-
ção estabelecida entre os tópicos culturais
(arte, moral, leis, conhecimentos, etc.) e a
sociedade especica onde têm curso.
Como conceito genérico a cultu-
ra se contrapõe à animalidade de nossa
espécie, destacando a condição humana
para além dos processos naturais. Neste
sentido, o cultural residiria na sobreposi-
ção à Natureza (Ibidem, p. 79-94), da qual
se distinguiria, essencialmente e, como
tal, (re)deniria a própria Humanidade em
face dos outros animais (Ibidem). Tão ou
mais antigo quanto o conceito hierárqui-
co, também se encontra na conceituação
de Tylor (aquisição de capacidade ou há-
bito) quando confere ao cultural a extra-
polação do natural.
Embora tais conceitos ainda se
mesclem em autores como Edward Sapir
(1949), Leslie A. White (2009) e Sherry B.
Ortner (2011), eles continuam no entanto,
sendo fundamentalmente (logicamente)
distintos (BAUMAN, p. 54-55) e, inclusive,
opostos entre si.
Conceber a cultura como hierarquia
intelectual e espiritual se confronta com a
horizontalidade entre grupos (e suas res-
pectivas culturas), postulada pelo conceito
diferencial. Ambos se opõem ao viés extra
natural do conceito genérico de cultura, no
qual a mesma consiste em atributo ineren-
te ao gênero humano: anal, se ela reside
em todo membro da espécie, não seria de
aquisição externa (pelo conceito hierár-
quico), nem tenderia à variação (pelo con-
144
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ceito diferencial), mas à uniformidade. Em
suma: cada qual dos três conceitos de
cultura contradiz os outros dois concei-
tos já formulados.
1.1 O conceito genérico de cultura
Exprimindo a téchne grega (mes-
mo depois de Aristóteles distingui-la da
episteme como equivalente à ciência), a
cultura consistiria na disposição especi-
camente humana de conferir uma de-
terminada forma a qualquer matéria. Tal
orientação distinguiria a humanidade da
animalidade, tornando as faculdades hu-
manas informadas por metas (télos) cuja
localização se encontraria, inicialmen-
te, somente na subjetividade de quem a
exercesse e, portanto, antes de se mate-
rializar (PUENTES, 1998). Característica
eminentemente humana, neste conceito
a cultura é tão peculiar à humanidade
quanto inepta à animalidade: de fato, se
trata de estabelecê-la como fronteira en-
tre ambas. Correspondente ao antigo ter-
mo grego é o latino ars (arte).
Tal conceito genérico de cultura
embasa a tradição antropológica segun-
do a qual Cultura e Natureza são vetores
paralelos na experiência humana (LA-
RAIA, 2001, p. 30-39). Neste sentido, a
humanidade possuiria duas fontes distin-
tas de conguração:
- as determinações naturais, espe-
cialmente as instintivas, tendencialmente
repetitivas porque provenientes de sua
animalidade como Homo Sapiens;
- as formulações culturais, espe-
cialmente as artísticas, tendencialmente
inovadoras porque provenientes de sua
aptidão social como criatura simbolizante.
Dentre as muitas formulações des-
te conceito de cultura, no âmbito da An-
tropologia, se destaca a que dene como
superorgânico (KROEBER, 1950) o fenô-
meno cultural, no qual se expressaria o
autocontrole humano – peculiar à huma-
nidade – da própria evolução natural da
espécie. Tal como o superego freudiano
impinge ao id (pulsões instintivas) um
ordenamento exterior, a cultura condicio-
naria a animalidade humana. Porém, di-
ferente deste conceito psicanalítico, suas
formas traduziriam uma dimensão autô-
noma em face da Natureza (Ibidem). Na
primeira formulação antropológica (SA-
PIR, 1950, p. 79-80) que distinguiu, rigo-
rosamente, entre conceitos de cultura, o
conceito genérico foi identicado de-
nindo-se cultural como qualquer elemen-
to socialmente herdado na vida humana
(grifo meu) ao lado do que a identicava
a ideais convencionais (Ibidem).
Particularmente, o conceito genéri-
co de cultura é fundamental nas escolas
antropológicas da ecologia cultural (onde
se encontram autores como Lewis H.
Morgan e Marshall Sahlins), da antropo-
logia simbólica (onde comparecem auto-
res como Clifford Geertz e Victor Turner),
do marxismo estrutural (onde despontam
Louis Althusser e Maurice Godelier en-
tre seus autores) e da economia política
(onde autores como Keith Hart e David M.
Schneider são relevantes).
Ora, atualmente, o paralelismo
cultural dos antropólogos vem sendo os-
tensivamente questionado pelas pesqui-
sas etológicas, biológicas (principalmente
de inspiração evolucionista) e no campo
da emergente sociobiologia, em torno do
resgate da animalidade humana e, con-
sequentemente, ao menos, relativizando
fronteiras entre humanos e animais. Ritos
funerários entre elefantes, linguagem en-
tre golnhos e engenhosidade ambiental
entre insetos são apenas alguns exemplos
candentes destes estudos, que também
conuem para acusar a Antropologia de,
insuspeitadamente, adotar um viés antro-
pocêntrico ao insistir na suposta transcen-
dência humana (cultural) da naturalidade
(INGOLD, 1994, p. 19-20).
145
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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As críticas ao paralelismo antro-
pológico se chocam com o dualismo –
acima exposto – entre animalidade e
humanidade, desde que a singularidade
não é mais atribuída à aptidão cultural
do humano, mas típica de qualquer ani-
mal, onde, diferente do reino vegetal, o
singular é regra e não exceção (Ibidem,
p. 20-21). Acrescentam, ainda, que toda
separação baseada na faculdade ra-
cional (Sapiens) pressuporia inadmitir
eventuais evoluções futuras de outras
espécies em direção análoga, como as
de outros primatas.
No debate atual entre biólogos
evolucionistas e antropólogos, já não é
uma polarização (reprodutora da cliva-
gem tradicional entre Ciências Naturais
e Humanidades) dos campos de estudo,
mas a busca da conciliação de ambos, a
m de integrar a cultura no processo evo-
lutivo da espécie humana. Para isso, o
desao teórico-metodológico é compati-
bilizar a aptidão cultural da humanidade à
sua continuidade com os outros animais
(Ibidem, p. 31-32).
1.2 O conceito hierárquico de cultura
Correspondendo a ideais conven-
cionais, adotados por uma sociedade, nes-
te conceito a cultura é uma propriedade
adquirida – geralmente, mediante esforço
individual e notório – pelo ser humano, no
qual ela, portanto, não é inata. Dissemi-
nado, entre os antigos gregos, como pós-
-socrática (porque integrante dos périplos
losócos de Sócrates), pressupunha a
cultura como a resultante sedimentação
pelo exercício contínuo da razão:
Vejo, com efeito, que, se não exerci-
tamos o corpo, tornamo-nos inaptos
para os trabalhos corporais, e que, da
mesma forma, se não o exercitarmos,
o espírito se tornará incapaz dos tra-
balhos espirituais [...]. Pois vejo que,
se pela falta de exercício se esque-
cem os versos, apesar do recurso da
medida, da mesma forma se esque-
ce a palavra do mestre, por causa da
negligência. Ora, quando se esque-
cem estas exortações, se esquecem
também as impressões que incitam a
alma a desejar a sabedoria. [...] Ina-
tas na alma com o corpo, as paixões
incitam a pôr de lado a sabedoria e a
satisfazer imediatamente os prazeres
sensuais (Fala de Sócrates em Xeno-
fonte, 1999, p. 88-89).
A cultura seria a riqueza da sub-
jetividade, cuja acumulação seria um
dever cívico difuso dos cidadãos. Assim
como se aperfeiçoaria o corpo e a terra –
instaurando o que neles não havia – pelo
esforço humano, o mesmo também be-
neciaria a subjetividade, se cultivada:
“Sou de opinião, contudo, poder desen-
volver-se o valor natural pela instrução e
o exercício. [...] Que assim é na agricul-
tura para os que possuem campos. Na
ginástica, para os que exercitam o corpo”
(Fala de Sócrates em Xenofonte, p. 201
e 203). Como o corpo e a terra podem
ser depositários, respectivamente,da gi-
nástica e das sementes, a subjetividade
humana também poderia e deveria ser
depositária da cultura, cuja externalida-
de implicaria uma atividade (cultural) de
busca por sua aquisição.
Portanto, a cultura seria constituí-
da por todos os elementos externos cuja
recepção pela subjetividade humana a
tornaria mais complexa e menos sujeita
aos instintos naturais. A rigor, recebê-la
(em sua intimidade subjetiva) é condição
indispensável para que o ser humano
corresponda ao ideal comunitário. Neste
sentido, o conceito hierárquico é um con-
ceito convencional, educacional e erudito
de cultura, cuja presença acarreta com-
plexidade subjetiva ao ser humano (e
consequentes gradações); sua ausência
o impede de sequer percorrer o rena-
mento esperado pela coletividade.
146
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Retomada como cuidado das ar-
tes e do espírito pelos antigos romanos, o
conceito hierárquico de cultura nos legou a
palavra latina, proveniente do verbo colere
(cultivar), pela qual a designamos. Cícero
se referia ao cultivo da subjetividade em
analogia com o cultivo da terra (agricultu-
ra): enquanto o primeiro seria imaterial, o
segundo transcorria sobre a materialidade
do solo. Na esteira deste raciocínio, Plu-
tarco a formulou como cultura animi (BAU-
MAN, 2012, p. 56).
À sua ampla disseminação no sen-
so comum, entretanto, não se seguiu a
mesma magnitude acadêmica. A primei-
ra formulação cientíca (e antropológica)
que conferiu aplicabilidade ao conceito
hierárquico de cultura – denindo-a como
ideal convencional de renamento indivi-
dual (SAPIR, 1949, p. 79) – é a que enfa-
tiza a adoção de ideais normativos como
intrínsecos aos grupos sociais (quaisquer
que sejam) e, portanto, a necessidade
de compreendê-los integraria a compre-
ensão da dinâmica social abrangente, já
que a disputa entre tais ideais convencio-
nais seria frequente entre os grupos que
os adotam. Ainda mais importante seria
sua recepção pelos membros dos grupos
estudados (ibidem, p. 80-81).
Atualmente, o emprego cientíco
do conceito hierárquico de cultura (aten-
to ao risco de eventuais discriminações
negativas a grupos não hegemônicos,
cujos ideais de cultura não sejam reco-
nhecidos pelos grupos hegemônicos),
tende a designá-la como dimensão cog-
nitiva da sociedade (SANTOS, 2009,
p. 24-26), compreendendo, especica-
mente, o conjunto de seu conhecimen-
to, ideias e crenças. Ou seja, não é um
conceito empregado com exclusividade,
mas para delimitar o aspecto cognitivo
(que guarde relação direta com o conhe-
cimento, incluindo o de teor não cientí-
co, como as práticas religiosas) da tota-
lidade social (ibidem, p. 24-26).
A hierarquia subjetiva, propiciada
por este conceito de cultura, escalona,
assim, tanto os seres humanos que a
receberam – de acordo com o grau em
que o zeram quanto os separa entre
estes e os que não a adquiriram. O de-
sao teórico-metodológico do conceito
hierárquico de cultura consiste tanto em
incorporar culturas alternativas em sua
aplicação, quanto, devido à sua ênfase
no aspecto receptivo (e particularizado)
da experiência cultural, apontar as suas
fontes. Sem identicá-las, o conceito hie-
rárquico carrega uma lacuna inadmissí-
vel, à medida que nele a exterioridade da
cultura é intrínseca à sua aquisição pelos
seus receptores humanos...
1.3 O conceito diferencial de cultura
Embora não seja um apanágio
da disciplina antropológica, pois gregos
(PAGDEN, 2009, p. 62-68) e chineses
(GRANET, 1979, capítulo 2) antigos tam-
bém já ressaltavam - preconceituosamen-
te – diferenças entre seu modo de vida
e os demais (uniformemente designados
como “bárbaros”), o conceito diferencial
de cultura se tornou o sumo metodológi-
co da Antropologia e o mais inuente em
pesquisas cientícas. De fato, é o conceito
que, modernamente, destaca a diversida-
de como característica típica do fenômeno
cultural em geral e contra o viés etnocên-
trico pelo qual a diferença, entre socieda-
des antigas, apenas era reconhecida para
proclamar uma pretensa superioridade
cultural sobre sociedades alheias.
Sua disseminação moderna, con-
comitante ao desenvolvimento metodoló-
gico da Antropologia, o notabilizou como
o conceito antropológico, por excelência,
de cultura – inclusive atualmente adotada,
lato sensu, pela própria UNESCO (modo
de ser de cada sociedade). Para os di-
ferencialistas culturais (antropólogos ou
não), a cultura abrange os vários aspectos
de uma realidade social especíca (SAN-
147
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
TOS, 2009, p. 20-24), ou seja, da socieda-
de e/ou de seus grupos constitutivos.
Consequentemente, a rigor, não
há cultura, mas culturas (plurais) à me-
dida que toda e qualquer cultura implica
selecionar aspectos da vida social em
detrimento de outros. Assim, cultural é a
seleção sistematizada da sociabilidade
humana em geral, conferindo relevância
a determinados aspectos sociais. Neste
sentido, o papel da cultura é diferenciar
populações – dentro e fora das socie-
dades – porque cultura é a seletividade
social: uma dinâmica social sobreposta
ao conjunto da sociabilidade e a qual, si-
multaneamente, exprime.
Baseado nas diferenças entre so-
ciedades (e seus grupos e subgrupos),
o conceito diferencial de cultura difun-
diu a perspectiva do relativismo cultural,
baseada nas interpretações de Herder
sobre a cultura alemã (BOAS, 1940).
Adotada pela Antropologia, fundamen-
tou suas típicas opções metodológicas
preferenciais:
- pelo emprego do método compa-
rativo entre grupos e sociedades,
- pelo trabalho antropológico de
campo,
- pela imersão do antropólogo (pes-
quisa participante) entre os membros do
grupo estudado,
- pela relevância fundamental
atribuída a nativos e informantes do
pesquisador.
O conceito diferencial de cultura
fundamenta a ampla maioria das escolas
antropológicas:
- o funcionalismo estrutural britâni-
co (do qual são exemplares autores como
Radclife Brown e Bronislaw Malinovsky),
- a antropologia psicocultural nor-
te-americana (da qual se podem citar
Margaret Mead e Ruth Benedict, como
exemplares),
- o estruturalismo francês de Lévi-
-Strauss e seus seguidores,
- a antropologia evolucionista nor-
te-americana (onde se destacam Leslie
White e Julian Steward).
Atualmente, o conceito diferencial
se tornou fundamental na tendência a uma
recomposição paradigmática (em âmbito
estritamente antropológico)na qual, visan-
do reconciliar perspectivas opostas entre
análises que privilegiam atores e análi-
ses que privilegiam sistemas, a disciplina
busca constituir uma “Antropologia das
práticas” (ORTNER, p. 450-460). A apro-
ximação entre antropólogos que apostam
nesta conuência metodológica se baseia
no consenso disciplinar de que o reconhe-
cimento da diversidade cultural é um pa-
trimônio intelectual da Antropologia como
Ciência Social.
Entretanto, a abordagem diferen-
cial tem uma deciência essencial: torna
problemáticos os contatos interculturais, à
medida que ela pressupõe – juntamente
com sua acentuação das diferenças en-
tre culturas – fenômenos culturais como
entidades distintas. Isola culturas para
estabelecer a diversidade cultural, ape-
sar da disciplina antropológica (em suas
várias vertentes) assumir, tanto que as
culturas são mais uidas que impermeá-
veis entre si, quanto que se comunicam,
ao menos, historicamente (FREITAS; BA-
TITUCCI, 1997, p. 270-273).
Acrescente-se, ainda, que o con-
senso antropológico nega a existência de
quaisquer culturas como blocos indivisos
e monolíticos, já que sua geração, repro-
dução, renovação e dissolução são in-
terpretações contínuas provenientes dos
grupos sociais correspondentes a elas e
dos respectivos membros que os integram
(GEERTZ, 2008, p. 140-145). Culturas são
caixas abertas e não fechadas (apesar de
sua retórica adjacente, frequentemente,
armar o contrário), bem como estrutu-
148
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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radas segundo compartimentos internos
– também intercambiáveis – geralmente
imperceptíveis do seu exterior.
Na raiz de sua deficiência teóri-
ca - metodológica (o isolamento cultural
pressuposto e propiciado pelo conceito
diferencial) reside uma negação abso-
luta da universalidade cultural que a as-
socia, indelevelmente, com projetos de
uniformização cultural. No entanto, se a
globalização econômica em curso con-
tém, efetivamente, tal risco, o assenta-
mento da diversidade cultural através
de culturas isoladas não é um risco me-
nor, como os variados etnocentrismos,
antigos e modernos, não cessam de
nos lembrar, reivindicando supremacias
culturais por sociedades e outros gru-
pos sociais.
2. Um conceito dativo de cultura
Com base no paradigma da dá-
diva (CAILLÉ, 1998) de Marcel Mauss
(MAUSS, 2003) – cujas características
incluem a sua tendencial abordagem in-
terdisciplinar que associa o cultural ao
social (MARTINS, 2008, p. 106) – é per-
tinente propor outro conceito de cultura.
O qual, além de contribuir para a explica-
ção e compreensão dos fenômenos cul-
turais, fornece um viés que pode conuir
os três conceitos acima discutidos. Isto
é, a teoria maussiana da dádiva poderia
fornecer um conceito de cultura que tan-
to não se opõe aos demais quanto os in-
formaria de modo a cessar sua oposição
lógica, já apontada por Bauman (2012,
p. 54-55). Um conceito especíco de cul-
tura, com estas características, residiria
no “Ensaio sobre a dádiva”, publicado
por Mauss em 1925.
Nesta obra se encontra sua teoria
na qual a dádiva fundamenta a sociabili-
dade humana em geral, por ser uma for-
ma de troca constituída pela tripla (e su-
cessiva) obrigação de dar, de receber e
de retribuir bens. Assim, receber o que é
doado e retribuir o que é recebido – bem
como o inevitável exercício da doação –
consistiria em interações fundamentais
porque vinculantes:
Pois um clã, os membros da família,
um grupo de pessoas, um hóspede,
não são livres para não pedir a hospi-
talidade, para não receber presentes,
para não negociar, para não contrair
aliança [...]. Não menos importante
é a obrigação de dar; [...]. Recusar
dar, negligenciar convidar, recusar
receber, equivale a declarar guerra;
é recusar a aliança e a comunhão
(MAUSS, 2003, p. 201-202).
Ainda que comportando outras
interações, que não as proporcionadas
apenas pela dádiva (como o engodo e
a violência), nela é que se fundariam
os grupos humanos (inclusive as socie-
dades), através da circulação de bens
– não só materiais – trocados de modo
a vincular doadores, recebedores e re-
tribuidores entre si que, ora deixam de
ser estranhos (ou mesmo inimigos), ora
estendem sua familiaridade: “As socie-
dades progrediram na medida em que
elas mesmas, seus subgrupos e seus
indivíduos souberam estabilizar suas re-
lações, dar, receber e, enm, retribuir”
(Ibidem, p. 313).
Como troca essencial à sociabili-
dade, a dádiva reuniria liberdade e obri-
gatoriedade concomitantes: seu exercício
seria obrigatório ao consistir na “rocha fun-
damental” (Ibidem, p. 299) sem a qual os
grupos não subsistem; mas também seria
livre porque a escolha do bem, da ocasião
e do parceiro é intrínseca à doação, à re-
cepção e à retribuição. Ou seja, em qual-
quer dos três componentes da troca pela
dádiva (Ibidem, p.301), cuja disseminação
e entrecruzamento constantes resultariam
no tecido social (Ibidem).
149
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Porém, se as pessoas exercem dá-
divas entre si, o grupo também dá, recebe
e retribui aos seus membros. Ou seja, tais
trocas e alianças transcorreriam entre os
conjuntos formados pelas coletividades
(resultantes das interações entre pesso-
as) e aqueles que nelas se inserem.
Neste sentido, cultura seria toda
doação do grupo aos seus membros.
Cultural seria qualquer bem transmiti-
do, disponibilizado, fornecido ou legado
por qualquer grupo aos que o integram.
Bem cultural seria qualquer objeto, inde-
pendente de sua natureza física ou não,
doado pela coletividade (sociedade, gru-
po ou subgrupo) aos seus componentes.
Portanto, a cultura consistiria no fenôme-
no pelo qual um grupo (de qualquer mag-
nitude populacional) exerce dádivas em
relação aos seus integrantes.
Antes de discutir, especicamente,
a pertinência teórico-metodológica deste
conceito de cultura, sua relação com os
demais e a conuência que possibilita às
abordagens do fenômeno cultural, é fun-
damental constatar sua presença na obra
maussiana, onde se encontra implícito e
da qual pode ser extraído.
2.1 A cultura no “Ensaio sobre a dádi-
va” de Marcel Mauss
De fato, a descoberta do exercício
de dádivas por ou entre grupos (frequen-
temente inclusivos da sociedade abran-
gente) antecedeu a própria formulação
maussiana (MAUSS, 2003, p. 200-202) da
tripla obrigação – de dar, receber e retri-
buir bens – como troca inerente aos víncu-
los sociais. Denominadas de prestações
totais (Ibidem, p. 190-193) nelas
exprimem-se, de uma só vez, as mais
diversas instituições: religiosas, jurí-
dicas e morais – estas sendo políti-
cas e familiares ao mesmo tempo -;
econômicas – estas supondo formas
particulares da produção e do consu-
mo, ou melhor, do fornecimento e da
distribuição -; sem contar os fenôme-
nos estéticos em que resultam esses
fatos e os fenômenos morfológicos
que essas instituições manifestam
(ibidem, p. 187).
Encontrando-as (ibidem, p. 189-
193) em contextos não modernos ou não
europeus – Polinésia, Melanésia, tribos
americanas (do Norte e do Sul) e Direitos
antigos (romano, bramânico, germânico
e chinês) – Mauss constatou que uma
doação coletiva generalizada caracteri-
zava o complexo institucional destas so-
ciedades: “Tudo neles se passa durante
assembleias, feiras, mercados ou pelo
menos festas que funcionam como tais”
(ibidem, p. 310).
A dimensão estética se apresen-
ta como inerente às instituições sociais á
medida que, nestes contextos, elas não se
dividiam em temas especializados, como
nas sociedades modernas:
Todos esses fenômenos são ao mes-
mo tempo jurídicos, econômicos, reli-
giosos, e mesmo estéticos, morfoló-
gicos, etc. [...] Por outro lado, essas
instituições têm um aspecto estético
importante que deliberadamente dei-
xamos de lado neste estudo; mas as
danças que se sucedem, os cantos e
os desles de todo tipo, as represen-
tações dramáticas que se oferecem
de acampamento a acampamento e
de associado a associado, os objetos
mais diversos que se fabricam, usam,
enfeitam, pulem, recolhem e trans-
mitem com amor, tudo que se rece-
be com alegria e se apresenta com
sucesso, os próprios festins de que
todos participam, tudo, alimentos,
objetos e serviços, [...] tudo é causa
de emoção estética e não apenas de
emoções da ordem da moral ou do in-
teresse. [...] Portanto, são mais que
150
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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temas, mais que elementos de insti-
tuições, mais que instituições com-
plexas, mais até que sistemas de ins-
tituições divididos, por exemplo, em
religião, direito, economia, etc. [...]
(ibidem, p. 309-310).
O estudo empírico destas socie-
dades não modernas propiciou constatar
nelas tanto a presença dos temas moder-
nos quanto, ao não se encontrarem es-
pecializados e divididos, a proveniência
coletiva das instituições sociais em geral.
Ao identicar a coletividade como fonte
comum às mesmas, ainda encontrou ne-
las uma dimensão estética cuja inerência
tende a ser nublada pelos contextos mo-
dernos: “Foi considerando o conjunto que
pudemos perceber o essencial, o movi-
mento do todo, o aspecto vivo, o instante
fugaz em que a sociedade toma, em que
os homens tomam consciência sentimen-
tal de si mesmos e de sua situação frente
a outrem.” (ibidem, p. 311).
Seja parcial (família, clã, tribo,
etc.) ou abrangente (a sociedade intei-
ra), o grupo humano estabelece ou reno-
va alianças com seus membros através
de dádivas coletivas. A dimensão estéti-
ca dos bens trocados realça sua condi-
ção cultural, porque enuncia seu uxo da
coletividade pelo qual interpela seus in-
tegrantes a rmar, renovar, modicar ou
rejeitar a aliança proposta:
Ademais, o que eles trocam não
são exclusivamente bens e rique-
zas, bens móveis e imóveis, coisas
úteis economicamente. São, antes
de tudo, amabilidades, banquetes,
ritos, serviços militares, mulheres,
crianças, danças, festas, feiras, dos
quais o mercado é apenas um dos
momentos, e nos quais a circulação
de riquezas não é senão um dos ter-
mos de um contrato bem mais geral
e bem mais permanente. Enm, es-
sas prestações e contraprestações
se estabelecem de uma forma, so-
bretudo, voluntária, por meio de re-
galos, presentes, embora elas sejam
no fundo rigorosamente obrigatórias,
sob pena de guerra privada ou pú-
blica. Propusemos chamar tudo isso
de sistema das prestações totais (ibi-
dem, p. 190-191).
Adotar o viés da dádiva social im-
plica que toda cultura seria relativa ao
grupo que doa o bem (não material ou
não exclusivamente material, quando o
for), o qual é cultural porque sua aceita-
ção alia seus membros a ele e sua re-
jeição rompe (ou impede) a inserção na
coletividade. Objeto de doação coletiva, o
bem cultural transita - permanentemente
e alternativamente - entre a aliança e a
dissidência social.
2.2 Bens e políticas culturais no âmbi-
to do conceito dativo de cultura
Como dádiva de grupos aos res-
pectivos membros, a cultura apresenta
duas dimensões: uma lata e outra estrita.
Em sentido lato, a cultura abrange
todos os locus para formação (ou não)
de vínculos entre a sociedade e seus
membros (exemplicados pela língua,
religião, moral, estética, leis, técnicas,
edicações, informações e instituições).
O fenômeno cultural variaria, à medida
que se estenderia a qualquer criação
humana apta para o exercício de vincu-
lações à sociedade. Assim, apenas cria-
ções coletivas ou que circulem na cole-
tividade seriam culturais ao propiciarem
objetos de dádivas sociais – o que ex-
cluiria artefatos de construção e empre-
go exclusivamente individuais.
No viés dativo de cultura, o que não
é cultural pode vir a se tornar – como ten-
de, atualmente, o patrimônio genético (hu-
mano ou não), à medida que avança seu
mapeamento – desde que disponibilizado
151
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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para e, principalmente, pela sociedade. Al-
ternativamente, o que é cultural, como a
Escola (desde o século XIV), pode deixar
de sê-lo pela disseminação generalizada
dos conhecimentos.
Consistindo na interface entre
grupo e membros, a cultura é o campo
tecido pelas vinculações entre a coleti-
vidade e seus integrantes, mas não se
confunde com a sociedade em geral.
Neste sentido ampliado, tanto a adoção
de uma renda mínima aos indivíduos
possui caráter cultural - como doação
pela sociedade – quanto instituições de
seguridade social (ESPING-ANDER-
SEN, 1990), por vincularem indivíduos à
coletividade, apesar de exprimirem retri-
buição (e não doação) social:
Toda a nossa legislação de previdên-
cia social [...] inspira-se no seguinte
princípio: o trabalhador deu sua vida
e seu trabalho à coletividade, de um
lado; a seus patrões, de outro; e, se
ele deve colaborar na obra da pre-
vidência, os que se beneciaram de
seus serviços não estão quites em
relação a ele com o pagamento do
salário, o próprio Estado, que repre-
senta a comunidade, devendo-lhe,
com a contribuição dos patrões e
dele mesmo, uma certa seguridade
em vida, contra o desemprego, a ve-
lhice, a doença e a morte (MAUSS,
2003, p. 296).
Em sentido estrito, a cultura se re-
fere a qualquer simbolização identica-
tiva de e a um grupo – do menor (como
a família num álbum) ao mais abrangente
(como a espécie humana numa exposi-
ção arqueológica). O fenômeno cultural
consistiria na conversão de emoções
pessoais em sentimentos difusos, atra-
vés de artes e memórias coletivas, as
quais, caracterizando-se, intrinsecamen-
te, por signicações transcendentes de
âmbitos particulares (tanto de seus cria-
dores quanto de seus desfrutadores),
sempre veiculam dádivas provenientes
de alguma coletividade (e do próprio gê-
nero humano), mesmo quando endereça-
das somente a uma pessoa (uma dádiva
pessoal se torna também coletiva – como
uma obra artística de remessa particular
se ela contiver signicado que trans-
cenda a intimidade).
A difusão simbólica caracteriza-
ria, estritamente, o fenômeno cultural à
medida que, como tal, a circulação de
símbolos assimila experiências afetivas
particulares a coletividades. Conferindo-
-lhes signicados que as transcendam,
a simbolização as torna coletivas (mes-
mo continuando a serem, concomitan-
temente, singulares) - ao menos como
peculiares à espécie humana – porque
generaliza sua identicação com e entre
outros seres humanos.
O caráter dativo das artes e memó-
rias coletivas não é elidido por sua even-
tual produção (ou precicação) mercantil:
mesmo sua apropriação privada (desde
que não as destrua) carrega a dádiva co-
letiva que se exprime pela identicação
difusa proporcionada pela obra. É, ainda
quando mercadoria, um presente social
– apesar de sua criação, eventualmente,
solitária – porque a sociedade ali se apre-
senta ao nelas se identicarem, afetiva-
mente, humanos com a humanidade.
Tal aspecto coletivo da dádiva
contida na simbolização humana foi
mencionado por Mauss, o qual o reco-
nheceu pari passu às dádivas particula-
res que a acompanham.
Foi preciso um longo tempo para
reconhecer a propriedade artística,
literária e cientifica, para além do
ato brutal da venda, do manuscrito,
da primeira máquina ou da obra de
arte original. De fato, as sociedades
não têm grande interesse em reco-
152
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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nhecer aos herdeiros de um autor
ou inventor, esse benfeitor humano,
mais do que alguns direitos sobre
as coisas criadas pelo interessado;
proclama-se de bom grado que elas
são o produto tanto do espírito cole-
tivo quanto do espírito individual; to-
dos desejam que elas caiam o mais
rápido possível no domínio publico
ou na circulação geral das riquezas
(ibidem, p. 296).
Se a cultura é, como conceito da-
tivo – tanto em sentido lato quanto estri-
to - tudo aquilo que um grupo doa a seus
membros, então formular e executar po-
líticas culturais somente se justica para
viabilizarem o acesso generalizado aos
bens culturais por todos os grupos da so-
ciedade. Sua criação e fruição não deve-
riam, dado que só dádivas coletivas são
bens culturais, se restringir aos subgrupos
sociais dos quais advêm, mas (conforme
sua orientação intrinsecamente transcen-
dente do seu âmbito peculiar) se tornarem
difusos, ao máximo.
Segundo tal concepção, políticas
culturais seriam adequadas como políti-
cas de diversicação cultural (suportando
culturas emergentes), interculturais (fa-
vorecendo comunicações entre culturas
especicas) e de acessibilidade cultural
(franqueando seu acesso exterior aos
grupos originários). Ao conceito dativo de
cultura corresponderia, portanto, um ideal
normativo pelo qual todos os bens cultu-
rais deveriam circular, o mais amplamente
possível, em cada sociedade. Este nível
de difusão é indispensável para uma co-
letividade cuja convivência se torne real
para todos os seus membros.
3. Doação social como cultura: huma-
nidade, hierarquia e diferenças
O conceito dativo de cultura não
contradiz os demais conceitos, porque
não se lhes opõe, logicamente. Dado que,
segundo os mesmos, cultura é:
- todo elemento articial na socie-
dade humana (conceito genérico)
- o ideal de subjetividade convencio-
nalmente adotado (conceito hierárquico)
- um modo especíco de vida cole-
tiva (conceito diferencial)
Assim, conceber a cultura como
dádiva social (conceito dativo) incorpo-
ra os aspectos principais dos conceitos
genérico, hierárquico e diferencial, à me-
dida que doações de grupos aos seus
membros implicam:
- introdução de artifícios coletivos,
- parâmetros comuns de renamen-
to individual,
- distinções entre grupos pelo que
seus membros deles recebem.
Respectivamente, o conceito
dativo de cultura engloba os aspectos
acima elencados e enunciados pelos
conceitos genérico, hierárquico e di-
ferencial. Nele tais aspectos confluem
sem contradições por serem inerentes
ao exercício de doações coletivas aos
membros de grupos, seja pela socieda-
de ou por seus subgrupos.
Entretanto, apesar do conceito da-
tivo não ser antitético aos demais, deles
se distingue:
- ao não tornar cultural qualquer
articialidade humana (como no conceito
genérico), mas somente as coletivas,
- ao admitir que padrões tradicio-
nais (intrínsecos ao conceito hierárquico)
sejam inovados pelo grupo,
- ao tornar grupos permeáveis a ou-
tros, mais amplos e nos quais se inserem,
apesar de suas especicidades (rígidas
no conceito diferencial).
3.1 Desaos teórico-metodológicos
Finalmente, o conceito proposto
(dativo) de cultura, inspirado em reexões
153
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maussianas, apresenta, ainda, a vanta-
gem de responder aos desaos teórico-
-metodológicos atuais aos conceitos ge-
nérico, hierárquico e diferencial.
Tais desaos intelectuais consis-
tem, respectivamente, em:
1 - Incorporar a animalidade huma-
na à aptidão cultural da espécie
2 - Localizar as fontes culturais dis-
ponibilizadas para introjeção subjetiva
3 - Relativizar as fronteiras culturais
entre grupos diversos.
3.1.1 A animalidade humana na cultura
O primeiro desao proveniente
das críticas biológicas (especialmente de
inspiração evolucionista) à tradição an-
tropológica que cinde Natureza e Cultura
vem sendo respondido pela constatação,
recentemente fortalecida em sua base
empírica, de que o exercício de dádivas,
não apenas caracteriza, intrinsecamente,
nossa espécie, mas que nela se traduziu
em magnitude que a distinguiu no âmbito
especíco da raça humana.
A comparação empírica sistemáti-
ca, empreendida por Mauss no seminal
“Ensaio sobre a dádiva” de 1925, além
das sociedades geogracamente distan-
ciadas que abordou (MAUSS, 2003, p.
164-294) no seu pletórico estudo, tam-
bém encontrara o fenômeno generalizado
da dádiva em materiais sobre sociedades
antigas e arcaicas (ibidem, p. 265-301).
Suas evidências colhidas já não corro-
boravam a notória noção - de “estado de
natureza”, cogitado como de indivíduos
preferencialmente dispersos (Locke) ou
belicosos (Hobbes).
Embora amplamente dissemina-
da entre etnólogos do início do século
XX, as comparações maussianas en-
contraram (ibidem, p. 309-314) contex-
tos nos quais associações humanas, ao
invés de episódicas e precárias, eram
básicas até mesmo durante suas infle-
xões em guerras. “Jamais parece ter
havido, nem até uma época bastante
próxima de nós, nem nas sociedades
muito erradamente confundidas sob o
nome de primitivas ou inferiores, algo
que se assemelhasse ao que chamam a
economia natural” (ibidem, p. 189-190).
Por nelas constatar “o caráter voluntá-
rio, por assim dizer, aparentemente livre
e gratuito, e, no entanto, obrigatório e
interessado, dessas prestações” é que
formulou o problema inverso: “Que for-
ça existe na coisa dada que faz que o
donatário a retribua?” (ibidem, p. 188).
Atualmente, avolumam-se evidên-
cias empíricas biológicas, de matriz da-
rwiniana, que, ao contrário de sua biblio-
graa majoritária (ALMEIDA, 2013), não
explicam a cooperação social em larga
escala – por ancestrais hominídeos –pelo
desenvolvimento cerebral propício à ra-
cionalidade instrumental.
À medida que se corrobora a
similaridade entre cérebros do Homo
Sapiens Sapiense do Homo Sapiens
Neanderthalensis, a hipótese de uma
predisposição genética de ordem afeti-
va (SALZANO, 2008) se fortalece para
a compreensão da maior associativi-
dade que propiciou à nossa espécie
(preponderantemente tribal) sobreviver
na ultima glaciação, multiplicando-se
em detrimento dos grupos neandertais
(comumente fragmentários) no conti-
nente europeu – variável independente
de eventuais outras (relativas às intera-
ções entre ambas as espécies) intercor-
rências que venham a ser constatadas.
A comensalidade ampliada – extrapo-
lando os núcleos familiares – teria ca-
racterizado os humanos sapiens para
a nucleação de grupos mais extensos
(COSTA, 2015) que outras espécies do
gênero, inclusive os Homo Erectus ex-
tintos na imperativa jornada de sobrevi-
vência que nossos ancestrais (devido à
154
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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desertificação expandida) empreende-
ram do continente africano.
Consequentemente, tais desco-
bertas arqueológicas e biológicas recen-
tes corroboram a relevância, conferida
por Mauss, ao exercício da dádiva. A
qual constitui o nexo entre os aspectos
animal e cultural do ser humano: nela ra-
dica, pois, o trajeto entre seu exercício
associativo e a estabilização de grupos
humanos respectivos, mas, além de tor-
ná-los fontes de Cultura (como sobre-
posições coletivas à Natureza), também
é natural entre primatas – inclusive não
humanos, onde até são perceptíveis
aspectos culturais, em níveis diversos
(WAAL, 2008). Sua constatação na ani-
malidade humana permite inferir seu pa-
pel desempenhado tanto em processos
naturais quanto nos processos sociais
e culturais. Natureza e Cultura humana,
no conceito dativo desta, têm na dádiva
sua fronteira, porém, como passagem e
não interdição entre ambas.
3.1.2 Fontes de produção cultural
O segundo desafio advém da la-
cuna teórica, no conceito hierárquico
de cultura, em apontar suas fontes. À
introjeção cultural de subjetividades in-
dividuais corresponderia, logicamente,
uma delimitação alternativa para a cul-
tura tout court, já que ela seria exterior
ao individuo. Conferindo centralidade
ao papel receptivo da individualidade
em seu enriquecimento subjetivo, o
conceito hierárquico, implicitamente,
subestima a produção cultural strictu
sensu, a qual resta, a rigor, alheia à in-
vestigação empírica ou, ao menos, su-
blimada pela cultura concebida como
pressuposto dado.
Admitindo a exterioridade da cultu-
ra, o conceito dativo localiza suas fontes
nos grupos em que se inserem os indi-
víduos – menores e maiores. Portanto,
seus membros são donatários potenciais
da cultura apresentada e suas subjetivi-
dades se renam através do acesso cul-
tural que lhes é fornecido.
Consequentemente, o grau de
acesso aos bens culturais se torna um
tema indispensável de pesquisa, se-
gundo o conceito dativo de cultura. No
mesmo diapasão, o emprego do método
comparativo também é essencial para
detectar eventuais contrastes entre in-
divíduos mais ou menos receptivos aos
mesmos padrões culturais, no âmbito de
grupos distintos da mesma sociedade.
Concebendo o processo cultural
composto igualmente de aquisição (enfa-
tizada pelo conceito hierárquico) quanto
de transmissão dos bens coletivos doa-
dos pelos grupos, o conceito dativo de
cultura conferiria equivalente relevância
temática a ambos os aspectos. Pesquisar
o acesso à cultura implicaria detectar as
eventuais anidades eletivas ocorridas
(ou não) entre dois aspectos:
- o fornecimento de bens pela
coletividade, seja ele direto (produção
coletiva) ou indireto (atividades particu-
lares em prol da identidade grupal), aos
seus membros.
- a receptividade especica de indi-
víduos determinados aos bens transmiti-
dos pelos grupos nos quais se inserem.
A pertinência teórico-metodológica
do conceito dativo de cultura também se
exprime na atualidade programática dos
emergentes “direitos culturais”, como um
ramo diverso – embora ainda controver-
so na Ciência Jurídica contemporânea
- na ou da cidadania moderna (MEYER-
-BYSCH; BIDAULT, 2014). Sendo dádiva
social, a cultura converteria em donatá-
rios os membros da sociedade e de seus
subgrupos, o que os qualicaria como
cidadãos culturais;anal “dá-se porque
se é forçado a isso, porque o donatário
tem uma espécie de direito de proprieda-
155
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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de sobre tudo o que pertence ao doador”
(MAUSS, 2003, p. 202).
O conceito dativo de cultura é ex-
tremamente compatível com as formula-
ções politico-jurídicas sobre os direitos
culturais, desde sua evocação primária
pelo artigo 27 da Declaração Universal
de Direitos Humanos de 1948 (pela Or-
ganização das Nações Unidas), onde o
acesso cultural, exercido pelos indivídu-
os de uma coletividade nacional, é tanto
a via quanto o resultado projetado pela
cidadania: “Todo ser humano tem o direi-
to de participar, livremente, da vida cul-
tural da comunidade, de fruir as artes e
de participar do processo cientíco e de
seus benefícios”.
3.1.3 Uma uida diversidade cultural
O terceiro desao teórico-metodo-
lógico, contido no conceito diferencial de
cultura, consiste na tendencial percepção
da diversidade cultural mediante culturas
monolíticas e isoladas, o que não se co-
aduna com as evidências empíricas. Esta
tendência se apresenta, em círculos an-
tropológicos mais acentuadamente rela-
tivistas, acarretando pouca inserção de
estudos dos processos transculturais, in-
terculturais e intraculturais.
Como o processo cultural – inde-
pendentemente da orientação teórica pre-
ferencial do pesquisador e na colheita de
dados empíricos sob qualquer metodolo-
gia empregada – em geral evidencia cor-
relações simbólicas entre grupos sociais e
culturas distintas, à teoria da cultura ainda
se fazem necessários instrumentos con-
ceituais que apreendam a uidez intrínse-
ca aos fenômenos culturais.
Nesta tarefa intelectual o concei-
to dativo de cultura também pode ser
pertinente: “Trata-se, no fundo, de mis-
turas. Misturam-se as almas nas coisas,
misturam-se as coisas nas almas. Mis-
turam-se as vidas, e assim as pessoas e
as coisas misturadas saem cada qual de
sua esfera (...)” (MAUSS, 2003, p. 212).
Concebendo o bem cultural como resul-
tante de sua transmissão coletiva pela
sociedade ou outro grupo, tanto a sua
composição quanto a sua fruição são
inerentemente diversas. Portanto, a di-
versidade é intrínseca à cultura porque
ela sempre resulta de diversos doado-
res conjugados. Se a fonte da cultura é
uma doação diversificada (porque co-
letiva) de bens, também seus destina-
tários são, igualmente, difusos: a rigor,
cada qual dos membros do grupo ou so-
ciedade que a dispõe.
‘Como a diversicação permeia todo
o processo cultural – da fonte ao destino
(ambos virtualmente indeterminados) –
não há cultura monolítica. Toda cultura, por
ser doação coletiva (ainda que indireta nos
criadores solitários que, pela simbolização,
promovem identidades afetivas coletivas)
comporta uma indelével diversidade in-
terna, a qual não pode ser elidida mesmo
por intervenções políticas externas ou por
lideranças internas à cultura. É o que ates-
tam as divisões apresentadas por culturas
religiosas, apesar de esforços (internos e
externos) para estancá-las, como na pro-
fusão de ordens budistas (VALLET, 2002,
p. 164-169), cismas institucionais cristãos
(ibidem, p. 76-85) e querelas interpretati-
vas muçulmanas (ibidem, p. 99-105).
Também seriam, peculiarmente,
ainda mais incentivadas, pelo conceito
dativo, pesquisas sobre os contatos en-
tre culturas, já que a diversidade contida
em todo bem cultural o tornaria uido in-
clusive e ainda mais durante sua trans-
missão aos destinatários. Deste modo,
assim como dádivas são exercidas entre
pessoas, bem como entre grupos e seus
respectivos membros, obviamente, seu
exercício seria provável entre grupos di-
versos. O que, apesar de mais possibili-
tado onde não há belicosidade, também
156
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
não seria impossibilitado strictu sensu em
contextos coloniais.
O primeiro caso de contato inter-
cultural – sem supremacia de um dos
grupos - pode ser exemplicado pela
menção maussiana de encontros diretos
entre frátrias tribais, que ele considera-
va exemplar para avaliar o que chamava
de prestações totais (ou dádivas coleti-
vas): “O tipo mais puro dessas institui-
ções nos parece ser representado pela
aliança de duas frátrias nas tribos aus-
tralianas ou norte-americanas em geral,
onde os ritos, os casamentos, a suces-
são de bens, os vínculos de direito e de
interesse, posições militares e sacer-
dotais, tudo é complementar e supõe a
colaboração das duas metades da tribo”
(MAUSS, 2003, p. 191).
O segundo caso é exemplicado
pelo sincretismo cultural adotado por ocu-
pantes romanos cuja supremacia é incon-
teste em províncias imperiais, mas recep-
tivos aos grupos dominados. Ainda que a
aculturação dos ocupados exprima sua
dominação – o que permanece controver-
so na historiograa houve trocas entre
os grupos apesar e ao lado do imperium
tardio (CARRIÉ, 2010).
Concebendo a cultura de modo
substantivamente diversicado, em virtu-
de da coletividade doadora e donatária de
bens culturais, o conceito dativo proposto
se alinha, estritamente, à emergente re-
levância contemporânea da diversidade
cultural (UNESCO, 2002). Se percebida
de modo exclusivamente relativista, ad-
quire conguração conservadora, enri-
jecendo padrões tradicionais herdados,
mas, dada sua originalidade em face das
diversas ideologias modernas – especial-
mente liberalismo e socialismo (nas quais
ela não consta) – pode traduzir um novo
horizonte utópico no qual a diversidade
cultural informe as lutas políticas por uma
sociedade solidária.
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Recebido em 30/06/2016
Aprovado em 29/07/2016
I Júlio Aurélio Vianna Lopes. Pós-doutor em Sociologia
pela UFPE. Pesquisador Titular da Fundação Casa de
Rui Barbosa. Brasil. Contato: julio64aurelio@gmail.com
158
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O jornalista e o assessor de imprensa no cinema noir através do lme
A Embriaguez do Sucesso
El periodista y el asesor de prensa en el cine noir a través de la película
A Embriaguez do Sucesso
The Journalist and the PR professional in Film Noir in the movie
Sweet Smell of Success
Alex Sampaio Pires
I
Michele Negrini
II
Resumo:
Este estudo busca, com base no lme A Embriaguez do Sucesso,
entender como o cinema noir mostrou os jornalistas e os assessores de
imprensa, e como os reexos sociais da época, como o fatalismo pós-
guerra e o medo do comunismo, inuenciaram nesta apresentação.
A análise é realizada com o método da Análise de Imagens em
Movimento, de Diane Ross. Entre as conclusões, destaca-se que o noir
via os jornalistas como seres manipuladores, e que esta construção
ocorre por causa do período histórico, de desilusão, vivenciado na
América, enquanto os assessores de imprensa aparecem também de
forma manipuladora, porém de forma inferior aos jornalistas, reexo
de um preconceito que por muito tempo existiu no meio jornalístico.
Palavras chave:
Jornalismo
Assessor de imprensa
Colunista
Cinema Noir
159
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este estudio búsqueda, con base en la película A Embriaguez do
Sucesso, entender como el cine noir mostró los periodistas y los
asesores de prensa, y como los reejos sociales de la época, como
el fatalismo post-guerra y el miedo del comunismo, inuenciaron en
esta presentación. El análisis es realizado con el método del Análisis
de Imágenes en Movimiento, de Diane Ross. Entre las conclusiones,
se destaca que el noir veía los periodistas cómo manipuladores, y
que esta construcción ocurre por causa del periodo histórico, de
desilusiones, vivenciado en América, mientras los asesores de prensa
aparecen también de forma manipuladora, sin embargo de forma
inferior a los periodistas, reejo de un prejuicio que por mucho tiempo
existió en medio periodístico.
Abstract:
This study intends to understand how the Film Noir portrayed Journalist
and the PR professional, based on the movie Sweet Smell of Success,
and how the social conditions, like the post-war fatalism and the fear
of communism, inuenced on the presentation. The analysis was
realized based on the Analysis of Moving Images, of Diane Ross.
It was concluded that the Film Noir used to portrait Journalists like
manipulating people, and that this construction on their image is
associated with the historical period of delusion that the United States
of America were living, while de PR professionals were also shown
as manipulative, but it a lower degree than journalists, reecting on a
prejudice that was commonly associated to journalism.
Palabras clave:
Periodismo
Asesor de prensa
Columnista
Cine Noir
Keywords:
Journalism
PR Professional
Columnist
Film Noir
160
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O jornalista e o assessor de imprensa
no cinema noir através do lme A
Embriaguez do Sucesso
Introdução
Durante as décadas de 1940 e
1950, o cinema norte-americano presen-
ciou um fenômeno que ainda hoje des-
perta questionamentos sobre ser, ou não,
um gênero cinematográco. O noir, que
se apropriou de características do ex-
pressionismo alemão e de histórias po-
liciais, entre outras referências, contava
histórias que visualmente abusavam dos
contrastes de luz entre claro e escuro, da
fotograa em preto e branco e dos aspec-
tos noturnos das grandes cidades, sem-
pre em tom fatalista.
O cenário mundial era propício para
este fatalismo. O mundo havia vivido, em
1929, uma crise nanceira devido à que-
bra da bolsa de Nova York. Além disso, o
noir ocorreu paralelamente com o segun-
do grande conito mundial e a Guerra Fria.
O mundo não parecia um lugar tão
confortável ou aprazível, e a crença nos
aspectos positivos do ser humano se es-
vaía. A partir desta visão, o noir criava per-
sonagens ambíguos, que não eram mais
delimitados como bons ou maus de manei-
ra simples. Eles, agora, transitavam entre
o bem e o mal, se tornavam indivíduos in-
uenciados por uma sociedade vista como
doente, sem altruísmo, ética ou valores
morais. Os lmes também tratavam, ainda
que implicitamente, de assuntos como in-
cesto e homossexualismo. Por isso, eram
consideradas obras marginais, lmes B.
O jornalista, um personagem cons-
tante no cinema de um modo geral, tam-
bém aparece no noir. Em A Embriaguez
do Sucesso (Sweet Smell of a Success,
1957), a relação entre um jornalista, es-
critor de uma coluna, e um assessor de
imprensa, em Nova York, é o eixo central
do lme. Esta relação entre assessores e
jornalistas existe desde os tempos mais
primórdios das duas prossões, e depen-
dentes, as duas trajetórias se confundem
e se misturam. É uma relação cercada
de preconceitos, mas também de cumpli-
cidade, que são prossionais ligados.
Baseado nesta relação, o presente tra-
balho visa analisar como o cinema noir
mostrou os jornalistas e os assessores
de imprensa, e como os reexos sociais
da época, como o fatalismo pós-guerra
e o medo do comunismo, inuenciaram
nesta apresentação.
Um dos autores que servirá como
base para as reexões sobre o cinema
noir é Alexandre Augusti (2013), que ex-
plica que o noir comporta características
muito particulares, entre elas os persona-
gens ambíguos, intrigas, cenários com in-
uências do expressionismo alemão, além
de iluminação em contrastes e música que
desperta, realça ou sustenta o suspense.
Também servirão de base para as análi-
ses feitas os autores Fernando Mascarello
(2006), Guilherme Maia (2011), Debora
Soa Lemos Pinto de Carvalho (2011), e
Fernanda Ianoski Ferro (2013).
Cinema Noir
O cinema como arte é visto como
uma forma de expressão de cunho social.
A sétima arte não é exclusivamente uma
maneira de divertir, entreter e desentediar
plateias ao redor do mundo. Os lmes são
também a moldura para criar um retrato da
sociedade, por vezes procurando a deli-
dade, ou então abrindo mão da realidade
literal para expor visões pessoais. No en-
tanto, de uma forma ou de outra, o objetivo
parece ser sempre o de buscar, de alguma
forma, uma identicação com os meios,
espaços e tempos. Os personagens são,
161
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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antes de tudo, indivíduos inseridos em um
ambiente social, com suas personalidades
e atitudes fazendo parte desse meio, onde
se moldam ou são moldados, e reetindo
na tela com o propósito de causar identi-
cação e fazer pensar.
Fazer um retrato da realidade,
no entanto, pode ser algo bastante au-
toral, e envolve a visão de mundo, tem-
po e espaço do realizador da obra. Não
é à toa que, em algumas ocasiões, um
mesmo fato pode gerar versões cine-
matográcas bastante diferentes. Um
exemplo disso são os dois lmes de Clint
Eastwood: Cartas de Iwo Jima
III
(Letters
From Iwo Jima, 2006), e A Conquista da
Honra
IV
(Flags of Our Fathers, 2006) que
relatam sob o ponto de vista japonês e
norte americano, respectivamente, a ba-
talha de Iwo Jima
V
, ocorrida durante a
Segunda Guerra Mundial. E é em perío-
do próximo ao que se passam os lmes
de Eastwood, onde fantasmas de milha-
res de mortos e o medo dos campos de
concentração ainda atordoavam a men-
te da população do planeta, que surgiu
uma corrente bastante pessimista, de
caráter melancólico e fatalista, com uma
visão de uma sociedade desacreditada e
depressiva, que mostrava as ruas sujas
e os becos escuros das grandes metró-
poles: o cinema noir.
De acordo com Leonardo Campos
(2009), nos lmes noirs a atmosfera é re-
pleta de crueldade, o clima é claustrofóbi-
co, e há o uso intenso de ashbacks, ruas
desertas e paisagens noturnas. Como diz
Alexandre Rossato Augusti (2013), em
relação aos temas destes lmes, a cons-
tituição destas obras é “por um lado am-
parada pela morte, a violência e o crime
e, por outro, pelo hedonismo e a gura da
femme fatale” (AUGUSTI, 2013, p. 6)
No cinema noir existe a presença
constante de policiais, detetives particu-
lares e mulheres fatais que podem ser a
ruina dos protagonistas. Existe, princi-
palmente, uma dubiedade, trabalhada na
ideia de mostrar os humanos como seres
errantes, e a ideia de que o nal feliz não
existe, já que o nal dos personagens não
pode ser incoerente com suas ações.
Em relação ao hedonismo, que é
a busca desenfreada pelo prazer e satis-
fação, pode-se encontrar um bom exem-
plo no lme A embriaguez do sucesso,
objeto especíco de estudo para este
trabalho, onde um colunista e um asses-
sor de imprensa são capazes de realizar
grandes intrigas, outra marca do cinema
noir, para a satisfação pessoal e, princi-
palmente, prossional.
Em seu trabalho, Augusti (2013)
cita que, de acordo com Raymond Bor-
de e Etienne Chameuton, existem sete
elementos importantes para classicar
um lme noir: um crime; a perspectiva
dos criminosos, às vezes superando a
da polícia; uma visão invertida das tra-
dicionais fontes de autoridade, acentu-
ando a abordagem da corrupção policial;
alianças e lealdades instáveis; a femme
fatale; violência bruta; motivação e mu-
danças em complôs bizarros.
O cinema noir, no entanto, ainda é
alvo de discussões sobre ser classicado
ou não como um gênero cinematográco.
Os próprios realizadores não produziam
os lmes com a consciência de ser um
novo gênero. Fernando Mascarello (2006)
cita que, durante a ocorrência dos lmes
noir, público, crítica e realizadores jamais
utilizaram o termo para nomear as obras
que eram realizadas. A nomenclatura, se-
gundo ele, foi dada pelo crítico e cineasta
francês Nino Frank:
Um dos argumentos por parte de
quem é contrário ao uso do termo “gê-
nero” para classicar este tipo de lme
é que, dicilmente, uma única obra in-
clui todos os sete elementos
VI
descritos
162
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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por Borde e Chaumeton, Augusti (2013)
diz que “as denições sugerem que, por
exemplo, lmes com apenas um elemen-
to noir possam ser considerados parte
do gênero enquanto outros que possuem
maior número talvez não o sejam” (p.
42). Em lmes como Gilda (Gilda, 1946),
por exemplo, a gura da Femme Fatalle
é constante e de real importância para a
narrativa. Já em A embriaguez do suces-
so não há uma femme fatale ou detetives
particulares e durões, ainda que exista
uma outra gura feminina que, segundo
Fernanda Ianoski Ferro (2013), está pre-
sente no cinema noir: a mulher domésti-
ca, que é um contraste com a mulher fa-
tal, uma pessoa passiva, que se submete
fácil ao homem amado. No lme, uma im-
portante personagem feminina é a irmã
do personagem de Burt Lancaster, uma
garota submissa e tímida, que se apaixo-
na perdidamente por um músico de jazz.
O hedonismo, a ambientação à noite,
pactos e intrigas também surgem como
características fortemente utilizadas pelo
lme, assim como diversos outros noirs.
Em Almas em Suplício (Mildred Pierce,
1945), o assassinato do marido da per-
sonagem título norteia a narrativa, fei-
ta através de ash backs, enquanto os
envolvidos no caso narram os aconteci-
mentos que antecedem o crime. Relíquia
Macabra (The Maltese Falcon), lançado
em 1941 e considerado um dos pioneiros
noirs, traz a gura do detetive particular
vivido por Humprey Borgart, que viria a
ser um dos intérpretes marcantes do noir,
da femme fatale (Mary Astor) e do crime,
quando o sócio do protagonista é miste-
riosamente assassinado.
também quem arme que o l-
me noir se apropria de características de
outros gêneros, além de ter um tempo de-
terminado de duração, e, por isso, não po-
deria ser considerado um gênero próprio.
Com inspiração nas revistas pulp ctions
VII
consideradas um tanto marginais para os
anos de 1920, quando surgiram, e em ro-
mances policiais, muitos adaptados pos-
teriormente em lmes, o cinema noir car-
rega referências e claras inspirações nos
lmes de gângsters, além de elementos
do suspense, do horror e do triller. A pro-
fessora Marilu Martens Oliveira (2009) vai
mais longe, e em sua análise que vai dos
romances noir aos lmes neo-noir
VIII
re-
monta às origens do noir nas publicações
periódicas publicadas nos rodapés das
primeiras páginas dos jornais no começo
do século XIX, um espaço considerado
variado, onde cabiam receitas, anedotas e
comentários sobre crimes:
Uma das maiores inuências, no
entanto, vem do expressionismo alemão
IX
O principal motivo desta semelhança se
deve, talvez, aos momentos semelhan-
tes vividos pela Alemanha na década de
1920, onde esta corrente surgiu, e os Es-
tados Unidos da década de 1940.
Entre as características mais for-
tes do expressionismo alemão presentes
no noir americano, o autor Luiz Nazário
(1983) destaca a animização, a paisagem,
a deformação, a efusão, o tirano, a som-
bra, a rua, a feira, o espelho, a escada, o
livro, as olheiras e o arfar sobre as som-
bras, vindas do expressionismo.
Outra inuência do cinema noir te-
ria vindo diretamente da Itália, em um mo-
vimento conhecido como neo-realismo.
De acordo Marilu Martens Oliveira, este
movimento cou conhecido por retratar o
país no período pós-guerra de maneira
quase documental, trabalhando com ato-
res não prossionais.
O m da Segunda Guerra Mundial
foi, então, o ingrediente que faltava para
se unir à recessão americana e ao sen-
timento desolador que dominava o país,
criando o momento ideal para cineastas
transgredirem regras morais e abando-
nar o “happy ending”, tão comum nas
obras hollywoodianas, e partir para a re-
163
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
presentação de uma sociedade amoral e
ambivalente, onde todos podem ser cul-
pados e inocentes. O lado do bem e do
mal não é mais delimitado de modo cla-
ro. Os cineastas caminham agora pela li-
nha tênue que os divide, apostando, por
exemplo, na técnica do claro e escuro
para isso. Não é à toa que todos esses
lmes foram feitos em preto e branco, e
o noir começou a ser mais escasso, até
aparentemente sair de cena, quando o
advento do cinema colorido se tornou
um fato inegável. Augusti (2013) cita
que, para Fabrizio Denunzio, o noir se
desenvolveu através da relação de con-
trastes entre o preto e o branco, onde se
intensica o branco até torná-lo negro,
e clareia-se o negro até torna-lo branco,
numa representação técnica da dubie-
dade que se desejava representar.
Os jornalistas no lme
A Embriaguez do Sucesso
Considerando que o objetivo do
presente estudo é compreender como o
cinema noir mostrou os jornalistas e os
assessores de imprensa e como os ree-
xos sociais da época, como o fatalismo
pós-guerra e o medo do comunismo, in-
uenciaram nesta apresentação, vamos
analisar o lme A Embriaguez do Sucesso
(Sweet Smell of a Success, 1957).
A Embriaguez do Sucesso (Sweet
Smell of a Success) pode ser conside-
rado um dos últimos representantes do
período clássico do noir. Dos sete ele-
mentos que Augusti (2013) cita que são
apontados por Bourdieu e Chaumeton
como clássicos do gênero, a película não
possui todos. Não há, por exemplo, um
crime norteando a narrativa, e a violência
bruta não é constante. Embora exista, na
maior parte do tempo, ela se mostra de
maneira psicológica. No entanto, a au-
sência mais sentida é a da mulher fatal,
tão comum nos lmes negros. Há, porém,
uma representante feminina classicada
por Ferro (2013) como a mulher domésti-
ca, passiva, que vem na pele da irmã de
um dos protagonistas. Entretanto, o lme
possui alguns outros elementos clássicos
do noir, como a visão invertida das fontes
de autoridade, acentuando a corrupção
policial, na pele do policial que faz favo-
res a Hunsecker, as alianças e lealdades
instáveis, na gura dos favores trocados
pelos dois protagonistas, e também a mo-
tivação e mudanças em complôs bizarros.
Augusti (2013) descreve que lmes que
possuam apenas um desses elementos
podem ser considerados noirs, enquanto
outros que possuem mais de um deles,
às vezes não são. Deste modo, A Embria-
guez do Sucesso junta a estes elementos
a fotograa em preto e branco, as cenas
rodadas durante a noite e o uso das som-
bras para se tornar um representante el
desta corrente cinematográca.
A performance respeitável de Curtis
e Lancaster evidencia – somada a di-
versos elementos noir importantes da
narrativa, como as cenas noturnas,
repletas de intrigas, mentiras e simu-
lações – de forma incontestável a cor-
rupção de uma metrópole (no caso,
Nova Iorque). (AUGUSTI, 2013, p. 54)
O lme é dirigido por Alexander Ma-
ckendrick, que dava um dos primeiros pas-
sos para lmes dramáticos em Hollywood,
já que sua carreira era composta, na
maioria, por comédias inglesas. Newman
(2012) arma ser vitoriosa a transição
destas comédias para o que ela classica
de “frenesi violento”, acrescentando tintas
góticas ao roteiro jornalístico de Ernest
Lehmann. Descrito por Rodrigo Carreiro
(2007) como um lme disfarçado de clás-
sico, mas carregado com uma mensagem
subversiva, o crítico arma que a obra é
uma sátira a um jornalista real, o então
prestigiado Walter Winchell. Já para New-
man (2011), o lme é uma sátira amarga
ao mundo das celebridades:
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A Embriaguez do Sucesso conta com
uma ótima trilha de jazz de Chico Ha-
milton e exala a Nova York de 1957,
nos conduzindo através de casas
noturnas agitadas, nas quais os de-
sesperados cortejam os dementes e
almas são vendidas por breves men-
ções em colunas sociais, até as ruas
varridas pela chuva em que policiais
brutalmente corrompidos plantam dro-
gas em músicos de jazz ou espancam
os inimigos de J.J. quase até a morte
(NEWMAN, 2012, p. 342).
A narrativa traz em seu eixo prin-
cipal dois atores importantes para o cine-
ma da época. Tony Curtis, acostumado a
viver galãs, se aventurava em um perso-
nagem fracassado e humilde, o assessor
de imprensa Sidney Falco. Descrito como
um homem de 40 faces, ele está disposto
a qualquer coisa para melhorar de vida,
ou como ele mesmo descreve, para che-
gar “lá em cima, onde há muito confor-
to. Onde ninguém estala os dedos e me
dá ordens”. Para isso, ele vive correndo
atrás do colunista social J.J. Hunsecker,
vivido pelo lendário Burt Luncaster, com
uma postura monstruosa que, de acordo
com Newman (2011), chegava a lembrar
o famoso Frankstein. Logo no começo do
lme, Falco está sendo ignorado por Hun-
secker, que só voltará a publicar uma nota
dos seus clientes quando o assessor zer
o favor que prometeu. O favor em questão
é separar a irmã do colunista, Susan, do
namorado, o músico de jazz Dallas. A ob-
sessão pela irmã, que tem caráter inces-
tuoso, será a ruina para os dois homens,
sobretudo a de Falco, que não é tão pode-
roso quando Hunsecker. Na tentativa de
cumprir a missão, ele terá atitudes amo-
rais, chegando ao ponto de armar, junto
com um policial corrupto, para que o músi-
co fosse preso com drogas, plantadas em
sua jaqueta pelo próprio Falco. Ao nal,
Sidney termina morto pelo policial, en-
quanto Hunsecker continua com seu po-
der, mas completamente sozinho.
O lme tem como protagonistas
dois homens que exercem o jornalismo.
Um deles escreve uma coluna para um
jornal, e o outro é assessor de imprensa.
O que possuem em comum é, além da
prossão e da dependência um do outro,
o tratamento que recebem da narrativa,
que os condiciona como seres errantes,
imorais, desejosos do sucesso e do poder.
Sidney Falco e J.J. Hunsecker rompem a
barreira da ética, e até da legalidade, com
facilidade. Andam pelas casas noturnas
de Nova York, pelos becos sujos, se aliam
a policiais corruptos e armam complôs.
Através dessa representação
X
vamos nos
focar em como este lme noir enxergou a
prossão do jornalista no ano de 1957, e
como isso reetiu o contexto social vivido
pelo mundo, mais especicamente nos Es-
tados Unidos. Observando os diálogos do
lme e como a câmera capta seus perso-
nagens, será possível encontrar o fatalis-
mo pós-guerra, o expressionismo alemão,
a descrença deste gênero cinematográco
no ser humano e a desesperança social, e
entender como estas características ree-
tem a composição do jornalista noir.
Será feita uma análise do lme,
seja através do roteiro e diálogos, ou en-
tão das escolhas estilistas como focos
de câmera e iluminação, através do mé-
todo chamado de Análise das Imagens
em Movimento. O método proposto por
Diane Rose, no capítulo Análise de ima-
gens em Movimento, do livro Pesquisa
Qualitativa com texto, imagem e som, de
Martin Bauer e George Gaskell, foi usado
pela autora para a análise da loucura na
televisão da Grã-Betanha, em 1992. Na
ocasião, ela observou programas humo-
rísticos, séries dramáticas e novelas das
emissoras BBC1(British Broadcasting
Corporation) e ITV (IndependentTv).
A análise criada por Rose é dividida
em quatro fases distintas. A primeira delas
é a seleção, onde são escolhidas as par-
tes do material audiovisual a ser pesquisa-
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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dos, de acordo com os objetivos do traba-
lho a ser realizado. Na segunda etapa, a
transcrição, as imagens selecionadas são
colocadas de forma mais simples.
A codicação é a terceira etapa,
quando as unidades escolhidas para aná-
lise são transformadas em códigos, mui-
tas vezes sinais grácos. E por m vem a
tabulação, que é quando os códigos são
transformados em informações numéri-
cas, Diane Rose (2002, p. 362) também
apresenta o método em nove etapas:
1. Escolher um referencial teórico e
aplicá-lo ao objeto empírico.
2. Selecionar um referencial de amos-
tragem – com base no tempo ou no
conteúdo.
3. Selecionar um meio de identi-
car objeto empírico no referencial de
amostragem.
4. Construir regras para a transcrição
do conjunto de informações – visuais
e verbais.
5. Desenvolver um referencial de co-
dificação baseado na análise teórica
e na leitura preliminar do conjunto de
dados: que inclua regras para a aná-
lise, tanto do material visual, como
do verbal; que contenha a possibili-
dade de desconfirmar a teoria; que
inclua a análise da estrutura narrati-
va e do contexto, bem como das ca-
tegorias semânticas.
6. Aplicar o referencial de codica-
ção aos dados, transcritos em uma
forma condizente com a translação
numérica.
7. Construir tabelas de frequências
para as unidades de análise, visuais.
8 – Aplicar estatísticas simples, quan-
do apropriadas.
9 – Selecionar citações ilustrativas que
complementem a análise numérica.
No entanto, no caso do presen-
te estudo, somente a etapa da seleção e
da transcrição, sem o uso de tabelas se-
parando a parte visual da sonora, serão
utilizados. A escolha se deve ao fato de
que a maioria das análises teóricas feitas
em cima do lme são referentes à parte
textual. Por isso, não se fez necessária
uma transcrição mais detalhada de cenas
e elementos visuais, pois estes servem
como complemento às análises referen-
tes à parte textual da obra. Da mesma
forma, a transformação das unidades em
códigos foi dispensada, por consequência
da última etapa do processo também não
ser necessária, já que o trabalho não tem
entre seus objetivos comparações com
outras obras ou épocas que fujam à nar-
rativa cinematográca e, por isso, não se
prenderá a números.
Um dos autores que servirá como
base para esta análise é Alexandre Augus-
ti (2013) que explica que o noir comporta
características muito particulares, entre
elas os personagens ambíguos, intrigas,
cenários com inuências do expressionis-
mo alemão, além de iluminação em con-
trastes e música que desperta, realça ou
sustenta o suspense.
Também servirá de base para as
análises feitas o autor Fernando Masca-
rello (2006), que no capítulo sobre lmes
noirs em um livro sobre a história do ci-
nema, ressalta que o noir, como gênero,
não existiu, já que no período em que foi
feito, os diretores, críticos e público ja-
mais o delimitaram como tal. Para ele,
a criação foi retrospectiva. Ele destaca
que a literatura policial e o expressionis-
mo alemão são responsáveis pela maio-
ria dos elementos que denem os lmes
como noirs: a iluminação com profusão de
sombras, a alta complexidade das tramas
dos personagens, a utilização dos ash-
backs e o corte do big close up para os
planos gerais em plongée, considerado
o enquadramento do noir por excelência.
Mascarello (2006) cita ainda a iconogra-
a destes lmes, com o uso de espelhos,
relógios, escadas e a ambientação corri-
queiramente durante a noite.
166
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Alguns dos outros autores utiliza-
dos para a realização do trabalho são
Guilherme Maia (2011), que fez um es-
tudo especíco sobre a utilização da -
sica nas obras noir, mais precisamente
nos lmes A Marca da Maldade (Touch
of Evil, 1957) e O Falcão Maltes (The
Maltese Falcon, 1941), procurando de-
monstrar os recursos musicais usados
por estes lmes e como são transforma-
dos em estratégia de expressão cinema-
tográca; Debora Soa Lemos Pinto de
Carvalho (2011), que analisa a presença
das personagens femininas no noir, as
separando em três tipos: cativa, fatal e
independente; Fernanda Ianoski Ferro
(2013), que também emula as mulheres
do lme noir através da crítica feminista
de Elizabeth Kaplan e Laura Mulvey.
Reexão sobre os jornalistas em
Embriaguez do Sucesso
A cena inicial, onde passam os cré-
ditos, já deixa sinais de que o que está por
vir é um representante noir. Nela, acom-
panhamos um caminhão entregando jor-
nais pelas ruas de Nova York durante uma
noite, em meio a letreiros luminosos da
Broadway. A câmera encontra um vende-
dor de jornais, que anuncia as manchetes,
e é então que somos apresentados ao
assessor de imprensa Sidney Falco. En-
quanto pega um dos jornais, é questiona-
do pelo vendedor se queria ter uma nota
na coluna de J.J. Hunsecker. Embora ele
não responda a pergunta, não vai demorar
muito para o espectador descobrir que a
resposta é armativa. Isto cará claro logo
em seguida, quando o assessor demons-
tra decepção ao ler o jornal, o jogando na
lixeira e indo embora do bar.
Em seu escritório, onde na porta
está escrito publicidade, a secretária,
Sally, avisa pelo telefone a um dos clien-
tes de Falco que o assessor não está,
apesar dele ter acabado de retornar. O
acompanhamos abrir uma porta, dentro
do escritório, que dá para seu quarto,
um dos primeiros indícios de que ele não
anda prossionalmente estável, preci-
sando trabalhar e morar no mesmo am-
biente. Sally dialoga com Falco, dizendo
que informou ao cliente que estava ao
telefone que a nota sobre ele estaria no
jornal do dia seguinte, o que é negado
por Falco, que acabou de ler a edição
do periódico. Ela, então, arma fazer
cinco dias que Hunsecker o mantém fora
da coluna, o que enuncia existir um pro-
blema de relacionamento entre ambos.
Este tipo de situação não é nova entre
assessores e jornalistas. Vieira (2004)
explica que, no Brasil, desde o surgi-
mento da prossão, o assessor passa
por problemas de relacionamento com
quem exerce o jornalismo. Entre as cau-
sas, ela cita a falta de preparo dos as-
sessores e o preconceito, que é resulta-
do do surgimento da atividade.
Porém, ao longo da narrativa, des-
cobriremos que as regras não escritas que
J.J. segue, não são baseadas em princí-
pios éticos ou técnicos, mas sim pessoais,
relativos a favores que cobra, em uma ca-
racterística hedonista, que Augusti (2013)
diz ser um dos pilares que amparam o gê-
nero, e que se origina da acentuação do
individualismo a partir da segunda metade
do século XX, época em que o lme tem
sua história narrada, quando são enfatiza-
das a satisfação do prazer e das necessi-
dades individuais.
Após a conversa, Sally avisa que
o alfaiate e o corretor telefonaram, rece-
bendo como ordem pagar o corretor e
mandar o alfaiate esperar, o que, mais
uma vez, reforça a ideia de que o asses-
sor não está bem nanceiramente, princi-
palmente quando a secretária avisa que
não sobrará muito dinheiro no banco.
Na rua novamente, Sidney encon-
tra, por acaso, um outro cliente, chamado
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Joe Roberts. O assessor tenta controlar
a insatisfação de Joe, mas é em vão. Ele
acusa Sidney de ser um mentiroso: “É a
natureza de um publicitário. Eu não o con-
trataria se não fosse. Eu pago uma fortu-
na e você inventa mentiras sobre mim e
o clube.”. Neste momento, o roteiro de-
monstra não somente a visão do caráter
do personagem, como a visão em rela-
ção a publicitários e assessores de im-
prensa de uma maneira geral. A situação
é descrita por Vieira (2004) como sendo
comum no Brasil, principalmente após o
regime militar: assessores que são vis-
tos como defensores dos interesses dos
clientes e, por isso, não conáveis.
Após este encontro, Sidney retor-
na, mais uma vez, ao seu escritório. Com
o humor abalado pelo acontecido e tam-
bém pela situação com Hunsecker, ele é
estúpido com a secretária. Ao perceber
que passou dos limites, se arrepende, e
se descreve a ela como um homem que
não é um herói, mas apenas gentil com
as pessoas quando necessário, em ou-
tro subtexto do roteiro que, nas entreli-
nhas, expõe como os assessores eram
vistos na Nova York de 1957. É nesta
cena, também, que é mostrado o primei-
ro indício claro da força e inuência de
J.J. Hunsecker: Falco arma que o co-
lunista é “a escada dourada para onde
quero chegar”, e que por isso, se subme-
te aos pedidos dele. A atitude de subir a
qualquer custo é explicada por Augusti
(2013). Segundo ele, os personagens
do universo noir buscam a sobrevivên-
cia procurando uma posição dominante,
pois na América, existia uma divisão de
classes bem delineada, capaz de delimi-
tar o sucesso e o fracasso de alguém.
Falco arma, também, que estar no jogo
dos poderosos signica algo bastante
simples, que “um cão come o outro”, em
uma representação da falta de esperan-
ça que caracteriza o noir e que, como
ressalta Augusti (2013), é reexo da
quebra da bolsa de valores em 1929.
O poder de Hunsecker é novamen-
te ressaltado em uma conversa entre Su-
san, irmã do colunista, e Falco, dentro de
um taxi, ainda na mesma noite. A garota
deseja que o irmão não esteja ngindo
gostar do cunhado, o que de fato está
fazendo, somente ngindo. Ao dizer seu
desejo, Sidney pergunta porque ele faria
isso e lhe diz: “Ele já disse a presiden-
tes aonde ir e o que fazer”. Após deixar
Susan, Sidney encontra outro de seus
clientes, que também demonstra muito
aborrecimento. O homem arma que o
trabalho de Falco é sujo, mas que o pa-
gamento que recebe é limpo. Além do
roteiro, outra vez, colocar o pensamento
relativo ao que se pensava dos asses-
sores na época, pode-se encontrar aqui
uma falha por parte do prossional de
assessoria, já que segundo Bella (2011),
um dos papéis dele é o desenvolvimento
de ferramentas para se relacionar com os
veículos de comunicação, consolidando
assim a imagem do cliente. Como foi dito
anteriormente, há cinco dias as notas de
Falco eram ignoradas por Hunsecker, ou
seja, os clientes dele não apareciam na
imprensa desde então.
Após esta cena, o emblemático
e tão citado J.J. Hunsecker aparece no
lme. Ele está em um restaurante, em
uma conversa com um senador e outras
duas pessoas. O colunista se recusa a
atender Falco, que impõe sua presença
na mesa. Ao caminhar pelo bar, a câme-
ra mostra o teto do cenário, focando Fal-
co de baixo para cima:
Quanto aos ângulos peculiares, des-
taca-se a preferência pelos ângulos
baixos porque fazem com que as pes-
soas se elevem do chão de uma for-
ma quase expressionista, oferecendo-
-lhes aura dramática e tons simbólicos;
além de permitirem ao espectador ver
os tetos dos cenários interiores, con-
duzindo à sensação de claustrofobia e
paranoia. (AUGUSTI, 2013, p. 44)
168
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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A câmera coloca Hunsecker impo-
nente, enquanto Falco está sentado um
pouco atrás dele, menor, o que ratica o
poder de Hunsecker e a insignicância
de Falco. O ângulo é favorecido pela es-
tatura dos atores. Tony Curtis é, de fato,
menor que Burt Lancaster. Enquanto
está na reunião, o jornalista recebe um
telefonema, cujo indivíduo solicita uma
nota informando que os carros esporti-
vos estão cada vez menores na Califór-
nia, e que por isso ele teria sido atrope-
lado. Hunsecker reclama, e arma ter
publicado esta nota na semana anterior.
Esta situação exemplica um dos proble-
mas relatados pelos prossionais do jor-
nalismo na relação com os assessores,
apontados na pesquisa de Vieira (2004):
as ligações em horários inconvenien-
tes, incompatíveis, quando o jornalista
está ocupado com outros compromissos,
além dos releases mal feitos. Neste caso,
a pessoa que ligou para Hunsecker, es-
tava mal informada:
As ligações em horários em que os
jornalistas estão em fechamento
de pauta e envio de releases que
não condizem com a editoria, o que
acontece muito, são as principais
queixas dos jornalistas. Ou seja,
não adianta mandar um texto sobre
economia para a editoria de cultu-
ra que ele não vai ser divulgado.
(VIEIRA, 2004, p. 33)
O assessor, durante a conversa
para a qual não foi convidado, pergun-
ta para o senador se ele é a favor da
pena de morte, alegando que um ho-
mem acaba de ser condenado. A refe-
rência é a si mesmo, já que J.J. pode
decretar a sua morte profissional. A de-
claração deixa mais uma vez explicito
o preconceito relativo às assessorias.
Mesmo que a maioria da coluna de
Hunsecker seja composta, em grande
parte, pelas notas de assessores, é
ele quem tem prestígio. Em seguida,
Imagem 1: Sidney Falco chega ao encontro de Hunsecker. A câmera o focaliza de cima para baixo,
mostrando o teto que aumenta sensação de claustrofobia e paranoia.
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o senador Walker pergunta a Falco so-
bre o que faz um assessor, e surge o
seguinte diálogo:
Sidney Falco: Acabou de ver um
bom exemplo, Senador. Um asses-
sor deve engolir insultos do colu-
nista como se fosse um maná.
Senador Walker: Mas você não os
ajuda fornecendo notícias?
Sidney Falco: Claro. Os colunistas
não sobrevivem sem nossa ajuda,
mas nosso amigo JJ esqueceu de
mencionar isso. Nós fornecemos
as informações.
Mais uma vez, o problema entre
assessores e jornalistas é mostrado.
Neste caso, Falco toca em outra ques-
tão referente ao problema. Por mais
que assessores sejam vítimas de pre-
conceitos por parte de jornalistas, eles
são fontes importantes no processo de
produção das notícias. Conforme Bella
(2011, p. 23): “Neste processo, as as-
sessorias de imprensa possuem um pa-
pel fundamental, na medida em que fo-
mentam de informações os veículos da
grande imprensa.”
Na rua (os cenários se interca-
lam bastante entre ruas e bares e res-
taurantes, o que reafirma o filme como
noir), Hunsecker encontra um policial
com quem troca informações sobre uma
menina. A polícia, dentro do jornalismo,
costuma ser uma fonte importante de
informações. O policial se descobrirá
mais tarde, é corrupto (a visão invertida
das autoridades citada como elemento
noir). Durante a cena, Falco é filmado
sempre em plongée
XI
, ou seja, de cima
para baixo, o que o diminui diante dos
outros dois personagens, que no térmi-
no da película, serão responsáveis pelo
fim do assessor.
Imagem 2: Falco lmado em plongée (de cima para baixo) diante de Hunsecker e do policial,
destacando sua inferioridade.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Já sem a presença do policial, os
dois protagonistas discutem. Hunsecker
cobra Falco, diz que ele não realizou
a tarefa de terminar o namoro da irmã.
Nervoso, Sidney lembra de um favor ter-
rível que realizou no passado para ele,
frisando sua relação de dependência. O
assessor revela a Hunsecker que Dallas,
o músico de jazz, pediu Susan em casa-
mento, e que a garota pensa aceitar. No
entanto, Sidney alega ter um bom plano
para acabar com o namoro. J.J. hesita,
mas sabe que precisa de Sidney, pois
não pode sujar sua reputação. É, então,
que pela primeira vez, a câmera os mos-
tra no mesmo ângulo, admitindo que os
dois são dependentes um do outro, pro-
pondo uma igualdade de ambos.
Imagem 3: Hunsecker é lmado em igualdade com Falco.
Imagem 4: Falco deixa de ser lmado em plongéé, cando em igualdade com Hunsecker.
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Sidney procura um outro colunista,
que está com a esposa em um restauran-
te. O objetivo é chantagear o jornalista,
para conseguir uma nota que fale mal de
Dallas. A arma de Sidney é o envolvimento
passageiro que o colunista teve com sua
amiga Rita, e que não pode ser descober-
to pela esposa. O jornalista, ao contrário
do que esperava Sidney, se mostra ético,
recusa publicar a nota, confessa para a
esposa o caso amoroso e se dirige ao as-
sessor: “Seu amigo, Hunsecker. Diga a ele
que é uma vergonha para a prossão. Não
importa se minha vida pessoal é miserável.
Tenho uma coluna respeitável e vai conti-
nuar assim. Seu chefe publica tudo! Usa
qualquer tempero para apimentar seu lixo.
Diga isso a ele. Diga que, como você, ele
não tem escrúpulos e possui a moral de
um gângster.”. Apesar da visão desacredi-
tada do ser humano, presente na maioria
dos personagens, o lme não ignora que
existam pessoas éticas, mesmo que em
minoria. A visão da prossão apresentada
na narrativa evita o maniqueísmo de clas-
sicar a todos de igual forma.
Um outro colunista acaba aceitan-
do publicar a nota de Sidney em troca de
uma noite de amor com sua amiga Rita,
que o espera no apartamento dele. Ao sair
para deixá-los a sós, Falco diz: ”Não fa-
çam nada que eu não faria. Já dá espaço
para muito”. A armação corrobora a visão
do assessor como alguém capaz de qual-
quer coisa para atingir os objetivos.
Durante o dia, Sidney vai até a re-
dação do periódico onde sai a coluna de
Hunsecker. Em meio ao barulho constante
das máquinas de escrever, que frisam a
importância da velocidade no fazer jorna-
lístico, o assessor consegue ter acesso à
coluna que ainda não foi publicada, e se
espanta ao ver que um comediante que foi
elogiado no texto, não possui um asses-
sor de imprensa. A nota dizia: “Se existe
alguém mais hilário que Herbie Temple no
Palace, não vimos quem é. Estávamos
muito ocupados gargalhando.” A secretá-
ria do jornal então explica:” É um dos atos
de bondade ocasionais de JJ. O rapaz
deve ser engraçado, então deu uma ajuda
a ele.” A atitude do colunista reete uma
característica importante dos lmes ne-
gros, que é a ambiguidade moral dos per-
sonagens, considerado por Ferro (2013)
um elemento fundamental na denição
do gênero. A cena esboça que Hunsecker
possui traços humanos, não podendo ser
classicado como bom ou mau, apesar da
maioria de suas atitudes.
As diversas contradições e ambigui-
dades que atingem as personagens
noir geralmente estão ligadas a essa
relação complexa entre o bem e o
mal. O noir traz personagens que
imediatamente declaram sua ambi-
guidade, demonstrando-se a serviço
do bem e do mal ao mesmo tempo,
ou que acabam por se revelar maus
quando parecem bons e vice-versa.
(AUGUSTI, 2013, p. 111)
Algum tempo depois, os dois per-
sonagens se encontram em um teatro,
onde o colunista grava um programa
para a televisão. Nesta ocasião, Hunse-
cker pergunta para Falco o que sua irmã
enxerga naquele músico de jazz. O diá-
logo entre eles registra o fatalismo típi-
co do gênero e também vivenciado nos
Estados Unidos, na descrença com o ser
humano, com o roteiro insinuando que
era cada vez mais incomum encontrar al-
guém com integridade:
Hunsecker: O que ele tem que a
Susie gosta?
Falco: Integridade. Aguda como in-
digestão.
Hunsecker: O que isso signica: in-
tegridade?
Falco: Uma caixa de bombinhas es-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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perando por um fósforo. É um novo
truque. Nunca pensei em enrique-
cer com a integridade de alguém.
Na sequência, Hunsecker diz que
detestaria morder Falco, por ele ser feito
de arsênico. A frase, além de dizer res-
peito ao caráter do assessor, deixa no ar
uma certa tensão homossexual entre eles.
“Essa é outra referência comum dentre os
lmes noir, uma maior tolerância da c-
ção e correspondência com a sociedade
no que diz respeito à homossexualida-
de.” (AUGUSTI, 2013, p. 161). A cena é
lmada atrás das cortinas de um teatro,
em meio a sombras que encobrem os ros-
tos dos personagens. As sombras são um
elemento técnico comum na fotograa do
noir, que, de acordo com Carvalho (2011),
são herança do expressionismo alemão,
que utilizavam em demasia os contrastes
entre o claro e o escuro.
A sombra, tão reutilizada pelo cinema
noir, é originária e também fortemen-
te característica do cinema expres-
sionista. Ela representa a metáfora
do inconsciente, do lado obscuro da
mente, daquilo que é reprimido. É
atributo daquelas personagens exi-
ladas pela lei, pela natureza e pelo
Bem. Dos que vivem na clandestini-
dade, nas trevas, num sono intermi-
tente. (AUGUSTI, 2013, p. 76)
Ainda na mesma cena, Dallas, o
namorado de Susan, vai até o teatro para
conversar com o futuro cunhado. No mo-
mento em que o colunista vai ao encontro
do músico, um contra plongée da câmera
avisa ao expectador que Hunsecker é mais
forte, e irá vencer o confronto. Nesta cena,
é mostrado, também, o assessor acenden-
do o cigarro de J.J., o que, de acordo com
Augusti (2013), remete a sugestões de se-
dução, reforçando o indício de um senti-
mento homossexual entre ambos.
Imagem 5: As sombras, artifício comum no noir, cobrem o rosto de Hunsecker..
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Imagem 7: Falco acende o cigarro de J.J...
Imagem 6: Contra plongée. A Câmera foca o personagem de baixo para cima, destacando sua
superioridade.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Na discussão entre ambos, Dallas
ofende a Hunsecker e a coluna produzi-
da por ele. Depois que vai embora, já
com o relacionamento com Susan aca-
bado, J.J. revela que agora deseja mais
que o fim do namoro da irmã: quer tam-
bém ver o rapaz destruído. Falco apa-
renta não entender o motivo acreditando
que o outro personagem está levando a
ofensa a sua coluna para o lado pesso-
al. Hunsecker, então, diz: “Você acha
que isso é um problema pessoal? Está
dizendo que eu levei isso para o lado
pessoal? Não vê que hoje esse rapaz
limpou os pés na escolha, na preferên-
cia de 60 milhões de pessoas do maior
país do mundo? Se tivesse alguma mo-
ral, entenderia a imoralidade do que
ele fez hoje. Não fui eu o criticado, mas
sim os meus leitores.” Aqui, é possível
enxergar uma crítica feita pelo filme
ao público consumidor do jornalismo.
A coluna do protagonista do filme pode
desrespeitar a profissão de todas as
maneiras possíveis, incluindo falhas éti-
cas e morais. Entretanto, existe público
consumidor para isso. Milhões de norte-
-americanos eram leitores assíduos do
trabalho de J.J., sendo também respon-
sáveis pelo sucesso e poder dele.
Na noite seguinte, Sidney colo-
ca drogas no casaco de Dallas, e avisa
o policial corrupto, amigo de J.J., que
pode fazer a abordagem. Sem car no
local para ver se o plano poderá dar cer-
to, o assessor mergulha pelas sombras
da rua, em uma metáfora de que o cami-
nho escolhido não possui mais volta.
Nos momentos finais, Sidney vai
até a residência dos Hunseckers, pois
recebeu um telefonema de J.J. Na rea-
lidade, quem o chamou foi Susan, que
tem um plano para desmascarar os
dois. Quando o colunista entra em casa,
pensa que Falco atacou sua irmã. Po-
rém Falco, revoltado, e após apanhar,
revela que Hunsecker está envolvido, e
vai embora, sendo denunciado para a
polícia pelo colunista, que o entrega no
caso das drogas no casaco de Dallas.
Susan decide ir embora, ficar ao lado
do namorado. “Uma temática comum
nos filmes noir são os casais em fuga,
geralmente dispostos a grandes faça-
nhas em prol do sucesso do romance,
golpe, etc. “ (AUGUSTI, 2013, p. 47). O
irmão tenta impedi-la, mas é inútil. Su-
san sai do prédio, logo depois que o po-
licial corrupto e um comparsa recolhem
o corpo de Sidney, morto a tiros por
eles, enquanto J.J. do alto do prédio, e
da sua imponência, observava a irmã ir
embora, terminando solitário.
O cinema noir tem como uma de
suas principais marcas os seres hu-
manos ambíguos, que não são deline-
ados de forma objetiva como bons ou
maus. A Embriaguez do Sucesso re-
flete essa característica em seus dois
protagonistas. J.J. Hunsecker e Sidney
Falco surgem como o retrato do senti-
mento vivenciado pelo mundo naquele
momento, carregado de descrença e
amoralidade, resultado de uma guerra
mundial que implantou uma ideia fata-
lista dentro da cabeça dos cidadãos.
Este fatalismo é representado através
de todas as ações profissionais dos
dois jornalistas, que se confundem com
ações pessoais. Jornalistas são conhe-
cidos por dedicarem todo o seu tempo
ao campo profissional. No filme, isto é
levado ao extremo. Eles misturam os
dois campos, e trocam favores pessoais
por favores profissionais.
O assessor de imprensa encar-
nado por Tony Curtis não acredita na
sociedade, e a vê apenas como um lu-
gar cheio de indivíduos procurando seu
espaço a qualquer preço, algo que ele
também ambiciona. Suas atitudes são
resultado, além do fatalismo pós-guerra,
da visão preconceituosa que os atuan-
tes desta área sempre sofreram. Vistos
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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como homens que mentem por causa
do dinheiro pago pelos clientes, esta
é a postura cobrada pelos assessora-
dos por Falco. Os clientes o procuram
como um homem mentiroso, capaz de
manipular os fatos para construir uma
imagem. O filme deixa claro que Sidney
tem pleno conhecimento disso, e aceita
por acreditar ser a maneira de alcançar
seus sonhos e objetivos.
J.J. Hunsecker não é mais ético
ou responsável que Falco. É apenas um
jornalista que já chegou ao topo, armado
com a mesma imoralidade de Falco. É
como se Falco fosse J.J. Hunsecker no
passado e, consequentemente, Hunse-
cker fosse o que ele se tornaria seguin-
do pelo mesmo caminho. O colunista
conquistou fama, poder e respeito. Seu
trabalho é lido por milhões de pessoas,
e mesmo dependendo de assessores
de imprensa para manter sua coluna,
ele os trata com certo desprezo, contro-
lando-os ao ponto de delimitar seu po-
der, como uma espécie de mecanismo
de auto defesa, para que seu poder não
seja ultrapassado.
Hunsecker e Falco são dois jor-
nalistas tentando viver em uma selva
de pedra. Eles buscam a sobrevivência
em uma sociedade onde cada vez mais
se acreditava na teoria de que cada um
deve fazer por si, pois os seres humanos
não são capazes do altruísmo.
Considerações Finais
Desde seu surgimento, o cinema
busca conquistar uma identicação com
o público, para isso, foi se aperfeiçoan-
do com o passar dos anos e procurando
se adequar ao mundo. Os lmes almejam
retratar a sociedade e os sentimentos hu-
manos, seja em estado bruto ou na mais
alta sosticação. Na tentativa de retratar
a realidade, a sétima arte se apropria do
mundo real e constrói personagens, mes-
mo que nem sempre o que passe na tela
seja completamente el ao mundo real.
Neste trabalho, a análise foi feita
em cima de um lme especíco, A Em-
briaguez do Sucesso (Sweet Smell of a
Success, 1957), representante dos l-
mes noir. O cinema noir teve seu perí-
odo clássico de ocorrência nas décadas
de 1940 e 1950. Augusti (2013) delimi-
ta este período entre os lmes O falcão
Maltês (The Maltese Falcon, 1941) e A
Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958).
Caracterizados pelo tom fatalista que
o mundo vivia após a Segunda Guerra
Mundial e com a Guerra Fria, o noir bus-
cou no expressionismo alemão muitas
de suas marcas, como a distorção de
foco e cenários. Essas referências acon-
teceram, em parte, devido aos cineastas
europeus que migraram para os Estados
Unidos durante a guerra. Entre outras
características típicas do noir, Campos
(2009) cita o clima claustrofóbico, a at-
mosfera de crueldade, as ruas desertas,
o uso dos ackbacks e as paisagens no-
turnas. Augusti (2013) defende que este
gênero é amparado, por um lado, pela
violência, a morte e o crime, e por ou-
tro, pelo hedonismo e a femme fatale. O
jornalista, como personagem, também
aparece representado no cinema noir,
mais especicamente nos lmes No Si-
lêncio da Cidade (While the City Sleeps,
1956) e em A Embriaguez do Sucesso
(Sweet Smell of a Success, 1957), obje-
to para este estudo e que mostra a rela-
ção entre um jornalista de colunas e um
assessor de imprensa.
Assessores de imprensa e jorna-
listas possuem uma relação de depen-
dência. Os assessores e relações públi-
cas necessitam manter bons contatos
com jornalistas para conquistarem es-
paço na imprensa, construindo a ima-
gem dos assessorados e mostrando as
suas ações. Por outro lado, os veículos
176
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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de comunicação encontram nos asses-
sores fontes de notícias que preenchem
espaços dos jornais, especialmente em
dias calmos nas redações. No entanto,
apesar de dependentes, os dois pros-
sionais enfrentam muitos problemas na
hora de se relacionar. Segundo Vieira
(2004), desde que as duas prossões
surgiram, ocorrem falhas na comuni-
cação, tanto pela falta de preparo dos
assessores como pelo preconceito que
ronda seu surgimento. A autora cita que,
no Brasil, o problema ganhou força na
década de 1960, com a ditadura militar,
onde assessores escondiam fatos rela-
cionados ao governo, e viam jornalistas
como inimigos do Estado, enquanto os
jornalistas não gostavam dos assesso-
res por causa da omissão de informa-
ções feitas por eles.
A pesquisa de Vieira (2004) sobre
a relação entre os dois ramos, mostra
que as principais reclamações dos jor-
nalistas, referentes aos assessores de
imprensa são referentes a ligações em
horários equivocados, já que muitos as-
sessores nunca passaram por redações,
e o envio de materiais para editorias er-
radas. Ela diz ainda que muitos jornalis-
tas não consideram assessores como co-
legas. Este fato pode ser percebido em
Portugal, onde, de acordo com Moutinho
e Sousa (2010), as duas prossões não
podem ser exercidas de forma paralela,
por serem consideradas conituosas. Du-
arte (2010) descreve as duas prossões
como dignas, e arma que os padrões
técnicos e éticos são delimitados pela
prática, cabendo aos que exercem a ati-
vidade respeitar esses padrões.
Nota-se que o filme A Embria-
guez do Sucesso é um representante
típico do noir, por apostar na fotogra-
fia em preto e branco, nas locações
noturnas, em bares e restaurantes, e
na ambivalência de seus personagens.
Das características do noir citadas por
Borde e Chaumeton, e que constam no
trabalho de Augusti (2013), o filme pos-
sui a visão distorcida das autoridades,
na figura do policial corrupto amigo de
Hunsecker, os complôs bizarros e a sua
instabilidade, que ocorrem na relação
entre ele e Sidney. Mesmo não possuin-
do todos os elementos presentes na
obra noir, o filme é considerado repre-
sentante do gênero, pois como Augusti
(2013) afirma, filmes que possuem ape-
nas algumas características podem ser
considerados noirs, enquanto outros
que possuem a maioria, não são.
A relação entre assessores e jor-
nalistas que é vista na tela é construída
praticamente sem fatores éticos, sendo
embasada em conceitos imorais e troca
de favores pessoais, que se misturam e
se confundem com o campo prossional.
O jornalista que escreve colunas, J.J.
Hunsecker, vivido por Burt Lancaster, é
poderoso e dominador. É representado
como um homem acostumado a ser obe-
decido, e por isso, detesta quando é con-
trariado. O jogo de câmeras exemplica
isso enquadrando o personagem em con-
tra plongée, de baixo para cima, sobretu-
do em cenas com os outros personagens,
dando a ideia de grandiosidade perante
os demais. A maioria de sua coluna é fei-
ta através de notas e informações que
chegam até ele graças aos assessores
de imprensa. Hunsecker, no entanto, não
os vê como colegas, nem dá a importân-
cia devida a eles como colaboradores,
os destratando e fazendo pouco caso do
seu trabalho. Mesmo assim, os asses-
sores estão sempre no seu encalço, na
esperança de conseguirem um espaço
na coluna do jornal do dia seguinte e são
parte fundamental para que a coluna de
Hunsecker exista.
Sidney Falco aparece como um
desses assessores ávidos pela coluna
de J.J. É possível observar que, no fil-
me, o profissional é construído como
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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um homem ambicioso, ambíguo, capaz
de atitudes imorais e antiéticas para
chegar ao topo. Nele, se encontra o
hedonismo citado por Augusti (2013)
como um dos pilares do noir. Sidney é
hedonista, busca o prazer e a satisfa-
ção pessoal a qualquer preço. Sua falta
de ética é uma representação da pro-
fissão, vista pela narrativa, que em di-
versos pontos descreve os assessores
como mentirosos e de natureza mani-
puladora, e que seriam exatamente es-
tes fatores que levariam os clientes a
procurá-los. A postura é também reflexo
da sociedade da época, pois segundo
Augusti (2013), a América naquela épo-
ca possuía uma divisão de classes for-
temente delineada, capaz de definir o
sucesso ou fracasso de alguém.
Falco é exposto como um homem
de mil faces, e como ele mesmo arma,
deseja ser alguém que não precise obe-
decer a ordens. Para isso, ele aceita se-
parar a irmã de J.J. Susan, do namorado,
o músico de jazz Dallas. A irmã de Hun-
secker representa uma das mulheres do
noir, a mulher cativa, passiva, descrita
por Ferro (2013). Na relação dela com
o irmão, paira no ar um clima de relação
incestuosa, outra marca que o noir acei-
ta em suas representações.
É perceptível que a obra enxer-
ga o assessor como alguém menor
que o jornalista no campo profissional.
Os sinais são claros: além do respeito
que Hunsecker possui, ao contrário de
Falco, o assessor também é colocado
como mentiroso, medíocre e endivida-
do e sem conseguir cumprir as tarefas
prometidas aos clientes, contrariando
um dos preceitos básicos da profissão,
que é manter um bom contato com a
imprensa. Mais uma vez, a câmera tem
sua responsabilidade, ao filmá-lo, prin-
cipalmente nas cenas com Hunsecker,
em plongée, de cima para baixo, real-
çando a sua inferioridade.
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Recebido em 23/02/2016
Aprovado em 29/07/2016
I Alex Sampaio Pires, Jornalista pela Universida-
de Federal de Pelotas, Brasil.. Contato: alexpi-
res1990@hotmail.com
II Michele Negrini, Orientadora do trabalho. Jornalista.
Doutora em Comunicação pela PUC RS. Professora do
Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pelo-
tas, Brasil. Contato: mmnegrini@yahoo.com.br
III Filme que mostra os soldados imperialistas japone-
ses chegando à ilha de Iwo Jima, no Pacíco, pouco
antes da batalha com os norte americanos. Através das
cartas escritas pelos japoneses, a narrativa mostra os
acontecimentos que antecedem a batalha, como a cons-
trução de uma fortaleza subterrânea.
IV Filme que mostra a batalha de Iwo Jima sob a ótima
dos americanos, que saíram vencedores e caram mar-
cados pela imagem de cinco fuzileiros e um integrante
do corpo médico da Marinha erguendo a bandeira dos
EUA no monte Suribachi.
V Batalha que ocorreu em 1945, durante a Segunda
Guerra Mundial, pela posse da Ilha de Iwo Jima, no
pacíco. A ilha, ocupada pelos japoneses, era alvo dos
americanos para construir uma base de aviões bombar-
deiros. Os EUA saíram vitoriosos.
VI Borde e Chaumeton descrevem sete elementos
necessários para caracterizar um filme noir: um cri-
me; a perspectiva dos criminosos, às vezes superan-
do a da polícia; uma visão invertida das tradicionais
fontes de autoridade, acentuando a abordagem da
corrupção policial; alianças e lealdades instáveis; a
femme fatale; violência bruta; motivação e mudanças
em complôs bizarros.
VII Revistas com histórias de violência, impressas em
papel de baixa qualidade, feitos de polpa de madeira, e
com capas feitas com cores berrantes
VIII Filmes feitos após o período clássico do noir, que
se utilizam dos elementos do gênero com temas atuais,
como Chinatown ou Estrada Perdida
IX Estilo cinematográco, que se estendeu por outras
formas de arte, que se caracterizava pela distorção de
cenários e personagens e pelo uso da maquiagem pe-
sada. Teve seu auge na Alemanha na década de 1920,
logo depois da 1ª Guerra Mundial
X O ato de representar. É a ideia de concepção de al-
guém sobre o mundo ou um determinado assunto. É a
reprodução de uma pessoa ou de alguma coisa.
XI Termo utilizado para se referir ao enquadramento em
que a câmera lma o objeto de cima para baixo. Este
enquadramento diminui e inferioriza o objeto, o situando
em uma perspectiva onde há algo maior do que ele.
180
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Seguindo a constituição da Joalheria contemporânea
Siguiendo la creación de la joyería contemporánea
Following the constitution of the Contemporary Jewelery
Ana Neuza Botelho Videla
I
Resumo:
A proposta deste estudo visou apresentar o segmento prossional
da joalheria, tendo por objetivo identicar em quais circunstâncias
a joalheria é considerada arte, por ser uma categoria orientada
para a produção de trabalhos mais experimentais, os quais podem
ter a intenção de problematizar a ornamentação corporal ou a
linguagem da joalheria. Do ponto de vista metodológico, distinguir as
características dos produtos gerados por artistas joalheiros implicou
no acompanhamento das práticas de produção, comercialização,
eventos de divulgação e lançamentos de projetos. A construção
teórica da pesquisa objetivou abarcar o ponto de vista do sujeito e
seu contexto. Neste sentido, a obra de Bruno Latour contribuiu para
se pensar a constituição de uma categoria artística. Como resultados,
observamos que os joalheiros, por se situarem entre dois campos de
práticas, parecem se encontrar em um espaço liminar. De um lado,
armam que o que os diferenciam das outras formas de produzir
joalheria é a exploração ou experimentação do objeto associado ao
corpo. De outro, tem-se o conhecimento especializado da joalheria, o
qual faz a mediação das inuências externas.
Palavras chave:
Joalheria
contemporânea
Teoria do Ator-Rede
Arte
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Resumen:
Este estudio se presenta en el segmento profesional de la joyería,
con el objetivo de identicar las circunstancias que coloca la joyería
es arte, como una categoría especíca para una producción de obras
más experimentales, que puede tener la intención de problematizar una
ornamentación corporal o la lenguaje de joyería. Desde un punto de
vista metodológico, para distinguir las características de los productos
generados por los artistas joyeros, resultó en seguir las prácticas de
producción, marketing, eventos de difusión y lanzamiento de proyectos.
La construcción teórica de la investigación tiene como objetivo abarcar
punto de vista del sujeto y su contexto. En este sentido, la obra de
Bruno Latour contribuye a pensar en una constitución de una categoría
artística. Como resultado, se observó que los joyeros, ya que se
encuentran entre dos campos prácticas parecen encontrar en un
espacio liminal. Por un lado, arman que se diferencian de otras formas
de producción de la joyería por una exploración o experimentación del
objeto asociado con el cuerpo. Por otro lado, se tiene la experiencia de
la joyería, que media las inuencias externas.
Abstract:
The purpose of this study is to present in the professional segment
of jewelry, in order to identify in some circumstances the jewelry is a
conceptual art, because it is a category oriented towards a production
of more experimental works, which may have an intention to
problematize a body ornamentation Or A language of jewelry. From the
methodological point of view, distinguish as characteristics of products
generated by implied jewelers artists not following the practices of
production, marketing, promotion events and project launches. The
theoretical construction of research aims to encompass the subject’s
point of view and its context. In this sense, a work by Bruno Latour
helps to think of a constitution of an artistic category. As a result, we nd
that the jewelers, as they lie between two practice elds, seem to be
in an opening space. On the one hand, statement that what differ from
other forms of jewelry production is an exploration or experimentation
of the object associated with the body. On the other hand, it has the
specialized knowledge of jewelry, which mediates external inuences.
Palabras clave:
Joyería contemporánea
Actor-Red Teoría
Art
Keywords:
Contemporany jewelry
Actor-Network Theory
Art
182
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Seguindo a constituição
da Joalheria contemporânea
1. Introdução
Apresenta-se, neste artigo, parte
da pesquisa realizada para a tese de dou-
torado Joalheria, arte ou design? (VIDE-
LA, 2016). A joalheria que aqui se analisa
é a ocupação prossional desenvolvida
nos dias atuais, na qual pode prevale-
cer uma compreensão mais artística ou
mais comercial da atividade a depender
do contexto ou da segmentação aborda-
da. Algumas dessas posições estão mais
próximas do design, enquanto outras mais
próximas da arte. Para isso, retoma-se a
discussão das várias formas de atuação
prossional, nas quais se apresentam tan-
to o sujeito que produz artesanalmente,
quanto as produções industriais, em con-
traponto com os que estão problematizan-
do a joia como adorno corporal, e que es-
tão, de certa maneira, levando o problema
da linguagem artística ao seu extremo.
Como a atuação nesse campo,
assim como em tantas outras atividades
prossionais, pode ocorrer de distintas
maneiras, sob diferentes perspectivas,
buscou-se apresentar as categorias mais
emblemáticas da joalheria, para em se-
guida determo-nos na joalheria contem-
porânea, compreendida como uma lin-
guagem artística.
Portanto, a proposta foi identicar,
entre os produtores que se posicionam
como produtores de artefatos com ex-
pressão artística, os processos que con-
dicionam suas atuações nessa atividade
prossional. Pois, de acordo com a argu-
mento deste estudo, pode-se evidenciar
nos diferentes desempenhos, uma análise
das estruturas e processos que condicio-
nam as atuações dos sujeitos.
Em termos metodológicos, foi ado-
tada a teoria do ator-rede - TAR (LATOUR,
1994, 2004a, 2012), cujo método consiste
na observação participante e descrição,
aos moldes da etnograa.
A pesquisa inicialmente contaria
com informantes apenas do Brasil, porém,
ao longo do processo do doutorado, surgiu
a oportunidade de fazer o estágio doutoral
no departamento de Antropologia da UAM,
na Cidade do México. Quase que simul-
taneamente tomei conhecimento, através
de um artigo originário de um Fórum de jo-
alheria contemporânea
II
, da existência de
um coletivo
III
de artistas joalheiros também
na Cidade do México, daí oportunizou-se
a ideia de, a partir dessa informação, dar
continuidade ao trabalho de campo com
joalheiros contemporâneos estrangeiros.
2. Facetas da joalheria
A atividade joalheira, na perspectiva
dos produtores, conta com especicidades
que a faz formar especialistas, oferecendo
uma direção contrária da tendência que ou-
tros setores econômicos enfrentam da e-
xibilização do trabalho (CANCLINI, 2012).
Em vez disso, observa-se na joalheria uma
atividade prossional de muita tradição,
identicável mais fortemente em algumas
regiões. Com o intuito de ilustrar em que
consiste a especicidade da formação joa-
lheira, passa-se ao relato da joalheira Tissa
Berwanger e de sua experiência na Alema-
nha, país com vasto lastro na área. Tissa,
após um primeiro contato com as técnicas
de joalheria na Escola de Ourivesaria do
SENAI-RJ, optou por complementar sua
formação em joalheria na Zeichenakade-
mie Hanau, Alemanha, escola conhecidas
pela excelência na formação técnica. A sua
escolha por essa escola foi motivada pela
orientação que a escola possui em formar
ourives como produtor e criador de joia. Tis-
sa enfatiza que não se trata de uma escola
de design de joias e ainda esclarece que,
183
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“há uma diferença entre design de joias e
gestaltung de joias, o design é orientado
para a indústria, enquanto a gestaltung é
focada na conguração da joia, na joalheria
de autoral” (Entrevistada). Segundo Tissa, a
cidade de Hanau, na Alemanha, conta com
várias instituições que reforçam a importân-
cia da joalheria para a comunidade local.
Além disso, contam com tecnologia para
a produção dos materiais utilizados na fa-
bricação de joias, que não encontramos no
Brasil. Para isso, é fundamental contar com
equipamentos como laminadores grandes,
que permitem a elaboração de chapas de
espessura calibrada e de grande dimensão.
Ou seja, contam com facilidades que auxi-
liam no desenvolvimento prossional.
Na cidade de Hanau, não só tem a es-
cola, eles tem o museu que é o Gol-
dschmeidhaus, todas as exposições
que passam por Munique, elas vão
parar em Goldschmeidhaus. Eles têm
várias empresas de metal, eles têm a
Heraeus que vende ‘os metais’, então
os alunos encomendam... os alunos
que fazem objetos, tem uma turma só
de objetos de prata, eles encomendam
uma chapa grande de prata, lisinha, da
espessura que eles queiram. Pra fazer
o desenho é muito fácil, virava o metal
aqui, virava o metal ali, você fazia um
objeto porque você tem essa possibi-
lidade de ter chapas grandes, muda
a sua forma de pensar no projeto. E
eram muitos incentivos, no projeto -
nal, a gente pedia o metal e podia de-
volver o resto. Então a gente só paga-
va aquilo que se usava. Tudo, soldas,
metais, todos perfeitos e maravilhosos.
Tinha uma empresa de ferramentas,
que vende pra Alemanha inteira, na
própria cidade, então era muito fácil
você comprar e ter o material. E se no
meio da aula você via que tinha que ter
uma broca, na hora da pausa você cor-
ria com a bicicleta e comprava a broca
e voltava. Então dava pra desenvolver.
(Informação verbal)
IV
Embora o exemplo da formação
alemã esteja muito distante do que ocorre
na realidade brasileira, a intenção de mos-
trar uma formação de excelência é poder
identicar a construção de um especialis-
ta, cujo início ocorre desde a seleção dos
alunos, que é constituída por provas, uma
de desenho, outra que avalia a habilidade
em construções com papel, ou seja, a es-
colha dos alunos para a escola técnica de
joalheria está condicionada a que eles pos-
suam habilidades manuais. Uma vez iden-
ticado os candidatos possuidores dessas
habilidades, os alunos serão introduzidos
aos saberes
V
relacionados à atividade e
treinamento em técnicas nas e precisas,
em um curso com duração de três anos
e meio e com 35 horas de carga horária
semanal. Para além dessa formação, os
joalheiros contam ainda com facilidades
para a condução da prossão, desde o
acesso de toda cadeia produtiva, de mate-
riais, metais, ligas especiais e ferramentas
de qualidade
VI
, a eventos relacionados ao
segmento, espaços expositivos e de co-
mercialização. Esse contexto favorece o
desenvolvimento dos prossionais, uma
vez que possuem acesso às tecnologias
que facilitam a materialização dos proje-
tos, além de contarem com a permanente
circulação do trabalho de outros produto-
res, estimulando a reexão do universo no
qual estão envolvidos.
Feita essas considerações, passa-
-se para uma concisa apresentação da jo-
alheria. A atividade que aqui discutiremos
é a composição do segmento da joalheria
e sua relação de prossionalização hoje,
no qual pode prevalecer uma compreen-
são mais artística ou mais comercial da
atividade a depender do contexto ou da
segmentação abordada.
2.1. Joalheria de Autor
Para Liesbeth den Besten (2011), há
uma série de categorias que compõem a Jo-
alheria, tais como: joalheria contemporânea,
184
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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joalheria de estúdio, arte joalheria, joalheria
de pesquisa, design joalheria e joalheria de
autor. Alguns desses termos têm origem
especíca em um país, como é o caso da
“joalheria de autor”, derivação do “Cinema
de Autor”, que surgiu na França, na década
de 1950, através das ideias de François Tru-
ffaut e André Bazin. Em seguida, esse ter-
mo se expandiu para uma experiência nova
com a Joalheria, também mais relacionada
à arte, até ganhar outras regiões.
Para Ramón Puig Cuyás
VII
(RO-
JAS, 2016), “La joya de autor es un térmi-
no confuso que solo nos indica la voluntad
de autoría, pero no nos da información de
si es un producto artístico, de artesanía,
de diseño o de joyería convencional”
VIII
Portanto, joalheria de autor não é uma
denominação adotada atualmente pelos
informantes para se referirem à joalheria
com expressão artística, pois identicam
no termo uma carência de rigor e referên-
cia a um período. Contudo, esse termo foi
muito utilizado pelos joalheiros brasileiros
nas décadas de 1980 e 1990. De acordo
com a informante Elizabeth Franco, joa-
lheria de autor era a designação adota-
da pelos produtores que buscavam uma
criação própria, tanto na forma como no
material, em oposição às joias comerciais.
Entretanto, o termo após esse período, foi
paulatinamente caindo em desuso.
2.2. Alta Joalheria
A categoria da alta joalheria pos-
sui o propósito de produzir peças de luxo.
Isso signica que para fabricar peças des-
sa categoria enfatiza-se, sobretudo, dois
elementos: matéria-prima rara e mão-de-
-obra altamente qualicada e extremamen-
te habilidosa. As matérias-primas utilizadas
nestas peças são, sobretudo, as ligas, que
é a combinação de dois ou mais metais, e
as gemas
IX
com características naturais es-
peciais. As gemas precisam possuir vários
aspectos para alcançar valor no mercado
joalheiro, tais como; elevado teor de pureza,
intensidade na cor (quando se trata de gema
corada), não apresentar clivagem, nem in-
crustação. A lapidação é um beneciamento
pelo qual a gema passa antes da montagem
na joia, cujo objetivo é realçar a beleza dos
minerais, amplicando suas propriedades
físicas, como o brilho (reexão), o fogo (dis-
persão), o jogo de cores das gemas, entre
outros aspectos, de acordo com a estrutura
cristalina de cada material. Com relação à
mão-de-obra, o outro aspecto destacado da
produção da alta joalheria, implica em uma
formação longa e, por isso, cara, na qual o
pretendente deve ser iniciado ainda jovem,
por volta dos 15 ou 16 anos, pois quanto
mais jovem iniciar no ofício, mais facilidade
terá em incorporar habilidades mais nas
X
. A
produção de uma peça de alta joalheria exi-
ge um alto grau de perfeição, evidentemente
que outras características são importantes,
como o design e as inovações tecnológicas,
no entanto, os dois itens destacados são
os mais emblemáticos para essa categoria.
Como é exigido um alto grau de perfeição
nos produtos desta categoria, a produção
não pode prescindir da maestria do artesão,
combinado com matérias-primas especiais
e raras. Esse aspecto acaba por não permi-
tir muita escala, pois a ênfase recai na qua-
lidade da execução. Virgílio Bahde, um dos
nossos informantes, compara a fabricação
de peças de alta joalheria com a fabricação
de produtos de marcas de luxo. Assim, ele
diz, “é um sistema de indústria, mas uma
indústria que passa por um processo arte-
sanal. É como a fabricação de bolsas da
Hermès, que conta com o melhor couro, [...]
é industrial? É, mas é feito com os padrões
do artíce. Tem que ter um artíce ali, que
conhece muito, a vida dele é aquilo [...]”.
2.3. Joalheria Industrial ou de Estúdio
A joalheria industrial, por sua vez, se
distingue das outras categorias que com-
põem o universo da joalheria por adotar as
práticas do design com intuito de obter es-
cala. Neste aspecto, a contribuição do de-
sign é no sentido de desenvolver projetos
que permitam agilizar a produção. Desse
185
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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modo, ao otimizar os recursos a m de
atingir escala, essa categoria opera a dife-
rença mais marcante com a alta joalheria.
Aqui a tecnologia tem um papel relevante
na obtenção de um produto de qualidade,
tanto no acabamento, quanto no design,
tendo em vista proporcionar o desenvol-
vimento de peças inovadoras. Assim, a
indústria faz uso de várias tecnologias,
como a prototipagem rápida, e algumas
ferramentas de modelagem que possibili-
tam a criação de peças que não poderiam
ser executadas na bancada do ourives. A
solda a laser é outra tecnologia que permi-
te soldar distintos materiais, que não po-
deriam ser unidos através dos processos
tradicionais da ourivesaria. Ou seja, ao
alterar o processo de fabricação da joia,
o uso da tecnologia possibilita uma nova
conguração da joia e, com isso, mantêm-
-se a competitividade do negócio.
A trajetória da informante Lívia Ca-
nuto, designer de joia, ilustra bem a dis-
tinção das categorias, pois no período da
pesquisa Lívia operava a mudança de de-
signer de joias de atelier para uma produ-
ção industrial. Lívia iniciou sua formação
no curso de escultura das Belas Artes,
UFRJ e, pouco tempo depois, ingressou
no curso de desenho industrial da Univer-
Cidade, também no Rio de Janeiro. Du-
rante um período, chegou a frequentar os
dois cursos, até fazer a opção pelo design.
Para Lívia, designer de formação, o cam-
po da joalheria pode ser compreendido da
forma relatada a seguir.
Eu vejo a alta joalheria, que é Tifany,
Cartier, [...] vejo uma joalheria mais
industrial, [...] mais ligada ao design.
Para mim o Antonio Bernardo é indus-
trial, tem fábrica, tem muitas lojas, tem
produção, mas tem a preocupação de
designer. Tem o industrial H.Stern, que
cada vez mais tem uma preocupação
com o design. Uns são mais bem suce-
didos que outros em relação a isso, mas
é industrial. Vejo pequenos produtores,
designers no mercado, com seus ateli-
ês, com suas ocinas, com suas produ-
ções mais reduzidas. Que também es-
tão comercializando. E tem os artistas
joalheiros, que infelizmente eu não vejo
mercado para eles se mostrarem. Não
vejo galerias que estejam abertas para
receber esses joalheiros. Não vejo ex-
posições aqui. Mas eu sei que tem uma
minoria que tem outra proposta dentro
do ramo todo da joia. (Entrevistada)
XI
.
Lívia, ao ser indagada sobre a for-
ma em que atua no campo da joalheria,
diz que se vê “como um pequeno atelier,
uma pequena ocina, como designer de
joias, porque tenho preocupações que fa-
zem parte do design, da comercialização,
da estética, da funcionalidade.” Mas em
breve Lívia vai abrir uma loja no Shopping
da Gávea, local que se destaca na área
da joalheria, pois conta com várias mar-
cas do segmento. Assim, ela diz que vai
“deixar de ter a cara de atelier, pra ter um
negócio mais industrial, mas sempre com
a preocupação do design”. A distinção que
Lívia faz entre a joalheria de atelier para a
joalheria industrial é a escala.
Portanto, a depender do nicho que a
empresa escolhe atuar, é possível agilizar
e otimizar boa parte da produção, no sen-
tido de eliminar ao máximo as etapas arte-
sanais de montagem das peças e os pro-
cessos de acabamentos manuais, os quais
passam da bancada do ourives para proce-
dimentos automatizados da produção. A fa-
bricação continua a ter uma predominância
de materiais nobres, mas a joalheria indus-
trial pode adotar combinações com outros
materiais, como madeira, couro, esmaltes,
aço e titânio, etc. Para essa categoria de
joalheria, tanto o design, como o processo
produtivo visam agilizar a produção.
Por conseguinte, pode-se denir a
joalheria de estúdio como sendo execu-
tada por produtores individuais em seus
próprios ateliês, em que podem contar
186
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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com um ou dois assistentes, mas o que
vale destacar nessa forma de produção é
o controle que o produtor tem de todas as
etapas de fabricação da peça, da ideia à
comercialização, cabendo aos assisten-
tes as etapas de preparação do metal ou
materiais a serem adotados na produção,
assim como do acabamento das peças.
2.4. Joalheria Contemporânea ou
Arte Joalheria
Joalheria Contemporânea ou Arte
Joalheria são denominações adotadas de
maneira intercambiável, sem distinção,
assim, os dois termos são usados para
designar a categoria da joalheria pautada
pela arte. Historicamente, este segmento
da joalheria surgiu na década de 1960,
período de plena efervescência no campo
da arte, tendo como um dos seus princi-
pais pressupostos problematizar a própria
linguagem da joalheria, tais como: o luxo,
a preciosidade, os materiais, as técnicas,
a tipologia adotada e a ornamentação. Os
primeiros joalheiros a participarem do seg-
mento artístico da joalheria criaram peças
em que levantavam questões sobre pre-
ciosidade, ornamentação e usabilidade,
desaando e explorando a tradição do
campo para contestá-la. Pode-se, inclu-
sive, pensar o questionamento da própria
linguagem da joalheria como o indicativo
de um amadurecimento do campo, pois
algo muito próximo havia acontecido com
a arte contemporânea através do seu pro-
cesso de diferenciação da arte moderna,
no sentido em que problematizou a pró-
pria linguagem de representação do mun-
do e do seu modo de fazer artístico.
De acordo com Archer (2001),
as mudanças que ocorreram na arte da
Europa e Estados Unidos, sobretudo, a
partir da pop art, mas também com o sur-
gimento do minimalismo e da arte con-
ceitual, deagrou-se uma modicação
da relação entre arte e vida cotidiana.
Nesse sentindo, os novos movimentos
procuravam aproximar a arte da vida co-
tidiana. Pode-se observar, nos trabalhos
desse período, que muitas obras da pop
art faziam referências ao comportamen-
to, atitudes e estilo de vida da América
contemporânea. A concentração era nos
lugares-comuns ou nas banalidades da
existência. De modo que o signicado
do trabalho podia não estar mais contido
na própria obra, mas, antes, encontrar-
-se associado ao contexto que o artista
queria discutir. Esse contexto podia ser
tanto o movimento artístico anterior, que
no caso da pop art era o expressionismo
abstrato, quanto questões relacionadas
ao consumo cotidiano. As obras deixa-
ram de ser avaliadas e pensadas, prio-
ritariamente, em termos estéticos; outros
aspectos passaram a ser ressaltados.
Um dos rompimentos mais signi-
cativos, desse período, foi em relação à
narrativa modernista da história da arte.
Essa mudança histórica da produção da
arte foi conhecida como o “m da arte”,
tese defendida tanto por Hans Belting
(2006), como por Arthur Danto (2006), cujo
sentido “tinha mais a ver com a maneira
como a história da arte tinha sido concebi-
da enquanto uma sequência de fases de
uma narrativa em desdobramento” (DAN-
TO, 2013, p. 3). Dito de outra maneira, tra-
ta-se do m da narrativa que teve início no
renascimento, em que se levava em conta
um encadeamento dos movimentos pen-
sados em termos de uma linha evolutiva.
Esse modelo de narrativa não mais servia
para compreender as novas proposições
de arte que surgiram a partir da década
de 60. Para o entendimento da arte con-
temporânea precisava-se de uma narra-
tiva de outra ordem, pois as exposições
dos acontecimentos artísticos passaram a
não ser narrados de forma encadeada, na
qual um movimento sucede outro. Desse
modo, foi identicado um m para a nar-
rativa da história da arte, mas obviamen-
te não para as obras de arte, o assunto
transmitido por essa narrativa.
187
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Entretanto, o maior desao foi o re-
conhecimento de que o signicado de uma
obra não estava necessariamente contido
nela, mas podia emergir do contexto em
que se encontrava, o qual podia ser social,
político ou formal. A arte contemporânea
precisava ter signicado e ter sua apre-
sentação coadunada com esse signica-
do; as questões estéticas não eram mais
a problemática norteadora de uma obra.
Com relação à arte joalheria, ob-
serva-se, neste mesmo período, os tra-
balhos de alguns artistas joalheiros que
discutem os aspectos constitutivos do
seu campo, trazendo conceitos a partir
de seus envolvimentos com a linguagem
da joalheria, tais como: o corpo, as ques-
tões sociais e políticas que os cercavam,
o luxo, a ornamentação. Assim, foi a partir
da década de 1960 que os joalheiros co-
meçaram a questionar seu próprio campo
de ação. A primeira geração de joalheiros
europeus, que inclui os suíços Otto Künzli
(1948) e Bernhard Schobinger (1946), o
holandês Gijs Bakker (1942), a inglesa
Caroline Broadhead (1950), sentiam-se
desconfortáveis frente às convenções do
mundo da joalheria e suas tradicionais
conotações de luxo e riqueza (DEN BES-
TEN, 2011). Para Damian Skinner (2013),
crítico de arte contemporânea, Künzli é o
mais perfeito exemplo da natureza crítica
e conceitual do campo.
By this I mean the way contempora-
ry jewelry objects and practices are
intended to actively grapple with the
conditions and circumstances in which
contemporary jewelry takes place. In
general, contemporary jewelers work
in a critical or conscious relationship to
the history of the practice and to the
wider eld of jewelry and adornment
(SKINNER, 2013, p. 1).
Desse modo, pode-se identicar
que essa categoria busca problematizar
os elementos que constituem a linguagem
da joalheria, se contrapondo à joalheria
hegemônica do período. Portanto, joalhe-
ria contemporânea é uma categoria mui-
to recente, cuja disposição propriamente
estética, se opera através da experiência
com a arte que a subsome na função cor-
poral. Ou seja, a arte joalheria toma por
base os pressupostos do campo da arte,
por um lado, e, por outro, a arte a concebe
associada à função corporal. Sendo pre-
cisamente essa característica, a função,
que para o campo da arte afasta a possi-
bilidade da joalheria ser considerada uma
atividade artística.
A m de ilustrar o surgimento da ca-
tegoria da joalheria contemporânea, cito
o depoimento de Rudolf Ruthner
XII
, para
quem essa categoria surgiu para se con-
trapor à alta joalheria e aos altos custos en-
volvidos nos materiais empregados nas pe-
ças. Rudolf explica que na década de 1960
os produtores mais jovens, formados pelas
melhores escolas europeias, dominavam
com maestria a técnica da ourivesaria.
[...], a joia contemporânea começou
nos anos 70, não? Eu conheci pessoas
que começaram com isso. Meu amigo
fez a primeira exposição quando abriu
a Electrum Gallery, em Londres, ele
foi o primeiro. Como aconteceu? Veio
da ourivesaria tradicional, não da ou-
rivesaria, mas de certa forma da ou-
rivesaria tradicional, cada um, esses
artesãos, procuraram uma linguagem
própria, cada um desenvolveu um de-
terminado estilo e se afastaram da alta
joalheria. Eles foram contra essa for-
ma de fazer joalheria porque era muito
caro, as pedras eram caras e coisas
assim. Mas os primeiros contempo-
râneos em 1960 e 1970, eles usaram
materiais tradicionais e não tradicionais
cada um, Hermann Jünger, meu amigo
Fritz Maierhofer, de Viena, criaram uma
coisa, quando você via a peça sabia de
quem era e eles tinham clientela, eles
vendiam. (Entrevistado)
XIII
.
188
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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De acordo com relato acima, a jo-
alheria contemporânea foi uma saída que
os produtores encontraram para enfrentar
os altos custos envolvidos na fabricação
de peças de luxo. Para se diferenciarem
da alta joalheria, passaram a desenvolver
um trabalho de cunho mais pessoal, cuja
proposta foi misturar materiais nobres com
materiais alternativos.
Os joalheiros que se auto nomeiam
artistas joalheiros parecem se encontrar
em um espaço à margem das convenções.
De um lado, armam que o que os diferen-
cia das outras formas de produzir joalheria
é a exploração ou experimentação
XIV
da
joia, em que a própria concepção de joa-
lheria sofreu uma expansão, podendo ser
um objeto, um vídeo ou imagem, cujo in-
tuito pode ser problematizar os efeitos de
adornar, ou reetir sobre o sentido de to-
mar emprestado as qualidades aparentes
das coisas, ou mesmo questionar a própria
linguagem da joalheria, como o luxo, a pre-
ciosidade, a ornamentação ou a tipologia.
Por outro lado, a distinção que esses pro-
dutores ressaltam entre as suas ativida-
des e as outras expressões artísticas é a
interação com o corpo. Para defenderem
a formulação da joia como objetos de arte
argumentam que possuem o mesmo es-
paço exploratório que a arte. A diferença é
ter como suporte o corpo, o qual gera um
modo mais direto de experimentar o obje-
to, tanto através da interação entre os ex-
pectadores, como individualmente, tendo o
corpo como plataforma de exibição.
A interação do objeto-joia e corpo
ou o corpo sendo afetado pelo objeto e vice
versa, em que o trabalho muitas vezes se
completa no uso, seria a diferença seminal
entre a joalheria contemporânea e outros
segmentos da arte. De acordo com o de-
poimentos de Francisca Kweitel
XV
, muitos
trabalhos saem do espaço físico do corpo,
defendendo que nem todo resultado da
produção de arte joalheria precisa ser por-
tado ao corpo. Para exemplicar, Francisca
cita o trabalho de Liesbet Bussche, “Urban
Jewellery”
XVI
, em que o trabalho é um colar
de contas, executado com areia e dentro
de um canteiro de obra. Outro exemplo a
que Francisca recorreu foi o trabalho que
Gemma Draper
XVII
realizou durante seu
período de residência artística em Midd-
lesbrough, na Inglaterra, que consiste em
fotograas de sinalização das ruas da ci-
dade, mais especicamente no bairro que
morou, onde as ruas tinham nomes como,
Rua Pérola, Rua Diamante, Rua Esmeral-
da, Rua Coral e assim por diante. Para a
comunidade local, Gemma explica, a loca-
lização se chama de Jewellery Streets. A
coincidência de morar nessa localidade a
fez realizar uma série de fotos com as sina-
lizações, pois como ela mesma comentou,
era a primeira vez que usava pedras pre-
ciosas no seu trabalho de joalheria.
Portanto, mesmo que os trabalhos
citados por Francisca escapem do espaço
físico do corpo, todos eles fazem referência
à linguagem da joalheria, ora usam uma ti-
pologia da joalheria, como o colar, mesmo
que em espaços urbanos e em grande es-
cala, ora usam equipamentos ou sinaliza-
ções da cidade por adotarem termos recor-
rentes ou materiais adotados na tradição
joalheira, tendo como produto ou resultado
nal as imagens. De modo que, observa-se
que vários trabalhos não necessariamente
usam o corpo como suporte, mas fazem re-
ferência ao universo da joalheria. Ainda de
acordo com Francisca, a aproximação com
a arte, ou melhor, dizendo, os que fazem
arte a partir da atuação na joalheria, bus-
cam romper com os limites impostos pelas
convenções da joalheria.
[...] quizás en algunos trabajos como
en las fotos intervenidas que tenía
Célio43 en la exposición, ¿son joye-
ría? Son fotos, papeles, plasticadas,
puestas en la pared, no se llevan en el
cuerpo, ahora las piezas que estaban
dentro de la caja de Célio, ¿Son joye-
ría? Tienen pin, se pueden poner de
189
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alguna forma. Bueno, es un artista, el
lo decía, yo soy un creador. El mismo
lo decía también que el tenia proble-
mas con sus piezas, porque dentro da
joyería eran un poco difíciles de serien
llevadas, pesadas, grandes y dentro
de la escultura son muy pequeñas.
Entonces es como ni una, ni la otra.
Ahí es donde los límites empiezan a
volver confuso. Y con Gemma me pa-
rece que pasa lo mismo, no sé. Cuan-
do te pones a sacar fotos de las calles
porque se llaman piedras preciosas o
porque lo que sea, o cuando se pone a
hacer eses dibujos monoprint, graba-
dos, cual es el límite? Entonces, a mi,
el simposio sí me importa mucho, me
importa que eso sea cada vez más. Sí,
es un encuentro de joyeros, pero has-
ta donde podemos empujar en esos
límites. (Entrevista)
XVIII
.
Outro aspecto muito enunciado,
sobretudo pelos integrantes do coleti-
vo “Sin Título”
XIX
, aponta para a função
de comunicação das joias. Nesse sen-
tido, como expressou Fernanda Barba,
integrante do coletivo mexicano, “desde
luego este tipo de joyería es arte, ya que
expresa y tiene el interés de comunicar y
hacer sentir”, ou ainda, em outro momen-
to da mesma conversa, quando reforça a
aproximação entre a joalheria contempo-
rânea e a arte, “desde el momento en el
que no es diseño de joyería, sino una pie-
za que es emocional”. Para Cristina Ce-
lis, a joalheria contemporânea pode ser
denida como, “piezas únicas, con manu-
factura precisa, impecable que transmi-
ten un signicado, un mensaje y vuelcan
el interior de quien las creó”.
A partir dos depoimentos acima
proferidos, pode-se identicar duas for-
mulações usadas na denição da joa-
lheria contemporânea e do seu espaço
de liminaridade (TURNER, 1974), de um
lado, observa-se que os enunciados dos
joalheiros contemporâneos que passaram
por escolas e que zeram formação nes-
te segmento da joalheria, exploram e ex-
perimentam com mais rigor as fronteiras
que demarcam o espaço do campo, até
ao ponto de alguns produtores se incomo-
darem em manter a denominação de joa-
lheiros. Nesse sentido, os relatos de Cé-
lio Braga, Gemma ou de Francisca, após
alguns trabalhos mais transgressores,
como performance, vídeos, fotograas,
apontaram para as dúvidas em relação
à atividade de atuação, chegando a se
questionar se estavam fazendo joalheria.
Por trabalho transgressor entendem-se
trabalhos em que as fronteiras entre as
disciplinas cam mais difusas. Para Fran-
cisca, as classicações apenas facilitam
as conversações, mas não fazem sentido,
concluindo que “voy ser siempre joyera,
porque lo fue de una forma muy intensa
y ya está dentro de mi cuerpo. Entonces
eso no se va ir más”. Do outro lado, nas
formulações dos joalheiros autodidatas
prevalece a reinterpretação que dão para
o trabalho realizado no interstício das dife-
rentes disciplinas. Assim, a diferenciação
que os joalheiros fazem entre a joalheria
de design e a arte joalheria está relacio-
nada a quem o trabalho está direcionado,
se precisa atender às necessidades do
usuário ou do artista. A denição mais re-
corrente da joalheria contemporânea é a
de comunicar intenções e inquietações do
criador ou conceitos, mesmo que essa co-
municação seja para uma audiência pe-
quena. Outro aspecto salientado está re-
lacionado à escala, em geral, identicam a
joalheria contemporânea à fabricação de
peças únicas. Em suma, como a joalhe-
ria contemporânea realizada na América
Latina é mais recente, onde não se pode
contar com uma formação especializada
pelas instituições culturais - escolas, gale-
rias, museus – prevalece o autodidatismo
e a reinterpretação da ambiguidade da
arte joalheria. Portanto, o que predomina
no entendimento de um trabalho de arte
é a de comunicar e expressar questões
pessoais do artista.
190
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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3. Seguindo a Joalheria Contemporânea
O intuito, ao entrevistar produtores
do segmento da joalheria contemporânea,
observar o coletivo dos artistas joalheiros
mexicanos, assim como, acompanhar as
atividades de um simpósio de joalheria
desse segmento foi o de conhecer, a par-
tir de suas práticas, a maneira como reali-
zam seus projetos, como se reconhecem
e se autodenominam. Vale ressaltar que a
ideia deste estudo não é a de encontrar um
modelo único de atuação, mas seguir os
próprios atores e, dessa forma, entender
suas inovações. Se for correto armar que
a TAR, como assegura Latour, funcionaria
melhor para o que ainda não foi agrega-
da, a teoria pode auxiliar na compreensão
desse segmento da joalheria no Brasil e no
México, onde as condições de produção da
joalheria contemporânea se assemelham.
A experiência no exterior ocorreu de
forma distinta do que foi realizado com os
joalheiros contemporâneos brasileiros. As-
sim, duas fontes diferentes me chamaram
atenção para o que estava acontecendo
em termos de joalheria contemporânea no
México. A primeira fonte foi um repost
XX
pu-
blicado por uma joalheira inglesa, Jo Pond,
no seu perl do Instagram, em abril de
2014. O post original era de um perl cha-
mado “the jewellery activist”. Esse nome,
relacionado a um ativismo na joalheria me
chamou muita atenção, de tal modo que,
através de uma busca, acabei chegando
ao nome de Holinka Escudeiro e de sua
rede de comunicação, a qual compreende
uma conta no Instagram, uma página no
Facebook e um blog <http://holinkaescu-
dero.com/blog/>. Esse é o meio pelo qual
Holinka utiliza para apresentar a joalheria
contemporânea, tanto o coletivo do qual
faz parte, o “Sin Título”, quanto os vários
eventos relacionados a essa categoria por
todo o mundo. Mas como a própria Holinka
explica, ela precisava de um nome que se
diferenciasse dela mesma, um nome para
a comunicação da joalheria contemporâ-
nea. E foi a partir dessa busca que surgiu o
título “the jewellery activist”, o qual dá nome
ao site www.thejewelleryactivist.com.
Es lo que te digo: con mi blog, primero
estaba conectada con la página de mí
trabajo comerciales, entonces el blog
era conocido como Holinka Escudero.
Después eso no me decía nada, era
como Yo, no era eso. Después era
¿o que signica joyería contemporá-
nea? Tampoco me checaba y después
de mucho tiempo me concedí el títu-
lo de “the jewellery activist”. Llegó el
momento en que me pregunté, ¿ que
estoy haciendo? Todo el día, todos los
días estoy detrás del monitor viendo
joyería, entonces me di cuenta de que
la manera en la que me desenvolvía
era la manera de un activista. No un
activismo heroico, pero la joyería es mí
causa y mi convicción. (Entrevistada).
A outra fonte foi um artigo de Ke-
vin Murray
XXI
, “Keeping the Faith with Con-
temporary Jewelry”
XXII
, no qual ele analisa
o surgimentos do coletivo de artistas joa-
lheiro mexicanos, “Sin Título”, e também
do coletivo taiwanês, Mano MànMàn. De
acordo com o autor, a formação de co-
letivo foi uma maneira que os joalheiros
encontraram para driblar as diculdades
com as quais se deparam, tanto no Méxi-
co, quanto em Taiwan, contextos que di-
ferentemente do Europeu, não encontram
espaços de exposição ou colecionadores.
Dessa forma, esses atores resolveram se
unir para enfrentar tais diculdades e bus-
car novas abordagens para atuar na joa-
lheria de arte. Ou seja, a partir de outras
formas de atuação, encontrariam novos
caminhos para apresentar a produção na
joalheria contemporânea.
Essas duas fontes de informação,
que surgiram em um curto espaço de tem-
po, aguçaram minha curiosidade em co-
nhecer o trabalho dos artistas joalheiros
mexicanos. Mesmo antes de ir ao México,
191
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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pude observar, através do artigo de Murray
e do blog de Holinka, que o cenário me-
xicano da joalheria contemporânea tinha
muitas semelhanças com o que acontecia
no Brasil. De forma que, se a análise de
Murray estivesse correta, me interessava
conhecer esse trabalho coletivo, que sina-
lizava para um novo caminho na produção
da arte joalheria.
O “Sin Título” estava no processo
de implantação do seu primeiro espaço
físico, motivo que impediu o meu acesso
às suas reuniões. Naquele momento, início
de 2015, estavam discutindo questões -
nanceiras relacionadas ao aluguel de uma
sala comercial. Entretanto, passado esse
primeiro momento, pude acompanhar a
reedição dos seus projetos, desta feita, no
novo espaço físico do coletivo. No projeto
La Chiclera, o funcionamento é exatamen-
te o mesmo do equipamento utilizado para
a venda de chicletes; ou seja, nesse caso,
eles adotaram uma moeda de 10 pesos
mexicanos para ser introduzido na ranhu-
ra destinada ao pagamento. Em seguida,
giramos a manivela e, de forma aleatória,
somos surpreendidos com uma peça den-
tro de esfera de plástico, que pode ser um
colar, anel ou broche. Nesse projeto, res-
saltam-se alguns aspectos; o primeiro é a
ampliação da concepção corrente do que é
joia, já que nele a joia pode ser produzida
com diversos materiais, além de poder ser
vendida em qualquer lugar, basta transpor-
tar o equipamento, prescindindo do espaço
especíco de uma joalheria. Outro aspecto
é a forma de comercialização, já que deslo-
caram um equipamento comumente usado
para vender produtos infantis, doces e chi-
cletes, para a venda de joia, associada ao
consumo de luxo, no qual a venda requer
um atendimento especial. Ou seja, uma
forma de comercialização oposta à venda
aleatória proposta no “La Chiclera”. Nes-
se sentido, o trabalho tinha a intenção de
ampliar o público consumidor de joalheria
contemporânea, na medida em que ofere-
ce um produto com um preço popular
XXIII
e, ao mesmo tempo, apresenta e divulga,
através de uma proposta lúdica, o segmen-
to da joalheria contemporânea.
O outro projeto, San Titulo, faz um
jogo com a palavra San, santo em espa-
nhol, e o nome do coletivo, “Sin Titulo”. A
ideia do trabalho teve como origem a di-
culdade que os joalheiros precisam en-
frentam a m de realizar seus trabalhos.
Como a sociedade mexicana vive sob uma
forte tradição do catolicismo, onde há san-
tos para todas as causas, o coletivo deci-
diu que também precisavam criar o santo
do joalheiro contemporâneo. Ao santo, os
membros do coletivo pedem que ele forne-
ça fé na disciplina e força para continuarem
o trabalho como joalheiros. Neste caso,
eles chamam atenção para a necessida-
de da fé para lograr atuar como joalheiros
contemporâneos, uma vez que para con-
seguir ultrapassar todos os obstáculos de
formação, exposição e comercialização
com os quais se deparam, necessitam con-
tar com a força de um santo. Nas palavras
de Alberto, um dos membros do coletivo,
“En México, dedicarse a la joyería contem-
poránea es un ato de fé” . Esse trabalho
gerou um vídeo, o qual foi apresentado no
simpósio de joalheria contemporânea, “En
Construcción II”
XXIV
, em setembro de 2015.
Em algumas das ações que pude
acompanhar do “Sin Título”, havia uma
nítida preocupação em formar público e
posicionar a joalheria contemporânea,
através da diferenciação com os outros
segmentos da joalheria. Em um desses
encontros, o grupo convidou a professo-
ra Daniela Rivera para realizar uma pa-
lestra sobre sua experiência em joalheria
contemporânea. A ideia do coletivo, ao
promover esses eventos, é apresentar e
divulgar o próprio segmento de joalheria
contemporânea. Para isso, pretendiam
formar uma agenda de eventos para mo-
vimentar o Estúdio Sin Título, sendo as
palestras um importante momento de dis-
cussão e de formação de público.
192
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Holinka enfatiza a importância que
os dois simpósios, “Walking in the gray
área” (2010) e “En Construcción” (2012) ti-
veram para denir o segmento da joalheria
contemporânea para eles, que estavam no
México, e que conheciam essa abordagem
da joalheria por livros e pela internet. A pos-
sibilidade de reunir, trocar e conectar com
pessoas interessadas na mesma atividade
foi decisivo para promover o surgimento do
coletivo de artistas joalheiros mexicanos.
A partir destes relatos podemos
observar a importância que os Simpósios
operaram para o surgimento de uma as-
sociação em torno da joalheria contempo-
rânea. Como no México não se encontram
as instâncias de formação prossional,
onde as pessoas interessadas por essa
atividade possam discutir as questões
relacionadas ao segmento, os Simpósios
foram responsáveis por promover a des-
coberta da joalheria de arte.
Nesse sentido, a associação é
performativa os integrantes do “Sin Titu-
lo” deram início e se reconhecem como
grupo na medida em que formaram o co-
letivo a m de encontrar um objetivo que
reunisse pessoas em torno de uma ativi-
dade que tem a joia como resultado de
uma expressão artística. A denição do
coletivo também é performativa, já que
nela se encontra um esforço por sua ma-
nutenção, assim como por demarcar suas
diferenças com as outras formas de atu-
ar em joalheria. Esse aspecto de luta por
se apresentar e constituir um segmento
prossional é também denominado de
ativismo por Holinka. De acordo com La-
tour (2012), o mundo social só pode ser
captado quando ocorre alguma mudança,
por mais sutil que seja, na qual se opera
uma diferença com uma associação mais
antiga. Nesse sentido, esse movimento
contínuo e performativo do ativismo prati-
cado pelo “Sin Titulo”, implica em precisar
ser representado constantemente a m
de denir a joalheria contemporânea.
4. Considerações Finais
Ao reconstruir as diferentes posi-
ções da Joalheria, levando em conside-
ração tendências que vem do mercado e
tendências que vem do campo da arte, a
m de ver como tudo isso se articula, ob-
jetivou-se localizar as diversas categorias
que compõem a estrutura interna deste
campo prossional.
Identicou-se uma série de aspec-
tos que impactam na atuação do joalhei-
ro contemporâneo, pois, como inexistem
algumas instâncias para a atuação no
segmento, a saber: escolas de formação,
pontos para comercialização e coleciona-
dores, a solução que esses prossionais
encontram para garantir o sustento e per-
manecer atuantes na categoria consis-
te no desempenho de outras atividades
dentro e fora do campo. Os trabalhos al-
ternativos identicados variaram bastante;
no México, como o coletivo era formado
quase exclusivamente por designers, com
exceção da Zina, que era restauradora de
formação e intercalava a restauração com
a joalheria, os trabalhos alternavam entre
designers de indústria, como Brenda Fa-
rías, que trabalha para a indústria move-
leira, enquanto outros atuam como desig-
ners de marca comercial de joalheria, ou
como docentes. Ainda do México, Holinka
se responsabiliza por um blog, cujo foco
da ação reside em comunicar e divulgar a
joalheria contemporânea. Portanto, além
da atuação no coletivo “Sin Título”, todos
possuem uma fonte de renda em outras
atividades. O mesmo ocorria com os jo-
alheiros contemporâneos brasileiros, ou
seja, vericou-se a diculdade em atuar
exclusivamente na própria categoria, con-
duzindo-os a trabalhar em outras áreas,
inclusive em trabalhos temporários ou por
projetos e/ou ainda serem nanciados pela
família, compreendido no sentido de um
alargamento da permanecia na casa dos
pais ou através do suporte de um cônjuge
que os permitem trabalhar no que gostam.
193
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Conclui-se, portanto, que a atuação
na joalheria contemporânea está condicio-
nada às limitações da pouca visibilidade
e reconhecimento, intrínsecas a esse seg-
mento, impondo aos seus produtores a
precariedade das práticas laborais.
Nesse ponto, vale lembrar as obser-
vações contidas no artigo do Murray (2014),
as quais despertaram minha curiosidade e
motivaram o meu interesse pelo coletivo de
artistas joalheiros mexicanos. Em seu artigo,
o autor aponta que a atuação do coletivo “Sin
Título” fora uma forma de driblar as condi-
ções desfavoráveis com as quais os atores
se deparavam no México, onde, diferente-
mente do contexto da Europa, não encontra-
vam espaços expositivos ou colecionadores.
Contudo, ao contrário desse argumento, o
que se observou nas performances desses
atores foi o ativismo social, o empenho em
difundir e desenvolver a joalheria contempo-
rânea no México. O sentido aqui empregado
para ativismo refere-se aos novos modos de
engajamentos político, conduzindo a ação
dos joalheiros contemporâneos no esforço
em constituir uma categoria. Para isso, pro-
movem eventos, palestras, convidam outros
membros como porta-vozes para darem
seus depoimentos e, dessa forma, auxilia-
rem na construção da categoria. Quer dizer,
o coletivo de joalheiros mexicano sabe que
o público interessado pela joalheria de arte é
muito reduzido, por isso, elegeram como foco
de ação, essa forma de ativismo objetivando
expandir sua comunicação a mais pessoas,
para, aí sim, poder criar condições de atua-
ção. Portanto, nesse momento, a luta é cen-
trada em instituir a categoria.
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194
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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VIDELA, Ana Neuza Botelho. Joalheria, arte ou de-
sign? Recife: Universidade Federal de Pernambu-
co, 2016. Tese de Doutorado em Design.
Recebido em 18/10/2016
Aprovado em 05/11/2016
I Ana Neuza Botelho Videla. Doutora em Design pela
Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora
do curso de Design do Produto da Universidade Federal
do Cariri, Brasil. Contato:
II VER: https://artjewelryforum.org/
III O termo coletivo nesta pesquisa é usado em dois
sentidos. O primeiro, que é o adotado neste parágrafo,
é a denominação dos grupos que reúnem artistas para
o desenvolvimento de obras em conjunto. O outro é de-
rivado do sentido latouriano do termo, o qual signica as
redes compostas por atores humanos e não-humanos.
IV Entrevista com um grupo de joalheiros realizada em
14 junho de 2014.
V Tissa comentou que a formação contava com aulas
práticas de ourivesaria e teóricas de química, história da
arte, economia, política, matemática e gemologia.
VI A qualidade a que se refere é da precisão e ajustes
das ferramentas suíças e alemãs.
VII Ramón Puig Cuyas é professor de joalheria na Esco-
la Massana, em Barcelona. A escola faz parte do centro
municipal de arte e design, tendo sido fundada em 1929.
Ramon possui uma carreira exitosa na joalheria con-
temporânea e de reconhecimento internacional, desde
1974, seu trabalho tem sido exposto em várias cidades
da Europa, Estados Unidos e Canadá.
VER: http://www.escolamassana.es/es/page.asp?id=21
VIII Depoimento de Ramón Puig Cuyás Ver: http://www.
goldandtime.org/noticia/80898/Goldtime/La-°©-armonia-
°©-matematica-°©-del-°©-joyero-°©-Ramon-°©-Puig-
°©-Cuyas.html
IX O sentido de gemas é derivado da gemologia, signi-
ca pedras preciosas.
X Essas informações fazem parte da minha própria tra-
jetória prossional.
XI Entrevista concedida por Lívia Canuto em 20
Maio 2014.
XII Rudolf Ruthner é natural de Viena, Áustria, de 1941.
Em 1966, se formou em mestre de ourivesaria e prataria
e complementou sua formação através da trabalho de-
senvolvido em vários ateliês, tanto em Viena, como em
Munique. Mora no Brasil desde 1974.
XIII Rudolf Ruthner, encontro com joalheiros em 14 de
Junho de 2014.
XIV Por “experimentação” entende-se uma atuação que
rompe com as convenções e desaa as tradições do campo.
XV Francisca Kweitel é joalheira artista argentina e fez
formação de joalheria contemporânea na Escola Mas-
sana, em Barcelona. Se reconhece como gestora e já
realizou vários eventos de joalheria, o mais recente foi o
Simpósio “En Construcción II”, que ocorreu entre 1 a 5
de Setembro de 2015, em Valparaíso, Chile.
XVI Ver: http://www.liesbetbussche.com/urban_jitc.html
XVII Conheci Gemma Draper devido a sua participa-
ção no Simpósio “En Construcción II”, em setembro de
2015. Foi nesse evento que assisti a sua palestra, na
qual apresentou o trabalho que desenvolveu na resi-
dência artística na Inglaterra, além de ter aproveitado
para conhecer seu posicionamento sobre a joalheria
contemporânea.
XVIII Francisca Kweitel, entrevista concedida em 9 Se-
tembro 2015, em Buenos Aires.
XIX Coletivo de artistas joalheiros mexicanos.
XX O repost é uma ferramenta que permite, ao usuário
da rede social instagram, repassar um conteúdo de sua
comunidade, mantendo a autoria original da quem pos-
tou a mensagem.
XXI Kevin Murray escreve artigos para o site http://www.
artjewelryforum.org/. Ele é curador e escritor residente
em Melbourne. Com Damian Skinner escreveu “Place &
Adornment: a history of contemporary jewellery in Aus-
tralia and New Zealand (Bateman Publishing, 2014).
XXII Ver: https://artjewelryforum.org/articles-series/kee-
ping-the-faith-with-contemporary-je
XXIII Na época, em 2015, o cambio de dez pesos mexi-
canos tinha o valor em torno de R$ 2,00.
XXIV Ver: http://holinkaescudero.com/blog/category/
sin-titulo/
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Experimentos Audiovisuais entre Ramagens Otonianas:
uma leitura ecossistêmica comunicacional sobre
a representação da Amazônia na arte de Otoni Mesquita
Experimentos audiovisuales en los aspectos Otonianos:
un ecosistema comunicacional en
la representación de la Amazônia en el arte de Otoni Mesquita
Creative ramications:
An ecosystem reading on the Amazon by Art Otoni Mesquita
Ítala Clay de Oliveira Freitas
I
Rafael de Figueiredo Lopes
II
Resumo:
O artigo propõe uma leitura ecossistêmica comunicacional sobre
aspectos da obra do artista visual amazonense Otoni Mesquita,
com destaque para seus vídeos experimentais. A perspectiva
metodológica segue preceitos do pensamento complexo e sistêmico.
A investigação sugere que a semiose do transcurso comunicativo, que
emerge da criatividade e postura ética do artista, impulsiona inúmeras
percepções e desdobramentos sobre processos de criação na arte
contemporânea e reexões acerca de transformações socioculturais
e ambientais na Amazônia.
Palavras chave:
Ecossistemas
comunicacionais
Arte
Audiovisual
Amazônia
Otoni Mesquita
196
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Resumen:
El artículo propone una lectura sobre la base de lo ecosistema
comunicacional sobre aspectos de la obra del artista amazonense
Otoni Mesquita, destacando sus videos experimentales. La perspectiva
metodológica sigue los preceptos del pensamiento complejo y sistémico.
La investigación sugiere que la semiosis por supuesto comunicativo,
que surge de lacreatividad y la postura ética del artista, conduce a
innumerables percepciones y desarrollos sobre losprocesos de creación
en arte contemporáneo y las reexiones sobre las transformaciones
socio-culturales y ambientales enl a Amazonía.
Abstract:
This paper proposes an ecosystem reading on aspects of the visual
artist’s collection Otoni Mesquita, highlighting experimental videos.
The methodological approach follows the precepts of the Paradigm of
Complexity. Research suggests that semiosis communicative course,
emerging creativity and ethical artist provides numerous insights
mainly on developments on creative processes in contemporary art
and reections on social, cultural and environmental in the Amazon.
Palabras clave:
Ecosistemas
Comunicacionales
Arte
Sector audiovisual
Amazônia
Otoni Mesquita
Keywords:
Communicational
ecosystems
Art
Video
Amazon
Otoni Mesquita
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Experimentos Audiovisuais entre
Ramagens Otonianas:
uma leitura ecossistêmica
comunicacional sobre a representação
da Amazônia na arte de Otoni Mesquita
Introdução
O artigo exploraaspectos do con-
texto criativo-comunicacional que envolve
a vida e a obra do artista visual amazo-
nense Otoni Mesquita, destacando uma
de suas facetas menos conhecidas: a pro-
dução audiovisual. Buscamos uma com-
preensão ecossistêmica, ao reetirmos
sobre desdobramentos do universo ima-
géticoOtoniano, partindo contextualmente
da principal temática engendrada no con-
junto de seu trabalho, intitulada Ciclos do
Eldorado, na qual delineiauma visão parti-
cular sobre a Amazônia.
Otoni Mesquita interage com um
repertório multi-expressivo de linguagens
artísticas, tais como pintura, escultura,
gravura, instalação, ensaio literário, per-
formance, teatro e audiovisual. Essa di-
nâmica rede de manifestações artísticas e
comunicativas, que se congura como um
ecossistema comunicacional, denomina-
mos ramagens otonianas. Consequente-
mente, por entre as ramagens,orescem o
que chamamos de seus experimentos au-
diovisuais, os quais interpretamos como
(((ecos))) ou ideias-imagens-reverberan-
tesem que ressoam inúmeros discursos e
experimentações estéticas.
Nossa investigação é orientada por
novos paradigmas da ciência, estabeleci-
dos pelo pensamento complexo e sistê-
mico, propondo a construção de um co-
nhecimento relacional no intuito de evitar
balizamentos reducionistas. Segundo Mo-
rin (2002) a construção do conhecimento
é um processo “auto-eco-organizador”,
sempre em transformação, devido às di-
mensões sensíveis e cognitivas, que or-
ganizam e desorganizam a consciência
sobre o que nos rodeia. Um circuito em
movimento ativando inter-relações entre
os sistemas da vida. Segundo o autor, o
pensamento complexo é ecológico porque
não separa a dimensão humana (biológi-
ca, psíquica, espiritual) da relação com
seus ambientes (social, cultural, econômi-
co, político, natural etc.). Portanto, o sen-
tido dialógico do “princípio hologramático”,
defendido por Morin (2002), é uma asso-
ciação de complementaridades, concor-
rências e antagonismos, em constantes
divergências e conciliações provisórias.
Sendo assim, nos guiamos pela
perspectiva teórico-metodológica,inter e
transdisciplinar, dos Ecossistemas Comu-
nicacionais, proposta pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comuni-
cação da Universidade Federal do Amazo-
nas, que está em consonância comprincí-
piose pensadores que acreditam em uma
reforma de ordem epistemológica e práti-
ca do fazer cientíco, compreendendo que
há “inter-relações e interdependências en-
tre os fenômenos físicos, biológicos, psi-
cológicos, sociais e culturais” (MONTEI-
RO; ABBUD; PEREIRA, 2012).
Essa visão transcende as atuais fron-
teiras disciplinares e conceituais [...].
Não existe no presente momento,
uma estrutura bem estabelecida, con-
ceitual ou institucional, que acomo-
de a formulação do novo paradigma,
mas as linhas mestras de tal estrutura
já estão sendo formuladas por muitos
indivíduos, comunidades e organiza-
ções que estão desenvolvendo novas
formas de pensamentos e que se es-
tabelecem com novos princípios (CA-
PRA, 2006, p. 259).
Para Capra (2002) o maior desa-
o é mudar a maneira de pensar a ci-
ência, descortinando uma nova visão da
198
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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realidade. Segundo o autor, é necessá-
rio ultrapassar as noções mecanicistas
e reducionistas, que ainda guiam mui-
tas teorias ancoradas no pensamento
cartesiano-newtoniano. De acordo com
Capra (2002) o pensamento ecológico
(que para ele é sinônimo de sistêmico e,
portanto, para nós, ecossistêmico) não
percebe os elementos de forma isolada,
nem os segmenta ou padroniza. Para
compreendê-los faz relações por inter-
dependências contextuais com variados
níveis de complexidade e incertezas. É
uma perspectiva intrinsicamente dinâ-
mica, capaz de aliar o conhecimento ra-
cional com a intuição da natureza não-
-linear do ambiente, entrelaçando seus
elementos, em movimentos cíclicos, u-
tuantes, ondulatórios, vibrantes e oscila-
tórios (CAPRA, 2002).
Pelo fato de nos concentrarmos em
torno da compreensão da obra de um ar-
tista que busca inspiração nas multiplici-
dades da Amazônia e a representa por di-
ferentes ângulos e suportes, procuramos
inter-relacionar estéticas e linguagens ar-
tísticas com aspectos históricos, humanos,
ambientais, socioculturais e tecnológicos,
a m de apresentar uma possibilidade de
leitura sobre o fenômeno.
Desse modo, o conceito de repre-
sentação é fundamental para a nossa
reexão, salientando que em função de
nossa linha de pesquisa, optamos por
caracterizá-lo pelo viés da semiótica. Con-
forme Santaella (2003) o ser humano só
concebe o mundo porque de alguma for-
ma o representa e, consequentemente, só
interpreta tal representação por meio de
outra representação, um signo. Esse pro-
cesso pode ser gerado a partir de imagens
mentais ou palpáveis, pelo gestual, por
ações, sons, palavras, sentimentos etc.
No percurso signo-significação-
-representação, segundo Santaella e
Nöth (1999), tudo o que se apresenta às
percepções e ao intelecto, de forma ma-
terial ou em pensamento, pode ser sig-
no. A ação do signo, ou seja, a semiose,
proporciona uma significação que vai
gerar uma representação. Isto é, o signo
representa a ideia de uma coisa e não a
coisa em si.
Essa concepção pode ser melhor
compreendida pela relação triádica da
semiótica peirceana, que se constitui na
triangulação signo-objeto-interpretante,
de acordo com Santaella e Nöth (1999).
O signo representa alguma coisa para
alguém, criando em sua mente um signo
equivalente. Nessa operação, gera-se um
interpretante e aquilo que o signo repre-
senta é denominado seu objeto. Portanto,
a representação ou o processo represen-
tativo caracteriza-se pela inter-relação
entre signo-objeto-interpretante. Assim,
conforme Santaella e Nöth (1999), os pen-
samentos se processam por meio de sig-
nos continuamente, fazendo com que as
dimensões da cognição, da comunicação
e da representação relacionem-se numa
cadeia innita de semiose.
Além da pesquisa bibliográca,para
a fundamentação teórico-conceitual, foi
realizado um estudo de campo virtual,
fundamentado na netnograa
III
, com base
em Amaral et al (2008), para compreender
processos criativos-comunicacionais do
artista por meio de seu acervo na web.
A netnograa, como transposição vir-
tual das formas de pesquisa face a
face e similares, apresenta vantagens
explícitas tais como consumir menos
tempo, ser menos dispendiosa e me-
nos subjetiva, além de menos invasiva
já que pode se comportar como uma
janela ao olhar do pesquisador sobre
comportamentos naturais de uma co-
munidade durante seu funcionamento,
fora de um espaço fabricado para pes-
quisa, sem que este interra direta-
mente no processo como participante
199
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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sicamente presente. Por outro lado,
ela perde em termos de gestual e de
contato presencial off-line que podem
revelar nuances obnubiladas pelo tex-
to escrito, emoticons, etc (AMARAL et
al, 2008, p. 36).
Como aporte metodológico para
leitura e análise das mensagens visuais,
principalmente acerca da imagética au-
diovisual criada por Otoni Mesquita, nos
embasamos na ideia de Coutinho (2006),
que propõe traduzir códigos de linguagens
artísticas mediante uma interpretação que
não seja meramente perceptiva e descriti-
vade aspectos técnicos, comunicacionais
e artísticos, mas transcodique o que é
apreendido pelos sentidos, ao relacionar
as circunstâncias onde seus componentes
se inserem e se estabelecem imagetica-
mente, que não signicam por si, en-
quanto imagens que são, mas dentro de
contextos de representação. A complexa
simultaneidade de elementos que as pe-
ças audiovisuais apresentam, objetiva e
subliminarmente, assumindo seu lugar en-
tre expressão e comunicação, pode gerar
interpretações de maneiras diferenciadas.
Por esse motivo a análise da lingua-
gem visual nos meios de comunica-
ção audiovisuais (cinema, TV e vídeo)
deve levar em conta uma espécie de
“infra-saber”, isto é, o conhecimento e
compreensão das características dis-
cursivas da grande narrativa em que
aquele registro visual se insere. Desta
forma, ao atribuir sentido a cada ima-
gem, e interpretá-la à luz das questões
de pesquisa que orientam o projeto, é
preciso considerar sua adequação ao
estilo de linguagem do programa, l-
me ou categoria videográca por meio
do qual aquela mensagem visual é ex-
perimentada, ou consumida (COUTI-
NHO, 2006, p. 343).
Portanto, para estabelecermos re-
lações e interpretações sobre a produção
audiovisual de Otoni Mesquita, foi neces-
sário caracterizar aspectos da “grande
narrativa do artista”, ou seja, o conjunto de
sua obra. Nos aproximamos desse amplo
panorama, a partir de noções contextuais
de sua vida e arte ou“vidarte”, salientan-
do que o trabalho do artista representa a
realidade local, e repercute inquietações
universais. Um corpo que é catalizador de
ideias e ignição comunicacional.
Para Greiner (2005) o corpo não
é apenas um recipiente e transmissor de
informações, mas um organismo trans-
formador em constante evolução pela
contaminação entre o uxo informacional
que percorre seu contexto sensitivo inter-
no e externo. As experiências decorren-
tes dessas relações geram comunicação,
percepção e relação. A autora propõe
pensar o corpo como um sistema com-
plexo e interativo e não apenas como um
instrumento, com um lado biológico e ou-
tro cultural, ou material e mental.
Em relação à arte, Greiner (2005)
diz que o corpo muda cada vez que per-
cebe o mundo, despertando metáforas
mutantes que geram novas ações, ca-
racterizando um “corpo artista”. Isso por-
que o corpo é provido de uma dramatur-
gia que sentido e coerência ao uxo
incessante de informações entre o corpo
e o ambiente.
O modo como ela se organiza em tem-
po e espaço é também o modo como
as imagens do corpo se constroem no
trânsito entre o dentro (imagens que
não se vê, imagens-pensamentos) e
o fora (imagens implementadas em
ações) do corpo organizando-se como
processos latentes de comunicação
(GREINER, 2005, p. 73).
Nesse sentido, procuramos com-
preender Otoni Mesquitaanalisando seus
arquivos de criação contemplando a di-
versidade de manifestações artísticas,
200
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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as ramagens otonianas. Pois, além de
indicarem aspectos de seu processo ar-
tístico e experimentações imagéticas, tra-
zem um forte discurso político, de caráter
étnico, social e ambiental. Procuramos
mapear como se conguram essas rami-
cações, ao discutirmos seus uxos, nas
inter-relações e interdependências entre
linguagens artísticas e seus entrelaça-
mentos com o ambiente que as envolve e
outros sistemas.
Tal procedimento foi necessário
para criar um contexto-conceitual a m
de prosseguirmos na segunda fase da
investigação, voltada à análise de esté-
ticas e processos relativos à produção
de vídeos do artista, os experimentos
audiovisuais. Assim, foi possível com-
preendermos suas peças audiovisuais
dentro de um cenário complexo e não
simplesmente como produções caseiras,
realizadas em momentos recreativos ou
em situações de protestos.
Portanto, na ebulição de uma mis-
tura heterogênea, propomos uma inter-
pretação relacional para partituras poé-
tico-visuais, inscritas na rota-transmutar
da arte. Podemos dizer que a poética
visual de Otoni Mesquita se estabelece
como um recurso ecológico para dar sen-
tido a reexões de agora e outrora, per-
correndo e fechando ciclos que se abrem
para outros, mas, sem pontos de corte,
pois ocorrem em fusão, atados por nós
conectivos num tecer contínuo.
Ramagens otonianas: desentranhando
descobertas no estranhamento
contemplativo
Ramagens otonianas é a expres-
são poética que criamos para simbolizar a
busca de uma compreensão ecossistêmi-
ca no tocante à “vidarte” de Otoni Mesqui-
ta. Podemos vislumbrar algumas imagens
para ilustrar essa ideia, a exemplo do
crescimento de uma planta, desde a se-
mente, suas raízes, galhos, folhas, frutos
e brotações; ou de uma rede neural pro-
vocando sinapses em cadeia; ou da con-
tínua construção de uma teia relacional,
em crescimento, com nós e interconexões
que geram novas relações e signicados.
Um ecossistema comunicacional.
São ramificações que fluem a
partir de um corpo-artista. Inquieto,
original e criativo, que exerce sua ex-
pressividade com base em memórias,
questionamentos, sonhos, técnicas,
experimentações, relações interpesso-
ais, perturbações, influências visuais,
que se mesclam na transfiguração de
uma estética ético-político-imagética,
articulada num sistema sociocultural e
ambiental, ecoando inquietações tanto
pessoais quanto universais.
As interconexões são complexas
e adquirem dinâmicas combinações pela
ampla gama de atividades desenvolvi-
das pelo artista visualque também é his-
toriador, jornalista, contista, ilustrador,
educador social, professor universitário,
performer e, sobretudo, um cidadão crí-
tico que persegue ideais de sustentabi-
lidade. Sem necessariamente levantar
uma bandeira moralista, mas como uma
espécie de força motrizpara processos
artístico-comunicacionais.
Essas ramagens, que se hibridi-
zam e se entrelaçam, são traduzidas e
representadas em variadas manifesta-
ções, tecidas por diferentes linguagens
artísticas. Embora Otoni Mesquita seja
mais conhecido por suas pinturas, gravu-
ras, esculturas e instalações, também re-
vela-se em outras vertentes expressivas
como a poesia, a performance, a atuação
teatral e a produção de vídeos. Há mais
de três décadas propõe experimentações
audiovisuais, as quais se tornaram mais
frequentes nos últimos anos, devido às
facilidades dos recursos tecnológicos
201
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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que permitem gravar, editar e exibir l-
mes com equipamentos caseiros.
Por essas peculiaridades, acre-
ditamos que Otoni Mesquita seja um
dos artistas mais instigantes no cenário
cultural amazonense contemporâneo,
destacando-se tanto por sua postura crí-
tica em relação à sociedade,quanto pela
criativa plasticidade do universo alegó-
rico que representa em suas criações,
voltadas principalmente à natureza e
aos mitos amazônicos.
Esse breve relato inicial sobre Oto-
ni Mesquita e a explanação que faremos
a seguir tem base na netnograa realiza-
da no perl do artista no Facebook
IV
, que
além de apresentar um vasto material de
arquivo sobre suas criações, traz entrevis-
tas concedidas a jornais e emissoras de
TV, o que possibilitou extrair ricos depoi-
mentos e impressões para análise e inter-
pretação do seu processo de criação. A
internet, segundo Salles (2010), pela mo-
bilidade do ambiente on-line, expande as
possibilidades de discutir a curadoria de
processos criativos ou redes de criação.
Pois, pelas dinâmicas interações propor-
cionadas na web, é possível estimular a
criação de novos conceitos.
Essa proposta pode ser ampliada em
duas direções: o número dos arqui-
vos digitais de artistas (ou grupos de
artistas) e os links teóricos responsá-
veis pelas interconexões. A ampliação
viabilizaria o desenvolvimento de um
ambiente digital colaborativo para dis-
cussão das redes de criação. Esses
bancos de dados também poderiam
gerar curadorias de processo de expo-
sições virtuais, com a possibilidade de
estarem sempre em expansão (SAL-
LES, 2010, p. 218).
Por isso, antes de pincelarmos
considerações sobre aspectos estéticos
e de conteúdo em vídeosde Otoni Mes-
quita é preciso que tenhamos uma breve
noção contextual do conjunto de sua obra
artística e suas motivações criativas. É
importante reforçarmos que a análise
do trabalho deste artista multifacetado é
uma tarefa complexa devido a sua impor-
tância cultural no cenário da arte ama-
zonense. Mas neste estudo não temos a
intenção de abarcar tamanha dimensão,
e por isso, vamos apenas pontuar algu-
mas características. Essa aproximação
é uma tentativa de compreender como a
Amazônia se apresenta visualmente (e
audiovisualmente) nos questionamentos
sociais, políticos, culturais, ambientais e
econômicos do artista.
Otoni Mesquita nasceu no municí-
pio de Autazes (AM), em 1953. Mudou-
-se para Manaus com pouco mais de um
ano de idade e teve uma infância marca-
da pelo exercício livre e criativo de dese-
nhar e pintar. Por isso, acredita que a arte
esteja intrínseca desde sempre em sua
vida, fazendo parte de um processo tão
natural quanto respirar, beber, caminhar
e falar. Para Otoni “a arte é uma expres-
são que independe de vontade, é incan-
descente”, como deniu o próprio artista
em entrevista à jornalista e atriz Norma
Araújo, no programa Via de Regra, diri-
gido pelo cineasta Roberto Kahane, em
1994, no período da exposição “Frag-
mentos, Bichos e Personas”, no Centro
Cultural Chaminé, em Manaus, e postada
no dia 23 de dezembro de 2014, em sua
página no Facebook.
Começou a atuar prossionalmen-
te como artista plástico,em 1975, após
participar de um curso livre promovido
pela Pinacoteca do Estado do Amazo-
nas, numa época em que ainda não havia
um curso universitário de Artes em Ma-
naus. Por isso, primeiramente, graduou-
-se em Comunicação Social (Jornalismo)
pela Universidade Federal do Amazonas
(1979), por acreditar que o curso era o
que mais se aproximava das artes. De-
202
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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pois de formado seguiu para o Rio de Ja-
neiro, onde se graduou em Belas Artes
(Gravura), pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (1983). Prosseguiu seus
estudos acadêmicos e obteve o título de
mestre em Artes Visuais (1991) pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro e
de doutor em História Social (2005) pela
Universidade Federal Fluminense. Em
1994 passou a fazer parte do quadro de
professores do Departamento de Artes
da Universidade Federal do Amazonas
e posteriormente tambémintegrou-se ao
grupo de pesquisadores do Núcleo de
Antropologia Visual da UFAM, voltado a
pesquisas sobre cinema na Amazônia.
Seu currículo conta com a partici-
pação em mais de cem exposições cole-
tivas e individuais, no Brasil, países da
América do Sul e Estados Unidos, inclu-
sive com a obtenção de prêmios em Sa-
lões de Arte. Além de ter publicado dois
livros sobre história e arquitetura de Ma-
naus, também atuou na gestão pública,
no cargo de Coordenador do Patrimônio
Histórico da Secretaria de Cultura do Es-
tado do Amazonas.
Otoni Mesquita é movido pela von-
tade de externar sentimentos e se consi-
dera um “romântico”, não no sentido sen-
timentalista, mas “pela eterna busca de
ideais”, como salienta em várias entrevis-
tas disponíveis em seu arquivo. Não gosta
de ser enquadrado em nenhuma corrente
estética, mas assume uma grande inuên-
cia do surrealismo, com tendências antro-
pológicas e arqueológicas de cunho ama-
zônico, por ser fascinado pelo ambiente
que o cerca, desenvolvendo obras em va-
riados suportes, gêneros e materiais.
O artista diz que traz em sua arte o
somatório de experiências da infância, da
imaginação, de inquietações, do repertório
de leituras, de aprimoramento técnico, das
viagens por diversos países, dos museus
que conheceu, do comportamento e das
expressões de pessoas, do que observa
nos detalhes da arquitetura urbana e das
paisagens naturais da Amazônia.
Sendo assim, quando contempla-
mos seus trabalhos, percebemos que em
muitas de suas telas há estruturas que
lembram catedrais ou templos de cida-
des perdidas, painéis com cenas de na-
tureza, gravuras com grasmos que re-
metem à pinturas indígenas, desenhos
de seres que são meio bicho e meio
gente, esculturas que sugerem artefatos
de civilizações antigas e a montagem de
instalações onde todos esses elemen-
tos se conjugam. Quanto ao signica-
do desse universo representativo, nem
mesmo o artista sabe explicar, pois ale-
ga ser movido por forças inconscientes
e prefere que cada espectador tenha a
própria interpretação sobre suas obras.
No entanto, acredita que em seu ímpe-
to expressivo também haja uma atitude
consciente que é a busca pela harmonia
entre o homem e a natureza.
Por isso, desde o início de sua car-
reira artística tem preferência por trabalhar
com materiais recicláveis, como papel e
papelão, além de objetos que encontra no
quintal de casa e em suas andanças pelas
ruas, recolhendo, reaproveitando e trans-
formando o que o ambiente oferece, como
ossos e espinhas de peixes, terra, troncos
de madeira, galhos, folhas, raízes, bras e
penas. Para o artista esses materiais car-
regam histórias, têm impressa uma força
que não há nos materiais comprados em
lojas e proporcionam uma experimenta-
ção plástica mais desaadora.
Para Salles (2010) a criação na
arte tem uma relação direta do artista com
seu ambiente e seu tempo, mas também
se organiza por memórias, num percur-
so labiríntico que segue e deixa rastros.
Muitas vezes, numa lógica de incertezas
e também intervenções do acaso, o artis-
ta cria contextos para a leitura das obras.
203
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Esse processo complexo pode ser expres-
so numa amálgama de linguagens, uma
trama de ideias, reminiscências, matérias-
-primas, objetos, formas, suportes, sen-
tidos, espaços, impressões, sensações
táteis, afetividades, sonoridades, aromas,
que fazem do ato de criação um processo
comunicativo e conectivo, que pode ser
observado sob o ponto de vista de seus
aspectos sociais, culturais e também sub-
jetivos (SALLES, 2010).
A obra em construção carrega as mar-
cas singulares do projeto poético que
a direciona, que faz parte de comple-
xas redes culturais, na medida em que
se insere na frisa do tempo da arte, da
ciência e da sociedade em geral. O
aspecto comunicativo do processo de
criação envolve também uma grande
diversidade de diálogos de natureza
inter e intrapessoais: do artista com
ele mesmo, com a obra em processo,
com futuros receptores e com a crítica
(SALLES, 2010, p. 89).
Em 2015 Otoni Mesquita comple-
tou quatro décadas de uma diversica-
da trajetória artística, portanto, seria in-
viável expor seu legado em um artigo.
Como estratégia, buscamos identicar,
no arcabouço de sua carreira, alguns
traços ou facetas recorrentes. Encontra-
mos esses indícios sintetizados em Ci-
clos do Eldorado, que não compreende
uma fase especíca da obra de Otoni
Mesquita, mas é um tema recorrente de
seu percurso criativo, sobre o qual inter-
preta e representa a Amazônia.
A escolha deste recorte metodo-
lógico é baseada na ideia de estética da
continuidade, que, segundo Salles (2010),
trata-se de uma busca pessoal ou um ideal
perseguido pelo artista, para o qual não é
possível precisar o ponto de origem, mas
pode ser reexo de indagações complexas
que ao longo do tempo vão ganhando di-
ferentes narrativas, com desdobramentos
que podem ser inesgotáveis, pois o con-
junto da obra de um artista também pode
ser interpretado como o encadeamento de
processos de transformação.
Desse modo, podemos dizer que
a concepção e execução de uma obra
de arte se dão no estabelecimento de
relações e interdependências, numa per-
manente rede em construção, como um
ecossistema comunicacional. Os proces-
sosque envolvem a criação, conforme
Sales (2010),por mais que possam ter
explicações racionais,são extremamen-
te subjetivos e individuais, sendo assim,
imagens, sons, temáticas, sensações,
lembranças e quaisquer outras possibi-
lidades sensoriais e expressivas, codi-
cadas em obras artísticas, podem ser
ressignicadas ou modicadas em dife-
rentes momentos e contextos vivencia-
dos pelo artista, sem que se percam da
sua gênese conceitual.
As tendências do percurso podem ser
observadas como atratores, que fun-
cionam como uma espécie de campo
gravitacional, indicando a possibilida-
de de determinados eventos ocorre-
rem. Nesse espaço de tendências va-
gas está o projeto poético do artista,
princípios direcionadores, de natureza
ética e estética, presentes nas prá-
ticas criadoras, relacionados à pro-
dução de uma obra especíca e que
atam a obra daquele criador como um
todo (SALLES, 2010, p. 46).
A sustentabilidade artística na
reverberação de (((ecos))) ecopoiéticos
Eco, em acústica, é reexão so-
nora. A reverberação de um som, que se
propaga... Eco, na ecologia, do grego oi-
kos, é casa, e ecossistema é a casa em
que se vive. Poiesis, também do grego, é
criação e inspirou os bio-lósofos Fran-
cisco Varela e Humberto Maturana na
204
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ideia de autopoiese (autocriação). Sendo
assim, para a arte de Otoni Mesquita, em
livre abstração metafórica, dizemos que
(((ecos))) ecopoiéticos são as ideias que
ressoam de um artista que cria e recria
seu repertório imagético nas relações
entre o humano, o social, o ambiental e
acoplamentos tecnológicos, a partir das
trocas de signicados em que todos es-
ses sistemas estão implicados. Dessa
maneira, estabelece um conjunto relacio-
nal de linguagens e expressões artísticas
que também são fenômenos ou objetos
comunicacionais, passíveis de serem es-
tudados e compreendidos em suas arti-
culações e produção de sentidos.
Otoni, cidadão, amazonense, ar-
tista, historiador, educador, comunica-
dor... Em todas essas atividades o seu
discurso é ecológico. Vemos isso, entre
outras atitudes,quando aponta o pro-
blema do lixo nas ruas por onde passa;
contesta a derrubada de árvores para
construção de um estacionamento;cria
instalações chamando a atenção para a
extinção de espécies;puxa os os da his-
tória para evidenciar causas de problemas
atuais;estimula a liberdade criativa em
seus alunos na universidade; conversa
com os visitantes de suas exposições; se
insere nas comunidades onde ministra o-
cinas; critica o sistema econômico e polí-
tico. Todas essas situações cam eviden-
tes em suas postagens diárias na internet,
como um crítico feroz do comportamento
“insustentável” da sociedade e também
em suas entrevistas nos meios de comu-
nicação tradicionais da mídia.
Mas o que é sustentável? Para Ca-
pra (2002) a ideia de sustentabilidade tem
sido deturpada em torno de interesses po-
líticos e econômicos, pelas redes do ca-
pitalismo global. Nesse sentido, o avanço
cientíco e as inovações tecnológicas, têm
ocasionado uma turbulência desarmôni-
ca e fora de controle, principalmente, por
seus impactos sociais e ambientais. Se-
gundo o autor as dinâmicas e interesses
econômicos têm aumentado a pobreza,
acentuado as desigualdades sociais e de-
vastado a natureza. Portanto, um modelo
insustentável, o qual, segundo o autor, ne-
cessitaria ser reestruturado desde as ba-
ses, começando pela forma de pensar o
futuro do mundo.
Conforme Capra (2002) é impor-
tante não perder o senso de que todas as
ações precisam atender as necessidades
do presente sem comprometer as neces-
sidades futuras, pois a sustentabilidade
é a capacidade intrínseca de sustentar a
vida de forma equilibrada, e o ser humano
não pode prejudicar essa harmonia.
Esse é o sentido essencial da susten-
tabilidade ecológica. O que é susten-
tado numa comunidade sustentável
não é o crescimento econômico nem
o desenvolvimento, mas toda a teia
da vida da qual depende, a longo pra-
zo, a nossa própria sobrevivência. A
comunidade sustentável é feita de tal
forma que seus modos de vida, seus
negócios, sua economia, suas estrutu-
ras físicas e suas tecnologias não se
oponham à capacidade intrínseca da
natureza de sustentar a vida (CAPRA,
2002, p. 224).
O autor complementa, enfatizando
que a vida humana engloba necessidades
biológicas, cognitivas e sociais que devem
ser respeitadas.
A dimensão biológica inclui o direito de
um ambiente sadio e alimentos segu-
ros e saudáveis; o respeito à integrida-
de da vida acarreta necessariamente
a rejeição de patentes do registro de
formas de vida. Os direitos humanos
na dimensão cognitiva são, entre ou-
tros, o direito de acesso à educação
e ao conhecimento e a liberdade de
expressão e opinião. Na dimensão so-
cial, por m, o primeiro direito humano
205
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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- nas palavras da Declaração de Di-
reitos Humanos da ONU - é “o direito
à vida, à liberdade e à segurança da
pessoa”. Há muitos direitos humanos
na dimensão social - da justiça social
ao direito de reunir-se pacicamente,
passando pelos direitos à integridade
cultural e à autodeterminação (CA-
PRA, 2002, p. 224).
Essa conuência nos propõe que
é preciso integrar o respeito aos direitos
humanos e a sustentabilidade ecológica.
A sociedade humana não é melhor, mas
interage com os outros sistemas, e essa
interação sustentável deve permitir que
cada sistema se desenvolva de acordo
com a sua natureza.
A sustentabilidade não pressu-
põe imutabilidade, mas um processo de
coevolução, conforme Capra (2002). Os
sistemas vivos são redes autogeradoras,
que embora estejam em diferentes sis-
temas, são abertas a uxos de energia
e matéria. Assim, nas relações de inter-
dependências, entreos elementos de um
mesmo sistema ou entre diferentes sis-
temas interagentes, há comunicaçãoe
compartilhamento em ciclos.
Para a sobrevivência, os organis-
mos alimentam-se de fluxos contínuos
de matéria e energia tiradas do ambien-
te em que vivem, produzem resíduos,
que alimentam outra, continuamente
circular, alianças, a vida se desenvol-
ve pela cooperação e a organização
em redes de diversidade quanto mais a
diversidade maior a resistência, o equi-
líbrio dinâmico, as flutuações orbitais,
que mesmo no caos mantém o equilí-
brio (CAPRA, 2002).
A arte de Otoni Mesquita também
propõe isto, como se pode perceber em
Ciclos do Eldorado, em suas ramagens e
seus experimentos. Desse modo, para a
discussão que se segue, faremos um bre-
ve mapeamento em torno das três exposi-
ções que marcam os Ciclos do Eldorado.
Ciclos do Eldorado:
a grande narrativa do artista
As três mostras artísticas envol-
vendo o tema Ciclos do Eldorado provo-
caram inúmeros questionamentos sobre
o processo de colonização e ocupação
da Amazônia, reforçando ponderações
sobre suas consequências. O encadea-
mento cíclico propõe reexões críticas
sobre a supressão de culturas ancestrais
a partir da disseminação e manutenção
da ideologia etnocêntrica europeia que
perdura até os dias atuais.
Nas exposições transitam mani-
festações de diferentes linguagens de-
senvolvidas pelo artista, como pintura,
gravura, instalação, indumentária, vídeo
e performance. O material não foi ob-
servado in loco, haja vista que, quando
nos propusemos a investigar a temáti-
ca, a última exposição do artista já ha-
via encerrado. Desse modo, optamos por
acompanhar os registros feitos no museu
virtual intitulado Memória da Exposição
que o artista mantém em sua página no
Facebook, com o portfólio fotográco
das mostras realizadas, informações téc-
nicas, material de divulgação, críticas e
resenhas, atividades extensivas à comu-
nidade e experiências de bastidores, reu-
nindo 442 postagens
V
.
Além de questões históricas e ét-
nicas, as indagações do artista expuse-
ram feridas sociais, ambientais e políti-
cas, sobretudo, destacando o perigo da
devastação da oresta em nome de um
suposto desenvolvimento econômico.
Como metáfora poética, plantas foram
pintadas com tinta dourada, compondo
instalações, para simbolizar que a verda-
deira riqueza é a diversidade da Flores-
ta Amazônica e não o ouro da mitológica
206
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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cidade perdida, que aguçou a ganância
dos exploradores europeus a partir do
século XVI.Obviamente, a Amazônia con-
tinua excitando ambições mundiais, mas
agora com outros interesses.
Em busca do Eldorado (2007) foia
primeira exposição sobre o tema, mas
apresentou reexões e releituras visuais
de criações do artista desde 1984, sendo
realizada no Atelier Vila Venturosa, no Rio
de Janeiro. Nessa fase o artista trabalhou
uma série de gravuras feitas em metal
com imagens que remetiam a referências
da cultura pré-colombiana e uma pesquisa
cromática no intuito de criar uma tonalida-
de de dourado que não fosse apenas ma-
terial, mas traduzisse uma atmosfera sen-
sorial do Eldorado. Algumas pinturas eram
elaborações alegóricas sobre templos
na oresta, mas que também sugeriam
o aspecto de grandes catedrais de cida-
des europeias, fazendo uma analogia das
riquezas minerais que eram levadas da
Amazônia, evidenciando o processo vio-
lento que dizimou milhares de indígenas.
Há também a presença das Personas,
pinturas de guras híbridas compostas por
formas humanas, animais e míticas, com
inspiração em grasmos da etnia Carajá e
indumentárias da etnia Ticuna, e que se-
riam a interpretação do artista para o que
ele chama “sincretismo amazônico”.
Achados do Eldorado (2012/2014)
foi a segunda exposição sobre o tema e
percorreu três cidades brasileiras (Ma-
naus, Belém e Rio). Permitiu a amplia-
ção da experimentação visual com papel
reciclado, relevos, arte digital, pintura, a
coleta de vários tipos de terra, pedras e
também materiais vegetais, como folhas,
galhos e raízes. Estabelecendo uma es-
pécie de jogo, no qual buscava enxergar
nas andanças cotidianas ou em passeios
na oresta e nas margens dos rios objetos
e materiais que poderiam ser achados de
uma civilização perdida, e a partir desses
fragmentos criar instalações.Primeira-
mente, o trabalho foi exposto na Galeria
de Arte do Sesc Amazonas, em Manaus,
em 2012, e no ano seguinte agregou ou-
tros elementos e foi exposta no 32° Salão
de Arte do Pará, no Museu Emílio Goeldi,
em Belém (2013). Uma das peças des-
sa exposição, Oferendas da Floresta, foi
apresentada na exposição Amazônia Ci-
clo de Modernidade, no Palácio da Justi-
ça, em Manaus (2014), e no mesmo ano
integrou a exposição Pororoca, no MAR,
Museu de Arte do Rio, sendo adquirida
para o acervo do museu.
Ciclos do Eldorado (2015/2016), a
terceira exposição nesta temática, mar-
cou os 40 anos de trajetória artística
de Otoni Mesquita, fazendo um resgate
dos trabalhos pregressos. Ficou em car-
taz no Museu Amazônico, em Manaus,
de dezembro de 2015 até fevereiro de
2016, sendo ainda mais conceitual com-
parada às anteriores, reforçando o dis-
curso crítico e reexivo sobre o futuro
do planeta, tratando de questões como
o aquecimento global, o problema da
água, a poluição a ocupação desordena-
da das cidades e o desmatamento das
orestas, sobretudo, da Amazônia. Na
abertura do evento, as Personas da pri-
meira exposição transformaram-se em
personagens “reais” numa performance
interativa junto ao público. A exposição
apresentou treze instalações, com o in-
tuito de promover uma reexão e pos-
sível discussão sobre aspectos ambien-
tais e políticos que afetam o cotidiano da
sociedade, especialmente a amazonen-
se. Destacando-se: Buscas e Achados,
composta por gravuras e papéis trata-
dos com técnicas mistas. Oferendas Sa-
queadas, com ídolos dourados, cédulas
de dinheiro, moedas e um altar, simbo-
lizando o capitalismo e o apagamento
das culturas ancestrais e seus símbo-
los. Seres do rio de água Doce, enfati-
zando o problema da água. Minha terra
tem palmeiras, Tapetes da Floresta e a
Construção do Deserto, elaboradas com
207
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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diversos materiais orgânicos, tratam di-
retamente de questões da degradação
ambiental e o superaquecimento glo-
bal. Em Ciclo Gastronômico, elaborada
com farinha, frutos, folhas, sementes e
outros produtos naturais, o artista ironi-
zou a apropriação da culinária regional
em modismos da alta gastronomia. E em
Promessas de Futuro expressa as incer-
tezas sobre o que virá pela frente em
nossa sociedade, entre possibilidades
sustentáveis e atitudes marcadas pela
ignorância ecológica.
Assim, a postura do artista torna-
-se uma atitude ecológica-ética-estética,
um manifesto ecopoiético, no sentido de
criação e autocriação, gerando transfor-
mações constantes na sua interação com
o meio. Da reivindicação política ao sen-
timento de amor à natureza e a urgência
por princípios sociais sustentáveis.
Desse modo, ao envolver diver-
sas linguagens artísticas reconguradas
no tempo e no espaço, o caráter cícli-
co de sua abordagem temática também
pode ser interpretada como signos em
transformação. Por exemplo: numa de-
terminada exposição, o artista exibe
uma gravura em meio a outros objetos
e em outra exposição tal gravura passa
a ser digitalizada e animada, recongu-
rando-se em vídeo-arte; galhos, folhas,
pedras e caracóis podem servir como
elementos de uma instalação e em outro
momento tornam-se composições numa
fotograa; ou ainda, tecidos pintados
com grasmos e vistos como faixas em
uma ocasião, podem transformar-se em
indumentária para uma performance e
assim sucessivamente.
Podemos dizer que a semiose de
Ciclos do Eldorado nos mapeia trajetórias
ecossistêmicas, congurando e recongu-
rando imaginários, por meio de memórias
e metamorfoses, construindo novas car-
tograas sígnicas, numa transformação
contínua no uxo comunicativo, com suas
inter-relações e interdependências, pois o
processo de criação de Otoni Mesquita é
caracterizado pela constante metamorfo-
se e ressignicação de imagens.
As diferentes tendências e lingua-
gens orbitam no mesmo campo gravita-
cional que dá uma espécie de unicidade
ou identidade harmônica na elaboração
de um ideal artístico, que por sua vez é
inuenciado por princípios éticos e estéti-
cos, além de se manifestar num forte dis-
curso ecológico, reforçando sua postura
política crítica em relação ao processo his-
tórico e suas reverberações na sociedade
contemporânea. Podemos dizer que esse
conjunto de atitudes congurem o que
Salles (2010) compreende como o projeto
poético do artista.
São princípios relativos à singularida-
de do artista: planos de valores, for-
mas de representar o mundo, gostos
e crenças que regem seu modo de
ação. Esse projeto está inserido no es-
paço e no tempo da criação, que ine-
vitavelmente afetam o artista. A busca
pela concretização desse projeto é
contínua, daí ser sempre incompleta;
ao mesmo tempo, o próprio projeto se
altera ao longo do tempo (SALLES,
2010, p. 46).
Portanto, visto por um ângulo mais
aberto, a semiose do transcurso comuni-
cativo que emerge da criatividade e pos-
tura ética de Otoni Mesquita, impulsiona
inúmeras percepções e desdobramentos
sobre processos socioculturais e ecológi-
cos, “incomodando” e fazendo arte para a
transformação social e política.
Vide Otoni
Como percebemos, o caráter co-
municacional da “vidarte” de Otoni Mes-
quita, um corpo-artista com raízes subli-
208
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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minares e ambiências relacionais,também
se desdobra em manifestações do coti-
diano, como nas redes sociais da inter-
net, especialmente no Facebook, utilizado
pelo artista como um jornal virtual ou um
mosaico de ideias e reexões. Assuntos
que se conectam com os questionamen-
tos expressados em Ciclos do Eldorado,
evidenciando sua postura crítica, no intuito
de chamar a atenção sobre manifestações
artísticas, a transformação do espaço e a
destruição da natureza.
No caso da internet, a mesma at-
mosfera “tempestuosa” criada em torno de
suas manifestações artísticas se mantém
no contexto cibernético. Ou seja, além da
transmissão de informações, ideias e visu-
alidades, um fascinante reuxo estético
no compartilhamento de sentidos, com di-
nâmicas e ressonâncias que variam con-
forme as sistemáticas envolvidas.
É nesse ambiente digital que Oto-
ni Mesquita compartilha seus experimen-
tos audiovisuais. Os interpretamos como
espectros que, além da reverberação no
espaço imagéticoe ecológico, são propul-
sores de reações multissensoriais, entre-
tanto, quase sem notoriedade. Sugerimos
essa concepçãopelo fato dos vídeos não
despontarem entre suas expressões ar-
tísticas reconhecidas pela crítica e pelo
público, pois são divulgados no âmbito de
sua rede social na internet, como interven-
ções cotidianas.
Além de não estarem conguradas
no rol “prossional” do artista parecem se
caracterizar como um exercício lúdico,
portanto, desabrocham despretensiosa-
mente, como pequenas ores ou experi-
mentos despojadamente livres, entre o
emaranhado de suas ramagens. Os víde-
os são curtos, têm em média dois minu-
tos, sendo que alguns têm menos de 30
segundos e o mais longo, uma espécie de
autodocumentário sobre a última exposi-
ção de Ciclos do Eldorado, decorre em
sete minutos e quarenta e cinco segundos.
Entretanto, todas as peças resplandecem
a força do pensamento e a representação
imagética de sua poética artística.
O corpus de análise, feita entre
maio e agosto de 2016, reuniu 106 vídeos
postados num período de três anos pelo
artista. Em cada postagem, além do vídeo,
disponível para visualização on-line, há
uma descrição ou sinopse, na qual apa-
rece o título, a técnica utilizada e algumas
considerações sobre o contexto da obra.
Outras informações e desdobramentos
também são feitos durante os comentários
e a interação do artista com os internau-
tas, muitas vezes com opiniões bastante
divergentes e conituosas.
O primeiro vídeo, postado em 20
de junho de 2013, denominado Mana, Ma-
naus ferveu. Foi bonita a festa, pai. Cheiro
de alecrim..., refere-se a uma manifesta-
ção pública que reuniu cerca de 100 mil
pessoas no centro da capital amazonen-
se, integrando a série de protestos ocor-
ridos em todo o Brasil no ano de 2013. O
vídeo que tem um minuto e meio, foi gra-
vado de cima de uma árvore por celular
e mostra a passeata, com som ambiente,
compreendendo a primeira parte do hino
nacional brasileiro,cantado pelos manifes-
tantes. É interessante a referência que o
artista faz no título sobre as impressões
dessa manifestação, inclusive, no cheiro
que pairou pelo ar.
O último vídeo visualizado para a
pesquisa, postado em 08 de agosto de
2006, é uma vinheta em animação arte-
sanal, chamada Olimpíadas em Manaus
(publicada três dias após o início da Olim-
píada do Rio). Foi criada a partir de de-
senhos encomendados ao artista para o
projeto de um aplicativo para celular que
acabou sendo cancelado. Otoni aprovei-
tou o material para fazer uma espécie de
zombaria sobre modalidades esportivas
que poderiam ser típicas competições
209
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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manauaras,brincando com símbolos ar-
quitetônicos de Manaus e arquétipos (ou
seriam estereótipos?) amazônicos, como
a gura do índio e das guerreiras amazo-
nas. A trilha em estilo Noise Music, cor-
rente musical que utiliza sonoridades dis-
sonantes, foi acelerada, causando ainda
mais estranheza.
Após essa breve apresentação,
ressaltamos que neste trabalho o intuito
não é fazer uma análise quantitativa ou
qualitativa das peças audiovisuais, mas
buscar conexões entre os vídeos e o pro-
jeto poético do artista, inserido no am-
biente amazônico, considerando questões
de linguagem, estética e representação.
Diante disso, quando propomos uma aná-
lise dos fenômenos comunicativos por um
viés complexo, percebemos que a comu-
nicação vai muito além da relação funcio-
nalista entre emissor-mensagem-receptor,
anal, estamos tratando de um contexto
relacional compreendido por inter-rela-
ções e interdependências. Ou seja, além
da transmissão da informação há um in-
trincado processo de signicação e com-
partilhamento de sentidos, com dinâmicas
e ressonâncias que variam conforme as
sistemáticas envolvidas.
Os vídeos produzidos pelo artista
são realizados com simplicidade tecnoló-
gica, utilizando basicamente os programas
Photoshop, Moviemaker e MideaShow. As
imagens são captadas por celular e edi-
tadas no computador de sua casa. Otoni
geralmente é personagem dos próprios
vídeos. Brinca com códigos da linguagem
audiovisual, como os letreiros de abertu-
ra e os créditos nais com cha a técnica,
fazendo questão de enfatizar que ele é o
“faz tudo”. Os vídeos de Otoni, tem o artis-
ta como maestro absoluto. O própriocria-
dor faz questão de reforçar essa opção,
em respostas a comentários de internau-
tas, quando explica que sua arte só pode
ser feita por ele, não por uma questão de
prepotência, mas de liberdade artística.
Usa trilhas sonoras de domínio pú-
blico, para evitar problemas com direitos
autorais, ou músicas autorizadas por ami-
gos. Não é possível precisar se há uma
elaboração prévia ou a ideia se efetiva no
próprio processo de realização, pois não
se notanem um apuro técnico em relação
aos enquadramentos e à edição. Não são
vídeos comerciais, não são exatamen-
te videoarte ou videopoema, mas podem
ser lidos, em princípio, como lúdicas ex-
perimentações sérias com uma aparência
“caseira”. No próximo item vamos discutir
essas questões, por ora nos ateremos às
percepções audiovisuais.
Uma das tendências no trabalho
audiovisual de Otoni Mesquita é o regis-
tro de agrantes do cotidiano. São cenas
captadas pelo artista em diferentes situ-
ações, desdeuma caminhada por ruas
de Manaus, passando pela reunião com
amigos, a montagem de uma exposição,
ou peripécias em viagens turísticas, por
exemplo. O material posteriormente pas-
sa por uma edição, na qual o ritmo das
imagens e do som ambiente geralmente
são acelerados ou retardados para en-
fatizar a expressividade das situações.
Eventualmente, opta pelo tratamento de
cor e a mixagem do som ambiente com
trilha sonora musical.
O fato é que Otoni conserva o fres-
cor da curiosidade infantil, fazendo com
que acontecimentos banais ganhem con-
tornos pitorescos e cômicos, como um
cachorro se coçando e rolando numa cal-
çada, uma minhoca bailarina que dança
entre os dedos do artista, a louca movi-
mentação de formigas de bunda dourada,
brincadeiras em uma aula de estamparia
na faculdade de Artes, o embate entre um
pavão e uma cotia em um parque no Rio
de Janeiro, e até uma performance com
a própria sombra projetada na parede de
um prédio, com fusões e deslocamentos,
conforme a passagem de carros em uma
rua movimentada durante à noite.
210
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Labirinto da Caverna, postado em
5 de setembro de 2014, registra a perfor-
mance de Otoni,ao pintar telas com gran-
des guras humanas,cercado de um apa-
rato de som e luz, num “processo show”,
em parceria com os artistas Fabiano Bar-
ros e Mazo Rodrigues, realizada em mar-
ço de 2012, no Centro Cultural Povos da
Amazônia. Já em Performance no ICBEU,
com Nina e André, improvisa uma perfor-
mance descontraída, durante a montagem
de uma exposição coletiva, com dois ami-
gos, quandose entrelaçam e cam de per-
l, fazendoexpressões corporais,em tríade
sinuosa, subindo e descendo, imprimindo
uma visualidade em movimento que lem-
bra as pinturas de suas Personas.
Ainda na vertente de documentar
o dia a dia, há peças de delicadeza líri-
ca, como uma revoada de borboletas que
formavam um tapete às margens de um
rio, um bando de periquitos se aninhan-
do em uma árvore no centro histórico de
Manaus, o som da chuva captado à bordo
de utuante num igarapé. o cunho crí-
tico sobre questões políticas, ideológicas
e ambientais se expressa desde passea-
tas e manifestações sociais, até situações
extremamente chocantes, como o deses-
pero de um bicho-preguiça carregando o
lhote após o desmatamento de uma área
verde no campus da UFAM para a cons-
trução de um estacionamento.
Percebemos algumas reelabora-
ções sobre o mesmo tema e o reapro-
veitamento de imagens. Por exemplo, o
vídeo intitulado Dia das Bruxas em Ma-
naus, postado em 31 de outubro de 2015,
repleto de humor negro, faz uma crítica
mordaz à falta de consciência ecológica,
ao denunciar a situação de descaso em
relação às toneladas lixo acumuladas na
Praia da Manaus Moderna, no período de
seca. Mostra também a questão do esgo-
to que é jogado sem tratamento no Rio
Negro, de onde é retirada a água para o
abastecimento da população manauara,
evidenciando a negligência tanto da po-
pulação quanto das autoridades governa-
mentais e de órgãos de scalização. As
imagens são reforçadas pela narração do
próprio Otoni, feita no local, a partir das
impressões do artista, com um tom que
alia reportagem e fabulação, ao mostrar
uma situação de risco ambiental e ironi-
zar que as águas jorrando do esgoto se-
riam a “fonte das bruxas”.
Posteriormente, o vídeo Olhar
indiscreto sobre a cidade - por cima e
pelas beiras ,postado em 27 de maio de
2016, apresenta cenas panorâmicas de
Manaus registradas do alto de um pré-
dio. As vistas lembram cartões-postais,
com o skyline do centro da cidade, de-
talhes da cúpula do Teatro Amazonas, a
ponte sobre o Rio Negro, enquadrados
em ângulos que transmitem a estabilida-
de de uma cidade bem urbanizada. Em
seguida, corta para detalhes de esgoto
sem tratamento, entulhos e lixo, um aglo-
merado de embarcações que servem de
moradia para a população do entorno
dos igarapés de Manaus. Ametáfora de
abandono e caos atravessa,como uma
espada,a paisagem idealizada de um
cartão postal. Para essa segunda parte,
utiliza-sedas imagens da praia que ha-
viam ilustrado o vídeo citado anterior-
mente. Mas, neste caso não há qualquer
narração ao vivo ou em off, toda a banda
sonora é trabalhada com a música Perdi
meu coração velho de autoria dos com-
positores e instrumentistas Zeca Torres
Torrinho e Aldísio Filgueiras, poetas do
cenário cultural amazônico, com versos
que iniciam dizendo “olha pra essa pai-
sagem de silêncio e paz, na moldura da
parede armo a minha rede, devolve o
meu verde verão...”.
Outra tendência percebida nos ví-
deos de Otoni Mesquita é a digitalização
de algumas de suas pinturas, gravuras e
fotograas para posterior manipulação,
animação e ressignicação.
211
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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Em Genética da Obra, postado
em 23 de agosto de 2014, o artista res-
gata trabalhos de 1983. São esboços fei-
tos durante o curso de Belas Artes, nos
quais representa construções e templos
de cidades imaginárias e guras huma-
nas perladas que por meio digital vão
se desmaterializando em fusões e distor-
ções. Muitas dessas experiências grá-
cas iniciais tornaram-se características
marcantes na obra de Otoni, como os
Fragmentos e as Personas, que nesse
vídeo regressam do passado, ou de suas
origens imagéticas.
Reconstrução, postado em 24 de
março de 2016, é a mutação de um dese-
nho feito com canetinhas hidrocor e pin-
cel atômico, em 1975, retrabalhado em
Photoshop e animado em MovieMaker.
No vídeo, um cubo em perspectiva, aos
poucos se transforma numa gura huma-
na estilizada, cheia de arestas geomé-
tricas, como se a pele fosse um jogo de
xadrez, gerando embate com uma força
interna querendo romper o traçado que a
recobre e a enclausura. Quando conse-
gue se libertar vai adquirindo formas or-
gânicas e gurativas até se transformar
em curvas totalmente abstratas.
Em Mutante a cada instante, pos-
tado em 27 de março de 2016, o artista
reprocessa digitalmente, estudos feitos
em 2003, compostos por anotações e de-
senhos em caneta esferográca, que se
fundem a padrões e texturas elaborados
para pinturas, relevos de reciclagem de
papel, criando o que ele chama de “gravu-
ras digitais”, realizadas “num sábado meio
nublado em Manaus”.
Em Caras e Bocas, postado em
01 de abril de 2015, resgata desenhos
de uma caderneta de 1978, cujo propó-
sito, na época, eram estudos para uma
animação. A primeira parte do vídeo, que
tem dois minutos, mostra uma mulher, em
close, apenas delimitando seu rosto, fa-
zendo caretas. Na segunda parte, a boca
protagoniza a cena, com inúmeras possi-
bilidades de movimentos entre os lábios,
a língua e os dentes.
Um dos trabalhos que mais cha-
ma a atenção, tanto pelo contexto da
concepção quanto pelo impacto audio-
visual, é a animação Criação, postada
em 30 dezembro de 2014. Na descrição
do vídeo, o artista explica que em1979,
na disciplina de Cinema, na fase de
conclusão do curso de Comunicação,
havia produzido mais de 400 telas para
umaanimação que seria finalizada em
película Super-8. O trabalho chegou a
ser realizado, mas foi engavetado por
não ter ficado satisfeito com o resulta-
do. Trinta e cinco anos depois resolveu
voltar àquela ideia e com equipamen-
tos digitais retrabalhou a animação e
a publicou em sua rede social, inclu-
sive, atingindo um grande número de
compartilhamentoselogiosos pela cria-
tividade do vídeo. Nele, as aquarelas
digitalizadas trazem uma gama de co-
res vibrantes, bichos e pessoas entram
dançando e se transformam em letras,
compondo a palavra “Desenho”, em se-
guida palavras “Otoni Mesquita”, fun-
dem-se formando o contorno de cúpu-
las e minaretes de uma mesquita. A tela
fica azul e entra uma bisnaga de tinta.
Dos respingos surge um feto humano,
que vai se desenvolvendo e sai andan-
do, envelhece, vira luz, planta, árvore,
planeta. Paralelamente a esta sequên-
cia, um peixe, que do mar salta para o
ar, vira pássaro e depois astronauta. E
assim, outros elementos que surgiram
dos respingos de tinta vão interagindo
entre si e se transformando, preenchen-
do a tela, compondo paisagens fantás-
ticas e situações surreais, sempre em
metamorfose, finalizando com uma bai-
larina que dança com o sol nas mãos,
até virar pegadas de gente e tudo es-
curecer. A criação desse universo dura
apenas um minuto.
212
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Opereta do solitário segue essa
mesma poética mutante, com dese-
nhos produzidos no final da década de
1970, misturando ideias da biogené-
tica, transformação urbana das cida-
des, experiências místicas e extrater-
restres, com trilha acelerada de Nino
Rota, feita para o filme Casanova (Fe-
derico Fellini, 1976). Já o clip Lá vai
Teteá, baseado em desenhos de 2002,
animado em 2010 e postado 2014,
mostra a metamorfose de três jovens
caboclas sensuais que dançam, se exi-
bem e aos poucos vão se deformando
até “apodrecerem”, com trilha acelera-
da, no rock pós-punk gótico, da banda
escocesa Cocteau Twins.
Bonequitas de Goya, postado em
20 e janeiro de 2016, é um ensaio visual
de dois minutos e quarenta e cinco se-
gundos, homenagem ao pintor espanhol
Francisco de Goya, que poderia ser até
considerado um vídeo dança, a partir
de uma sequência de fotograas de um
guardanapo amassado, feito num voo en-
tre Rio e Manaus. O vídeo, que tem um
clima nostálgico pelos tons âmbar, reme-
tendo à paleta cromática de Goya, é um
balé digital e investiga a plasticidade da
representação do corpo, explorando pos-
sibilidades de movimentos.
Assim, ao nos confrontarmos com
esse mosaico, percebemos que os vídeos
de Otoni Mesquita, são trabalhos reple-
tos de simbologias e relações instigantes.
Por serem produzidos num contexto mais
despojado, deslocam a aura de um ar-
tista respeitado no cenário cultural ama-
zonense para um campo instável e sem
muitas denições que é a arte produzida
para a web. Nesse sentido, o artista se
joga vertiginosamente em queda livre,
despencando num penhasco, sem medo
de críticas e censuras.
Ao abordarmos essa temática,
tomando como foco a configuração de
um ecossistema comunicacional ge-
rado a partir de aspectos da obra de
Otoni Mesquita, acabamos por ampliar
nossas percepções, do ponto de vista
artístico, cultural, ecológico e político,
ao constatarmos que por meio de me-
mórias e metamorfoses o artista cons-
trói um repertório sígnico por trajetórias
ecossistêmicas, propondo inter-rela-
ções perceptivas de metáforas mutan-
tes, ao sobrepor camadas entre o co-
tidiano social, os mitos, a natureza e o
seu imaginário particular.
Por isso, acreditamos que ao en-
fatizarmos tais características também
reverberemos reexões sobre o mundo
contemporâneo, sobretudo nos desdo-
bramentos da produção de sentidos e de
compromisso ético, por meio de um uxo
comunicacional, em prol de reexões so-
bre sustentabilidade,justiça social e valori-
zação artístico-cultural.
Indenições necessárias para
denições desnecessárias
As experiências no campo da vi-
deoarte, conforme Machado (1988),
desde a década de 1960, propõe articu-
lar reexões estéticas, o debate sobre o
fazer artístico e suas relações com re-
alidades urbanas, preocupações com a
natureza e o desenvolvimento tecnológi-
co, integrando diferentes suportes e lin-
guagens por meio do vídeo, resultando
em obras multimídias como videoinsta-
lações, videoperformances, videoescul-
turas, videodança, videoclipe, videotexto
e outras possibilidades.
Nesse sentido, além de pensar e
repensar a questão da representação,
transforma as relações da obra de arte
com o espaço e o espectador, desper-
tando outros olhares e perspectivas
ampliadas sobre arte, comunicação,
cultura e sociedade. Para não sair do
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foco, optamos por não aprofundar a
discussão conceitual acerca da video-
arte e suas diferentes esferas expres-
sivas. Mas, achamos importante sinali-
zar que há inúmeras possibilidades de
criação audiovisual que extrapolam os
meios convencionais, como o cinema
e a televisão.
Portanto, os vídeos de Otoni Mes-
quita na web também são possibilidades
de expressão artística e comunicacio-
nal. Ao mesmo tempo em que assumem
o livre exercício criativo da experimen-
tação proporcionam inúmeras reflexões.
Não são propriamente documentários
nem ficções, no sentido clássico de gê-
nero, mas são representações de rea-
lidades e devaneios tangíveis. Fortui-
tamente, evocam a gênese conceitual
imbuída nas demais expressões artísti-
cas que florescem do criador, que com
seu espírito aberto às experiências do
mundo vai reelaborando e construindo
um universo particular, reflexo de seu
imaginário, percepções, valores éticos
e consciência cidadã.
Sem buscar enquadramentos
conceituais, poderíamos dizer que em
suas fábulas experimentais do cotidiano
real; nas suas animações existenciais
de sonhos; ou nos fragmentos de docu-
mentários da ilusão,a sua inventividade
plástica e o seu discurso político ecoam,
desaando classicações habituais e
ampliando a discussão sobre o caráter
das representações, especialmente, em
relação à Amazônia.
Da-Rin (2006) acredita que as
abordagens teóricas sobre a produção
audiovisual que fogem do convencional,
sobretudo, obras de não-cção, como
o documentário contemporâneo que se
apresenta de forma híbrida, se defron-
tam com um desao quase intransponí-
vel para delimitar um campo conceitual.
Por isso, é uma discussão complexa,
que não deve ser esvaziada em tentati-
vas simplistas de enquadrar por gêneros,
estéticas e formatos.
Conforme Da-Rin (2006) o per-
curso da história do cinema traz,na di-
versidade de manifestações, uma uidez
estética que transmite ao entendimento
contemporâneo a noção de que a produ-
ção audiovisual não cabe em fronteiras
fáceis de se delimitar, pois implica em
inscrever por imagens e sons, subjetivi-
dades, afetividades e valores. Para Da-
-Rin (2006) é importante contextualizar,
pois não se pode conhecer uma realida-
de sem estar mediado por algum sistema
signicante, portanto, a superioridade de
uma verdade absoluta deve ser desmiti-
cada, fazendo até mesmo do gênero do-
cumentário um “constructo”, assim como
os lmes de cção.
Travar um combate no campo sim-
bólico não consiste meramente em
reproduzir representações “verda-
deiras” do mundo. Representações
só assumem uma dimensão política
quando seu sentido não se deixa
aprisionar na univocidade e na tota-
lidade. Uma pedagogia da imagem,
no atual contexto audiovisual, é
aquela que estimula o esvaziamento
das agências de poder e promove o
descentramento de suas representa-
ções prontas e acabadas (DA-RIN,
2006, p. 233).
Nesse sentido, acreditamos que
os experimentos audiovisuais de Otoni
Mesquita são manifestações que podem
instigar questionamentos às estruturas
de poder e suas verdades institucionais,
denunciando o embuste das represen-
tações dominantes e a retórica que age
sobre nós, buscando outras imagens, ou-
tros discursos e outras verdades.
Verdades fragmentárias, que esti-
mulam uma subjetividade capaz de
214
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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abordar mais criticamente opróprio
processo social da produção de sen-
tido. Um atributo cada vez mais im-
portante, em meio ao dilúvio de repre-
sentações que caracteriza o mundo
contemporâneo, chamado por alguns
de sociedade da imagem (DA-RIN,
2006, p. 224).
Metz (2007), a partir da reexão
de teóricos como André Bazin, Serguei
Eisenstein, Bela Balázas, Rudolf Ar-
nheim, também compreende o audiovi-
sual (aborda o cinema, mas podemos
trazer sua perspectiva para a nossa dis-
cussão) comoum campo complexo de
ser analisado, porque é necessário com-
preender a fenomenologia da narração,
ou seja, um sistema de transformações
espaço-temporais e acontecimentos,
numa sequência de elementos signi-
cantes visuais, verbais e sonoros.A
compreensão de um universo diegético,
proporcionado pela conjunção de uma
gramática composta por diálogos, ence-
nação, fotograa, trilha sonora etc., con-
forme Metz (2007), faz com que toda a
impressão seja uma representação.
Portanto, além de ser constituído
por uma essência intercambiável e com-
plexa de códigos técnico-artísticos, pró-
prios do universo audiovisual, ainda se
articula entre ambientes congurados por
elementos de ordem sociocultural, políti-
ca, econômica e tecnológica, conguran-
do um ecossistema que pressupõe a per-
cepção e a relação para sua signicação.
Desse modo, por ter tantas ambi-
guidades na especicidade de ser “uma
linguagem que quer se tornar arte no seio
de uma arte que, por sua vez, quer se tor-
nar linguagem” (METZ, 2007,p.76), de-
sencadeia inúmeras abordagens teóricas,
metodológicas e procedimentos de inves-
tigação, tais como análise de discurso,
análise de conteúdo, exploração etnográ-
ca, pelo viés fenomenológico, sociológi-
co, semiótico, pela psicologia da percep-
çãoentre outros.
Linguagem ou arte, o discurso ima-
gético é um sistema aberto, difícil
de codificar, com suas unidades de
base não discretas (= as imagens),
sua inteligibilidade por demais natu-
ral, sua ausência de distância entre
significante e significado. Arte ou
linguagem, o filme é composto por
um sistema ainda mais aberto, com
parcelas inteiras de significação que
ele nos entrega diretamente (METZ,
2007, p. 76).
Nesse sentido, toda a constru-
ção que fazemos sobre a videografia-
Otoniana, é significada pela teia de re-
lações a partir da compreensão de sua
“vidarte”, apresentando-se como uma
possibilidade de leitura, que não tem a
intenção de esgotar-se em uma verda-
de, haja vista que estamos trabalhando
com multi-expressões, em diferentes
linguagens entrelaçadas, e sua decodi-
ficação é um conjunto de ações percep-
tivas, intelectivas, iconológicas, ideoló-
gicas etc., refletindo a combinação de
relações que foi possívelestabelecer
pelo pesquisador dentro da complexi-
dade de um ecossistema, com muitas
camadas simbólicas, e que se fundem
a outros sistemas.
Os experimentos audiovisuais
otonianos, nas contestações irônicas,
inclusive ao fantasiar imaginários, ti-
ramsuas máscaras e desmascaram a
sociedade, em percepções anticonven-
cionais do mundo. Metamorfoseiam
imagens-ideias-sensações, assumin-
do (trans)reconfigurações imprevis-
tas. Assim, o artista canibaliza a sua
própria arte, no universo iconofágico
da cultura contemporânea, coma au-
tenticidade do vivido e demostra que
é impossível fugir das ambiguidades e
apagar as memórias.
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ção, semiótica e mídia. São Paulo: Iluminuras, 1999.
Recebido em 25/09/2016
Aprovado em 07/11/2016
I Ítala Clay de Oliveira Freitas. Doutora em Comunica-
ção e Semiótica pela PUC-SP. Diretora do Departamen-
to de Cultura e Produção de Imagem e coordenadora
da linha de pesquisa em Linguagens, representações e
estéticas comunicacionais da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM). Professora do Programa de Pós-
-Graduação em Ciências da Comunicação da UFAM,
Brasil. Contato: iclayfreitas@hotmail.com.
II Rafael de Figueiredo Lopes. Mestrando no Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da
Universidade Federal do Amazonas, na área de Ecossis-
temas Comunicacionais, sob orientação da Profa. Dra.
Ítala Clay de Oliveira Freitas. Bolsista da Capes. Conta-
to: rafaopes@bol.com.br.
III A netnograa é um aporte metodológico de pesquisa
em comunicação, no meio digital, que analisa o compor-
tamento e as dinâmicas de sujeitos e grupos sociais na
internet. É embasada na etnograa, método antropológi-
co de pesquisa de campo para coleta, análise e interpre-
tação de dados,congurado pelo caráter intersubjetivo
entre pesquisador e objeto (AMARAL et al, 2008).
IV Portanto, temos consciência que observamos um
recorte comunicacional por uma conguração digital,
inclusive, com ltros e escolhas do próprio artista nas
decisões de postagens, e não os objetos-sujeitos em si,
concebidos e caracterizados em outros contextos, pas-
síveis a outros desdobramentos, subjetividades e textu-
alidades múltiplas.
V O álbum foi criado em 26 de janeiro de 2012, mas tem
uma dinâmica contínua, pois acompanha o trajeto criati-
vo do artista voltado à recorrente temática do Ciclos do
Eldorado, portanto, o número referenciado de 442 pos-
tagens corresponde ao nal do período de observação
realizado para este estudo, em 12 de agosto de 2016.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Ensaio
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Veredas abertas da América Latina
Antonio Albino Canelas Rubim
I
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Veredas abertas da América Latina
O Para Eduardo Galeano
e Gonzalo Carambula
As formas desaparecem,
as palavras cam,
para signicar o impossível.
Augusto Roa Bastos
Introdução
O escritor gaúcho Luiz Antonio
de Assis Brasil no romance histórico
Figura na Sombra traça a errática vida
do naturalista Aimé Bonpland, compa-
nheiro de Alexander von Humboldt na
sua viagem de cinco anos pelas Amé-
ricas. Contemporâneo da Revolução
Francesa, botânico de Josefina e Na-
poleão, amigo de Simon Bolívar e pri-
sioneiro doditador paraguaio Doutor
Francia, Amado Bonpland, tomado pela
natureza,passa por uma mutação iden-
titária, deixa a Europa para viver e mor-
rer na América do Sul.
O escritor paraguaio Augusto
Roa Bastos em seu livro Eu o supre-
mo desvela a figura enigmática e real
de José Gaspar Francia, el supremo,
ditador e leitor dos iluministas. No li-
vro reencontramos Amado Bonpland,
prisioneiro do supremo durante anos.
Ele tece a história do Paraguai em um
texto singular que Angel Rama disse in-
classificável, devido a seu transito sem
fronteiras por variados gêneros: roman-
ce, história, biografia,ensaio sociológi-
co, dentre outros.
A literatura, assim como o cine-
ma e a música, no século XX, articu-
laram, expressaram e deram vida à
América Latina. Propiciaram diálogos
interculturais. O realismo fantástico de
Gabriel Garcia Marquez e o real ma-
ravilhoso de Alejo Carpentier conver-
sam sobre sua realidade mágica. Os
filmes de Glauber Rocha e Fernando
Solanas conformaram imagens duras e
poéticas da América Latina. A música
de Violeta Parra, Mercedes Soza, As-
tor Piazolla, Caetano Veloso e Gilberto
Gil nos permitiramauscultar sotaques,
sons e sonoridades latino-americanas.
Cito só alguns dos criadores culturais
deste complexo, diverso e rico espaço
cultural, ainda tenazmente em constru-
ção (GARRETÓN, 2003)
Ditaduras e neoliberalismos agre-
diram e deixaram sequelas profundas
neste espaço cultural. Monopólios mi-
diáticos de produção e difusão cultu-
rais continuam invadindo, quase sem-
pre com violência, corações e mentes.
As culturas latino-americanas resistem
e se afirmam, apesar da violência, dos
monopólios e das condições desiguais
e injustas, das visões colonizado-
ras e colonizadas. Seus movimentos,
por vezes ambíguos e muitas vezes
criativos,alternam fluxos e refluxos his-
tóricos, tensos, de assimilação e con-
traponto com as concepções de mundo
hegemônicas no mundo capitalista.
No recente horizonte do século
XXI, as mutações sociais, econômicas,
políticas e culturais acontecidas, em
especial nos países latino-americanos
pós-neoliberais, abriram novas veredas
para superar tal supremacia e possibili-
tar novos diálogos interculturais. A emer-
gência vigorosa de movimentos político-
-culturais possibilitou novos horizontes
possíveis para a cultura. Aautoarmação
de novos segmentos, antes excluídos
em múltiplas dimensões - sociais, eco-
nômicas, políticas e culturais - estão se
traduzindo eminovadores processos cul-
turais.Este texto trata de um deles: a cul-
tura viva na América Latina.
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Cultura Viva
Reconhecer, apoiar e potenciali-
zar o que já existe culturalmente. Prin-
cípio simples e surpreendente para
políticas culturais, em especial, para
aquelas voltadas para setores sociais
e culturais antes excluídos de qualquer
relação cultural com o estado nacional.
Faz mais de 10 anos que o Programa
Cultura Vivacomeçou a acontecer no
Brasil. O ano de nascimento foi 2004.
No ano anterior, a confluência de cons-
telações, com Lula presidente e Gilberto
Gil ministro, começou a abrir novas ve-
redas para a cultura viva do povo brasi-
leiro. O programa pretende autonomia,
protagonismo, empoderamento e tra-
balho em redede agentes e comunida-
des culturais. Inaugurado o Programa
Cultura Viva, ele cresceu em números,
orçamento e repercussão. Tentacular,
ele tomou o Brasil. O Ministério da Cul-
tura antes adstrito a poucos territórios
do país e concentrado em Brasília, Rio
de Janeiro e São Paulo, se esparramou
pelo Brasil e dialogou com regiões nun-
ca dantes visitadas. Brotaram pontos de
cultura, pontões de cultura, pontinhos,
pontos de leitura, pontos de memória,
economia viva e outras ações inscritas
no programa, em desenvolvimento desi-
gual e nem sempre combinado.
O conceito ampliado de cultura,
constantemente anunciado e rearma-
do por Gilberto Gil (2003), e aspolíticas
de promoção e preservação da diversi-
dade cultural assumidas pelo Ministério
da Cultura, possibilitaram e deram força
ao programa. Ele criou uma base social
nova para um ministério criado em 1985,
mas verdadeiramente reinventado a par-
tir de 2003. Desde então o Ministério da
Cultura não se relaciona só com artes
e patrimônio, áreas tradicionais de sua
atuação histórica, mas com a socieda-
de brasileira em sua complexidade, com
agentes e comunidades culturais nunca
antes acionadas e reconhecidas pelo es-
tado nacional. Não parece casual que o
programa tenha se instalado formalmen-
te na Secretaria da Cidadania Cultural.
Passo relevante para a ampliação do
programa aconteceu em 2007, quando
estados e depois municípios se integram
na gestão do Programa Cultura Viva,
ainda que nem sempre de maneira com-
partilhada e explicitamente federativa
(ROCHA, 2011).
A expansão do programa gerou
diculdades não enfrentadas até 2010,
ano nal do governo Lula. Ainda que
elas possam ter alguma relação com aa-
dministração do programa, não parece
ser este o x da questão. Entretanto, a
partir de 2011, nas gestões das ministras
Ana de Hollanda e depois Marta Suplicy
e da agora Secretaria da Cidadania e
Diversidade Cultural, dirigida por Márcia
Rosenberg, o problemafoi tratado, acima
de tudo, como questão gerencial, como-
problema de gestão. Em consequência,
o programa cou quase paralisado até
2014. A incompreensão envolveu a não
percepção do papel do Programa Cul-
tura Viva no alargamentoda base social
e de atuação do ministério, como cou
evidente na gestão Ana de Hollanda. A
indiferença da gestão seguinte, de Marta
Suplicy, não alterou o paradeiro instala-
do. Em suma, nestes anos os desaos
e inovações do programa foram ignora-
dos, sem mais.
O Programa Cultura Viva, ao fa-
zer interagir o estado nacional com ato-
res, comunidades e modalidades margi-
nalizados culturalmente, expôs de modo
contundente o caráter excludente e de-
nunciou a inadequação existente no Bra-
sil entre estado e sociedade. O estado
existente não se voltava para tais setores
sociais, antes atendia apenas demandas
dos segmentos dominantes. Transformar
este escandaloso sintoma em questão
de ajustes administrativos e burocráticos
220
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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deprimiuo potencial de rebeldia contra o
estado elitista. Os pontos de cultura exi-
gem, pelo contrário, refundar o estado,
em uma perspectiva radicalmente demo-
crática e republicana. Ser coerente com
o programa implica em não esquecer seu
traço inovador, sempre incômodo, nem
olvidar seu caráter potencialmente sub-
versivo. A utopia de outro estado e de ou-
tro mundo, inscritos no programa, deve
ser assumida como possível em toda sua
plenitude (RUBIM, 2011).
A gestão quase dedicada aos as-
pectos burocráticos e gerenciaisdebi-
litou o programa equase o destituiu de
seu papelquestionador frente ao caráter
de classe e ao elitismo do estado bra-
sileiro. Sua incorporação como política
ter sido mantida, ainda que debilitada,
decorreu de suas virtudes: de suas visi-
bilidades, nacional e internacional, bem
como de certo empoderamento conquis-
tado por seus ativistas. Eles impediram
um destino mais drástico. Foram eles,
em conjunto com forças político-cultu-
rais aliadas, que, mesmo neste panora-
ma sóbrio, viabilizaram a aprovação da
Lei Cultura Viva. A lei nº 13.018 de 22 de
julho de 2014, regulamentada em 08 de
abril de 2015, instituiu o Programa Na-
cional Cultura Viva, que assim passou a
ser uma política de estado, ainda que o
estado não tenha sido adequadamente
democratizado, com a superação dos
impasses do programa.
Dentre as dezenas de estudos já
existentes sobre o programa, três de-
les, realizados pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) do Governo
Federal, traçam um amplo e crítico pano-
rama do programa. Conforme os estudos
do IPEA existiam no Brasil mais de três
mil pontos de cultura, cujas ações atin-
giamoito milhões de pessoas de modo
esporádico, 900 mil de maneira regular e
envolviam 33 mil trabalhadores, metade
deles remunerados (BARBOSA; ARAÚ-
JO, 2010; BARBOSA; CALABRE, 2011;
BARBOSA; LABREA, 2014). O retorno
em 2015, de Juca Ferreira, ex-secretário
executivo de Gilberto Gil e ex-ministro en-
tre 2008 e 2010, ao Ministério da Cultura
pretendia reverter esta difícil situação,
visando atingir a meta prevista no Plano
Nacional de Cultura: 15 mil pontos de cul-
tura em 2020 (MINISTÉRIO DA CULTU-
RA DO BRASIL, 2012).
Cultura Viva Comunitária
Em contraste com a paralisia bra-
sileira, oresceu na América Latina a
partir de 2010 um movimento que foi-
denominado de Cultura Viva Comunitá-
ria. Já no ano de 2009, no III Congresso
Ibero-Americano de Cultura, promovido
pela Secretaria Geral Ibero-Americana
(SEGIB), em São Paulo, aconteceram
diálogos. Mas o marco inicial do proces-
soocorreu em Medellín, de 13 a 16 de
outubro de 2010, no Encuentro de Re-
des Latinoamérica Plataforma Puente
- 100 Organizaciones Socioculturales.
Mais 100 entidades da sociedade civil
e instituições públicas de cultura reivin-
dicaram 1% dos orçamentos nacionais
para a cultura e 0,1% para uma cultura
viva sem fronteiras. Neste mesmo ano,
realizou-se uma marcha em Buenos Ai-
res e a entrega na Casa Rosada de pro-
posta de lei Cultura Viva. No ano seguin-
te, também na Argentina, aconteceu o IV
Congresso Ibero-Americano de Cultura.
Ele reforçou a ideia dos percentuais, de-
niu as experiências da cultura viva co-
munitária e criticou a ausência de polí-
ticas culturais especicamente voltadas
para ela. Neste momento, a Argentina já
possuía centenas de pontos e circuitos
(pontões) de cultura.
No Fórum da Cultura Viva Comu-
nitária, realizado em setembro de 2012,
também na cidade de Medellín, o Pro-
grama Nacional de Cultura Comunitária
221
Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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da Colômbia delimitou seu campo como
conjunto de processos, experiências e
expressões culturais que surgem nas co-
munidades, a partir da cotidianidade e da
vivência de seus territórios, promovidas
por entidades enraizadas em seus pró-
prios territórios (PLATAFORMA PUEN-
TE, 2012). Características elencadas da
Cultura Viva Comunitária: pertencimento
comunitário, familiar e cotidiano; ação
cultural desenvolvida no espaço público,
ruas e praças; vinculação com econo-
mia social e solidária; protagonismo das
mulheres, jovens e adolescentes; ações
voltadas para a cultura de paz; traba-
lho em rede; democracia deliberativa,
participativa e comunitária; cuidado do
meio-ambiente e dos bens comuns; pre-
disposição para a mestiçagem estética e
cultural; vocação para a transformação
territorial através de movimentos so-
ciais, intervenção política e de cidadania
(BALÁN, 2012).
Todo este vertiginoso processo
deságua, em maio de 2013, no I Con-
gresso Latino-Americano de Cultura
Viva Comunitária, realizado em La Paz,
com mais de 1.300 pessoas de 17 paí-
ses, abrangendo territórios que se es-
tendem desde o México até o Chile. O
VI Congresso Ibero-Americano de Cul-
tura, organizado pela SEGIB, em maio
de 2014,assume como tema Cultura
Viva Comunitária. Nele se discute a
criação do Fundo Ibercultura Viva para
financiar grupos comunitários, a exem-
plo de programas já existentes: Ibermu-
seus, Ibermídia, Ibermúsica etc. Em 29
de agosto de 2014, a Rede Chilena de
Cultura Viva Comunitária realizou seu I
Encuentro Pluricultural Cultura Viva Co-
munitaria. O II acontece em 30 de agos-
to de 2015. Em novembro de 2014, em
Córdoba, ocorre o I Congresso Nacional
Cultura Viva na Argentina. Represen-
tantes da Argentina, Bolívia, Brasil, Chi-
le, Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
Equador, Guatemala, Peru e Uruguai,
que fazem parte do Conselho Latino-
-Americano da Cultura Viva Comunitá-
ria, se reúnem em São Paulo de 03 a
7 de dezembro de 2014 para discutir a
situação nos países e a Semana de Cul-
tura Viva Comunitária.
O movimento hoje alcança qua-
se todos os países latino-americanos:
Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Chi-
le, Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
Equador, Guatemala, Honduras, Nica-
rágua, Panamá, Peru, Uruguai e Vene-
zuela.As exceções na América do Sul
parecem ser Guiana, Suriname e Guia-
na Francesa.Além de países, cidades se
tornam agentes do programa. Medellín
foi a primeira cidade latino-americana a
ter uma lei de Cultura Viva Comunitária,
aprovada em 2011. De 25 a 28 de outu-
bro de 2015realiza-se em El Salvador o
II Congresso Latino-Americano de Cultu-
ra Viva Comunitária.
Formulações e reformulações
A expansão do Programa Cultura
Viva para a América Latina não signicou
apenas a assimilação mimética de uma
experiência vitoriosa no Brasil, ainda que
entravada e tendo que superar os per-
calços políticos anotados. Bem distinta
da mera cópia, tal ampliação se realizou
através de intenso diálogo intercultural
com condições e concepções de cada
um destes locais assinalados. Desta ma-
neira, o Programa Cultura Viva Comuni-
tária, em processo de rica construção,
resultou de um complexo processo de
assimilações, trocas e transmutações,
que incorporou experiências nacionais e
locais diferenciadas, e, simultaneamente,
desenvolveuvisões comuns e compar-
tilhadas. Análises mais detalhadas dos
variados processos em andamento nos
diversos países latino-americanos irão
demonstrar este caráter, ao mesmo tem-
po, diverso e comum. De imediato, o per-
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l comunitário foi densamente armado
e reforçado. Por certo, ele está presente
no experimento brasileiro, mas não com
tal nitidez, identidade e potência. O re-
curso ao termo “comunitária” na titulação
do programa torna-se emblemático desta
nova circunstância.
Outra diferença, observada por
Luana Vilutis (2015), diz respeito à pre-
sença das culturas digitais no programa.
No caso brasileiro, ela aparece como ex-
pressiva, devido a sua relevância para
a construção de redes e ao obrigatório
kit tecnológico instalado em cada ponto
de cultura. Na Cultura Viva Comunitária,
com algumas exceções nacionais,as cul-
turas digitais apresentam-se mais como
um desao a ser alcançado que um con-
junto de experiências efetivamente rea-
lizadas, mesmo que sua relevância seja
devidamente reconhecida.
A análise de Luana Vilutis assi-
nala outra dimensão fundamental das
reformulações acontecidas na Cultu-
ra Viva Comunitária: a influência que
as culturas originárias passam a ter na
cosmovisão do programa, em espe-
cial aquelas que podem ser traduzidas
como “bem viver”, tais como sumakka-
wsay (Equador) e suma qamaña (Bo-
lívia). Cabe lembrar que o “bem viver”
(sumakkawsay) foi incorporado mesmo
como elemento da nova constituição
do Equador de 2008, não sem disputa
e tensões sobre o sentido desta incor-
poração como demonstram recentes
conflitos no Equador (CASTRO, 2015 e
CASTRO; PABÓN, 2015).
A incorporação da cosmovisão
de povos originárias traz ou explicita um
conjunto relevante de concepções que
passam a marcar o ideário do programa
e implicam em sua reformulação, sem
abandonar suas formulações originárias
advindas da experiência brasileira. Novas
camadas de sentido são acionadas para
dar mais consistência e singularidade ao
programa. Os princípiosda complemen-
tariedade e da relacionalidade passam a
ser ainda mais assumidos como valores.
O equilíbrio e a satisfação das necessida-
des, individuais e coletivas, devem se re-
alizar através da compreensão que existe
uma complementariedade indissociável
entre sociedade e natureza. Da mesma
maneira que a vida humana implica sem-
pre em coexistência e convivência em re-
lação aos outros. A comunidade assume
expressivo lugar na vida social. Ela emer-
ge como o modo básico de organização
da sociedade. Ela se conforma através
do acionamento de consensos, diálogos
e assembleias. Neste novo horizonte,
complementariedade, relacionalidade
e harmonia apresentam-se como vitais
para congurar o bem viver.
A convivência cidadã em harmo-
nia com natureza e com comunidade se
contrapõe às visões e modos de vida tra-
zidos e impostos pelos colonizadores. A
destruição e o silenciamento impingidos
pela colonização ocidental não teve po-
tência suciente para destituir estes po-
vos e comunidades de sua cosmovisão,
mesmo que a tenha afetado e rivalizado.
A persistência, apesar de tudo, destas
concepções de mundo possibilita um
bom alicerce para a luta pela descolo-
nização do saber naquelas regiões e re-
gistros onde a colonização se impôs com
mais força. A rearmação e realização
do bem viver implicam, por conseguinte,
na busca continuada de descolonização
do saber, na disputa em torno de modos
de ver e viver o mundo.
Ainda que o tema do desenvolvi-
mento esteja distante dos imaginários dos
povos originários e seja, por conseguinte,
um componente nascido e trazido pela vi-
são de mundo ocidental, cabe assinalar
que a inscrição da América Latina neste
contexto cultural contemporâneo impõe o
tema do desenvolvimento como complexa
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Ano 7, número 12, semestral, out/2016 a mar/ 2017
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questão a ser enfrentada por estes países,
como assunto inexorável a ser discutido e
enfrentado. As relações entre a cosmo-
visão do bem viver e o desenvolvimento
não parecem simples e tranquilas. Elas
não podem ser esquecidas e desconside-
radas, mas conguram-se sempre como
complexas, necessárias e tensas.
Observações nais
Obrigatório agora uma “viagem à
semente”, para lembrar o interessante
conto de Alejo Carpentier. Cabe revisitar
os anos 60 e 70 do século XX, quando a
América Latina se integrou e recriou nas
maravilhosas obras de muitos de seus
criadores culturais. Seus intelectuais,
artistas e pensadores, umbilicalmente
associados aos movimentos político-cul-
turais e ao seu tempo/espaço, teceram
inventivamente a América Latina. No sé-
culo XXI, esta tessitura parece vir tam-
bém ou principalmente de outro horizonte
cultural: dos ativistas e comunidades po-
lítico-culturais colocados em movimento,
em especial, pelas recentes mudanças
políticas e culturais em andamento na
América Latina, com destaque para os
países pós-neoliberais, que terminaram
contaminando a região. Diferente da cria-
tiva circunstância anterior, hoje os agen-
tes destas manifestações culturais locais,
mestiçagens de rearmações do local em
um ambiente intensamente global, pa-
recem ser setores populares, com seus
ativistas e suas comunidades culturais,
que conquistaram mais efetivamente sua
cidadania cultural e passaram a exercer
seus direitos culturais. Tal mutação deve
ser encarada em toda sua novidade e
potência nas dimensões políticas e cultu-
rais. Ela resulta e expressa a nova Améri-
ca Latina, reinventada no século XXI.
A armação do local, de suas tradi-
ções, modos de vida e cosmovisões, não
signica a busca nostálgica de um mundo
quase perdido, mas novas possibilidades
de diálogos entre tradição e modernidade,
mesmo que isto não se faça sem arestas e
fricções. A rearmação das tradições ope-
ra em um ambiente globalizado e aciona
recursos próprios desta sociedade rede,
para lembrar Manoel Castells. Pesquisa
realizada nos anos de 2004 e 2005, inse-
rida nas Cátedras de Integración do Con-
venio Andrés Bello, sob o título de Políti-
cas e redes de intercambio e cooperação
em cultura no âmbito ibero-americano,
constatou a existência naqueles anos de
poucas redes culturais na região, mas de-
tectou também uma expansão crescente
das redes entre 1998 e 2004: de zero para
16 redes, em aumento constante (RUBIM;
RUBIM; VIEIRA, 2006). O panorama atual,
sem dúvida, aponta para uma proliferação
de redes e de redes que congregam re-
des. Esta constelação de redes possibilita
reavivar o velho sonho da América Latina
integrada, mas como o reconhecimento,
na contemporaneidade, de sua diversida-
de cultural, de sua mestiça interculturali-
dade e da urgência de mais e melhores
diálogos interculturais. A Cultura Viva e
a Cultura Viva Comunitária fazem parte
deste complexo, longo e rico processo de
transformação social.
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rubim@ufba.br