DOSSIÊ “CULTURA E RELIGIÃO
DOSSIER “CULTURE AND RELIGION
Apresentação do Dossiê
Dossier’s presentation
JOSÉ ABÍLIO PEREZ JÚNIOR, LEANDRO DURAZZO e DERLEY MENEZES ALVES
O tríplice feminino:
Jesus, Medeia e a identidade do Poeta enquanto
uma feiticeira sacricada
The triple feminine:
Jesus, Medea and the Poet’s identity as a sacricial witch
FÁBIO GERÔNIMO MOTA DINIZ
Islamofobia brasileira online: discursos fechados
sobre o Islam em uma rede social
Online brazilian islamophobia:
closed discourses on Islam in a social media network
FELIPE FREITAS DE SOUZA
O ensino religioso nas políticas de currículo:
o caso da Base Nacional Comum Curricular
The religious education policy curriculum:
the case of the National Curriculum Common Core
MIRINALDA ALVES RODRIGUES DOS SANTOS
Cultura e regionalidade: semelhanças e diferenças nas
festas do Divino Espírito Santo no território brasileiro
Culture and regionality: similarities and dierences in the Holy
Divine Spirit holidays in Brazilian territory
DÉBORA B. G. THOMSEN, ROSÁLIA MARIA NETTO PRADOS
e LUCI MENDES DE MELO BONINI
FÉ MIDIATIZADA? Indagações sobre a abordagem
comunicacional da questão religiosa na era das
tecnologias digitais em rede
MEDIATIZED FAITH?
Inquiries about the communicational approach of the religious
issue in the era of digital network technologies
FERNANDA LIMA LOPES
A atuação de Silas Malafaia contra o PLC 122:
análise de suas páginas no Twitter e no Facebook
The performance of Silas Malafaia against PLC 122:
analysis of his pages on Twitter and Facebook
MÁRCIA ZANIN FELICIANI, LEANDRA COHEN SCHIRMER
e ALINE ROES DALMOLIN
A CNBB como promotora de notícia e fonte de
informação da religião católica no Jornalismo:
notas como ritual estratégico e meios alternativos
de agendamento
CNBB as news promoter and source of information of
the Catholic religion in the media space:
notes as a strategic ritual and alternative Agenda Setting
ROBSON DIAS, ELIANE MUNIZ LACERDA
e VICTOR MÁRCIO LAUS REIS GOMES
As Reestruturações do Sentido de Pertença
à Igreja Católica nos Bispados de D. José
Colaço, D. Paulino Évora e D. Arlindo Furtado:
Adaptação ou Resistência às Mudanças Políticas
e Culturais em Cabo Verde?
The Restructuring of the Meaning of Belonging
to the Catholic Church in the bishoprics of D. José
Colaço, D. Paulino Évora and D. Arlindo Furtado:
Adaptation or Resistance to Political
and Cultural Change in Cabo Verde?
ADILSON FILOMENO CARVALHO SEMEDO
Cultura e Religião:
Um estudo sobre as Festas de Agosto
conforme a Ocialidade Católica
Culture and Religion:
A study on the Feasts of August
according to Catholic Ocial
VIVIANE BERNADETH GANDRA BRANDÃO
Entre imagens, modernidade e religião:
a iconologia protestante no Brasil
Pictures, modernity and religion:
a Protestant iconology in Brazil
PRISCILA VIEIRA E SOUZA
The Missing God of Karl Jaspers
(and Heidegger)
O Deus ausente de Karl Jaspers (e Heidegger)
PURUSHOTTAMA BILIMORIA
Ano VII nº 13 - abr/2017 a set/2017
www.pragmatizes.u.br
ISSN 2237-1508
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano VII nº 13 - abr/2017 a set/2017
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Isabel Babo - Universidade Lusófona do Porto, Portugal
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano VII nº 13, (ABR/2017 a SET/2017). – Niterói, RJ: [s. N.], 2017.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário / Summary
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ / DOSSIER’S PRESENTATION
DOSSIÊ: Cultura e Religião
DOSSIER: Culture and Religion
Tantos grupos humanos, tantas culturas e sociedades
So many human groups, so many cultures and societies
JOSÉ ABÍLIO PEREZ JÚNIOR, LEANDRO DURAZZO e DERLEY MENEZES ALVES 06
DOSSIÊ / DOSSIER 16
O tríplice feminino: Jesus, Medeia
e a identidade do Poeta enquanto uma feiticeira sacricada
The triple feminine: Jesus, Medea and the Poet’s identity as a sacricial witch
FÁBIO GERÔNIMO MOTA DINIZ 17
Islamofobia brasileira online: discursos fechados sobre o Islam em uma rede social
Online brazilian islamophobia: closed discourses on Islam in a social media network
FELIPE FREITAS DE SOUZA 36
O ensino religioso nas políticas de currículo:
o caso da Base Nacional Comum Curricular
The religious education policy curriculum: the case of the National Curriculum Commom Core
MIRINALDA ALVES RODRIGUES DOS SANTOS 53
Cultura e regionalidade: semelhanças e diferenças
nas festas do Divino Espírito Santo no território brasileiro
Culture and regionality: similarities and dierences in the Holy Divine Spirit holidays in Brazilian territory
DÉBORA B. G. THOMSEN, ROSÁLIA MARIA NETTO PRADOS e LUCI MENDES DE MELO BONINI 65
FÉ MIDIATIZADA? Indagações sobre a abordagem comunicacional
da questão religiosa na era das tecnologias digitais em rede
MEDIATIZED FAITH? Inquiries about the communicational approach
of the religious issue in the era of digital network technologies
FERNANDA LIMA LOPES 78
A atuação de Silas Malafaia contra o PLC 122:
análise de suas páginas no Twitter e no Facebook
The performance of Silas Malafaia against PLC 122:
analysis of his pages on Twitter and Facebook
MÁRCIA ZANIN FELICIANI, LEANDRA COHEN SCHIRMER e ALINE ROES DALMOLIN 92
A CNBB como promotora de notícia e fonte de informação
da religião católica no Jornalismo: notas como ritual estratégico
e meios alternativos de agendamento
CNBB as news promoter and source of information
of the Catholic religion in the media space: notes as a strategic ritual
and alternative Agenda Setting
ROBSON DIAS, ELIANE MUNIZ LACERDA e VICTOR MÁRCIO LAUS REIS GOMES 113
Cultura e Religião: Um estudo sobre as Festas de Agosto
conforme a Ocialidade Católica
Culture and Religion:
A study on the Feasts of August according to Catholic Ocial
VIVIANE BERNADETH GANDRA BRANDÃO 130
As Reestruturações do Sentido de Pertença à Igreja Católica
nos Bispados de D. José Colaço, D. Paulino Évora e D. Arlindo Furtado:
Adaptação ou Resistência às Mudanças Políticas e Culturais em Cabo Verde?
The Restructuring of the Meaning of Belonging to the Catholic Church
in the bishoprics of D. José Colaço, D. Paulino Évora and D. Arlindo Furtado:
Adaptation or Resistance to Political and Cultural Change in Cabo Verde?
ADILSON FILOMENO CARVALHO SEMEDO 145
Entre imagens, modernidade e religião: a iconologia protestante no Brasil
Pictures, modernity and religion: a Protestant iconology in Brazil
PRISCILA VIEIRA E SOUZA 159
The Missing God of Karl Jaspers (and Heidegger)
O Deus ausente de Karl Jaspers (e Heidegger)
PURUSHOTTAMA BILIMORIA 179
6
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apresentação do Dossiê
“Cultura e Religião”
7
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Ao longo da história das ciências
sociais, a ubiquidade de termos analíti-
cos como cultura e sociedade, a despei-
to de suas várias acepções possíveis,
sempre determinou a variedade também
de suas abordagens teóricas e mesmo
metodológicas. A historicidade do ter-
mo cultura, fortemente inuenciado pela
concepção romântica de uma Alemanha
ainda em formação (ELIAS, 1990), é
bem conhecida, tanto na disciplina an-
tropológica quanto nas demais ciências
humanas. Também será bem conhecida
a concepção de padrões culturais que
se fortalece na antropologia dos Estados
Unidos (BOAS, 2004; BENEDICT, 1934),
sobretudo, e o entendimento de cultura
como certo tipo coletivo reconhecível,
que daí deriva.
Mais recentemente, teremos uma
forte contestação à ideia de uma unida-
de analítica delineável – se bem que no
conceito de sociedade, não propriamen-
te cultura. Questionando a existência de
algo que se pode chamar, com proprie-
dade, de “uma sociedade”, Marilyn Stra-
thern (2014) argumenta sobre a obsoles-
cência teórica do conceito, dizendo que
os antropólogos há muito utilizam a ideia
de sociedade como um expediente retó-
rico, e não como um instrumental teóri-
co. Sendo retórica e não teoria, então, a
ideia de sociedade já não daria conta de
Tantos grupos humanos, tantas culturas e sociedades
So many human groups, so many cultures and societies
José Abílio Perez Júnior, Leandro Durazzo e Derley Menezes Alves
compreender as múltiplas dinâmicas de
socialidade observáveis em campo, já
que o trabalho de campo é, por força da
tradição, um dos maiores diferenciais da
antropologia – e que também serve de
inspiração para diversas áreas coirmãs.
A posição de Strathern neste deba-
te, datado de 1989, faz coro ao que Ed-
mund Leach já dizia na década de 1950.
Para o autor, não seria possível ao antro-
pólogo dizer de “uma sociedade” ou “uma
cultura”, em seus sentidos totalizantes,
posto que tais unidades não se encontra-
riam verdadeiramente em campo, sendo
antes uma invenção do encontro etnográ-
co (também cf. WAGNER, 2012). Para
Leach, o estudo de “sistemas sociais”, pa-
drões de organização dos grupos huma-
nos, corresponderia mais verdadeiramen-
te a observações feitas em campo do que
as pretensões universalizáveis de “mo-
delos de estrutura social”, que critica em
Radclie-Brown. Daí se perguntar se “é
legítimo pensar a sociedade Kachin como
organizada de acordo com uma conjun-
to particular de princípios, ou essa vaga
categoria Kachin incluiria uma série de di-
ferentes formas de organização social?”
(LEACH, 1964: 3, tradução nossa).
Já Marshall Sahlins, tematizando
a persistência de ideias sobre culturas,
não se furtará a armar que “fala-se mui-
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
to em ‘culturas da resistência’, embora
fosse claramente mais acurado descre-
ver o que vem acontecendo a diversas
vítimas do imperialismo ocidental como
resistência da cultura” (SAHLINS, 2013:
85). O deslocamento teórico-conceitual
do autor, colocando a cultura como aqui-
lo que resiste à homogeneização im-
posta – e não como em Clastres (2013),
onde a sociedade (primitiva) é resistente
à homogeneização – é sintomático, pos-
to que nos encaminha para o entendi-
mento de cultura como uma instância de
certa forma hermenêutica e instrumen-
tal do pensamento antropológico. Desse
modo, não veríamos “culturas” distintas
e isoladas, mas entenderíamos proces-
sos de prática e representação sociais
como dando corpo a distintas organi-
zações de grupos humanos, algo que
também veremos despontar em Barth
(2000). Marshall Sahlins prossegue:
A subversão cultural, ao envolver a
integração do estrangeiro nas cate-
gorias e relações do familiar – uma
modificação nos contextos culturais
das formas e forças externas que
modifica também seus valores –, é
algo consubstancial às relações in-
terculturais [...] mesmo as vítimas
das modernas relações de depen-
dência [colonialista] agem no mundo
como seres sócio-históricos. Para
parafrasear Freud falando de Marx,
eles não se tornam subitamente
conscientes de quem são quando re-
cebem seu primeiro contra-cheque.
Ao contrário, as forças da hegemo-
nia capitalista, ao serem mediadas
pelo habitus de formas específicas
de vida, realizam-se segundo os es-
quemas de universais culturais alie-
nígenas. (2013: 85)
Fica claro que a cultura, no senti-
do sahlinsiano, nos conduz a uma forma
de compreensão hermenêutica da cul-
tura, em que seu sentido é dado antes
pelas possibilidades de entendimento
que fornecem aos grupos humanos do
que, como quereria Boas, aos traços
distintivos reconhecíveis em cada co-
letividade. Por possibilidades de enten-
dimento queremos dizer, claro está, as
formas através das quais determinados
grupos fazem frente às hegemonias he-
terônomas, aos diversos colonialismos
homogeneizadores com que se defron-
tam (SAHLINS, 1997). Basta, para isso,
lembrarmos do célebre caso da “cultu-
ra com aspas” através do qual Manuela
Carneiro da Cunha ilustra detidamente
os percursos pelos quais povos indíge-
nas manejam elementos de suas tradi-
ções, inserindo-os conscientemente em
complexos relacionais nos quais há uma
explícita assimetria de forças (CUNHA,
2009), e com isso fazendo frente a pro-
cessos hegemônicos que avançam sobre
propriedades intelectuais tradicionais e
coletivas. A cultura se torna uma questão
de sobrevivência, desse modo, mas tam-
bém de inteligibilidade, como veremos.
Socialidades, inteligibilidades
e grupos étnicos
Se tomarmos o célebre trabalho de
Mary Douglas, Pureza e Perigo (1966),
veremos de partida que ela se interessa
em entender simbolismos e ritualidades
– especialmente religiosos – não enquan-
to instâncias sociais isoladas, apartadas
da socialidade mesma que compõe os
grupos humanos. Antes, sua intenção é
compreender símbolo e rito como partes
de um complexo integrado, uma totalida-
de de sentido para aqueles seus pratican-
tes. Para a autora, pureza e perigo nas
relações sociais demarcam formas de in-
teligibilidade dos seres humanos com o
mundo que os circunda, e com suas pró-
prias práticas sociais.
Mas as concepções simbólicas
da autora também apontarão para a im-
9
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
portância da cultura como algo perva-
sivo, não isolável, e para as ideias de
purificação e impureza como elemen-
tos constantemente dispersos pela vida
social. As diferenças observadas entre
sociedades “primitivas” e outras mais
complexas, como a Índia bramânica,
repousam antes em suas elaborações
estruturais do par pureza/impureza,
considerando sua análise, do que em
diferenças propriamente de natureza
essencializada. Mostra-se, por exem-
plo, que o estudo das diversas práticas
rituais bramânicas concernentes à puri-
ficação e a suas observâncias, quanto
mais aprofundados, mais conduz à ob-
viedade de estarmos “estudando siste-
mas simbólicos” (DOUGLAS, 1966: 49).
Há aqui uma clara convergência com al-
gumas considerações de Louis Dumont,
para quem o entendimento das divisões
de castas indianas também deveria se
pautar numa contextualização das prá-
ticas analisadas, pois cada situação
social poderia implicar distintas aproxi-
mações dos nativos às concepções de
pureza/impureza (DUMONT, 1979).
A preservação da pureza e o
afastamento do perigo, desse modo,
não corresponderiam a diferentes está-
gios de complexidade – ou “evolução” –
de cada “sociedade” ou “cultura”. Antes,
seriam organizações simbólicas de sen-
tido, por isso de inteligibilidade, por par-
te de tais grupos sociais, tanto do mun-
do em que vivem quanto das práticas
que têm por características. “A análise
do simbolismo ritual não pode começar
até reconhecermos o ritual como uma
tentativa de criar e manter uma cultura
particular um conjunto de pressupostos
através do qual a experiência é contro-
lada” (DOUGLAS, 1966: 157).
Também Cliord Geertz argumen-
tará sobre a potencialidade simbólica,
ou seja, de sentido, que o pesquisador
pode encontrar em sistemas rituais e re-
ligiosos. Longe estaria a concepção de
cultura como conjunto apenas materiali-
zável de práticas e (auto)representações
sociais; com a dimensão de sistema sim-
bólico, o que se congura como cultura
é o complexo jogo de suporte sociocultu-
ral e armação de inteligibilidade interna
de cada contexto e grupo social, desde
aqueles outrora tidos por “primitivos” até
os mais colonialmente “complexos” e
“avançados”.
Com A interpretação das cultu-
ras de Geertz (1973) dá-se outro passo
no sentido de compreender hermeneuti-
camente a ideia de cultura em antropo-
logia, distante mas ainda tributária da
Kultur alemã (ELIAS, 1990). Porque se
é verdade que também os “traços cultu-
rais” e seus “padrões” derivam, de certo
modo, da clássica distinção teórica en-
tre Kultur e civilization, não deixa de ser
verdade que suas formas de atualização
foram diversas, a depender dos autores.
Em Geertz, temos um marco no desao
antropológico à ideia iluminista de abs-
trações universais, sejam nas categorias
tidas por transcendentes – Cultura e So-
ciedade, e mesmo Humanidade – sejam
nas universalizações tomadas a despeito
da densidade dos contextos em que se
apresentam. Não haveria Cultura, Ho-
mem, Sociedade, na concepção interpre-
tativa de Geertz, justamente porque as
iniciais maiúsculas arrebatariam tais no-
ções – válidas, em certos contextos – de
seus espaços vitais, do campo etnográ-
co mesmo em que foram observadas. Ou
construídas, se voltarmos à invenção da
cultura que Roy Wagner aponta na antro-
pologia (2012). Como Sherry Ortner co-
mentará, ainda sobre Geertz:
o foco mais duradouro da antropo-
logia geertziana tem sido [dos anos
60 até os 80, época desta citação] a
questão de como os símbolos mode-
lam os modos em que atores sociais
veem, sentem e pensam sobre o
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mundo ou, em outras palavras, como
os símbolos operam como veículos
de “cultura”. (ORTNER, 2011: 423)
O que resta, portanto, das noções
centrais cultura e sociedade quando,
como vemos, suas histórias estão mar-
cadas pela contestação de teóricos dos
mais diversos? Ou, ainda mais, a que se
dedicaria a investigação cientíca quan-
do, por seu próprio exercício teórico, já
não fosse possível esperar encontrar o
“Universal” da “Cultura” “Humana”? Não
mais padrões culturais como foco de aná-
lise, então, mas sistemas culturais e pa-
drões de inteligibilidade, formas de comu-
nicação e sentido que congreguem, de
maneiras sempre variáveis, os diversos
seres humanos onde quer que estes se
encontrem em companhia uns dos outros
– para não mencionarmos, claro está,
a profusão de relações estabelecidas
entres seres humanos e outros não-hu-
manos, que comporiam relações sociais
tanto com animais (Ingold, 2007) quanto
com outros sujeitos cosmológicos possí-
veis (Durazzo, 2016).
Edmund Leach já apontara que a
“sociedade Kachin” não seria exatamente
“uma sociedade”, mas um complexo de
relações sociais em que indivíduos e gru-
pos próximos dinamizariam uma constan-
te circulação das/pelas categorias sociais
gumsa e gumlao, como a etnograa expli-
ca (LEACH, 1964). A antropologia de Le-
ach evidenciaria, assim, um sistema de
comunicação social, em que a “cultura”
Kachin não representaria formalmente
uma estrutura social modelar, mas per-
mitiria aos diversos atores sociais articu-
larem suas ações – e os entendimentos
sobre as ações – num universo simbólico
compartilhado. Num universo cultural de
inteligibilidade, se quisermos.
É pelo trânsito possível entre ca-
tegorias sociais locais – gumsa e gumlao
– que os próprios birmaneses da região
se compreendem, delineando diferencia-
ções entre si e estabelecendo aqueles
pertencentes a núcleos mais próximos
ou mais distantes de si próprios. Fredrik
Barth, em seus estudos sobre etnicidade,
poderia chamar tais dinâmicas de grupos
étnicos, apontando em suas fronteiras,
ou seja, nos limites que diferenciam uns
dos outros, uma das características et-
nográcas mais marcantes para o tema
(BARTH, 2000). Diferentemente de um
culturalismo mais radical, ou mesmo de
estruturalismos nos moldes de Radclie-
-Brown ou Lévi-Strauss, os grupos étni-
cos de Barth se caracterizariam, anali-
ticamente, por uma condição até então
não muito enfatizada na antropologia: se-
riam, segundo o autor, tipos organizacio-
nais. Nem modelos de estruturas, como
quereriam uns, nem exemplos de está-
gios evolutivos, como defenderiam ou-
tros. Nem, ainda, tipos culturais autôno-
mos porque autossucientes. Justamente
o contrário: os grupos étnicos como tipos
organizacionais se denem e fortalecem
no movimento de relação com grupos e
sujeitos distintos, mantendo na alteridade
seu motor principal.
Agora, a análise antropológica tem
por força de sua tradição teórica e discipli-
nar, como vemos, a possibilidade de arti-
cular uma série distinta e por vezes com-
plementar de análises e metodologias.
Ainda com Leach, sabemos que tendên-
cias empiristas e racionalistas podem mui-
to bem compor corpo teórico e base para
estudos de fôlego, como os do próprio au-
tor (LEACH, 1978). Pensando a dimensão
simbólica da cultura, por assim dizer, Le-
ach não abandonaria a consideração so-
ciohistórica das trocas econômicas e das
instituições. Por sua vez, a ênfase organi-
zacional de Barth não o faz perder de vista
que, assim como a hermenêutica antropo-
lógica de Geertz poderia dizer, grupos ét-
nicos possuem complexidade total para as
vidas e socialidades daqueles sujeitos que
os compõem e que por eles transitam.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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É possível considerar tanto so-
ciedade quanto cultura como conceitos
teoricamente obsoletos, frutos de um
empenho retórico mais do que uma ela-
boração propriamente teórica e analítica
(STRATHERN, 2014). Entretanto, pode-
-se também historicizar as tendências
intelectuais que conduzem as ideias
desde o berço até sua formulação ter-
minológica, com isso desnaturalizando
sua pretensa universalidade (cf. ELIAS,
1990; GEERTZ, 1973). Procedendo
desta maneira, temos possibilidades de
complementar instrumentais teóricos e
analíticos, mesmo metodológicos, de
acordo com as necessidades e opor-
tunidades de nossas pesquisas. Por-
que, já que sabemos ser uma tendên-
cia acadêmica a bagagem “previamente
adquirida” sobre os grupos com quem
trabalhamos (CLASTRES, 2014: 222),
bagagem esta que levamos a campo, o
investigador deve sempre estar aberto
para compreender o que encontra, sob
as mais diversas luzes.
Como a consideração simbó-
lica da cultura e das práticas sociais
nos indicam, como sumarizado aqui,
abrem-se novas vias de compreensão
antropológica a cada novo elemento en-
contrado em campo, bem como a cada
ajuste teórico e terminológico realizado
por parte do pesquisador. Não despre-
zar quaisquer abordagens, por obso-
letas que sejam ou possam parecer, e
também não se apegar irrefletidamente
aos bastiões das ciências sociais – cul-
tura, sociedade, pessoa, religião, quais-
quer que sejam. Eis um procedimento
teórico apropriado para, a nosso ver, a
consideração contextualizada e válida
dos fenômenos sociais sobre os quais
nos dedicamos.
Neste dossiê, que em muito refle-
te a variedade possível de estudos so-
bre cultura e religião, veremos que há
uma oscilação em tudo benéfica para
o campo em questão, seja uma osci-
lação de abordagens e métodos, seja
em problemas de pesquisa e objetos de
análise. O que até aqui dissemos ser
verdade para cultura, i.e., sua mais que
múltipla capacidade de significar conte-
údos simbólicos e formas organizacio-
nais, também se mostra relevante para
o que tomamos por religião. Afinal, é
mais que sabido que religião, enquanto
objeto e conceito, tampouco se presta
a universalizações: é na profusão de
possibilidades sociais que as religiões
religiosidades, práticas religiosas, fe-
nômenos religiosos – se fazem.
Religiões, filosofias e círculos
hermenêuticos
Noutros termos, se uma aborda-
gem ingênua consideraria óbvia a ca-
tegoria “religião”, que abarcaria cristia-
nismo, islamismo, budismo, judaísmo,
xamanismo, etc., a verdade é que, após
todo o século XX de acalorados deba-
tes, os pesquisadores chegam ao século
XXI sem disporem de um consenso mí-
nimo sobre quais os traços essenciais
e elementares que um fenômeno deve
apresentar para ser considerado como
“religioso”. Não obstante tal diculdade
imposta à pesquisa, a Ciência da Reli-
gião tem se rmado como um campo
plural, distinto da teologia por apresen-
tar caráter laico, em constante diálogo
com outras áreas de pesquisa em ciên-
cias humanas e sociais.
Um dos marcos inaugurais da
Ciência da Religião pode ser encon-
trado no livro “O Sagrado”, de Rudolf
Otto (1985), que lançou um vocabulário
que hoje permeia largamente os estu-
dos da disciplina, tal como o conceito
de numen. Contemporâneo a Husserl e
empregando o método fenomenológico,
Otto se dedica à delineação da experi-
ência da consciência do homo religio-
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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sus diante do Sagrado que, segundo o
autor, é caracterizada pelo duplicidade
entre o caráter fascinans et tremendum
– fascinante e aterradora – desse con-
tato com o numinoso. A fenomenologia
do sagrado, fundada na obra de Otto e
expandida por Mircea Eliade, pode ser
apontada como uma as principais cor-
rentes no estudo da ciência a religião
durante o século XX.
Eliade elaborou uma das primei-
ras propostas de organização da disci-
plina da Ciência da Religião encontrada
lançada em 1949, intitulada “Tratado de
História das Religiões” (2010). Segun-
do o historiador romeno, a Ciência da
Religião (Religionwissenchaft) se es-
truturaria, idealmente, em duas áreas
complementares: i) uma que se dedica-
ria ao estudo dos princípios universais
e arquetípicos do fenômeno religioso,
a que chama “hierofanias”, tais como
os deuses celestes, telúricos, o sim-
bolismo das águas, a sacralidade da
vegetação, o tempo cíclico, a temática
da iniciação…; ii) enquanto a segunda
área, que apresentaria metodologia do-
cumental, se especializaria no estudo
de fenômenos específicos, sobretudo
considerados em termos de desenvolvi-
mento histórico.
Apesar de seu diálogo com Jung
e sua participação no Círculo de Era-
nos (ORTIZ-OSÉS et al, 1994), Eliade
sublinha a inspiração platônica (e não
junguiana) de seu conceito de arquétipo.
Desse modo, manifestações de deuses
ligados aos espaços celestes seriam
atualizações dos arquétipos uranianos.
Quaisquer que fossem os fenômenos
religiosos descritos empiricamente, no
interior da história das religiões, esses
seriam atualizações, ainda que diferen-
ciadas e únicas, dos princípios contidos
na arquetipologia geral, a qual teria sido
obtida por meio de uma metodologia fe-
nomenológica e comparativa, da qual
podemos traçar as origens em James
Frazer, Max Muller e George Dumèzil.
É possível que abordagens ba-
seadas na História das Religiões de
Eliade tenham formado a corrente mais
influente no interior da Ciência da Re-
ligião nos Estados Unidos, onde é co-
nhecida por Escola de Chicago. No en-
tanto, logo na década de 1950, diversas
críticas incidiram sobre esse sistema,
visto por muitos como redutor, devido a
lançar a arquetipologia como um a priori
para a compreensão de qualquer fenô-
meno. Ocorre, assim, uma pluralização
de abordagens, tais como a Sociologia
da Religião, a Psicologia da Religião, a
História da Religião, a Geografia da Re-
ligião e a Antropologia da Religião, da
qual a maior parte dos trabalhos no pre-
sente volume se aproximam.
Além das contribuições da cor-
rente fenomenológica, também se faz
relevante mencionar a grande inuên-
cia exercida pela hermenêutica – termo
hoje em dia de impacto quase univer-
sal nas ciências humanas, mas que em
sua moderna concepção é inicialmente
empregado pelo teólogo protestante e
lósofo Scheleiermacher (1999), para
quem o logos se revela na linguagem
por meio do testemunho da experiência.
Ao se propor enquanto método compre-
ensivo, a hermenêutica se opõe ao fun-
damento explicativo da ciência natural.
Promovendo o giro linguístico, portanto,
enfatizando que o testemunho deve ser
objetivado na linguagem, e assumir sua
estrutura, tal metodologia se diferencia
de uma crítica subjetivista das tradi-
ções cartersiana ou kantiana, situando o
acesso à compreensão dos fenômenos
na esteira de uma efetiva interpretação
destes (RICOEUR, 1978).
A multiplicidade possível de in-
terpretações, claro está, permanece em
potência de acordo com as abordagens
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analíticas, as congurações contextuais
dos fenômenos e sua variabilidade tem-
poral, sempre ofertando novos campos
hermenêuticos a novos empreendimen-
tos investigativos. A isto nos debruça-
mos neste volume, apresentando traba-
lhos que, diversos, contribuem para a
recém-consolidada área de Ciências das
Religiões no Brasil, bem como a nossas
várias áreas correlatas.
Dos artigos neste volume
O primeiro texto deste dossiê, de
Fábio Gerônimo Mota Diniz, apresenta
uma comparação entre as figuras de
Medeia e Jesus Cristo. Para tanto, o
autor parte de uma constelação imagé-
tica que caracteriza a representação de
Medeia na literatura grega, a saber, fe-
minina, estrangeira e feiticeira. O autor
prossegue sua análise apontando pos-
síveis nexos de comparação entre as
personagens Medeia e Jesus a partir
da deusa Hécate, da qual Medeia é sa-
cerdotisa, e Maria, mãe de Jesus. Por
fim, o autor nos apresenta o que ele
chama de exercício simbolístico, uma
nova forma de leitura do universo artís-
tico, aplicado às duas figuras centrais
para sua análise.
Felipe Freitas de Souza nos apre-
senta, no segundo texto, uma análise do
discurso de ódio contra muçulmanos na
internet, especicamente no Twitter. Se-
gundo este autor, temos a construção de
imagens estereotipadas que justicam e
fundamentam a prática de violência tan-
to física quanto simbólica tendo como
alvo muçulmanos. O Islam é conside-
rado, nesse esquema preconceituoso,
como monolítico, estático, alheio à nos-
sa sociedade, inferior, nêmesis e ma-
nipulador, sendo justicável, portanto,
a discriminação contra seus éis. Essa
discriminação tem assumido traços cada
vez mais violentos, o que sugere, diz-
-nos o autor, muito mais uma tendência
a barbárie do que à civilização.
O terceiro texto, de Mirinalda
Alves Rodrigues dos Santos, discu-
te acerca do ensino religioso na Base
Nacional Comum Curricular apontando
como a presença do ensino religioso na
referida BNCC serve, no atual cenário,
para legitimar um discurso conserva-
dor e preconceituoso que defende uma
visão limitada do ensino religioso, que
impede os alunos de acessarem a di-
versidade religiosa.
Na sequência, temos o texto so-
bre as festas do Divino Espírito San-
to pelo Brasil, escrito por Débora B. G.
Thomsen, Rosália Maria Netto Prados e
Luci Mendes de Melo Bonini. Neste arti-
go, estudam-se as festas do divino dos
municípios de Mogi das Cruzes-SP, Al-
cântara-MA, Pirenópolis-GO, São João
Del Rei-MG e Vale do Guaporé-MT/RO,
tendo como conceitos chave do estudo
as questões do regionalismo e do patri-
mônio cultural que vão apontar para as
diferenças e variações das festas em
cada cidade. As autoras investigam se
há alguma política consistente para que
se reconheçam tais festas como patri-
mônio cultural nessas localidades.
Dentro do horizonte da midiatiza-
ção voltada para a questão religiosa te-
mos o artigo de Fernanda Lima Lopes,
MIDIATIZADA? Indagações sobre a
abordagem comunicacional da questão
religiosa na era das tecnologias digitais
em rede. Trata-se de um trabalho de
cunho teórico que pretende preparar uma
base para futuras pesquisas de cunho
empírico acerca do tema. Nesse sentido,
ele apresenta algumas denições de ter-
mos religiosos bem como um mapa das
visões teóricas acerca da midiatização.
O sexto artigo, de autoria de
Márcia Zanin Feliciani, Leandra Cohen
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Schirmer e Aline Roes Dalmolin, anali-
sa a atuação do Pastor Silas Malafaia
contra o PLC 122/2006, proposto pela
deputada Iara Bernardi com o objetivo
de criminalizar atos de violência física
e/ou simbólica referentes a sexuali-
dade e gênero. O Pastor Malafaia foi
uma das vozes mais importantes a re-
presentar os interesses conservadores
que entendem este tipo de legislação
como ofensivo à família e à liberdade
de expressão. As autoras analisaram
sua atuação tanto no Twitter quanto no
Facebook no período de discussão e
votação do projeto de lei.
O sétimo artigo, de Robson Dias,
Eliane Muniz Lacerda e Victor Márcio
Laus Reis Gomes, analisa documen-
tos da CNBB da época da ditadura. Os
autores levam em consideração cin-
co casos de religiosos acusados pelo
Estado de praticar atividades subver-
sivas, publicados nos jornais Folha de
S. Paulo, Jornal do Brasil, O Estado
de S. Paulo e O Globo. As perspecti-
vas teóricas adotadas são: Teoria da
Notícia, da abordagem da Hipótese de
Agenda-setting e do enquadramento
de notícias. Os autores nos convidam
a refletir acerca das relações entre
organizações num cenário de contro-
le como era o da ditadura civil-militar,
bem como acerca do papel da Igreja
como geradora de notícias.
Em seguida temos o artigo de Vi-
viane Bernadeth Gandra Brandão, sobre
as Festas de Agosto conforme a Ocia-
lidade Católica. Trata-se de uma análise
da percepção de líderes católicos ociais
que atuam em Montes Claros-MG, a res-
peito da dinâmica contemporânea das
Festas de Agosto que acontecem na ci-
dade. A autora investiga como a institui-
ção lida com as mudanças culturais que
repercutem nas festas, considerando a
maior autonomia do indivíduo diante da
Igreja em nosso tempo.
Por fim, concluindo brilhantemen-
te este dossiê, temos o artigo do profes-
sor Purushottama Bilimoria, The Missing
God of Karl Jaspers (and Heidegger). O
autor nos apresenta um estudo acerca
do modo como Deus é concebido nas
filosofias de Heidegger e Jaspers. De-
pois de uma análise da divindade nes-
ses dois pensadores o autor passa a
dialogar com a escola de pensamento
indiana chamada Nyaya, propondo as-
sim um profícuo diálogo entre tradições
orientais e ocidentais.
Esperamos que este dossiê
possa despertar e enriquecer o debate
sobre religiões no Brasil. Boas leituras
a todos!
Dr. José Abílio Perez Júnior (Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciência da
Religião/UFJF)
Leandro Durazzo (Doutorando – Pro-
grama de Pós-Graduação em Antropolo-
gia Social/UFRN)
Derley Menezes Alves (Doutorando –
Programa de Pós-Graduação em Ciên-
cias das Religiões/UFPB)
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Dossiê
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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O tríplice feminino: Jesus, Medeia
e a identidade do Poeta enquanto uma feiticeira sacricada
El tríplice femenino: Jesus, Medeia
y la identidad del Poeta mientras una hechicera sacricada
The triple feminine: Jesus, Medea
and the Poet’s identity as a sacricial witch
Fábio Gerônimo Mota Diniz
I
Resumo:
Construído a partir de uma comparação entre as guras da personagem
mítica grega Medeia e do salvador e lho de Deus, da mitologia cristã,
Jesus Cristo, o texto pretende apresentar uma faceta possível da
gura do Poeta que nomeamos “feiticeira sacricada”. A ideia é propor
um topos referencial simbólico a partir do qual se compreenderá o
artista, especialmente o Poeta, como uma gura feminina e dotada
de especiais poderes sobre o cosmos, cujo sacrifício a leva a uma
ascensão. Nessa ascensão se revelam uma série de símbolos e
imagens ligadas ao universo da mulher enquanto mãe, estrangeira
e feiticeira, que operam como motores fundamentais do seu fazer
poético, derivado dessa crise instaurada na identidade do eu-criador
diante de seu martírio. Assim, partindo dessa nossa análise dos dois
personagens arquetípicos, faremos a proposta de uma percepção da
feiticeira sacricada como um dos possíveis arquétipos identitários
desse Poeta posto diante do sofrimento.
Palavras chave:
Jesus
Medeia
Poesia
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Resumen:
Construido a partir de una comparación entre las guras de lo personaje
mítico griego Medea y el Salvador y el hijo de Dios, de la mitología
cristiana, Jesús Cristo, el texto tiene la intención de presentar una posible
vista de la imagen del poeta que nombramos “bruja sacricio.” La idea
es proponer un tópos referencial simbólico de que el artista, sobre todo
el poeta, será entendido como una gura femenina y dotado de poderes
especiales sobre el cosmos, cuyo sacricio conduce a una ascensión. En
esta ascensión se revelan una serie de símbolos e imágenes vinculadas
al universo de la mujer como madre, extranjero y bruja, que actúan como
fuerzas fundamentales conductor de su obra poética, derivados de esta
crisis en la identidad del creador frente a su martirio. Así, a partir de
nuestro análisis de los dos personajes arquetípicos, propondremos una
percepción de la hechicera sacricada como uno de los arquetipos de la
posible identidad de esta poeta frente al sufrimiento.
Abstract:
Built from a comparison between the gures of the Greek mythical
character Medea and the savior and son of God, from Christian
mythology, Jesus Christ, the text intends to present a possible sight of
the Poet’s image we named “sacricial witch.” The idea is to propose
a symbolic referential tópos from which the artist, especially the Poet,
will be understood as a female gure and endowed with special
powers over the cosmos, whose sacrice leads to an ascension. In
this ascension are revealed a series of symbols and images linked to
the universe of the woman as mother, foreigner and witch, who act as
fundamental driver forces of her poetic work, derived from this crisis
established in the identity of the creator in the face of her martyrdom.
Thus, starting from our analysis of the two archetypal characters, we
will propose a perception of the sacriced sorceress as one of the
possible identity archetypes of this Poet in the face of suering.
Palabras clave:
Jesus
Medeia
Poesia
Keywords:
Jesus
Medea
Poetry
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O tríplice feminino: Jesus, Medeia
e a identidade do Poeta enquanto
uma feiticeira sacricada
Introdução
Em artigo outrora publicado, par-
timos de uma comparação entre as gu-
ras do herói mítico grego Orfeu e do anjo
caído da mitologia judaico-cristã Lúcifer,
para apresentar uma faceta possível da
gura do Poeta que coincide com a do
anjo-caído, tendo em vista um tópos re-
ferencial simbólico a partir do qual se
compreende o artista, especialmente
o Poeta, como um herói que, rebela-
do contra certa instância de poder, so-
fre uma queda ocasionada por um erro
inescapável. Àquele momento propuse-
mos uma leitura incompleta, visto que
para o fechamento de um sistema sim-
bólico, surgira uma demanda pela ins-
tância dialógica complementar, ou seja,
das guras que divergiriam do sistema
proposto. A urgência de complementa-
ção surge, ainda, do notável trecho que
destacamos de poesia do brasileiro Car-
los Drummond de Andrade, ao fazer-nos
enxergar pelo famoso “Poema de sete
faces” outra faceta de Jesus Cristo:
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco
(ANDRADE, 2013, p. 11)
Apontamos a explícita referên-
cia do Poeta ao clamor de Jesus Cristo
que, diante de destino funesto destino
da crucificação, afirma no Evangelho
segundo São Marcos (15:34) e também
segundo São Mateus (Mt. 27:46)
II
:
[46] περὶ δὲ τὴν ἐνάτην ὥραν
ἐβόησεν Ἰησοῦς φωνῇ μεγάλῃ
λέγων “Ἐλωί ἐλωί λεμὰ σαβαχθανεί;”
τοῦτ᾽ ἔστιν “Θεέ μου θεέ μου, ἵνα τί
με ἐγκατέλιπες;”
Acerca da nona hora, exclamou Je-
sus em voz alta, dizendo “Eloí Eloí,
lemá sabakhthaneí?”, isto é, “Meu
Deus, meu Deus, por que me aban-
donaste?”
A referência, no texto grego, Ἐλωί
ἐλωί λεμὰ σαβαχθανεί [Eloí, Eloí lemá
sabakhthaneí] é uma transcrição do he-
braico, associada ao Salmo 22, que diz
“אלהי אלהי למא שבקתני
III
” [Eli Eli lama aza-
vtani]. Cristãos tradicionalmente identi-
cam este salmo como um prenúncio da
crucicação do messias e, de tal modo,
de seu martírio em prol da humanida-
de. Propusemos, no texto em questão,
observar uma ambiguidade construída
por Drummond no poema, pois, sendo
o poema de um gauche, este anjo tor-
to poderia igualmente ser, Lúcifer, que
fora punido por Deus justamente por
não poder ser ele mesmo Deus. De tal
modo, espelha-se tanto o lho de Deus
e salvador da humanidade quanto o anjo
caído,movimento que, como observa-
mos, por último, encontra lugar no pró-
prio Apocalipse, quando Cristo se equi-
para à Estrela da Manhã (KELLY, 2008,
p.9), símbolo luciferiano por excelência.
A despeito de possíveis outras
interpretações, tínhamos como objeti-
vo a leitura simbólica imagética do du-
plo Lúcifer-Orfeu como sendo um íco-
ne para a imagem do Poeta enquanto
essa figura caída, que de sua queda
faz a arte. E, de tal modo, abre-se o
mesmo caminho da duplicidade judai-
co-cristã-helênica em relação ao apro-
veitamento da contraparte imagética
de Orfeu: a feiticeira Medeia
IV
.
Para implementar essa leitura,
assumiremos uma perspectiva similar à
assumida no outro texto, fazendo uma
analogia entre as figuras a partir de
suas constelações simbólicas, ou seja,
20
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dos elementos imagéticos que dialo-
gam entre si. Como observa Gilbert
Durand, “os símbolos constelam por-
que são desenvolvidos de um mesmo
tema arquetipal, porque são variações
sobre um arquétipo (DURAND, 2012, p.
43)”. No caso, propusemos naquele tex-
to um arquétipo, o do Poeta enquanto
anjo/herói caído, e concluímos que “a
poesia como ato de desobediência que
revela, ao mesmo tempo, uma angús-
tia existencial”. A partir dessa premissa,
a reflexão que dialoga Medeia e Jesus
deve, da mesma forma, desenhar uma
relação analógica/alegórica entre sím-
bolos que constelem em favor de um
tópos. Assumimos, de início, as carac-
terísticas de Medeia que convergem
na sua representação dentro da litera-
tura grega: o feminino, o estrangeiro e
o feiticeiro
V
. Nesse sentido, precisamos
analisar essas três premissas para en-
tender se há a possibilidade do con-
traponto ao binômio Orfeu-Lúcifer em
Medeia-Jesus. Como o título do artigo
propõe, a natureza mágica será o pon-
to chave, mas não abandonaremos as
outras perspectivas pois, de fato, toda
a construção dessas personagens pode
ser encarada como um diálogo simbóli-
co religioso-poético e, ademais, confi-
gurar um novo tópos.
Feminina
A imagem que temos de Jesus
Cristo – homem caucasiano, geralmen-
te louro e de olhos claros, com cabelos
longos e lisos e barba –, consagrada
pela iconografia tradicional, vem sendo
muito questionada em tempos recentes-
VI
. Porém, em geral, há pouco a se ques-
tionar no que diz respeito à percepção
de seu gênero, masculino. A despeito
de questionamentos sobre sua relação
com mulheres – essencialmente Maria
Madalena – popularizada seja por teó-
ricos conspiratórios, seja pela literatura
popular. E é claro que não parece haver
motivos para se questionar sua repre-
sentação enquanto homem.
Em 2015, a atriz Viviany Belebo-
ni causou polêmica durante a 19ª Pa-
rada do Orgulho LGBT, em São Paulo,
ao aparecer crucicada, encenando o
martírio de Jesus Cristo que é o pilar da
religião cristã. A polêmica deriva, essen-
cialmente, do fato de Viviany ser tran-
sexual, e de sua encenação ser um ato
de protesto contra a violência constante
contra grupos LGBT. Utilizando-se da
iconograa associada à gura símbolo
do cristianismo, ela pretendia, em suas
palavras, usar “as marcas de Jesus, que
foi humilhado, agredido e morto. Justa-
mente o que tem acontecido com mui-
ta gente no meio GLS, mas com isso
ninguém se choca (DANTAS, 2015) ”.
A cena apresentada por Viviany dialoga
particularmente com a peça O Evange-
lho segundo Jesus, rainha do céu, de Jo
Cliord, na qual a autora propõe a ideia
de um Jesus que volta ao mundo como
transexual. Assim como o protesto de Vi-
viany, a peça de Cliord foi alvo de seve-
ras críticas já na sua primeira apresenta-
ção, em 2009, e não foi diferente quando
apresentada, em 2016 e 2017, sob a di-
reção de Natalia Mallo. Por m, podemos
ainda mencionar entrevista feita com a
primeira pastora transexual da America
Latina, Alexya Salvador, que questiona o
gênero de Jesus para defender sua po-
sição enquanto sacerdotisa, armando
que “Jesus Cristo foi o primeiro homem
trans (DECLERCQ, 2017)”. Ela parte da
trindade, o Pai, o Filho e o Espírito San-
to, para apontar que, se Deus enviou
seu lho para a terra ele, Jesus, “tinha
o gênero divino, correto? Então, quando
ele desceu para a terra ele passou a ter
o gênero humano”. Nessa proposição,
Jesus, Deus e toda divindade seria, em
suma, agênera, ou ao menos a noção do
que é gênero para as divindades seria
algo distante de nossa noção de gênero.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Claro que pode soar, ao leitor in-
teressado em um texto acadêmico, que
nossas interlocutoras não serviriam de
fundamento para propor uma visão di-
versa do gênero do filho de Deus. E, de
fato, não é o que esse artigo propõe,
em si, mas sobre o foco do texto nos
debruçaremos depois. O que propor-
mos, aqui, é uma justificativa para se
pensar além da iconografia e, claro, não
ignorar a implicação política dessa pro-
posta. Não obstante, o interesse maior
de todas as interlocutoras listadas aci-
ma é defender a presença do corpo po-
lítico da trans, renegada que é ao es-
paço do “anormal”, e para tanto usar a
figura sacra de modo blasfêmico serve
ao propósito provocativo. O que une
Beleboni, Clifford e Salvador é a disputa
política pela participação de seus cor-
pos no contexto de uma sociedade que
ainda mata as transexuais apenas por
serem. E nisso, claro, este texto provo-
ca, também, ao se iniciar com tais dis-
cursos – as mencionando, defendemos
suas presenças e nos alinhamos politi-
camente a elas. No entanto, é apenas
essa a perspectiva possível quando se
fala do gênero de Jesus?
Não é, e uma leitura distante tem-
poralmente, mas talvez próxima contex-
tualmente, é a de Juliana de Norwitch,
anacoreta e mística inglesa que viveu
no século XIV. Partindo de trecho do li-
vro de Isaías, 49: 15, em que o profe-
ta compara o amor de Deus ao de uma
mãe pelo seu filho, Juliana apresenta,
em seus escritos, uma imagem de Je-
sus que o aproxima de uma mãe, e a re-
lação mística real que se pode ter com
ele seria a mesma entre um filho e sua
mãe.E, segundo Bynum, essa não seria
a única leitura que aproxima as figuras
divinas da figura da mãe; ela apresen-
ta ao menos oito autores cristãos, to-
dos homens, do século XII. Para ela, a
comparação tem fundamento em dois
aspectos fundamentais:
Em primeiro lugar, as imagens assu-
mem certos estereótipos sexuais -
isto é, elas mostram que, para esses
escritores religiosos, certas caracte-
rísticas de personalidade foram vis-
tas como femininas, e outras carac-
terísticas como masculinas. Ao longo
desses textos, gentileza, compaixão,
ternura, emoção e amor, nutrição e
segurança são rotuladas como femi-
ninas (ou “maternas”); autoridade,
julgamento, comando, rigor e disci-
plina são rotulados como masculinas
(ou “paternas”); instrução, fertilidade
e criatividade estão associadas a
ambos os sexos (seja como gera-
ção ou como concepção). [...] Um
segundo padrão une essas imagens
o que é tão óbvio quanto o primei-
ro. Tanto em referências a guras de
autoridade terrenas quanto em re-
ferência a Deus, a imagem materna
é uma imagem de dependência, ou
união ou incorporação. Os seios e a
nutrição são imagens mais frequen-
tes nesta literatura do que a concep-
ção e o parto. E onde o nascimento
e o útero são imagens dominantes,
a mãe é geralmente descrita como
a que concebe e carrega a criança
no seu ventre, não como aquela que
expulsa a criança no mundo, sofren-
do dor e possivelmente a morte para
dar vida. Concepção e parto, como
a amamentação, são, portanto, ima-
gens principalmente de fertilidade,
retorno ou união, segurança, prote-
ção, dependência ou incorporação,
não imagens de alienação, sacrifício
ou emergência no sentido da sepa-
ração. As referências a Deus como
mãe geralmente ocorrem, não no
contexto de castigo dos pecadores
ou elaboração do abismo entre hu-
mano e divino, mas sim como par-
te de uma imagem geral do crente
como criança ou iniciante, totalmen-
te dependente de um Deus amável
e amoroso (BYNUM, 1977, p. 269
VII
).
22
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O que Bynum aponta é fundamen-
tal para que compreendamos a natureza
ambígua, mesmo para esses antigos es-
critores cristãos, da divindade. Seja en-
quanto Deus, seja no corpo de Cristo, en-
contramos a presença de características
que apontam para uma forte presença do
feminino em mais de uma dimensão, mes-
mo se dispensadas as percepções estere-
otipadas e misóginas desses escritores.
Acrescentamos, ainda, o destino
de Cristo, que é entregar seu corpo em
sacrifício. Antes mesmo de ser deniti-
vamente sacricado, Cristo se oferece a
seus apóstolos (todos homens) em ban-
quete do qual todos se alimentam de seu
corpo e sangue. Essa narrativa, que funda
o evangelismo, apresenta a imagem de
um sacrifício alimentar em que o sacri-
cado é um ser que, mesmo não sendo um
animal, possui uma natureza diversa da
humana, mesmo que a um humano se as-
semelhe. A comunhão do corpo de Cristo
se dá enquanto alimento e, não por aca-
so, temos matéria sólida e líquida: como
a mãe que é, Cristo se doa a seus lhos e
os alimenta. É pela nutrição que acontece
a união, a comunhão, e como aponta By-
num essa comunhão recupera a imagem
desse Deus amoroso e maternal da qual
Cristo é o símbolo mais caro.
E é o aspecto maternal um dos mais
marcantes do feminino no mito de Medeia.
Segundo a fonte tradicional, a tragédia de
Eurípedes, quando traída por Jasão, Me-
deia decide vingar-se assassinando seus
próprios lhos. O ato choca, obviamente,
pelo peso que existe em uma mãe vitimar
sua própria prole, e pela natureza da deci-
são estar atrelada à vingança, o que pode-
ria supostamente transformar o crime em
um ato praticado por motivo torpe. Nesse
sentido, cabe retomar as palavras de Me-
deia na obra do tragediógrafo grego:
Redireciono a fala neste ponto – 790
pranteio o fato a ser perfeito: mato
meus lhos... e ai de quem car na frente!
Arraso o alcácer de Jasão e sumo,
pela senha fatal contra os meninos
que mais amo no mundo, sob o crime 795
que mais que nenhum outro agride o pio:
o riso do inimigo fere o íntimo.
A vida avulta? Avilta, se há vacância
de lar, pátria, refúgio contra os sujos.
Que erro crasso deixar o paço pátrio, 800
cair na logorreia de um helênico,
o qual, se deus quiser, será punido!
Não mais sorri aos jogos dos meninos,
nem cria outra linhagem com sua ninfa:
meus fármacos fatais hão de matar 805
terrivelmente a terribilíssima.
Não queiram ver em mim um ser eumático
ou ébil. Tenho outro perl. Amor
ao amigo, rigor contra o inimigo;
eis o que sobreglorica a vida! 810
(EURÍPIDES, vv. 790-810
VIII
)
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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De certo modo, mesmo que a ati-
tude seja fruto de ciúmes e uma vin-
gança contra a traição, esta não está
restrita ao fato de Jasão se casar com
outra mulher, mas à promessa feita a
Medeia. Sua postura diante do ato de-
pende muito mais do seu status como
estrangeira que confiara ao herói seu
futuro e, por ele, abandonara tudo que
lhe era sagrado, que de ciúmes pro-
priamente dito. Antes, porém, de par-
tirmos para a análise desse aspecto,
ainda precisamos abordar, de modo
comparativo, a natureza feminina de
Jesus e Medeia.
Medeia, assim como Cristo, é
mãe, como observamos. No entanto, ao
invés de sacricar a si em prol de seus
lhos, ela sacrica os lhos em prol de
sua honra manchada, em um ato con-
denável. Porém, claro, trata-se de um
sacrifício se considerarmos o status do
amor materno como algo inalienável e,
nesse sentido, ambas, Jesus e Medeia,
são mães que sofrem a dor de se sa-
cricarem, quaisquer os motivos. Além
disso, tendo em vista que Jesus é, ao
mesmo tempo, lha e o próprio Deus, po-
demos considerar sua premeditada en-
trega como um sacrifício da mãe-Deus,
e é sob essa ótica que muitas vezes é
feita a lamentação religiosa que conduz
à compreensão da comunhão como um
ato de remissão dos pecados. Deus en-
tregou sua lha, Jesus, para ser morta
em prol da humanidade – que, por seus
atos funestos, já havia sido condenada
antes, pelo dilúvio –, e esse seria um ato
benevolente, de amor. De certo modo,
mesmo que condenável, o ato de Medeia
também é o ato amoroso, mesmo que
seja do abandono do amor – “Amor/ao
amigo, rigor contra o inimigo;/eis o que
sobreglorica a vida!”. Se eles não têm
consciência do crime da mãe, os lhos
de Medeia, como Jesus, não possuem
livre-arbítrio para negarem seu destino.
Além disso, o ato de assassinato
dos lhos, considerados como extensão
do corpo feminino, também é um ato de
sacrifício. Medeia entrega parte de si,
seu próprio sangue, à morte:
Está traçado, amigas: mato os lhos
e apresso a fuga. Não existe um ser
– um ser somente! – que suporte ver
o braço bruto sobre os seus. Não tardo:
o m dos dois se impõe e a mãe os mata, 1.240
se é isso o que há de ser. Ó coração-
-hoplita, descumprir esse ato horrível,
se ananke, o imperativo, o dita? Empunha,
mórbida mão, o gládio, e mira o triste
umbral de tânatos! Deslembra o amor 1.245
de mãe, não te apequenes! Na jornada
brevíssima de um dia, não te atenhas
ao fato de que deles és a origem,
posterga tuas lágrimas! Amaste
quem dizimas. Funesta a moira mesta. 1.250
(EURÍPIDES, vv. 790-810)
24
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Ao dizer, em Eurípedes, “amaste
quem dizimas”, Medeia entrega seus lhos
à morte, como Deus à sua lha Jesus. E não
se questiona seu amor, pois a própria Me-
deia arma categoricamente que “Não exis-
te um ser/– um ser somente! – que suporte
ver/o braço bruto sobre os seus”. A despeito
de Deus ser questionado por Jesus acerca
de seu abandono, sabemos que ela conhe-
ce essa dor e a valoriza por outro evento:
quando pede a Abraão que sacrique seu
lho, Isaque, por ela. Porém, mãe, ela envia
o anjo para que interrompa o ato, visto que
percebera no pai a disposição para consu-
má-lo. A morte do lho, em resumo, é um
ato sagrado, de entrega e amor.
Podemos, ainda, destacar a traição
como movimento fundamental nas duas
narrativas. Medeia e Jesus caminham
para seus sacrifícios por serem traídas,
ambas, por um homem (Jasão/Judas). A
traição de Jesus possui traços de uma re-
lação mais íntima, podemos acrescentar,
com o famoso beijo narrado nos evange-
lhos. Esse beijo,καταφιλέω/kataphiléo, ou
seja, um beijo terno e amoroso, é o sinal
de Judas aos soldados de que aquela
pessoa era Cristo. Porém, mesmo que o
beijo seja um sinal, o evangelho de Ma-
teus chamá-lo de kataphiléo intensica o
ato, dando ares de um amor terno entre os
dois, de carinho, e não de dissimulação.
De fato, se destilarmos a imagem, temos
um domínio da relação amor-traição, tanto
em Medeia como e Jesus.
E, ainda, é impossível esquecer
que um dos dados marcantes e funda-
mentais da gura de Cristo é justamente
o seu nascimento de uma virgem, Maria, a
gura central do culto feminino dentro do
cristianismo. A virgindade associada à pu-
reza é um dos traços denidores de várias
culturas ocidentais, e não é forçoso pen-
sá-la sob a ótica da dominação masculina
sobre a mulher, sendo a consumação do
matrimônio um ato celebrado como a pos-
se denitiva da mulher por seu esposo.
Em que valha, ainda, a iconograa asso-
ciada ao ato – o sangramento, a entrega,
a união – queremos, contudo, destacar a
aproximação que Tereza Virgínia Ribeiro
Barbosa faz entre Maria e Medeia:
É tempo agora de abordar a gura de
pensamento que nos dirige, o parado-
xo que ca claro a partir da antítese
que escolhemos no título. Medeia e
a Virgem-Mãe Maria. Dois absurdos:
aquela, que com sua face sombria e to-
talitária advinda de uma antiga divinda-
de feminina, gera para matar e aquela
outra que, sendo gente comum, mulher
virgem, é também mãe de uma divin-
dade. Ela própria, outro absurdo, não
chega a ser deusa-mãe, mas é tão-so-
mente mãe da divindade.
Medeia, constituída a partir do poder,
se coloca na disputa, na repressão,
na neutralização do outro e é por isso
mesmo essencialmente autocentrada;
a virgem-mãe se coloca num lugar de
fronteira ou numa espécie de fusão
de condições opostas, de incorpora-
ções de diferenças, lugar onde se en-
contram o dominador e o subjugado
(BARBOSA, 2013, p. 6-7).
Escolhida para carregar a lha da
divindade, Maria é desprovida de vontade
própria – motivação, é bom que se diga, da
natureza misógina e opressora de muitos
cultos cristãos na lida com as mulheres –
e seu ato é um “absurdo”, como observa
Barbosa, posto que não poderia conceber
enquanto virgem. Ao ser violada por Deus
– aí sim, em sua natureza masculina, repre-
sentada pelo anjo –, Maria se aproxima das
tantas jovens donzelas estupradas por Zeus
na mitologia grega. Porém, desde que rece-
be a sua “tarefa”, ela sabe que seu destino
é apenas do de receptáculo da rebenta que
irá, sacricada, redimir a humanidade. Ape-
sar de completamente diferentes em seus
objetivos nais, destaca-se a determinação
de ambas em cumprirem seus papéis, em
se entregarem – e a seus lhos.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Estrangeira
A que se deve a fúria de Medeia?
Flávio Ribeiro de Oliveira, na introdução
de sua tradução da Medeia, observa que a
origem do sentimento de Medeia não está
restrita ao ciúme, como comentamos aci-
ma, mas está diretamente relacionada ao
conceito grego de timḗ, “honra”, que as-
sume nesse contexto o sentido de “valor
atribuído a alguém por seus iguais”. Assim
ele apresenta a motivação do ódio de Me-
deia pelos atos de Jasão:
[...] Medeia, neta do deus Sol e lha do
rei da Cólquida, fora honrada e respei-
tada em sua comunidade. Mas fugiu
com Jasão, depois de trair seu pai e
sua pátria; na fuga, matou seu irmão
e cometeu uma série de crimes hor-
rendos – tudo isso por amor de Jasão,
para ajudá-lo e para honrá-lo. Ao trair
seu país e sua família, perdera irre-
mediavelmente a timé de que fruía na
Cólquida. Para ela, não havia possibi-
lidade de retorno, seus atos tornaram
inviáveis a volta para casa e a reassun-
ção daquela timé. Medeia sacricou
denitivamente tudo o que tinha por Ja-
são; de sua perspectiva, Jasão deve-
ria, em troca, atribuir alto valor, deveria
honrá-la e fazê-la honrada em Corinto,
cidade em que se refugiaram: é um
princípio de reciprocidade. Mas ela é
frustrada justamente nessa timé a que
teria direito: Jasão, em vez de honrá-la,
a troca pela lha de Creonte, rei de Co-
rinto (OLIVEIRA, 2007, p. 13).
A reação violenta de Medeia, de tal
modo, tem origem na traição de Jasão à
sua honra e a seu juramento. É uma rela-
ção de troca entre estrangeiros mediada
por uma relação amorosa que se sustenta
a ação de Medeia. Nesse sentido é inevi-
tável e substancial o fato de que a hospita-
lidade oferecida a um estrangeiro e a sub-
sequente viagem para longe de sua casa
selam o destino de Medeia.
A iconograa do nascimento de Cris-
to, celebrada anualmente, é amplamente co-
nhecida e dispensa pormenores. A despeito
disso, como no caso de Medeia, sobressa-
em as tópicas da hospitalidade e da viagem:
Maria concebe Jesus fora de sua cidade
natal, em Belém, em uma manjedoura pois
não encontra hospedagem. Ambas, Medeia
e Jesus, são estrangeiras quando atingem
sua vida adulta e vivem seus sacrifícios e,
mesmo que para a segunda a natividade
seja menos problemática, seu nascimento
é fundamental como elemento de congre-
gação. Além de seus pais, viajam em busca
da anunciação do messias os famosos três
reis magos, guras alegóricas representan-
tes do Oriente e que cumprem uma profecia
anunciada nos Salmos, 71:11, “E o adorarão
todos os reis e todas as nações o servirão
IX
”.
Além disso, a criança é visitada por outros
pastores e admirada pelos próprios animais,
o que, podemos considerar, demonstraria
que nela residiria a comunhão entre todos
os seres e todas as nações.
Porém podemos alargar o campo
semântico da noção de “estrangeiro”, para
abarcar outro evento: a ascensão. Medeia,
após seus atos trágicos, é levada no carro
do sol para os céus; Jesus ressuscita, ao ter-
ceiro dia após sua morte, e vai viver ao lado
de Deus – ou voltar à sua essência enquanto
Deus, se considerarmos que ela é a própria
divindade. Nos dois casos, a ascensão tem
um papel fundamental se considerarmos sua
dimensão imagética. Como aponta Durazzo:
Na esteira de Bachelard, Gilbert Du-
rand aponta as diferentes valorizações
que as imagens ascensionais podem
apresentar. Se, por um lado, elas in-
dicam o impulso rumo ao sagrado, o
caminho que liga chão a céu é capaz
de assumir diversas posturas éticas.
Daí que, além da direção do sagrado, a
verticalidade também se liga à direiteza
moral, à hierarquia – política monárqui-
ca, litúrgica ou militar –, ao monoteísmo
e às práticas de elevação que entrela-
26
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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çam pureza, castidade, moral e santi-
dade (DURAZZO, 2013, p. 55).
Assim, a ascensão de Medeia/Je-
sus traz um reencontro da divindade em
carne com sua essência divina, ou seja,
religa o humano ao divino. É ritualístico
esse movimento, com certeza, e impreg-
nado de sagrado – como o é a catábase
de Orfeu/Lúcifer. E, se os efeitos dessa
ascensão não são os mesmos, são ao me-
nos aproximáveis: Cristo retorna para os
céus, ao lado de sua mãe Deus para ser
rainha e divindade, enquanto a ascensão
traz a redenção de Medeia, que após seu
ato de sacrifício não teria mais lugar nesse
mundo. De certo modo, em analogia com
o aspecto estrangeiro de ambas guras,
Medeia e Jesus são ambas estranhas em
relação aos mundos de que fazem parte,
seja por serem guras desaadoras da or-
dem, seja por serem ambas detentoras de
poderes que extrapolam a naturalidade.
Se considerarmos o caráter de es-
trangeira, portanto, Medeia e Jesus são con-
sideravelmente diferentes, mesmo que com-
partilhem certas dimensões imagéticas e
simbólicas. Há que se considerar, no entan-
to, que ambas são descendentes de divinda-
des e sua relação com essas potências – e
com outras guras que podem assumir pa-
pel similar, ao menos alegoricamente – en-
caminha denitivamente nossa análise para
o aspecto poético da nossa comparação.
Feiticeira
Ao agir enquanto sacerdotisa da deu-
sa Hécate, Medeia utiliza-se de phármakon,
ou seja, de preparados mágicos e poções,
motivo pelo qual no poema Argonáutica, de
Apolônio de Rodes, poema épico do séc. III
a.C., será chamada de polyphármakon (III,
v. 27; IV, v. 1677) “a de muitos fármacos”.
É por meio desses fármacos que Medeia
irá garantir que o herói Jasão conquiste o
poder de subjugar terríveis desaos e con-
quiste o velocino dourado, seu objetivo na
viagem ao lado dos Argonautas. E é com os
mesmos fármacos que ela conduzirá à mor-
te Pélias, tio do herói e usurpador do trono
de Iolco, do qual Jasão seria príncipe, por
direito. Por m, será pela sua habilidade de
feiticeira que ela assassinará também o rei
Creonte e sua lha Creúsa, futura esposa
de Jasão, usando de uma túnica impregna-
da de seus fármacos.
Jesus pode ser, para todos os efeitos
e em larga medida, uma feiticeira. Suas prá-
ticas, chamada de milagres, envolvem cura,
exorcismo, multiplicação de itens, ressurrei-
ção e outros eventos fantásticos. No entan-
to, Jesus não se vale de phármaka para tal,
mas de seus dons derivados de sua descen-
dência divina, o que poderia afastá-lo, em
nossa comparação, de Medeia. Podemos
manter a comparação, ainda, pois Medeia
é lha de Eetes, senhor da Cólquida, e com
isso descendente direta do deus sol, Hé-
lio. Essa descendência é evidenciada mais
de uma vez ao longo das representações
clássicas de Medeia, especialmente com o
destaque dado a seu olhar. Em Apolônio, o
poder do olhar de Medeia recebe destaque
em III, vv. 886-7, quando é dito que as pes-
soas se afastavam para evitar olhar direta-
mente para seus olhos; em IV, vv. 727-29,
quando Circe, irmã de Eetes e lha de Hélio,
portanto, busca identicar seu parentesco
com a sobrinha pelo brilho no olhar; e, por
m, quando ela derrota o gigante de bron-
ze Talos, no Canto IV, que a própria Medeia
apresenta como um feito individual, de seus
poderes apenas (IV, vv. 1654-68).
Por outro lado, Jesus não intera-
ge, em nenhum momento, com intenções
destrutivas. Enquanto o phármakon no
contexto tradicional da feitiçaria de Medeia
seria, ao mesmo tempo, remédio e vene-
no, Jesus utiliza seu dom apenas para a
cura, nunca para provocar qualquer tipo de
dano mesmo a seus maiores inimigos. É de
sua natureza, visto que é a lha de Deus
e herda seu amor innito e incondicional,
27
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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resumido pelo seu mandamento de amar
a todos e dar a outra face a um inimigo.
Nesse sentido, mesmo que considerásse-
mos como phármaka as atitudes de Jesus,
ela não pode ser como tal admitida por não
ter essa dupla função, sendo restrita em
sua atuação enquanto feiticeira unicamen-
te voltada para o bem, para a cura. Além
disso, no capítulo nono do livro do Apoca-
lipse, os feiticeiros, phármakos, são conde-
nados duas vezes, sendo colocados entre
aqueles atingidos por uma segunda morte,
a condenação eterna da alma, por não se
arrependerem de seus pecados.
Assim, por um lado, tanto Medeia
como Jesus podem ser observadas en-
quanto feiticeiras que se valem de sua as-
cendência divina (Hélio/Deus) para realizar
seus milagres/magias. Como feiticeiras,
elas desaam a ordem e fazem uso de
suas habilidades para contrariar instâncias
de poder (Eetes/Jasão de um lado, Roma
do outro), e por isso são condenadas – Me-
deia, punida com o abandono de Jasão, se
torna uma assassina; Jesus, com o destino
de sofrer em prol da humanidade, é morta
de forma horrenda. E, como um acréscimo
fundamental, lembramos ambas ascendem
após o sacrifício realizado, igualando-as
em sua natureza divina. Porém, por outro
lado, o que Jesus faz na bíblia não pode
ser considerado phármakon, pois não ape-
nas ele não se vale de itens e combinações
de produtos para realizar seus milagres,
como estes são condenados pela própria
escritura, indicando que se há similaridade
aparente, esta se dá tão somente no nível
analógico, não diretamente.
A Hécate e as Três Marias
Mas há uma segunda dimensão
da interação com o mundo sobrenatural,
muito importante para a compreensão da
gura de Medeia, que é sua dedicação ao
sacerdócio de Hécate. Essa divindade,
como observa Prado, possui uma série
de elementos simbólicos aos quais iremos
nos direcionar para reetir sobre a perso-
na poética que converge Medeia e Jesus:
Devido à sua identicação com Ártemis,
Hécate tomou de empréstimo, num pri-
meiro momento, algumas das funções
daquela deusa, por isso, às vezes Héca-
te era considerada uma divindade lunar
e ctônica, o que lhe conferiu, ao mesmo
tempo, um poder sobre a vegetação
e sobre o mundo subterrâneo (em seu
aspecto ctoniano) e sobre as águas do
mar (em seu aspecto lunar). Seu culto irá
reetir sua dupla natureza, pois, por um
lado, ela tomava parte em cerimônias
mágicas, por outro, também nos ritos o-
ciais e familiares. [...]Hécate tinha duas
iconograas: a primeira representava-a
apenas em uma forma feminina simples
e sem atributos particulares; a segunda,
sob uma forma tríplice, isto é, possuindo
três corpos e três cabeças mescladas
entre si, ou apenas um corpo com três
cabeças, constituindo uma representa-
ção das três fases visíveis da Lua: cres-
cente, cheia e minguante (cf. LAVEDAN,
1931: 496-498; e Ramous, in: TIBULO,
1988: 238) (PRADO, 2011, p. 14, n. 5).
Esta representação de Hécate de
três faces, talvez a mais famosa, traz uma
série de simbologias que podemos asso-
ciar diretamente ao feminino, como a re-
lação com a terra, com as plantas e com
a lua e suas fases. Atributos associados
ao imaginário que circunda a Deusa Mãe,
podemos pensá-los em uma chave muito
interessante, se nos atermos ao séquito
feminino de Cristo.
Maria, a mãe de Jesus, possui
em sua simbologia estreita relação com
as divindades pagãs que formam o ar-
quétipo da Grande mãe, como observa
Flávia Marquetti:
Maria apresenta, enquanto mãe divina,
em sua iconograa, os mesmos sím-
28
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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bolos que as deusas pagãs: a maçã,
o marmelo, a romã, ou o trigo/cereal,
símbolos da fertilidade e fecundidade
da terra; a lua crescente, que ao mes-
mo tempo se liga ao chifre do touro, seu
consorte, bem como à foice que o emas-
cula nos rituais de fertilidade e indica o
tempo cíclico da colheita; a(s) estrela(s)
que caracteriza(m) o solstício de verão
e a coroa, geralmente de estrelas, sím-
bolo de sua “realeza”, mas também de
Ariadne, esposa de Dioniso; a serpen-
te, epifania da grande Deusa Mãe; as
rosas brancas de Ártemis e/ou as ver-
melhas de Afrodite, bem como os lírios
consagrados às deusas ctônicas, como
Perséfone e Deméter, a Afrodite Negra,
ou ainda à Ártemis-Hécate. [...] Mas,
dentre todos esses elementos, o seio
nu,símbolo primordial da Deusa Mãe,
enquanto geradora e nutriz, e omenino,
fruto desse poder gerador, são os emble-
mas da Virgem Mãe,quer seja ela cristã
ou pagã (MARQUETTI, 2013, p. 248).
Assim como Medeia, portanto, Jesus
é relacionada diretamente a uma gura que
representa a divindade do feminino mater-
no. Como observamos, Jesus é também
mãe, simbolicamente, e nisso se relaciona
com Medeia, cuja maternidade é fundamen-
tal ao cumprimento do mito trágico. Há que
se salientar, ainda, que Maria compartilha
segundo Marquetti uma relação com Ariad-
ne, esposa de Dioniso; enquanto divindade
dúbia, trans ou bissexuada, Jesus possui
íntima relação com o Deus grego em sua
iconograa – o vinho, o duplo nascimento –
que conguram uma constelação simbólica
que Durand (2012, p. 300) analisa, a simbo-
logia do Filho que justica sua androginia:
O símbolo do Filho seria uma tradução
antiga do androginato primitivo das di-
vindades lunares. O Filho manifesta
assim caráter ambíguo, participa da
bissexualidade e desempenhará sem-
pre o papel de mediador. Que desça
do céu à terra ou da terra aos infernos
para mostrar o caminho da salvação,
participa de duas naturezas: masculi-
na e feminina, divina e humana.
De tal modo, a androginia e a dupla
natureza sacro-terrena andam juntas pois
a gura de Jesus é a própria ambiguida-
de, o que explica pois porque, enquanto
Filha, Jesus é ao mesmo tempo Mãe. Por
um lado, Jesus é a Mãe que nutre e guia,
e a Filha, que se sacrica e salva. Por ou-
tro Medeia, em mesma chave, é ao mesmo
tempo a lha deserdada motivo de seu
sofrimento – e Mãe que deserda. Se Jesus
é uma conjugação de símbolos femininos
de acolhimento, Medeia é a tragédia mater-
na da rejeição. E, nesse sentido, dialogam
com as suas deusas-mãe Hécate/Maria.
Outra chave fundamental analógica
é a tríplice natureza. Jesus é parte de uma
trindade (Pai, Filho e Espirito Santo), que re-
presenta a natureza tríplice do Deus cristão.
Porém, ao analisarmos Jesus mulher, pende-
mos para uma confusão da divindade Mãe
com a mãe terrena, Maria, ela também uma
divindade
X
, e nesse sentido buscamos a con-
uência da natureza tríplice não apenas na
Trindade, mas na gura materna de Maria.
Aludiremos, para compreensão des-
sa dimensão tríplice, aos eventos ligados
a Jesus. Os evangelhos citam tanto a pre-
sença de três mulheres na crucicação de
Jesus, quanto a visita de três mulheres ao
túmulo de Jesus, mesmo que não delimitem
de modo claro quem seriam essas três. Es-
ses grupos são chamados de Três Marias, e
dizem respeito em geral, dentre outras pos-
sibilidades, à própria mãe de Jesus, a Maria
Madalena e a Maria de Clopas ou Cleófas
XI
.
Se considerarmos a relação entre Maria e
Hécate, podemos enxergar a mesma divi-
são de uma imagem divina feminina em três
faces, relacionadas à lha-sacerdotisa.
Se Jesus é, portanto, em sua face-
ta masculina, lho da Deusa, falta-lhe ainda
uma característica, como aponta Marquetti
29
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
(2013, p. 284), que seria “fecundar a mãe”.
O lho é consorte, ao mesmo tempo, no rito
pagão, porém é esperado que, no conceito
cristão de relações entre os seres, o papel do
sexo enquanto elemento fundamental de cul-
to seja consideravelmente minimizado – por
associação ao pecado original. No entanto,
Marquetti observa que haveria a possibilida-
de de uma exceção pois, se considerarmos
o ambiente dos textos apócrifos, nos quais
Jesus (masculino) é consorte de outra mu-
lher, Maria Madalena, temos um fechamento
da razão tríplice. Marquetti aponta, assim, “o
casamento de Jesus com Maria Madalena,
a prostituta sagrada, imagem da nova Koré
que substituiria Maria, a Deusa Mãe”. Assim,
tendo em vista a tripla face da Deusa, Mada-
lena representa o traço sexual que desperta
o oposto masculino da sacerdotisa. Jesus é
uma gura que tem sua comunhão sexual
negada pela tradição em prol de uma comu-
nhão fraterna, ligada a imagem dos após-
tolos e da humanidade, e se isso de certo
modo via apagar traços do pecado de ordem
sexual, por outro, reforça o traço feminino de
Jesus, conrmando sua ambiguidade.
Sistemas binomiais e triádicos:
pequeno exercício Simbolístico
XII
Interessante acrescentar à di-
mensão analógico-simbólica da imagem
de Cristo que, tanto em seu nascimento
quanto em sua morte, Jesus possui um
trio de espectadores: Três magos/Três
Marias. É mais um elemento na linha de
simbologias ligadas ao número três as-
sociadas a Cristo: a Trindade Pai/Filho/
Espírito e sua versão feminina, os Três
Reis Magos, as Três Marias e assim por
diante. Nossa comparação com a trípli-
ce Hécate para, de tal modo, aproximar
Medeia e Cristo, nos conduz ao momento
nal deste ensaio: a compreensão da di-
mensão poética que representam essas
personagens, no que diz respeito ao -
pos oposto/complementar, do herói/anjo
caído Orfeu-Lúcifer.
Quando apresentamos esse tópos,
o resumimos em uma tabela, que apre-
sentava a dinâmica da arquetipologia dos
mythos do herói/anjo caído:
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Há que se considerar que, se pro-
pomos um espelho dessa dinâmica, de-
vemos encontrar um espelho do esque-
ma e de suas principais constituições,
iniciando pelos mitemas pois, quando
propomos a dimensão poética dos -
poi, os propomos enquanto mythos, ou
seja, narrativas. Nesse sentido, iremos
introduzir uma dinâmica metodológica
ainda aberta, dos sistemas binomiais
e triádicos.
Em resumo, trabalhamos em mo-
delos baseados em dois personagens
que se opõem/completam, e cujo movi-
mento em relação a outros dois perso-
nagens formam uma dinâmica criativa.
Em primeiro lugar, há uma hierarquia,
que é o binômio que identificamos ori-
ginalmente, Orfeu-Medeia, e que é uni-
do por uma tríade de elementos cons-
titutivos, a saber, suas características
identitárias de sacerdote, mago/feiticei-
ra e Poeta. A partir daí, delimitamos o
binômio que iria dialogar com aquele,
no contexto da tradição ocidental de
constituição de um modelo poético,
Jesus-Lúcifer. Então, o sistema bino-
mial dinâmico se constrói com a dupla
representação do topos arquetipal po-
ético, na constituição de um modelo
de Poeta: Orfeu-Lúcifer/Medeia-Jesus.
A título de organização, definiremos
esses dois binômios respectivamen-
te como catabático e ascensional,
pela dimensão que os movimentos de
queda/ascensão representam em sua
constituição. Deles extrairemos, pelas
narrativas (mythos), as possibilidades
mitemáticas de composição de um ide-
al de Poeta. Foi o que fizemos, no outro
texto, com Orfeu-Lúcifer.
O primeiro grande problema que
surge na constituição do mythos para
formulação do binômio ascensional
é a falta de equivalência direta pois,
considerando que Jesus é marcada
fundamentalmente pela narrativa do
nascimento-milagres-morte-ressurrei-
ção, e que o mythos de Medeia é via-
gem-traição/vingança-ascensão, não
temos, para Medeia, narrativa equiva-
lente ao nascimento. No caso do bi-
nômio catabático, o mythos é dividido
em dois mitemas, Heroísmo (a) e Que-
da (b), e este último se subdivide em
uma relação de causa (Ação) e Con-
sequência (Movimento); essas duas,
ainda, estão divididas em duas dinâ-
micas cada: desejo (i) e erro (ii) para
Ação, ascensão (i’) e queda(ii’) para
Movimento. Precisamos, assim, refle-
tir se há possibilidade de estabelecer
uma relação produtiva entre as duas
personagens em, pelo mythos e seus
mitemas, avaliar se seus elementos
equivaleriam, para além dos já anali-
sados campos simbólicos-alegóricos
que as igualam enquanto mulher-es-
trangeira-feiticeira.
Assim, se nossa proposta é rea-
lizar uma equivalência elemento a ele-
mento entre o mythos de cada figura
referencial, podemos pensar na Iden-
tidade (a) como sendo o primeiro mi-
tema, já que dela depende a relação
entre ambas, além da Ascensão (b), o
segundo mitema. Aqui criamos nosso
mythos, para compreensão da relação
entre Medeia e Jesus, a partir de dois
mitemas:
• Mitema a: o mitema da Identida-
de, baseado nas características de gê-
nero (i), origem (ii) e poder (iii);
Mitema b: o mitema da Ascen-
são, baseado nos movimentos de trai-
ção (i) sacrifício (ii) e renascimento (iii).
Assim, temos o desenvolvimen-
to do mythos que caracteriza o tópos
da feiticeira sacrificada, que esque-
matizamos abaixo:
31
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Fica claro, numa primeira leitura,
que existe uma oposição/complementa-
ção entre um ambiente mitemático es-
tático (a) e outro que representa uma
série de movimentos (b). Se considerar-
mos uma dinâmica espelhada entre os
dois binômios, deveríamos considerar
reelaborar a proposta feita para o siste-
ma anterior, do binômio catabático. E aí
já caímos em outra dinâmica metodoló-
gica transversal, em que temos um des-
dobro de dimensões que não aplicamos
objetivamente a Orfeu-Lúcifer: de iden-
tidade. No caso do binômio catabático,
propomos, impõem-se sobre eles três
identidades, também: homem-herói-re-
belde. Porém, no caso do binômio as-
censional, o ambiente identitário serve
ao mythos como traço definidor muito
mais marcante que a natureza heroica/
angelical. São os movimentos que de-
terminam a lógica do topos do herói ca-
ído, pois a queda é parte fundamental
da sua constituição, enquanto que a fei-
ticeira é definida por categorias, diga-
mos, mais estáticas, que envolvem sua
identidade e um único movimento, de
ascensão. Poderíamos, ainda, conside-
rar o sacrifício como um movimento de
queda, no qual ainda as feiticeiras se
veem como seres abandonados à pró-
pria sorte e sofrem, mas não é, como no
caso do binômio catabático, algo con-
sequente de um erro. Os atos de de-
sobediência têm papel fundamental na
rebeldia como fator constituinte da per-
sona no binômio catabático, enquanto
que no caso do par Medeia-Jesus não
temos o mesmo peso
XIII
. Mesmo assim,
assumimos o risco de reinterpretar o
sistema, renomeando o Mitema b do
binômio catabático como “Catábase”, e
mantendo a dinâmica “ação x movimen-
to” do primeiro modelo, mas mudando o
segundo elemento para “reação”, para
criar um efeito simbólico. Inserimos no
tópos a mesma coluna “identidade” do
binômio ascensional, e consideramos
a construção do Mitema a da mesma
forma: gênero, origem e poder, como
correspondentes alegóricos de homem-
-herói-rebelde.
32
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Assim, por fim, o que encontra-
mos são dois tópoi exemplificados em
binômios arquetípicos – obviamente
esses tópoi remetem a arquétipos – e
organizados em sistemas dinâmicos
que funcionam a partir de mythos. Cada
parte do binômio, as personas fazem
parte de um sintagma nominal, a saber,
um substantivo (Heróis/Feiticeiras) e
um adjetivo (caído/sacrificado) cujo de-
senvolvimento se dá em dois mitemas
que se subdividem de maneira razoa-
velmente espelhada.
Considerações nais
Sem querer correr o risco de
tornar nossa metodologia mecanicis-
ta, delineamos os esquemas anterio-
res para a apreensão mais sistemática
das reflexões. Não significa, no entan-
to, que fechamos as possibilidades de
análise à mera aplicabilidade do mo-
delo que desenhamos. Não considera-
mos aqui poesia religiosa ou de tema
associado aos tópoi como forma exclu-
siva para a análise, masuma aplicabili-
dade hermenêutica ampla da reflexão.
Os sujeitos Medeia-Jesus – bem como
o par Orfeu-Lúcifer –, enquanto perso-
nificações de um tópos, são o ponto
de partida para a amplitude infinita de
símbolos que se materializam verbal-
mente enquanto sintagmas em diver-
sas obras, e apontam para a natureza
arquetípica da relação poesia-magia-
-religião e, em certa medida, ao fluir do
imaginário poético pagão para dentro
do cristianismo.
É claro que, de tal modo, se não
queremos connar os sistemas a uma
chave dicotômica masculino/feminino,
deveríamos realizar o cruzamento das
guras, buscando o mesmo tipo de leitu-
33
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ra comparativa simbólica para os pares
Jesus-Orfeu, Medeia-Lúcifer, Medeia-
-Orfeu e, por m Jesus-Lúcifer. Como o
texto apresentado faz parte de um traba-
lho maior, desenvolvido durante estágio
de pós-doutoramento, que propõe uma
perspectiva de análise que intitulamos
Simbolística, e não passa de uma ex-
periência alegórico-exegética de poe-
sia, restringimos por ora a análise aos
binômios propostos, mas não fechamos
a reexão. Pelo contrário: abrimos aqui
espaço para uma innita meditação
acerca das imagens que coligimos, sem
o receio de que pareçamos ter circula-
do o assunto de maneira pouco objetiva
em verdade, se o zemos, obtivemos
sucesso. No mais, em uma era de vio-
lência e incompreensão cada vez maio-
res no que diz respeito às dinâmicas de
gênero dentro e fora da arte, preferimos
encerrar este texto com o fechamento de
O evangelho segundo Jesus, Rainha do
Céu, de Jo Cliord:
Não nos deixeis,
não nos deixeis jamais esquecer,
que ele é ela
e ela é ele
e nós somos eles
e eles somos nós
e assim será
para sempre
para todo
todo
o sempre
Amém.
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perseus.org/citations/urn:cts:greekLit:tlg0031.
tlg001.perseus-grc1:27.46. Último acesso 29 de
julho de 2017.
Recebido em 08/08/2017
Aprovado em 06/09/2017
I Fábio Gerônimo Mota Diniz. Doutor em Estudos Lite-
rários pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mes-
quita / UNESP (SP, Brasil).
II Fontes consultadas observam que há uma dife-
rença entre o texto de Marcos e Matheus, espe-
cialmente na transcrição de Ἐλωί/Eloí, que seria
a forma encontrada em Marcos, em contraponto à
encontrada em Mateus, Ἠλί/Elí. Como nossa refe-
rência para esse texto foi a versão presente na pla-
taforma Perseus – que inclui os textos em latim a
partir da Vulgata de São Jerônimo e a edição em
grego recolhida por Westcott e Hort (1885) –, e nes-
ta não é notada a diferença, mantivemos como se
encontra no texto do Evangelho segundo São Ma-
theus da plataforma. Ademais, a diferença não in-
terfere semanticamente no trecho.
III Usamos para o texto hebraico a Biblia Hebraica
Stuttgartensis, referência disponibilizada online pela
German Bible Society. Cf. Referências.
IV A comparação que opõe Medeia e Orfeu deriva de
nossa análise do poema épico helenístico Argonáutica,
realizada em DINIZ, 2015.
V Como observamos em DINIZ, 2016.
VI Durazzo (2012, p. 149-150) comenta sobre
essa percepção iconográfica de Cristo, em com-
paração com Orfeu, percebendo igualmente sua
androginia.
VII “First of all, the images assume certain sexual
stereotypes-that is, they show that, to these reli-
gious writers, certain personality characteristics
were seen as female and certain characteristics as
male. Throughout these texts, gentleness, compas-
sion, tenderness, emotionality and love, nurturing,
and security are labeled female (or “maternal”); au-
thority, judgment, command, strictness, and disci-
pline are labeled male (or “paternal”); instruction,
fertility, and creativity are associated with both se-
xes (either as begetting or as conceiving). [...] Bre-
asts and nurturing are more frequent images in this
literature conceiving and giving birth. And where
birth and the womb dominant images, the mother is
usually described as one who and carries the child
in her womb, not as one who ejects the child world,
suffering pain and possibly death in order to give
life. Conceiving and giving birth, like suckling, are
thus images primarily of return or union, security,
protection, dependence or incorporation, images of
alienation, sacrifice, or emergence in the sense of
separation. References to God as mother usually
occur, not in the context castigation of sinners or
elaboration of the gulf between human divine, but
rather as part of a general picture of the believer
beginner, totally dependent on a loving and tender
God”. Tradução do autor.
35
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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VIII Tradução de Trajano Vieira. Cf. Referências Bi-
bliográficas.
IX et adorabunt eum omnes reges omnes gentes ser-
vient ei. Tradução do autor. Cf. JEROME St.
X Poderíamos expandir essa interpretação: Jesus é
fruto de uma relação entre duas mulheres, duas deu-
sas, o que explicaria talvez a virgindade de Maria, pois
não há penetração.
XI Maria de Clopas é uma gura associada a Cristo
como sua tia, irmã de Maria. É uma gura complexa e
sobre a qual não nos deteremos pois não tem, em si,
uma dimensão signicativa no diálogo que estabele-
cemos entre as imagens de Hécate e Maria, a não ser
permitir que a tríplice se mantenha.
XII A Simbolística é uma proposta originada de
projeto de pesquisa desenvolvido como parte do
estágio de pós-doutoramento, sob financiamento
pelo PNPD (CAPES), junto ao programa de Pós-
-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. O proje-
to constitui uma proposta de nova possibilidade de
leitura do universo artístico que visa, pela tentativa
de conjunção entre simbologia e holística, elaborar
metodologias arquetipológicas de análise, basea-
das principalmente nas teorias de Gilbert Durand,
Gaston Bachelard e Carl Gustav Jung, dentre ou-
tros. O presente texto dialoga com o trabalho, ainda
não publicado, Simbolística Parte I – Por uma teoria
do símbolo poético.
XIII A desobediência de Medeia em relação a seu
pai, ao aliar-se ao estrangeiro Jasão, poderia ser
levantada como argumento contrário à nossa hi-
pótese, mas o sacrifício e dor de Medeia não se
dão como frutos de sua desobediência, mas como
consequências da traição e como parte de um des-
tino. Além disso, se assumirmos a narrativa como
apresentada por Apolônio de Rodes, o amor de Me-
deia é vítima do ardil divino de Hera e Afrodite, que
querem que Jasão tenha sucesso em sua emprei-
tada. Ela não desobedece voluntariamente, e por
isso sofre pelo amor.
XIV Reduzimos “Viagem com os Argonautas” para
“argonauta”, pois aqui mais importa a identidade
que a viagem, mesmo que haja a possibilidade de
se pensar a dinâmica ida x volta na construção es-
pecífica de Orfeu.
XV Consideramos a persuasão como poder de Lúci-
fer tendo em vista tanto a relação deste poder com
a música de Orfeu, capaz de encantar os seres e
interferir diretamente no seu estado emocional e em
suas ações, quanto por considerarmos este como
sendo a principal ação dele enquanto “adversário”.
Claro que o sistema funciona partindo do imaginário
cristão moderno, ou seja, se o considerarmos como
uma figura unitária satânica, que agrega a serpente
que tenta Adão e Eva, o anjo que quer se asseme-
lhar a Deus e aquele que tenta a Jesus no deserto,
apenas para selecionar algumas narrativas exem-
plares. Esses poderes se relacionam com o status
“rebelde” de ambos.
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Islamofobia brasileira online:
discursos fechados sobre o Islam em uma rede social
Islamofobia brasileña online:
discursos cerrados sobre el Islam en una red social
Online brazilian islamophobia:
closed discourses on Islam in a social media network
Felipe Freitas de Souza
I
Resumo:
Atualmente, circulam representações negativas sobre os muçulmanos
em diferentes redes sociais, operando uma estereotipia dos
muçulmanos e do Islam. A islamofobia, compreendida enquanto
ações de violência simbólica ou física contra muçulmanos pelo mero
fato de serem muçulmanos, é pressuposta enquanto o mote dessas
representações. A apreensão de que os muçulmanos seriam uma
ameaça constata-se desde o medievo. O presente texto visa expor
as oito leituras de discurso islamofóbico presentes no relatório do The
Runnymede Trust aplicadas sobre postagens na rede social Twitter, de
modo a constatar tais modalidades de islamofobia online. As leituras
são de que o Islam é monolítico, estático, alheio à nossa sociedade,
inferior, nêmesis, manipulador, sendo justicável a discriminação
contra muçulmanos, desmerecendo a crítica ao Ocidente realizada
pelos muçulmanos e naturalizando o discurso anti-Islam. Os exemplos
mobilizados indicam a presença de esquemas de preconceito já
identicados em outros países. Para tanto, remetemos a pesquisas
e relatórios internacionais. Em nosso levantamento, apreendemos
também a leitura de que o Islam não é uma religião, mas uma
ideologia. Concluímos reetindo sobre o posicionamento islamofóbico
ser tratado enquanto manifestação de barbárie.
Palavras chave:
Islamofobia
Preconceito
Islã
Muçulmanos
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Resumen:
Actualmente circulan representaciones negativas sobre los
musulmanes en diferentes redes sociales, operando una estereotipia
de los musulmanes y del Islam. La islamofobia, comprendida como
las acciones de violencia simbólica o física contra musulmanes por
el mero hecho de ser musulmanes, se presupone mientras el mote
de esas representaciones. La aprehensión de que los musulmanes
serían una amenaza se constata desde el medievo. El presente texto
pretende exponer las ocho lecturas de discurso islamofóbico presentes
en el informe de The Runnymede Trust aplicadas sobre posts en la
red social Twitter para constatar tales modalidades de islamofobia
online. Las lecturas son que el Islam es monolítico, estático, ajeno a
nuestra sociedad, inferior, némesis, manipulador, siendo justicable
la discriminación contra musulmanes, desmerciendo la crítica al
Occidente realizada por los musulmanes y naturalizando el discurso
anti-Islam. Los ejemplos movilizados indican la presencia de esquemas
de prejuicio ya identicados en otros países. Para ello, remitemos a
investigaciones e informes internacionales. En nuestro levantamiento,
aprehendemos también la lectura de que el Islam no es una religión,
sino una ideología. Concluimos reexionando sobre el posicionamiento
islamofóbico ser tratado como manifestación de barbarie.
Abstract:
Negative representations about Muslims circulate in dierent social
networks, operating a stereotyping of Muslims and Islam. Islamophobia,
understood as actions of symbolic or physical violence against Muslims
simply because they are Muslims, is presupposed as the motto of these
representations. The apprehension that Muslims would be a threat has
been evident since the Middle Ages. The present text aims to expose
the eight readings of Islamophobic discourse present in the report of
The Runnymede Trust applied on posts in the social network Twitter in
order to verify such modalities of Islamophobia online. The readings are
that Islam is monolithic, static, alien to our society, inferior, a nemesis,
manipulative, justifying discrimination against Muslims, belittling the
criticism of the West by Muslims and naturalizing anti-Islam discourse.
The examples mobilized indicate the presence of bias schemes already
identied in other countries. To do so, we refer to international research
and reports. In our survey, we also learn the reading that Islam is not
a religion but an ideology. We conclude reecting on the Islamophobic
positioning being treated as manifestation of barbarism.
Palabras clave:
Islamofobia
Prejuicio
Islam
Musulmanes
Keywords:
Islamophobia
Prejudice
Islam
Muslims
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Islamofobia brasileira online:
discursos fechados sobre o Islam
em uma rede social
A islamofobia é um fenômeno
pouquíssimo estudado no campo aca-
dêmico brasileiro, sendo que não iden-
ticamos trabalhos que a abordem di-
retamente. O que se constatam são os
relatos (repertoriados em pesquisas ou
notícias) acerca das ações de violên-
cia alvejando a comunidade muçulmana
brasileira. Todavia, também são consta-
táveis os esforços ativos de indivíduos
em redes sociais e sites em disseminar
representações pejorativas sobre os
muçulmanos. Tais representações são
organizadas em discursos que manifes-
tam os alicerces da islamofobia em uma
dada formação cultural e que são disse-
minadas a cada postagem que reduz a
discussão sobre o Islam.
Dentre os elementos dessas re-
presentações, de maneira geral e de
modo transnacional, encontra-se a iden-
ticação dos muçulmanos enquanto um
grupo monolítico, sem variações inter-
nas, compreendidos enquanto selva-
gens, bárbaros e misóginos, que possui-
riam uma agenda de dominação cultural,
política e religiosa contra o “Ocidente”
e, algumas vezes, em associação com
os comunistas (GREEN, 2015). Em al-
guns desses discursos, manifestos des-
de os primeiros contatos entre cristãos
e muçulmanos no século VIII e consta-
táveis desde os orientalismos do século
XIX até as redes sociais do século XXI,
os muçulmanos são representados en-
quanto dignos de sofrerem violência e
persecução (ARJANA, 2015). Contem-
poraneamente, tal violência se estende
inclusive no tocante à presença dos mu-
çulmanos em ambientes virtuais, como
as redes sociais (AWAN; ZEMPI, 2015a
e 2015b). No relatório We fear for our li-
ves (AWAN; ZEMPI, 2015a), temos que:
Both online and oine incidents are
a continuity of anti-Muslim hate and
thus should not be examined in iso-
lation. Participants described living in
fear because of the possibility of on-
line threats materialising in the ‘real
world’. The prevalence and severity of
online and oine anti-Muslim hate cri-
mes are inuenced by ‘trigger events
of local, national and international
signicance. The visibility of people’s
Muslim identity is key to triggering
both online and oine anti-Muslim
hate crime. Muslim women are more
likely to be attacked in comparison to
Muslim men, both in the virtual world
and in the physical world. Victims of
both online and oine anti-Muslim cri-
me suer from depression, emotional
stress, anxiety and fear. The victims of
online anti-Muslim hate crime remain
less ‘visible’ in the criminal justice sys-
tem. (AWAN; ZEMPI, 2015a, p. 4)
Quanto à presença dos muçul-
manos no Brasil, pode-se armar que
ela possui características multiétnicas e
multilinguísticas, existindo uma “(...) his-
tória plural da presença islâmica.” (KA-
RAM; NORBONA, PINTO, 2015, p. 8) –
armação válida também para a América
Latina. De maneira sintética, existiria no
Brasil o Islamismo de Imigração, trazido
pelos migrantes de países de população
islamizada, e o Islamismo de Conver-
são
II
, principalmente de cristãos (LIMA,
2015), o que talvez justique a predo-
minância de islamofobia praticada por
pessoas que se identicam enquanto
cristãs
III
. Pode-se considerar enquanto
estimativa plausível do número de mu-
çulmanos no Brasil, para o ano de 2014,
os números de 100.000 a 200.000 (PIN-
TO, 2015, p.139, nota 1). Destes, não
existem dados relevantes quanto à pre-
sença online dos muçulmanos no Brasil.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Todavia, pode-se armar que o espaço
virtual constitui uma expansão da ummah
(compreendida enquanto “comunidade
de eis”), potencializando a presença
islâmica. As redes sociais online agem
enquanto meios de potencialização de
relações oine, sendo que os assuntos
oine inuenciarão nas discussões e re-
lações online (EL-NAWAWY; KHAMIS,
2009). Os efeitos das agressões virtuais
também não devem ser menosprezados,
uma vez que podem ser tão impactan-
tes quanto àquelas engendradas oine
(AWAN; ZEMPI, 2015a).
Na pesquisa de el-Nawawy e
Khamis (2009), o foco se dá na “ummah
virtual” de língua inglesa. Assim como
a “ummah virtual” internacional, a bra-
sileira, em suas diversas redes sociais
nas quais os muçulmanos brasileiros se
fazem presentes, está submetida aos
efeitos dos discursos islamofóbicos no
espaço online. A rapidez de trocas de
informações e conteúdos favorecerá
também a circulação de conteúdos is-
lamofóbicos. “A dark side eect of the
internet is the rapid reproduction and
quick legitimization of discrimination.
This is particularly evident in the case
of cyber Islamophobia and the endless
online contestation over ‘the truth about
Islam’.” (CHAO, 2015, p.57) A mesma in-
ternet que proverá base para a pesquisa
cientíca e diálogo entre pesquisadores,
iniciativas de diálogo inter-religioso e di-
vulgação de conhecimento trará a possi-
bilidade de disseminar discursos de ódio
– dentre eles, os islamofóbicos.
Conforme Awan e Zempi indica-
ram em pesquisa com muçulmanos vi-
timados tanto pela islamofobia online
quanto oine na Inglaterra, os efeitos
dessa violência dirigida em especíco
às suas identidades islâmicas impac-
tam real e signicativamente na vida
dessas pessoas, principalmente as que
são visivelmente muçulmanas – com no
caso das mulheres que usam o hijab
IV
(AWAN; ZEMPI, 2015a). Pode-se ar-
mar com En-chieh Chao que: “Thanks
to the internet, there have never been
more Islam-demonizing references rea-
dily available, ready for online commen-
ting systems to display the discoveries
of ‘truthnding’ soldiers.” (CHAO, 2015,
p.71) Se os discursos islamofóbicos no
Brasil são pouco estudados, a cyberisla-
mofobia, ou islamofobia online, também
é pouco dimensionada – apesar de ser
uma das principais formas contemporâ-
neas de preconceito contra muçulmanas
e muçulmanos no Brasil e no mundo.
Os relatórios tanto do CAIR, Coun-
cil on American-Islamic Relations (“Con-
selho das Relações Islamo-Americanas”)
(CAIR, 2016), quanto do CCIF, Collectif
Contre L’Islamophobie en France (“Co-
letivo Contra a Islamofobia na França”),
(CCIF, 2017) identicam a ascensão dos
discursos islamofóbicos em ambientes
virtuais. Tal ascensão é um movimento
recorrente que acompanha os “eventos-
-gatilho”, acompanhando-os. Tais even-
tos incluem desde os atentados terroris-
tas
V
às notícias que difundem ansiedades
frente aos muçulmanos, como relatos so-
bre práticas culturais, supostas ou não,
de alguns muçulmanos ou mesmo rela-
tos que distorcem a religião em prol de
um discurso de oposição e exclusão aos
muçulmanos, imigrantes ou não (GRE-
EN, 2015). Os efeitos de tais eventos
não se limitam ao país no qual ocorrem:
por exemplo, o atentado contra o jornal
satírico francês Charlie Hebdo, em Pa-
ris, desencadeou reações islamofóbicas
online no Brasil, do mesmo modo que o
atentado contra a casa de shows Bata-
clan e o atentado na casa noturna Pulse
em Orlando, nos Estados Unidos, levou a
conagração de ações e discursos contra
o Islam e os muçulmanos.
Os efeitos dos “eventos gatilho”
também disparam reações nas comuni-
40
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dades muçulmanas. No caso dos Estados
Unidos, principalmente após os ataques
de 11 de Setembro, ocorreram campa-
nhas educacionais por organizações
muçulmanas, bem como a elaboração
de relatórios retratando características e
embates da comunidade, principalmente
o CAIR que assumiu um papel de pro-
tagonismo junto às demais associações
norte-americanas (CAIR, 2016). No caso
brasileiro, a novela O Clone teve um pa-
pel importante em disseminar represen-
tações positivas sobre os muçulmanos
VI
no pós-11 de Setembro, impedindo, de
certo modo, que as únicas narrativas
em circulação fossem negativas. Apesar
de estas narrativas serem preponderan-
tes, houve um crescimento na reversão
de muçulmanos após o 11 de Setembro
(LIMA, 2015).
O relatório do CAIR (2016) apre-
senta a existência de grupos e indivíduos
dedicados exclusivamente à produção de
discursos islamofóbicos também em redes
sociais, além da existência de indivíduos
e grupos que “margeiam” essas organi-
zações centrais, nutrindo-se de tais pro-
duções anti-muçulmanos e anti-islâmicas
para reforçarem suas posições no espaço
social, seja oine ou online. Haveria um
Inner Core e um Outer Core na produção
da islamofobia estadunidense – divisão
essa que haveria de ser validada nacio-
nalmente. O Inner Core (Círculo Interno)
é formado por grupos cujo propósito é a
promoção do preconceito e do ódio contra
o Islã e os muçulmanos, fomentando prin-
cipalmente a violência simbólica contra os
muçulmanos; já o Outer Core (Círculo Ex-
terno) é formado por grupos que não tem
como proposta principal antagonizar o Islã
e os muçulmanos, mas cujos trabalhos de-
monstram, apoiam ou reproduzam temas
islamofóbicos. No caso brasileiro, temos
registros dos casos de agressão contra
mesquitas e muçulmanos, principalmen-
te muçulmanas, e que se relacionam às
agressões online quanto ao conteúdo.
Essa identicação dos muçulmanos
enquanto pertencentes a uma religião ou
modo de pensamento distinto do padrão
(europeu ou ocidental) é recorrente desde a
Idade Média à contemporaneidade. É pos-
sível armar que a chave de leitura islamo-
fóbica, de que os muçulmanos constituem
um grupo oposto a nós, se faz presente
praticamente desde os primeiros contatos
entre os habitantes daquela região que viria
a se chamada Europa e os povos islamiza-
dos. Pertencentes aos domínios para além
do mundo civilizado, os muçulmanos seriam
identicados enquanto monstros: seres se-
mi-humanos abjetos cujo objetivo principal
seria disseminar a barbárie e a destruição
onde quer que se instalem. Esse é o mote
da obra de Sophie Arjana, Muslims in the
Western Imagination (ARJANA, 2015), que
estuda, partindo das perspectivas foucaul-
tiana do biopoder e bourdieusiana do habi-
tus, as representações sobre os corpos dos
muçulmanos em produções orientalistas e
islamofóbicas. A hipótese islamofóbica é a
de que existe algo errado com o Islam:
The idea that all Muslim men are na-
turally violent – blowing up buildings,
planes, and markets, and willingly
killing themselves in the process – is
often explained as an innate Islamic
impulse, a product of race, ethnicity,
or religious impulse, at times cast as
an “Islamic rage” that emerges from
sexual repression and frustration. (AR-
JANA, 2015, p. 11)
As representações dos muçulma-
nos enquanto monstros, no sentido em-
pregado por Sophie Arjana, remetem ao
entendimento do biopoder que se esta-
belece sobre os muçulmanos e sobre o
habitus que é formado tendo como base
essa identicação do Outro enquanto
variação deturpada de uma humanidade
“verdadeira”, civilizada (ARJANA, 2015).
Contemporaneamente, isso se manifes-
ta na ideia de “culpa por associação”:
populações ou grupos islamizados são
41
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estigmatizados enquanto violentos, in-
dependentemente de suas relações com
os perpetuadores de atos de violência.
Desse modo, perpetua-se uma pretensa
hermenêutica que recusa que os muçul-
manos são seres humanos, dotados de
contradições e potencialidades, eviden-
ciando-se somente seus elementos pe-
jorativos. As violências perpetradas por
terroristas são aceitas como padrão para
os muçulmanos, nublando a complexida-
de de relações e pertencimentos da co-
munidade muçulmana.
No estudo de Green, The Fear of
Islam (2015), o autor sugere a distinção
entre ações e discursos anti-Islam e anti-
-muçulmanos. Tais seriam as duas princi-
pais forças motrizes da Islamofobia que
é composta, além desses fatores, por
outras estratégias de preconceito como
o racismo e o machismo. A islamofo-
bia pode então ser compreendida como
o preconceito contra muçulmanos par-
tindo de uma interseccionalidade entre
raça, religião e gênero (AWAN; ZEMPI,
2015b). O que se denomina enquanto
anti-Islam são as ações ou discursos que
se contrapõe à religião de forma a negar
sua possibilidade de existência no espa-
ço público, como se fosse uma escolha
inválida para as pessoas. Nesse rol de
manifestações também estão as carac-
terizações do Islam enquanto ideologia,
como se não fosse possível se tratar de
uma fé praticada sinceramente por seus
éis tal qual qualquer outra manifestação
religiosa. Já aquilo que se denomina anti-
-muçulmanos são as ações ou discursos
que visam não a religião enquanto siste-
ma, mas os muçulmanos em especíco.
Assim, uma depredação de mesquita é
uma ação mais anti-muçulmanos do que
anti-Islam; enquanto isso, uma pregação
religiosa que caracteriza o Islam enquan-
to uma religião falsa ou que degrada o
ser humano é anti-Islam, possuindo pos-
síveis efeitos secundários anti-muçulma-
nos. Obviamente que tais violências sim-
bólicas são recursivas, uma alimentando
a outra, mas devem ser devidamente di-
ferenciadas para que seja possível anali-
sar os casos objetivos de Islamofobia.
Visando elaborar o modo com o
qual a islamofobia ocorre, o The Runny-
mede Trust (1997) apresentou as oito vi-
sões fechadas sobre o Islam e que foram
apropriadas nas obras The Islamofobia
Industry (LEAN, 2012)
VII
e The Fear of
Islam (GREEN, 2015). A relevância des-
sas oito leituras, enquanto instrumento
descritor e analítico, foram apropriadas
nos relatórios do Council on American-
-Islamic Relations (“Conselhos das Re-
lações Américo-Islâmicas”) e por ou-
tras entidades como o Collectif Contre
l’Islamophobie en France (“Coletivo Con-
tra a Islamofobia na França”) e o TellMA-
MA do Reino Unido
VIII
.
Tais visões fechadas constituem
o cerne do repertório islamofóbico,
apresentando suas estruturas e princi-
pais estratégias discursivas no ambien-
te online. A procura por exemplos em
redes sociais compreendeu publicações
no período de Janeiro de 2015 a Junho
de 2017, indicando a contemporaneida-
de e a banalidade de tais publicações.
Justifica-se a pesquisa sobre as posta-
gens no Twitter pois:
(…) online comments are contributing
towards the stigmatisation and the
‘othering’ of Muslim communities. The
online prejudice and discrimination
paradigm is used by perpetrators who
will involve swearing coupled with anti-
-Muslim, racist language as a means
to target Muslims. This online element
is also used by perpetrators where
prejudicial statements and messages
are used to target a particular group
or person. Indeed, this type of nega-
tivity can also lead to an escalation of
online abuse and the normalisation of
such behaviour through likes and re-
42
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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tweets via social media sites such as
Twitter and Facebook. (AWAN; ZEM-
PI, 2015a, p.20)
As modalidades de islamofobia
identicadas pelo The Runnymede Trust
são
IX
, juntamente com seus exemplos co-
lhidos da rede social supracitada:
1) O Islam é monolítico, estático:
essa perspectiva pressupõe que o Is-
lam não possui diversidade, não haven-
do discordâncias ou disputas internas
em um grupo de centenas de milhões
de fiéis. O resultado dessa apreensão
é de que as ações violentas que uma
minoria de muçulmanos pratica repre-
sentam todos os muçulmanos indepen-
dentemente de suas origens, perten-
cimentos ou condicionantes sociais.
Assim, a situação da mulher na Arábia
Saudita, por exemplo, é tomada en-
quanto paradigma da situação da mu-
lher muçulmana, nublando as varieda-
des ou reduzindo-as a mera deturpação
de uma suposta regra de submissão da
mulher muçulmana. Outro exemplo re-
mete à questão palestina: uma vez que
todos os palestinos seriam muçulma-
nos, a resistência por vezes violenta
que realizam é plenamente condená-
vel enquanto a violência simbólica e
estatal que sobre eles se realiza seria
plenamente justificável. O princípio da
culpa por associação encontra seu fun-
damento nessa leitura reducionista.
Figura 1 – Postagens que reiteram a primeira leitura.
43
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2) O Islam como alheio: enqua-
dra as leituras de que o Islam não com-
partilha valores com outras religiões ou
sistemas, supostamente não possuindo
identificação com nenhum dos valores
ressaltados pelos islamofóbicos. En-
quanto exemplo, Green (2015, p.14) re-
mete à proposta de um grupo de extre-
ma-direita na Suíça que preconizava a
proibição da construção de minaretes;
quando o líder desse grupo foi ques-
tionado se não seria necessário, nessa
ótica, proibir a construção de torres de
igrejas, a resposta foi de que o Islam
não aceita os valores de liberdade e to-
lerância que o cristianismo engendra. A
presença islâmica na Península Árabe
também é tida como uma descontinui-
dade de um “verdadeiro” espírito euro-
peu
X
, sendo necessário repudiá-la.
Figura 2 – Postagens que reiteram a segunda leitura.
3) O Islam enquanto inferior:
frente a um Ocidente imaginado, o
Islam imaginado seria bárbaro, into-
lerante, misógino, sem soluções de
continuidade com aquele Ocidente (su-
postamente) civilizado, tolerante e com
igualdade de gênero. Todavia, basta a
consulta aos noticiários nacionais para
percebermos que as identificações com
civilização, tolerância ou igualdade de
gênero são meros artifícios retóricos
para deslegitimar o Islam, como se
os colonialismos e imperialismos não
houvessem impactado os países de
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maioria muçulmana de modo determi-
nante e irreversível
XI
. A recusa a rela-
cionar a criminalidade ou os problemas
sociais à religião cristã também é parte
da estratégia islamofóbica: enquanto
um atentado terrorista é narrado como
perpetuado por um muçulmano, nos
casos de latrocínio, homicídio, homo-
fobia, feminicídio, prostituição infantil e
demais crimes não há a identificação
dos criminosos com suas religiões de
pertencimento. Não se noticia “trafi-
cante católico”, “estuprador evangéli-
co”, “assaltante cristão”, etc.
Figura 3 – Postagens que reiteram a terceira leitura.
4) O Islam enquanto inimigo:
dado que os muçulmanos seriam, pela
leitura islamofóbica, violentos e bárba-
ros, haveria um inevitável choque de
civilizações entre o Islam e as demais
formações civilizacionais. O Islam não
seria identificado enquanto uma força
civilizatória, mas somente enquanto for-
ça degradadora da ordem e promotora
da destruição que teria espaço nos ter-
ritórios islamizados. Assim, repete-se o
que Arjana (2015) indica enquanto her-
menêutica medieval de leitura do Islam:
para além das terras reais existiria so-
mente a desordem, o caos e a destrui-
ção na terra dos antípodas.
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Figura 4 – Postagens que reiteram a quarta leitura.
Muslims are considered a ‘thre-
at’, and the perpetrators of cyber
hate stereotype and demonize all
Muslims in the same manner, and
therefore consider them as a group
that should be ostracized, depor-
ted or killed using hostile imagery
and depicting them in an innately
negative fashion. (AWAN, ZEMPI,
2015b, p. 4)
5) O Islam é manipulador: a pre-
tensão com essa afirmação é de que as
pessoas não se tornam ou se mantém
muçulmanas por conta de sua escolha
religiosa, mas devido ao interesse de
uma “mente coletiva” muçulmana em
obter vantagens políticas e militares.
As ações dos muçulmanos não seriam
meras ações, mas elementos na cons-
tituição de um plano estruturado para
a destruição da civilização ocidental,
por exemplo. Mesmo pessoas com
nenhuma ligação direta aos muçulma-
nos para além de sua nacionalidade
são tomadas enquanto representantes
dessa manipulação.
46
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Figura 5 – Postagens que reiteram a quinta leitura.
6) Justifica-se a discriminação
racial contra muçulmanos: no relatório
do The Runnymede Trust, indica-se
que o racismo e a islamofobia no Reino
Unido comumente estão associados.
Chao (2015) relata que a islamofobia
pode ser compreendida enquanto ra-
cismo cultural. No Brasil e nos Esta-
dos Unidos, seria o preconceito con-
tra os árabes e seus descendentes.
O cerne desse argumento é o de que
não haveria problemas em proferir
discursos racistas contra determinada
etnia uma vez que ela compartilharia
valores com uma religião vilaniza-
da. Nos Estados Unidos, tal percep-
ção levou a uma maior segurança nos
aeroportos, por exemplo. Já no Bra-
sil, levou a uma associação imediata
entre árabes e muçulmanos, como se
fossem sinônimos. Arjana (2015) in-
dica que esse expediente ocorre com
os termos sarraceno, árabe, maome-
tano, islamita, muçulmano: a negação
da polissemia de tais palavras e seus
usos indiscriminados demonstram a
intencionalidade não de compreender
o Islam, mas de tipifica-lo para poder
combate-lo ou contrapor-se a ele com
base na estereotipia.
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Figura 6 – Postagens que reiteram a sexta leitura.
Figura 7 – Postagens que reiteram a sétima leitura.
7) A crítica ao Ocidente pelos
muçulmanos é inválida: esse ponto
consiste em aceitar a crítica dos oci-
dentais aos muçulmanos sem aceitar a
crítica dos muçulmanos aos comporta-
mentos ocidentais, como se a voz dos
muçulmanos não fossem dignas de se-
rem consideradas.
48
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8) A naturalização do discurso
anti-Islam: o discurso de preconceito
contra o Islam é aceito na esfera públi-
ca sem que haja maiores repercussões
sociais ou legais. Todo tipo de brutalida-
de pode ser atribuída aos muçulmanos
sem maiores consequências; todo tipo
de violência pode teoricamente ser apli-
cada contra os muçulmanos, indepen-
dentemente se são perpetuadores de
ações abjetas ou não. Caso as mesmas
afirmações fossem feitas contra afro-
descendentes ou judeus, seriam en-
Figura 8 – Postagens que reiteram a oitava leitura.
quadradas enquanto discursos racistas
ou antissemitas
XII
. Todavia, como são
realizadas contra muçulmanos, exis-
te a aceitação de uma intolerância aos
muçulmanos inaceitável para qualquer
outro grupo étnico ou religioso. Nas pa-
lavras de um muçulmano britânico, “An-
ti-Muslim hate is legitimised. The things
you can say for the Muslim communi-
ty and get away with, you can’t say for
any other community.” (AWAN; ZEMPI,
2015, p.28) – situação que se constata
no caso brasileiro.
Por fim, acrescentamos outra
estratégia discursiva da islamofobia
encontrada em nossa investigação: o
Islam é uma ideologia. Nesse sentido,
haveria uma recusa ativa em aceitar o
Islam enquanto uma religião ou cami-
nho possível para o fiel. Ela não consti-
tuiria uma religião, mas uma “ideologia”
ou “ideologia política” desprovida de
qualquer finalidade religiosa.
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Figura 9 – Postagens que reiteram que o Islam não é uma religião.
Como apreendemos, tais discur-
sos são disseminados e possuem efei-
tos de ordem prática. “Whether online
or offline, the reality of anti-Muslim hate
crime creates ‘invisible’ boundaries,
across which members of the Muslim
community are not ‘welcome’ to step.
(AWAN; ZEMPI, 2015, p. 28) A exclu-
são do espaço público e dos proces-
sos decisórios é um dos efeitos que o
The Runnymede Trust (1997) já apon-
tava em seu relatório: infelizmente, tal
exclusão permanece e dissemina-se
no “mundo civilizado” que seria presu-
mivelmente democrático. A relevância
da pesquisa sobre as postagens isla-
mofóbicas em redes sociais ainda se
dá porque “(...) there is a continuity of
anti-Muslim hostility in both the virtu-
al and the physical world, especially
in the globalized world.” (AWAN; ZEM-
PI, 2015b, p.2) Os efeitos de tais vio-
lências envolvem desde o sentimento
de não-pertencimento à sociedade e
à ansiedade (AWAN; ZEMPI, 2015b),
levando a um quadro de prejuízo aos
indivíduos que possuem a fé islâmica.
A hipótese que levantamos para pes-
quisas posteriores é de que, indepen-
dentemente em qual país ocidental
ocorram os episódios de islamofobia
online, eles partem de uma estrutura
semelhante
XIII
. Devido à exiguidade da
população muçulmana brasileira, nos-
sas últimas apreensões são as de que
a islamofobia ocorre por importação ou
por um processo de tradução cultural.
A circulação transnacional de discur-
sos islamofóbicos ainda está por ser
devidamente investigada, apesar de
ser constatável o papel das traduções
de tais discursos e das referências a
eventos e produtores do Inner Core in-
ternacionais. Presenciamos no Brasil o
desabrochar de uma indústria da isla-
mofobia: um terreno tão fértil em ca-
sos de intolerância não recusaria mais
esse espécime macabro.
50
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Conclusões
Todas essas formas de discur-
sos fechados e estratégias discursivas
anti-muçulmanos e anti-Islam que ca-
racterizam a Islamofobia foram mobili-
zadas contra outras “ameaças sociais”
ao longo da História, seja internacional
e nacionalmente. No passado estaduni-
dense, irlandeses, japoneses, judeus,
comunistas, mulheres, todos tiveram
o seu quinhão de perseguição institu-
cional e aceita socialmente. No Brasil,
tem-se a chacina da população indíge-
na – ato terrorista fundador e ainda pra-
ticado –, teve-se o pavor do haitianismo,
o medo da ameaça comunista. Tanto
nos Estados Unidos quanto no Brasil,
hoje são os muçulmanos que podem
ser repudiados, violentados, difamados
e caluniados. Todavia, o que especifi-
ca a violência contra muçulmanos é o
fato de que ela é socialmente aceita e
até defendida. Os exemplos discursivos
expostos acima são relatados recorren-
temente nas mídias sociais, surgindo
como se não houvesse o exercício do
preconceito daquele que propaga essas
afirmações. Na maioria das vezes, os
“críticos do Islam” são indivíduos que
mal conseguiriam distinguir uma letra خ
de uma ح; ou seja, não compreendem
desde elementos centrais, básicos, às
sutilezas que envolvem a experiência
de ser muçulmano e que perpassam um
conjunto de conhecimentos e práticas
que são ignorados para sustentar-se o
discurso islamofóbico.
A islamofobia no Brasil se apre-
senta nos discursos de diversos perfis
em redes sociais e já apresenta seus
frutos mais nefastos que são a vio-
lência física contra muçulmanas, mu-
çulmanos e instituições islâmicas. A
relação entre tais violências, online e
offline, não foram identificadas em pro-
fundidade, mas quem profere discur-
sos de ódio contra um grupo ou uma
população possui responsabilidade so-
bre as ações perpetuadas contra aque-
le grupo ou população no âmbito da
violência simbólica.
Apesar da inexistência de atenta-
dos terroristas no Brasil
XIV
, os discursos
online e as agressões físicas anti-mu-
çulmanos demonstram que os efeitos
da “islamofobia por importação” são
práticos na vida dessas pessoas. Se
por um lado os islamofóbicos afirmam o
perigo islâmico, haveriam de refletir so-
bre o perigo da intolerância e da calúnia
contra um povo: o pavor que possuem
dos muçulmanos os levam a comporta-
mentos intolerantes e reprováveis tais
quais aqueles que afirmam tão vee-
mentemente repudiar. A xenofobia leva
o pêndulo ao polo da barbárie, não da
civilização, não da democracia.
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Recebido em 04/08/2017
Aprovado em 12/09/2017
I Fernando Freitas de Souza. Titulação e vincula-
ção e contato.
II No Islam emprega-se o termo reversão para in-
dicar o processo de aceitação da religião por parte
do fiel. Trata-se de uma reversão no sentido de que
todas as pessoas nasceriam muçulmanas e retorna-
riam à fé da qual se afastaram seguindo outro itine-
rário espiritual que não o do Islam.
III Tal armação, constatada na pesquisa em redes
sociais, deverá ser desenvolvida posteriormente dado
que as armações sobre os muçulmanos variam de
acordo com sua origem: a identicação dos preten-
sos críticos enquanto ateus, sionistas, cristãos, etc.
inuenciará no repertório mobilizado.
IV O entendimento do hijab somente enquanto o “véu
que cobre a cabeça das muçulmanas” não amplia
sua noção nos sentidos comportamental e filosófi-
co repertoriados na literatura tradicional do Islam. A
noção primária que ora apresentamos não aborda,
portanto, a totalidade das significações sobre o hijab.
V O “grande evento gatilho” seria o 11 de Setembro,
a partir do qual se disseminaram e fundamentaram-se
reações islamofóbicas inclusive no Brasil.
VI De acordo com a pesquisadora Francirosy Bar-
bosa, “(...) podemos dizer que O Clone teve um pa-
pel preponderante na (re)construção da relação da
comunidade islâmica brasileira com os brasileiros,
na medida em que possibilitou diminuir o estranha-
mento entre esses modos de ser. Sobre isso, em
tom de brincadeira em uma entrevista sobre a tele-
novela, Sheik Jihad comenta que a novela foi boa,
porque agora as pessoas pensam que os muçul-
manos dançam e não que são terroristas.” (BAR-
BOSA, 2015, 796)
VII A indústria da islamofobia nacional ainda está
por ser devidamente dimensionada, sendo possível
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
partir-se de Lean (2012) em suas reflexões sobre a
indústria da islamofobia estadunidense para deline-
ar seu funcionamento no Brasil. Todavia, acredita-
mos que o presente artigo possa contribuir com a
elucidação de alguns dos mecanismos de perpetua-
ção do discurso produzidos pelos agentes da indús-
tria supracitada.
VIII As divergências e convergências sobre a con-
ceituação de islamofobia tanto na literatura acadê-
mica quanto em suas apropriações pelos movimen-
tos da sociedade civil organizada ainda estão por
serem devidamente descritas e analisadas.
IX Partimos principalmente das elaborações de Gre-
en (2015) sobre tais leituras. Utilizando o motor de
busca da própria rede social Twitter, em pesquisas
simples com a palavra “muçulmano” e “árabe” que
obtém-se os comentários expostos neste texto. Ape-
sar de não revelarmos os autores das postagens,
todas elas estão relatadas conforme foram encontra-
das: não são secretas ou sigilosas, mas sim dissemi-
nadas publicamente e podem ser acessadas sem a
necessidade de registro algum no site.
X Para um maior aprofundamento das tensões
entre historiografia e memória frente à herança
islâmica tanto em Portugal quando em Espanha,
cf. Hertel, 2015. A autora demonstra haverem mo-
vimentos, na historiografia dos séculos XIX e XX,
de aproximação e repúdio à presença islâmica do
século VIII ao XV na Península Ibérica. Todavia, os
islamofóbicos tencionam a leitura desse período a
uma mera opressão, como se a implantação dos
tribunais de inquisição (que perseguiu, dentre ou-
tros, judeus e muçulmanos) ou as guerras de Re-
conquista fossem medidas necessárias, violências
justificáveis pela civilização.
XI Essa leitura remete ao obstáculo epistemológico
bachelardiano do substancialismo. Ou seja: de que
as coisas possuem uma substância que lhes são
próprias, específicas delas, não considerando suas
redes de relações ou mesmo as considerando, mas
somente na medida em que se submetem aos atri-
butos das coisas. Seria a “(...) explicação monótona
das propriedades pela substância.” (BACHELARD,
2005, p.27). Assim, a substancialização do Islam
enquanto inferior interessa somente àqueles que,
na posição de dominantes no campo de produção
discursiva, podem dizer quem são os superiores –
coincidentemente, o “nós”.
XII Sugerimos ao leitor que substitua a palavra “mu-
çulmano” dos exemplos que seguem abaixo pela
palavra “negro” ou “judeu” ou “mulher” e reflita so-
bre o impacto de tais afirmações: por que são acei-
táveis contra muçulmanos mas não contra outros
grupos sociais?
XIII Lean (2012) aponta para a relação direta da
ascensão de grupos posicionados à Direita do
espectro político e o crescimento do discurso is-
lamofóbico. Enquanto estratégia discursiva da
Direita dos EUA, as observações preliminares in-
dicam que a islamofobia seria parte do repertório
da Direita brasileira.
XIV Os islamofóbicos afirmarão que existiram dois
atentados terroristas no Brasil: o primeiro na favela
de Realengo (2011) e o segundo na manifestação
do grupo Direita São Paulo (2017). Nenhum deles
foi relatado pela grande mídia enquanto atentados
terroristas. Os efeitos da Operação Hashtag, de-
flagrada frente às Olimpíadas de 2016 no Brasil,
também estão por serem dimensionados – apesar
de que os supostos atentados remetem à culpa por
associação e que tal Operação deflagrada pela Po-
lícia Federal pode ser entendida como islamofobia
institucional (cf. CAIR, 2016, que já indica tal insti-
tucionalização nos EUA).
53
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O ensino religioso nas políticas de currículo:
o caso da base nacional comum curricular
Educación religiosa de las políticas del currículo:
el caso de la base del currículo de la base del currículo común nacional
The religious education policy curriculum:
the case of the national curriculum commom core
Mirinalda Alves Rodrigues dos Santos
I
Resumo:
Este artigo é fruto das reexões e discussões acerca dos estudos
curriculares e do campo da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) frente
ao Ensino Religioso - ER, bem como o seu reconhecimento como
componente curricular na Base Nacional Comum Curricular – BNCC, cuja
política de currículo será referência no que diz respeito aos conteúdos
e saberes necessários para traçar os objetivos de aprendizagens a
serem ensinados e apreendidos pelos educandos nas escolas públicas e
particulares do Brasil. Entretanto, na terceira versão da BNCC aprovada
pelo Ministério da Educação - MEC o Ensino Religioso foi retirado desse
documento, até o presente momento, esse ensino estava presente nas
duas últimas versões da BNCC.E, recentemente, o Ensino Religioso volta
a ser reconhecido como componente curricular no referido documento.
É nesse sentido que o objetivo desse trabalho é analisar os discursos
produzidos nas Políticas Públicas de Currículo, acerca da exclusão/
inclusão do Ensino Religioso na BNCC. Metodologicamente esse estudo
é de cunho bibliográco e documental com delineamento explicativo,
reexivo e crítico. Diante das análises realizadas nesse estudo frente ao
Ensino Religioso na BNCC podemos concluir, portanto, que o documento
proposto é mais um artefato para legitimar hegemonias, preconceitos,
discriminações, e relações de poder no que se tratam as questões
religiosas, diante da representatividade conservadora no atual cenário
político que estamos vivenciando.
Palavras chave:
Ensino religioso
Políticas de currículo
Base Nacional Comum
Curricular
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este artículo es el resultado de reexiones y discusiones acerca de los
estudios plan de estudios y campo de la ciencia de la parte delantera de la
religión (s) de Educación Religiosa-ER, así como su reconocimiento como
componente curricular en Base de Currículo Común Nacional.– BNCC,
cuyo plan de estudios hará referencia política en relación con el contenido
y el conocimiento necesario para trazar los objetivos de aprendizaje para
ser enseñado y aprendido por los estudiantes en escuelas públicas y
privadas de Brasil. Sin embargo, en la tercera versión del BNCC aprobado
por el Ministerio de educación-MEC que la instrucción religiosa fue
quitada de este documento, tenía hasta entonces esta enseñanza en las
dos últimas versiones en BNCC. Y, recientemente, la Enseñanza de la
religión vuelve a ser reconocido como un componente curricular en dicho
documento. Es en este sentido que el objetivo de este trabajo es analizar
los discursos producidos en las Políticas Públicas de plan de estudios,
acerca de la exclusión/inclusión de la Enseñanza de la religión en la BNCC.
Metodológicamente, este estudio es de tipo bibliográco y documental con
el estudio explicativo, reexivo y crítico. En el análisis realizados en este
estudio frente a la Enseñanza de la religión en la BNCC podemos concluir,
por tanto, que el documento propuesto es más un artefacto para legitimar
hegemonías, los prejuicios, la discriminación y las relaciones de poder
en el que se tratan las cuestiones religiosas, ante la representatividad
conservadora en el actual escenario político que estamos viviendo.
Abstract:
This article is the result of the reections and discussions about curricular
studies and the eld of Science (s) of Religion (s) in relation to Religious
Education - RE, as well as its recognition as a curricular component in the
National Common Curricular Base -BNCC,whose curriculum policy will be
a reference in terms of contents and knowledge needed to trace learning
objectives to be taught and perceived by students in public and private
schools in Brazil. However, in the third version of the NCCB approved by
the Ministry of Education - MEC the Religious Education was removed
from this document, until this moment, this teaching was present in the
last two versions of the BNCC. And, recently, Religious Education is once
again recognized as a curricular component in this document. It is in this
sense that the objective of this work is to analyze the discourses produced
in the Curriculum Public Policies, about the exclusion / inclusion of Religious
Education in the BNCC. Methodologically, this study is a bibliographic and
documentary character with explanatory, reexive and critical delineation.
Methodologically, this study is of a bibliographic and documentary character
with explanatory, reexive and critical design. In view of the analyzes carried
out in this study regarding Religious Education at the BNCC, we can conclude
that the proposed document is more an artifact to legitimize hegemonies,
prejudices, discriminations, and power relations in what concerns religious
issues, given the conservative current political scenario we are experiencing.
Palabras clave:
Educación religiosa
Políticas del Currículo
Base de Currículo
Común Nacional
Keywords:
Religious Education
Curriculum Policy
National Curriculum
Common Core
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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O ensino religioso nas
políticas de currículo: o caso da
base nacional curricular
Introdução
No campo das políticas educacio-
nais muito se tem discutido acerca da im-
plementação da Base Nacional Comum
Curricular – BNCC no ano de 2014, como
uma Política de Currículo a ser seguida
com estratégias de conteúdos e competên-
cias no processo de ensino-aprendizagem
na educação básica. Essa perspectiva de
currículo desde a sua primeira versão até
a sua terceira versão é alvo de muitas crí-
ticas em todos os componentes curricula-
res, inclusive no Ensino Religioso, que por
sua vez era presente nas duas versões
anteriores e foi retirada na terceira versão
da BNCC e, recentemente sendo incluído
novamente na Base.
Antes dessa exclusão, o Ensino
Religioso na BNCC quando foi reconheci-
do nesse documento foi alvo de críticas,
por propor diretrizes a esse ensino nos
anos iniciais e ensino fundamental. Do
ponto de vista da maioria dos especialis-
tas do campo das questões curriculares
se tinha uma reexão de que o reconhe-
cimento desse ensino como componente
curricular seria um artefato de legitimação
e de reprodução do proselitismo e confes-
sionalidade nas escolas. Já do ponto de
vista da área das Ciências das Religiões o
seu reconhecimento era um grande ganho
para o campo das discussões que envol-
vem Educação e Religião na perspecti-
va da pluralidade religiosa, não religiosa
como também as espiritualidades para a
promoção da cultura de paz nas escolas.
Contudo, essa exclusão foi ines-
perada para muitos intelectuais e enti-
dades que discutem esse documento,
inclusive os defensores da inclusão do
Ensino Religioso na BNCC, sendo as-
sim, nos dias atuais as discussões acer-
ca desse Ensinoestão se potencializan-
do e instigando a levantar indagações
tais como: O porquê do Ensino Religioso
ter sido retirado da terceira e última ver-
são da BNCC? Quais são os discursos
produzidos nas Políticas Públicas edu-
cacionais para tal exclusão e novamente
inclusão desse ensino na BNCC? Quais
implicações e controvérsias acerca do
nãoreconhecimento e ao mesmo tempo
do reconhecimento do ER como compo-
nente curricular na BNCC?
É nesse sentido, que esse estudo
se fortalece em uma perspectiva atual
e original trazendo interlocuções entre
as questões curriculares e a área da(s)
Ciência(s) da(s) Religião(ões) apresen-
tando avanços nas reexões acerca da
problemática que envolve o Ensino Reli-
gioso e o currículo. Para tanto, o presente
estudo faz as seguintes abordagens: pri-
meiramente iniciaremos com as discus-
sões acerca das políticas de currículos
educacionais. Em seguida faremos aná-
lise do discurso dessas políticas educa-
cionais a respeito da exclusão do Ensino
Religioso na Base Nacional Comum Cur-
ricular, bem como uma reexão diante
do retorno desse ensino no referido do-
cumento. Fazendo uma interlocução com
as perspectivas sobre o discurso em Mi-
chel Foucault, dessa análise, que nos di-
recionam a levantar sinalizações e apon-
tamentos que contribuem para a reexão
crítica dos sentidos e dos signicados
que a exclusão e a inserção do Ensino
Religioso traz para as políticas curricula-
res educacionais.
1. Estado – Currículo - Ensino Religioso
No meio educacional ainda é
muito presente o discurso do Ensino
Religioso como doutrinação de uma de-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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terminada religião, legitimando de for-
ma unânime o cristianismo como um
conhecimento único a ser ensinado nas
escolas, persistindo assim, o confessio-
nalismo e o proselitismo nas práticas
pedagógicas. Essa concepção no cam-
po educacional se faz presente devido
à construção simbólica e à relação de
poder e de controle que as igrejas cris-
tãs exercemdiretamente e/ou indireta-
mente sobre o Estado que se diz, teo-
ricamente, ser laico. Ressaltamos que
não é nossa pretensão e nem é o nosso
foco nesse estudo aprofundar o debate
acerca da laicidade, porém entendemos
a importância de apresentar brevemen-
te aqui a concepção política frente a um
Estado laico, sendo assim, conforme
Cury (2004, p. 183).
O Estado se tornou laico, vale dizer
tornou-se equidistante dos cultos re-
ligiosos sem assumir um deles como
religião ocial. A laicidade, ao condi-
zer com a liberdade de expressão,
de consciência e de culto, não pode
conviver com um Estado portador
de uma conssão. Por outro lado, o
Estado laico não adota a religião da
irreligião ou da anti-religiosidade. Ao
respeitar todos os cultos e não ado-
tar nenhum, o Estado libera as igrejas
de um controle no que toca à espe-
cicidade do religioso e se libera do
controle religioso. Isso quer dizer, ao
mesmo tempo, o deslocamento do re-
ligioso do estatal para o privado e a
assunção da laicidade como um con-
ceito referido ao poder de Estado.
Diante de tal armativa, podemos
dizer que o Brasil ainda não é totalmente
laico e a religião permeia de forma indi-
reta e/ou direta a esfera pública. Fren-
te a essa discussão nos direcionamos
nosso olhar para os símbolos religio-
sos em espaços públicos dando alguns
exemplos como: o cristo redentor no Rio
de Janeiro/RJ, crucixos em tribunais,
parlamentos, entre outros. E na esfera
educacional temos o Ensino Religioso
que se torna um campo de negociação
frente a essa dicotomia, de um lado
uma educação religiosa e de outro uma
educação na perspectiva da laicidade.E
essa dicotomia percorre em todos os
seguimentos e discursos educacionais,
principalmente, no campo do currículo
quando nos deparamos com a presença,
posteriormente a retirada e novamente
a inclusão do Ensino Religioso na Base
Nacional Comum Curricular, mas antes
de adentrarmos profundamente sobre
esse documento, precisamos compre-
ender as tendências e posições teóricas
e metodológicas do Ensino Religioso no
tocante das políticas educacionais fren-
te à diversidade de culturas que habitam
nas escolas, e que cada vez mais es-
tão se intensicando as discussões nas
políticas de currículo por uma educação
que reconheceas diferenças e as identi-
dades culturais, de acordo com Moreira
e Silva (1997, p. 28), “o currículo é um
terreno de produção e de política cultu-
ral, no qual os materiais existentes fun-
cionam como matéria prima de criação e
recriação e, sobretudo, de contestação
e transgressão”.
Nessa conjuntura, temos as
discussões da(s) Ciência(as) da(s)
Religião(ões)/CR que militampelo re-
conhecimento do Ensino Religioso en-
quanto componente curricular mais ex-
pressivo que busca um ensino pluralista,
transdisciplinar e intercultural. Compre-
endendo que nas dimensões religiosas,
não religiosas e nas espiritualidades as
culturas exercem um papel importante
no reconhecimento de serem particu-
lares e por terem identidades híbridas,
assim, o respeito a essas dimensões
precisa ser praticado e efetivado no
planejamento analítico e sistêmico das
políticas educacionais direcionadas ao
Ensino Religioso.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Tendo em vista que pensar no
Ensino Religioso preocupado com a
pluralidade cultural em uma perspecti-
va intercultural é um ato político, uma
vez que no contexto social que estamos
inseridos onde culturas negociam sua
existência no embate entre dominação
e resistência esse ensino fica vulne-
rável diante dessa dualidade. Essa é
uma das grandes problemáticas acerca
desse ensino, pedagogicamente falan-
do, pois quando se trata de represen-
tações religiosas não pode haver pre-
ferencias e, tão pouco, ver uma religião
assimetricamente das demais. Essas
perspectivas precisam ser repensadas
na dimensão política e cultural diante
de um cenário que historicamente de-
terminados grupos sociais, bem como
suas crenças religiosas foram vitimas
de práticas repressoras e cruelmente
silenciadas, nas quais obrigatoriamente
tiveram que negar sua identidade e seu
reconhecimento social, com determina-
dos grupos étnicos, principalmente, as
religiões indígenas e afro-brasileiras.
E no âmbito educacional essas
religiões sofreram e ainda sofrem pre-
conceito e discriminação, utilizando o
Ensino religioso como instrumento pro-
pício de reprodução dessas práticas.
No entanto, defendemos aqui esse en-
sino na perspectiva da(s) CR, partindo
de temáticas alusivas às práticas reli-
giosas, não religiosas e as espirituali-
dades ancorando-se em metodologias
que favoreçam a superação de violên-
cias de fins religiosos, promovendo a
cultura de paz e o respeito à diversida-
de cultural fomentando, assim, possi-
bilidades múltiplas de conhecimentos,
interação dialógica e aprendizado en-
tre todos os sujeitos que fazem parte
do contexto escolar, em um trabalho
envolvendo a tríade coletivista entre,
escola – família – comunidade, não se
limitando apenas entre a relação: edu-
cador e educando.
Mas como lidar com as diferenças
religiosas nos currículos destinados ao
Ensino Religioso onde se há um controle
do Estado? Com essa questão, entende-
mos que no currículo escolar pouco se
tem discutido e problematizado diante do
Ensino Religioso com o olhar e a cons-
ciência de um ensino pluralista, em que
sujeitos possam dialogar e interagir de
forma aberta, dinâmica e humana com
outros sujeitos, reconhecendo e res-
peitando a si e ao outro como diferente
diante de suas crenças de cunho religio-
so, de não religioso, como também de
espiritualidades que precisam ser consi-
deradas em um mundo diverso cultural-
mente ao qual fazemos parte. Conforme
Santos e Lacerda (2016, p. 300) refor-
çando que essa interação:
[...] é importante para compreender-
mos, reconhecer e respeitar as re-
presentações culturais do nosso con-
texto educacional, e o/a educando/a
enquanto pessoa pensante e atuante
a partir de um meio que não reconhe-
ce o diverso possa transformar criti-
camente essa realidade vivenciada,
que é excludente e discriminatória as
diversidades culturais religiosas con-
sideradas minoritárias.
Nesse sentido, novas condições
se evidenciam para o Ensino Religioso
e emerge a necessidade de novas for-
mas de pensar e organizar o currículo
para agir nesse ensino, pois no contexto
atual não cabe mais relacionar o Ensino
Religioso como uma educação religiosa,
como também, não podemos silenciar
diante de atos prosélitos e confessio-
nais nas práticas pedagógicas. É pos-
sível tecer que precisamos proporcionar
um currículo a esse ensino com cará-
ter político e cultural e de tendências e
posições teórico e metodológico como
cultura dialógica e interativa que pro-
porcione os sujeitos observarem suas
próprias ações nas suas vidas diárias e,
58
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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principalmente na relação de coletivida-
de, onde as identidades e subjetividades
são percebidas e consideradas.
Advogando aqui a importância do
rompimento efetivo do controle social da
igreja sobre o Estado que exerce seu po-
der nos currículos escolares nos quais
utilizam as políticas de currículo no En-
sino Religioso, como dito anteriormente,
como campos de negociações, de repro-
duções das relações de poder nas prá-
ticas metodológicas e curriculares para
esse ensino. Essa armativa se fortale-
ce diante das constantes reformulações
curriculares, e, recentemente nos depa-
ramos com uma dessas reformulações,
o caso, da inserção e retirada do Ensino
Religioso na Base Nacional Comum Cur-
ricular – BNCC.
2. Base Nacional Comum Curricular:
Avanços e retrocessos no Ensino Religioso
Diante dos contrapontos, aqui já
apresentados e discutidos, das políti-
cas de currículos no Ensino Religioso,
nas quais entre essas políticas, temos
a Base Nacional Comum Curricular –
BNCC. Esta, por sua vez acarreta por
trás do discurso político educacional de
melhoria na educação, uma lógica mer-
cantilista e capitalista, que atende co-
biças empresariais privadas. A respeito
desta ideia de um currículo comum nos
aproximamos da ótica da Süssekind
(2014) quando ela se remete as discus-
sões de currículo como uma conversa
complicada através da perspectiva de
William Pinar, conforme a autora:
Trago para esta conversa compli-
cada alguns recortes de encontros,
debates e publicações recentes na
mídia que trazem ao palco de dis-
putas diversas noções de currículos.
Representando diferentes grupos e
interesses sociais, às vezes de modo
pouco declarado, estão no debate
MEC, Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira (Inep), União Nacional dos Diri-
gentes Municipais de Educação (Un-
dime), aqueles que se apresentam
como “o grupo ue defende a BCN” ,
entidades de classe, associações da
sociedade civil e de professores, em-
presários da educação, empresários
do mercado editorial, institutos e fun-
dações, entre outros interessados.
(SÜSSEKIND, 2014, p. 1517)
Diante de tal enunciação, pode-
mos armar a nossa visão contrária a
BNCC, uma vez que a logística da Base é
compartilhar conhecimentos e objetivos
comuns a todos, mas que conhecimen-
tos e objetivos de ensino queremos que
sejam trabalhados nas escolas? Será
que esses conhecimentos e objetivos
são viáveis em uma Base Nacional Co-
mum para todos? Todos terão o mesmo
acesso aos conhecimentos e objetivos
de ensino? Essas são apenas algumas
inquietações que precisam ser questio-
nadas quando pensamos na BNCC. E,
é nesses questionamentos que perce-
bemos a importância de pensarmos nas
criticas contrárias da maioria dos curri-
listas acerca da implementação e execu-
ção da BNCC.
Contudo, nesse novo cenário atu-
al que estamos enfrentando no campo
do currículo nos deparamos com mais
uma fragilidade da Base Nacional Co-
mum Curricular, com a retirada do En-
sino Religioso em sua última versão.
Embora, havendo a preocupação em
se ter um currículo único escolar diante
da singularidade de cada contexto so-
cial que é multicultural e de especícas
identidades, essas questões, quando
nos direcionamos ao Ensino Religioso
percebemos uma complexidade quando
limitamos a um único currículo comum a
todos. Além disso, “As identidades são
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
construídas por meio das diferenças e
não fora delas” (HALL, 2009, p. 110). É
nesse sentido, que permeiam as discus-
sões curriculares onde as identidades
e as subjetividades devem ser conside-
radas no currículo, principalmente, no
currículo escolar. Uma vez que, de acor-
do com Silva (2007, P. 117) “o currículo
como representação”, assim, o discurso
exerce um grande poder social, sendo
que por meio deste “constrói-se “identi-
dades”, cria-se “representações””(SILVA
2017, p. 117). Com essa compreensão,
queremos aqui fazer uma análise dos
sentidos e impactos que podem causar
diante da manutenção do ER na BNCC e
algumas considerações que são eviden-
ciadas diante a exclusão desse ensino
na última versão do referido documento.
No estudo comparativo entre a segunda
versão reformulada e a terceira versão
da BNCC disponibilizado pelo MEC, po-
demos observar que esse órgão federal
faz a seguinte justicativa para a retira-
da do Ensino Religioso no Ensino Fun-
damental – Áreas do Conhecimento e
Componentes Curriculares.
A área de conhecimento de Ensino
Religioso e o respectivo componen-
te curricular, presentes na Versão 2
da BNCC, foram excluídos da Ver-
são Final em atenção ao disposto na
LDB: a Lei determina que o Ensino
Religioso seja oferecido aos alunos
do Ensino Fundamental nas escolas
públicas em caráter optativo, caben-
do aos sistemas de ensino a sua
regulamentação e definição de con-
teúdos (Art. 33, § 1º). Portanto, sen-
do esse tratamento de competência
dos Estados e Municípios, aos quais
estão ligadas as escolas públicas
de Ensino Fundamental, não cabe
à União estabelecer base comum
para a área, sob pena de interferir
indevidamente em assuntos da al-
çada de outras esferas de governo
da federação.
Na Versão 2 da BNCC, previam-
-se objetivos de aprendizagem para
o componente curricular Língua Es-
trangeira Moderna. Na Versão Final,
as habilidades a ser desenvolvidas
pelos alunos no Ensino Fundamen-
tal – Anos Finais passam a se referir
a uma língua estrangeira específica:
a Língua Inglesa. A BNCC trata das
aprendizagens essenciais a ser as-
seguradas a todos os alunos da edu-
cação básica – e, portanto, daquilo
que é comum, obrigatório. Anterior-
mente, a LDB não trazia a Língua
Inglesa como estudo obrigatório.
Todavia, a Lei nº 13.415, de 16 de
fevereiro de 2017, altera a LDB: tor-
na a Língua Inglesa obrigatória des-
de o 6º ano do Ensino Fundamental
(Art. 26, § 5º) e define que, no Ensi-
no Médio, os sistemas de ensino po-
derão, se assim desejarem, ofertar
outras línguas estrangeiras em ca-
ráter optativo, preferencialmente a
Língua Espanhola (Art. 35-A, § 4º).
(MEC, 2017, P.12)
Como podemos observar o dis-
curso produzido acima apenas remete
a consonância com Lei de Diretrizes e
Bases da Educação - LDB que dá a esse
ensino caráter optativo, entretanto, no
artigo 33 da LDB diz que a matrícula dos
educandos nesse ensino que é optativa,
uma vez que na Constituição Federal de
1988 o Ensino Religioso é uma disciplina
que deve ser ofertada obrigatoriamente
nas escolas públicas. Nesse sentido, a
argumentação posta pelo MEC baseada
apenas no quesito da disciplina ser op-
tativa se torna fragilizada e/ou equivoca-
da, já que há a oferta obrigatória. Dian-
te de tal alegação, é necessário reetir
a respeito das duas versões anteriores
da BNCC como o MEC não se atentou
a essas questões, de oferta obrigatória
e de matrícula facultativa? Uma vez que
desde a elaboração da primeira versão
da BNCC esse órgão federal abriu es-
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
paço para a população dar sugestões,
no entanto, acatando assim, algumas re-
formulações que consideramos positivas
na segunda versão. Conforme a segun-
da versão reformulada da BNCC, temos:
[...] tanto a Constituição Federal de
1988, quanto a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LD-
BEN) 9.394/1996, redeniram os
fundamentos epistemológicos e pe-
dagógicos do Ensino Religioso, aten-
dendo a reivindicações da sociedade
civil, de sistemas de ensino e de ins-
tituições de Educação Superior que
almejavam o reconhecimento de cul-
turas, de tradições e de grupos reli-
giosos e não religiosos que integram
a complexa e diversa sociedade bra-
sileira. (BNCC, 2016, p. 170)
Como podemos identicar na cita-
ção acima, o próprio documento na se-
gunda versão reformulada faz menção,
tanto a Constituição quanto a LDB, nes-
te caso, ca clarividente que a BNCC foi
elaborada ciente a respeito da oferta obri-
gatória e a matrícula facultativa do Ensi-
no Religioso. Se há essa clareza, qual
o motivo então, na sua terceira versão,
o ER ter sido excluído? Nesse caso, o
discurso estabelecido para argumentar a
retirada desse ensino na BNCC se torna
contraditório frente às comparações das
duas versões. Quando nos referimos ao
discurso recorremos a uma abordagem
Foucaultiana. Assim, Foucault, no livro A
ordem do discurso (2007),conceitualiza
o discurso onde é produzido em função
das relações de poder e no livro Arque-
ologia do Saber (1986), o autor traz ele-
mentos sócio-históricos fundamentais
para compreender a constituição da for-
mação do discurso como prática em um
contexto das relações sociais.
Para esse autor, “o discurso não
é simplesmente aquilo que traduz as lu-
tas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder
do qual nós queremos apoderar” (FOU-
CAULT, 2007, p.10) entendemos que o
discurso comumenterelaciona-se com o
poder. Nesse sentido, o discurso é um
mecanismo de hierarquizar conhecimen-
tos e legitimação de poder, assim, per-
cebemos que por trás da linha de argu-
mentação frágil justicando a exclusão
do Ensino Religioso há categorias de
interesses que hierarquizam, excluem e
reproduzem campos de disputas onde
as relações de poder são legitimadas no
âmbito político educacional.
Continuando com o autor “o dis-
curso está intimamente ligada à ques-
tão da constituição do sujeito social.
[...] os sujeitos sociais não são causas,
não são origem do discurso, mas são
efeitos discursivos”. (FOUCAULT, 1986,
p.109). Nessa perspectiva, a argumen-
tação da retirada do ensino religioso se
torna um discurso camuflado de impo-
sição do que se quer formar o sujeito
social diante de uma Base Nacional Co-
mum Curricular que estabelece um cur-
rículo comum, trazendo conhecimentos
e objetivos de ensino que estabelecem
hierarquias sociais, econômicos e et-
nias, etc. Retirando assim, os conheci-
mentos que podem por sua vez, refletir
criticamente as linhas traçadas de hege-
monias e reproduções de poder. Nesse
tocante, o Ensino Religioso como pre-
visto na segunda versão reformulada
da BNCC não atendia a essa logística,
sendo assim, a sua não contemplação
na última versão desse documento.
Consideramos plausíveis algumas
reformulações feitas na segunda versão
da BNCC devido à proposta que defen-
demos no Ensino Religioso enquanto
conhecimento rizomático em uma ótica
pluralista e de respeito à diversidade cul-
tural, no que tange as questões religio-
sas, não religiosas e as espiritualidades,
e percebemos que na segunda versão
61
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
revista da Base estava se direcionando
para esse trajeto. Esse reconhecimento
vai além da simplicação de uma ideia
de comum, no qual se tem um Ensino
Religioso que percebe nuances diante
das questões que envolvem o campo
das religiões. Vericamos isso na cita-
ção abaixo que é um recorte da segun-
da versão reformulada da BNCC no qual
o Ensino Religioso estava posto com
maior visibilidade no que diz respeito da
necessidade de um diálogo intercultural
e inter-religioso nesse componente cur-
ricular. Como podemos observar:
A área do Ensino Religioso não se
reduz à apreensão abstrata dos
conhecimentos religiosos, mas se
constitui em espaço de vivências e
experiências, intercâmbios e diálo-
gos permanentes, que visam ao en-
riquecimento das identidades cultu-
rais, religiosas e não religiosas. Isso
não signica a fusão das diferenças,
mas um constante exercício de con-
vivência e de mútuo reconhecimento
das raízes culturais do outro/a e de
si mesmo, de modo a valorar iden-
tidades, alteridades, experiências e
cosmovisões, em perspectivas inter-
culturais. (BNCC, 2016, p.170)
Com essa visão, o ER que es-
tava proposto trazia uma abordagem
pedagógica pensando na formação do
ser enquanto pessoa que reconhece o
outro com suas diferenças, crenças e/
ou não crenças de cunho religioso e de
espiritualidades, no qual o respeito é
tema central nesse processo de ensino
e aprendizagem quando pensamos em
conhecimentos e objetivos direciona-
dos ao Ensino Religioso que possibilite
a reflexão crítica dos educandos provo-
cando, assim, uma discussão que leve
os sujeitos da escola a compreender os
processos de exclusão e desigualdades,
no sentido de buscar estratégias peda-
gógicas e metodológicas nas práticas
educativas a serem trabalhadas para o
combate a todas as configurações de
hegemonização diante das questões
que envolvem esse ensino, possibilitan-
do a contemplação das religiões, das
espiritualidades, entre outras questões
religiosas e não religiosas, que existem
no contexto das relações sociais em que
estamos inseridos, proporcionando, as-
sim, um ensino para a reflexão, cons-
cientização e transformação de uma
sociedade preconceituosa e intolerante
com as demais religiões que foram e
ainda são vítimas de preconceito devido
à legitimação, ao longo da história, das
religiões consideradas cristãs.
Frente a essa discussão, o Ensi-
no Religioso se ressignica ganhando
visibilidade e assumindo um papel pre-
ponderante em uma proposta pluralista,
crítica, e de respeito à diversidade cultu-
ral, contudo essa perspectiva de ensino
se torna uma problemática e até mesmo
uma “ameaça” diante da atual conjun-
tura política que estamos vivenciando,
onde temos representações no Congres-
so Nacional em que na sua maioria são
declaradamente da religião cristã, princi-
palmente evangélica e, essa é mais uma
questão a ser analisada, pois a relação
entre a cultura, o conhecimento e o po-
der se manifesta quando as represen-
tações políticas decidem que conheci-
mentos, que culturas são consideradas
como “verdadeiras” a serem abordados
e desempenhados no papel de escola-
rização. Essas são principais quesitos
abordados por Michel Apple em seu livro
“Educando à direita: mercados, padrões,
Deus e desigualdade” (2003). Apple faz
uma análise crítica e posiciona-se con-
tra as reestruturas e reformas radicais
conservadoras no campo educacional,
assim, o autor conceitualiza precisamen-
te esse determinado seguimento repre-
sentativo como “populistas autoritários
– fundamentalistas religiosos e evangé-
licos conservadores que querem um re-
62
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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torno a (seu) Deus em todas as nossas
instituições”. (APPLE, 2003, p. 13)
Diante dessa concepção, os po-
pulistas autoritários com posicionamen-
tos conservadores visam um Estado
regido pelos fundamentos cristãos, e,
isso implica na legitimação dos conhe-
cimentos influenciando e/ou impondo
no que pode e no que não pode ser en-
sinado nas escolas, pois a escola é per-
cebida enquanto um campo de disputa
da igreja produzindo currículos cujas
correntes são dogmáticas e conserva-
doras daquilo que consideram como co-
nhecimento “legítimo”, nesse sentido, o
discurso produzido por esses determi-
nados grupos acerca do conhecimento
é camuflado na ideia de neutralidade e
imposto nas escolas (APPLE, 2003). E,
um exemplo desse discurso, é a elabo-
ração do projeto de lei “Escola sem par-
tido”. Conforme Frigotto (2017, p. 09):
O Escola sem Partido utiliza-se de
uma “linguagem próxima do senso
comum, recorrendo a dicotomias sim-
plistas que reduzem questões com-
plexas a falsas alternativas”, e expan-
de-se por meio de memes, “imagens
acompanhadas de breves dizeres”,
por “quatro elementos principais: pri-
meiro, uma concepção de escolariza-
ção; segundo, uma desqualicação
do professor; terceiro, estratégias
discursivas fascistas; e, por último, a
defesa do poder total dos pais sobre
os seus lhos”. Contém estratégias
discursivas fascistas através de “ana-
logias voltadas à docência, que de-
sumanizam o professor”, tratando-o
como “um monstro, um parasita, um
vampiro” na forma de memes ofensi-
vos, incluindo Gramsci e Paulo Freire.
Instalam um “clima de denuncismo” e
“um discurso de ódio”.
De acordo com o autor, podemos
identificar que esse projeto de lei é uma
forma de controlar o que pode ser ensi-
nado e aprendido nas escolas, em que
práticas discriminatórias, excludentes,
preconceituosas e doutrinárias são ca-
mufladas em um discurso de neutralida-
de, nesse projeto de lei o conhecimento
escolar é direcionado para uma visão
ideológica de conservadorismo neolibe-
ral. E referindo ao Ensino Religioso no
documento “Escola sem partido” apon-
ta para o retorno do ensino moral e cí-
vico subvertendo quaisquer reflexões
críticas acerca da diversidade cultural
religiosa, não religiosa como também
as espiritualidades. Por que abordar o
projeto de lei “Escola sem Partido” nes-
se estudo? Para poder entender como
esses grupos denominados conforme
Apple (2003) de populistas autoritários
estão se organizando e crescendo no
campo da política brasileira, em que
esses grupos estão elaborando, estru-
turando e deliberando políticas públicas
voltadas para educação, retrocedendo
assim, nosso ensino ditando e estabe-
lecendo uma escola que, na verdade,
pressupõe de um único partido, de um
único conhecimento, de uma única cul-
tura e de uma única religião.
O foco desse estudo não é apro-
fundar as discussões a respeito da
Escola sem Partido, entretanto, quan-
do nos remetemos a BNCC, logo, não
podemos desconsiderá-lo, pois tanto a
BNCC, a Escola sem Partido como tam-
bém a Reforma do Ensino Médio estão
diretamente ligados, e, são documen-
tos governamentais que retrocedem e
prejudicam a nossa educação. Assim,
é notório identificar que uma educação
democrática proposta no ER e contem-
plada na segunda versão reformulada
da Base não poderia ser viável, diante
de um era conservadora que estamos
vivenciando, a partir da nossa análise
Ensino Religioso foi retirado de forma
estratégica na terceira versão da Base
Nacional Comum Curricular, no entan-
63
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
to, recentemente, temos a inclusão no-
vamente desse ensino na BNCC. Com
essa nova inclusão, (re)surgem preo-
cupações acerca desse componente
curricular, como o ER contemplará em
um currículo único as tradições cultu-
rais, uma vez que essas tradições se
apresentam com manifestações cultu-
rais religiosas diferentes que variam
de acordo com determinadas regiões?
E de que forma o ER irá separar as
convicções religiosas dos conteúdos a
serem abordados em um currículo pré-
-estabelecido? É considerável fazer es-
sas indagações por estarmos diante de
concepções doutrinárias previstas por
esses determinados grupos autoritários
que ganham cada vez mais força no
nosso cenário político,retornando as-
sim, o conservadorismono campo edu-
cacional brasileiro.
Conclusão
Diante do que foi exposto nesse
estudo, é possível perceber que as dis-
cussões apontadas aqui são algumas de
muitas inquietações quando pensamos
no Ensino Religioso e sua visibilidade no
campo das políticas de currículo direcio-
nado para educação, nesse sentido, não
temos a pretensão de nos limitarmos as
discussões propostas aqui nesse estudo.
Contudo, zemos algumas sinalizações
que podem possibilitar outras reexões
para potencializar teoricamente, esptemo-
logicamente e pedagogicamente as no-
vas tendências que nos fazem defender
o Ensino Religioso nas escolas públicas.
Levantando assim, novas possibilidades
para os estudos curriculares frente a um
ensino que possa contribuir de forma sig-
nicativa no combate de quaisquer formas
de proselitismo e confessionalismo no
processo de ensino e aprendizagem.
No entanto, apesar de termos
elencado pontos negativos com a im-
plementação da Base Nacional Co-
mum Curricular nas escolas brasilei-
ras, defendemos aqui a importância
da inserção do Ensino Religioso na
BNCC, devido à perspectiva de plura-
lidade, de respeito das diversas cultu-
ras e de abertura de novos caminhos
para a cultura de paz nas escolas.
Para o terreno da(s) Ciências(as)
da(as) Religião(ões) o reconhecimento
do ER enquanto componente curricu-
lar como previsto nas versões anterio-
res, é um grande marco e avanço na
militância desse ensino no combate a
intolerância religiosa, uma vez posta
na Base, necessitaria de formação (ini-
cial e continuada) adequada, no caso,
uma formação no(s) curso(s) de CR de
educadores para poder lecionar esse
componente curricular.
Diante da nossa análise, a ideia
de que a BNCC garante as mesmas
oportunidades para todos como previs-
to no documento se contradiz a partir
do momento que o ER foi excluído na
sua última versão, e, essa exclusão
nos permite concluir, portanto, que o
documento proposto é mais um arte-
fato que legitima hegemonias, precon-
ceitos, discriminações, e relações de
poder no que se refere às questões re-
ligiosas. Dando ainda maior visibilida-
de as religiões consideradas cristãs e
desconsiderando de forma direta e/ou
indireta as demais religiões, e, as ou-
tras formas de crenças/ não crenças,
como também as espiritualidades em
um processo de negação de si e do ou-
tro no âmbito educacional. Porém com
a nova inserção do ER na BNCC, nos
direcionamos para a necessidade e a
importância da presença desse ensino
nas escolas públicas para possibilitar
um espaço de construção de novos co-
nhecimentos por meio do currículo e
das práticas curriculares que identifi-
cam e consideram as individualidades,
as subjetividades e as identidades.
64
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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so em: Maio, 2017.
Recebido em 26/07/2017
Aprovado em 14/09/2017
I Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Ciências das Religiões pela Universidade Fe-
deral da Paraíba - PPGCR/UFPB, na linha de pesqui-
sa Educação e Religião. Graduada em Pedagogia pela
mesma instituição. Email: mirirodrigues2@gmail.com
65
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Cultura e regionalidade: semelhanças e diferenças
nas festas do Divino Espírito Santo no território brasileiro
Cultura y regionalidad: similitutes y diferencias
en las estas del Divino Espíritu Santo en el territorio brasileño
Culture and regionality: similarities and dierences
in the Holy Divine Spirit holidays in Brazilian territory
Débora B. G. Thomsen
I
Rosália Maria Netto Prados
II
Luci Mendes de Melo Bonini
III
Resumo:
Estudam-se as festas do divino dos municípios de Mogi das Cruzes -
SP, Alcântara – MA, Pirenópolis - GO, São João Del Rei – MG e Vale do
Guaporé–MT- RO a m de se identicar eventos folclóricos, religiosos
e profanos, bem como apontar políticas locais de preservação de
patrimônio histórico, cultural – material e imaterial. Optou-se pelo
método de revisão bibliográca e documental – tanto documentos
ociais como documentários expostos nas redes sociais e páginas
ociais dos municípios. Os resultados demonstraram que as festas do
Divino em várias regiões do Brasil são bastante semelhantes dadas
as origens portuguesas.Não se encontrou, na maioria dos casos,
políticas culturais de reconhecimento de patrimônio cultural, mas sim,
de incentivos turísticos em algumas delas.
Palavras chave:
Regionalismo
Festa do Divino
Religiosidade e cultura
Patrimônio cultural
66
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Se estudian las estas del divino de los municipios de Mogi das Cruzes
– São Paulo, Alcantara - Maranhão, Pirenópolis - Goiás, São João Del
Rei – Minas Gerais y Valle del Guaporé – Mato Grosso y Rondônia a
n de identicar eventos folclóricos, religiosos y Profanos, así como
apuntar si existen políticas locales de preservación de patrimonio
histórico, cultural - material e inmaterial. Se optó por el método de
revisión bibliográca y documental - tanto documentos ociales como
documentales expuestos en las redes sociales y páginas ociales de
los municipios. Los resultados demostraron que las estas de lo divino
en varias regiones de Brasil son bastante similares a las orígenes
portuguesas. No se ha encontrado, en la mayoría de los casos, políticas
culturales de reconocimiento de patrimonio cultural, sino, Incentivos
turísticos en algunas de ellas.
Abstract:
This paper presents a research about the Holy Ghost feast in dierent
municipalities in Brasil: Mogi das Cruzes - São Paulo, Alcântara –
Maranhão, Pirenópolis - Goiás, São João Del Rei – Minas Gerais and
Vale do Guaporé – Mato Grosso and Rondônia in order to identify folk,
religious and secular events, as well as local political point of preservation
historical, cultural heritage – tangible and intangible. The method was
the bibliographical and documental review– both ocial documents
as documentaries exposed in social networks and ocial pages were
chosen to clarify the objects studied here. The results showed that the
parties of the divine in various regions of Brazil are quite similar because
the Portuguese sources. It was not found, in most cases, cultural policies
cultural heritage recognition, but tourist incentives in some of them.
Palabras clave:
Regionalismo
Fiesta de lo Divino
Religiosidad y cultura
Patrimonio cultural
Keywords:
Regionalism
Holy Ghost Feast
Religion and culture
Cultural heritage
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Cultura e regionalidade: semelhanças
e diferenças nas festas do Divino
Espírito Santo no território brasileiro
1. Introdução
As festas religiosas são considera-
das manifestações importantes e necessá-
rias para integração da comunidade, repre-
sentação da cultura e memória local, além
de propiciar a valorização da expressão
coletiva. Nessas comemorações os devo-
tos podem manifestar com liberdade suas
crenças e sua fé, aguçados por um ideal de
igualdade e solidariedade (ARAÚJO, 2004).
De acordo com Lossio e Pereira
(2007), as manifestações populares que
apresentam um contexto regional, repre-
sentam uma identidade cultural e são um
incentivo ao desenvolvimento local. Para os
autores, devemos considerar que essa re-
presentação cultural popular, com o passar
do tempo, sofre alterações em função de
mudanças no panorama econômico, admi-
nistrativo, educativo, social e político da re-
gião bem como as políticas públicas envolvi-
das na valorização da manifestação social.
No contexto globalizado em que
vivemos, a facilidade na comunicação
altera a dinâmica dessas manifestações
folclórico-religiosas já que a divulgação
pode acontecer em larga escala, atrain-
do turistas e empreendedores. De acor-
do com Simões (2006), esse tipo de tu-
rismo apresenta interesses econômicos,
mas também colabora com o desenvol-
vimento local.
Em conformidade com o exposto,
a UNESCO (1989) reconhece que a cul-
tura tradicional e popular, fundamentada
em tradições, é expressa por um grupo
ou indivíduos e representa a identidade
de uma comunidade.
Em 1989 a UNESCO organizou uma
recomendação para a salvaguarda da cul-
tura tradicional e popular. Nela, a organi-
zação enfatiza o valor desses patrimônios
imateriais como a aproximação entre os di-
ferentes povos e grupos sociais, a arma-
ção da identidade cultural, sua importância
para o desenvolvimento social, econômico,
cultural, político e histórico de uma nação.
A Conferência Geral também reconheceu a
fragilidade dessas formas de cultura, princi-
palmente quando essas tradições são orais.
Assim, recomenda aos Estados
medidas legislativas ou outras que sejam
necessárias, para fomentar e preservar
essas representações culturais. Neste
sentido, este texto busca traçar alguns
pontos que possam justicar o debate.
Alguns levantamentos podem iluminar al-
guns cantos da necessidade de se buscar
políticas mais ecazes no reconhecimento
do patrimônio cultural brasileiro a m de
promover a cultura, o turismo e enfrentar o
desmonte do sentimento de pertencimen-
to que a globalização ameaça.
Regionalmente as festas religiosas
se diferenciam umas das outras por apre-
sentarem inuências de fatores socioeco-
nômicos, étnicos, tradições e memória co-
letiva. Em alguns lugares as festividades
contam apenas com missas e quermesses,
em outras localidades as tradições, o colori-
do da festa, os aspectos folclóricos e históri-
cos, transformam as comemorações em um
evento de grande porte (ARAÚJO, 2004).
Neste sentido, trabalho tem como ob-
jetivo estudar a Festa do Divino em algumas
regiões do país de modo a identicar ativida-
des relacionadas à ao folclore, à religiosida-
de, atividades culturais e turísticas e se exis-
tem políticas locais que as salvaguardam.
Os resultados demonstraram que as
festas do divino em várias regiões do Brasil
são bastante semelhantes dadas as origens
portuguesas, a tradição oral vem sustentan-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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do essas atividades e não se encontrou, na
maioria dos casos, políticas culturais de reco-
nhecimento de patrimônio cultural, mas sim,
de incentivos turísticos em algumas delas.
2. Método
Esta pesquisa é de natureza descriti-
va de abordagem qualitativa. A m de poder
descrever cada localidade, suas característi-
cas e as de cada Festa do Divino, utilizou-se
a revisão da literatura: artigos, livros teses
e dissertações encontradas em portais aca-
dêmicos de modo que se pudesse ter uma
visão ampla sobre cada uma delas. Foram
realizadas revisões tendo como base de in-
formação os portais ociais das prefeituras,
blogs ociais e canais do YouTube de devo-
tos ou simplesmente pessoas interessadas
para detalhamento de eventos ou ainda de
dados sobre as políticas locais.
Cultura e regionalidade:
a Festa do Divino no Brasil
De acordo com Simões (2006), as
identidades e as culturas são móveis, elas
se deslocam e redenem fronteiras. Seus
componentes podem originar-se em uma
região e migrar para outras, e assim, po-
dem evidenciar suas características ou
miscigenar-se com outra cultura:
Nesse âmbito, os trânsitos contribuem
para reexões sobre tensões, conver-
gências e divergências entre o local,
o nacional e o global, tendo em conta
que a globalização promove movimen-
tos migratórios em relação ao local e
acentua as suas questões identitárias.
(SIMÕES, 2006, p. 10).
A Festa do Divino Espírito Santo,
inicialmente era relacionada aos antigos
rituais pagãos do culto aos vegetais, con-
tudo, logo depois foi protegida pela Igreja
e passou a ser utilizada como forma de
evangelização. Atualmente ela é conside-
rada a manifestação católica mais antiga
de que se tem conhecimento em Portugal
e no Brasil. Datando de 1321, essa festi-
vidade representa uma comemoração às
graças concedidas pela terceira pessoa
da Santíssima Trindade, o Espírito Santo
e originou-se em Portugal, mas posterior-
mente foi difundida pelo mundo. (BONINI;
PEREIRA, 2015)
É provável que a celebração tenha
chegado ao Brasil no século XVI e a par-
tir daí, espalhou-se e foi sendo modicada
para adaptar-se às diferenças regionais
do país. Encontram-se particularidades
socioeconômicas, étnicas, tradicionais e
relacionadas à memória coletiva, o que faz
com que cada festa tenha sua particulari-
dade, sua identidade (ARAÚJO, 2004).É
importante destacar que o devoto, partici-
pante ativo das festividades em homena-
gem ao Divino, é o exemplo de expressão
da crença popular (CHAVES, 2010).
A festividade conta ainda com a
participação do seu personagem mais ca-
racterísticos, o imperador, ou casal de im-
peradores, que em algumas cidades são
representados por crianças, em outras
são utilizados adultos nesta função. Eles
signicam “alguém do povo que é esco-
lhido para ser o mensageiro da palavra de
Deus”. Em algumas cidades seus encar-
gos são apenas simbólicos, aparecendo
para realizar alguns protocolos nas cele-
brações, já em outras localidades, eles
realizam parte da organização da festa,
arrecadação de fundos, e orações.
Em algumas festas, as atrações
apresentadas, tais como cantores, sho-
ws, etc., nem sempre são regionais, mas
são consideradas importantes e possuem
grande visibilidade por impulsionarem o
turismo e, consequentemente, a econo-
mia do local, e por isso, são valorizadas
em detrimento do fortalecimento da comu-
nidade e de seus artistas populares.
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Pensando nos benefícios relaciona-
dos à identidade local, ao desenvolvimento
econômico e nas possibilidades de estímu-
los à cultura, turismo e comércio (setores
formais e informais) de uma determinada
região, o governo por meio do Ministério da
Cultura, criou alguns projetos direcionados
à valorização das manifestações culturais
como a Lei Federal de Incentivo à Cultu-
ra (Lei nº 8.313/91), a Lei Rouanet, e a Lei
do Audiovisual (Lei nº 8.685/93) (BRASIL,
2017). Esse apoio é fundamental para que a
relação entre cultura e desenvolvimento seja
complementar, e, assim, consolide a diversi-
dade como um direito, visto que, “o núcleo da
relação entre cultura e desenvolvimento em
países como o Brasil passa, necessariamen-
te, pelo tenso equilíbrio entre diversidade cul-
tural e desigualdade social” (ALVES, 2010).
Festa do Divino:
Mogi das Cruzes – São Paulo
A cidade de Mogi das Cruzes está
localizada na região sudeste do estado de
São Paulo, distante 50km da capital, São
Paulo. Possui uma população estimada de
429.321 habitantes (IBGE, 2016) sendo que
em 2010 eram 387.779 (IBGE, 2010). Des-
tes, 199.604 são católicos (51,47% da po-
pulação contabilizada em 2010), e 114.148
são evangélicos (29,44%) (IBGE, 2010). A
cidade foi fundada em 1611 por Gaspar Vaz,
e surgiu em função dos bandeirantes.
A tradicional Festa do Divino Espí-
rito Santo de Mogi das Cruzes acontece
50 dias após a Páscoa e celebra o dia
de Pentecostes. São 404 anos de devo-
ção. Esse é um dos motivos que a faz ser
considerada patrimônio cultural da cidade
(SILVA; SANTOS; BONINI, 2017).A prefei-
tura reconhece a tradição, o valor históri-
co, o envolvimento religioso e os aspectos
culturais relacionados, tanto que fundou o
Museu da Festa do Divino Espírito Santo
que objetiva preservar a memória e valori-
zar os bens advindos das comemorações
além de sediar uma das celebrações de
abertura da festa.
Identicada como Patrimônio Imate-
rial da cidade desde 2009, a Festa do Divino
valoriza a expressão folclórica-religiosa dos
antigos moradores que praticavam a adora-
ção ao Espírito Santo, desde o século XVII.
Considerada uma das festas mais antigas do
Brasil, a festa de Mogi das Cruzes é respon-
sável pela mobilização de 3000 voluntários,
aproximadamente, devotos e visitantes, que
juntos somam mais de 400 mil pessoas par-
ticipantes nos mais de 60 eventos relaciona-
dos à festividade (BONINI; PEREIRA, 2015).
Em Mogi das Cruzes há um cortejo
intitulado Entrada dos Palmitos: uma procis-
são com carros de boi e cavaleiros – muito
enfeitados com palmitos: vegetal abundan-
te na região em décadas passadas. Esse
cortejo traz os devotos com seus cavalos e
cavaleiros enfeitados, com suas bandeiras
para honrar e demonstrar sua devoção à ter-
ceira pessoa da santíssima Trindade. Saem
à frente os festeiros e capitães do mastro,
ex-festeiros, personalidades políticas e con-
vidados, em seguida grupos de devotos que
se dividem por sentimento de pertencimen-
to: jovens, idosos, crianças, rezadeiras, mui-
tos vestidos de vermelho e, na sua maioria,
com as bandeiras. Mais atrás das pessoas
vêm os grupos de congadas e marujadas
honrando seus padroeiros, com seus tam-
bores e ritmos, por último os carros de boi
enfeitados com legumes, ores e frutas, e
os cavaleiros que vêm de cidades e distri-
tos mais distantes do centro da cidade, para
onde se dirige a procissão que passa pelo
altar do divino erigido em frente à Catedral
de Santana e segue depois para o local da
quermesse onde os romeiros vão se alimen-
tar com o afogado do povo: uma distribuição
gratuita de uma sopa feita de batata com
carne de vaca (BONINI; PEREIRA, 2015).
Assim como todas as festas religio-
sas a quermesse acontece todas as noi-
tes num local especíco que a prefeitura
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da cidade organiza todos os anos a m de
dar conta da grande massa que a cidade
recebe, dada as dimensões da festa.
Um dos ritos religiosos que aconte-
cem ao longo da festa é a Alvorada: durante
9 dias, a partir das 5 horas da manhã, os
devotos se reúnem em frente da Catedral
de Santana, saem por uma procissão que
se arrasta pelo centro da cidade e rezam a
Coroa do Divino, esta ação representa uma
antiga manifestação realizada pelos devo-
tos que buscavam doações para a realiza-
ção da Festa do Divino, passando de casa
em casa, rezando e abençoando as famílias
que doavam prendas para a festa. São dife-
rentes trajetos: hospital, cemitério e igrejas.
A procissão assim se organiza: na frente os
lanterneiros, em seguida rezadores e reza-
deiras acompanhados do carro de som e
atrás desses os devotos, mais de duas mil
pessoas participam das alvoradas ao longo
da festa (BONINI; PEREIRA, 2016).
No último dia da Festa ocorre uma
procissão ao Divino Espírito Santo, que par-
te da Catedral de Santana e caminha pelas
ruas do centro da cidade. O cortejo faz sete
paradas durante o percurso em reconhe-
cimento aos setes dons do Espírito Santo
- Fortaleza, Ciência, Conselho, Sabedoria,
Piedade, Entendimento e Temor do Senhor.
Para essa procissão, devotos voluntários de
toda a cidade confeccionam tapetes decora-
dos feitos com serragem, pó de café, casca
de ovo, areia colorida, entre outros materiais.
Desde o início do ano, as rezadei-
ras realizam um trabalho de peregrinação
visitando mais de 2 mil casas, e atenden-
do cerca de 33 mil devotos. Durante essas
visitas, elas recolhem pedidos ao Divino
Espírito Santo (BONINI; PEREIRA, 2016).
O encerramento da festa se dá após
a celebração de Pentecostes, com a incine-
ração dos pedidos realizados pelos devotos
e entregues às rezadeiras ou depositados
nas urnas instaladas no Império (altar do
Espírito Santo). A queima dos pedidos sim-
boliza a elevação dos mesmos ao céu.
Para identicação dos devotos e
agentes das festividades, tradicionalmente
são utilizadas bandeiras vermelhas, com
uma pomba (representação popular do Es-
pírito Santo, conforme referências bíblicas)
no centro. Todas possuem características
comuns como tas coloridas trançadas,
a pomba envolta por ornamentação, e os
dons do Espírito Santo representados. Sem-
pre utilizando as cores vermelho e branco,
esse ícone, na maioria das vezes, é feito à
mão (VALIM; PRADOS; BONINI, 2015).
Festa do Divino: Alcântara - Maranhão
A cidade de Alcântara está localizada
na região norte do estado do Maranhão, dis-
tante 30km da capital, São Luís. Possui uma
população estimada de 21.667 habitantes
(IBGE, 2016) sendo que em 2010 eram
21.851 (IBGE, 2010). Destes, 12.658 são
católicos (58% da população contabilizada
em 2010), e 4.249 evangélicos (19,44%)
(IBGE, 2010). A cidade foi fundada em 1648
quando a aldeia elevou-se a categoria de
vila. Esse território, antes habitado por ín-
dios, passou a ser colonizados por france-
ses e logo em seguida, por portugueses.
Entre as celebrações realizadas du-
rante os dias de festa, ocorrem missas na
igreja matriz, apresentação dos membros da
corte no Palácio Imperial de Alcântara (crian-
ças entre 4 e 14 anos utilizando trajes de épo-
ca da corte de imperadores e mordomos),
cortejo ao Divino e levantamento do mastro.
Durante todas as etapas da cerimônia, as cai-
xeiras, senhoras que tocam caixa e entoam
cânticos em louvor ao Divino Espírito Santo,
embalam a festa. Esses cânticos são acom-
panhados pelas caixeiras, mulheres conside-
radas sacerdotisas que conduzem os rituais
festivos da Festa do Divino (GOMES; GAS-
TAL; CORIOLANO, 2015). As caixas são ins-
trumentos de percussão que acompanham
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os cânticos, resgatando a herança cultural
africana, muito presente na região, já que Al-
cântara possui comunidades remanescentes
de quilombos que mantém as características
dos seus ancestrais. Os cânticos entoados
podem ser improvisados ou decorados, indi-
viduais ou coletivos (GOMES, 2017).
É importante salientar que Alcântara
foi a primeira cidade histórica amazônica a
ser reconhecida como Patrimônio Nacio-
nal, desde 1948, por sua riqueza cultural e
arquitetônica. A cidade mantém viva gran-
des tradições culturais e a convivência em
comunidade e merece destaque pela pre-
sença de inúmeras ruínas coloniais, con-
sideradas atrativos turísticos, tais como a
Capela das Mercês, 1656; Praça da Matriz,
1648; Igreja de São Matias, 1869; Pelouri-
nho; Igreja e Convento de Nossa Senhora
do Carmo, 1665; Forte de São Sebastião,
1797; Igreja de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos, 1781; entre outras (GOMES,
2017). Em 1983, em Alcântara, foi criado o
Centro de Lançamentos de Alcântara para
implementação de atividades espaciais.
Essa criação gerou grandes impactos so-
ciais, econômicos e ambientais pois reti-
rou diversas comunidades quilombolas de
suas áreas originais, em função da desa-
propriação para ns de interesse nacional,
ocupando praticamente toda a área litorâ-
nea da cidade (GOMES, 2017).
As festas no Maranhão apresentam
algumas particularidades como as caixei-
ras e a união da festa católica a religiões
praticadas em terreiros de tambor de mina
- casas de culto afro-maranhense, principal-
mente em São Luís (FERRETI, 2005). No
entanto, em Alcântara, a festa é de base
católica, e as caixeiras entoam cânticos em
devoção ao Espírito Santo, exclusivamente.
Fazem parte das festividades reali-
zadas no Maranhão, um casal de impera-
dores, de mordomo régio, mordomo mor,
os padrinhos do mastro e outros colabo-
radores. Em seguida, escolhem-se as co-
res das vestimentas que serão utilizadas
pelas crianças e por toda a decoração da
festa. É costume haver ao amanhecer, ao
meio dia, e ao anoitecer, uma salva de cai-
xas, denominada alvorada.
O levantamento do mastro indica o
início da festa e é realizado à noite e sua
derrubada assinala a nalização da festa.
Ao participarem das festividades,
os turistas entram em contato com o co-
tidiano, a gastronomia, e o estilo de vida
local. O comércio ambulante de comidas e
bebidas se intensica, no entanto, surgem
atividades de cunho puramente comercial,
como os clubes de reggae:
Este evento religioso estimula a parti-
cipação ativa dos visitantes: no levan-
tamento do mastro, nas missas e la-
dainhas, na visita aos mordomos, ou
seja, os espaços de convivência co-
munitária transformam-se em espa-
ços materiais e simbólicos onde bens,
serviços, patrimônios e elementos
da cultura circulam entre antriões e
hóspedes. (CARVALHO, 2016, p. 13).
Segundo Gomes (2017), as come-
morações na cidade estão passando por
sérias diculdades de perpetuação em
função da falta de renovação das caixei-
ras, geradas pelo desconhecimento, de-
sinteresse e falta de incentivos; a viagem
em embarcações, em condições precá-
rias, que dá acesso à cidade; a falta de
estrutura de restaurantes e hotéis. No en-
tanto, a gestão municipal e estadual vem
se comprometendo a estimular e nanciar
a manutenção das tradições da cidade e a
sensibilização da população local.
Festa do Divino:
São João Del Rei – Minas Gerais
A cidade de São João del Rei está
localizada na região sudeste de Minas Ge-
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rais, distante 187km da capital, Belo Hori-
zonte. Possui uma população estimada de
89.832 habitantes (IBGE, 2016) sendo que
em 2010 eram 84.469 (IBGE, 2010). Des-
tes, 72.048 são católicos (85,3% da popula-
ção contabilizada em 2010), e 7.271 evan-
gélicos (8,6%) (IBGE, 2010). A cidade foi
fundada em 1713 pelo Governador D. Braz
Balthazar da Silveira, e desenvolveu-se em
virtude da intensa mineração na região.
A festa em adoração ao Divino Es-
pírito Santo, na cidade de São João del
Rei, iniciou-se, provavelmente, com a
inauguração da igreja do Senhor Bom Je-
sus de Matosinhos, em 1774. Possui um
imperador perpétuo, Santo Antônio, eleito
pela população, coadjuvando com o Divi-
no Espírito Santo. Conta como principais
eventos associados às festividades, as
folias (visitas às casas recolhendo donati-
vos para as comemorações); a cavalgada
do divino (ocorre nas ruas da cidade); os
mastros do Divino e Santo Antônio; procis-
são do imperador perpétuo, entre outros
(PORTAL DO DIVINO, 2017).
Em São João del Rei, comemora-
-se o Jubileu Perpétuo, uma festa religio-
sa que possibilita indulgência aos éis
arrependidos, que confessarem, comun-
garem, e visitarem a capela de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo de Matosinho e zerem
orações a Deus em favor da santa propa-
gação da fé (PASSARELLI, 2004).
A festa sofreu uma paralisação em
1923 quando a Conferência Episcopal da
Província de Mariana proibiu a festa, que
só voltou a ganhar força e representativi-
dade em 1997. Nessa data ela começou
a apresentar características que se repe-
tem todos os anos: a fase preparatória
das festividades ocorre quando as ruas do
município são percorridas pelas Folias do
Divino, que são grupos folclóricos respon-
sáveis por angariar donativos para a festa.
No domingo que antecede a festa aconte-
ce a Cavalgada do Divino, onde cavalei-
ros circulam pelas ruas das cidades, junto
com as bandeiras do Espírito Santo.
As festividades se iniciam com o le-
vantamento do mastro, na sexta feira. No
sábado, véspera de Pentecostes é reali-
zada a Missa Inculturada - com rituais que
seguem as tradições africanas. No sába-
do é realizada a Procissão do Imperador
Perpétuo seguida de bandeiras, músicas e
folias. No domingo de Pentecostes trans-
corre a alvorada, missa, apresentação de
grupos de congadas, marujadas, catua-
pés, bate-paus e moçambiques, seguidos
de danças-de-tas e pastorinhas. Depois,
vem o Cortejo Imperial e a coroação do
novo Imperador. Para nalizar as celebra-
ções ocorre a descida do mastro (PASSA-
RELLI, 2004; PORTAL DO DIVINO, 2017).
Festa do Divino: Pirenópolis – Goiás
O município de Pirenópolis está loca-
lizado no centro do estado de Goiás, distante
130km da capital, Goiânia. Possui uma popu-
lação estimada em 24.604 habitantes (IBGE,
2016), sendo que em 2010 eram 23.006
(IBGE, 2010), destes, 16.294 são católicos.
A cidade foi fundada em torno das primeiras
décadas do século XVIII, por Manoel Rodri-
gues Tomar e surgiu em função das ativida-
des mineradoras na região. (IBGE, 2017)
Em 1990 o município foi tombado
como conjunto arquitetônico, urbanísti-
co, paisagístico e histórico, pelo IPHAN.
Possui casarões e igrejas do século XVIII
como a Matriz de Nossa Senhora do Ro-
sário de 1732 (PIRENOPOLIS, 2017). Na
cidade, as comemorações em homena-
gem ao Espírito Santo, envolvem as Ca-
valhadas – encenações dramáticas da ba-
talha entre mouros e cristãos pelo domínio
da península Ibérica e são animadas por
diversos mascarados.
Acredita-se que as festas foram se
difundindo em Goiás à medida que a Igreja
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expandia e ocupava novos espaços assu-
mindo uma cultura colonizadora por meio
dos jesuítas. Em Pirenópolis, a festa ga-
nhou grande enfoque quando a cidade per-
deu sua importância econômica em Goiás,
e assim, buscou dinamizar seus festejos
em função da valoração da expressão da
sociedade. No entanto, é importante obser-
var que a Romanização da Igreja Católica
exigiu das entidades religiosas, posturas
diferentes das que vinham sendo tomadas,
inclusive redenindo manifestações católi-
cas populares (SILVA, 2000).
Em contrapartida, a população lo-
cal criou um vínculo inestimado com a fes-
tividade, entendendo as comemorações
como identidade cultural da comunidade
e, por esse motivo, busca formas de via-
bilizar a manutenção das tradições respei-
tando os mecanismos de produção e re-
produção da festa que são responsáveis
por promover o intercâmbio abundante de
bens materiais e simbólicos durante as
festividades (SOARES, s/d)
As festividades do divino se iniciam
com as folias do Divino, onde cavaleiros
percorrem a zona rural da cidade, com
o objetivo de levar bênçãos e captar re-
cursos para a festa; muitas cantorias são
entoadas em homenagem ao Paráclito. As
cavalhadas acontecem logo após as folias
do Divino. São três dias de comemorações
que simbolizam as lutas na idade Média. A
cidade construiu um “cavalhódromo” para
a realização das dramatizações. Nos dois
primeiros dias ocorre a encenação das lu-
tas, com a vitória cristã e a conversão dos
mouros que é quando acontece a evoca-
ção do Divino Espírito Santo. No terceiro
dia, ocorrem provas de habilidades envol-
vendo todos os cavaleiros (PIRENÓPO-
LIS, 2017; SILVA, 2000).
Alguns homens, chamados de
“curucucus”, a pé ou a cavalo, utilizam
fantasias muito criativas e máscaras, brin-
cam e fazem barulho pelas ruas da cida-
de. As máscaras mais populares são de
boi, onça e diabo. (PIRENÓPOLIS, 2017)
Um dado importante sobre a Festa
do Divino em Pirenópolis é que, assim como
ocorreu em outras localidades, antigamente
a festa era totalmente patrocinada e orga-
nizada por uma única família, de alto poder
aquisitivo, da cidade. O mantenedor da fa-
mília era considerado o Imperador do Divino
e a festa se moldava aos padrões estabele-
cidos por essa família (SILVA, 2000).
Festa do Divino: Vale do Guaporé –
Mato Grosso - Rondônia
O rio Guaporé nasce na cidade de
Pontes e Lacerda (MT), penetra no estado
de Rondônia e compõe a divisa natural entre
Brasil e Bolívia, desaguando no Rio Mamoré,
no município de Costa Marques (RO). O vale
apresenta inúmeras áreas de preservação
além de seu valor histórico com a presença
de lendas indígenas e ribeirinhas e manifes-
tações populares (RONDÔNIA, 2017).
No Vale do Guaporé, o cortejo do
Divino acontece de uma forma particular:
uma procissão uvial que percorre mais
de 35 localidades brasileiras e bolivianas.
Assim como algumas outras festas, como
Piracicaba e Anhembi, no interior de São
Paulo, essa festa é realizada utilizando-
-se o rio. A procissão, uma tradição herda-
da dos negros, já acontece há 123 anos e
atrai devotos de muitos lugares do Brasil e
dos países vizinhos. Ela se inicia no domin-
go de Páscoa em uma cidade escolhida e
culmina em uma festividade que dura sete
dias encerrando todas as comemorações
no Dia de Pentecostes (CRUZ, 2016).
Dentro do Barco do Divino se en-
contra uma Arca contendo a Coroa, a
bandeira, as toalhas do altar e os livros
de ata da festividade (BORGES, 2017).
O barco é movido por um pequeno mo-
tor que é desligado quando a embar-
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cação se aproxima de uma localidade
e inicia-se remadas cadenciadas que
levam o barco até o porto. Quando o
barco aporta, o responsável pela Coroa
desembarca e é recebido pelo Impera-
dor local, ao som de muita cantoria e
orações (PAKAAS, 2017).
Semelhanças culturais entre
as Festas do Divino
Segundo Mariano (2009), essas
demonstrações religiosas atuam de forma
dinâmica, acompanhando a evolução e as
mudanças econômicas e culturais da loca-
lidade, misturando o rural com o urbano;
o catolicismo rústico com o culto à nature-
za; o tradicional com o moderno, pois: “em
função da manutenção da tradição os re-
cursos modernos que tendem a destruí-la
são utilizados, causando a sua reprodução,
embora de forma espetacular, ou seja, no
processo de transformação da Festa em
mercadoria.” (MARIANO, 2009, p. 14)
E assim tradicionalmente, continua
a autora: “a Festa implica ligação com o
passado que se atualiza no presente, vol-
tada para o futuro (...)” (Idem, ibidem, p. 3).
Ao se organizar o quadro a seguir,
intentou-se alinhar as questões culturais
assim como debruçou-se nas páginas dos
governos locais a m de se vislumbrar re-
ferências que demonstrassem interesse
na preservação dos patrimônios culturais,
dentro do que ensina a UNESCO:
A preservação respeita a proteção das
tradições que revelam da cultura tra-
dicional e popular e dos seus deten-
tores, na consideração que cada povo
detém direitos sobre a sua própria cul-
tura e de sua adesão a essa cultura
pode enfraquecer-se por inuência
da cultura industrializada difundida
através dos meios de comunicação
(UNESCO, 1989, p. 4).
(...)
A cultura tradicional e popular, na medi-
da que é constitutiva de manifestações
de criatividade intelectual, individual ou
coletiva, merece proteção análoga à
que se confere às produções intelectu-
ais. Tal proteção da cultura tradicional e
popular revela-se como meio indispen-
sável para o melhor desenvolvimento,
perpetuação e difusão deste patrimô-
nio, quer no país como no estrangeiro,
sem prejuízo dos legítimos interesses
nele implicados (UNESCO, 1989, p. 6)
E que o Brasil bem buscando
acompanhar, pois um marco legal voltado
ao “Registro de Bens Culturais de Nature-
za Imaterial que constituem o patrimônio
cultural brasileiro” é o Decreto 3.551/2000.
O responsável por atuar nessa área é o
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), por meio do Departa-
mento de Patrimônio Imaterial (DPI).
(...) compreende o Patrimônio Cultural
Imaterial brasileiro como os saberes, os
ofícios, as festas, os rituais, as expres-
sões artísticas e lúdicas, que, integra-
dos à vida dos diferentes grupos sociais,
conguram-se como referências identi-
tárias na visão dos próprios grupos que
as praticam. Essa denição bem indica o
entrelaçamento das expressões culturais
com as dimensões sociais, econômicas,
políticas, entre outras, que articulam es-
tas múltiplas expressões como proces-
sos culturais vivos e capazes de referen-
ciar a construção de identidades sociais
(CASTRO; FONSECA, 2008, p. 12)
No sentido de se identicar certos
caminhos que estão sendo trilhados na pa-
trimonialização das festas do Divino de al-
gumas regiões do país, buscou-se elaborar
um quadro com informações presentes nas
fontes consultadas a m de se tecer compa-
rações entre elementos culturais: sagrados
e profanos, bem como de políticas locais
para apoio da manutenção das tradições:
75
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Considerações nais
Caracterizadas pela mistura entre o sa-
grado e o profano, as comemorações em honra
ao Divino Espírito Santo nos territórios avalia-
dos são festividades católicas antigas de inu-
ência dos colonizadores portugueses que se
espalharam por todo território nacional e foram
se adaptando à geograa e costumes locais
características étnico-culturais. Muitas mantive-
Quadro 1. Descrição de elementos culturais e políticas locais
de algumas festas regionais do Divino no Brasil
76
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ram suas marcas mais peculiares como a pre-
sença de determinados símbolos como o mas-
tro, a bandeira e a pomba branca, a presença
de rituais católicos como missas, alvoradas e
novenas, traço do colonizador português.
Foram descritas, ainda que breve-
mente, particularidades culturais: religiosas,
manifestações folclóricas, símbolos advin-
dos do colonizador que interagiram com
as tradições culturais dos negros “evange-
lizados” que mantiveram seus ritmos, suas
cores vibrantes, seus instrumentos musicais
de percussão que inspiram os devotos.
Percebe-se, pelos dados encontra-
dos, que os poderes locais precisam olhar
mais detidamente para a inserção das fes-
tas na agenda política para a preservação
dos patrimônios culturais ali existentes. Há,
em algumas localidades o investimento em
políticas de turismo, já que a Festa do Divino
promove o desenvolvimento local e regional.
A pesquisa também demonstrou que
faltam resultados cientícos mais abrangen-
tes que possam comparar semelhanças e
diferenças entre essas festas no Brasil.
Os autores agradecem a Bolsa de
pesquisa concedida pela FAEP – Fun-
dação de Amparo ao Ensino e à Pes-
quisa de Mogi das Cruzes.
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Recebido em 31/07/2017
Aprovado em 05/09/2017
I Débora B. G. Thomsen. Especialista em Psicopeda-
gogia e graduada em Pedagogia e Design de Interiores
pela Universidade Braz Cubas e Mestranda em Políticas
Públicas pela Universidade de Mogi das Cruzes. Conta-
to: debora@palle.com.br
II Rosália Maria Netto Prados. Doutora Semiótica e Linguís-
tica Geral pela Universidade de São Paulo. Docente no Pro-
grama de Mestrado em Políticas Públicas da Universidade
de Mogi das Cruzes. Contato: rosalia.prados@gmail.com
III Luci Mendes de Melo Bonini. Doutora em Comuni-
cação e Semiótica pela PUC-SP. Docente no Programa
de Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de
Mogi das Cruzes e do Mestrado em Habitação: Planeja-
mento e Tecnologia do Instituto de Pesquisa Tecnológica
– SP. Contato: lucibonini@gmail.com
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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FÉ MIDIATIZADA? Indagações sobre a abordagem comunicacional
da questão religiosa na era das tecnologias digitais em rede
¿FÉ MEDIATIZADA? Indagaciones sobre el enfoque comunicacional
sobre la cuestión religiosa en la era de las tecnologías digitales en red
MEDIATIZED FAITH? Inquiries about the communicational approach
of the religious issue in the era of digital network technologies
Fernanda Lima Lopes
I
Resumo:
As novas tecnologias de comunicação digitais e em rede parecem
estar onipresentes, invadindo praticamente os mais variados campos
da cultura e da sociedade, inclusive os mais tradicionais como o direito,
a política, a educação. Diante disso, uma vertente bem recente de
estudos de comunicação vem discutindo o conceito de midiatização,
procurando enxergar a centralidade da mídia na produção de novas
ambiências, novas formas de vida. Neste trabalho, são apresentados
alguns desses pontos de vista, mas o principal objetivo é questionar
em que medida a noção de midiatização serve de ferramenta teórica
a ser aplicada na investigação da relação entre mídia e religião.
Incluindo reexões sobre as particularidades epistemológicas em
torno da fé e da espiritualidade, são formuladas questões acerca
dos possíveis ajustes e desencaixes da teoria da midiatização
como matriz de compreensão dos fenômenos na profundidade e
complexidade que tais temas evocam.
Palavras chave:
Religião
Midiatização
Espiritualidade
Tecnologias
de comunicação digital
e em rede
79
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Las nuevas tecnologías de comunicación digital y en red parecen estar
omnipresentes, invadiendo los más variados campos de la cultura y de
la sociedad, incluso los más tradicionales como el derecho, la política,
la educación. Sobre este facto, una vertiente muy reciente de estudios
de comunicación viene discutiendo el concepto de mediatización,
buscando ver la centralidad de los medios en la producción de nuevos
ambientes, nuevas formas de vida. En este trabajo se presentan
algunos de estos puntos de vista, pero el principal objetivo es cuestionar
en qué medida la noción de mediatización sirve de herramienta teórica
a ser aplicada en la investigación de la relación entre medios y religión.
Incluyendo reexiones sobre las particularidades epistemológicas en
torno a la fe y la espiritualidad, se formulan preguntas acerca de los
posibles ajustes y desencadenamientos de la teoría de la mediatización
como matriz de comprensión de los fenómenos en la profundidad y
complejidad que tales temas evocan.
Abstract:
The new technologies of digital and networked communication seem
to be ubiquitous, invading every dimension of culture and society,
including the most traditional elds such as law, politics, and education.
Regarding this, some recent communication studies started discussing
the concept of mediatization, considering the centrality of the media
in the production of new environments, new ways of life. In this work,
some of these points of view are presented, but the main objective
is to question to what extent the notion of mediatization serves as a
theoretical tool to be applied in the investigation of the relationship
between media and religion. Including reections on the epistemological
particularities around faith and spirituality, the article inquires about
the possible adjustments and disembodiments of the mediatization
theory as a matrix of understanding the phenomena in the depth and
complexity that such themes evoke.
Palabras clave:
Religión
Mediatización
Espiritualidad
Fe
Tecnologias
de comunicación
digital y en red
Keywords:
Religion
Mediatization
Spirituality
Faith
Technologies
of digital and networked
communication
80
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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FÉ MIDIATIZADA?
Indagações sobre a abordagem
comunicacional da questão religiosa
na era das tecnologias digitais em rede
Introdução
Este artigo propõe lançar um
olhar sobre a problemática da midiatiza-
ção – uma discussão cara aos estudos
de comunicação – tendo como horizon-
te a relativamente recente atenção ao
tema religião e mídia demonstrada por
estudiosos desse campo, no contexto do
aumento da presença da religião nos es-
paços da visibilidade social constituídos
pelos media, seja no espaço nos tradi-
cionais meios de comunicação (impres-
sos, rádio e TV principalmente), seja nos
ambientes virtuais da comunicação em
rede. O objetivo é estabelecer algumas
bases teóricas e levantar alguns ques-
tionamentos a m de que futuras pes-
quisas, de cunho mais empírico, possam
olhar para os fenômenos especícos
dessa natureza, considerando tanto se-
dimentações quanto possíveis tensões
epistemológicas pertinentes a uma com-
preensão mais profunda da complexa
realidade em que se observam vivências
da fé, de religiosidade, de espiritualida-
de na sociedade contemporânea.
Os parágrafos que se seguem le-
vantam algumas perspectivas teóricas
sobre a questão da midiatização, pro-
curando destacar divergências e apro-
ximações entre autores, demonstrando,
assim, que essa concepção está longe
de ser um consenso acadêmico. Nor-
malmente associado à questão da cen-
tralidade da mídia na atual conguração
da sociedade e da cultura – mas não
restrito a isso –, o termo que a área se
esforça em debater ganha força com os
fenômenos comunicacionais do período
posterior ao aparecimento da internet.
Entre as problemáticas que as propostas
em torno da noção de midiatização apre-
sentam não só à comunicação, mas às
pesquisas que relacionam comunicação
e religião é que elas tendem a pôr em
xeque a noção de mediação, importante
tanto para os níveis institucionais da co-
municação midiática quanto da religião.
Antes de passar ao exame mais minu-
cioso das perspectivas teóricas em torno
de tais conceitos, é válido fazer alguns
esclarecimentos sobre os sentidos de fé,
de religião, de espiritualidade que estão
sendo considerados neste texto. Em pri-
meiro lugar, reconhece-se que as religi-
ões são traço crucial da(s) cultura(s) e
enquanto fenômenos enraizados na his-
tória podem – e devem – ser vislumbra-
dos no que respeita aos seus processos
de espalhamento geográco, crescimen-
to, diáspora, institucionalização, perse-
guição, clandestinidade, resistência, re-
lação com outras esferas da sociedade
(por exemplo, com o poder formalmente
instituído). Para o antropólogo Cliford
Geertz (1978), estudar religião signica
duas coisas: analisar o “sistema de sig-
nicados incorporado nos símbolos que
formam a religião propriamente dita” e
investigar “o relacionamento desses sis-
temas aos processos socioestruturais e
psicológicos” (GEERTZ, 1978, p.142).
Ainda que os trabalhos acadêmi-
cos se concentrem nesses aspectos, os
pesquisadores não podem ignorar que
o envolvimento religioso não se esgota
na dimensão cultural, porque tampouco
se restringe à prática de uma dada so-
ciabilidade ou uma troca simbólica entre
sujeitos sociais. Aliás, a existência das
religiões se fundamenta num tipo de con-
tato que almeja justamente aquilo que
transcende o humano. Por essa razão,
mesmo que as pesquisas sobre religião
e mídia se localizem no campo da comu-
nicação social e não ousem enveredar
por estudos de mística ou ascese (ou
81
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
sequer teologia), não podem abrir mão
da compreensão de que a busca pelo
transcendente ou demiurgo, a despeito
das mais variadas manifestações que a
antropologia logrou indicar, é um caráter
inerente à identidade religiosa. O teís-
mo é imprescindível à religião
II
. E a fé
associa-se a esse aspecto, mas não se
resume a ele, porque há quem viva sua
fé independentemente da adesão a uma
religião formal, institucional. Já a espiri-
tualidade é algo que pode ser vivida de
modo distanciado da adesão religiosa ou
mesmo da armação de em Deus ou
em divindades.
Conforme Viktor Frankl (2007), a
espiritualidade é um atributo constitutivo
do ser humano, assim como os aspectos
biológico e psicológico. Tal como aponta o
psicanalista austríaco, em diálogo crítico
com a Escola de Viena da qual ele mesmo
deriva, o inconsciente inclui uma dimen-
são noológica – isto é, espiritual, de bus-
ca por sentido da vida – que não pode ser
negligenciada pela “visão atomística” de
uma psicanálise que reduza os fenômenos
psíquicos a mero resultado de pulsões
III
.
É nesse sentido tão intrínseco do âmbito
espiritual da existência que se postula uma
compreensão abrangente sobre o tema da
espiritualidade, admitindo-se, portanto, que
esta se aplicaria a todo gênero humano, in-
dependentemente de sua crença, inclusive
ao ateu (cf. COMTE-SPONVILLE, 2007).
Tendo apresentado, ainda que de
maneira extremamente breve, as noções
gerais de religião, fé e espiritualidade
adotadas neste texto, é hora de passar à
apresentação do que vem sendo nome-
ado “midiatização”.
Perspectivas epistemológicas sobre
midiatização
Boa parte das pesquisas em co-
municação ou estudos de mídia que vêm
sendo produzidos no ambiente acadê-
mico deste século XXI está voltada às
chamadas “novas mídias”, ao fenômeno
da internet, das mídias digitais, da socie-
dade em rede, da cultura convergente,
enm, do novo cenário comunicacional
permeado pelas lógicas do digital, do vir-
tual e da conexão tecnológica em rede.
Em diferentes graus e com variados en-
foques, trabalhos em torno das transfor-
mações do nal do século XX e início do
XXI indicam que as mudanças não se
limitam às tecnologias de comunicação
e informação, às empresas de comuni-
cação, aos produtos midiáticos, aos ato-
res sociais envolvidos com o trabalho
na mídia, mas abrangem toda sorte de
fenômenos sociais e culturais envolven-
do tudo isso de maneira integrada e in-
teracional. No bojo de tais reexões en-
contram-se as abordagens teóricas que
propõem a midiatização – mais do que a
mediação – como uma concepção fulcral
para o entendimento de tudo isso. Nos
parágrafos a seguir, serão apresentadas
algumas dessas perspectivas acadêmi-
cas, ao mesmo tempo em que se inda-
gará sobre a possibilidade de incorporá-
-las aos estudos sobre religião e mídia.
Para evitar riscos de apropriações teóri-
cas acríticas e/ou indevidas, espera-se
observar eventuais ssuras, incompletu-
des conceituais e possíveis opacidades
da aplicação dessa ferramenta teórica
em relação ao terreno citado. Sem per-
der de vista as particularidades da temá-
tica religiosa, incluindo aí as dimensões
históricas do universo religioso, serão
propostos questionamentos sobre per-
tinência das teorias da midiatização e
serão perscrutados possíveis pontos de
contato da reexão sobre midiatização
considerando-se a relação entre a reli-
gião e as realidades comunicacionais
contemporâneas.
As expressões mediação e midia-
tização remetem ao termo mídia, que
por sua vez, tem origem no termo lati-
82
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
no medium (meio), o qual também deu
origem a palavras como intermediário,
médium. A etimologia evoca a qualida-
de de se estar no meio, ou seja, entre
uma coisa e outra, donde se desdobram
alguns sentidos: o de que medium pode
ser entendido como um veículo, um ca-
nal, um meio de transporte, um disposi-
tivo material. Mas é válido acrescentar
que tal acepção de mediação pode re-
meter, ainda, a tarefas como tradução,
negociação, ltragem.
A problematização e o aprofunda-
mento teórico sobre o conceito de me-
diação ocuparam importante espaço no
debate epistemológico da comunicação,
uma área que, segundo Vera França
(2001) só irá se organizar como esfera
autônoma no mundo acadêmico no sé-
culo XX. Essa contextualização sobre os
estudos acadêmicos de comunicação é
relevante, porque sinaliza o quão recen-
te são tais esforços teóricos a se debru-
çar sobre processos que, a rigor, remon-
tam a eras imemoriais. Há vestígios da
comunicação não-verbal por símbolos
que remontam à era das cavernas, e a
linguagem é ainda anterior a isso.
Embora saibamos que práticas
comunicativas existem desde tempos re-
motos, e mesmo que consideremos que
a retórica dos sostas ou a techné rhe-
thorike de Aristóteles tenham constituído
grupos de saberes mais formais sobre o
fazer discursivo, só é possível conside-
rar o aparecimento de uma disciplina (ou
um campo de saber acadêmico) voltada
de modo especial à comunicação a par-
tir do século XX. Os pressupostos me-
todológicos e cientícos advogam que
uma área de conhecimento só irá arti-
cular sua autonomia em relação a ou-
tros campos do saber na medida em que
consegue demonstrar que possui um
objeto próprio e desenvolver metodolo-
gias especícas, o que, no caso da Co-
municação, está amplamente associado
ao surgimento – e as congruentes análi-
ses – do fenômeno da comunicação de
massa (FRANÇA, 2001).
O desenvolvimento de teorias nes-
se campo apresentou, bem como repre-
sentou, de alguma maneira, a centralida-
de da mídia para a vida nas sociedades
modernas, sinalizando que o crescimen-
to da importância dos meios, dos seus
produtos, dos seus discursos, dos seus
prossionais, fez frente a outras instân-
cias da mediação social, como a religião,
a família, o sistema de ensino, o execu-
tivo, o legislativo, o judiciário etc. O fato
de o jornalismo ter sido denominado de
quarto poder não deixa de ser uma indi-
cação nesse sentido.
Sobre as primeiras experiências
dos estudos mais especícos em co-
municação, é interessante lembrar que
a relevância mediadora dos veículos
massivos serviu de motor para variadas
perspectivas, como as pesquisas ame-
ricanas da primeira metade do século
XX, que caram conhecidas como mass
communication research”, as quais inclu-
íram investigações sobre o papel social
da mídia (teorias funcionalistas), efeitos
da comunicação junto ao público (agu-
lha hipodérmica, teorias dos efeitos),
seus modelos e modus operandi (teoria
matemática) (ARAÚJO, 2001). Embora
com abordagens e vinculações ideológi-
cas radicalmente distintas destes, os tra-
balhos de pensadores europeus, como
os da Escola de Frankfurt, de meados
do século passado, também reservaram
um lugar de destaque à ação dos meios
na sociedade, julgando que esses foram
constituídos segundo uma lógica indus-
trial e massiva, e que o crescimento do
que eles denominaram “indústria cultu-
ral” foi responsável pela decadência da
cultura e por outras transformações so-
ciais ligadas à perda de conhecimento
erudito e ameaça à capacidade crítica
sobre a sociedade.
83
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Na década de 1980, Martin-Bar-
bero propôs um deslocamento do olhar
“dos meios às mediações”, procurando,
por um lado, se afastar da concepção
de “cultura de massa” entendida como
“conjunto de meios massivos de comu-
nicação” (2006, p.196) e, por outro lado,
dar destaque ao que ele chamou “me-
diações culturais”, enfatizando o âmbito
da cultura. Esse trabalho do autor é mar-
cadamente culturalista, além de exibir
traços claros de uma inuência marxista
e de algumas releituras de Marx, como
as de Gramsci e de autores dos estudos
culturais britânicos. O conceito de hege-
monia acompanha a proposta teórica de
Barbero acerca de processos políticos,
econômicos, sociais e de instituições
mediadoras na política, na economia e
na sociedade, sobretudo na América La-
tina. Sujeitos e instituições são analisa-
dos sob a ótica das formas de hegemo-
nia na produção, distribuição e consumo
dos produtos massicados produzidos
pelas mídias. E quanto às mediações,
o autor igualmente segue a perspectiva
culturalista quando as localiza em três
locais de especial relevo: o cotidiano fa-
miliar, a temporalidade social e a compe-
tência cultural dos sujeitos. Todos esses
lugares não deixam de reetir, de algum
modo, a ênfase dada à recepção, vis-
lumbrada como instância privilegiada de
investigação da apropriação, do impac-
to, da ressignicação e das expressões
do que é produzido pela mídia.
Stig Hjarvard (2014) sintetiza
muito bem as tradições de estudos da
comunicação, indicando que entre elas
houve as que se preocupavam com os
efeitos dos meios junto ao público, va-
lorizando “o que a mídia fazia com as
pessoas”, bem como as pesquisas que,
por outro lado, enfatizavam “o que as
pessoas fazem com a mídia”. O autor
aponta, no entanto, que a teoria da mi-
diatização lançou um terceiro ponto de
vista, ao sugerir que:
A cultura e a sociedade estão a tal
ponto permeadas pela mídia, que
talvez já não seja possível concebê-
-la como algo separado das insti-
tuições culturais e sociais. Nessas
circunstâncias, a tarefa que nos in-
cumbe é, mais propriamente, tentar
compreender de que forma as ins-
tituições sociais e processos cul-
turais mudaram de caráter, função
e estrutura em resposta à onipre-
sença dos meios de comunicação”
(HJARVARD, 2014, p.15).
Nem todos que lançam mão do
termo midiatização compartilham do
mesmo sentido para o termo. Há diferen-
tes pesos e medidas no modo como os
acadêmicos trabalham a midiatização ou
como elaboram teoricamente a questão
do suposto poder estruturante da mídia
ou da lógica midiática, melhor dizendo.
Antes de apresentar autores que lidam
diretamente com o conceito, vale reto-
mar Martin Barbero, que revisitou sua
abordagem dos anos 1980 e propôs,
cerca de 10 anos depois
IV
, um novo olhar
em relação às ideias de mediação ini-
cialmente pensadas: em vez de priorizar
aquilo que ele chamara de mediações da
cultura, ele passou a creditar às media-
ções midiáticas um lugar de maior relevo
no interior da própria cultura, uma vez
que estas vinham se mostrando cada
vez mais imbricadas com outras esferas
culturais, como, por exemplo, a política.
“Mais do que substituí-la [a política], a
mediação televisiva ou radiofônica pas-
sou a constituir, a fazer parte da trama
dos discursos e da própria ação políti-
ca” (MARTIN-BARBERO, 2006, p. 14).
Conforme Gislene Silva, Martin-Barbero,
“migrou das mediações culturais da co-
municação para as mediações comuni-
cativas da cultura” (SILVA, 2012, p.110).
No bojo das abordagens teóricas
em Comunicação seguindo a tendên-
cia de novas posturas sobre a questão
84
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dos meios e dos modos como eles se
integram à realidade sociocultural do
século XXI, vem crescendo o número
de pesquisadores que procuram afirmar
que as mídias já não podem ser mais
vistas como meros instrumentos dos
processos de comunicação e sim como
uma “realidade mais complexa em torno
da qual se constituiria uma nova ambi-
ência, novas formas de vida, e intera-
ções sociais atravessadas por novas
modalidades do ‘trabalho de sentido’”
(FAUSTO NETO, p. 2008, p. 92). Nesse
sentido, até ao próprio conceito de me-
dium, anteriormente tão enraizado em
sua etimologia e tão associado à ideia
de instrumento de comunicação, são in-
corporados esforços de ressignificação.
Sodré defende que, em face do atual
cenário midiático, medium não se res-
tringe à ideia de canal ou veículo, e sim
é visto como “canalização (...) e ambiên-
cia estruturadas com códigos próprios”
(SODRÉ, 2002, p.20). Para ele, o ter-
mo pode ser aplicado tanto às mídias de
massa quanto às novas tecnologias di-
gitais em rede, porque, conforme expli-
ca, “medium é o fluxo comunicacional,
acoplado a um dispositivo técnico (...)
e socialmente produzido pelo mercado
capitalista, em tal extensão que o códi-
go produtivo pode tornar-se ‘ambiência’
existencial” (SODRÉ, 2002, p.20).
Como se percebe pelas citações
anteriores, “ambiência” é uma termino-
logia da qual alguns autores lançam mão
para explicar o tipo de mudança epis-
temológica – e, sob a ótica dos desen-
volvedores e defensores do conceito da
midiatização, inclusive empiricamente
verificável – associada às transforma-
ções que têm relação com as comunica-
ções deste período em que virtualidade
e conexão em rede estruturam os fluxos
de informação nos mais variados espa-
ços do globo. Ambiência remete à am-
biente, que abrange toda a existência
e, no limite refere-se à sustentação da
vida. Sodré (2002) adota a terminologia
“quarto bios” para denominar essa nova
vivência do mundo da experiência, que
é a da sociedade midiatizada, a qual se
caracteriza pela presença de mediações
tecno-mercadológicas que levam a rela-
ções humanas cada vez mais virtualiza-
das e perpassadas pelo viés do consu-
mo. Nessa concepção, o bios midiático
consiste numa espécie de clave virtual
aplicada à vida cotidiana, à existência
real e histórica do indivíduo. Esse âm-
bito existencial do homem contemporâ-
neo é comparado à condição existencial
do principal personagem de O show de
Truman (1998), filme que conta a histó-
ria de uma pessoa que foi, durante mui-
tos anos, desde bebê, e sem saber, o
personagem central de um reality show,
tendo crescido numa espécie de bolha,
a qual ele pensava ser a totalidade do
mundo, mas que era, na verdade, um
grande estúdio de televisão especial-
mente montado para o programa. Esse
filme também é citado nas reflexões do
holandês Mark Deuze (2009), quando
ele avalia a onipresença midiática, jul-
gando que é mais adequado falarmos
da vida na mídia do que da vida com a
mídia. Na metáfora de Deuze (2009), o
universo em que vivemos é o universo
midiático; já não é mais possível estar
fora dele; ele seria equivalente ao am-
biente aquático para os peixes. Assim
como a água os envolve, os nutre, é o
ambiente em que eles vivem e dali não
podem sair, igualmente seria a ambiên-
cia midiática na contemporaneidade.
Há, nessas perspectivas, a per-
cepção de que a midiatização implica
uma naturalização cada vez maior não
só dos dispositivos tecnológicos, mas
também da lógica consumista e das for-
mas de sociabilidade que eles ajudam
a produzir, de modo que fica cada vez
mais difícil conceber as interações hu-
manas de toda sorte – e não só aquelas
comunicações profissionalizadas, apa-
85
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relhadas midiaticamente – fora desse
universo. Considerando assim, a noção
de midiatização parece apontar para
uma dimensão totalizante e inexorável
da vida e da cultura ou, no mínimo, su-
gerir um caminho que ainda está sendo
trilhado, um processo histórico sem vol-
ta. As versões mais enfáticas acabam
soando como fatalistas. Parecem con-
ceber a aniquilação, a substituição (se
ainda não completa, em vias de conclu-
são) de antigos mediadores sociais por
instâncias que continuam a manter os
mesmos nomes e, aparentemente, as
mesmas funções, mas cujas engrena-
gens axiológicas passaram a ser mol-
dadas pelo teor intrínseco desse admi-
rável (?!) mundo novo.
Sodré (2008) chega a sugerir
comparações do bios midiático com
Deus
V
. Sua comparação não é uma afir-
mação peremptória (muito menos teo-
lógica), e sim mais uma frase de efeito
(isso foi dito durante uma entrevista em
2008) para ilustrar a grandiosidade do
fenômeno comunicacional de que ele
trata. Pondera, no entanto, que uma vez
considerada veementemente a questão
do livre-arbítrio, sabe-se que não há
um domínio absoluto sobre o indivíduo,
que consegue entrar e sair desse uni-
verso, porém, o autor insiste que “nas
condições civilizatórias em que vive-
mos (urbanização intensiva, relações
sociomercadológicas), onde há um
predomínio do valor da troca capitalis-
ta, estamos imersos nessa virtualidade
midiática e isso nos dá uma forma de
vida vicária, que quer substituir Deus.”
(SODRÉ, 2008, s.p.)
VI
Sem lançar mão de metáforas reli-
giosas, José Luiz Braga refere-se à midia-
tização como um “processo interacional de
referência” que se sobrepõe aos demais:
Um processo interacional ‘de refe-
rência’, em um determinado âmbi-
to, ‘dá o tom’ aos processos subsu-
midos – que funcionam ou passam
a funcionar segundo suas lógicas.
Assim, dentro da lógica da midiatiza-
ção, os processos sociais de intera-
ção mediatizada passam a incluir, a
abranger os demais, que não desa-
parecem mas se ajustam. (BRAGA
apud BARROS 2012, p. 80)
Friedrich Krotz (2007) desenvolve
reflexões que sustentam a ideia de que
a midiatização constitui o que ele cha-
ma de “metaprocesso”, isto é, um pro-
cesso orientador de outros processos
de interação social. Para ele, a midia-
tização, assim como a globalização, a
industrialização, a “comercialização”
VII
,
a individualização, abarca uma série de
desenvolvimentos que pode durar sé-
culos e não está confinada a uma área
limitada (por isso, não é meramente
um “processo”). Todos os metaproces-
sos são capazes de afetar a cultura e
a sociedade em níveis micro e macro;
influenciam a democracia, a política, as
formas de vida, as atividades das insti-
tuições, as ações das pessoas e assim
por diante. Portanto, segundo Krotz, na
análise dos metaprocessos é possível
coletar dados sobre mudanças na cul-
tura e na sociedade.
Boa parte dos recentes estudos
de comunicação têm sido eficientes na
análise de traços da cultura na era das
tecnologias digitais e da rede, sendo
capazes de demonstrar que, de fato,
inúmeros aspectos da vida hodierna
estão globalmente afetados pelos flu-
xos da comunicação virtual conectada.
Não é difícil perceber que a Internet e
os recursos da convergência de mídia
trazem novidades para os modos como
as pessoas (e instituições) se comuni-
cam, como produzem memórias, cons-
troem identidade, realizam transações
econômicas, lidam com os saberes e os
processos de aprendizagem, vinculam-
86
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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-se e/ou agem politicamente, como vi-
venciam a religiosidade etc.
No entanto, é necessário aqui fa-
zer um alerta. Ao se falar em “metapro-
cesso”, vale questionar em que dimen-
são essa preposição “meta” está sendo
compreendida, porque há uma diferen-
ça expressiva entre considerar o meta-
processo como algo superior à própria
cultura num sentido sobredeterminador
da mesma, ou conceber o metaproces-
so como processos de grande duração,
amplitude e permeabilidade, os quais
podem orientar, inuenciar manifesta-
ções culturais, mas que não podem ser
percebidos como megapoderes inde-
pendentes e desvinculados da cultura,
da economia, da política e até das ações
intencionais estratégicas de determina-
dos agentes sociais em cada momento
histórico. Ora, se o objetivo de um tra-
balho acadêmico é compreender hones-
tamente uma dada realidade, sem pan-
etagem ideológica ou sem promover
conclusões apressadas ou simplórias,
então é forçoso admitir que há uma im-
bricação complexa entre os fatores que
concorrem para se delinear um fenô-
meno qualquer. Vale inclusive adicionar
o fator do imponderável, pois eventual-
mente até o inusitado, como catástrofes
não previstas, tipo terremotos, tsunamis
ou coisas do tipo, pode ser capaz de
afetar o modus vivendi como um todo.
Assim, o termo metaprocesso pode até
ser incorporado ao vocabulário de tra-
balhos sobre aspectos da cultura desde
que não se prenda a um determinismo
daquele em relação a estes. É bom que
não se esqueça que os metaprocessos
se compõem de elementos culturais ao
mesmo tempo em que ajudam a inuen-
ciar a cultura, isto é, eles perpassam a
cultura e são perpassados por ela.
Ampliando o mesmo tipo de ar-
gumento para a noção de midiatização,
é interessante notar que Stig Hjarvard
(2014) também ataca o simplismo de
certas abordagens, alertando para o pe-
rigo de concepções muito abrangentes e
totalizadoras, as quais tendem a dar um
lugar de tamanho destaque à midiatiza-
ção a ponto de colocá-la num patamar
de explicação máxima para toda a reali-
dade no mundo contemporâneo:
...consideramos que a compreensão
pós-modernista de midiatização [é]
ao mesmo tempo simples demais e
ambiciosa demais. Simples demais,
porque sugere uma única transfor-
mação, com a realidade mediada
suplantando a realidade experiencial
e as distinções tradicionais simples-
mente se dissolvendo. O conceito de
midiatização proposto neste livro não
endossa a ideia de que a realidade
mediada reine soberana, tampouco
a alegação de que as distinções on-
tológicas convencionais tenham des-
moronado. A midiatização tal como
aqui a concebemos, sugere antes
uma expansão das oportunidades de
interação nos espaços virtuais e uma
diferenciação do que as pessoas
percebem como real.” (HJARVARD,
2014, p.33. grifo no original).
Comunicação, midiatização, religião
A internet e as tecnologias digitais
estão imbricadas num cenário de profun-
das transformações nos modos como os
indivíduos e coletividades estabelecem
vínculos (políticos, econômicos, educa-
cionais, afetivos...) no mundo contempo-
râneo. É quase impossível imaginar um
espaço de convivência humana ou uma
instância tradicional da cultura em que
as novas realidades midiáticas não este-
jam, de algum modo, agregadas ou, num
sentido mais profundo, tendo chegado a
ocupar o lugar de eixo central para or-
ganizar mensagens e produzir sentido
para a vida cotidiana. A política, o direi-
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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to, a medicina, o ensino, os esportes,
os transportes, o nascimento e a morte,
tudo parece ter feito concessões, em
maior ou em menor grau, a um ou vários
tipos de intervenção (quiçá até mesmo
de incorporação) da lógica midiática. As
experiências religiosas e espirituais tam-
bém demonstram não estar imunes às
articulações com os novos cenários, e o
interesse pelo tema tem se ampliado en-
tre os pesquisadores brasileiros da área
de comunicação, tal como demonstra o
levantamento de Priscila Vieira (2014).
Tal levantamento também pontua que
alguns trabalhos usam “midiatização”
como palavra-chave.
As pesquisas do brasileiro Valter
Avellar (2010; 2014, em parceria com
Silveira) descrevem uma vasta e varia-
da gama de vivências da dimensão do
sagrado, do religioso, do espiritual nes-
se contexto das novas tecnologias de
comunicação e informação da era da
rede. No espaço fluido das conexões di-
gitais, instituições religiosas tradicionais
criam seus sites, blogs e/ou perfis em
redes sociais; indivíduos trocam men-
sagens de e-mails de cariz humanísti-
co e espiritual; religiosos se agrupam
em comunidades como as do antigo
Orkut (rede social que sobreviveu en-
tre 2004 e 2014); jogadores do Second
Life (um jogo que simula uma segunda
vida no mundo virtual) fazem com que
seus personagens, entre tantas outras
atividades, frequentem espaços igual-
mente virtuais de cariz religiosos; fieis
acessam sites onde “acendem” velas ou
realizam atos virtuais de piedade rela-
cionados com sua crença. Há, inclusive,
curiosas formas de “ciberreligião”, com
o aparecimento de adoradores da má-
quina e da tecnologia.
Além desses, há vários exemplos
que ilustram brechas abertas do universo
religioso à lógica da mídia. Mas a discus-
são sobre religião e mídia que incorpora
a noção de midiatização pode carregar
a reboque, mesmo que sequer tome
consciência disso, toda a problemática
conceitual apresentada anteriormente.
Assim, primeiramente, ao se estudar
as situações em que a comunicação e
o universo espiritual, religioso vêm se
relacionando, é lícito perguntar em que
profundidade a lógica da mídia tem sido
capaz de afetar uma fé, uma espirituali-
dade, algum aspecto da(s) religião(ões).
É válido levantar a hipótese de se a reli-
gião está mesmo se tornando cada vez
mais imbricada axiologicamente com
essa lógica; quer dizer, é preciso indagar
até que ponto ela permite (mesmo invo-
luntariamente) que seus próprios valo-
res sejam mesclados com os midiáticos,
no pior dos casos até substituídos por
estes. E ao se fazer isso, é importante
sempre apontar de que maneira a lógica
da mídia é compreendida na contempo-
raneidade. Para Sodré (2002), trata-se
da midiatização, noção que precisa ser
percebida a partir da multiplicação de
interações fundamentadas na preponde-
rância da técnica e do mercado.
Seguindo tal linha de raciocínio e
sabendo que a religião é um dos mais
relevantes traços de uma cultura, são
muito produtivas as reexões acerca da
relação entre religião e mídia que partem
da investigação de situações em que a
mídia inuencia práticas e instituições
religiosas contemporâneas, que incorpo-
ram o uso dos meios (de massa ou digi-
tais) em suas atividades, não apenas do
ponto de vista da instrumentalização dos
meios, mas permitindo uma invasão de
valores técnicos e mercadológicos. Es-
tão nesse caminho, por exemplo, alguns
trabalhos que analisam fenômenos de
vivência da fé como espetáculo. Outros
exemplos frutíferos são as pesquisas de
Hjarvard sobre religião, levando em con-
ta o seu olhar sobre a midiatização. Além
de investigar os usos que certos grupos
religiosos zeram dos meios, ele também
88
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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se dedicou a analisar práticas midiáticas
com traços de religião e/ou espiritualida-
de (por exemplo, o aumento da cobertu-
ra jornalística aos assuntos religiosos, ou
o que ele chamou de “reencantamento”
dos meios). Em inquéritos realizados em
2005, 2006 e 2009 na Dinamarca, detec-
tou que o contato dos entrevistados com
assuntos espirituais era proveniente, em
primeiro lugar, de fontes como a família
e os amigos, a televisão, os livros não-
-ccionais e a internet. Todos esses fo-
ram citados antes dos textos sagrados e
da frequência a igrejas.
A ampliação do olhar sobre a mí-
dia contemporânea para além da instru-
mentalização também se verica junto à
própria Igreja católica, que tem se mos-
trado atenta aos novos ventos da comu-
nicação social. Dois destes papas mais
recentes, João Paulo II e Bento XVI, jus-
tamente os dois que se destacam por
suas trajetórias acadêmicas, manifesta-
ram que o olhar da Igreja para as reali-
dades comunicacionais contemporâneas
não se restringe apenas ao intuito prag-
mático de ampliar a eciência dos canais
de evangelização, mas almeja reetir so-
bre os modos de vida que se conguram
no mundo atual em face das transfor-
mações de cunho mais amplo. É o que
expressou a carta apostólica “O rápido
desenvolvimento”, do então Papa João
Paulo II, em 2005; é o que se evidenciou
no discurso de Bento XVI, em 2011, na
Assembleia Geral do Pontifício Conse-
lho das Comunicações Sociais: “Não se
trata somente de exprimir a mensagem
evangélica na linguagem atual, mas é
preciso ter a coragem de pensar de ma-
neira mais profunda, como aconteceu
em outras épocas, a relação entre a fé, a
vida da Igreja e as transformações que o
homem está vivendo” (BENTO XVI apud
SPADARO, 2012, p.9).
Quer dizer: não se trata apenas
de investigar os usos que instituições ou
grupos religiosos fazem com meios, ou
como o público interage com as mensa-
gens religiosas distribuídas pela mídia,
ou tampouco observar como as pesso-
as, religiosas ou não, usam as mídias
para se relacionar. As indagações, hipó-
teses, bem como algumas formulações
mais ousadamente propositivas, procu-
ram elucidar como o lugar central que a
mídia passou a ocupar nas atuais con-
gurações do mundo social cria (ou ajuda
a criar) novos padrões de comportamen-
to, novas demandas, novas posturas em
áreas que não se fundamentavam nem
se estruturaram com e pela mídia (por
exemplo, a política, a educação, o direi-
to e a religião). Mas será que propor in-
dagações nesses termos tem o mesmo
peso ou seria a mesma coisa que falar
de política midiatizada, educação midia-
tizada, direito midiatizado, religião midia-
tizada (no sentido de considerar que há
uma reorganização estrutural axiológica
desses campos de acordo com a nova
lógica midiatizada)? Certamente que
não. Neste caso, seria necessário rea-
lizar pesquisas cuidadosas, adentrando
regiões de bastidores das referidas prá-
ticas, realizando observações de pra-
zo relativamente longo e considerando
multiplicidades internas a cada campo.
Como visto, armações cientícas de
validade e pertinência sucientes para
se conrmar a ideia de um metaproces-
so não podem tomar por base apenas
alguns exemplos ou estudos de caso.
Elaborações hipotéticas e – pior –
armações tidas como dado dirigidas a
consolidar a proposta epistemológica da
mídia-deus mostrar-se-iam ainda mais
problemáticas se dirigidos à noção de
fé. Entendendo a fé como um fenôme-
no que tem um âmbito impossível de se
mensurar: o do vínculo estabelecido com
o transcendente divino (ainda que essa
experiência possa estar sujeita à inuên-
cia de aspectos culturais e sociológicos,
como a religião), e que, por denição, não
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deixa de incorporar a dimensão inexpli-
cável e enraizada no profundo existencial
do indivíduo que a experimenta (seguin-
do Viktor Frankl), seria, enm, possível,
falar de fé midiatizada?
Palavras nais
Quando observamos a programa-
ção de rádio e televisão, os aplicativos
para celular, as mensagens religiosas
na internet, não é possível ignorar que
as igrejas, os grupos religiosos, as mo-
dalidades de culto e de pregação aden-
traram o universo midiático, mas pode
ser apressado e extremamente reducio-
nista concluir que toda esfera do sagra-
do foi midiatizada. Com efeito, se o as-
sunto é religião, o que se põe em xeque
é maior do que o lugar de [alguma] ins-
tituição mediadora. As questões da fé,
da espiritualidade e do âmbito religioso
de maneira ampla e complexa abran-
gem dimensões ontológicas, às quais
convidam - quiçá exigem – sob pena de
superficialidade, indagações e questio-
namentos que nem sempre os estudio-
sos de comunicação estão dispostos a
fazer. E ainda que não se discorra so-
bre os caminhos a que podem levar tais
perguntas, essa seara temática evoca,
minimamente, uma consciência sobre
sua amplitude e as peculiaridades do
vínculo, da axiologia, da adesão que
transcendem o aspecto social clássico,
uma vez que se trata de considerar uma
intersubjetividade em que há um Outro
que não é o sujeito humano.
O cristianismo, para tomar um
exemplo de maior relevância para a cul-
tura ocidental, muito embora tenha se
concretizado historicamente como uma
instituição eclesial, além de estar marca-
do historicamente por uniões e separa-
ções institucionais, não pode se resumir
a isso. Diante da proposta de desenvol-
ver um olhar complexo sobre um objeto
de estudo relacionado com religião, é
necessário entendê-lo (ou, no mínimo,
considerá-lo) como instância que se de-
ne pelo que está para além da esfera
da interação social, mas que toca ao
sagrado, ao mistério, ao contato com o
transcendente (esse não é um traço ex-
clusivo do cristianismo, mas de outras
propostas religiosas também). Neste
caso especíco, é mister considerar que,
ao longo da história e nos diferentes ter-
ritórios, o cristianismo se adaptou aos
mais variados formatos de organização
política, cultural, econômica e “sobrevi-
veu” a eles. Assim, demonstrou ser um
modo de vida, uma proposta universal
de “bios religioso” cuja permanência não
se ancora na variedade de expressões
religiosas, mas naquilo que toma como
verdade revelada e encarnada.
Em síntese, ao investigarmos re-
ligião, é necessário levar em conta sua
identidade religiosa em termos da sua
armação de ou noção de verdade,
bem como não negligenciar o lugar que
o âmbito da espiritualidade ocupa na
vida humana, já que lida essencialmente
com dimensões supra-humanas, supra-
-culturais. A fé trata do absoluto e na
busca dele não quer prender-se na rela-
tividade da cultura. A religião com suas
práticas de devoção e manifestação da
fé é claramente um traço da cultura, mas
na medida em que dá lugar a vivências
com o universo espiritual de formas tão
íntimas, tão peculiares, tão claramente
desconectadas dos aparatos da cultura
que transcendem até mesmo a possibili-
dade de explicação ou de verbalização –
por exemplo em êxtases, em fenômenos
paranormais etc – fatalmente escapa à
lógica da midiatização.
Ocorre que essa dimensão tão
pouco palpável não será o foco da pre-
ocupação deste artigo e talvez apenas
trabalhos sobre mística ou discussões
teológicas possam acercar esses as-
90
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
pectos. De qualquer modo, fiz questão
de levantar todas essas ponderações
neste trabalho para que não se pense
que as teorias da midiatização, embora
importantíssimas para pensar o cená-
rio contemporâneo, sejam suficientes
para destrinchar toda a problemática da
religião, da fé, da espiritualidade. A di-
mensão teórica da cultura e da comuni-
cação não são suficientes para abarcar
todos esses âmbitos.
Por m, em homenagem à verten-
te das ciências humanas que tanto se
preocupa em conhecer as dinâmicas da
dialética social; para os que reconhecem
a importância teórica de abarcar as di-
mensões de luta pela signicação, pelos
ordenamentos, pelas legitimações; para
os que se recusam a compreender os
fenômenos sociais como derivados de
processos naturais de evolução, con-
cluo com a reexão a seguir. O processo
de midiatização não ocorre sem coni-
to ou tensão tendo em vista o nível de
resistência – consciente ou não – que
os agentes de cada campo (político, ar-
tístico, esportivo, educacional, religio-
so etc) apresentam na incorporação da
chamada “lógica da mídia”. Quando os
valores internos (do campo social ou do
indivíduo) se mostram contrários aos da
midiatização, esforços se levantam para
que papeis sociais, lugares de fala – no
caso dos grupos – e uma condição onto-
lógica – no caso do ser humano – não se
esfacelem frente à nova ordem da expe-
riência do quarto bios.
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do Rio de Janeiro, 359 f., 2014
Recebido em 24/05/2017
Aprovado em 04/09/2017
I Fernanda Lima Lopes. Doutora e mestre em Comu-
nicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Pesquisadora de pós-doutorado na UFRJ. Con-
tato: ferlimalopes@gmail.com
II O conceito de religião aqui aplicado percebe a exis-
tência de espiritualidade em certos rituais e crenças,
mas não considera algumas manifestações como religi-
ões propriamente ditas. Práticas como o budismo, entre
outras, consideradas como losoa, portanto, não se en-
quadram na denição aqui adotada.
III Antes de ter sido enviado para o campo de con-
centração em Auchwitz, Viktor Frankl (1905 – 1997) foi
médico e psicólogo na Áustria, correspondeu-se com
Freud e, em período posterior à sua libertação com o
m da guerra, voltou a desenvolver suas teorias sobre
inconsciente, mantendo o diálogo com a psicanálise
freudiana. Suas reexões sobre a existência huma-
na procuram dar conta de um lugar do espiritual e do
transcendente, inclusive abarcando essas dimensões
no inconsciente, procurando mostrar que o agir huma-
no não resume-se ao impulsivo.
IV Prefácio à 5ª edição de língua espanhola do livro
“Dos meios às mediações”. Texto de 1998.
V Em entrevista à Revista Unisinos (edição 289, de
abril de 2009), a entrevistadora Graziella Wolfart diri-
ge a seguinte pergunta a Sodré: “O senhor arma que
“antes da midiatização da sociedade só Deus tinha o
poder imediato, global e instantâneo”. Acredita que a
mídia tenha tanta força assim, com capacidade para
mudar profundamente a vida das pessoas e o rumo da
sociedade? As respostas que seguem não retomam
explicitamente a menção ao divino, mas limitam-se a
reetir sobre a questão dos fenômenos da mídia na
era das redes e do digital.
VI http://revistapesquisa.fapesp.br/2008/12/01/mu-
niz-sodre/
VII No sentido adotado explicitamente por Krotz
(2007), comercialização refere-se ao que ele chama
de crescente importância da economia, o que para
ele também constitui um metaprocesso de suma im-
portância no mundo capitalista.
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A atuação de Silas Malafaia contra o PLC 122:
análise de suas páginas no Twitter e no Facebook
La actuación de Silas Malafaia contra el PLC 122:
análisis de sus páginas enTwitter y Facebook
The performance of Silas Malafaia against PLC 122:
analysis of his pages on Twitter and Facebook
Márcia Zanin Feliciani
I
Leandra Cohen Schirmer
II
Aline Roes Dalmolin
III
Resumo:
O PLC 122/2006 foi uma proposta de lei criada pela deputada Iara
Bernardi com o objetivo de criminalizar atos de violência física e/ou
simbólica referentes a sexualidade e gênero. Grupos conservadores
posicionaram-se fortemente em contrariedade à aprovação do projeto,
alegando que o mesmo feria os valores da família, da Constituição
(no que tange à liberdade de expressão) e da Bíblia – que, segundo
determinadas leituras, consideraria a homossexualidade pecaminosa.
Percebemos Silas Malafaia, líder da Igreja Assembleia de Deus
Vitória em Cristo, como uma das personalidades mais atuantes
nesse processo; assim, a partir dos conceitos de empreendedorismo
moral (BECKER, 2008), campo social e, mais especicamente,
campo religioso (BOURDIEU, 1983; 2008), midiatização e circulação
(BRAGA, 2012), buscaremos compreender a atuação do pastor
com relação aos desdobramentos que se seguiram à proposta. Ter-
se-á como objeto as postagens feitas em seus pers no Twitter e no
Facebook nos anos de 2011 e 2012 – período em que as discussões
sobre o PLC intensicaram-se.
Palavras chave:
Silas Malafaia
PLC 122
Twitter
Facebook
Empreendedorismo
moral
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Resumen:
El PLC 122/2006 fue una propuesta de ley creada por la diputada Iara
Bernardi con el objetivo de criminalizar actos de violencia física y/o
simbólica referentes a sexualidad y género. Los grupos conservadores
se posicionaron fuertemente en contra de la aprobación del proyecto,
alegando que el mismo dañaba los valores de la familia, de la
Constitución (en lo que se reere a la libertad de expresión) y de la
Biblia, que según ciertas lecturas, consideraría la homosexualidad
pecaminosa. Percibimos a Silas Malafaia, líder de la Iglesia Asamblea
de Dios Victoria en Cristo, como una de las personalidades más
actuantes en ese proceso. En este sentido, a partir de los conceptos
de emprendedor moral (BECKER, 2008), campo social y, más
especícamente, campo religioso (BOURDIEU, 1983; 2008) y
mediatización y circulación (BRAGA, 2012), buscaremos comprender
la actuación del pastor con respecto a los desdoblamientos que
siguieron a la propuesta. Se tendrán como objeto las entradas hechas
en sus perles en Twitter y Facebook en 2011 y 2012, período en que
las discusiones sobre el PLC se intensicaron.
Abstract:
PLC 122/2006 was a bill proposed by deputy Iara Bernardi with the
aim of criminalizing acts of physical and/or symbolic violence related
to sexuality and gender. Conservative groups strongly opposed the bill,
claiming that it violated the values of the family, the Constitution (in
terms of freedom of expression) and the Bible – which, according to
certain readings, would consider homosexuality as sinful. We perceive
Silas Malafaia, leader of the Church of the Assemblies of God Victory
in Christ, as one of the most active personalities in this process. Thus,
from the concepts of moral entrepreneurship (BECKER, 2008), social
eld and, more specically, religious eld (BOURDIEU, 1983; 2008)
and mediatization and circulation (BRAGA, 2012), we will seek to
understand the pastor’s performance in relation to developments that
followed the proposal. We’ll take as object the posts madden in his
proles on Twitter and Facebook in 2011 and 2012 a period when
discussions about the PLC intensied.
Palabras clave:
Silas Malafaia
PLC 122
Twitter
Facebook
Empreendedorismo
moral
Keywords:
Silas Malafaia
PLC 122
Twitter
Facebook
Moral entrepreneurship
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A atuação de Silas Malafaia contra
o PLC 122: análise de suas páginas
no Twitter e no Facebook
1. Introdução
As igrejas pentecostais ganharam
força no Brasil a partir do século XX, com
a separação entre a Igreja Católica e o
Estado. De lá para cá, seu crescimento
foi exponencial: no censo
IV
realizado em
2010 pelo Instituto Brasileiro de Geograa
e Estatística (IBGE), cerca de 25 milhões
de brasileiros disseram-se membros de al-
guma congregação pentecostal.
A presença desses adeptos, en-
tretanto, não ca restrita aos espaços
religiosos: na mídia, percebemos essas
congregações ocupando considerável
espaço (principalmente no rádio, na tele-
visão e na internet), permitindo o alcance
a uma parcela ainda maior da população;
na política, vê-se uma bancada religiosa
composta por líderes evangélicos de vá-
rios partidos, em grande parte adeptos da
direita conservadora brasileira.
Esse último ponto destaca-se por
motivar a tensão contínua entre religião e
Estado. Ainda que não seja autorizado por
lei que ninguém imponha sua crença aos
demais e que nenhum grupo possa tornar
suas leis religiosas parte integrante das
leis civis, na prática não é o que ocorre,
justamente em função da presença des-
ses grupos nas mais diferentes instâncias
governamentais. O artigo 18 da Declara-
ção dos Direitos Humanos prescreve que:
Toda pessoa tem direito à liberdade de
pensamento, consciência e religião;
este direito inclui a liberdade de mu-
dar de religião ou crença e a liberdade
de manifestar essa religião ou crença,
pelo ensino, pela prática, pelo culto e
pela observância, isolada ou coletiva-
mente, em público ou em particular.
(ONU, 1948)
A prescrição, entretanto, não pare-
ce bem clara para alguns religiosos – que
confundem essa “livre manifestação da
religião” com uma liberdade de expressão
sem limites. Por conta disso, muitos temas
que mobilizam a opinião pública e que,
inicialmente, seriam pautados no campo
político, acabam sendo discutidos e mui-
tas vezes sofrem inuência do campo re-
ligioso – como as pesquisas com células-
-tronco, a eutanásia, os direitos sexuais e
reprodutivos e, claro, questões ligadas à
homossexualidade. O último é constante-
mente abordado nos discursos de atores
religiosos, que utilizam argumentos con-
trários à prática.
Silas Malafaia, líder da Igreja As-
sembleia de Deus Vitória em Cristo, é co-
nhecido por ter uma opinião bastante mar-
cada a respeito do tema. O pastor vem se
caracterizando, nos últimos anos, como
uma “celebridade midiática evangélica,
que assume o papel da pessoa controver-
tida e constrói sua imagem como ‘aquele
que diz as verdades’” (CUNHA, 2014b, p.
9). Um dos vários casos de divergências
entre Silas e os grupos LGBTTQIA
V
foi a
respeito do Projeto de Lei da Câmara n.
122/2006 ou, como cou mais conheci-
da, a lei anti-homofobia.
No Brasil, a lei 7.716/89 tipica cri-
minalmente a prática de discriminação de-
vido a raça, cor, etnia, procedência nacio-
nal ou religião. Contudo, a legislação não
prevê punição especíca para vários tipos
de discurso de ódio – como é o caso de
preconceito em função de gênero e orien-
tação sexual –, nem mesmo prescreve
penas mais duras em casos de violência
física ou até homicídio derivado de intole-
rância. Nesses casos, a saída legalmente
encontrada no judiciário vem sendo en-
quadrar criminalmente os casos de dis-
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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criminação como “abuso de direito”, pela
falta de uma regulamentação especíca
para esses crimes.
O PLC 122, então, foi proposto em
2006 pela deputada Iara Bernardi no sen-
tido de suprir essa lacuna. Uma das princi-
pais justicativas para a aprovação da lei,
além do próprio combate à violência ho-
mofóbica, seria o de incluir na legislação
brasileira uma tipicação para a punição
da violência simbólica contra a população
LGBTTQIA, ampliando a abrangência das
leis já existentes.
Apesar de proposto em 2006, as
discussões acerca do projeto intensica-
ram-se entre 2011 e 2012, período em que
houve audiências públicas para discussão
do tema. Malafaia, convidado a participar
dos debates como representante contrá-
rio à aprovação do projeto, apresentou
diversos argumentos para defender sua
posição – como o de que o projeto fere os
valores da família tradicional e o direito de
expressão dos indivíduos discordantes da
prática homossexual.
Além de manifestar sua opinião pu-
blicamente, o pastor promoveu uma cam-
panha efetiva contra a aprovação da lei,
incentivando seus éis a participar de um
abaixo-assinado e de uma manifestação
em Brasília, além de exercer pressão junto
aos parlamentares e à imprensa – inves-
tidas que acabaram por fazer dele “ator
político e maior representante dos grupos
evangélicos conservadores” (CAMPOS,
GUSMÃO e MAURICIO JR., 2015, p. 168)
no contexto atual.
A este estudo, cabe identicar a
mobilização do pastor e de seus segui-
dores a respeito do PLC a partir de seus
pers ociais no Facebook e no Twitter,
durante os anos de 2011 e 2012. A aná-
lise do perl do Twitter busca compreen-
der o ativismo do pastor a partir de seus
próprios tweets, enquanto a do Facebook
enfoca a circulação midiática (BRAGA,
2012) percebida nos comentários dos in-
teragentes. Através de análise discursiva,
busca-se compreender o papel de Silas
como empreendedor moral (BECKER,
2008), bem como observar sua atuação
nos campos político, religioso e midiático.
2. Circuitos entre os campos religioso,
político e midiático
Campo, segundo Bourdieu (1983),
refere-se a um espaço estruturado por
posições sociais e responsável por estru-
turá-las. Resumidamente, trata-se de um
jogo, no qual os agentes lutam entre si
pelo domínio do respectivo capital – que é
especíco em cada campo.
No caso do campo religioso, a mo-
vimentação do capital está ligada tanto a
fatores internos quanto externos. É per-
ceptível a relação existente entre as cren-
ças e seu contexto social: o próprio desen-
volvimento e institucionalização do campo
religioso como tal estão ligados ao cresci-
mento das cidades (BOURDIEU, 1983).
É importante destacar que o campo
religioso não é homogêneo, sendo com-
posto por uma innidade de crenças com
diferentes denominações, procedências e
objetivos. Só no Brasil, através do censo
realizado pelo IBGE em 2000, constatou-
-se o surgimento de mil e duzentas novas
denominações religiosas em comparação
à pesquisa anterior, de 1991 (CAMPOS,
2004). Segundo Bourdieu (2008), isso se-
ria um reexo da principal característica
de tal campo: a concorrência.
Dentro das instituições religiosas
também não há homogeneidade: existem
diferentes pers de membros. os leigos
(ou simples adeptos), de conhecimento
mais básico, e os dominantes, detentores
de parte signicativa do capital em circula-
ção no campo. São esses que, através de
96
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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seus discursos e do uso do carisma, são
capazes de mobilizar os demais em bene-
fício das causas de seu interesse, desper-
tando neles a necessidade de aliar-se a
elas (BOURDIEU, 2008).
Tal mobilização é perceptível na re-
lação dos evangélicos com a política, que é
cada vez mais latente no país. A inuência
exercida pelas lideranças nos membros
de congregações evangélicas é maior por
vários fatores, dentre eles a baixa renda e
escolaridade de boa parte dos éis e, prin-
cipalmente, a grande exposição argumen-
tativa a que estes são submetidos, visto
que a maior parte deles pratica atividades
religiosas frequentemente (MAIA, 2006).
Com a entrada das personalidades
religiosas na política, a inuência passou
a se dar no sentido de conquistar, além de
éis, eleitores. Para isso, são dois os tipos
de argumentos utilizados pelas lideran-
ças: os efetivamente religiosos, que con-
sideram os problemas políticos como uma
guerra espiritual e defendem que só a pre-
sença de homens de Deus naquele meio
pode ser uma solução (MAIA, 2006), e os
derivados de outros campos, como o jurí-
dico e o cientíco, como vemos no caso
de Malafaia. Recorre-se, neles, a valores
dos quais pessoas que não participam do
campo religioso também compartilham,
legitimando seus posicionamentos diante
de um público mais amplo do que apenas
o de seus éis.
A legitimidade conquistada dentro
dos campos religioso e político possibi-
litam a ampliação do capital econômico
dessas instituições; a soma dos três, por
consequência, permite o seu acesso à mí-
dia, multiplicando, ainda mais, o alcance
dos discursos religiosos. Esse contexto de
intensa disputa pelos éis, não raro é ar-
ticulado a partir de estratégias de marke-
ting, publicização e segmentação carac-
terísticas do campo midiático, sobretudo
por parte das igrejas neopentecostais, de
modo que não é estranho ao contexto atu-
al observarmos no Brasil o fracionamen-
to de igrejas não por cismas doutrinários,
como ocorria no passado, mas sobretudo
na orientação por atingir um determinado
público-alvo.
A presença dessas instituições na
esfera midiática não é algo novo, mas vem
sendo cada vez mais visível. Há canais de
TV criados e mantidos única e exclusiva-
mente para a divulgação de crenças espe-
cícas, como a Rede Vida (da Igreja Católi-
ca), a RIT (da Igreja Internacional da Graça
de Deus), o canal Novo Tempo (da Igreja
Adventista do Sétimo Dia), etc. – todos com
programações regadas a cultos, progra-
mas de pastores, clipes musicais, etc.
O que desperta mais a atenção,
entretanto, é como a religião tem-se feito
presente nas grandes emissoras. A Rede
Record, liderada pelo bispo neopentecos-
tal Edir Macedo, tem feito uma verdadeira
revolução em termos de conteúdo – trans-
formando episódios bíblicos até em tele-
novelas. A própria Rede Globo tem aberto
espaço para a religião: um exemplo é a
organização e transmissão anual do Festi-
val Promessas, que reúne shows de diver-
sos artistas gospel. Ainda, para além da
presença em mídias tradicionais, também
cresce o uso da internet por personalida-
des religiosas: páginas em redes sociais
como Facebook e Twitter, vídeos de pre-
gações no Youtube e até portais de notí-
cias exclusivos, alcançando um número
cada vez maior de seguidores.
Segundo Cunha (2014a), essa é
uma resposta da religião ao capitalismo.
A ligação entre mídia religiosa e merca-
do, caracterizada pela autora como cultu-
ra gospel, é cada vez mais latente, e se
sustenta principalmente pela tríade entre
música, mercado e entretenimento.
Essas transformações são con-
sequência da midiatização, conceituada
97
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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por Braga (2012, p. 35) como uma série
de processos que “não se restringem ao
objeto “meios” nem ao objeto “recepto-
res esuas mediações”, mas os incluem, a
ambos, em formações muitíssimo diversi-
cadas e ainda articulados a outras forma-
ções”. Foi a partir dessas transformações
complexas que “todas as áreas e setores
da sociedade passaram a desenvolver
práticas e reexões sobre sua interação
com as demais áreas e setores” (BRAGA,
2012, p. 37) – o que explica a tentativa de
adaptação da religião às diversas formas
de comunicação.
É a midiatização, portanto, que
pauta a atuação dos diferentes atores
religiosos para adentrar nas lógicas do
campo midiático. No contexto atual do
campo evangélico brasileiro, observa-
mos uma verdadeira ‘guerra’ por visibili-
dade (CUNHA, 2013), tanto por parte dos
leigos quanto dos dominantes – usando
a terminologia bourdiana –, nas quais se
enquadram disputas simbólicas trava-
das com estratégias advindas de ambos
os campos. Nessa guerra, salientam-se
as disputas em torno de questões refe-
rentes à ingerência sobre a vida humana
e a sexualidade.
Nesse contexto belicoso, muitos lí-
deres religiosos evangélicos, qualicados
de considerável capital simbólico nas trin-
cheiras de suas denominações religiosas,
lançam-se no campo midiático atuando
como ‘profetas’ (BOURDIEU, 2008), tendo
que conquistar simpatizantes pela mani-
pulação simbólica. Nessa categoria po-
deríamos enquadrar lideranças religiosas
como Edir Macedo, Marco Feliciano e o
próprio Silas Malafaia.
São lideranças carismáticas capa-
zes de mobilizar uma quantidade consi-
derável de pessoas, inclusive as que não
fazem parte do campo religioso. Isso se
dá pela semelhança entre as visões de
mundo desses sujeitos, normalmente liga-
das à moral e aos ‘bons costumes’. A atu-
ação dessas lideranças, que muitas vezes
atingem o status de celebridade midiática,
podem ser observadas a partir do conceito
de empreendedor moral (BECKER, 2008).
3. A atuação de Silas Malafaia como
empreendedor moral
Empreendedores morais, segun-
do Becker (2008), são líderes de opi-
nião, que podem criar ou impor regras de
comportamento de acordo com o que jul-
gam formas certas ou erradas de viver e
pensar, inuenciando as pessoas ao seu
redor a agir da mesma forma. O empre-
endedor caracterizado como criador de
regras “está interessado no conteúdo das
regras. [...] Ele julga que nada pode estar
certo no mundo até que se façam regras
para corrigi-lo” (BECKER, 2008, p. 153);
em resumo, podem ser chamados de au-
tores das ditas regras.
Já os impositores, segundo tipo de
empreendedores morais, são os respon-
sáveis por transmitir de geração em gera-
ção as regras que são criadas pelos su-
jeitos e instituições sociais (os criadores),
e sua atuação faz com que boa parte de-
las acabem intrínsecas em nosso senso
comum. São eles que garantem que as
regras de autoria dos criadores estejam
sendo cumpridas.
À primeira vista, enquadramos
Malafaia como um impositor, visto que
seus discursos baseiam-se em ‘regras’
já dadas e consolidadas – ou a partir da
Bíblia, ou da Constituição. Entretanto,
observando atentamente sua atuação, é
possível repensar essas categorias pro-
postas por Becker.
Sabe-se que a base do discurso re-
ligioso do pastor é a Bíblia. A obra, entre-
tanto, possui séculos de existência, tendo
sido escrita em circunstâncias completa-
98
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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mente diferentes da conjuntura mundial
atual. Ao lê-la, deve-se lembrar, portan-
to, que o texto “não constitui, acima dos
acontecimentos, e em um universo inalte-
rável, uma estrutura intemporal; dene-se
como o conjunto das regras que caracteri-
zam uma prática discursiva” (FOUCAULT,
2008, p. 145).
Ou seja: não se pode, simplesmen-
te, considerar o texto como verdade ab-
soluta, nos dias de hoje, sem considerar
as condições anteriores nas quais ele foi
escrito. É exatamente o contrário que se
percebe em Malafaia, que, ao fazer sua
leitura da obra, “ignora interpretações que
relativizam o contexto histórico da época
na qual os textos foram escritos” (FELI-
CIANI; DALMOLIN, 2016, p. 6).
Se considerarmos tal contexto,
a interpretação de Silas (e de qualquer
outro indivíduo que realizar a leitura da
obra) pode não ser correta, ou, pelo me-
nos, não estar de acordo com a ideia ima-
ginada originalmente. Pensando dessa
forma, Malafaia poderia ser visto como
um reformulador dessas regras, já que,
apesar de basear-se em ‘regras’ pré-de-
terminadas, o pastor interpreta-as a partir
de sua visão de mundo.
Além disso, precisamos analisar
a situação por outro olhar, pensando no
contexto de midiatização no qual estamos
inseridos. É notável que, dependendo do
público e do meio, o discurso dos empre-
endedores é diferente. Usando a termino-
logia bourdiana, tais ações alteram-se de
acordo com o campo em questão.
Segundo Rodrigues (2000), cada
campo social detém um regime de sim-
bólica própria, que pode ser formal ou
informal. A simbólica formal caracteri-
za-se pelo rigor de sua manifestação
e seu uso é exclusivo pelos membros
competentes que fazem parte de seu
corpo social, enquanto a simbólica in-
formal consiste no apagamento dessas
marcas distintivas.
O campo religioso constitui um
exemplo de campo com simbólica formal,
uma vez que apenas os membros com po-
sição mais elevada detêm a autorização
e a competência para ostentar insígnias
e vestes especiais, bem como desempe-
nhar rituais litúrgicos – o que os caracte-
riza como de competência esotérica. Já
o campo midiático expressa-se por uma
simbólica informal e competência exoté-
rica, pois destina-se a assegurar, a partir
de suas características, a permeabilidade
pelos demais campos sociais.
As ações de Malafaia novamente
são exemplo: dentro de sua congregação
e para seus éis (ou seja, no campo religio-
so), seus discursos baseiam-se nos valo-
res transmitidos pela Bíblia, apoiando-se,
portanto, em conhecimentos esotéricos ao
campo. Entretanto, quando participa de
discussões políticas junto aos parlamenta-
res, à mídia e à sociedade brasileira, são
poucos os argumentos ligados à religião.
Em seu discurso nesses espaços, o pas-
tor busca legitimidade na Constituição, em
estudos de Psicologia (prossão na qual é
graduado) e até na Biologia, apoiando-se
na permeabilidade da linguagem simbóli-
ca exotérica ao campo midiático.
Tais diferenciações são visíveis nos
argumentos utilizados pelo pastor (e, com
ele, alguns grupos evangélicos e conser-
vadores da sociedade brasileira) no em-
bate com os movimentos LGBTTQIA. O
debate teve um de seus pontos altos com
o Projeto de Lei da Câmara (PLC) n. 122,
proposto em 2006 pela então deputada
Iara Bernardi, do Partido dos Trabalhado-
res (PT). O objetivo da proposta era claro:
a criminalização de atos discriminatórios
ligados a sexualidade e gênero.
Apesar de representar grande
avanço na luta dos grupos LGBTTQIA, a
99
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proposta gerou revolta dos setores mais
conservadores da sociedade, que se ma-
nifestaram efetivamente em contrariedade
à aprovação do Projeto. Malafaia desta-
cou-se por atuar como liderança e como
ativista político, fazendo uso de uma am-
pla rede de discursos e veículos. Promo-
veu uma grande manifestação em Brasí-
lia, recolheu milhares de assinaturas em
um abaixo-assinado e exerceu, juntamen-
te com os grupos evangélicos, forte pres-
são junto aos parlamentares e à imprensa
– tudo para impedir que a lei fosse aprova-
da. Seus principais argumentos foram de
que a proposta inibe o direito de expres-
são dos indivíduos que discordam da prá-
tica homossexual e vai contra os valores
da Bíblia, da família e da Constituição.
No item seguinte, serão analisadas
as postagens nos pers do pastor no Twit-
ter e no Facebook – mais especicamente
durante os anos de 2011 e 2012. Apesar
de proposto na Câmara em 2006, foi só
cinco anos depois que o Projeto passou a
ser discutido no Senado; Malafaia, convi-
dado a participar das audiências públicas
de discussão do projeto como líder religio-
so, foi responsável por ações de grande
impacto no desfecho do debate.
4. Análise das redes sociais de Malafaia
A escolha pelo Twitter e Facebook
deniu-se em função do objetivo geral de-
compreender a movimentação do pastor e
seus seguidores nas redes sociais. A partir
dos discursos do pastor, compreendemos
como seus éis e demais seguidores for-
mulam suas opiniões sobre o tema.
A análise comparativa entre as
duas plataformas justica-se em função
de termos observado diferenças signi-
cativas na utilização de cada uma pelo
pastor. No Facebook, as postagens, além
de serem poucas
VI
, não apresentam con-
teúdo signicativo a respeito da opinião
de Malafaia sobre o tema. Entretanto, os
comentários dos interagentes em seus
posts são bastante expressivos e carac-
terísticos da visão do grupo, bem como
da extensão da base de apoio que Silas
possui; centramo-nos, então, nesse as-
pecto. Já no Twitter, o aspecto mais mar-
cante foram os dizeres do próprio pastor-
VII
– que foram, portanto, o foco de nossa
observação.Ou seja: enquanto a análise
do Facebook tem enfoque na circulação
(BRAGA, 2012) dos comentários a par-
tir dos usuários, a do Twitter enfoca na
utilização da plataforma como espaço de
argumentação e, principalmente, de mo-
bilização pelo próprio pastor. Apesar des-
sas diferenciações, percebemos algumas
utilizações em comum das duas platafor-
mas, tanto por Malafaia quanto por seus
seguidores – explanadas em categorias
especícas como veremos a seguir.
Além disso, outra observação
que se faz importante é com relação ao
período de tempo analisado em cada
plataforma: no Twitter, coletamos todas
as postagens do ano de 2011; no Fa-
cebook, como a coleta das postagens
deste ano não apresentou conteúdo su-
ciente para desencadear uma análise
signicativa, estendemos o período em
mais um ano – observando, também, os
posts de 2012.
4.1 Análise do Twitter
Pode-se considerar o Twitter como
uma das maiores armas de Silas na con-
trariedade ao projeto. Não à toa: o Brasil
é o segundo maior do mundo em número
de usuários, segundo estudo
VIII
; isso expli-
ca o interesse do pastor em apropriar-se
dele. Além disso, como armam Recuero,
Zago e Bastos (2014, p. 208), o Twitter
diferencia-se das demais redes sociais
porque “não funciona apenas como um
espaço discursivo de relato, mas também
de mobilização”.
100
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Para a análise da movimentação do
pastor no ano desejado, utilizou-se o re-
curso de busca avançada da plataforma,
que permite, dentre outras opções, delimi-
tar as postagens por período de tempo. A
partir daí, capturamos imagens de todos
os tweets do perl de Malafaia no ano de
2011, zemos sua divisão em meses e,
por m, em categorias especícas.
A observação dos 871 tweets do
ano mostrou que nos meses de maio, ju-
nho, julho, outubro, novembro e dezem-
bro, a frequência de postagens foi maior
– justamente nos períodos em que Silas
mais se empenhou na contrariedade à
aprovação do projeto.
Os tweets que fazem referência aos
movimentos LGBTTQIA (e, mais especi-
camente, ao PLC 122) correspondem a
cerca de 40%
IX
de todas as postagens fei-
tas por Malafaia no ano em questão; isso
mostra o quanto o pastor empenhou-se
em tentar barrar a aprovação do projeto,
agindo como um legítimo ativista políti-
co. Esses tweets possuem características
bem marcantes que permitem diferenciá-
-los e, logo, categorizá-los. Observou-se:
a) Tweets que fazem chamadas para pro-
gramas e sites: nesses casos, apenas é
feita a referência aos movimentos ou ao
PLC; a informação, de fato, está detida
em outros veículos que fazem parte da
sua rede de atuação midiática. Malafaia
convida seus seguidores a acompanha-
rem a discussão nesses outros meios,
como em um de seus programas de TV
(gura 1), no site da Associação Vitória
em Cristo (gura 2) e em um vídeo no
Youtube (gura 3).
Figura 1: Exemplo de chamada para programa de TV.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
Figura 2: Exemplo de chamada para site.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
Figura 3: Exemplo de chamada para vídeo.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
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b) Tweets de mobilização a respeito do
PLC: essa categoria engloba a maior
parte das postagens analisadas. Trata-
-se das mensagens direcionadas ex-
clusivamente aos apoiadores do pastor,
convidando-os a manifestarem sua con-
trariedade ao projeto das mais diferentes
formas. Exemplos são o incentivo à parti-
cipação no abaixo-assinado (gura 4), ao
envio de e-mails para os parlamentares
participantes das decisões referentes ao
projeto (gura 5) e à imprensa, para vei-
cular os argumentos dos grupos discor-
dantes da proposta (gura 6).
Figura 4: Exemplo de chamada para assinatura.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
Figura 5: Exemplo de chamada para envio de e-mail a parlamentares.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
Figura 6: Exemplo de chamada para envio de e-mails à imprensa.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
102
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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c) Tweets de feedback dos resultados ob-
tidos: aqui enquadram-se os tweets nos
quais o pastor atualiza seus seguidores
a respeito da ecácia da campanha, bem
como da tramitação do projeto. Na gu-
ra 7, por exemplo, Malafaia orgulha-se
do número de assinaturas adquiridas no
abaixo-assinado; na gura 8, do número
de participantes da manifestação presen-
cial; na gura 9, por m, Silas informa
seus seguidores sobre o andamento do
projeto no Senado.
d) Tweets de justicação do posiciona-
mento: são postagens nas quais Silas de-
fende seu ponto de vista, principalmente a
partir de argumentos ligados às suas cren-
ças religiosas e aos seus direitos como
cidadão. Encaixam-se aqui, ainda, men-
sagens direcionadas especicamente aos
movimentos LGBTTQIA e esclarecimen-
tos sobre o PLC 122 aos seus seguidores.
Pode-se considerar a categoria mais sig-
nicativa para compreender sua atuação
enquanto empreendedor moral.
A gura 10 ilustra vários tweets
nos quais Malafaia justica seus posi-
cionamentos com argumentos como o
de que a homossexualidade seria um fa-
tor comportamental não-inato, articulan-
do suas ideias a supostos princípios da
Psicologia,bem como critica a constitu-
cionalidade do PLC 122 em razão deste
supostamente inibir o direito de expres-
são dos demais cidadãos, aqui justi-
cando-se com argumentos com base no
Direito. Chama a atenção, nesses twe-
Figura 7: Exemplo de feedback dos resultados.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
Figura 8: Exemplo de feedback dos resultados.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
Figura 9: Exemplo de feedback dos resultados.
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
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Figura 10: Exemplo
X
do posicionamento do pastor
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
ets, a citação do nome deputado fede-
ral Jean Wyllys, uma das vozes do mo-
vimento LGBTTQIA na Câmara – o que
reforça esse contexto de “disputa” entre
os dois grupos.
Na gura 11, Silas reforça o argu-
mento de que a homossexualidade vista
como um fator comportamental e acres-
centa, ainda, que os grupos LGBTTQIA
seriam privilegiados caso o projeto fos-
se aprovado. A gura 12, por m, chama
a atenção por diferenciar-se das outras
duas, já que destaca o interesse religioso
na argumentação do pastor. Ele alega não
odiar os homossexuais, mas sim suas prá-
ticas – das quais, segundo ele, Deus pode
“libertá-los”. Nesse sentido, identica-se
com a chamada “cura gay”, ao explicitar
que através da palavra de Cristo, suposta-
mente seria possível um homossexual se
tornar heterossexual.
104
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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4.2 Análise do Facebook
A coleta feita a partir da página o-
cial do pastor no Facebook, realizada entre
junho de 2011 e junho de 2012, apontou
um total de 156 postagens. Entre frases bí-
blicas, divulgação de eventos e produtos,
chamadas para programas, dentre outras,
11 diziam respeito aos embates entre o
pastor e seus éis e homossexuais.
A maior parte das postagens consis-
te em frases curtas que levam a outros veí-
culos, como seus programas de TV, o You-
tube e o site da Revista Veja; não contêm,
em si próprias, indícios da visão de Silas a
respeito da homossexualidade e do PLC. Já
com relação aos comentários, a coleta foi
bem mais satisfatória: foram 1294 comentá-
rios recolhidos, nos quais se notou uma forte
polarização entre os interagentes.
Essa grande carga signicativa dos
comentários reete o conceito de circula-
ção trabalhado por Braga (2012). O autor
vê o processo de comunicação não mais
Figura 11: Exemplo do posicionamento do pastor
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
Figura 12: Exemplo do posicionamento do pastor
Fonte: Perl de Silas Malafaia no Twitter.
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Figura 13: Comentário do interagente 1
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 14: Comentário do interagente 2
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 15: Comentário do interagente 3
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
como estático, em que o receptor apenas
recebe e assimila a mensagem do emis-
sor, mas sim como “um processo de uxo
contínuo, sempre adiante” (BRAGA, 2012,
p. 40).A circulação refere-se, então, aes-
se amplo “espaço do reconhecimento e
dos desvios produzidos pela apropriação”
(BRAGA, 2012, p. 38); no caso especíco
da pesquisa, engloba todos os desdobra-
mentos argumentativos que os discursos
que partiram de Malafaia geraram.
Realizamos uma categorização
das principais recorrências, selecionando
os comentários mais signicativos e apon-
tando, assim, a presença de indivíduos
apoiadores e contrários ao pastor.
a) Indivíduos apoiam o pastor utilizan-
do discursos religiosos: essa categoria
caracteriza-se pelo tratamento da ho-
mossexualidade como pecado – sendo,
por isso, condenada por Deus. Na figu-
ra 13, por exemplo, percebe-se a cren-
ça no fato de que basear-se na Bíblia
Sagrada isenta qualquer indivíduo da
acusação de discriminação; na figura
14, o interagente faz uso de um versí-
culo da Bíblia para justificar o combate
à homossexualidade; na figura 15, por
fim, o usuário faz referência ao episódio
bíblico da destruição da cidade de So-
doma (considerada pecaminosa), com-
parando o destino de seus moradores
ao dos homossexuais.
106
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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b) Indivíduos que apoiam o pastor utilizan-
do argumentos laicos: são construções
discursivas que alegam que os movimen-
tos LGBTTQIA têm o objetivo de impedir
que os cristãos usufruam de sua liberdade
de expressão, usando expressões como
“mordaça” e “censura”. Na gura 16, o in-
teragente alega que a prioridade não são
os direitos dos homossexuais, mas o exer-
cício da liberdade de expressão de quem
não concorda com tal prática; o interagen-
te da gura 17 menospreza o movimen-
to homossexual; na gura 18, percebe-se
referência à música “Cálice (cale-se)”, de
Chico Buarque, utilizada como forma de
protesto à repressão durante o Regime
Militar. Coloca-se, assim, o PLC 122 como
uma forma de censura.
Figura 16: Comentário do interagente 4
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 17: Comentário do interagente 5
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 18: Comentário do interagente 6
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
c) Indivíduos que expressam fé religio-
sa, mas discordam de Malafaia: tra-
tam-se de argumentos de pessoas do-
tadas de religiosidade que defendem
a disseminação do amor de Cristo e o
fim da perseguição aos homossexuais
promovida por Malafaia. O interagente
da figura 19 critica a postura de Silas
e dos demais líderes religiosos envol-
vidos na causa, alertando os demais
fiéis com relação a tais atitudes. Já
na figura 20, há uma crítica direta ao
pastor: para o interagente em ques-
tão, ele devia preocupar-se em pregar
a “Palavra de Deus” ao invés de pro-
mover tal comoção.
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Figura 19: Comentário do interagente 7
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 20: Comentário do interagente 8
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 21: Comentário do interagente 9
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 22: Comentário do interagente 10
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
d) Não-evangélicos que apoiam Silas: ca-
sos em que indivíduos de outras vincula-
ções religiosas manifestaram-se a favor
do pastor e alegaram concordância com
seus argumentos. Na gura 21, um segui-
dor católico expressa admiração pelo pas-
tor diz fazer parte do grupo dos “católicos
convertidos de verdade”, concordando
com o ponto de vista dele em função de
motivos religiosos. No caso da gura 22,
Malafaia recebe apoio de um interagente
que se diz ateu, que apresenta concor-
dância no argumento referente à liberdade
de expressão. Essa categoria demonstra
amplitude das ações do pastor, que atin-
gem não-evangélicos que concordam com
seus posicionamentos tanto por motivos
laicos quanto religiosos.
108
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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e) Interagentes que se posicionam con-
tra Malafaia e seus éis: são pessoas
que se e criticam essa discriminação
defendendo que a crença de um grupo
não deve afetar o restante da socieda-
de. Os comentários das guras 23, 24 e
25 assumem-se como membros de gru-
pos LGBTTQIA para refutar as ideias de
Malafaia. O interagente da gura 23 não
motivo para tal comoção, armando
que os homossexuais “se amam igual a
todos”; na gura 24, há uma crítica à dis-
criminação promovida contra os homos-
sexuais; a interagente da gura 25 alega
sentir-se discriminada e dirige-se pesso-
almente a Malafaia.
Figura 23: Comentário do interagente 11
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 24: Comentário do interagente 12
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 25: Comentário do interagente 13
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Já os comentários das figu-
ras abaixo reportam interagentes que
não se afirmam como homossexuais,
mas argumentam em favor dos grupos
LGBTTQIA, defendendo que estes se-
jam tratados com respeito – sobretudo-
em função do princípio da laicidadedo
Estado. Na figura 26, há menção a fa-
tos históricos de perseguição religiosa,
comparando-os com o contexto atual;
na figura 27, há reforço do argumento
de que a crença de um grupo não deve
aplicar-se à sociedade em geral – ar-
gumento fortalecido pelo comentário da
figura 28, que apela para o princípio de
laicidade do Estado.
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Figura 26: Comentário do interagente 14
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 27: Comentário do interagente 15
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Figura 28: Comentário do interagente 16
Fonte: Página de Silas Malafaia no Facebook.
Há, ainda, casos em que os co-
mentários são apenas de apoio a Malafaia
(sem participação efetiva no debate) – que
consistem na maioria dos comentários,
mas não são tão signicativos em termos
de análise discursiva – e, também, inúme-
ros contendo xingamentos e provocações,
de ambos os lados. É perceptível que o
debate é acirrado, com os dois grupos
tentando defender e justicar sua posição.
Também nota-se a repetição de elemen-
tos nas falas dos interagentes e, inclusive,
deles próprios, que estendem sua partici-
pação em discussões acaloradas e provo-
cativas, evidenciando a tensão existente
entre os campos religioso e político.
6. Considerações nais
Apesar de as postagens do Face-
book não apresentarem poucas pistas
sobre os argumentos de Malafaia sobre
o PLC 122, é possível nesta rede social
perceber a força da circulação (BRAGA,
2012) que ocorre a partir de seus discur-
sos. Já a análise do Twitter demonstrou
o intenso ativismo político de Malafaia no
caso do PLC – visto que foram quase 400
tweets no ano dedicados às suas críticas
ao projeto, e, principalmente, à mobiliza-
ção de seus seguidores em seu favor. A
análise transversal das duas redes sociais
reportam uma coerência entre os argu-
110
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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mentos explicitados por Malafaia – ca-
racterizados principalmente pela defesa
irrestrita da liberdade de expressão e da
crítica à prática homossexual a partir de
argumentos laicos e religioso – e a circu-
lação dos interagentes, que se alternam
entre argumentos laicos e religiosos tanto
para criticar como para aderir ao posicio-
namento de Malafaia.
Sua visão das questões de sexua-
lidade e gênero é evidenciada pelas ex-
pressões que utiliza, como “homossexua-
lismo” – termo que não é mais utilizado por
tratar a homossexualidade como doença
–, “comportamental” – que trata a homos-
sexualidade como opção do indivíduo e
não como orientação pré-disposta – e “pri-
vilégio”, que sugere que os homossexuais
cariam em uma posição superior caso o
projeto fosse aprovado. No entanto, ob-
serva-se que isso dicilmente ocorreria,
uma vez que a população LGBTTQIA é,
frequentemente, vítima de discriminação e
até agressão no Brasil. Um relatório
XI
fei-
to pelo Ministério das Mulheres, da Igual-
dade Racial e dos Direitos Humanos em
2016 apontou que eram feitas cerca de
cinco denúncias diárias ligadas à discrimi-
nação sexual e de gênero. Logo, o projeto
não visagarantir “privilégios”, como arma
o pastor, mas sim de garantir igualdade e
justiça para esses grupos.
Apesar dessas formas de tratamen-
to desrespeitosas, o pastor alega “amar os
homossexuais”. Argumenta que sua con-
trariedade é apenas à prática homosse-
xual, diferindo opinião de discriminação e
criticando fato de que, com a aprovação
do projeto, ele e os demais membros do
campo religioso que compartilham de seu
pensamento não poderiam opinar a res-
peito do tema sem ser condenados.
Percebe-se, aí, que Malafaia utiliza
o seu direito à liberdade de expressão ga-
rantido pela Constituição Federal para agir
de forma intolerante com relação a essa
minoria. Além das expressões que suge-
rem desconsideração aos grupos LGBT-
TQIA, a fala do pastor é marcada pelo uso
de verbos no imperativo, que demons-
tram sua posição ‘superior com relação
aos movimentos contrários e também aos
seus eis. Reforçam seu papel de lideran-
ça e, mais ainda, de empreendedor moral
– nesse caso, como impositor de regras.
Para além do empreendedorismo
no sentido moral, também percebem-se os
aspectos comerciais da atuação do pas-
tor. As estratégias de vinculação do portal
Verdade Gospel aos pers, bem como a
divulgação de seus programas de TV re-
etem a grande variedade de veículos à
qual Malafaia é ligado. Sua igreja apresen-
ta níveis de crescimento impressionantes
no que se refere a número de membros e
concentração de capital econômico, ação
que ultrapassa os limites do campo religio-
so e atinge os demais setores da socieda-
de – muito em parte por essa intersecção
com o campo midiático.
Apesar de o pastor enxergar o ati-
vismo como característica dos movimen-
tos contrários, inclusive denominando os
grupos LGBTTQIA envolvidos no debate
de “ativistas gays”, as atitudes de Silas
com relação ao PLC 122 revelaram nele
as qualidades de um ativista político e,
mais ainda, midiático. Nos meses anali-
sados, Malafaia liderou uma verdadeira
cruzada contra projeto,ao lado de grupos
religiosos conservadores, alcançando, de
certa forma, o efeito desejado: o projeto
continua arquivado até hoje.
Esse ativismo também é caracterís-
tica de seus seguidores. Nos comentários,
foi possível perceber que as discussões
eram prolongadas: os interagentes não
só deixavam suas contribuições pessoais,
como rebatiam os argumentos de quem
pensasse de forma diferente. É signica-
tiva a participação de pessoas que não se
enquadram como evangélicas, mas con-
111
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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cordam com os dizeres de Silas – prova
da extensão de sua base de apoio.
Também é interessante a presença
de indivíduos membros e/ou defensores
das causas LGBTTQIA, que, assim como
o pastor e seus éis, utilizam argumentos
de várias áreas – do Direito, da Biologia,
da História e inclusive da Bíblia, alegando
que o objetivo da gura de Jesus é disse-
minar amor, não ódio.
O pastor mostra-se cada vez mais
capaz de mobilizar uma grande mas-
sa nas causas de seu interesse, agindo
como um verdadeiro líder do campo reli-
gioso (BOURDIEU, 2008) e, por m, como
um empreendedor moral (BECKER, 2008)
dentro do espaço público social.
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-homofobia_n_9330692.html>. Acesso em 7 de
abril de 2017.
Recebido em 31/07/2017
Aprovado em 30/08/2017
I Márcia Zanin Feliciani. Universidade Federal de
Santa Maria / UFSM (RS, Brasil). Contato: marciaza-
ninfeliciani@gmail.com
II Leandra Cohen Schirmer. Universidade Federal de
Santa Maria / UFSM.
III Aline Roes Dalmolin. Doutora e mestre em Ciências
da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos / Unisinos (RS, Brasil). Professora da Universida-
de Federal de Santa Maria / UFSM (RS).
IV Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/
brasil/ibge-catolicismo-cai-224-e-ve-nova-ascensao-
-de-evangelicos,7c9ddc840f0da310VgnCLD200000bb
cceb0aRCRD.html.
V Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis,
queer, interssexuais e assexuados.
VI Acredita-se que isso se deve, em parte, ao fato
de que a plataforma não era tão utilizada na época
como é hoje.
VII A observação enfocou a argumentação do pastor,
também, devido à diculdade de análise das interações
na plataforma.
VIII Disponível em: https://www.infobrasil.inf.br/no-
ticia/brasil-ja-e-o-segundo-pais-em-numero-de-con-
tas-no-twitter.
IX Cálculo feito a partir da comparação do número total
de tweets com o número de referências ao grupo em
questão. Esse último foi resultado da contagem manual
das postagens, caracterizadas, especialmente, pelo uso
de expressões como “homossexuais”, “gay”, “PL 122”,
“manifestação”, “abaixo-assinado” etc.
X A ordem cronológica dos tweets é contrária à forma
apresentada, devido à lógica da plataforma.
XI Disponível em http://www.huffpostbrasil.
com/2016/02/26/relatorio-homofobia_n_9330692.
html.
113
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A CNBB como promotora de notícia
e fonte de informação da religião católica no Jornalismo:
notas como ritual estratégico e meios alternativos de agendamento
La CNBB como promotora de noticias
y fuente de información de la religión católica en el Periodismo:
notas como ritual estratégico y medios alternativos de programación
CNBB as news promoter
and source of information of the Catholic religion in the media space:
notes as a strategic ritual and alternative Agenda Setting
Robson Dias
I
Eliane Muniz Lacerda
II
Victor Márcio Laus Reis Gomes
III
Resumo:
Este artigo investiga material empírico, documental, por meio de
análise de conteúdo: notas e meios alternativos de agendamento
midiático (1968-1977) feitos pela Conferência dos Bispos do Brasil
(CNBB), durante o período da Ditadura Militar no Brasil. A análise leva
em conta, tematicamente, cinco casos de religiosos acusados pelo
Estado de praticar atividades subversivas, publicados em Folha de S.
Paulo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e O Globo. O objetivo é
o de resgatar a CNBB como ator no processo de produção da notícia
(MOLOTCH e LESTER, 1999), além das ações tomadas como news
promoters (assessores, organizações) ao se relacionar com os news
assemblers (repórteres, editores, redações) negociando sentidos a
serem ofertados no noticiário aos news consumers (público leitor).
Muito mais que fonte de notícias no espaço público e no espaço
midiático, a CNBB participou ativamente em prol de da cidadania, em
prol da luta pelos direitos humanos.
Palavras chave:
CNBB
Agendamento
Jornalismo
New Promoters
Rituais estratégicos
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este artículo investiga material empírico, documental, por medio de
análisis de contenido: notas y medios alternativos de programación
mediática (1968-1977) hechos por la Conferencia de Obispos de Brasil
(CNBB), durante el período de la Dictadura Militar en Brasil. El análisis
tiene en cuenta, temáticamente, cinco casos de religiosos acusados
por el Estado de practicar actividades subversivas, publicados en Folha
de São Paulo, Jornal do Brasil, El Estado de São Paulo y O Globo.
El objetivo es el de rescatar a la CNBB como actor en el proceso de
producción de las noticias (MOLOTCH y LESTER, 1999), además de las
acciones tomadas como news promoters (asesores, organizaciones) al
relacionarse con los news assemblers (reporteros, editores, redacciones)
Negociando sentidos a ser ofrecidos en el noticiero a los news consumer
(público lector). Mucho más que fuente de noticias en el espacio público
y en el espacio mediático, la CNBB participó activamente en pro de la
ciudadanía, en pro de la lucha por los derechos humanos.
Abstract:
This paper investigates the empirical material, documentary, through
content analysis: alternative means of notes and media scheduling
(1968-1977) made by the Conference of Bishops of Brazil (CNBB),
during the period of military dictatorship in Brazil. The analysis
takes into account, thematically, ve cases of religious accused by
the state to practice subversive activities, published in Folha de S.
Paulo, Jornal do Brazil, O Estado de S. Paulo and O Globo. The goal
is to rescue the CNBB as an actor in the news production process
(Molotch and LESTER, 1999), in addition to actions taken by the
organization to news promoters (advisors, organizations) to relate the
news assemblers (reporters, editors, redactions) negotiating senses
to be oered on the news the couple news Consumers (readership).
Much more than source of news in the public space and media space,
the CNBB participated actively in favor of citizenship in favor of the
struggle for human rights.
Palabras clave:
CNBB
Programación
Periodismo
News promotistas
Rituales estratégicos
Keywords:
CNBB
Agenda setting
Journalism
News promoters
Strategic rituals
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A CNBB como promotora de notícia
e fonte de informação da religião
católica no Jornalismo:
notas como ritual estratégico
e meios alternativos de agendamento
Lugar de fala
Este artigo contém levantamento
da parte histórica da pesquisa de mestra-
do de Lacerda (2007), concentrada e ali-
nhada à ideia de Jornalismo e Sociedade,
no PPGFAC/UnB, que analisa a cobertura
da imprensa durante a ditadura militar no
Brasil, com base em 5 casos de religiosos
acusados pelo Regime Militar de praticar
atividades subversivas (1968-1977), a partir
da análise de publicações do período, nos
veículos: Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil,
O Estado de S. Paulo e O Globo (53 itens),
pela perspectiva da Teoria da Notícia, da
abordagem da Hipótese de Agenda-setting
e do enquadramento de notícias. Posterior-
mente, os resultados da pesquisa são tema
de encontros sobre os limites das organi-
zações dentro de um cenário de controle e
de perseguição à liberdade de expressão,
no contexto do Regime Militar: no Grupo de
Estudos Avançados de Comunicação Me-
diática e Organizacional, do mestrado em
Comunicação da Universidade Católica de
Brasília (PPGSSCOM/UCB). Também guar-
da relação com o grupo de pesquisa Prê-
mios, Indicadores e Estratégias em Comuni-
cação (DGP/CNPq), no qual os autores são
coordenadores e investigam as circunstân-
cias que as premiações da CNBB se insti-
tucionalizam ao operar valores de cidadania
e de direitos humanos no espaço midiático,
no espaço jornalístico e no espaço público:
Prêmio Margarida de Prata (Cinema), Prê-
mio Clara de Assis (Telejornalismo), Prêmio
Dom Helder Câmara (Impresso), Prêmio Mi-
crofone de Prata (Radiojornalismo). Sendo a
edição 2016 do Prêmio Dom Helder Câma-
ra fruto dessas reuniões do grupo, na UCB,
por ocasião dos trabalhos do grupo assumir
o júri da premiação, nesta oportunidade.
O Jornalismo e a Democracia guar-
dam estreito relacionamento. E as premia-
ções jornalísticas são apontamentos das
organizações ao noticiário, por meio do agen-
damento, de: para onde seguir e como se-
guir. O Prêmio Dom Helder Câmara (Impres-
so) existe desde 2002 e premia reportagens
mostrem em seu conteúdo valores humanos,
sociais, políticos, cristãos e éticos, visando à
construção da cidadania e da cultura da paz
IV
.
O intuito desse artigo é, de modo des-
critivo, trazer à tona a atuação institucional e
histórica da CNBB (anos 1960, 1970) em re-
lação ao Jornalismo: uma dentre outras tan-
tas ações perenes em se pautar o noticiário
no Brasil. Para tanto, resgatamos essa dis-
cussão para circulação e registro em bases
indexadas, a partir da plataforma da Estudos
de Religião. Uma contribuição baseada em
estudo empírico, análise documental, análi-
se de conteúdo, enquadramento de agenda
e de noticiário, na perspectiva da Teoria da
Notícia (HALL, 1999; HACKETT, 1999; MC-
COMBS, 2000; MOLOTCH, LESTER, 1999;
TUCHMAN, 1999; MOTTA, 2004), na tradi-
ção dos estudos em Jornalismo e de Comu-
nicação do Brasil e de Portugal.
O agendamento da imprensa pela CNBB
O posicionamento da Igreja na im-
prensa, ante os acontecimentos com os reli-
giosos acusados de praticar atividades sub-
versivas, não foi unicamente uma questão
dequerer (ou não) emitir sua opinião. Este
problema praticamente obrigou a CNBB a
assumir uma postura perante a sociedade.
A Igreja se viu na berlinda: de um lado, ha-
via religiosos e leigos ameaçados, tortura-
dos, expulsos e assassinados (1); de outro,
o regime a acusava de não ter controle so-
bre sua base e na qual, diziam, haver co-
munistas inltrados (2). Estes acontecimen-
tos foram bastante signicativos tanto para
116
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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a imprensa como para a sociedade, uma
vez que ocorreram em um país de maioria
católica e também por ter sido a Igreja, que
outrora apoiara o golpe na luta contra o co-
munismo no Brasil, acusada de subversão.
No período, a Igreja Católica adotou
então uma postura mais ativa. Passou não
só a se autodefender, mas também assumiu
uma causa mais ampla: a defesa dos direitos
humanos, violados pelo Regime Militar. Essa
postura foi importante para a história do Bra-
sil, pois, naquele momento, a Igreja era uma
das poucas instituições capazes de enfren-
tar as ações repressivas da ditadura. Bispos,
como dom Helder Câmara (1), dom Paulo
Arns (2), dom Ivo Lorscheiter (3) e dom Alo-
ísio Lorscheider (4), não temeram as amea-
ças da ditadura. A CNBB conquistou, dessa
forma, espaço na imprensa para denunciar e
criticar, assumindo o papel de promotora de
notícias, na disputa pela visibilidade no es-
paço público de mediação jornalística.
Segundo Molotch e Lester (1999,
p.38), os promotores da notíciasão aqueles
que “identicam [...] uma ocorrência como
especial, com base em algo, por alguma
razão, para os outros”. Geralmente, eles
não trabalham em proveito próprio, mas
em torno de assuntos de interesse público.
Os promotores usam, muitas ve-
zes, estratégias para agendar a mídia,
como entrevistas coletivas, divulgação de
press releases e de notas, procuram man-
ter bom relacionamento com a imprensa,
promovem prêmios de incentivo aos jor-
nalistas. Outros agentes, como as ONGs
e os movimentos sociais, precisam usar
estratégias mais chamativas para ocupar
as páginas dos jornais. Exemplos recen-
tes são os relacionados ao Greenpeace e
ao MST, que usam iniciativas impactantes
para chamar a atenção da imprensa e,
consequentemente, da opinião pública.
Eventualmente, o trabalho de pro-
dução dos jornalistas coincide com o tra-
balho dospromotores de notícia. Conforme
Hall (1999, p.228), “os media não criam au-
tonomamente as notícias [...] estão depen-
dentes de assuntos noticiosos especícos
fornecidos por fontes institucionais regu-
lares e credíveis”. Como armam Molotch
e Lester (1999, p.41), “existem paralelos
entre as necessidades de acontecimentos
dos news assemblers e os promotores”.
Essas necessidades, entretanto, podem
surgir por diferentes razões e não signi-
cam que os jornalistas e os promotores
“estejam conscientes das implicações do
trabalho uns dos outros” (idem), mas “de
qualquer modo, conseguem produzir um
produto que favorece as necessidades de
acontecimentos de certos grupos sociais e
desfavorece as de outros” (idem).
Isto foi exatamente o que aconteceu
nos casos dos religiosos, acontecimentos
que tiveram seus valores-notícia e, conse-
quentemente, mais facilidade de serem es-
colhidos pelos jornalistas para se tornarem
notícias. Ao mesmo tempo, foram aconteci-
mentos que atingiram diretamente a Igreja
Católica, que sentiu a necessidade de po-
sicionar-se em defesa da causa.
Como promotora de notícias, a insti-
tuição usou algumas estratégias simples para
agendar a mídia, como entrevistas coletivas
e individuais, porém o meio mais comum
usado pela CNBB foi a publicação de notas.
Dessa forma, a instituição religiosa garantia
a não distorção dos seus pronunciamentos e
evitava maiores conitos com o Estado.
Entrevistas coletivas e individuais
As entrevistas eram mecanismos de
intervenção da CNBB no espaço público e
no espaço midiático, tentando atingir a pau-
ta jornalística, o noticiário e, consequente-
mente, a Opinião Pública. O corpus deste
estudo leva em conta entrevistas coletivas e
as declarações individuais à imprensa pre-
sentes em jornais analisados. Das 53 ma-
117
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
térias, 38 fazem referência a algum tipo de
entrevista coletiva ou individual. Metodolo-
gicamente, é difícil, entretanto, distingui-las,
dado que as declarações prestadas pelos
bispos não são apresentadas no formato
entrevista (pergunta e resposta), nemé ex-
plicitado se o contato foi exclusivo ou co-
letivo. As entrevistas foram transformadas
em notícias, na quais constam as falas das
fontes de informação. O fato é que 71,6 %
das matérias mostram que a Igreja esteve
bastante acessível para dar informações.
Em apenas um dos casos, houve resistên-
cia da CNBB em se pronunciar a respeito:
o dos religiosos dominicanos. A justicativa,
segundo dom Aloísio Lorscheider
V
, é que os
acontecimentos surpreenderam a presidên-
cia da CNBB que tinha acabado de retornar
do Vaticano. Conforme dom Lorscheider,
tanto o presidente dom Agnelo Rossi, como
ele próprio, então secretário geral, não ti-
nham informações sucientes para se pro-
nunciar sobre o assunto. Outro caso no qual
a instituição não aparece em entrevistas é o
do padre Jentel. O motivo foi a censura ao
assunto, como mostram os bilhetinhos:
De ordem superior reitero determina-
ção manter proibição total a noticiário,
comentário, transcrição e outras ma-
térias, através dos meios de comuni-
cação social, escrito, falado e televi-
sado, sobre padre Jentel ou assunto a
ele vinculado direta ou indiretamente.
13/02/74 (MARCONI, 1980, p. 275).
O autor completa:
De ordem superior reitero determina-
ção sentido manter proibição a divul-
gação, através dos meios de comuni-
cação social, comentários, referências,
transcrição, entrevistas e outras maté-
rias, qualquer procedência, relativa ao
padre FrançoisJentel. 23/05/75 (MAR-
CONI, 1980, p.281).
Somente em dois casos foi possível
identicar claramente a técnica jornalística
de captação das informações: que se tratava
de uma entrevista coletiva. O primeiro caso,
em 1968, quando o arcebispo de Belo Hori-
zonte, dom João Rezende Costa, após uma
reunião com os padres da arquidiocese, re-
solveu falar publicamente à imprensa sobre
a prisão dos religiosos assuncionistas.
Rearmando sua conança aos padres
detidos, o arcebispo de Belo Horizonte,
d. João Rezende Costa, e o Conselho
Presbiteral da Arquidiocese, em entre-
vista à imprensa, consideraram insu-
cientes as provas apresentadas pelo
Exército e concluíram que os padres
‘foram detidos por causa dos pobres’
(O ESTADO DE S. PAULO, 7/11/68).
O outro caso se relaciona ao caso
dos dominicanos. Quase um mês depois
da prisão desses religiosos, o presidente
da CNBB, dom Agnelo Rossi, convocou
a imprensa para a divulgação de um dis-
co, mas, obviamente, a expectativa dos
jornalistas voltou-se para a prisão dos re-
ligiosos. Um único trecho da matéria fez
referência ao disco:
O cardeal havia convocado a impren-
sa para solicitar a divulgação de uma
notícia sobre um disco, ‘Poemas para
rezar’, que será vendido em benefício
do Congresso Eucarístico Nacional a
ser realizado em Brasília (O ESTADO
DE S. PAULO, 6/12/69).
O restante do conteúdo abordou a
fala de dom Rossi sobre a prisão dos pa-
dres. De todas as entrevistas observadas,
esta parece ser a única entrevista coleti-
va para a qual a imprensa foi convocada
formalmente e, durante a qual, o bispo
apresentou um discurso já pronto sobre
os dominicanos, apesar de a pauta ser o
lançamento do disco. Sobre este caso, na
grande maioria das vezes, a CNBB mani-
festou-se por meio de notas e atendeu a
imprensa ocasionalmente, por exemplo,
no aeroporto ou após reunião com alguma
118
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
autoridade. Pelo que se observou, através
da leitura das matérias referentes aos ca-
sos, esta entrevista era aguardada pelos
prossionais da comunicação, entretanto
ela só se concretizou praticamente um
mês depois dos acontecimentos, tempo
suciente para a CNBB inteirar-se sobre
os fatos, porém tardio para o jornalismo e
para os próprios religiosos, que a essa al-
tura já tinham sido torturados.
Com relação ao bispo dom Casal-
dáliga e ao padre Zuerey, quasetodoo
agendamento da Igreja se deu por meio
de entrevistas, embora também não seja
possível distinguir nas notícias quando
se trata de entrevista coletiva ou de de-
claração individual ao jornal. Quase não
há presença de notas. Esses dois casos
ocorreram: em 1977, quando já se falava
em abertura política. Isto talvez tenha sido
determinante para a atuação mais livre da
CNBB e da imprensa.
Ao nal dos anos 1970, com o
declínio da ditadura, a Igreja não tinha
mais a mesma preocupação que outrora
tivera em cuidar das palavras que se tor-
nariam públicas, pois conforme elas fos-
sem interpretadas e apresentadas pela
imprensa poderiam agravar aindamais
as relações entre a instituição religiosa
e o Estado. A imprensa também vivia um
período de mais liberdade, embora ain-
da houvesse controle. Por isso os pro-
nunciamentos da CNBB deixaram de ser
escritos e passaram a ser verbais, dife-
rentemente do que ocorrera no período
mais rígido do regime, durante o qual a
CNBB atuou mais por meio de divulga-
ção de notas, cuja maioria foi publicada
na íntegra pelos jornais, como um ritual
estratégico (LACERDA, 2005).
Além das entrevistas, onde a fonte
concede informações a um repórter que vá
buscá-la no processo de apuração do fato
jornalístico, havia também a atuação da
CNBB por meio de notas: informação cre-
dível e ocial emitida pelas organizações
com a nalidade de ajudar no processo de
apuração jornalístico. Nesta lógica: a fonte
procura o repórter e/ou seus públicos.
As notas: um ritual estratégico
De acordo com Tuchman (1999, p.
74), “o uso de certos procedimentos per-
ceptíveis ao consumidor de notícia, prote-
ge o jornalista dos riscos da sua atividade,
incluindo os críticos”. Os riscos aos quais
a autora se refere são aqueles que po-
dem prejudicar tanto o próprio prossional
como a organização para a qual trabalha.
Para Tuchman (1999, p. 78), “cada notí-
cia afeta potencialmente acapacidade dos
jornalistas no cumprimento de suas tare-
fas diárias, afeta a sua reputaçãoperante
os seus superiores, e tem inuência nos
lucros da organização”. Tuchman faz esta
reexão a partir da percepção do leitor. Por
meio de rituais estratégicos, por exemplo,
o uso das aspas nas declarações das fon-
tes, o jornalista defende a si mesmo e ao
próprio jornal das eventuais críticas que o
leitor da notícia possa fazer, inclusive de
processos de difamação.
Os rituais estratégicos adotados
pela imprensa durante o Regime Militar no
Brasil adquiriram, entretanto, outra dimen-
são. Os riscos a que Tuchman (1999) se
refere eram grandes e poderiam ter conse-
quências muito graves. Estavam em perigo
não somente a reputação do prossional e
os lucros da empresa, mas a própria vida.
Por isso, os rituais estratégicos foram signi-
cativos no processo de construção da no-
tícia durante um período de censura e de
violação aos direitos humanos.
Dos rituais observados, o mais fre-
quente nas matérias analisadas foi a pu-
blicação de notas divulgadas pela CNBB.
Foram publicadas, ao todo, 13 notas refe-
rentes aos cinco casos de religiosos acu-
sados de subversão (Tabela 1).
119
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A maioria das notas refere-se aos
três primeiros acontecimentos, ou seja,
aos religiosos franceses, dominicanos e
ao padre Jentel. Sobre os dois últimos, a
CNBB também divulgou notas, mas elas
não tiveram a mesma importância que
as anteriores. Nos casos do dom Casal-
dáliga e do padre Zuerrey, o pronun-
ciamento verbal já se tornara mais inte-
ressante do que a divulgação de notas,
tanto para a CNBB como para a impren-
sa, visto que, por meio da fala, há mais
liberdade de expressão, embora, duran-
te os períodos mais rigorosos da ditadu-
ra, as notas tivessem sido importantes
para as duas instituições. Para a CNBB,
as notas asseguravam a integridade do
que fora dito à imprensa a respeito dos
fatos. Representavam a segurança de
que o pronunciamento não seria dis-
torcido, o que poderia colocar em risco
suas relações com o Estado. Para a im-
prensa, a publicação das notas era uma
forma de dizer: “esta armação pertence
a qualquer pessoa, menos ao repórter”
(TUCHMAN, 1999, p.82), evento já con-
siderado pela autora, no arcabouço da
Teoria da Notícia.
O uso das notas assemelha-se ao
das citações e ao uso das aspas, que Tu-
chman (1999, p. 81) refere conceitua como
sendo rituais estratégicos: “ao inserir a
opinião de alguém, eles (os jornalistas)
acham que deixam de participar na notícia
e deixam os ‘fatos’ falar”. Esta estratégia
foi importante para os jornalistas brasilei-
ros durante a ditadura, pois lhes garantiu
segurança perante as possíveis ações
repressivas do regime. As notas serviram
para distinguir bem a quem pertencia a
fala, ou seja, que ela era da CNBB e não
do jornalista que noticiava os fatos. Os jor-
nais, por isso, chegaram a publicar mais
de uma nota em uma única edição.
As 13 notas da CNBB foram pu-
blicadas em 23 jornais (Tabela 2), a
maioria naíntegra. Deve-se levar em
consideração também que essas notas
foram divulgadas em pequeno interva-
lo de tempo, em média um mês para
cada caso. As notas registradas dizem
respeito somente ao posicionamento
da CNBB, de seus bispos ou de insti-
tuições estritamente ligadas a ela como
a Comissão Brasileira Justiça e Paz e
as arquidioceses nas quais ocorreram
os fatos. Não fazem parte desta análi-
se as notas divulgadas por outras insti-
tuições religiosas, por exemplo, as das
congregações às quais pertenciam os
religiosos, por serem organismos inde-
pendentes da Conferência.
Tabela 1: N˚ de Notas Divulgadas pela CNBB por Caso Analisado
Fonte: Arquivo jornalístico da CNBB
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Ao observar os dados das Tabe-
las 1 e 2, percebe-se que as notas fo-
ram maisdifundidas nos casos dos re-
ligiosos franceses e dominicanos. Isso
pode ter acontecido pelos motivos a se-
guir detalhados.
1) Percebe-se, pela leitura das
matérias, certa resistência da CNBB em
se pronunciar sobre os dois casos, pois
eles estavam entre os primeiros conitos
que deixaram a Igreja ‘na berlinda’. Eles
ocorreram no nal dos anos 60, logo
após a decretação do AI-5 e envolve-
ram mais de um religioso. As acusações
aos religiosos franceses provinham de
sua relação com a Pastoral Operária e
as dos dominicanos, de sua participação
tanto na Aliança Libertadora Nacional
(ALN) como no movimento estudantil. A
CNBB não tinha, até então, lidado com
problemas dessa proporção, envolvendo
inclusive religiosos estrangeiros, além
de encontrar-se em posição neutra com
relação ao regime. Para evitar agrava-
mento em sua relação com o Estado, ela
procurou primeiro apurar os fatos, para-
depoisse manifestar.
2) Outro aspecto relevante foi a
preocupação da Igreja com a distorção
das informações. Dom Luciano Mendes
de Almeida
VI
afirmou que a imprensa
distorcia muito os pronunciamentos da
Igreja, o que poderia prejudicar suas
relações com o Estado. Por meio de
notas, nãohaveria,portanto,comoa im-
prensa manipular essas declarações.
3) Visto que acensura ainda não
era total, como ocorreu no início da dé-
cada de 70, mas que já existiam as re-
pressões, talvez fosse mais conveniente
para a imprensa publicar uma nota na ín-
tegra, pois, dessa forma, ela se tornaria
isenta de qualquer acusação, podendo
armar: ‘foi a CNBB quem disse’.
Em contraposição ao número de
notas publicadas sobre os casos dos re-
ligiosos dominicanos e franceses, o ano
de 1977 apresenta pouquíssimas notas,
tanto sobre o caso do padre Zuerrey
como o do bispo dom Casaldáliga. Como
as forças do Regime Militar não eram
mais as mesmas, nem sobre a impren-
sa e nem sobre as instituições, as no-
tas foram substituídas por declarações
verbais. Em ambos os casos, a CNBB,
na defesa desses dois religiosos, atuou
mais como promotora de notícia do que
como fonte deinformação.
Tabela 2: N˚ de Matérias com Notas
Fonte: Arquivo jornalístico da CNBB
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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As 13 notas divulgadas pela im-
prensa foram classicadas no presente
estudo como: de esclarecimento, de críti-
ca e de denúncia. Algumas se inserem em
mais de uma categoria. Podem ser, por
exemplo, de esclarecimento e de crítica
ou de denúncia e de crítica.
As notas de esclarecimento limita-
vam-se a descrever o que estava ocor-
rendo no momento. Por exemplo, no
caso dos religiosos franceses, em 1968,
o Secretariado de Opinião Pública da
CNBB lançou um comunicado apenas
para armar que a situação dos padres
se encaminhava para ‘o indispensável
esclarecimento’. Diz a nota:
O Secretariado Nacional de Opi-
nião Pública da Conferência Na-
cional dos Bispos do Brasil está
autorizado a informar que Dom
Aloísio Lorscheider, Secretário-
-Geral da CNBB, com o objetivo
de acompanhar junto à própria
fonte o desenrolar dos aconte-
cimentos relativos à prisão dos
padres e do diácono assuncio-
nista, esteve em Belo Horizon-
te, em contato prolongado com
D. João Rezende, D. Serafim,
o Conselho Presbiteral e o Pro-
vincial dos Padres Assuncionis-
tas. Nesta ocasião, D. Aloísio
teve a oportunidade de verificar,
pessoalmente, que a situação
caminha para o indispensável
esclarecimento. Em seguida foi
ele até São Paulo, a fim de man-
ter o Cardeal Rossi, presidente
da CNBB, inteirado do que real-
mente ocorre na capital mineira,
e tratar, ao mesmo tempo, de
assuntos de rotina da própria
CNBB (O GLOBO, 11/12/68).
A nota sobre a expulsão do pa-
dre Jentel é outro exemplo de pronun-
ciamento que selimitou a descrever os
fatos. Apesar de fazer referência à bru-
talidade com que o padre foi imobilizado,
a CNBB não critica a decisão do governo
de expulsar o padre do país.
Padre Francisco Jentel retornou
ao País, via Estados Unidos, de-
sembarcando normalmente no
aeroporto de Brasília, no dia 1
do corrente mês. Vinha da Fran-
ça, onde estivera em visita aos
seus familiares e fora fazer cur-
sos de atualização. Recorde-se
que em maio de 1973 o mesmo
fora condenado pela Justiça Mili-
tar de Campo Grande, MT, após
conhecidíssimo processo, onde
fora voto vencido o juiz audi-
tor (cf. ‘Notícias’ CNBB, n. 22,
1/6/1975). Recorrida a sentença
junto ao Superior Tribunal Militar,
por unanimidade de votos, deu
provimento à apelação interpos-
ta em favor do padre Francisco
Jentel para anular a sentença
condenatória, determinando fos-
se ele posto imediatamente em
liberdade. Entendeu o Tribunal
que os fatos a que se referia o
processo (conflito entre os pos-
seiros e os agentes da Compa-
nhia de Colonização Codeara)
constituíram fatos que devem ser
apreciados pela Justiça comum,
sendo incompetente a Justiça
Militar, já que existia qualquer
conteúdo subversivo nas ações
praticadas, seja pelos agentes
da empresa (igualmente proces-
sados), seja pelo padre Francis-
co Jentel’ (cf. Notícias CNBB, n.
21, 24/5/1975). Logo em seguida
viajou à França, conforme seu de-
sejo pessoal, de onde retornou a
1 de dezembro. Regressando ao
Brasil e nada constando oficial-
mente em seu passaporte que o
impedisse de fazê-lo, dirigiu-se a
Fortaleza,em visita a dom Aloísio
122
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Lorscheider, presidente da CNBB
e arcebispo local. Hóspede do
mesmo, na manhã do dia 12, por
volta das 7 horas, quando se di-
rigia, a pé, ao centro da cidade,
juntamente com outro sacerdote,
foi o padre Jentel violentamente
imobilizado e seqüestrado por
quatro desconhecidos, colocado
num automóvel e levado a lugar
ignorado. Posteriormente, ain-
da no correr da manhã do mes-
mo dia, foi localizado no Depar-
tamento da Polícia Federal de
Fortaleza. Conduzido ao Rio de
Janeiro na noite do mesmo dia,
está preso em dependências da
Marinha. Através de comunica-
ção telefônica do senhor ministro
da Justiça,ao senhor cardeal do
Rio de Janeiro, foi a CNBB infor-
mada de que o senhor presidente
da República assinou decreto, no
dia de hoje, determinando fosse
o padre Francisco Jentel expulso
do País (FOLHA DE S. PAULO,
16/12/1975).
Sobre o caso dos dominicanos,
a instituição, embora não tenha se li-
mitado a descrever o ocorrido, não
toma nenhuma atitude em defesa dos
religiosos que estavam sendo tortura-
dos pelo regime. Pelo contrário, admi-
te a possibilidade da culpa e, ao mes-
mo tempo, pede para que ela não seja
generalizada a toda a congregação ou
mesmo a toda a Igreja. Apesar disso, a
nota escrita pelo presidente da CNBB,
dom Rossi, faz apelo à observância dos
direitos humanos, tanto na defesa dos
frades como no tratamento que eles es-
tavam recebendo. Esta nota pode, por
isso, ser classificada como de esclare-
cimento e também decrítica.
Regressando dos trabalhos do
Sínodo, defronto-me com os do-
lorosos acontecimentos dos últi-
mos dias, nos quais estão envol-
vidos inclusive alguns sacerdotes
e seminaristas da Ordem Domi-
nicana. Como presidente da Co-
missão Central da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil e
como Arcebispo Metropolitano,
tenho o máximoempenho em
conhecer, para além do noticiá-
rio da imprensa, a exatidão dos
fatos. Enquanto não me é pos-
sível formular e emitir um juízo
exato sobre os episódios, dese-
jo ao menos dirigir uma palavra
aos católicos de São Paulo e aos
homens do meu país: 1. Não te-
memos enfrentar os fatos desde
que eles sejam averiguados, aci-
ma daspaixões, na verdade e na
justiça. 2. Como em outros episó-
dios, não reivindicamos para sa-
cerdotes e religiosos, só porque
o são, regalias e privilégios. Mas
creio dever reclamar para eles,
como para quaisquer cidadãos,
a observância dos direitos hu-
manos quer na sua defesa quer
no tratamento que recebem. 3.
Declaro que não podemos acei-
tar, por serem semi-evangélicos
e até contrários ao bem-estar de
nosso país, métodos de violên-
cia e de terrorismo. Menos ainda
podemos concordar com a parti-
cipação, na prática destes méto-
dos, de sacerdotes, religiosos e
de seminaristas ou candidatos à
vida religiosa. 4. Devo repelir po-
rém, com igual energia, que, com
qualquer intuito, a culpa pessoal
de alguns, mesmo comprovada,
seja generalizada para toda uma
família religiosa, todo o clero –
e até toda a Igreja. Igualmente
rejeito, como presidente da Co-
missão Central da CNBB, que
se confunda malevolamente na
mesma condenação a ação mal
orientada de alguns com os pro-
123
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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pósitos e atividades de inúme-
ros bispos, sacerdotes ou leigos
que, na mais profunda fidelidade
ao espírito da Igreja, de acordo
com as normas do Vaticano II
e da Conferência de Medellín,
se consagram a um trabalho de
evangelização que os aproxima
dos pobres e os empenha numa
tarefa de autêntica promoção hu-
mana. 5. Alimento o desejo e a
esperança de que destes acon-
tecimentos traumatizantes possa
ainda surgir um clima de enten-
dimento e união em nosso país
e o povo possa guardar sua con-
fiança na retidão de intenções
humanas e de ação da Igreja no
Brasil, que quer manter-se fiel
a Cristo e à orientação do Papa
Paulo VI (JORNAL DO BRASIL,
11/11/1969).
Os casos do padre Jentel e dos do-
minicanos tiveram consequências mais
graves, se comparados aos demais ana-
lisados. A CNBB não atuou com a mes-
ma força como nos casos dos franceses,
do sacerdote suíço Zuerrey e do dom
Pedro Casaldáliga. Em relação aos reli-
giosos franceses, a CNBB posicionou-se
de forma mais crítica e defensiva.
As acusações que, dia a dia, mais
se avolumam contra a Igreja em
nosso país pedem um esclare-
cimento autorizado por parte da
Conferência Nacional dos Bis-
pos do Brasil. A Igreja, em seus
membros, é tachada de subver-
siva. Se a Igreja, nos dias atuais,
reivindica uma participação ativa
na procura do desenvolvimento
integral do homem e de todos os
homens, ela não está exorbitan-
do de seu campo específico que
é o religioso: esta procura é parte
intrínseca de sua missão de ser-
viço à humanidade. Mas ela está
ao mesmo tempo consciente que
a sua única motivação nasce da-
palavra de Cristo, do Evangelho,
que deverá encarnar-se sempre
mais em todos os campos da
atividade humana, seja o políti-
co como o econômico, o social
eo cultural. Ao repudiar todo e
qualquer sistema econômico,
político, social e cultural de ins-
piração ateia e materialista, ela
proclama sua visão integral do
homem liberto de qualquer ser-
vidão, e ao propugnar a busca
cristã da Justiça ela visa aquela
emancipação total que permita
ao homem usufruir da liberdade
dos filhos de Deus. Isto exige
em nossos dias transformações
profundas em nós mesmos e na
sociedade. Portanto, esta exi-
gência de transformações que
propugna pela mudança de uma
ordem econômica, política, so-
cial e cultural manifestadamente
injusta não deve ser confundida
com subversão de autênticos
valores humanos e cristãos que
todos nós queremos. (...) No que
diz respeito à prisão de padres e
um diácono em Belo Horizonte,
esclarecemos que não entramos
no mérito da legitimidade ou não
desta prisão. Esperamos que a
justiça de nossas autoridades
corresponda à imagem de honra-
dez e hombridade que todos dela
queremos ter. Devemos registrar
no entanto, que estranhamos que
não se tenham dado às respecti-
vas autoridades eclesiásticas as
devidas informações requeridas
pelo caso para um possível es-
clarecimento e defesa das pes-
soas indiciadas. Queremos que
as justas reivindicações do povo,
feitas à sombra de nossa bandei-
ra, não se façam jamais de um
modo violento, pois a violência,
124
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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afirma mais que uma vez Paulo
VI, não é evangélica nem cristã.
Infelizmente, nesta quadra de-
licada para o nosso país, estão
surgindo com certa freqüência
tensões e conflitos, perfeitamen-
te evitáveis se houvesse maior
prudência,objetividade e res-
peito pelos valores básicos da
sociedade: verdade, justiça, li-
berdade e amor. Somente nesta
linha logramos a verdadeira paz
e compreensão ese evitarão os
choques entre as pessoas que
realmente amam o Brasil e o
seu povo (JORNAL DO BRASIL,
5/11/1969).
Nessa nota sobre os padres fran-
ceses, a CNBB defendeu a Igreja como
um todo das acusações de subversão.
Publicada na íntegra por alguns jornais,
ela é uma nota bem mais reexiva do que
as anteriormente observadas. É também
mais audaciosa, à medida que questio-
na tanto a ordem política que levou os
religiosos à prisão como a falta de pro-
vas. Algo similar ocorreu em casos pos-
teriores. Nos casos do padre Zuerrey
e do dom Pedro Casaldáliga, a CNBB
teve atuação mais ativa do que na dos
religiosos franceses. Suas declarações
eram verbais e não mais por meio de
notas. Neste período, o governo passa-
va por uma crise decisiva para a queda
da ditadura, a imprensa e a Igreja já en-
contravam liberdade para atuar, ou seja,
a censura, embora ainda existisse, não
era mais tão rigorosa como nosanos an-
teriores. As instituições passaram a agir
com maior liberdade. As notas foram,
pois, deixadas de lado, tanto pela CNBB
como pela imprensa. Os bispos passa-
ram da atitude de autodefesa para a de
denúncia, como mostram os seguintes
textos jornalísticos:
O secretário da Conferência Na-
cional dos Bispos do Brasil, dom
Ivo Lorscheiter, informou ontem
no Rio que ‘recebeu de fontes
fidedignas de Brasília e Goiás
um alerta no sentido de que se-
ria iminente a expulsão de dom
Pedro Casaldáliga do Brasil. (...)
Diante da ameaça iminente da
expulsão de dom Pedro, afirmou
dom Ivo Lorscheiter, ”o secretá-
rio geral da CNBB apela intensa-
mente aos órgãos responsáveis
do governo para que um ato de
injustiça e hostilidade à Igreja
não se consuma” (FOLHA DE S.
PAULO, 30/07/77).
Ainda considera-se:
D. Aloísio disse que o caso do
Padre Romain será examinado
pela Comissão Justiça e Paz,
que orientará a ação da CNBB.
Acrescentou que tudo será fei-
to para apoiar o sacerdote su-
íço e que espera que a Justiça
funcione. “Normalmente, nesses
casos,não aceitamos acordos di-
plomáticos. O Ministro da Justi-
ça sabe disso. Não seria digno à
condição de sacerdotes. Nós es-
tamos sempre do lado da verda-
de”, concluiu (JORNAL DO BRA-
SIL, 22/07/1977).
Nas poucas notas divulgadas
pela Igreja, em 1977, observa-se que
seu teor é diferente daquelas divulga-
das no final dos anos 1960. Os bispos
não tinham mais medo de se expressa-
rem; eram firmes em seus posiciona-
mentos a favor dos direitos humanos e
da justiça social.
Notas, entrevistas e declarações
verbais não foram as únicas estratégias
usadas pela Igreja para pautar a im-
prensa, há outras bastante interessan-
tes por fugirem à rotina do agendamen-
to feito pela CNBB.
125
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Meios alternativos de agendamento
da imprensa
As estratégias de agendamento
da CNBB ultrapassaram as usualmente
adotadas pela instituição. Das 53 notí-
cias analisadas no estudo, oito apre-
sentam, geralmente na íntegra, tele-
gramas e mensagens de solidariedade
à instituição e aos religiosos acusados
de praticar atividades subversivas. A
maioria das mensagens refere-se aos
casos de dom Casaldáliga e dos três
religiosos franceses. Exemplificam-se,
a seguir, algumas dessas manifesta-
ções divulgadas pela Igreja e publica-
das pelos jornais:
FORTALEZA (O GLOBO) - O De-
partamento Arquidiocesano des-
ta capital, cumprindo instruções
do Arcebispo Dom José Medei-
ros Delgado, fez divulgar uma
nota de solidariedade aos pa-
dres presos em Minas, lida em
todas as igrejas da capital e do
interior durante as missas.
Os padres presos em Minas
Gerais - diz a nota - desmenti-
ram qualquer participação em
atividades de guerrilhas. Eles,
como outros, sofrem persegui-
ção e calúnia por amor da Justi-
ça como sofreram os mártires da
Igreja primitiva. Trabalham pela
promoção da classe operária,
mas sem violência (O GLOBO,
11/12/68).
Ontem, a CNBB recebeu da
Conferência Episcopal Francesa
telegrama de apoio e solidarie-
dade nos seguintes termos: “Em
nome da Conferência Episcopal
Francesa vos asseguro apoio
fraternal na defesa dos Direitos
do Homem e preocupação co-
mum à prática do Evangelho”.
Paul Huet Pleuroux.
A CNBB recebeu ainda outras
manifestações de apoio. ‘O Mo-
vimento Cursilhos de Cristanda-
de do Brasil renova total solida-
riedade à CNBB, visto referida
medida atingir frontalmente a
presença e a unidade da Igreja
na realidade brasileira’. Também
o arcebispo de Belo Horizon-
te, Dom João Rezende Costa,
em nome dos bispos de Minas
Gerais e Espírito Santo, enviou
mensagem de solidariedade à
posição da CNBB em defesa de
Dom Pedro.
Dom Alberto Ramos, Arcebispo
de Belém, em nome dos bispos
do Pará, Maranhão, Piauí e Ce-
ará, também manifestou apoio e
solidariedade à posição da CNBB
pela permanência, no Brasil, do
bispo Dom Pedro Casaldáliga.
Antes, a CNBB já havia recebi-
do apoio dos bispos de Pernam-
buco, Alagoas, Rio Grande do
Norte, São Paulo, Paraná, Santa
Catarina, Goiás e Mato Grosso
(O GLOBO, 2/08/77).
Constam também, como estra-
tégias de agendamento, uma vigília re-
alizada pela arquidiocese de Olinda e
Recife, organizada pelo arcebispo dom
Câmara, com o objetivo de dar apoio
espiritual ao padre Zuerey, em 1977, e
encontros do presidente da CNBB, dom
Rossi com o presidente da República,
Garrastazu Médici e com outras autori-
dades (Figuras 1 e 2).
126
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Além das mensagens de soli-
dariedade, da vigília e de encontros
com autoridades, consta, nas maté-
rias analisadas, a publicação, na ín-
tegra, da homilia feita, em 1968, pelo
arcebispo de Belo Horizonte, dom
João Rezende Costa, sobre a prisão
dos religiosos franceses, a qual foi
lida em todas as paróquias da arqui-
diocese (Figura3).
Figura 2: Notícia sobre encontro de dom Rossi e presidente Médici,
na ocasião da prisão de religiosos dominicanos
Fonte: Jornal do Brasil, 20/11/69
Figura 1: Notícia aborda encontro de dom Rossi com presidente da República,
sobre religiosos franceses
Fonte: Folha de S. Paulo, 08/12/68
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Figura 3: Homilia do arcebispo de Belo Horizonte, dom Rezende,
publicada na íntegra pelo jornal
Fonte: Folha de S. Paulo, 08/12/68
Todas essas estratégias de agenda-
mento revelam a atuação da CNBB como pro-
motora de notícia. Sua presença nos jornais
não signica, porém, necessariamente, que a
forma como os jornais noticiaram os aconteci-
mentos estava de acordo com as expectativas
doagendamento da CNBB. Nem sempre hou-
ve a correlação entre o agendado pela institui-
ção religiosa e a forma como o jornal enqua-
drou a notícia. Diversos fatores provocaram
esse desencontro entre Igreja e imprensa,
como se evidencia na análise da cobertura da
imprensa sobre os cinco casos de religiosos
acusados de praticar atividades subversivas.
128
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Considerações Finais
O processo de produção da notícia
(MOLOTCH e LESTER, 1999) leva em
conta o encontro entre assessores e re-
pórteres. E ele se relaciona de modo dire-
to com a imprensa durante o Regime Mili-
tar se relacionava com as assessorias de
imprensa, da época. O cerceamento à opi-
nião e as diculdades relativas à liberdade
de expressão e liberdade de imprensa, do
período, exigiram dos atores sociais certa
cautela para alcançar o espaço público,
espaço midiático e a opinião pública. Nes-
te sentido, a hipótese do agendamento é
utilizada para dar sentido aos signica-
dos extraídos da análise de conteúdo, a
partir de jornais e publicações veiculadas
durante o Regime Militar. Há a limitação
metodológica da própria Agenda Setting,
no que concerne sua discussão epistemo-
lógica na Comunicação: ser uma hipóte-
se ou uma teoria. No entanto, para além
da epistemologia, ela é bem operacional
ao permitir o enquadramento e uxo noti-
cioso de agendas, ou seja, de pautas que
podem ser (ou não) de diversos ramos
da sociedade. Neste sentido, este artigo
tem grande valor cientíco por ser fruto de
uma pesquisa empírica com abordagem
inédita: como a CNBB atuava para pautar
a mídia, ou seja: ser promotora da notícia.
O Agendamento trabalha com o con-
teúdo circulante no Jornalismo, a agenda
pública, além de acontecimentos da vida pri-
vada. Também estão em pauta agendas de
políticas públicas e governamentais, além de
fatos e eventos que congurem aparelho do
Estado. O artigo alcança o objetivo de resga-
tar como os news promoters (assessores: no
caso, a CNBB) se relacionam com os news
assemblers (repórteres, editores) negocian-
do sentidos a serem ofertados no noticiá-
rio par os news consumers: não somente
o público leitor, mas, também, os cidadãos
no processo social de construçãode aconte-
cimentos (MOLOTCH; LESTER, 1999, 42).
Ainda mais durante o Regime Militar, onde
essa negociação de sentido era cerceada e
as relações eram bem tensas. Nesse quesi-
to, mais que notícia, a CNBB foi catalisadora
do discurso e do meio religioso organizado
(catolicismo), no Brasil, em prol da luta pelos
direitos humanos. As notas como ritual estra-
tégico e meios alternativos de agendamen-
to, além de práticas históricas utilizadas para
superar as restrições do regime autoritário,
conguram práticas noticiosas: legítima in-
tersecção entre religião e sociedade, para
muito além dos templos, ritos.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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ne.lacerda21@gmail.com
III Victor Márcio Laus Reis Gomes. Doutor em Comu-
nicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul. Professor da Universidade Católica
de Brasília. Contato: vmlrg.ucb2015@gmail.com
IV Outros mecanismos de acesso ao noticiário e de mo-
tivação da pauta jornalística é o Prêmio Margarida de
Prata (Cinema), por exemplo, foi criado em 1967 pela
Central Católica de Cinema, no âmbito do então Secre-
tariado de Opinião Pública da CNBB. Tem por objetivo
premiar as produções nacionais do cinema brasileiro,
obras que apresentem em suas temáticas e artística va-
lores humanos, éticos e espirituais.
O Prêmio Microfone de Prata (Radiojornalismo) foi cria-
do em 1989. Tem como objetivo principal incentivar e
apoiar a produção e a qualidade de programas radiofô-
nicos não só religiosos, evangelizadores, mas também
de promoção humana.
O Prêmio Clara de Assis (Telejornalismo) foi criado em
2005 e premia programas televisivos nacionais, produzi-
dos e exibidos por emissoras comerciais, educativas ou
comunitárias brasileiras e que trazem em seu conteúdo
valores humanos, sociais, políticos, cristãos e éticos.
V Informação obtida em entrevista realizada em 2006,
como parte integrante do processo de apuração de La-
cerda (2007).
VI D. Luciano foi presidente da CNBB no nal da -
cada de 70. A entrevista foi realizada durante a 44ª. As-
sembleia Geral da CNBB, em maio de 2006, como parte
integrante do processo de apuração de Lacerda (2007).
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Cultura e Religião:
Um estudo sobre as Festas de Agosto conforme a Ocialidade Católica
Cultura y Religión:
Un estudio sobre las estas de agosto según la ocialidad católica
Culture and Religion:
A study on the Feasts of August according to Catholic Ocial
Viviane Bernadeth Gandra Brandão
I
Resumo:
O trabalho faz uma análise da percepção de líderes católicos ociais que
atuam em Montes Claros - MG, a respeito da dinâmica contemporânea
das Festas de Agosto que acontecem na cidade. Essas festividades são
práticas ligadas à Igreja Católica e às irmandades negras, em louvor a
Nossa Senhora do Rosário, a São Benedito e ao Divino Espírito Santo.
Perduram por mais de 170 anos e são consideradas patrimônio cultural
regional. Porém, sofreram mudanças notáveis, pela incorporação
crescente de elementos extrarreligiosos, congurando-se hoje como
um fenômeno culturalmente híbrido. Pela importância do Catolicismo
na estruturação da cultura brasileira, esse estudo se justica por tentar
compreender como a Igreja lida hoje com as tradições religiosas, de
modo a se posicionar no mundo contemporâneo: rearmando-as,
reinventando-as, empenhando- se em alterar seus conteúdos simbólicos
originais, adaptando-as a novos tempos e lugares, e, ao mesmo tempo,
recusando-as juntamente com determinados elementos e tendências
culturais. A pesquisa analisou as festas religiosas de Montes Claros
como um fenômeno exemplar das questões expostas, capaz de dar
atualidade a conceitos importantes para a análise sociocultural. Buscou-
se construir apontamentos capazes de contribuir para o enriquecimento
das análises sobre a religião Católica na sociedade contemporânea,
para o registro de aspectos relativos à dinâmica das festas em questão,
bem como para a reexão sobre o sentido atual de uma tradição
religiosa sincrética e duradoura.
Palavras chave:
Festas religiosas
Montes Claros
Cultura contemporânea
Igreja Católica
131
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El trabajo hace un análisis de la percepción de líderes católicos ociales
que actúan en Montes Claros - MG, acerca de la dinámica contemporánea
de las estas de agosto que se suceden en la ciudad. Estas festividades
son prácticas ligadas a la Iglesia Católica ya las hermandades negras, en
alabanza a Nuestra Señora del Rosario, a San Benito y al Divino Espíritu
Santo. Perdura por más de 170 años y se consideran patrimonio cultural
regional. Sin embargo, sufrieron cambios notables, por la incorporación
creciente de elementos extrarreligiosos, congurándose hoy como un
fenómeno culturalmente híbrido. Por la importancia del catolicismo
en la estructuración de la cultura brasileña, este estudio se justica
por intentar comprender cómo la Iglesia leía hoy con las tradiciones
religiosas, para posicionarse en el mundo contemporáneo: rearmándolas,
reinventándolas, empeñándose en alterar sus Contenidos simbólicos
originales, adaptándolos a nuevos tiempos y lugares, y, al mismo tiempo,
rechazándolos junto con determinados elementos y tendencias culturales.
La investigación analizó las estas religiosas de Montes Claros como un
fenómeno ejemplar de las cuestiones expuestas, capaz de dar actualidad
a conceptos importantes para el análisis sociocultural. Se buscó construir
apuntes capaces de contribuir al enriquecimiento de los análisis sobre la
religión católica en la sociedad contemporánea, para el registro de aspectos
relativos a la dinámica de las estas en cuestión, así como para la reexión
sobre el sentido actual de una tradición religiosa sincrética y duradera.
Abstract:
The work analyzes the perception of ocial Catholic leaders who work in
Montes Claros - MG, concerning the contemporary dynamics of August
festivals happening in the city. These festivities are practices linked to
the Catholic Church and the black brotherhoods, in honor of Our Lady
of the Rosary, St. Benedict and the Holy Spirit. Last for over 170 years
and are considered regional cultural heritage. However, they experienced
remarkable changes, the increasing incorporation of religious extra
elements, setting up today as a culturally hybrid phenomenon. The
importance of Catholicism in the structuring of Brazilian culture, this study
is justied by trying to understand how the Church deals today with the
religious traditions in order to position themselves in the contemporary
world: rearming them, reinventing them, striving to change their original
symbolic contents, adapting them to new times and places, and, at the same
time, rejecting them together with certain elements and cultural trends. The
research analyzed the religious festivals of Montes Claros as an exemplary
phenomenon of the foregoing issues, able to present important concepts
for socio-cultural analysis. He sought to build notes that contribute to the
enrichment of the analysis of the Catholic religion in contemporary society,
to record aspects of the dynamics of the parties concerned as well as to
reect on the current direction of a syncretic and lasting religious tradition.
Palabras clave:
Fiestas religiosas
Montes Claros
Cultura contemporánea
Iglesia Católica
Keywords:
Religious festivals
Montes Claros
Contemporary culture
Catholic Church
132
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Cultura e Religião: Um estudo sobre
as Festas de Agosto conforme a
Ocialidade Católica
Introdução
As Festas de Agosto em Montes
Claros, no norte de Minas Gerais, são
uma manifestação cultural e religiosa tra-
dicional realizada no mês de agosto, que
se tornou associada à própria imagem da
cidade. Sua realização se dá em honra a
Nossa Senhora do Rosário, a São Benedi-
to e ao Divino Espírito Santo, e seus ritu-
ais compõem-se de elementos africanos,
europeus e indígenas. Nessas comemora-
ções, as ruas da cidade são tomadas por
um número expressivo de moradores e tu-
ristas que prestigiam as músicas e danças
dos principais grupos que protagonizam
as festas: catopês, marujos e caboclinhos.
Os primeiros registros formais de
ocorrência das festas constam em ata da
Câmara Municipal de Montes Claros, data-
da de 23 de maio de 1829. Consideradas
como expressão do catolicismo popular,
nesses quase duzentos anos de sua exis-
tência, o engajamento leigo deu-se de
modo constante e intenso. A Igreja Católi-
ca, por sua vez, oscilou entre a participação
plena, a tentativa de controle dos festejos e
a rejeição aos costumes e “desvios” dessa
variante do catolicismo. (SILVA, 2013)
Considerando-se as mudanças que
vêm ocorrendo, tanto nos festejos religio-
sos – aos quais se juntam crescentemen-
te elementos extrarreligiosos (entreteni-
mento, consumo, turismo, dentre outros)
– quanto na própria Igreja Católica – que
busca se manter em um mundo no qual
a tradição é questionada e modicada –,
a conguração atual das festas implica
divergências avaliativas signicativas em
relação à ocialidade católica.
Neste trabalho parte-se da ideia de
que a análise da relação institucional ecle-
siástica e de seus representantes com os
rituais festivos em questão, hoje marcados
pela presença de elementos estranhos à
religião e pela autonomia individual diante
da Igreja, pode dizer muito acerca da ma-
neira pela qual o catolicismo ocial se po-
siciona no mundo e sobre como lida com a
dinâmica sociocultural contemporânea.
Nos dias atuais, o apelo de outros
sistemas simbólicos não religiosos e a
distância entre os preceitos católicos e a
vida prática dos éis fazem com que es-
tes questionem sua própria identidade, a
autoridade da Igreja e sua tradição e se
engajem em outras manifestações cole-
tivas distintas daquelas encenadas pela
tradição católica. Junto aos questiona-
mentos, buscam manter suas crenças,
porém, adaptando-as às sociedades em
que vivem, e adéquam os imperativos mo-
rais defendidos pela Igreja ao seu modo
de vida. Tudo indica que os preceitos ca-
tólicos estão, em grande parte, desconec-
tados da prática e da consciência de mui-
tos que se dizem adeptos do Catolicismo.
É plausível pensar que, hoje, os éis têm
uma conança crítica na tradição.
As relações entre as expressões das
religiosidades tradicionais e a contempora-
neidade, ocupam na compreensão dos pro-
cessos culturais que, por meio de “rupturas
signicativas” (HALL, 2003), deram origem
a identidades culturais uidas e fragmenta-
das e a novas realidades socioculturais dis-
tanciadas das referências ao passado.
Assim, neste estudo, parte-se da
constatação de que hoje as religiões tra-
dicionais convivem intensamente com os
apelos mundanos e presenciam a quebra
de antigos paradigmas, propiciando
O deslocamento da experiência reli-
giosa contemporânea, tanto subjetiva
como institucionalizada para outras
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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áreas ou dimensões da vida social que
não são caracterizadas como religio-
sas, como o complexo midiático-cul-
tural, a economia, o turismo, o lazer,
as terapias, o culto ao corpo e outras.
(MOREIRA, 2008, p.70)
Observa-se que o crente migra do
que era tradicionalmente estabelecido como
religioso em busca de outras possibilidades
de experiências que necessariamente não
ocorrem em templos e igrejas, mas sim nos
espaços cotidianos em que está inserido.
Não se trata, porém, do m da religião, mas
do “deslocamento” dos espaços e das suas
funções, provocando seu redimensiona-
mento. (MOREIRA, 2008, p. 72).
Para Hervieu-Léger (2008), estudiosa
do Catolicismo, a armação da autoridade
tradicional religiosa permanece na socieda-
de contemporânea; no entanto, “os crentes
modernos reivindicam seu direito de bricolar,
e, ao mesmo tempo, o de escolher sua cren-
ça.” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 64). São
obrigados, por isso, a “produzir por si mes-
mos a relação com a linguagem da crença
na qual eles se reconhecem” (idem, p. 64).
Para minimizar problemas decorren-
tes desse cenário e manter-se socialmente
plausível, a Igreja Católica busca maneiras
de articular valores e visões de mundo tra-
dicionais com as novas maneiras encon-
tradas pelos sujeitos para orientar sua vida
e lidar com a tradição religiosa. Vericar
como isso se dá em relação às Festas de
Agosto é o propósito dessa pesquisa que,
mesmo direcionada a um evento de dimen-
são local, pretende contribuir para a criação
de referências capazes de atualizar gran-
des conceitos das ciências que se dedicam
ao estudo da sociedade e da cultura.
Expressões do Catolicismo no Brasil
No Brasil, de acordo com o último
Censo do IBGE sobre Religião
II
, os católi-
cos representavam 82,96 % da população
em 1990; no ano de 2000 esse percentual
foi reduzido para 73,60 % e em 2010, no
último censo realizado sobre religião da
população brasileira, totalizaram 64,60 %,
ilustrando a redução signicativa de cató-
licos no Brasil. Esses dados indicam crise
do Catolicismo, uma das referências es-
truturantes da cultura brasileira.
Muitos desaos se colocam à tradi-
ção religiosa no mundo contemporâneo, o
que obriga a Igreja Católica a lidar com a
necessidade de se adequar às novas con-
dições socioculturais e enfrentar obstácu-
los, tais como a indiferença religiosa, a de-
sorientação de valores, mesmo no campo
da ética, a invasão crescente de “ídolos”
midiáticos, dentre outros. A profundida-
de da crise é real e levou Hervieu-Léger
(2003) a falar do “m de um mundo” ao se
referir ao Catolicismo na França, no sen-
tido de que grandes diculdades para
a reprodução social de uma religião buro-
cratizada que atua “de cima para baixo”,
tentando impor orientações para indivíduos
que reivindicam cada vez mais “o direito de
cada um à sua própria realização”. Na prá-
tica, há o distanciamento “irremediável en-
tre o universo normativo católico e a cultura
contemporânea da autonomia individual”
(HERVIEU-LÉGER, 2003, p. 137).
O declínio das adesões ao Catoli-
cismo no Brasil, segundo Sanchis (1994),
revela um processo de “desindenticação”
dessa religião com a nação brasileira. O
último censo, o de 2010, conrma o declí-
nio de éis do Catolicismo e armação do
crescimento do número de evangélicos,
o que expressa o início de um cenário de
“diversidade” religiosa no País. Sanchis
(1995) considera que a ideia de uma iden-
tidade unicada e cumulativa, construída
nos planos constitucional e psicossocial,
opõe-se sistematicamente ao princípio de
identidade brasileira. Além disso, a atuação
da representação católica no País teria se
revestido de um caráter mais controlador
134
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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do que impulsionador, encontrando dicul-
dades para expressar a comunidade.
Há que se observar que a diversida-
de se apresenta como característica inter-
na do Catolicismo brasileiro, cujos adeptos
participam das suas práticas religiosas de
diversas formas. A “plasticidade dos modos
de ser católico do Brasil é a expressão de
uma genuinidade brasileira, caracterizada
pela grande ampliação das possibilidades
de comunicação com o sagrado ou com o
outro mundo.” (TEIXEIRA, 2005, p. 17).
Nesse sentido, podemos dizer que
o Catolicismo no Brasil é plural, aqui há vá-
rias formas de ser católico. De acordo com
Teixeira (2005), o Catolicismo brasileiro
está representado por variantes que são:
o Catolicismo popular, que apresenta uma
forma de contato com o sagrado interme-
diado pela presença dos Santos, elemento
central desta religiosidade; o Catolicismo
ocial, em que são defendidas práticas
mais tradicionais vindas de Roma; o Cato-
licismo dos “realiados” às Comunidades
Eclesiais de Base – CEBs – e à Renovação
Carismática Católica – RCC –, que aderem
a um “‘regime forte de intensidade religio-
sa” e, por último, o Catolicismo midiático,
que busca marcar uma nova atuação públi-
ca pelo uso dos meios de comunicação.
Dentre esses tipos, as formas do
Catolicismo ocial e do popular interessam
mais de perto à pesquisa sobre as festas
religiosas de Montes Claros . O Catolicis-
mo ocial está centrado nos sacramentos
e nos dogmas da Igreja Católica Apostóli-
ca Romana. Como outras instituições de
caráter tradicional, vive um momento de-
licado, relacionado às diculdades de in-
serção na chamada sociedade pós- tradi-
cional
III
, que exige processos adaptativos
e de reinvenção da tradição religiosa. Tei-
xeira (2005) recorre à análise de Pierucci
(2004) e à sua leitura de Giddens (1997)
para lembrar, que nas sociedades pós-
-tradicionais, decaem as liações tradicio-
nais e os indivíduos tendem a se desen-
caixar de seus antigos laços sociais, por
mais estáveis que possam parecer. Nes-
sas sociedades inicia-se um “processo de
desliação em que as pertenças sociais e
culturais dos indivíduos, inclusive as reli-
giosas, tornam-se opcionais e, mais que
isso, revisáveis, e os vínculos, quase só
experimentais, de baixa consistência. So-
frem fatalmente com isso, as religiões tra-
dicionais.” (PIERUCCI, 2004, p. 19).
Hoje, diferentemente do que ocor-
ria no passado, as instituições tradicionais
encontram grande diculdade de garantir
a transmissão dos valores religiosos de
uma geração para outra, bem como de
assegurar a armação de uma memória
coletiva. Observa-se o progressivo enfra-
quecimento da gura do el “praticante”,
em geral associada a “comunidades de
sentido fortemente constituídas”, enquan-
to surge a gura do peregrino, marcada
pela mobilidade sustentada pelas experi-
ências pessoais.
Isso se aplica ao caso do Catolicis-
mo brasileiro e suas perdas observadas
historicamente, conforme atestam os
censos. Teixeira (2005) lembra que hoje
o Catolicismo é considerado “doador uni-
versal” de pessoas para outras crenças.
As maiores preocupações da Igreja se re-
lacionam à debandada de éis, sobretudo
para as denominações pentecostais, e à
saída de jovens que aumentam o percen-
tual dos “sem religião”.
Já o Catolicismo popular é umas
das variantes presentes no Brasil desde o
período colonial e possui como caracterís-
tica primordial o sincretismo. Neste catoli-
cismo “cabe ao praticante beber de todas
as fontes, de modo que o sincretismo é a
própria condição de acesso à plenitude e
multiplicidade do sagrado. O espaço privi-
legiado da experiência religiosa não são
os sistemas religiosos em si, mas as fron-
teiras entre eles” (STEIL, 2001, p. 23).
135
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Esse catolicismo aproximou a re-
ligião da cultura regional, de acordo com
Azevedo (1996, p. 184), fazendo com que
a religiosidade se relacionasse mais com a
estrutura local do que com a sociedade na-
cional e se tornasse relativamente indepen-
dente da Igreja formal. Ele é caracterizado
por uma religiosidade “simples” e espon-
tânea, comparado à religião ocial; adota
práticas religiosas autoproduzidas pelas
classes populares, porém usando o código
do Catolicismo ocial; o culto aos Santos é
organizado pela ação de lideranças leigas,
dispensando em muitos casos os serviços
de sacerdotes e a sistematização dos con-
teúdos da praticados pela ocialidade
religiosa. Nessa variante do Catolicismo,
os leigos tornam-se os maiores protago-
nistas, representados pelas benzedeiras,
rezadores e grupos populares.
Pode-se armar que diante dessa
diversidade interna e das questões pró-
prias à alta modernidade, o Catolicismo
ocial no Brasil se diante do desao
contemporâneo imposto à tradição re-
ligiosa: manter-se como um conjunto
de recursos adaptáveis e exíveis, num
mundo globalizado e cosmopolita, no
qual a diversidade cultural e dos estilos
de vida é notável (PEIXOTO, 2006), sem
abrir mão e seus princípios.
Contextualização das Festas de Agosto
Na cidade de Montes Claros, lo-
calizada no norte de Minas Gerais, ocor-
rem anualmente as festas religiosas,
originalmente vinculadas às tradições
católicas, africanas e indígenas, no
mês de agosto. É uma região conheci-
da pela sua riqueza cultural, decorrente
do processo de ocupação diversicada
e também de sua localização estratégi-
ca. Segundo Dias (2007, p. 35), “o norte
mineiro é um tanto baiano, um tanto mi-
neiro, nem um, nem outro, talvez baia-
neiro cansado como denominados pelos
mineiros do sul, o que demonstra que a
fronteira não é apenas geográca.”
As Festas de Agosto estão asso-
ciadas ao Catolicismo popular, constituí-
ram-se como parte importante do enredo
local, fundamentado numa tradição mes-
clada de elementos africanos, indígenas,
europeus e regionais. Trata-se de uma
manifestação religiosa que respondeu e
responde por uma importante parte da
história montesclarense, e que sobrevi-
veu ao longo do tempo como componente
religioso e cultural constituinte da própria
imagem da cidade.
Em seus quase duzentos anos, as
Festas de Agosto tornaram-se parte da
própria imagem de Montes Claros. Elas
ocorrem em cinco dias em devoção à Nos-
sa Senhora do Rosário; a São Benedito
e ao Divino Espírito. As práticas festivas
atualmente são organizadas por um padre
da Igreja Católica e um representante de
cada um dos grupos populares que prota-
gonizam os rituais.
Nessas comemorações, as ruas
são tomadas pela presença expressiva
de moradores e turistas, que prestigiam a
performance dos grupos de Congado em
Montes Claros, catopês, marujos e cabo-
clinhos, representando as etnias que for-
maram o Brasil. (QUEIROZ , 2005, p. 28).
Os grupos de congado são os pro-
tagonistas das festas e cada um desem-
penha um ritual especíco. De acordo
com Queiroz (2005, p. 30-49), os catopês
são grupos que preservam de forma mais
sólida as inuências do Congado nas
apresentações. Porém, usam elementos
que representam a tradição africana adi-
cionada a referências luso- espanholas
cristãs, com vestimentas brancas, capa-
cetes adornados com longas tas colori-
das, penas de pavão, miçangas e espe-
lhos, imagens de santos, terços envoltos
nos braços ou nas mãos, e saem pelas
136
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ruas cantando e rezando à Nossa Senho-
ra do Rosário, ao ritmo de tambores, ba-
tuques e rabecas.
Os marujos realizam a encenação,
dramatizam a epopeia marítma portugue-
sa, com participantes vestindo roupas de
cetim na cor azul, fazendo referência aos
cristãos, e outros, na cor vermelha, repre-
sentando os mouros. Nas ruas da cidade,
em duas las, cantam músicas suaves e
tocam violão e viola, remetendo às ações
dos marinheiros portugueses e ao Cato-
licismo. Dançam e dramatizam as lutas
portuguesas nos movimentos das Cruza-
das, comemorando a vitória dos cristãos.
Fazem orações cantadas pedindo prote-
ção divina, puricação dos pecados da ci-
dade, intercessão dos Santos das festas e
agradecendo pelas graças recebidas.
Já os caboclinhos simbolizam o ín-
dio brasileiro, em trajes que reproduzem
as suas vestimentas, saiotes vermelhos
enfeitados com plumas, capacetes ador-
nados com penas, e carregam arcos e
echas. Nesse grupo uma grande in-
cidência de mulheres, além de crianças,
fato que o diferencia dos outros grupos,
que só mais recentemente contam com
a presença feminina. Os caboclinhos atu-
almente são liderados por uma mulher,
que recebe o título de “Cacicona”. Eles
dançam e cantam músicas com letras re-
ferentes à catequização dos índios pelos
padres jesuítas no período da colonização
do Brasil. As suas preces são direciona-
das aos três Santos devocionais da festa,
pedindo perdão pela destruição da nature-
za e invocando proteção aos animais e a
todo o ecossistema brasileiro.
Para que em agosto tudo esteja
pronto para a solenidade, os ensaios são
iniciados no mês de maio, bem como visi-
tas, acompanhadas por música e oração,
às casas dos mordomos, que são escolhi-
dos no ano anterior para guardar as ban-
deiras de cada um dos santos das Festas.
Durante esses dias de aconteci-
mentos, ocorrem as manifestações de mú-
sicas, orações, saudações e danças, eles
criam condições para evidenciar a riqueza
simbólica derivada da presença dos três
grupos e seu papel ritual.
A manifestação acontece em eta-
pas que se inter-relacionam na performan-
ce dos grupos, visando a concretização do
seu ritual de fé. Nas residências visitadas
é servida alimentação e em seguida, há a
reza do terço e a saída em procissão até a
Igreja do Rosário.
O ritual das festas continua com a
chegada dos grupos ao canteiro central da
Avenida Coronel Prates, ao lado da Igreja
do Rosário. Nos dias da festa, somente no
momento do levantamento do mastro, a
avenida é interditada. E nos outros dias da
festa o mastro permanece no local, envol-
to à rotina de trânsito intenso da avenida,
a muito barulho e poluição.
O levantamento de mastro é o ponto
alto da festa, representando a ligação com-
pleta dos grupos em um só reinado sagrado.
A benção aos grupos precede a caminhada
pela cidade. É um momento marcado por
orações, cantos e conta com a presença
dos grupos populares e do padre.
Logo atrás os grupos populares se-
guem com seus cantos e danças, percor-
rem o mesmo trajeto em todos os dias das
Festa. Após a procissão, o padre celebra
a missa ao meio dia com a presença de
todos os grupos populares. As missas ce-
lebradas são importantes marcos simbóli-
cos do caráter de religiosidade e da pre-
sença da Igreja Católica nas festas.
Nos dias dos rituais religiosos, há a
participação de pessoas de Montes Claros
e de outras localidades, católicos ou não,
oriundos de diferentes religiões e classes
sociais. Em geral, acompanham as procis-
sões, os levantamentos dos mastros, as ce-
137
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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lebrações das missas com devoção e emo-
ção. Algumas realizam atos de pagamento
de promessas, caminhando descalças nas
procissões, vestindo roupas que remetem
às mesmas usadas pelos grupos populares,
além de vestirem também bebês e crianças.
As ruas centrais da cidade são enfeitadas
com tas coloridas e imagens dos Santos
das festas e várias lojas ornamentam seus
espaços para que, quando a procissão
passar, a conexão com o sagrado.
Uma mudança que ocorreu e se re-
fere ao aumento das atividades de entre-
tenimento e de consumo, que acontecem
paralelamente às atividades religiosas. Bar-
raquinhas com comidas típicas e artesana-
to, bem como shows musicais, acontecem
todos os dias, das 19h30 às 23h30, e no do-
mingo, das 09h30 às 22h00. Os eventos que
integram essa dimensão profana têm atraí-
do muita gente, tornando as festas eventos
crescentemente diversicados e híbridos.
As Festas de Agosto estão conco-
mitantemente ligadas ao sentimento reli-
gioso e aos prazeres mundanos. Colares
(2006) ressalta ainda que o espaço sacra-
lizado em torno do mastro aceita “apara-
tos da modernidade” como, por exemplo,
câmaras, gravadores, celulares e outros
ligados à comunicação mediada. E inter-
preta esse fato como algo inerente ao pro-
cesso de mudança sociocultural.
Sob câmeras, lmadoras, muitas lu-
zes e muitos ashes, o ritual ao redor
do mastro é iniciado pelos catopês, um
por um, os três ternos de catopês vão
prestando sua homenagem: “Nossa
senhora reina em seu altar”. “Viva nos-
sa senhora com seus anjinhos!”. De
repente uma quebra, uma parada pós-
-moderna, a jornalista da TV precisa da
fala, não se contenta com a imagem,
de Zanza naquele instante. Somente
Zanza pára, e, em meio aos batuques,
responde à repórter, iluminado e ofus-
cado pelas luzes do repórter cinema-
tográco. A ação de Zanza mostra o
tanto que o tradicional está aberto ao
moderno, assim como a necessidade
do sagrado de se adaptar ao dinamis-
mo de uma nova cultura, que podemos
denominar de cultura de massa. A ação
da repórter mostra que existem novas
formas de interpelação do sagrado por
agentes que não se envolvem nem as-
sistem, apenas buscam a melhor esté-
tica de apresentação. Sob a égide da
“estética multimídia”, o espetáculo po-
derá despertar tanto o êxtase religioso
quanto o prazer estético [...] Os apara-
tos modernos interferem, mas não che-
gam a impedir a instauração do sagra-
do. (COLARES, 2006, p. 60)
A mídia é usada na organização e
na divulgação da festa, telejornais e sites
divulgam toda a programação do evento.
Há entrevistas com os mestres dos gru-
pos populares e com o padre responsável,
com o objetivo de dar aos telespectadores
a cobertura completa da festa.
Souza (2007) analisa a relação en-
tre sagrado e profano existente nas festas,
em sua conguração atual, observando que
elas acompanham a dualidade humana, a
sagrada e a profana. Em princípio, a primei-
ra estaria na representação dos momentos
devocionais e tradicionais que envolvem a
religiosidade, e a segunda, marcada pelo
que se encontra fora do templo sagrado,
ou seja, os elementos da “modernidade”,
do consumismo: barracas com bebidas e
comidas típicas, artigos para o lar, bijute-
rias, bolsas, sandálias. Na prática, as duas
dimensões se misturam, por exemplo, na
experiência estética proporcionada pelas
atividades mundanas, o que as aproximam
da experiência religiosa, e pela presença
dos elementos ligados ao consumo nos ri-
tuais, como por exemplo, a ostentação nas
roupas de determinados personagens.
Para Canclini, “sem dúvida, a ex-
pansão urbana é uma das causas que in-
138
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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tensicaram a hibridação cultural”. (2011,
p. 285). Essa expansão demanda a me-
diação técnica dos conteúdos simbólicos
diversicados e do diálogo coletivo. Por
isso, para Canclini, urbanização e moder-
nização, acompanhadas pela mediação
técnica dos conteúdos simbólicos, desen-
volvem a hibridação e as trocas culturais,
promovendo mudanças, inovações, criati-
vidade, transformação da tradição, produ-
ção de novos símbolos coletivos, como no
caso das Festas de Agosto.
A conguração atual das festas
aqui consideradas indica sua inserção
em um processo de profundas mudanças
socioculturais, que atingem o campo reli-
gioso, cada vez mais suscetível à destra-
dicionalização. Nesse campo, o sagrado
se secularizou e o secular se sacralizou,
o que fez com que os elementos religio-
sos se colocassem ao lado dos elementos
profanos e disputassem a atenção dos in-
divíduos, congurando-se numa autêntica
expressão da cultura contemporânea.
As Festas de Agosto conforme
a ocialidade católica
Optou-se por entrevistar onze pa-
dres que pertencem à Arquidiocese de
Montes Claros, atuantes no Setor Centro,
que envolve todas as paróquias da área
urbana central da cidade, local em que
ocorrem as festas religiosas de agosto.
Pressupôs-se que esses padres, por tra-
balharem em locais mais próximos dos
festejos, estivessem aptos a opinar sobre
as festas e sua feição atual. A escolha in-
tencional por ouvi-los sustenta-se ainda
por considerar que eles possuem caracte-
rísticas representativas da população so-
bre a qual recai o interesse da investiga-
ção, ou seja, eles são os representantes
ociais da Igreja Católica.
Para resguardar o anonimato, os
entrevistados foram identicados pela le-
tra P seguida dos números 01 a 11. As en-
trevistas só foram realizadas com a con-
cordância dos participantes, comprovada
na assinatura do termo. Houve recusa de
um padre e do Arcebispo em conceder en-
trevistas por motivos não declarados.
As organizações representativas
de cada uma dessas instâncias disputam
seu espaço nos festejos, impondo novos
desaos para a Igreja, no passado de-
tentora do monopólio religioso e cultural,
com relação ao seu lugar nesse contexto
pluralista. Se no passado, frequentemen-
te, a Igreja desqualicou as chamadas
manifestações religiosas populares e as
considerou como desvios das diretrizes
ociais do Catolicismo, tratando de for-
mar agentes romanizados com disposição
para o controle desses desvios, hoje pa-
rece haver maior disposição, por parte de
alguns de seus agentes, para a abertura
com relação às festas. Mesmo porque,
como pertencente à sociedade e à cultura
contemporânea, as festas têm sua dinâ-
mica desenvolvida de modo autônomo e
o controle disso mostra-se impraticável,
exigindo o deslocamento da Igreja do seu
lugar, outrora ocupado, e seu reposiciona-
mento em meio a muitas outras instâncias
produtoras de sentido.
Para alguns dos entrevistados, no
entanto, a posição “desarmada” da Igreja
diante do quadro de mudança nos festejos
de agosto em direção a outras experiências
estéticas, além daquela estritamente ligada
à sua tradição religiosa, é um problema:
A principal mudança que percebo é o
fato das Festas de Agosto em Montes
Claros, terem perdido um pouco o seu
cunho religioso, o seu foco, principal-
mente nas apresentações musicais,
tem variado muito o estilo dos shows,
das músicas, este ano mesmo tem um
circuito de rock com seis bandas, acho
muito para uma festa religiosa né? Os
cantores regionais, os violeiros cantam
139
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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somente um dia ou então pela manhã
e tarde, sem muita expressão; agora,
em relação aos outros, os de axé , os
de rock, são sempre à noite e lotados,
ainda mais por ser gratuito.Não é que
estou sendo radical, mas isso não tem
muito sentido. (P10)
Percebo que só teve mudança do lado
negativo, pois aumentou a bebedeira,
os shows, o comércio. Eu acho que
ela devia ser uma festa popular é....
carregada do seu simbolismo, carre-
gada do seu signicado, mas ela de-
veria ser mais comprometida com a fé
cristã e sem mistura, devia ser mais
puricada. (P8)
A festa mudou muito, não é assim, tem
que ter mais respeito à religiosidade.
Tem gente que vai acompanhar o cor-
tejo e quando chega na porta da Igreja
do Rosário em vez de entrar para cele-
brar, eles saem e vão para as barracas
das comidas e bebidas. E tem aquele
povo que vem, olha e não consegue
adentrar, porque não é separar, tudo
faz parte. Quando o cortejo sai, o pa-
dre começa a celebração da missa. E
muitas vezes a igreja ca vazia e não
era assim. O povo está esquecendo do
objetivo da festa. Vejo que o povo tem
que entender que a festa é expressão
de fé! É bom comer, cantar, mas tudo
em seu momento. (P11)
Observa-se que, na concepção de
alguns depoentes, há uma avaliação nega-
tiva das mudanças ocorridas, pela desca-
racterização do teor religioso da festa, pela
ausência de discernimento do “povo” que
não age em conformidade com o que “a
Igreja coloca”; a preferência pelas ativida-
des mundanas, presentes nas festas, reve-
laria descompromisso para com a fé cristã.
No entanto, parece que para o povo
“pouco importa se é festa religiosa ou pro-
fana, o que vale é que o espaço privile-
giado de reunião das diferenças [...] a fes-
ta é, portanto, o elemento de re-ligação”
(PEREZ, 2002, p. 35). Trata-se, então, não
mais de uma festa religiosa, no sentido es-
trito, mas de uma festa híbrida, produzida
pela fusão histórica de elementos culturais
de origem europeia, africana e indígena,
criadora de uma expressão única de inter-
seção cultural, cuja avaliação não encontra
unanimidade no grupo dos entrevistados
da Igreja Católica local. Entre eles, há pa-
dres que apoiam as mudanças:
Apesar de ter mudado alguns momen-
tos da festa, com a inserção de ativi-
dades culturais para o povo, através
dos shows artísticos, a introdução de
algumas danças, cultura afro, que re-
ete nossa cultura de povo brasileiro,
a essência não muda, porque a festa
expressa a alegria que é Cristo, a ale-
gria de viver, de confraternizar, cada
momento irradia a fortaleza dos laços
da comunhão de um povo. (P4)
O povo de Montes Claros participa
com muita fé das festas como era an-
tes, essas mudanças não atrapalha-
ram, pelo contrário, zeram aproximar
da nossa raiz. Como é bonito participar
de uma missa afro e também termos
que fazer algo que aproxima a todos e
não exclui. Se acabar os shows, essas
coisas que os jovens gostam, a festa
iria ser só de velhos e também não
teria a dimensão de hoje e podia até
acabar. Hoje a cidade ca lotada, to-
das as ruas do centro enfeitadas com
tas coloridas, muito bonito e a mídia
nos ajuda na divulgação. (P1)
Temos que respeitar a religiosidade
popular do nosso povo mediante ser-
mos tolerantes até mesmo com outras
determinadas manifestações de cunho
religioso nas nossas festas, mas hoje
o embasamento concreto na minha
opinião é a gente saber dialogar, fa-
zer um diálogo, de fato integrar outras
140
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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denominações, outras manifestações,
para que assim seja de fato uma ex-
pressão, louvor a Deus. (P7)
Como resultado do esforço de
adaptação às mudanças socioculturais e
de manutenção da plausibilidade social do
Catolicismo contemporâneo, esses depo-
entes encontraram maneiras de articular
valores e visões de mundo aparentemente
discrepantes. Talvez essa disposição seja
mais perceptível entre os padres diocesa-
nos, que têm a possibilidade de levar uma
vida secular próxima à de seus contempo-
râneos, sem a adoção de uma prática to-
talmente distanciada do mundo, tornando-
-se mais adaptados a ele. (FERNANDES,
2015). Indagados sobre o que gostariam
de mudar nas comemorações de agosto,
os entrevistados zeram diferentes pro-
postas de mudanças:
Poderia ter um palco onde os grupos
pudessem apresentar com maior evi-
dência e que mais gente pudesse car
sentada. Porque na Igreja do Rosário,
no começo daquela avenida, é terrível,
não cabe quase ninguém, ca todo
mundo apertado, é na avenida, bem
no centro de Montes Claros. Os car-
ros buzinando, então poderia criar um
outro ambiente, eu gostaria, por exem-
plo, que zessem na praça do Jatobá,
naquele cantinho tivesse uma Igreja
Ecumênica, onde todas as religiões
poderiam fazer várias coisas. Isso se-
ria o ideal para as Festas de Agosto,
porque há uma mistura e lá também
tem uma praça grande, ideal para eles
dançarem, pularem, seria muito me-
lhor do que a antiga Igreja do Rosário,
mas se falar isso para os grupos, eles
não aceitam não, oxalá para eles que-
ria a mesma Igreja no meu tempo de
criança e já sou velho. Eles são muito
conservadores! (P2)
Para mim o que tenho que mudar é o
nome e a data. Em vez de festa de agos-
to, eu penso que deveríamos retomar a
festa de Nossa senhora do Rosário no
dia próprio, a festa de são Benedito, no
caso em abril, a festa do divino Espírito
Santo, no dia de Pentecostes, são três
festas ligadas, festas da Igreja, e nós
temos um calendário xo da Igreja em
comemoração aos santos. (P4)
Eu acho que tem que mudar muito, vol-
tar a ser religiosa de verdade, elas têm
mais o cunho cultural, os grupos não se-
guem nenhuma orientação que a gente
der e também não têm orientação para
isso, eles mesmos criam os próprios ri-
tos, os modos de oração que está mais
ligado ao sincretismo religioso, mistura
muita coisa na verdade. (P10)
A festa deveria ser comprometida com
a fé cristã e sem mistura, devia ser
mais puricada. (P3)
Na minha opinião são muito boas, mas
penso que deveriam valorizar mais as
apresentações culturais, colocar mais
as músicas da região ou religiosas,
valorizar mais a marujadas, os cabo-
clinhos, os catopês, os grupos religio-
sos, dar mais ênfase ao aspecto reli-
gioso. Sei que não tem como voltar no
tempo, mas penso que tem como mu-
dar esses shows, diminuir a quantida-
de das barracas, para ter mais espaço
para os cortejos, as procissões. (P1)
Acredito que o que tem que mudar
é na consciência das pessoas e dos
padres também. De fazer um diálogo
inter-religioso, temos que ser ecumê-
nicos e aceitar as manifestações do
nosso povo, não criticar e sim dialogar.
Por que cada um tem sua fé, não po-
demos julgar. (P7)
Alguns padres se preocupam com
os entrecruzamentos da religião e outros
sistemas simbólicos, típico das cidades
modernas/contemporâneas. Com isso,
141
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
propõem diferentes medidas, como a se-
paração das manifestações, o reforço da
tradição religiosa, a revalorização cultural
dos grupos populares, o ecumenismo e o
diálogo inter-religioso, revelando a diversi-
dade de opinião a respeito das questões
sobre as quais foram interpelados. Assim,
a dinâmica das festas, de algum modo,
estimula os padres a dialogar com a cul-
tura contemporânea ou, no mínimo, con-
siderar algumas das suas contradições.
Porém, os cruzamentos culturais intensos
e a instabilidade das tradições podem ser
fonte de confrontos internos à instituição
eclesiástica católica.
Para Hall, essas disputas são cons-
tantes no âmbito da cultura e se dão “nas
linhas complexas da resistência e da acei-
tação, da recusa e da capitulação, que
transformam o campo da cultura em uma
espécie de campo de batalha permanen-
te, onde não se obtêm vitórias denitivas,
mas onde há sempre posições estratégi-
cas a serem conquistadas ou perdidas. ”
(HALL, 2003, p 255).
Nos depoimentos, pode-se inferir
a existência de batalhas internas e exter-
nas travadas pela Igreja, por ocasião das
festas. A luta interna ao Catolicismo – en-
tre suas variadas expressões ou entre os
agentes institucionais e suas visões de
mundo distintas –, e as disputas com ou-
tras religiões e crenças locais, dado o de-
clínio da hegemonia católica e a constitui-
ção do pluralismo religioso brasileiro, são
exemplos disso. As religiões que convi-
vem hoje no Brasil “obedecem a linhas de
forças que as colocam ora em situações
de trocas, interpenetrações e comunica-
ções, ora em situações de diferenciação,
competição e enfrentamento” (CAMUR-
ÇA, 2009). Nos depoimentos, dois dos
entrevistados zeram menção a essas
possibilidades, ao propor o ecumenismo
e o diálogo inter-religioso como um ideal.
Parecem estar conscientes de que em um
ambiente de pluralismo cultural e religio-
so, o acirramento excessivo das disputas
entre as diferentes agências produtoras
de conteúdo simbólico pode ter efeitos pa-
radoxais, afastando os éis da Igreja.
Nas relações com o campo extrar-
religioso, a vivência urbana das tradicio-
nais Festas de Agosto estimulou interes-
ses comerciais, ligados ao consumo, ao
lazer e ao entretenimento secular, bem
como políticos. Pode-se inferir que a Igre-
ja tenha que lidar, pois, com candidatos a
postos eleitorais, representantes de car-
gos públicos, comerciantes e empresários
da indústria cultural, que se empenham na
obtenção de ganhos eleitorais, simbólicos
e materiais trazidos pelas festas.
Nesse cenário, de acordo com os
padres ouvidos, as festas representam
não só uma comemoração religiosa,. Eles
atribuíram outros signicados aos eventos,
como se pode ver nos trechos a seguir:
Representa para mim somente a ex-
pressão da cultura de uma cidade.
Embora elas sejam festas populares e
permeadas de muito sincretismo reli-
gioso, muitas vezes elas estão acom-
panhadas de vícios das pessoas que
as praticam, por isso que não vejo
com bons olhos essa associação com
religião. (P11)
Para mim, as Festas de Agosto são fes-
tas religiosas ligadas à Igreja Católica,
que infelizmente hoje têm muito mais
um cunho cultural que religioso. (P10)
As Festas de Agosto são um território
sagrado, elas vêm de uma identidade
de um povo que celebra a sua fé. Atra-
vés dos símbolos a gente pode per-
ceber a fé de um povo que celebrava
essas festas há tempos. Então, é uma
questão que envolve cultura, eu não
gosto muito de resumi-las somente em
folclore, acho que é reduzir muito essa
questão, pois ela é uma festa religiosa,
142
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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expressa a fé de um povo, expressa a
luta de um povo, expressa um sonho de
um povo, expressa também a presença
da Igreja na vida desse povo. (P1)
Para mim representa a cultura do Nor-
te de Minas, devoção e religiosidade
popular, que é muito forte nesta re-
gião. Mesmo com sol o povo vai des-
calço para a procissão e o calor daqui
é forte (risos). Então isso é fé, uma de-
voção popular de muito tempo e que
cada ano se renova, o quão bonito é
que isso se repete por causa do povo,
só do povo e mais nada. (P6)
Representa um momento de encon-
tro de Deus através do meu irmão, da
comunidade, mas também é a preser-
vação dos valores, de uma cultura lo-
cal e do Catolicismo popular. De um
povo marcado por sofrimentos e ale-
grias, porque nós somos mineiros do
Norte, ou seja, sertanejo, um povo que
convive com a seca, sol quente, com
a pobreza, mas não perde a alegria,
a esperança e a fé. Até hoje o povo
faz procissão com as pedras na cabe-
ça pedindo a Deus chuva no tempo da
seca, na nossa região esta religiosida-
de é muito forte e as Festas de Agosto
são só o reexo dessa fé. (P4)
A presença de elementos recrea-
tivos e estéticos em uma festa religiosa,
as conexões entre cerimônia religiosa e
festa, misturas cuja intensidade pode di-
cultar a demarcação precisa das fronteiras
entre rito religioso e divertimento público.
Não encontram respaldo em todas as fa-
las, levando alguns padres a lamentar a
ocorrência das festas na formatação atual.
Outra avaliação faz menção à ritualização
de um ideal de sociedade na qual vigora-
ria a mistura das raças e a dissipação das
diferenças sociais, que ressalta ainda a
“beleza” da mistura e das expressões sin-
créticas das festas e a promoção da união
das classes sociais, acima das diferenças.
Dadas as potencialidades da festa, contu-
do, deve-se observar que essa mesma ri-
tualização pode ocultar as desigualdades
da sociedade brasileira, legitimadas inclu-
sive pela ação da Igreja Católica no Brasil.
É notável nos depoimentos que uma
palavra empregada de forma recorrente
pelos padres para falar sobre o signicado
das festas é “cultura”, termo que sobrepu-
jou a palavra “religião”. Mas a cultura a que
se referem tem sentidos diferentes: para
uns é entretenimento e lazer, associados a
“vícios” mundanos, o que atualiza os anti-
gos julgamentos dos padres romanizados
diante dos costumes locais e as tensões
históricas presentes nas relações entre o
Catolicismo, universal por denição, e a
religiosidade local; outros entrevistados
identicam a dimensão cultural como a ex-
pressão religiosa de um povo que celebra
o sentido de comunidade, um povo “sofri-
do” e sua “luta”, o que remete também à
dimensão política das festas.
Considerações Finais
As tentativas empreendidas pela o-
cialidade católica para controlar o exercício
da religião pelos éis não conseguiram con-
solidar o controle dos modos populares de
vivenciar a religião nem reverter a situação
de declínio do Catolicismo. Como demons-
tram as festas consideradas, o Catolicismo
de caráter popular e devocional permane-
ce independentemente das orientações o-
ciais. Além disso, agora está acrescido de
elementos extrarreligiosos, o que criou um
evento que, além de sincrético, é híbrido,
um misto de evento turístico, espetáculo,
entretenimento e religião.
Se a ocialidade católica, como
vimos, procurou impor seus códigos à
sociedade, hoje isso parece bastante im-
provável. De acordo com as entrevistas
realizadas, parece difícil falar de uma
perspectiva derivada da visão ocial so-
143
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
bre os festejos populares, adotada pelos
padres em seu trabalho. Diferentes consi-
derações e avaliações foram elaboradas
pelos agentes eclesiásticos ouvidos e elas
convivem com as diretrizes ociais, com o
Catolicismo tradicional, laico, devocional e
penitencial, e até com os elementos não
religiosos, criando uma religião ainda mais
múltipla e elástica. Assim, observa-se que
a própria instituição católica é complexa.
No Catolicismo, em função da vi-
são ortodoxa dos representantes ociais
da Igreja, a relação deles com seus éis
tem sido delicada, permeada por variadas
sensibilidades e reveladora do choque en-
tre, os apelos da ocialidade e os anseios
desses éis. A liberdade e a autonomia
dos agentes, em consonância com a so-
ciedade contemporânea, se instala para
tentar estabelecer e rmar uma cultura
tradicional e hegemônica, que hoje se vê
diante de vários desaos para se manter.
Pode-se dizer que as diferentes
opiniões e interpretações emitidas pelos
padres sobre as festas indicam que o
Catolicismo, assim como outras religi-
ões tradicionais, está submetido a uma
dinâmica sociocultural que ocasiona a
perda de capacidade de regulação institu-
cional da religiosidade. Na sociedade con-
temporânea cou visível que os indivíduos
ligados à Igreja padres e eis leigos –,
passaram a determinar, com maior auto-
nomia, os rumos de sua própria vida e a
emitir suas opiniões, mesmo que desto-
antes da orientação ocial. Suas crenças
tornaram-se subjetivadas, ao passo que
as pretensões de imposição de sentido da
Igreja foram se enfraquecendo.
Os depoimentos coletados indicam
e reiteram a existência da multiplicidade in-
terna do Catolicismo e das diferentes pos-
turas de seus agentes diante dessa ques-
tão. Indicam, assim, as tensões e arranjos
construídos em torno das diversas repre-
sentações das festas, produzidas pelos
padres, pelos éis e pela ocialidade ecle-
siástica, vinda de Roma e de seus agen-
tes intelectualizados. A pesquisa, mesmo
sendo restrita a um local geográco de-
marcado, e, portanto, com poder limitado
de generalização, remeteu aos modos de
operação contemporânea dos agentes
eclesiásticos em um ambiente reexivo,
que sujeita as tradições à avaliação social,
de acordo com Giddens (1997).
Os padres ouvidos indicam a ne-
cessidade de recriar esse espaço público
urbano a partir dos usos e contra-usos de
espaços consagrados. Se alguns anseiam
pela volta aos moldes antigos de se fazer
a festa em Montes Claros e pelo resga-
te do papel da Igreja como protagonista,
outros parecem reconhecer que, para ser
público, o espaço e suas apropriações
precisam manifestar a “armação das sin-
gularidades e o reconhecimento das dife-
renças” (LEONEL, 2015, p.188). Assim,
diante de vários desaos, a Igreja con-
temporânea procura armar-se como ins-
tituição capaz de dar conta de questões
que se situam além do plano da fé, para
manter-se socialmente plausível.
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Recebido em 27/07/2017
Aprovado em 06/09/2017
I Viviane Bernadeth Gandra Brandão. Mestre em Es-
tudos Culturais Contemporâneos pela Universidade
FUMEC (MG). Professora de Serviço Social na Univer-
sidade Estadual de Montes Claros (MG) / Unimontes.
Contato: viviane.gandra1@hotmail.com
II Dados disponibilizados pelo IBGE em: <http://www.
ibge.gov.br>. Acesso em 28 de janeiro de 2016.
III Para Giddens (1997), sociedade pós-tradicional é
aquela em que a tradição não foi totalmente banida, mas
sim dissolvida e reconstruída ao mesmo tempo, subme-
tida ao questionamento de seus pressupostos. Há uma
transformação do seu papel e níveis de atuação.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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As Reestruturações do Sentido de Pertença à Igreja Católica
nos Bispados de D. José Colaço, D. Paulino Évora e D. Arlindo Furtado:
Adaptação ou Resistência às Mudanças Políticas e Culturais em Cabo Verde?
Las Reestructuraciones del Sentido de Pertenencia a la Iglesia Católica
en los Obispados de D. José Colaço, D. Paulino Évora y D. Arlindo Furtado:
¿Adaptación o Resistencia a los cambios políticos y culturales en Cabo Verde?
The Restructuring of the Meaning of Belonging to the Catholic Church in
the bishoprics of D. José Colaço, D. Paulino Évora and D. Arlindo Furtado:
Adaptation or Resistance to Political and Cultural Change in Cabo Verde?
Adilson Filomeno Carvalho Semedo
I
Resumo:
Este artigo relaciona a reestruturação dos sentidos de pertença à
Igreja Católica de Cabo Verde com as transformações culturais,
políticas e religiosas que marcam a contemporaneidade neste
arquipélago. Apresenta a «pertença como institucionalização»,
«pertença como tradição/memória» e «pertença como compromisso»
como os paradigmas dominantes na história da Igreja Católica em
Cabo Verde, e discute o signicado cultural da transição da «pertença
como tradição/memória» para a «pertença como compromisso», que
é transversal aos bispados de D. José Colaço, D. Paulino Évora e D.
Arlindo Furtado.
Palavras chave:
Cabo Verde
Igreja Católica
Sentido de Pertença
146
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este artículo relaciona la reestructuración de los sentidos de pertenencia
a la Iglesia Católica de Cabo Verde con las transformaciones culturales,
políticas y religiosas que marcan la contemporaneidad en este
archipiélago.Presenta la «pertenencia como la institucionalización»,
«pertenencia como tradición/memoria» y «pertenencia como
compromiso» como los paradigmas dominantes en la historia de la
Iglesia Católica en Cabo Verde, y se discute el signicado cultural
de la transición de la «pertenencia como tradición/memoria» a la
«pertenencia como compromiso», que es transversal a los obispados
de D. José Colaço, D. Paulino Évora y D. Arlindo Furtado.
Abstract:
This article relates the restructuring of the senses of belonging to
the Catholic Church of Cabo Verde with the cultural, political and
religious changes that mark the contemporaneity in this archipelago.
It presents “belonging as institutionalization”, “belonging as tradition/
memory” and “belonging as commitment” as the dominant paradigms
in the history of the Catholic Church in Cabo Verde. It also discusses
the cultural signicance of the later restructuring, the transition from
“belonging as tradition/memory” to “belonging as commitment”, which
is transversal to the bishoprics of D. José Colaço, D. PaulinoÉvora
and D. Arlindo Furtado.
Palabras clave:
Cabo Verde
Iglesia Católica
Sentido de Pertenencia
Keywords:
Cabo Verde
Catholic Church
Sense of Belonging
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As Reestruturações do Sentido
de Pertença à Igreja Católica nos
Bispados de D. José Colaço, D.
Paulino Évora e D. Arlindo Furtado:
Adaptação ou Resistência às
Mudanças Políticas e Culturais em
Cabo Verde?
Introdução
Considera-se que as recongura-
ções do campo religioso na modernidade
constituem um produto de respostas aos
processos modernos de secularização,
globalização, destradicionalização, frag-
mentação, reexividade e individualização
(CLARKE, 2006). No que concerne à ca-
pacidade de renovação e de inovação da
religião no continente africano demarcam-
-se a adoção, tanto pelos movimentos
pentecostais como pelos radicais islâmi-
cos, das tecnologias dos meios de comu-
nicação para fazer proselitismo através de
vídeos, músicas e sermões, no quadro de
agendas transnacionais de conversão, e a
forma como a religião na África continua
a ser exportada para outros continentes,
particularmente para as Américas e para a
Europa, como parte do processo de globa-
lização (GORE, 2008).
O panorama religioso em Cabo
Verde, por razões diversas, com destaque
para a mobilidade transnacional, interliga-
-se com estas tendências globais e regio-
nais. Os dados do último censo, datado de
2010, deram nomes e números à diversida-
de religiosa dentro do arquipélago. Indicam
que 1,5% da população inquirida está liga-
da à Igreja Adventista do Sétimo Dia; 0,9%
à Assembleia de Deus; 77,3% à Igreja Ca-
tólica; 0,1% à Igreja Deus é Amor; 1,7% à
Igreja do Nazareno; 1,8% ao Islão; 25 efeti-
vos, correspondentes à proporção de qua-
se 0,0%, aparecem ligados ao Judaísmo;
0,5% à Igreja Nova Apostólica; 1,9% ao
Racionalismo Cristão; 1,0% às Testemu-
nhas de Jeová; 0,4% à Igreja Universal do
Reino de Deus; 1,3% a uma outra não es-
pecicada; enquanto 10,8% aparecem as-
sociados aos sem religião (INE CV, 2010).
A partir da morfologia dessa diversi-
dade, contata-se,no quadro das mudanças
culturais que se assinalamna sociedade
em Cabo Verde após a independência polí-
tica em 1975, que os aspetos relacionados
com a vivência religiosa se destacam pela
sua ambivalência, constituindo um desao
tanto para os indivíduos, para as organi-
zações, como para a sociedade. Por um
lado, as religiões ainda exercem inuência
aceite e reconhecida na esfera subjetiva
enquanto reguladoras da construção das
identidades de género, da sexualidade e
da conjugalidade (SEMEDO, 2009; LOBO;
MIGUEL, 2015), por outro lado, constitui
um dos orgulhos da República a armação
da sua laicidade (SEMEDO, 2015).
Decorrente disso, propomos que
a forma como a Igreja Católica local de
Cabo Verde, unidade representativa em
termos históricos, demográcos e simbó-
licos, tem restruturado o sentido de per-
tença dos leigos traduz a interiorização
da mudanças políticas e culturais que
marcam a sociedade contemporânea em
Cabo Verde. Portanto, é uma estratégia
desta coletividade religiosa no sentido de
compatibilizar-se estruturalmente com a
sociedade, assegurando, simultaneamen-
te, a sua adaptação e a sua resistência, na
medida em que orienta as mudanças em
prol do seu programa de ação.
Adotamos a conceptualização de
sentido na aceção luhmanniana, enquanto
forma que ordenar o experimentar, deter-
minando-lhe a referência a ulteriores pos-
sibilidades, na medida em que é apresen-
tação simultânea do real, enquanto atual,
e do possível, enquanto potencial (COR-
SI; ESPOSITO; BARALDI, 1996).
148
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Por pertença à Igreja Católica as-
sumimos uma relação que se estabelece
entre a instituição igreja e as suas partes
constituintes humanas, podendo assumir
formas semânticas diversas. Pressupõe
aceitação e reconhecimento mútuos deri-
vados da incorporação de um sistema de
disposições estruturantes (BOURDIEU,
2007) que articula formas de apreciar, de
sentir, de agir especícas do ethos e da
ética católicos, gerando, assim, formas de
ordenação da experiência religiosa.
Essa ordenação da experiencia ob-
jetiva-se em três dimensões: a cognitiva,
porque enquanto algo que se aprecia, im-
plica conhecimento; a emotiva, na medida
em que é algo que se sente e, por isso, é
motivação; a prática enquanto é algo que
se faz, portanto, é ação.
Em termos metodológicos, adota-
mos a abordagem qualitativa ea recolha
das evidências, sob as quais suportamos
esta reexão, cingiu-se a pesquisa docu-
mental. Assim, documentos eclesiásticos,
artigos de jornais, entrevistas impressas
e em vídeo, constituíram as matérias-
-primas sob as quais construímos essa
problematização, no sentido de fazer do
sentido de pertença a Igreja Católica de
Cabo Verde “um objeto para o pensamen-
to” (FOUCAULT apud REVEL, 2005, p. 3)
sob a forma de conhecimento cientíco.
A narrativa coerente que propomos,
entretanto, não se confunde com as evi-
dências factuais, desordenadas, contínu-
as e descontinuas desse fenómeno. A sis-
tematização que zemos a partir de dados
documentais dispersos é uma construção
que tem propósitos meramente analíticos.
I. Uma Proposta de Conguração
dos Sentidos de Pertença a Igreja
Católica em Cabo Verde
Se a questão da pertença acom-
panha a constituição da Igreja Católica
em Cabo Verde, entendemos que é er-
rado supor que ao longo do tempo ela
tenha signicado a mesma coisa ou que
tenha sido suportada nos mesmos pres-
supostos. Pelo contrário, propomos que
acompanhando a evolução da sociedade
em Cabo Verde surgiram paradigmas ou
modelos de pertença distintos no interior
desta igreja particular.
Assim, correspondente à fase Ju-
risdicionalista das relações Estado/Igreja
em Cabo Verde, com forte ingerência do
Estado no âmbito religioso, mas ao abrigo
da assunção de uma conssão religiosa
como Religião do Estado, descortinamos
o paradigma que denimos como «perten-
ça como institucionalização».
Correspondente à fase Separatis-
ta (usamos a aceção técnico-jurídica e
política que designa o separatismo como
sistema de separação entre o Estado e a
Igreja)aparecem os paradigmas de «per-
tença como tradição/memória» e «perten-
ça como compromisso».
Em termos temporais, propomos
que o paradigma de «pertença como ins-
titucionalização» predomina durante o pe-
ríodo 1462-1820, enquanto o paradigma
de «pertença como tradição/memória»,
embora erigido nos alvores do liberalismo
no período da monarquia constitucional,
se consolida no período da Primeira Re-
pública e do Estado Novo portugueses e
predomina até aos primeiros anos dosé-
culo XXI (1910-2009).
Por sua vez, o paradigma de «per-
tença como compromisso»é correspon-
dente às determinações saídas do Concílio
Vaticano II, quando passa-se de uma Igreja
tida como uma hierarquia e uma estrutu-
ra social desigual, para uma Igreja como
comunidade de batizados (BOBINEAU;
TANK-STORPER, 2008). Esse paradigma
consta do programa do bispado de D. José
Colaço e de D. Paulino Évora, mas conso-
149
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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lida-se com algumas mudanças institucio-
nais introduzidas pelo governo do bispado
de D. Arlindo Furtado (2009-2017).
Assim, é nosso entendimento que
como modelo de relação entre a Igreja local
e os seus membros predominou inicialmen-
te uma relação regulada institucionalmen-
te, como suportes políticos e jurídicos que
asseguravam que os moradores de Cabo
Verde fossem igualmente súbditos do reino
e membros pertencentes à Igreja Católica.
Durante os séculos XV-XVIII, o Pa-
droado Espiritual da Ordem de Cristo fez
da coroa portuguesa a protetora da fé,
assegurou que a fé legitimasse as ações
expansionistas e de conquista da coroa;
permitiu a construção do «outro religioso
generalizado» - os inéis (judeus, cristãos
novos, mouros, animistas) - e a regulação
jurídica das suas ações nos territórios do
reino (SANTOS; SOARES, 2001).
A experiencia religiosa era marcada
pelo catolicismo em posição social e políti-
ca privilegiada; pela associação das religi-
ões tradicionais africanas com as práticas
demagia e feitiçaria; pela presença con-
juntural do judaísmo oriundo da Europa; e
pelo combate ao Islão trazido por africa-
nos escravizados (BARCELOS, 2003).
Ser morador de direito nas ilhas im-
plicava, simultaneamente, ser súbdito do
reino e el católico. O destaque vai para
o batismo enquanto ritual que assegurava
essa dupla condição e o concomitante di-
reito de entrada na sociedade. Deste modo
a pertença à Igreja Católica permitia que
a identidade religiosa do legítimo morador
das ilhas fosse, igualmente, elemento cons-
tituinte da sua identidade política. Portan-
to, nessa fase havia uma simbiose entre a
identidade religiosa e a identidade política.
Num contexto político distinto, mar-
cado primeiramente pelo liberalismo e de-
pois pelo republicanismo, as contestações
ao poder da Igreja Católica culminaram
em alterações no quadro jurídico que re-
tiraram as bases para um sentido de per-
tença sustentado na institucionalização, à
medida que o catolicismo passa da con-
dição de religião do estado para a de reli-
gião da nação portuguesa.
Entre 1820 e 1975 a experiência
religiosa é marcada pelo catolicismo ain-
da em posição social e política privile-
giada, ressalvando os anos 1910-1926
(SEMEDO, 2015); pela presença judaica
europeia e magrebina decorrente de u-
xos comerciais (CORREIA, 1998); pela
entrada do protestantismo (luteranismo,
metodismo, anglicanismo e calvinismo)
oriundo dos EUA, via retorno de emigran-
tes (CORREIA, 2005); pela admissão do
Racionalismo Cristão oriundo do Brasil
(VASCONCELOS, 2012); e pela chegada
dos evangélicos (Baptistas, Adventistas
dos Sétimo Dia, Testemunhas de Jeová) e
do bahaismo (SILVA, 2005).
Nesse período, os diálogos entre
a igreja Católica e o poder político foram
construídos a partir do peso tradicional da
Igreja Católica na cultura e na história de
Portugal e das suas colónias, tendência
acentuada durante o Estado Novo (CRUZ,
1998). A simbiose se dá entre a identida-
de religiosa e a identidade cultural, e esta
orientaçãoestender-se-á à Primeira Repú-
blica de Cabo Verde e aos primeiros anos
da democracia pluralista.
Essa simbiose permitiu que o go-
verno da diocese de D. José Colaço
restruturasse a ação da Igreja local no
conturbado período que antecedeu a in-
dependência nacional e que o governo da
diocese de D. Paulino Évora reconstruis-
se a compatibilidade estrutural entre o
catolicismo e a sociedade cabo-verdiana
pós-colonial, assegurando uma base de
diálogo como os novos poderes políticos
(SEMEDO, 2015). Pertencer à igreja no
quadro da simbiose entre a identidade re-
150
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ligiosa e a identidade cultural é algo que
se herda, legada pela tradição, e uma
memória que se atualiza no presente.
Entretanto, as interrogações acerca
do sentido de fé do crente católico, acentu-
adas pelo fenómeno das profanações nos
anos 90 do século XX, e a crescente diversi-
cação do campo religioso em Cabo Verde,
questões que marcam a primeira década
do século XXI, criaram condições para que
as autoridades católicas problematizassem
osentido de pertença suportado natradição/
memóriae começassem a reetir na criação
de estruturas eclesiais que assegurassem
a primazia do sentido de pertença como as-
sumpção de compromisso.
Importa referir que com a pertença
como compromisso busca-se uma simbio-
se entre a identidade religiosa e a identi-
dade pessoal. Pretende-seque o el não
pertença à igreja por tradição (familiar)
ou porque culturalmente ele herdou essa
pertença, mas porque tal pertença orienta
toda a sua vivência, traduzindo-se numa
participação ativa suportada numa sime-
tria entre direitos e deveres plenamente
assegurados e assumidos.Ganha ascen-
dência a gura do convertido, na linha do
proposto por “Hervieu-Legér (2005).
A tabela que segue abaixo sin-
tetiza as dimensões dos paradigmas
apresentados:
Observemos, de seguida, como
se apresenta essa discussão nos três
bispados referenciados, relevantes na
medida em que são contemporâneos as
mudanças socioculturais na sociedade
em Cabo Verde.
II. D. José Colaço e o Catolicismo
como Património Cultural
Segundo a apreciação feita pelo
Cónego José Jacinto ao jornal Novo Jor-
nal Cabo Verde, de 27 de outubro de 1994,
o programa missionário do bispo D. José
Colaço, a recristianização do arquipélago,
passava pela constituição de um clero lo-
cal. Assim, o seu bispado seria o reexo de
uma máxima que lhe é atribuída: «diocese
sem seminário – lar sem crianças», pelo
que ultrapassada a primeira fase de emer-
gência material e espiritual, mereceria par-
ticular atenção a questão da vida consagra-
da, cujo primeiro passo foi a construção, no
dia 7 de outubro de 1957, do «Seminário
de S. José» (CERRONE, 1983, p. 54-55).
Tabela 1: Quadro síntese das dimensões dos paradigmas de pertença a Igreja Católica
em Cabo Verde (fonte: o autor)
151
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Nas suas comunicações com os
leigos e com as autoridades coloniais,
invariavelmente, aparecem referências
à relação entre o catolicismo e a cultura
cabo-verdiana. Assim, por exemplo, em
outubro de 1959, no discurso por ocasião
do seu jubileu, armou:
Tem esta terra a distinção de ter nas-
cido para o Catolicismo, quando nas-
ceu para a vida. Foram cristãos os
seus primeiros templos, cristãos os
primeiros cânticos que romperam o
seu silêncio milenário (D. José Co-
laço, in Cabo Verde Boletim de Pro-
paganda e Informação, outubro de
1959, p. 22).
Na sua mensagem «Na hora de
Esperança»,referente aos acontecimen-
tos da primeira quinzena de maio de 1974
que marcaram a cidade da Praia, na sequ-
ência do 25 de Abril, vislumbra-se também
essa relação entre o catolicismo e a cabo-
-verdianidade:
Um valor me cumpre pôr em plena luz
nesta viragem: o valor do espírito, nes-
ta terra caldeada na mensagem cristã
do Evangelho. O Cristianismo é o mais
íntimo foco da vida para o caboverdia-
no. O Cristianismo é a alma de Cabo
Verde.Seremos menos caboverdianos
e, até deixaremos de ser caboverdia-
nos, se enveredarmos por caminhos
que ponham em risco a abertura a
Deus ou venham a diminuir a estima
pelos mensageiros de Deus (D. José
Colaço, in O Arquipélago, de 16 de
maio de 1974, p. 8).
Na sua carta de despedida da dio-
cese lembrou o progressivo, ainda que
lento, processo de desenvolvimento do
apostolado dos leigos no seio das comuni-
dades e o facto de não se poder dizer que
todos os leigos em Cabo Verde sentem e
vivem a sua responsabilidade social em
pleno (COLAÇO, maio 1975, p. 3-6).
Mostrou-se convicto que na hora
histórica que se abria, tudo levava a crer,
mais precisaria a igreja em Cabo Verde
da consciencialização e vivência por parte
dos leigos, sobretudo dos jovens e lem-
brou que devem os “leigos oferecer-se a
assumir as responsabilidades do funcio-
namento regular das comunidades, em
colaboração com os sacerdotes” (idem).
Assim, o último pronunciamento do bispo
goês anunciou um ideal, cuja concretiza-
ção foi entregue aos leigos:
A Igreja, mais do que dantes, olha espe-
rançadamente para as leiras leigas e
vai entregando aos leigos maiores res-
ponsabilidades. Que os leigos de Cabo
Verde sejam dignos desta hora de pro-
moção laical e nada recusem, nem mes-
mo os serviços difíceis; nem mesmo os
serviços normalmente desempenhados
pelos sacerdotes ou religiosos, a m de
que Cristo seja a grande luz nesta ter-
ra, uma luz a iluminar as cidades e as
aldeias, as casas situadas à borda das
estradas ou no recôndito dos montes.
Cristo, com todos, na pessoa dos cris-
tãos! Cada cristão um facho aceso no
meio das pequenas e grandes povoa-
ções deste vasto Arquipélago, - todo ele
pertença de Cristo! (ibidem, p. 6-5).
Essas passagens são exemplos de
vários momentos em que a simbiose entre a
identidade cultural cabo-verdiana e a identida-
de cristã foi a argamassa sob a qual este bis-
po construiu oseu diálogo com a sociedade.
Reparamos que o apelo ao compro-
misso do laicado já era uma demanda. Era
do conhecimento público, na altura, que o
Partido Africano para a Independência de
Guiné e Cabo Verde (PAIGC) vinha com
a força dirigente e a luz do povo da Guiné
e Cabo Verde. Nesse sentido impunha-se
que cada cristão fosse um facho aceso da
luz de Cristo. Essa tarefa foi uma das mui-
tas herdadas pelo primeiro bispo natural
de Cabo Verde.
152
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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III. A Transição Paradigmática
no Bispado de D. Paulino Évora:
da «Pertença Tradição/Memória»
à «Pertença Compromisso» (1975-2009)
O panorama religioso pós-indepen-
dência é marcado em termos denomina-
cionais pelo facto do catolicismo deixar
de ser politicamente privilegiado; pelo re-
conhecimento político e social da presen-
ça do Islão; e diversicação da presença
evangélica, pentecostal e neopentecostal
proveniente da África, América do Sul e
Extremo Oriente.
Pode-se armar que a primeira
fase do bispado de D. Paulino Évora foi
orientada para o resgate da Igreja, distan-
ciando-a do colonialismo e a enquadrando
na nova sociedade emergida com a Inde-
pendência Nacional. A preservação do ca-
tolicismo como elemento constituinte e es-
truturante da cultura cabo-verdiana foi um
objetivo explícito no quadro do propósito
da caboverdianização da Igreja Católica
em voga na altura, a par da promoção de
um maior compromisso dos clérigos, dos
religiosos e dos leigos para com a Igreja
(ÉVORA, 1982).
A Independência Nacional de Cabo
Verde estipulou formalmente que a Igreja
local, contrariamente à situação política
colonial, deixava de usufruir de uma po-
sição privilegiada perante a administração
política. Consequentemente, a unidade
política Cabo Verde-Guiné-Bissau e «o
retorno a África» tornaram possível a en-
trada de emigrantes muçulmanos e a or-
ganização do Islão no arquipélago nas dé-
cadas seguintes (SILVA, 2005), situação
que durante séculos havia sido contida.
O novo estado sobrepôs a noção
de nação africana a qualquer outro ideário
de nação (FERNANDES, 2006), no âm-
bito do projeto de retorno às origens afri-
canas, que dispensou o suporte religioso.
Essa orientação ideológica tem o condão
de romper com a secular ligação entre a
cultura cabo-verdiana e o cristianismo.
A preservação dessa memória foi,
por isso, um desao nos primeiros anos
do bispado de D. Paulino, mitigando-se à
medida que o fervor ideológico revolucio-
nário esmorecia, particularmente, a par-
tir do m da unidade Guiné-Cabo Verde,
de modo que as celebrações dos 450 da
criação da Diocese de Santiago, entre
1982-1983, foram a primeira grande ma-
nifestação da pujança católica no período
pós-independência (VASCHETTO, 1987).
Com maior consistência a partir
deste período, a pertença maciça da po-
pulação à Igreja católica, o enraizamen-
to do catolicismo no ethos cabo-verdiano
tanto serviram de base para os diálogos
entre os poderes político e religioso du-
rante a primeira República de Cabo Ver-
de, como foram os fundamentos morais
que legitimaram a intervenção pública
do clero no período da transição para o
regime democrático pluralista e nos pri-
meiros anos da segunda República (SE-
MEDO, 2016).
Entretanto, na segunda metade dos
anos noventa, o pressuposto demográ-
co que sustentava a condição maioritária
da catolicidade no arquipélago,assumiu
contornos teológicos fraturantesperante a
questão das profanações.Se em outubro
de 1996 os Padres de Santiago louvaram
a serenidade e o bom senso que os ca-
tólicos demonstravam perante tais acon-
tecimentos e anunciaram, entretanto, que
juntos tomariam “as medidas que se im-
põem para que as profanações tenham o
seu termo” (Comunicado/Denúncia in Ter-
ra Nova, de outubro de 1996, p. 8.), um
ano mais tarde o Bispo D. Paulino Évora
viu-se perante o imperativo de admitir a
possibilidade de cumplicidade do «reba-
nho de Deus» em Cabo Verde, no caso
das profanações (cf. A Semana, de 24 de
outubro de 1997, pp. 2-3).
153
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Constituía uma expectativa do Go-
verno da Diocese que a população, sendo
maioritariamente católica, apoiaria o cor-
po ministerial, por exemplo, colaborando
com as estruturas judiciais na apuração
dos responsáveis pelas profanações. A
deceção desta expectativa cou eviden-
ciada quando passou a ser considera-
da a possibilidade da cumplicidade dos
paroquianos e da participação daqueles
que andam colados à «batina do padre»
(PINA, julho 1998).
Esta situação despoletou, todavia,
profundas interrogações:
a) Poderia o corpo ministerial, sem a con-
ança na dos leigos, indicar o caminho
a seguir e esperar que abarque todos os
aspetos da vida social em que estes se
veem envolvidos?
b) Continuaria a Igreja local a acreditar no
homem cabo-verdiano com a mesma fé
com que acredita em Deus, aspeto, que,
segundo “Frei Camilo Torassa (1995), é
um apanágio da Igreja Católica?
c) Que pastoral para o contexto histórico
em que o pressuposto da pertença massi-
va da população ao catolicismo permane-
ce válido, mas em que se constata que o
“sentido da fé” (Lumen Gentium, n.º 12 in
Concílio Vaticano II, 1998, p. 27), ou seja,
«a indefetibilidade de adesão dos éis à
fé transmitida, a profundidade da penetra-
ção e a intensidade da transposição para
a sua vida», encontram limites nas outras
vivências sociais?
Enquanto espelho deste processo
reexivo, os últimos anos do governo do
Bispo D. Paulino Évora marcam o nasci-
mento de uma nova fase, em que a Igreja
local sinaliza o reconhecimento da evi-
dência de que a adesão massiva da po-
pulação ao seu credo não correspondia a
assunção do apostolado.Esse diagnósti-
coimpulsiona o fecho de mais um perío-
do na vida da Igreja Católica nas ilhas de
Cabo Verde, o do magistério prioritaria-
mente moral/político, que enforma o que
Cerrone (1983) descreve como a fase da
restauração, etornaimperativo a atualiza-
ção da ação pastoral.
IV. A Consolidação do Paradigma de
Pertença como «Compromisso» no Bis-
pado de D. Arlindo Furtado (2008-2017)
Se o bispado de D. Paulino Évora
teve como desao primordial a questão de
liberdade social e política, o bispado de D.
Arlindo Furtado, certamente, é marcado
pelos desaos que a liberdade pessoal,
subjetivamente objetivada, coloca à igreja
católica local.
Os desaos que a Diocese de San-
tiago de Cabo Verde enfrenta e enfrentou
nos tempos mais recentes são plurais e
podem ser sistematizados em três dimen-
sões. Na dimensão sistémicaesses desa-
os mostram-nos que, nos últimos anos,
a religião tornou-se o principal recetáculo
da exclusão gerada nos subsistemas eco-
nómico, político, jurídico, educativo. Por
exemplo, as referências a uma religiosida-
de difusa, não xada de forma institucio-
nal, têm sido recorrentes nas músicasrap
e hip-hop, veiculadasem discursos de de-
núncia dos males sociais e de contestação
a sociedade, associadas ao despertar de
uma “espiritualidade da libertação” (BAR-
RIOS, 2007 apud LIMA, 2016, p. 16).
A par disso, a diversicação da
oferta religiosa e espiritual marcada pelo
dinamismo do cristianismo evangélico e
neopentecostal, basicamente de origem
sul-americana e africana, a consolidação
da presença do Islão, a emergência de
novas religiosidades e de novas espiri-
tualidades; o fenómeno das seitas, o se-
cularismo e o satanismo, embora pouco
expressivos em termos estatísticos, inter-
pelamo catolicismo nas ilhas.
154
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Já na dimensão individual, tornou-
-se incontornável a reexão eclesiástica
sobre as questões da liberdade de esco-
lha religiosa do indivíduo, a privatização
da vivência religiosa, a mercantilização
dos bens espirituais; o sentido da fé do
leigo católico.
A pastoral da comunhão e da pro-
ximidade que apostou na evangelização
(2009-2010), na promoção do diálogo e da
coresponsabilidade pastoral (2011-12), na
consciencialização dos batizados de que
são discípulos missionários (2013-2016),
e que atualmente se tem orientado pela
promoção da paróquia viva, renovada e
missionária (2017-2020), retrata as estra-
tégias que a Igreja local, sob o bispado
de D. Arlindo Furtado, tem acionado pra
atender as interpelações que a sociedade
lhe impõe (DIOCESE DE SANTIAGO de
CABO VERDE, 2017).
Vivemos um período em que esta
igreja já tem programada uma mudança
na orientação que se tem acerca do que
é a paróquia. Falamos da consolidação
do novo modelo de governança paroquial
que abandona o «princípio territorial» do
enquadramento religioso de uma popu-
lação, em favor do «princípio associati-
vo» e cuja implementação efetiva simul-
taneamente «um discurso moderno de
libertação» e «um discurso moderno de
disciplinarização» (BOBINEAU; TANK-
-STORPER, 2008).
Esse programa pressupõe, en-
tretanto, que o compromisso pessoal
seja o fundamento da ligação do leigo
com a igreja. Assim, a liberdade pesso-
al dos leigos e as estruturais eclesiais
encontram-se perante o desao de cria-
rem sinergias mutuamente edicantes,
respeitando por um lado o princípio da
liberdade, hegemónico nos nossos dias
de democracia social, e o princípio da
disciplina, elemento estruturante de toda
a Igreja Católica Universal.
A consolidação do paradigma de
pertença atualiza-se como sentido na me-
dida em que, na sua exterioridade, possi-
bilita a construção de uma nova compati-
bilidade estrutural entre a religião católica
e a democracia social pluralista em Cabo
Verde. Isto é notório em algumas interven-
ções públicas do Bispo D. Arlindo Furtado.
Por exemplo, no dia 26 de março
de 2013, no programa «A Entrevista»
da Televisão de Cabo Verde, afirmou o
seguinte:
A Igreja tem duas coisas que deve as-
sumir e assume. Primeiro é o depósito
da fé, a verdade que nós recebemos
de Jesus Cristo, isto é invariável, que
nos tentamos aprofundar e formulá-
-la de forma cada vez mais adequa-
da. Depois há a forma de anunciar, a
forma de manifestar essa mesma fé,
que é chamada de pastoral. Isto deve
variar consoanteas necessidades de
cada época. Esse é o empenho que
a igreja deve ter, mas está sempre
presente a liberdade das pessoas
que, hoje, sobretudo, perante tantas
propostas imediatistas que o mundo
moderno apresenta, não estão todas
imediatamente disponíveis.
Na sua interioridade, a consolida-
ção do sentido de pertença como com-
promissoé uma resposta à necessidade
de reforço do sentido de comunidade en-
quanto espaço de “fusão de horizontes”
(GADAMER apud BAUMAN, 2004, p. 63):
A religião cristã tem uma proposta de
vida, que a gente assume na liberdade
(…). Se um grupo grande de pessoas
viverem intensamente a sua fé, dando
testemunho, encarnando na sua vida
a mensagem recebida de Jesus Cris-
to, seguindo, anal, os passos de Je-
sus Cristo, que é a vida do cristão, isto
é, outro Cristo, muito bem. Mas isso
depende muito da liberdade, da de-
155
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
cisão, do empenho de cada um e de
toda uma comunidade. Há momentos
em que os cristãos dão testemunho
exemplar e que atrai os outros, aliás
isso foi a vivência dos primeiros cris-
tãos. Os que ainda não eram crentes
diziam: «vede como eles se amam,
como são amigos entre si, como são
solidários, como vivem fraternalmente
entre si». Isso é uma interpelação de
todos os cristãos, em todos os tempos
(D. Arlindo Furtado, A Entrevista, 26
de março 2013).
Claramente, a Igreja local abdica
da condição de «igreja museu», secunda-
rizando as suas valências enquanto locus
tradicional, e orienta-se paulatinamente
como uma comunidade viva de éis, um
espaço compartilhado que resulta de ex-
periências compartilhadas.
Entendemos que o apelo ao com-
promisso, quando compreendido, partir
dos seus fundamentos sociológicos, revela
os esforços que têm sido desencadeados
no sentido da modernização da igreja local.
Entretanto, no contexto pós 11
de setembro de 2001, a «geopolítica do
atlântico»
II
gerou, internamente, uma es-
tratégia política que, de forma explícita,
fez com que Cabo Verde raticasse mais
seis Convenções relativas ao terrorismo
(BRITO, 2017), e, de forma implícita, visou
a promoção do papel social das igrejas
cristãs e a instrumentalização diplomática
da universalidade da identidade cristã.
A gradual elevação política do cris-
tianismo como uma das dimensões das
identidades nacional e cultural assegurou
um novo acoplamento político/religioso
que, paulatinamente, foi instituindo as co-
letividades religiosas como parceiras/coo-
perantes no processo de desenvolvimento
humano e social politicamente orientado
III
.
Esta estratégia, por razões diplomáticas,
históricas e demográcas, centrou a sua
atenção na Igreja Católica e culminou com
dois novos instrumentos jurídicos: o Acor-
do Jurídico entre a Santa Sé e o Estado de
Cabo Verde, de 10 junho 2013, e o Regime
Jurídico da Liberdade de Religião e de Cul-
to em Cabo Verde, de 16 de Maio de 2014.
É caso para se dizer que se, por ra-
zões de ordem interna, o bispado de D. Ar-
lindo é interpelado a reformatar o sentido
de pertença do leigo católico, por razões
de ordem externa, as roupagens negociais
diplomáticas que o cristianismo/catolicis-
mo confere a cabo-verdianidade tendem
a manter ainda atuais as simbioses entre
a identidade cristã e a identidade cultural
cabo-verdiana.
Considerações Finais
Em três momentos distintos, e sem
desconsiderar a complexidade desta pro-
blemática, evidenciamos que a restrutura-
ção do sentido de pertença na Igreja Cató-
lica local atende ora aos desaos de cariz
político, ora aos de natureza religiosa.
A igreja enquanto órgão social é
impelida a responder aos desaos que a
sociedade, na sua evolução, lhe coloca.
No caso dos bispados de D.José Colaço e
de D.Paulino Évora os desaos primários
eram de natureza política. A questão da
liberdade apresentou-se de forma distin-
ta no m do período colonial e nos inícios
do período da independência e o vínculo
construído com os seus membros em perí-
odos tão desaantes politicamente apelou
à tradição, à memória, ao lugar na história
que esta Igreja teve na constituição da so-
ciedade e do espírito cabo-verdianos.
As lutas pelo sentido da vida e da
realidade no contexto destes bispados
opuseram frente a frente instituições reli-
giosas e políticas. Não entranhemos as-
sim que o magistério desses dois bispados
tenha sido prioritariamente moral-político.
156
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O governo de D. Arlindo Évora,
entretanto, não encontra na evolução
política os seus desaos primários, mas
sim na evolução cultural. A centralida-
de dos seus desaos não advém da
liberdade enquanto valor político, mas
sim da liberdade enquanto valor cultural.
Assim, a diversidade religiosa, a liberda-
de religiosa, o consumismo, o relativis-
mo cultural, despontam como autênticos
desaos sociais à Igreja local
IV
. Não que
se trate de desaos meramente locais.
Pelo contrário, são desaos gerados de
forma global, o que desloca as lutas pelo
sentido da vida e da realidade do fren-
te a frente entre instituições religiosas
e políticas, a medida em que essa luta
se torna difusa, líquida, omnipresente na
vida social embora já não localizável ins-
titucionalmente.
De realçar, todavia, que o diálogo
da igreja local com as instituições políti-
cas e outras instituições religiosas ainda
busca e encontra suportes na sua rele-
vância demográca, cultural e histórica.
Tanto o Acordo Quadro de 2013
V
como
as explicações para a criação do pri-
meiro cardinalício cabo-verdiano
VI
olha-
ram para a história e daí retiraram a sua
plausibilidade.
Neste sentido, é uma ironia da
história que D. Arlindo Furtado, sistema-
ticamente, não destaquecom assiduida-
de a questão do peso tradicional e cul-
tural do catolicismo nas ilhas nos seus
pronunciamentos públicos, quando dois
momentos fundamentais do seu bispado
foram construídos com base nesse pres-
suposto. O presente parece ser o seu
único foco e o compromisso a via para a
construção do futuro que o seu governo
idealiza para a Diocese de Santiago.
Entretanto, esse reforço do ape-
lo ao compromisso terá de considerar
algumas barreiras sociais, inerentes ao
passado e à atualidade da igreja. Em pri-
meiro lugar, a religiosidade popular en-
raizada, derivada das insuciências his-
tóricas da missionação católica em Cabo
Verde, que afeta a dimensão cognitiva da
pertença dos éis à igreja, uma vez que
as crenças e as superstições comportam
outros «saberes» acerca do que é a reli-
gião católica e do que é a igreja.
Em segundo lugar, o menosprezo
secularista do catolicismo, gerado pela
sua separação do campo político/intelec-
tual, que afeta a dimensão motivacional
da pertença, uma vez que os leigos, ra-
ramente, encontram nas suas guras -
blicas políticas e intelectuais referências
sociais de pertença à igreja.
Por último, o feiticismo da subjetivi-
dade (BAUMAN, 2008), associadoà cultu-
ra do consumo e do prazer, que esconde a
autotransformação das pessoas em mer-
cadorias, o que afeta a dimensão prática,
a ação, na medida em que a construção
de uma identidade pessoal/cristã encon-
tra muitas outras propostas de construção
identitária concorrentes.
Depreendemos que, assim como
em muitas outras regiões do mundo, é
uma evidência que a modernização da so-
ciedade em Cabo Verde deixe a Igreja Ca-
tólica perante o imperativo de reetir sobre
a reestabilização dos limites das suas ex-
pectativas totalitárias, no sentido de abar-
cadoras de toda a realidade social.
Nesta direção, a questão da res-
truturação do sentido de pertença interli-
ga-se com a dimensão que dá conta das
mudanças tanto nas Igrejas instituídas,
como nas igrejas minoritárias e seitas, o
que segundo “Dobbelaere (2004) corres-
ponderia a secularização organizacional
da igreja ou seitas. Todavia, a conrma-
ção dessa hipótese exige a corrobora-
ção de mais observações empiricamente
fundamentadas.
157
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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Recebido em 31/07/2017
Aprovado em 04/09/2017
I Adilson Dilomeno Carvalho Semedo. Doutor em
Sociologia pela Universidade do Porto. Professor da
Universidade de Cabo Verde. Contato: adiguido@
hotmail.com
II Segundo “Brito (2017), Cabo Verde está situado no
cruzamento de importantes rotas marítimas e aéreas,
destinadas aos países ocidentais, mais visados pelas
organizações terroristas, de inspiração islâmica, como
sejam os Estados Unidos, a Espanha, a França e o
Reino Unido. Para além do tráco de passageiros que
passa pelo nosso território, salienta que estas rotas
movimentam recursos energéticos e minerais, im-
portantes para as economias do Norte do Atlântico.
Nesta perspetiva, defende que o poder funcional ou
relacional do arquipélago pode constituir justicação
para atos terroristas no mar, em portos e aeroportos
internacionais do país.
III É exemplicativo o protocolo assinado entre a -
mara Municipal de Praia, a capital do país, e a Paróquia
Nossa Senhora da Graça, no dia 15 de Agosto de 2015,
com o objetivo de estabelecer os princípios e as bases
de cooperação nas áreas de cultura, património, urba-
nismo, desenvolvimento social e juventude.
IV Vide a este respeito a entrevista de D. Arlindo Fur-
tado ao jornal Expresso das ilhas, de 16 de abril de
2014, p. 16-19.
V Acordo entre a República de Cabo Verde e a Santa
Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica em
Cabo Verde, Artigo 15, Alínea 1.
VI Vide “Dom Arlindo, o nosso primeiro cardeal: Um
poliglota entendido em textos canónicos”, disponível
em http://anacao.cv/2015/01/12/dom-arlindo-o-nosso-
-primeiro-cardeal-um-poliglota-entendido-em-textos-ca-
nonicos/, acesso em: 01 abr. 2017; Expresso das Ilhas,
Praia, 7 de janeiro de 2015, p. 4-5.
159
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Entre imagens, modernidade e religião:
a iconologia protestante no Brasil
Entre imágenes, modernidad y religión:
la iconología protestante en Brasil
Pictures, modernity and religion: a Protestant iconology in Brazil
Priscila Vieira e Souza
I
Resumo:
Esse artigo propõe examinar as relações entre modernidade,
protestantismo e fotograa a partir de um percurso teórico e de um
acervo imagético. O primeiro busca compreender as relações entre
modernidade, visualidade e a história do protestantismo no Brasil.
Tais inter-relações compõem a primeira parte do texto. A segunda
parte do texto descreve o acervo imagético. As análises apresentadas
enfocam duas coleções: os arquivos do Centro Audio Visual Evangélico
- O CAVE; e The Grubb Collection, conjunto de álbuns pessoais do
missionário britânico Keneth Grubb. O texto apresenta resultados
parciais da pesquisa, tais como uma breve descrição de três tipologias
classicatórias das imagens protestantes; o status privilegiado da
fotograa; e dois recortes temáticos que agregam imagens dos dois
acervos estudados.
Palavras chave:
Modernidade
Fotograa
Protestantismo
Visualidade
160
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Este artículo propone examinar las relaciones entre modernidad,
protestantismo y fotografía a partir de un recorrido teórico y de un
acervo imagético. El primero busca comprenderlas relaciones entre
modernidad, visualidad y la historia del protestantismo en Brasil. Estas
interrelaciones componen la primera parte del texto. La segunda parte
del texto se centra en el acervo imagético. Los análisis presentados
describe dos colecciones: los archivos del Centro Audio Visual Evangélico
- el CAVE; y The Grubb Collection, conjunto de álbumes personales del
misiónero británico Keneth Grubb. El texto presenta resultados parciales
de la investigación, tales como una breve descripción de tres tipologías
clasicatorias de las imágenes protestantes; el estado privilegiado de la
fotografía; y dos recortes temáticos que agregan imágenes de los dos
acervos estudiados.
Abstract:
This paper is about the relation between modernity, Protestantism,
and photography. The rst part of the paper explores a theoretical
framework to understand these relations and to develop a visual
approach to the history of Protestantism in Brazil. The second part
of the paper has its focus on analyzing pictures and images from two
archives: the Evangelical Audiovisual Centre (CAVE); and The Grubb
Collection, a collection of personal photographs produced by Keneth
Grubb, a British Missionary in Brazil. The paper then presents partial
results of this research, such as a proposal of a typology to classify
three dierent kinds of Protestant images; the privileged status of
photography in these relations; and two themes that are central in the
pictures and images of both archives.
Palabras clave:
Modernidad
Fotografía
Protestantismo
Visualidad
Keywords:
Modernity
Photography
Protretantismo
Visuidade
161
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Entre imagens, modernidade
e religião:
a iconologia protestante no Brasil
1. Introdução: pesquisa, contexto
e metodologia
Esse artigo propõe examinar as re-
lações entre modernidade e protestantis-
mo a partir de um percurso teórico e de um
acervo imagético. O primeirobusca com-
preender as relações entre modernidade,
visualidade e a história do protestantismo
no Brasil. Tais inter-relações compõem a
primeira parte do texto. O acervo imagé-
tico é composto por duas coleções: os ar-
quivos do Centro Audio Visual Evangélico
- O CAVE, abrigado pelo Centro de Me-
mória Metodista da Universidade Metodis-
ta de São Paulo (UMESP), em São Ber-
nardo do Campo, Estado de São Paulo; e
The Grubb Collection, conjunto de álbuns
pessoais do missionário britânico Keneth
Grubb, que se encontram no Royal An-
thopologycal Institute (RAI), no centro da
cidade de Londres, Reino Unido. Breve
descrição das análises empreendidas e
alguns de seus principais resultados, en-
tre eles a compreensão de uma iconologia
protestante no Brasil, compõem a segun-
da parte da reexão.
1.1. A questão de pesquisa
e seu contexto
Antes, contudo, de adentrar as
questões anunciadas, cabe demonstrar os
principais elementos que compuseram a
pesquisa, desenvolvida junto ao Centre for
Iberian and Latin American Visual Studies
CILAVS, na Universidade de Londres, du-
rante pesquisa pós-doutoral
II
empreendida
entre 2015 e 2016. De forma simples e di-
reta, pode-se enunciar o problema-central
da seguinte forma: considerando os víncu-
los dos protestantes com processos mo-
dernizadores e a percepção iconoclasta do
grupo, qual o contexto e o rastro histórico-
-icônico das imagens caveanas?
A formulação da questão coloca a
necessidade de examinar cada parte de
seu enunciado. Nesse artigo abordamos a
relação ente protestantismo e modernidade
e apresentamos resultados da busca pelo
contexto histórico-icônico das imagens ca-
veanas, que compõem o maior acervo de
imagens protestantes encontrado no país.
A expressão “percepção iconoclasta” será
desconsiderada, em respeito ao espaço e
a necessidade de abordar as outras ques-
tões com maior profundidade. Vale ressaltar,
contudo, que a percepção iconoclasta pro-
testante está intimamente ligada às relações
históricas do grupo com a modernidade
III
(BESANÇON, 1997). A questão apresen-
tada faz referência a pesquisa anterior, de
doutoramento, em que o arquivo do CAVE
foi organizado e analisado. O CAVE foi uma
agência de mídia que produziu programas
de rádios, informativos e muitas imagens,
que eram usadas para montar dialmes e
diapositivos: os lmes xos, que uniam a
técnica de projeção de imagens às de re-
produção sonora. A sonoplastia desse tipo
de lme era realizada de duas formas: atra-
vés de aparelhos técnicos como gravadores
acoplados a alto-falantes; ou, de modo mais
rudimentar, a leitura no microfone do texto
correspondente a cada quadro/ imagem.
Institucionalmente, o CAVE era
uma organização sem ns lucrativos, com
um complexo sistema administrativo
IV
,
e embora não tenha sido uma experiên-
cia única na América Latina
V
, certamente
destaca-se na história de produção audio-
visual brasileira, especialmente por dois
motivos: o nanciamento estrangeiro, in-
dependente de apoio governamental; e a
capilaridade alcançada. Os produtos do
CAVE chegavam, através de missionários
residentes ou de viagens missionárias,
aos lugares mais distantes do país.
162
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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A agência CAVE funcionou entre
os anos de 1951 e 1971. Após 45 anos
do fechamento do Centro Audio Visual
Evangélico – CAVE, e seu quase esqueci-
mento na memória protestante, o conjunto
de documentos recolhido pelo Centro de
Memória Metodista – CMM abriga 1435
imagens, 361 eslaides e 20 dialmes com-
pletos. Pelos catálogos que compõem o
acervo documental, isso é um pequeno
remanescente. Essa intensa produção re-
alizou-se com os objetivos de educação/
formação e evangelização, conforme os
estatutos da organização. Durante a pes-
quisa realizada para doutoramento, esses
arquivos foram organizados; catalogados;
a partir das informações da etapa de ca-
tálogo, selecionou-se um conjunto menor
para análise; tal conjunto foi digitalizado;
e, nalmente, analisado.
Os resultados dessa pesquisa pré-
via (de doutoramento) apontaram para as
relações entre os protestantes e os pro-
cessos modernizadores das sociedades
ocidentais e, especicamente, do Brasil.
Uma das questões, então, da pesquisa
seguinte (aqui parcialmente apresenta-
da) era se tal relação se dava no âmbito
do CAVE ou se seria uma característica
mais ampla, presente em outras imagens
produzidas por protestantes. Estabeleci-
do um primeiro recorte histórico, buscou-
-se, então, identicar imagens anteriores
ao CAVE para a análise comparativa. Às
possíveis semelhanças entre as imagens,
o rastrohistórico propriamente, propomos
chamar iconologia. O termo surge, então,
inicialmente, como hipótese e também
passou a integrar a metodologia de pes-
quisa, apresentada a seguir.
1.2 Percursos e procedimentos
metodológicos
Em termos metodológicos, o per-
curso teórico foi construído com base em
pesquisas bibliográcas que privilegiam
intersecções entre dois dos três elemen-
tos estudados (modernidade, imagem,
protestantismo). Mostrou-se de grande re-
levância obras sobre a história do protes-
tantismo no Brasil, tanto pelo tipo de análi-
se contextual das imagens, quanto para a
compreensão das relações estabelecidas
no contexto brasileiro. Sobre moderni-
dade e religião, o tema da secularização
mostrou-se incontornável. No presente
texto, destaca-se a obra Uma era Secular,
do pensador canadense Charles Taylor
(2010). Considerada por Jose Casanova
(2010) como uma abordagem que revisita
o debate sobre secularização e suas di-
ferentes nuances, fortemente presente na
sociologia da religião durante o século XX.
Contudo, o sociólogo espanhol diferencia
o trabalho do autor canadense dizendo
que, “na verdade, o interesse principal de
Taylor não é oferecer um balanço da se-
cularização em termos das teorias padrão
de secularização, que medem as taxas
de mudanças (principalmente queda) de
crenças religiosas e práticas em socieda-
des modernas contemporâneas” (CASA-
NOVA, 2010, p. 265)
VI
. Para ele, o interes-
se principal de Taylor seria uma “descrição
fenomenológica das ‘condições’ seculares
de crença” (Idem).
O apoio na obra de Taylor deve-
-se a dois principais motivos. Primeiro, o
deslocamento que ele faz, ao recolocar a
questão da fé na contemporaneidade. A
pergunta é realizada então, não em ter-
mos de secularização, mas das possibili-
dades de crer. Nessa perspectiva, a falta
da fé nas sociedades atuais (em compa-
ração com as sociedades pré-modernas)
não é simplesmente uma condição de au-
sência de crença, mas sim uma condição
histórica. O outro motivo para a escolha
de Taylor é que em seu método genea-
lógico ele busca na história as raízes de
fenômenos que emergiram com força a
partir do século XVII, como o humanismo
e o secularismo modernos. Ao propor tal
percurso, toca o ponto que aqui enfoca-
mos: os vínculos entre protestantismo e
163
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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modernidade, desde os movimentos reli-
giosos que se deram no entorno da Re-
forma Protestante.
Os resultados das análises imagé-
ticas, expostos na segunda parte do ar-
tigo, foram construídos com respaldo na
investigação iconológica. Compreende-se
iconologia como estudo histórico-antropo-
lógico centrado nas imagens e capaz de
transcender os marcos disciplinares em
privilégio das relações imagéticas, então
analisadas transdisciplinarmente. Para
tanto, a abordagem antropológica perma-
nece como perspectiva e adotou-seproce-
dimentos metodológicos próprios à área
da comunicação
VII
. Isso se justica pelo
fato de que as imagens foram considera-
das também como produto midiático, e em
conjunto com os textos que lhes cercam.
Dessa forma, privilegiou-se elementos da
análise de conteúdo, considerando o pro-
duto visual dentro do contexto cultural-his-
tórico-imagético.
Convém observar que a análise de
conteúdo realizada não se limita aos as-
pectos quantitativos do método. Assim,
agrega às categorias analíticas (HAN-
SEN, 1998, p. 106-108): a) questões rela-
cionadas à técnica e estética das imagens
(cores, planos, enquadramento etc.); b) a
observação das relações entre imagem e
texto, nos produtos em que os dois ele-
mentos estão vinculados; c) a apresenta-
ção de objetos, cenas, paisagens que em
uma fase exploratória pareceram repetir;
d) e um espaço descritivo-analítico em que
são marcadas percepções subjetivas que,
conforme Priest (PRIEST, 2009, p. 172),
enriquecem a análise de conteúdo com a
aproximação etnográca. Seguimos o que
a autora chama de “close readings”, que
considera a experiência do observador
com a mídia observada, em analogia com
a ‘observação participante’ no ambiente
social. Assim, o resultado nal dessa eta-
pa, além de identicar padrões repetidos
no conjunto de imagens já revela as rela-
ções contextuais. Por m, categorizamos
as imagens pesquisadas, a partir também
do percurso teórico realizado e efetuamos
a análise comparativa.
A partir das observações acima, so-
bre os modos de construção da pesquisa,
passamos a primeira parte anunciada: o
percurso teórico.
2. Modernidade, protestantismo
e visualidade
No Brasil, a associação entre as
então novas tecnologias visuais, especial-
mente a fotograa e a modernidade mar-
cou fortemente a passagem do século XIX
para o século XX. Luciana Martins (2013)
apresenta essa relação através de fotos
e documentários produzidos nas primei-
ras quatro décadas do século XX. A au-
tora cita, por exemplo, como a represen-
tação do indígena romantizado na pintura
é sobreposta na fotograa pelo “sucesso
na aculturação”. Para Martins a fotograa
foi conscientemente eleita por positivis-
tas para difusão de seus ideais e projetos
de sociedade: “como positivistas brasilei-
ros sabiam bem, o poder do estado mo-
derno dependia fortemente do poder das
imagens”
VIII
(MARTINS, 2013, p. 1).
Também na virada dos séculos
XIX-XX, o protestantismo de missão che-
gava ao Brasile era recebido por liberais,
especialmente nos centros urbanos, como
um aliado da modernização. A associação
entre protestantismo, modernidade e pro-
gresso no Brasil aparece tanto na análise
do pensamento social protestante de Silas
Souza quanto na historiograa clássica de
Antônio Gouvea Mendonça (MENDON-
ÇA, 2008). Para Souza, o liberalismo “era
parte constitutiva da mensagem evangé-
lica” quando foi implantado na América
Latina (SOUZA, 2005, p. 227–228). Esse
seria um aspecto facilitador, já que parte
da sociedade nos países latino-america-
164
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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nos simpatizava com correntes políticas e
econômicas liberais.
As expectativas eram, então, du-
plamente reforçadas .Por um lado, liberais
epositivistas esperavam do protestantis-
mo de bases norte-americanas e euro-
peias novos ares religiosos, alternativos
à hegemonia católica, e novos ideais so-
ciais, associados ao desenvolvimento e
progresso.Por outro lado, os missionários
norte-americanos eram fruto da doutrina
do destino manifesto, imbuídos da espe-
rança de empreender uma tarefa messiâ-
nica-civilizatória.
O protestantismo norte america-
no, responsável pela implantação da
religião no Brasil, desenvolveu-se com
características próprias ao seu contexto.
Contudo, a inuência dos protestantes
europeus foi uma constante. Prova disso
é o avivamento wesleyano vivido na In-
glaterra ter se propagado e difundido com
velocidade do outro lado do Atlântico. As-
sim, aassociação entre protestantismo e
modernidade, que emergiu no contexto
brasileiro na passagem para o século XX,
possui raízes históricas que remontam à
Reforma Protestante. Em sua descrição
da “nossa era secular”, o pensador ca-
nadense Charles Taylor (2010) apresen-
ta uma narrativa que perpassa a Idade
Média, em busca de deslocamentos que
culminariam nas rupturas dos reformado-
res. Em seguida, prossegue medievo e
renascença à dentro, ressaltando traços
da secularização em curso.
Em jornada genealógica, Taylor re-
toma movimentos religiosos que busca-
vam uma devoção mais intensa e interior,
ainda três séculos antes da Reforma Pro-
testante, como aparece nos escritos e prá-
ticas do Mestre Eckhart, século XIII. O au-
tor canadense ressalta que não se tratava
de um caso isolado, mas “um grande nú-
mero de iniciativas nessa direção” vigorou
durante o medievo, tanto entre o clero me-
nor quanto entre o “crescente número de
laicos mais cultos e reexivos”(TAYLOR,
2010, p. 93). Esses grupos teriam criado
uma elite religiosa, diferenciada do povo,
mas que também não era clero. Prepara-
va-se, assim, o ambiente propício à Refor-
ma do século XVI.
Tais grupos reforçavam uma espiri-
tualidade centrada no indivíduo, o que se
diferenciava das práticas mais coletivas
e institucionais do período. Taylor mostra
como o fomento dessa devoção individu-
alizada abriu espaço e lançou as bases
para o desenvolvimento do humanismo
que oresceria a partir da Renascença.
Esses aspectos religiosos são abordados
como movimentos no pensamento e nas
práticas que culminariam, no século XVIII,
com o deslocamento da razão para o cen-
tro da compreensão do mundo. Em sua-
narrativa histórico-losóca, Taylor enfati-
za o quanto a racionalidade moderna era
impensável e improvável alguns séculos
antes dela emergir no ocidente.
A dinâmica de sobreposição da ra-
zão à fé na modernidade revela tensões
culturais da história do Ocidente. Após um
longo período em que a fé ocupou o lugar
central no pensamento e nos fundamentos
das sociedades, inaugurou-se um período
em que a centralidade do pensamento (e
do sentido) recaiu sobre o homem e a ra-
zão. Amaral exemplica esse movimento,
ressaltando que “no século XVII, Deus foi
uma hipótese necessária para Descartes
e Newton, mas uma hipótese. No século
XVIII, podendo, a hipótese deveria ser evi-
tada” (D’AMARAL, 2009, p. 17).
A Reforma Protestante consolida
dentro da religião elementos que corres-
ponderiam a modernidade e mesmo com
as correntes anti-religiosas do moderno.
Dentre tais elementos, Taylor destaca a
individuação e a autonomia, diretamente
ligados ao enfraquecimento institucional
da religião: ao estimular a relação pessoal
165
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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com o divino, a igreja torna-se cada vez
menos necessária para o orescimento
espiritual. Doutrinas como a pré-destina-
ção calvinista também retirariam da igre-
ja seu poder de controle dos indivíduos:
cada um passava a ser dono da verdade
sobre a sua salvação.
A Reforma ainda engendrou ques-
tões que possibilitariam a secularização,
como o que Taylor (2010, p.103) chama
de deslocamento do “centro de gravidade
da vida religiosa”. O poder de Deus, na
concepção mais individualizada e menos
ritualizada da fé, deixava de operar a par-
tir de sacramentais ou lugares sagrados.
De certa forma, isto signicaria a quebra
da distinção entre sagrado e profano:
“para os salvos, Deus santica em todo
lugar, por isso também na nossa vida di-
ária, nosso trabalho, nosso casamento e
assim por diante” (TAYLOR, 2010, p.103).
Então, se o salvo vive o sagrado em todo
o tempo e em todo lugar, todos as dimen-
sões da vida são sagradas e, por isso,
devem ser ordenadas a partir de uma per-
cepção religiosa. Contudo, diferente do
que havia até então, este ordenamento
não signicava que todos fossem mem-
bros da igreja ou, principalmente, que to-
dos fossem salvos – porque esta questão,
a partir daquele momento, seria individu-
al. Por isso, embora o ordenamento da
totalidade da vida fosse um projeto com
motivações religiosas, não se tratava de
um empreendimento da religião, nos sen-
tidos de salvação e devoção.
Seria, portanto, nesta direção que
se desenvolve a distinção entre público
e privado. E, neste sentido, tal distinção
tratava-se de uma maneira de pensar uma
sociedade ordenada, cujo ordenamento
foi fabricado por vias religiosas, mas em
que nem todos eram salvos, pessoas de
fé. A distinção teria, assim, um duplo sen-
tido: 1) organizar a vida religiosa em uma
sociedade secular, no sentido em que
essa sociedade agora abrigava salvos e
não-salvos, sendo esta uma questão pes-
soal; 2) e, principalmente, organizar a vida
não-religiosa (pública) em uma sociedade
cujo ordenamento era divino, apesar de
nem todos crerem ou estarem destinados
a viverem como salvos.
Uma vez existindo a distinção, a
possibilidade de separar a dimensão da fé
da vida social, o espaço público desenvol-
ve-se junto a outras mudanças em curso,
ao próprio pensamento moderno. Anal,
congura-se como o lugar da racionalida-
de cientíca, da objetividade e da política.
Quando a sociedade já não precisaria de
um ordenamento que fosse a partir do reli-
gioso, ainda que posto como uma propos-
ta secular, o espaço público se tornaria,
também, lugar ausente de religião e de fé.
Neste ponto, a fé já deixara de ser uma
questão universal; contudo, a verdade,
ou, pelo menos, o verdadeiro prosseguiria
universal e necessário.
A noção de secularização foi
cunhada no século XX como tentativa de
descrever o enfraquecimento religioso
que aparecia, naquele momento, como
consequência ou mesmo sintoma dos
processos modernizadores. Um longo
debate travou-se na sociologia e a secu-
larização foi pensada em diversas cama-
das: a individual, que percebia a drástica
redução do número de pessoas que cre-
em (atualmente questionável); a camada
institucional, pensada a partir da perda de
relevância social das igrejas.Sem aden-
trar em profundida no debate, vale res-
saltar que a noção de secularização mar-
ca a passagem para o moderno. De fato,
parece haver consenso entre estudio-
sos, que no medievo, a religião abrangia
o todo social e, assim, fundamentava a
construção da sociedade, da cultura, das
relações entre indivíduos, a formação de
comunidades
IX
. O religioso desempenhou
papel encompassador (MARIZ, 2006) por
um longo período da história do ocidente.
A divisão entre público e privado, então,
166
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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está ligada ao deslocamento da religião
do centro da sociedade, exercendo fun-
ção de coesão social, para as dimensões
da vida familiar, das opções pessoais. O
público tornou-se, então, o lugar de cons-
trução e denição da sociedade, com
uma racionalidade especíca, que se ins-
tituiu como cientíca, objetiva.
Os vínculos entre protestantismo
e modernidade, conforme Taylor aponta,
estão arraigados na história. A consolida-
ção da divisão entre público e privado, no
sentido de o religioso ser do âmbito do pri-
vado, embaça a percepção de que o que
seria a modernidade iniciou-se com movi-
mentos religiosos. Considerando o papel
encompassador da religião, não havia ou-
tro lugar em que esses traços pudessem
ser gerados.
2.1 Protestantes, modernos e americanos:
inuências do puritanismo
O protestantismo que chega ao
Brasil atravessou primeiro o norte-atlânti-
co. Ele advém dos Estados Unidos, car-
regando herança anglo-saxã, e transfor-
mou-se na América. O protestantismo
norte-americano surge com a migração de
grupos puritanos da Inglaterra para o novo
continente. O puritanismo pode ser deni-
do pela mescla de inuências de doutrinas
protestantes gestadas em diversos países
da Europa. Contudo, o embasamento te-
ológico é calvinista e, por isso, é conside-
rado uma ramicação desse pensamento
(Mendonça, 2005).
Os puritanos tinham fugido da Grã-
-Bretanha por causa das perseguições da
rainha Maria, a partir de 1555. Muitos fo-
ram para Genebra, onde estiveram ainda
mais imersos no calvinismo. Parte deles
retornou para a Inglaterra no reinado de
Elizabeth. Algumas das características
puritanas eram a oposição radical a fes-
tas populares, reivindicação de reformas
na Igreja Anglicana – a acusavam de ser
romanizada e hierarquizada ao extremo.
Também eram dedicados aos estudos
da Bíblia e, portanto, grandes conhece-
dores, de onde tiravam fundamentações
para suas demandas. Defendiam uma
moralidade restrita e rígida, exigindo que
a Igreja da Inglaterra “adotasse disciplina
severa contra clérigos e leigos cuja con-
duta moral não satiszesse os padrões
elevados do modelo genebrino” (MEN-
DONÇA, 2005, p. 64).
Sua oposição ao anglicanismo e a
posição republicana de parte do grupo
X
gerou perseguições da Igreja inglesa e
muitos puritanos foram para a então co-
lônia americana, “a m de construir uma
nova sociedade, mais coerente com suas
aspirações” (CUNHA, 2007, p. 38). De
fato, eles foram muito inuentes nos Es-
tados Unidos, se viam com a missão de
“estabelecer um novo Estado puritano que
servisse de orientação a todos os cris-
tãos em toda parte do mundo” (Idem). A
fonte no calvinismo de Genebra embasou
a compreensão de que a fé puritana de-
veria afetar aspectos tanto individuais –
com a moralidade comportamental rígida
– quanto das estruturas sociais, adaptan-
do o “dogma reformado às necessidades
de uma religião pública e pessoal” (MEN-
DONÇA, 2005, p.64).
O calvinismo puritano, observa
Mendonça (2005, p.69), ainda hoje domina
grande extensão da área do protestantis-
mo, no mundo, “especicamente naquela
que percorre o longo caminho Inglaterra –
Estados Unidos – América Latina”. Desta-
cam-se três características do puritanismo
que, dentre as que permanecem presen-
tes no protestantismo brasileiro (segundo
Mendonça, 2005), contribuem com a com-
preensão das inter-relações com moderni-
dade e visualidade.
O denominacionalismo é uma das
marcas da história da migração puritana
para as Américas. Fugindo de persegui-
167
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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ções e guerras de religiões na Europa,
eles se embrenharam na missão de cons-
truir uma sociedade que fosse religiosa e
ao mesmo tempo plural. Entendendo a
realidade de uma igreja do Estado como
opressora, eles criaram o multi-denomi-
nacionalismo. Essa tendência facilitou a
expansão do protestantismo, pois torna-
va a estrutura exível e, portanto, ajustá-
vel a novas realidades políticas e sociais.
Nos Estados Unidos, a valorização da
liberdade eclesiástica foi essencial para
a formação do modelo do país, com leis
que asseguravam a existência de diver-
sas denominações – característica leva-
da para o Brasil.
Na experiência norte-americana,
as instituições eclesiásticas se diferen-
ciavam pelas formas de governo, algu-
mas práticas e doutrinas menores. Havia,
no entanto, uma unidade ao redor de um
conjunto básico de valores e princípios e
um espírito cooperacionista, que foi funda-
mental no posterior empreendimento das
missões internacionais. O denominacio-
nalismo foi criado para lidar com a tensão
entre a construção de uma sociedade que
ao mesmo tempo fosse fortemente religio-
sa e preservasse a escolha individual.
A segunda característica puritana
é a ênfase na pregação, complementada
pela adoção de simplismo litúrgico. Essa
marca, também presente no protestantis-
mo brasileiro, tem sua origem em uma das
oposições dos puritanos à Igreja inglesa.
A liturgia anglicana, que era ligada aos ri-
tos medievais, foi simplicada ao extremo,
com perda de ritualística e simbologia. A
formação da então “nova” sociedade tam-
bém abriga essa característica: as aten-
ções recaem sobre o discurso. A centra-
lidade da pregação exigiu “um elevado
padrão de preparo acadêmico dos pasto-
res” e, por outro lado, “o modelo puritano
de costumes e as implicações do teste-
munho pessoal como exemplo da própria
pregação exigiam dos pastores elevados
padrões de vida moral” (MENDONÇA,
2005, p.80). O esforço de preparar esses
líderes, aptos à pregação intelectualizada,
gerou a demanda de escolas – Harvard,
fundada em 1636, é em parte fruto desse
tipo de preocupação. Havia, ainda, a preo-
cupação de estabelecer uma cultura inte-
lectualizada – capaz, portanto, de assimi-
lar os sermões ministrados nas igrejas.
Por m, o asceticismo é outro for-
te elemento puritano que chegou, séculos
depois, ao Brasil. Junto ao simplismo litúr-
gico e retirada de simbologias dos hábitos
anglicanos, os ideais ascéticos do grupo
inuenciam diretamente a visualidade.
Essa proposta puritana ascética de
relação com o mundo é ilustrada no livro
O Peregrino, escrito por John Bunyan,
em 1678. O texto é rico de linguagem
visual, sendo que as edições ilustradas
foram amplamente aceitas. O texto nar-
ra a história de um homem que tem que
escolher entre dois caminhos: um ás-
pero e estreito, em direção à Cidade de
Deus e outro largo e prazeroso, que leva
à Cidade da Destruição. Sua opção pelo
primeiro o leva a uma jornada de dicul-
dades, tentações e sofrimentos. Mendon-
ça (2005, p.68) analisa como a alegoria
“contém elementos desviantes da teolo-
gia calvinista” e cita como principal a pos-
sibilidade do indivíduo escolher, mesmo à
beira da morte, seguir para o outro cami-
nho – aspectos contrários à forte ênfase
calvinista na “graça irresistível e a perse-
verança dos santos” (Idem).
A obra de Bunyan inuenciou for-
temente a gravura “O Caminho Largo e o
Estreito
XI
”. Segundo estudo de Leonildo
Campos, o quadro teve presença expres-
siva nas casas e ambientes protestantes
no Brasil, especialmente durante a primei-
ra metade do século XX (CAMPOS, 2014).
Ele teria sido desenhado na Alemanha,
em 1862. Posteriormente, foi publicado e
amplamente difundido na Inglaterra.
168
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O quadro dos dois caminhos é
um antecedente pictórico de fotografias
protestantese traz elementos que apa-
recem nas imagens da câmara escura,
produzidas durante o século XX no Bra-
sil, como adiante apresentamos. Três
desses elementos são marcantes. O
primeiro, uma alegoria que lança mão
do realismo, em detrimento do simbo-
lismo: prédios, pessoas e até mesmo
os caminhos, tudo é desenhado com
uma perspectiva realista. O segundo
elemento é o uso da imagem para a re-
presentação de realidades espirituais.
Por fim, o cerceamento da polissemia
imagética pelo texto: uma das versões
do quadro possui grande quantidade de
texto, tanto indicando o que as figuras
são (“Teatro”, “Clube” e outros) quanto
apresentando referências bíblicas para
as figuras.
Neste ponto inicia-se o trabalho
iconológico. Antes, contudo, de nele
adentrar mais detalhadamente, ressal-
tamos o quanto essa história influencia
a chegada e implantação do protestan-
tismo no Brasil. Mesmo com os séculos
que se passaram entre o berço (ainda)
colonial dos ideais puritanos que se ins-
talaram na América do Norte e o início
do protestantismo no Brasil, a preten-
são de pluralidade foi mantida. Assim,
chegaram em solo brasileiro, a partir
do final do século XIX, missionários de
diferentes tradições denominacionais:
congregacionais, presbiterianos, batis-
tas – para citar alguns. Uma marca pre-
sente na decisão dessas pessoas em
enfrentar os desafios de uma vida em
locais de menor estrutura do que seu
próprio país era a compreensão de que
o catolicismo não seria suficientemente
cristão e estaria demasiado deturpado,
mais próximo ao paganismo (CUNHA,
2007, p.39). Esses empreendimentos
missionários também foram estimula-
dos pelos avivamentos do século XIX,
que levaram renovação e engajamento
religioso a todo os Estados Unidos, for-
talecendo os grupos evangelicais.
Pode-se armar, então, que dois
fatores levaram à associação entre pro-
testantismo e modernidade no Brasil:
aspectos históricos mais distantes, que
podem ser identicados nos movimentos
pré, durante e pós Reforma; e a origem
norte-americana dos missionários. Vale
lembrar que no nal do século XIX, os
EUA emergiam como um potencial eco-
nômico, considerando a América Latina
como sua óbvia área de inuência. Os
aspectos históricos foram na maior parte
das vezes usados supercialmente como
argumento para deslegitimar a cultura na-
cional. Faziam-se comparações de rique-
za das nações do Norte-Atlântico, desta-
cando que as protestantes seriam mais
ricas e ‘desenvolvidas’ que as católicas.
As comparações entre países procura-
vam “provar a superioridade civilizatória
do protestantismo, que se espalhava tanto
no progresso material como moral dos pa-
íses anglo-saxões” (MENDONÇA, 2008,
p.132). Doutrinas e práticas católicas se-
riam responsáveis pelo “atraso material e
moral dos países latinos” (Idem). À parte
a argumentação rasa (que coloca na con-
ta apenas da religião os múltiplos proces-
sos e fatos que se inscrevem na história
das sociedades), a relação histórica entre
protestantismo e modernidade é densa,
intrínseca. Envolve processos de seculari-
zação e deslocamentos que engendraram
mudanças profundas nas formas de pen-
sar e de experimentar o mundo.
Importante ainda ressaltar, as
ambiguidades dessa relação entre pro-
testantismo e modernidade. Ao mesmo
tempo que aspectos do estilo de vida
“moderno” são condenados e integram
o “largo caminho” que conduz à punição
eterna, outros desenvolvimentos moder-
nos são assimilados. A herança moderna
histórica, da Reforma Protestante tensio-
na, assim, com a ascese puritana.
169
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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3. Imagens e fotograas protestantes
no Brasil
O que propomos aqui chamar de
iconologia protestante no Brasil é o con-
junto de imagens produzidas por pessoas
e/ou organizações que se auto denem
como protestantes.Como mencionado
acima, o termo iconologia agregou à pes-
quisa tanto uma hipótese quanto um mé-
todo. Conforme os resultados dos acervos
já analisados em perspectiva comparada,
a hipótese conrma-se, como demonstra-
-se a seguir, as imagens protestantes de
diferentes autorias/ momentos/ lugares/
denominações apresentam semelhan-
ças. Tais similaridades permitem carac-
terizar tanto a relação (e os usos) dos
protestantes com a imagem quanto o que
seria uma imagem(s) protestante(s) - ou
seja, o que esse conjunto apresenta de
peculiar, e que se repete.
Com tais questões identicadas, a
primeira etapa da pesquisa identicou três
diferentes tipos de imagens produzidas e/
ou utilizadas por protestantes na primeira
metade do século XX (sem considerar o
arquivo CAVE). O agrupamento é realiza-
do por nalidade e técnica de produção.
São eles:
A) Educação cristã infantil: as ima-
gens aparecem como ilustração de ma-
teriais didáticos e exploram elementos
lúdicos (Bellotti, 2007). O desenho, fre-
quentemente colorido, é a principal técni-
ca de produção.
B) Imagens mnêmicas e/ou ins-
pirativas: guras diversas, que buscam
retratar histórias bíblicas (com função
mnêmica) ou realidades espirituais (ins-
pirativas, sem deixar de apelar à me-
mória), que compunham quadros, nas
casas dos éis. Identicamos (Leonildo,
2014) que os protestantes brasileiros ti-
nham por hábito pendurar quadros com
mensagens religiosas em suas casas. A
prática, que também aparece entre pro-
testantes norte-americanos(MORGAN,
1999), foi comum aos éis da primeira
metade do século XX. O “Quadro dos
dois caminhos” é o exemplo mais con-
sistente encontrado. Estima-se que duas
representações repousavam em tais
imagens: de realidade espirituais abs-
tratas; e histórias bíblicas. Como a pes-
quisa aborda tema pouco estudado, não
foi possível encontrar outros registros
em bibliograa. Nesse tipo de imagem,
acredita-se que a maior parte seja com-
posta por gravuras. Mas o enfoque téc-
nico aqui é a reprodução.
C) Fotograas do Brasil (em ge-
ral, produzidas por missionários estran-
geiros): o início do século foi marcado
pelas viagens para “os novos mundos”,
com registros fotográcos e textuais que
alimentavam um culto ao exótico (MAR-
TINS, 2001). Missionários europeus via-
javam com o olhar atento às peculiarida-
des religiosas, mas também contribuíam
com os registros de outras dimensões da
vida e das sociedades além mar.Inicial-
mente, localizou-se na bibliograa qua-
tro fontes de fotograas do Brasil de au-
toria de missionários protestantes: texto
de autoria de Luciana Martins (2013),
que analisa parte do arquivo fotográco
do missionário Kenneth Grubb; a publi-
cação The Republic of Brazil – a survey
of the religious situation, de Erasmo Bra-
ga com ilustrações de Grubb (New York:
World Dominion Press, 1932.); o “acer-
vo Grubb”, que contém fotograas ain-
da não publicadas, localizado no Royal
AnthropologicalInstitute, em Londres; a
publicação Braziland The brazilians, dos
missionários James Fletcher e D. P. Ki-
dder (London: SampsonLow, Marston,
Searle, And Rivington, 1879).
O primeiro resultado, então, da
pesquisa iconológica foi a busca por es-
sas referências e a divisão do material
encontrado em três diferentes tipologias.
170
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
O arquivo CAVE foi desconsiderado na
listagem, já que a proposta parte dele e
buscaconjuntos icônicos anteriores. Em
perspectiva comparativa, encontra-se
similaridades já nas descrições gerais
da primeira etapa da pesquisa. O CAVE
herdou dois dos três tipos de imagens
anteriores à organização: produção de
material didático para educação cristã e
fotograas. Nas fotograas, identica-se,
ainda, um tipo de representação que re-
mete aos quadros protestantes: a ilustra-
ção de realidades espirituais.
A etapa seguinte foi a seleção
do enfoque da pesquisa, o recorte de
quais imagens comporiam o corpus do-
cumental especíco. Como a questão
central considera as relações do grupo
estudado com a modernidade, ao mes-
mo tempo que a pesquisa bibliográca
e teórica apontou para as relações entre
processos modernizadores e técnicas
de produção e reprodução de imagens,
a fotograa destacou-se como locus pri-
vilegiado de análise. Além disso, con-
forme assinalamos, as fotograas do
CAVE dialogam com as três tipologias
compostas na primeira etapa.
3.1. Privilégios e primazias
da técnica fotográca
Na análise do arquivo CAVE resul-
tou a percepção de que a fotograa pos-
sui um status diferenciado no conjunto de
imagens protestantes. O CAVE utilizou di-
versas técnicas de produção de imagens,
como desenhos, pinturas, colagens, re-
produções de revistas dentre outras. Os
lmes xos compostos por tais imagens
também possuíam nalidades e públicos
alvo diversicados: evangelização direta
(não crentes); mensagem religiosa indi-
reta (não crentes); educação e formação
cristã para crianças e adultos (éis).
Em temos de público alvo, a técnica
da câmara escura foi utilizada para atingir
tanto protestantes quanto não protestan-
tes. Contudo, um recorte especíco do
público foi constatado: apenas produtos
direcionados a adultos utilizaram da foto-
graa, o que sugere que o grupo produtor
de tais imagens excluísse o lúdico da “na-
tureza” ou das possibilidades fotográcas.
Ainda em relação ao público alvo, a foto-
graa aparece como a imagem preferen-
cial nos produtos elaborados para atrair a
atenção das pessoas. Isso ocorria - aqui
já discorrendo sobre as nalidades do uso
da técnica - através da apresentação de
coisas (plantas, animais, paisagens, cons-
truções) com a intenção de causar no pú-
blico efeito de apreciação do belo e de en-
cantamento.
Por fim, também em relação a fi-
nalidade, a fotografia era escolhida para
narrar “realidades”: além da já citada
representação de conceitos da espiri-
tualidade evangélica, através da analo-
gia, ela também aparece para compor
narrativas de histórias de pessoas, es-
pecialmente histórias de conversão reli-
giosa (Figura 1).
3.2. Técnica e natureza:
descrição e encantamento
A denição do conjunto fotográco
estabeleceu-se como o primeiro recorte
ao grupo de imagens protestantes locali-
zadas na primeira etapa da pesquisa. Em
seguida, um segundo fechamento fez-se
necessário, por questões de viabilida-
de do trabalho. Estabeleceu-se, assim,
que a comparação seria realizada entre
o conjunto de fotograas digitalizadas do
arquivo CAVE e a Coleção Grubb. Trata-
-se de arquivo com imagens do Brasil
sobre o qual um único trabalho existia, o
da pesquisadora Luciana Martins, super-
visora da investigação que aqui se apre-
senta. Além disso, considerou-se também
a oportunidade de focalizar tal arquivo, já
que a pesquisa se desenvolveu no local
em que ele está guardado.
171
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A análise comparativa permitiu iden-
ticar as similaridades entre os dois arqui-
vos. Dentre diversos elementos e caracte-
rísticas semelhantes, demonstram-se dois:
A) a preocupação em fotografar natureza;
B) e o olhar atento a objetos técnicos.
A) Natureza, ciência, fé
A presença de imagens da nature-
za, é marcante em ambas as coleções.Nos
textos no entorno das imagens, aparecem
descrições e abordagens que sobrepõem
a descrição cientíca a uma revelação es-
piritual. Há uma busca por reconciliar na-
tureza e criação, ciência e Deus, retoman-
do e insistindo no potencial do primeiro
conduzir ao segundo.
Ao comparar o produto caveano
“Árvores e ores do Brasil” com fotos de
Grubb dispersas pelos álbuns (organiza-
dos pelo autor e/ou por sua esposa prio-
ritariamente por localidade), percebe-se
que a semelhança é inegável. As fotos do
início da década de 1930 (GrubbCollec-
tion) poderiam ser usadas para compor
a narrativa construída pelo CAVE entre o
m de 1963 e o início de 1964.
A observação cuidadosa das ima-
gens de ores revela um padrão foto-
gráco: a divisão de planos; o jogo de
focalização do primeiro plano enquanto
desfoca o segundo; a centralidade na
foto do elemento eleito como principal
pelo olhar do fotógrafo (Figura 2).
Figura 1: Usos da fotograa na iconologia protestante
Fonte: elaboração própria; fotos: Arquivo CAVE, CMM
HISTÓRIA REAL: FOTOGRAFIA QUE ABRE O FILME
“O FEITICEIRO”, QUE NARRA A CONVERSÃO DE
IRO, O PAJÉ RETRATADO (ARQUIVO CAVE, CMM)
ANALOGIA: “LIÇÕES DO COPO” PROPÕE UMA ANALOGIA ENTRE A VIDA E UM COPO, NESSA SÉRIE,
A MENSAGEM É PARA SER CUIDADOSO COM O COPO (ARQUIVO CAVE, CMM)
ENCANTAMENTO: FOTOGRAFIAS
QUE COMPÕEM O QUADRO CUJO
TEXTO NARRADO É: “ UMA DAS
FLORES MAIS BONITAS QUE
DEUS CRIOU É A ROSA” (ARQUIVO
CAVE, CMM)
172
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Outra semelhança captada é um jogo
entre geral e particular; o todo e o detalhe. Na
coleção Grubb, o jogo todo-detalhe é mera-
mente ilustrativo, embora aponte para o uso
descritivo da fotograa: inuência, supomos,
da descrição cientíca. No produto do CAVE,
em que há abundância textual para comple-
mentar a análise, tal jogo integra um racio-
cínio indutivo em que armações sobre par-
ticularidades, cujas fontes podem ser tanto
da experiência da observação quanto de es-
tamentos cientícos, conduzem necessaria-
mente à conclusão de que a criação divina é
maravilhosa. A autoapresentação do dialme
cria a expectativa dessas conclusões, que se
repetem ao longo da narração (Figura 3).
(QUADRO 2) O CENTRO AUDIOVISUAL EVANGÉLICO
APRESENTA
(QUADRO 3) “ÁRVORES E FLORES DO BRASIL”
REVELAÇÕES DA BONDADE DE DEUS AO CRIAR UM
MUNDO TÃO LINDO!)
Figura 2: Exemplos de fotograas/ natureza
Fonte: elaboração própria: as duas imagens à esquerda são da GrubbCollection e as imagens
à direita são do Arquivo CAVE
Figura 3: Dialme “Árvores e ores do Brasil” p.1 e p.2
Fonte: elaboração própria a partir do Arquivo CAVE
173
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Embora o produto seja apresen-
tado de forma integralmente religiosa,
o texto que segue mescla informações
cientícas sobre as plantas, como nomes
em latim, procedência, habitat. Também
procura informar os diferentes nomes po-
pulares que a planta recebe em diferen-
tes lugares, inclusive nos Estados Uni-
dos. Reproduzimos abaixo o penúltimo
quadro do dialme (o quadro anterior é
sobre o Ipê branco), que exemplica essa
mistura de informações cientícas e cul-
turais sobre a planta, conduzindo a con-
clusões sobre a criação.
(QUADRO 24) NÃO MENOS BONITO, POR
SER MAIS COMUM, É O IPÊ AMARELO.
QUEM VIAJA EM AGOSTO, ENCONTRA
OS OLHOS NA CONTEMPLAÇÃO DESSAS
FLORES BELÍSSIMAS COM QUE O
CRIADOR PINTA OS CAMPOS E ENCOSTAS
DAS MONTANHAS. (“BIGNONIA TECOMA”).
Figura 4: Quadro com respectivo texto “Árvores e Flores do Brasil
Fonte: elaboração própria a partir do Arquivo CAVE
A dimensão espiritual da natureza,
sua capacidade de revelação do divino,
era evidentemente a intenção do dialme.
Isso ca ainda mais claro em documento
de comunicação interna encontrado nos
arquivos, que insere uma descrição sobre
o produto em processo de produção. A
mensagem está, em sua maior parte, em
inglês. Destacamos alguns trechos, em
tradução livre da autora:
Além de apenas lindas ores (...) o
comentário faria uma forte combi-
nação com o fato de que a beleza
delas é uma criação de Deus. (...)
O cuidado de Deus mesmo nos
mínimos detalhes é demonstrado
pela vista mais de perto das mes-
mas ores, uma vez que a obra
de Deus é maravilhosa até a me-
nor parte; em contraste, a obra do
homem pode ter uma aparência à
distância que não resiste a um exa-
me de perto. (CAVE. Comunicação
Interna. 18/05/64.)
Esse trecho ressignica os planos
fechados. Se eles são, como sugerimos,
inuenciados pelo método descritivo da
ciência moderna, então são característi-
cas dessa mesma ciência que conduzem
à apreciação do divino. Uma reminiscên-
cia, talvez, do primeiro moderno, de Blaise
Pascal e Francis Bacon. Uma evidência
da relação protestante com a modernida-
de e, ao mesmo tempo, da leitura que o
grupo procurava fazer da ciência. Nesse
trecho acima apresentado, a capacidade
descritiva da fotograa ganha um sentido
espiritual. No entanto, isso não está na fo-
tograa em si; a espiritualidade emana da
natureza. Embora isso não seja tão óbvio
nos álbuns de Grubb, no texto que analisa
as imagens do missionário, Martins (2013,
174
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
p.73) destaca em uma das publicações
dele exatamente a “voz espiritual” dada
à natureza: “In Parables from South Ame-
rica (1932), published by the Lutterworth
Press, Grubb delineates a distinctively
moral geography, in which he gives spiritu-
al voice to the ‘mute and inarticulate sce-
nes of nature’”.
B) Técnica rudimentar X técnica
moderna
Técnica e tecnologia são direta-
mente apresentadas nas imagens e textos
de ambos os acervos. A presença da tec-
nologia aparece como positiva, até mes-
mo necessária. Comumente, as técnicas
‘rudimentares’ locais são opostas às tec-
nologias ‘modernas’, incluindo a ciência.
Na Coleção Grubb, isso aparece através
de sutilezas nas imagens e principalmente
nas legendas. A técnica aparece no lugar
do rudimentar, da curiosidade descritiva, o
peculiar, o exótico; já em relação à tecno-
logia/ ciência, é possível captar positiva-
ções e atribuição de valor superior.
Por exemplo, o arquivo de Grubb-
possui retratos diversos de pontes. Cha-
ma a atenção nas legendas a diferença
entre “A rustic bridge” (uma ponte rústi-
ca) e “The Bridge” (A Ponte). Sutilezas:
sabe-se que a língua inglesa reserva o
uso do artigo determinado (“The”) para
quando a intenção é marcar a unicidade
do substantivo que segue. Tal artigo não
costuma ser usado nem mesmo ante-
cedendo nomes próprios de pessoas. O
mesmo ocorre com a marcação da pri-
meira letra maiúscula no substantivo: em
português, dizemos, um substantivo pró-
prio, algo distinto dos demais objetos que
podem ser referenciados com a mesma
palavra. Na outra legenda, em contrapo-
sição, observamos o artigo indetermina-
do e todas as letras minúsculas, além da
adjetivação “rústica”. Esse texto marca-
do pela indeterminação sugere, também,
a existência de diversos outros objetos
com características similares, dentre os
quais, o texto refere-se a “um”, uma uni-
dade dentre vários do mesmo.
A “ponte rústica” é o texto esco-
lhido como legenda de uma imagem em
que se vê Keneth e sua esposa em pés
em uma trilha estreita cortada em meio
a árvores altas e plantas baixas - uma
paisagem de oresta. As cabeças es-
tão voltadas para o fotógrafo (atrás),
enquanto a posição dos corpos sugere
que caminhavam (e que prosseguiriam)
para adiante - para “dentro” da fotogra-
a, no caminho que divide a imagem ao
meio. Em frente ao casal, ve-se degraus
“rústicos”, indistintamente de madeira ou
mesmo de barro. A legenda, nesse caso,
revela que se trata de uma ponte - o que
a imagem, por si só, não diz.
A imagem que recebe a legenda
“A Ponte”, determinada e própria, exibe a
construção da Ponte Hercilio Luz (apenas
mais tarde assim nomeada), na cidade de
Florianópolis, capital do Estado de Santa
Catarina. A foto integra um conjunto de
imagens sob o nome da cidade. A ponte
que liga a parte insular da cidade a sua
continuidade no continente é, desde o
anúncio de sua construção (que ocorreu
durante a década de 1920), considerada
um marco de modernização do país.
O aspecto curioso da técnica “ru-
dimentar” aparece em uma série de ima-
gens, na coleção Grubb, que retratam na-
tivos com instrumentos comuns ao meio
rural brasileiro do início do século XX: um
engenho de açúcar, que é antecipado por
uma imagem cuja legenda indica uma
“Prensa de açúcar caseira Terena” (Tere-
na homemade sugar press). A indicação
da etnia que, ao menos acreditava o mis-
sionário, desenvolveu a técnica revela
sua preocupação com a etnologia de que
fala Martins (2013). Outra imagem que
integra a mesma página é uma “Prensa
de mandioca” (Mandioca press). Nessa,
175
Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
os traços indígenas dos dois homens que
ladeiam o aparato e a presença de uma
criança nua no colo de um deles eviden-
ciam que se trata de um instrumento uti-
lizado pelos nativos. Além disso, há tam-
bém a indicação da localização no início
da página: “Bananal, Indian Mission” (Ba-
nanal, Missão indígena). Sabemos, por-
tanto, que as imagens foram realizadas
na missão que abrigava nativos, espe-
cialmente da etnia Terena.
No CAVE, o dialme “O Feiticeiro”
oferece diversos exemplos da captura
de técnicas indígenas e de tecnologia e
ciência introduzidas pelos missionários
(a um grupo Yanomami) (Quadro 4). Nos
produtos do CAVE captamos uma oposi-
ção entre “civilização” e “miséria”, em um
discurso sobre a necessidade de ‘ampa-
ro’ aos indígenas em que compreende-
-se a “vida na oresta” como algo que
solicita intervenção. O dialme “O Bom
Samaritano” está, provavelmente, entre
as produções mais antigas da agência.
Notamos isso por ser preto e branco,
pela qualidade das imagens e as técni-
cas utilizadas. O lme, após narrar a es-
tória bíblica do Bom Samaritano, ques-
tiona “De quem devemos ser próximos”,
o que, no contexto, signica: “A quem
devemos ajudar (ou amparar)?”. E então
há uma série de imagens e sugestões
(pobres, presidiários, órfãos, pessoas
com problemas de mobilidade e outros);
entre elas, estão os índios:
(QUADRO 47) DESTES TAMBÉM DEVEMOS
SER PRÓXIMOS, ISTO É, DOS NOSSOS
IRMÃOS ÍNDIOS QUE VIVEM NAS MATAS
DO BRASIL SEM O AMPARO DE QUE
NECESSITAM. ESSA FAMÍLIA QUE VEMOS
AÍ JÁ ESTÁ MAIS OU MENOS CIVILIZADA E
AMPARA, MAS, HÁ MILHARES DE ÍNDIOS
QUE VIVEM NA MISÉRIA MAIS EXTREMA.
ARQUIVO CAVE (CMM)
Figura 5: Quadro do diapositivo “O Bom Samaritano”
Fonte: elaboração própria a partir do Arquivo CAVE
Nos álbuns de Grubb não há re-
ferência semelhante em textos das le-
gendas. No entanto, junto às fotos de
indígenas e suas técnicas, há diversos
registros de ‘intervenções’: cultos “do
lado de fora da maloca”, como diz o tex-
to de uma das legendas; fotos de pré-
dios de agências missionárias de apoio
aos índios; diversas fotos de nativos
com roupas ocidentais. Imagens que
revelam, no mínimo, o interesse em re-
gistrar os processos ‘civilizatórios’ (para
usar uma palavra presente no produto
caveano) ou modernizadores.
176
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
4. Conclusões
Anunciamos de início que o pre-
sente texto aborda duas questões: um
percurso teórico e um conjunto de ima-
gens, que estão intimamente ligados. Em
relação ao ‘rastro histórico-icônico das
imagens caveanas’, o primeiro resultado
foiaclassicação das imagens encontra-
dasem três tipologias: educação cristã
infantil; imagens mnêmicas e/ou inspira-
tivas; fotograas do Brasil. A perspectiva
comparada conduziu a um segundo re-
sultado: a identicação de um status pri-
vilegiado da fotograa em relação a ou-
tras técnicas de produção de imagens.
Trazendo a fotograa para o foco
da análise, constata-se duas caracterís-
ticas do uso protestante das técnicas da
câmera escura. Primeiramente, um recor-
te de público que exclui as crianças, dire-
cionando os produtos originados da foto-
graa especicamente para adultos.E, em
relação aos temas e as nalidades ‘mere-
cedores’ da técnica, aparecem as narrati-
vas de ‘histórias reais’ e produtos com o
intuito de apreender a atenção do público
e/ou transmitir informações descritivas.
A análise comparativa dos dois
acervos, Arquivo CAVE e Coleção Grubb,
permitiu identicar dois temas comuns: o
primeiro expressa-se pela tríade nature-
za-ciência-fé; e o segundo pela oposição
técnica rudimentar - técnica moderna. Es-
ses dois conjuntos fotográcos, reunidos
pelas suas características iconológicas,
(cor)respondem à questão e percurso teó-
ricos. O acervo protestante comprova que,
de fato, a herança histórica de atrelamen-
to do protestantismo à modernidade emer-
ge para a superfície das imagens criadas
pelo grupo. Especicamente na fotograa,
a composição protestantismo, modernida-
de e imagem aparece com clareza.
No primeiro conjunto temático, na-
tureza-ciência-fé, observa-se a proposta
de conciliar ciência e religião através de
ressignicara descrição cientíca que,
então, assumiria a função de conduzir ao
divino. A ciência objetiva, descritiva, que
surge na modernidade é tranquilamente
assimilada e adaptada à mensagem evan-
gélica dos protestantes. Ela é colocada à
serviço da compreensão da grandeza di-
vina, como transparece no documento de
produção citado.
No segundo conjunto, a oposição
entre técnica rudimentar e técnica mo-
derna privilegia noções como progresso e
desenvolvimento - típicas dos processos
modernizadores do início do século XX.
Na análise das imagens, percebe-se a po-
sitivação da técnica moderna e mesmo “a
carência” dela, como se sua ausência fos-
se sinônimo de sofrimento.
A análise das imagens compro-
va, portanto, a hipótese da relação entre
modernidade, técnicas visuais e protes-
tantismo. O empreendimento messiânico-
-civilizatório toma forma nessas imagens
que, em seu conjunto, opõem o “rústico”
com o propriamente moderno. Dentre as
caracterizações do moderno, traçadas no
percurso teórico, destaca-sea dessacrali-
zação de lugares especícos que, de cer-
ta forma, foi um processo de sacralização
da vida comum. Esse aspecto que Taylor
aponta como consequência da Reforma
Protestante revela-se na expectativa dos
protestantes do século XX de que uma
imagem descritiva (fotograa) de elemen-
tos da natureza fosse capaz de conduzir a
Deus. Da mesma forma pode-se compre-
ender a tentativa de lançar o olhar divini-
zado sobre o discurso cientíco.
As características do puritanismo
apresentadas, a ênfase na pregação e a
ascese, também são observadas, ainda
que sutilmente, nas imagens. A herança
da hipervalorização do texto ajuda a expli-
car a necessidade de cercear as imagens
com legendas (GrubbCollection) e/ou
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
descrições que chegam a ser redundan-
tes com a imagem (CAVE). Em relação à
ênfase ascética, os enfoques nas histórias
de transformações/ conversões é uma re-
miniscência desse aspecto. A ascese tam-
bém pode ser relacionada com a necessi-
dade de restringir o uso de imagens para
encantamento ao objetivo evangelizador.
Nesse caso, ao mesmo tempo que indica
a existência de um ideal ascético, revela
também seu afrouxamento.
Outras mudanças podem ser nota-
das, em relação a imagens mais antigas,
como o “Quadro dos dois caminhos”. Nes-
sa gura, a rejeição “ao mundo” é comple-
ta e Campos (2014, p.354) sugere que ela
também seja fruto da desconança com
a industrialização, no contexto inglês. Já
nas fotograas do século XX, os protes-
tantes estão novamente entusiasmados
com os processos modernos, sobretudo
no Brasil. É nesse momento, portanto, que
os vínculos históricos dos protestantes
com a modernidade emergem. Portanto, a
imagem mais antiga ilustra como estreito
o caminho que conduz a salvação. Ainda
assim, para os protestantes do início do
século XX, ele era amplo o suciente para
construir-se também através da ressigni-
cação da ciência e da técnica moderna.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Grubb Collection, Royal Anthropologycal Institute
- Documentos:
- CAVE. Árvores e Flores do Brasil. Comentário de
dialme. 25 Quadros.
- CAVE. O Bom Samaritano. Comentário de dial-
me. 68 Quadros.
- CAVE. Comunicação Interna. 18 abril 1964.
- CAVE. O Feiticeiro. Comentário de dialme. 74
Quadros
Recebido em 08/08/2017
Aprovado em 12/09/2017
I Priscila Vieira e Souza. Doutora em Comunicação e
Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro /
UFRJ. Bolsista CNPq (Pós-Doutorado no PPGCOM-
-UFRJ). Professora da Faculdade Metropolitana de Ma-
ringá (PR) / Unifamma. Contato: priscilavieira@ufrj.br
II Bolsista Capes (Proc No. 0595/2015-02). Pesquisa
Pos-doutoral no exterior.
III O historiador francês Alain Besançon (1997) propõe
“uma história intelectual da iconoclastia” no ocidente. Ele
identica a modernidade como um dos grandes ciclos
iconoclastas e analisa como reformadores, como Calvi-
no, contribuíram com a iconoclastia moderna.
IV A administração se dava através de uma Assem-
bleia formada por representantes de organizações
eclesiásticas e paraeclesiásticas (missionárias), que
se reunia anualmente ou bianualmente e elegia a dire-
toria da organização. O CAVE era dividido em depar-
tamentos, comissões e conselhos, cujas funções eram
denidas em Estatuto.
V Há registros de um centro audio visual no México
e outro no Peru, mas é provável que outros países
tenham iniciado projetos semelhantes. O CAVE era -
nanciado pelo National Council of Churches in Christof
USA (NCCCUSA), através de dois de seus departa-
mentos: a RAVEMCCO (Radio, Audio Visual Education
and Mass Communication Commission Overseas), que
tinha por objetivo criar centros pelo mundo; e o Comitê
de Cooperação na América Latina da Divisão de Mis-
sões Estrangeiras, que, como o nome diz, trabalhava
para criar projetos nos países latino-americanos. Infor-
mações retiradas de: BELLOTTI, Karina Kosicki. “Delas
é o reino dos céus”: mídia evangélica infantil na cultura
pós-moderna do Brasil (1950 a 2000). Tese (Doutorado
em História) – Curso de História, Universidade de Cam-
pinas, 2007. P.55-56.
VI Tradução livre da autora. No original: “Indeed,
Taylor’s primary interest is not to oer a sociological
account of secularity in terms of standard theories of
secularization, which measure the changing (mostly
falling) rates of religious beliefs and practices in modern
contemporary societies”.
VII Aproveita-se aqui de experiências investigativas an-
teriores, especialmente da pesquisa de doutoramento,
já citada. Algumas adaptações, como o acréscimo do
elemento comparativo, serão realizadas.
VIII Tradução livre da autora. No original: “And as Brazi-
lian positivists knew well, the power of the modern state
relied heavily on the power of images”.
IX Tal armação baseia-se em anterior revisão do deba-
te de secularização, presente na tese de doutoramento
da autora, especicamente no primeiro capítulo: VIERA-
-SOUZA, 2014, p.37-57. Apesar de ser fruto da reexão
de um conjunto de autores, pode-se destacar a sociólo-
ga Cecília Mariz (2006); e os estudos de Amaral (2009).
X O curto período republicano e ditatorial inglês, sob
o governo de Oliver Cromwell, “foi essencialmente uma
revolução puritana” (MENDONÇA, 2005, p.67). O então
rei Carlos I foi deposto e morto. Dez anos depois, defen-
sores da família real tomaram novamente o poder.
XI Também conhecido como “O Caminho da Salvação
e o Caminho da Perdição” ou simplesmente “Quadro
dos dois caminhos”. No texto de CAMPOS (2014), há
uma reprodução do quadro. O texto pode ser lido onli-
ne ou baixado em PDF no seguinte endereço: <http://
periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/
P.2175-5841.2014v12n34p339/6690>.
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Ano 7, número 13, semestral, abr/2017 a set/ 2017
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The Missing God of Karl Jaspers (and Heidegger)
O Deus ausente de Karl Jaspers (e Heidegger)
El Dios que falta de Karl Jaspes (y Heidegger)
Purushottama Bilimoria
I
Abstract:
The paper is a cross-cultural critique on how God is conceived in the
works of two Existentialist Philosophers: Karl Jaspers and Heidegger
(their convergence and divergences), and how we might disconceive
both. And there is reference via Jaspers to Faith (since I am a Fellow
of the College of the All Souls of the Faithful Departed, in Oxford),
I am interested in this issue: both in respect of faith, the departed,
and perhaps the yet-to-be, posthuman and postdivine. And there is a
quaint Berkeley connection also; and so a small poem to begin with:
Berkeley Modern-Posts.
Keywords:
Karl Jaspers
Heidegger
Existentialist
philosophers
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumo:
O artigo é uma crítica transcultural sobre como Deus é concebido nas
obras dos dois lósofos existencialista: Karl Jaspers e Heidegger (sua
convergência e divergências), e como nós podemos “desconceber”
os dois. E há referências através de Jaspers e da Fé, (já que eu fui
um companheiro de faculdade em Oxford) estou interessado nesta
questão, ambos em matéria de fé: os inltrados e os talvez ainda-
a-ser, pós-humano e pós-divino. E há uma conexão pitoresca de
Berkeley também; e assim um pequeno poema para começar:
Berkeley Modern-Posts.
Resumen:
El artículo es uma crítica intercultural cerca de cómo Dios es concebido
en la obra de dos lósofos: existencialista Karl Jaspers y Heidegger
(la convergencia y divergencia), y cómo podemos “desconceber” los
dos. Y hay referencias de Jaspers y de la fe, (desde que era un
compañero de la Universidad de Oxford) estoy interesado en esta
cuestión, tanto en asuntos de fe: los inltrados y quizás todavía-a-
ser, pós-humanos y pós-divino. Y hay una conexión pintoresca de
Berkeley y tan poco poema para empezar: Berkeley Modern-Posts.
Palavras chave:
Karl Jaspers
Heidegger
Filósofos existencialistas
Palabras clave:
Karl Jaspers
Heidegger
Filósofos existencialistas
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The Missing God of Karl Jaspers
(and Heidegger)
MISSING DOG
Black Lab, white underbelly, curly tail
May be seeking owner, howls at night
Well taken care of, strayed out into
Spruce & Arc Streets, North Berkeley
Call: Jerry O’Garcia 1-008-PREALTERN
Will return by UPS-VET (F.O.B)
MISSING GOD
White male, black underbelly, hairy tale
Likely seeking disciples, hysterical by day
Kept unkempt, wondered o into
Bruce &Arche Avenues, North Bay Area
Call: FaristhaO’Gibreal 1-008-OBO ONO
Will return by FedExp-SKY (C.O.D)
Part A.
I am triggered by Heidegger’s worry:
whether transcendence is comprehensible
without any specic reference to God?
What might be meant by ‘transcendence’
is the unfettered pursuit of the question of
being and the quest for freedom and au-
thenticity of be-ing.
And I’m tickled by Jasper’s pronounce-
ment that at the root of existentialism is a
mystery of Being – the Missing God – that
runs deeper than our conventional catego-
ries of theism, atheism, or agnosticism.
Heidegger here will be the hovering
ghost; and I shall conne myself to Jas-
pers, drawing mostly from Jasper’s 1951
lectures (they were broadcast); that has
section on ‘THE IDEA OF GOD’.
Here I oer two opposite observa-
tions: (1) Heidegger – the last of the great
metaphysicians - poses a radical and con-
troversial challenge to philosophers by
calling them to do without God in an un-
fettered pursuit of the question of being
(through his “detruktion of onto-theology”
and his espousal of the metaphysic of non-
being
II
); and, (2) this exclusion nonethe-
less leaves room for a form of philosophi-
cal reection upon the religious, and the
discourse concerning — not the God of
philosophers as such, but — for a notion
of divinity in the experience of beings as
beings, i.e. in a phenomenological mode
(exemplied most clearly in Heidegger’s
1920/21 lectures on the phenomenology
of religious life). This is congruent with Ex-
istentialism’s attempt to nd this ground
from within the human form as the contex-
tual whole through which a world appears.
Let me ll out some details in think-
ing on God in relation to Nothingness. At
the end of the day, I believe Nothingness
is more important to Heidegger than any of
the ancient or classical grand narrative of
Transcendence which he castigates as the
Western (Judeo-Christian) mistake of what
he calls onto-theo-logos. What he means
is the all of Western metaphysics, and
Christianity, Judaism – we might add Islam
– has a doctrine of Being via Presence –
in contrast to pre-Socratic understanding
of Being via absence and its concealment.
What starts as Being fully present in Plato
ends up as God in the Old Testament as
fully present personal Being. Let me ex-
plain this a bit more.
There has been a long battle in the
West on the question of being: what is; i.e.
existent, quiddity or what it means to be
something simple, identiable, and avail-
able for objective discovery and control.
‘Plato initiated the move toward — what
Heidegger called a “productionist meta-
physics”— by transforming the question
of Being into beingness: a transcendent
or permanently present form (eidos) that
makes things possible’ (HICKS, 2003).
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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‘Aristotle expanded this productionist atti-
tude by arguing that for something “to be”
meant [it] to be the eect of somecause,
and “causing” meant to work upon some-
thing, to eect it, to make it’ (ibid).
And so Aristotle invents a science
that investigates being as being, and what
belongs to it according to its nature. This
rst philosophy comes to be known as on-
tology, the science of being in general, and
metaphysics, the science of the universal
being. ‘Aristotle’s phrase,’ however, ‘on hēi
on,’ ‘being as being,’ is as suggestive as it
is ambiguous, and his ontology is deeply
aporetic’ (HEIDEGGER [1929], 1993, p.
2–3; DOOLAN, 2012; HART, 2004, p. 55).
By the time of Plotinus and neo-pla-
tonism, being and nonbeing are transcend-
ed in the mystical experience of the One
(to hen); the theistic philosophies of Juda-
ism, Christianity, and Islam forge a relation-
ship between metaphysics and theology in
their quest for the ‘highest being.’ Passing
through renements in Latin and Arabic lan-
guages, especially in the distinction hedged
between essence and existence, the inte-
gration is complete with Thomas Aquinas’
analogiaenti” of divine and dependent be-
ings on the one hand and his two-fold cor-
relation of the nite entities with ‘universal
being’ (esse commune) and the divine ‘sub-
sistent being’ (essesubsistens) on the other
(HEIDEGGER, 1996, p. 4). In other words,
as Heidegger notes: ‘In medieval times, God
became identied with the Being of entities
and was depicted—on the Aristotelian prin-
ciple that beings are inexorably linked with
cause — as an all-powerful causal agent
who planned, calculated, and produced ‘the
relatively stable and independent presence’
of entities’ (ibid). Heidegger continues: ‘In
Metaphysics, Avicenna (ibnSīnā, 980–1037)
sums up the plague of being infecting this
period rather perspicuously:
Existence becomes a problem when
the possibility of non-existence is tak-
en seriously. But contingency, or the
possibility of non-existence, was not
regarded as an ultimate fact by the
Greek thinkers…It was in the context
of a theistic philosophy, a doctrine of
creation, among the Jewish, Chris-
tian and Mohammedan thinkers of the
Middle Ages, that the question of con-
tingency, and therefore, of existence
became acute…The discussion of ex-
istence, then, emerges from an earlier
condition of thought in which the exis-
tence of things is taken for granted and
the problem of being is the problem of
what really is as opposed to merely
apparent, or what is permanent as op-
posed to what is transitory.’ (ibid, p. 5)
This concept being, nevertheless,
survives and is developed further in Eck-
hart, Wol, and Descartes, who at least
grounded being to ‘what can be presented
to the cognizing subject as indubitable’:
the spiritual substance René deemed to
be the mind over the entitive body, the
super-being, God, over the mechanical
world. With Kant, the tight hold on be-
ing begins to loosen and lag — consider
the elusiveness of thing-in-itself (a limit-
ing concept at best, or perhaps a pointer
to the ‘unknown’) as he shifts focus to the
analysis of pure understanding; conditions
for the possibility of knowing sans Carte-
sian certitude rather than trying to prove
what exists, even as he shatters the spu-
rious predication of existence to essence
(‘God’s essence is to exist’), for ‘Being’ is
obviously not a real predicate; that is, it is
not a concept of something that could be
added to the concept of a thing (PHILLIPS,
2006, p. 154).
This direction then taken in West-
ern metaphysical and theology is largely
a result of not having gone further behind
the inuences that echoed in the pre-So-
cratics to the Oriental or Eastern perspec-
tives, which not only took absence seri-
ously but also non-being; in other words
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absence is predicated on non-being rather
than Being; but the West could not handle
non-being, so swapped the bed place of
non-being for being, and then concealed it
under the blankets. This substantive self-
existent and universal of everything -- as
we know the Buddhists totally rejected in
their doctrine of impermanence, empti-
ness and dependent origination.
Heidegger’s thinking on Nothing-
ness is nowhere more saliently and force-
fully presented than in his – no not quite
Being and Time (1927) but his inaugural
lectures of 1929 when he succeeds his
teacher Edmund Husserl in Freiburg.
Think of the short step from Hus-
serl’s phenomenology to Heideggers ideal
of Dasein (humanly be-ing there) making
its own authentic existence as a supple-
ment (complementum) out of the remnant
possibilitatis suggested in Greek philoso-
phy and after. Here being—“to be”—re-
calls, retrospectively, and portends, pro-
spectively, its own noneiststatis in the
thrownness-onto-death, the great leveler
of all actualizations. So ‘what is there?’ (“to
be”) for Heidegger becomes: ‘What would
its absence (non abiding presence) be like
(“to be not”)?’
Part B.
I begin this discussion on the possi-
bility of Nothingness with a seminal quote
from Heidegger:
What should be examined are be-
ings only, and besides that—nothing;
beings alone, and further—nothing;
solely beings, and beyond that—noth-
ing. What about this nothing?…Is the
nothing given only because the ‘not’,
i.e., negation, is given? Or is it the oth-
er way around? Are negation and the
‘not’ given only because the nothing is
given?…We assert that the nothing is
more original than the ‘not’ and nega-
tion… Where shall we seek the noth-
ing? Where will we nd the nothing?…
we do know the nothing…Anxiety re-
veals the nothing…that in the face of
which and for which we were anxious
was ‘really’—nothing. Indeed: the noth-
ing itself—as such—was there… How
is it with the nothing?…The nothing it-
self nihilates. (HEIDEGGER, 1993, p.
95–96)
In his illuminating short inaugural
essay titled ‘Was istMetaphysik?’ in 1929
(two years later than Being & Time, 1927)
Heidegger complains that science only ex-
amines beings, and nothingfurther; it re-
jects ‘nothing’ read as ‘not-ing,’ ‘nullity’ (das
Nicht), as a ‘phantasm’(1993, p. 95–96).
In logic, on the other hand, nothing
is the occurrence when ‘not’ or negated-
ness is given; while Heidegger likes to
think the converse: negation (Verneinung)
and ‘not’ (nicht) are given only because
nothing is given (very much as Kumārila
we saw earlier, in the Indian tradition,
was thinking). So he asserts, ‘nothing
is more original than the ‘not’ and nega-
tion’ (ibid, 97), and a little later: ‘Without
the original revelation of the nothing, no
selfhood and no freedom’ (103). He then
moves straight into an enquiry into nothing
or, better, Nothingness; but in this quest
for Nothingness, as he puts it, there is
similar ‘going beyond’ what-is, conceived
as what-is-in-totality (106). He begins by
suggesting that since ancient times the
subject of Nothing has been expressed in
the highly ambiguous proposition ‘ex nihi-
lo nihil t — from nothing, nothing comes
to be’ (107). Even though the proposition
never made Nothing the real problem, it
brought out from the prevailing notions
about Nothing, the over-riding fundamen-
tal concept of what-is, i.e., beings. Noth-
ing was quickly forgotten and the question
of being — Aristotle’s study of being of be-
ing—or better, in what ways is something
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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some thing and what might be its relation
to nothing?— took over the focus. Still it
presupposes therewas a concept lurking
beneath that of Nothing. And what was
that? He explains thus: ‘classical [ancient]
metaphysics conceives Nothing as signi-
fying Not-being (Nichtseiendes), that is to
say, unformed matter that is powerless to
form itself into ‘being’ and cannot therefore
present an appearance. What has ‘being’
is the self-creating product (Gebilde) that
presents itself as such an image (Bild),
i.e., something seen, or being of time: ‘be-
ing extant.’ The origin, law, and limits of
this ontological concept are discussed as
little as Nothing itself’. (An aside, German
Indologists working on the Ṛgvedic verse
discussed earlier, rendered ‘asat’ in Ger-
man in exactly the term Heidegger adverts
to here for Notbeing, No-thing).
Christian dogma, he proceeds to
tells us, on the other hand, denies the truth
of the proposition ex nihilo nihil t and gives
a twist to the meaning of Nothing, so that it
now comes to mean the absolute absence
of all ‘being’ outside God: ex nihilo t ens
creatum: the created being is made out of
nothing. ‘Nothing’ is now the conceptual
opposite of what truly and authentically ‘is;’
it becomes the summumens, God as en
in-creatum. Here, too, the interpretation of
Nothing points to the fundamental concept
of what-is. In both cases the questions
concerning Being (Sein) and Nothing as
such remain unasked. Hence, we need not
be worried by the diculty that if God cre-
ates ‘out of nothing’ he above all must be
able to relate himself to Nothing. But if God
is God he cannot know Nothing, assum-
ing that the ‘Absolute’ excludes itself from
all nullity. Not wishing to lose sight of the
work of Being, Heidegger’s own reformula-
tion of the old proposition ‘ex nihilo nihil t
runs thus: ‘ex nihilo omneens qua ens t:
every being, so far as it is a being, is made
out of nothing. Only in the Nothingness
of Da-Sein can what-is-in totality…come
to itself.’ Now this particular observation-
might strike biblical scholars and Christian
philosophers of religion as being willfully
controversial and unfair. I cannot presume
to pronounce on its merits or otherwise,
but what I see in Heidegger’s excavation
is something of signicance to my overall
argument: that thinking about Nothing has
been rather thin, and it is not as easy as
Leibniz assumed given the kinds of coding
that occur frequently in literary and cultural
productions across East and West, and in-
deed there is more to be got out of Nothing
than hither to supposed. Contrary to gen-
eral perception, Heidegger’s ontology is
not one of Nothingness as such; he is not
a nihilist, far from it (he distances himself
from a‘Philosophy of Nothing’ in the Post-
script); rather, Being as Da-Sein remains
very much the subject and project of meta-
physics, and of theology too if you like.
There is something sobering in his
suggestion that only because ‘Nothing is
revealed in the very basis of our Dasein is
it possible for the utter strangeness’—the
dread, the angst, the anxiety, the bore-
dom, the facticity of thrownness in the
face of my death (it is always my death)
—‘of what-is’ to dawn on us. ‘The outer-
most possibility of death is the way of be-
ing of Dasein in which it is purely and sim-
ply thrown back upon itself’ (KISIEL,1995,
p. 336; HEIDEGGER, 1966, p. 235–236).
‘Only when the strangeness of what-is
forces itself upon us does it awaken and
invite our wonder. Only because of won-
der, that is to say, the revelation of Noth-
ing, does the ‘Why?’ spring to our lips.
[‘Why are there beings at all, why not
rather nothing?’ (1929 endline)]. Only be-
cause this ‘Why?’ is possible as such can
we seek for reasons and proofs in a de-
nite way. Only because we can ask and
prove are we fated to become enquirers
in this life. The enquiry into Nothing puts
us, the enquirers, ourselves in question. It
is a metaphysical one’ (379). To be sure,
Heidegger never gives up on the quest
for the ‘ground possibilities of being as a
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whole’ (while Nishitani takes Nothingness
as the ‘home ground,’ Heidegger remains
committed to the mereological whole-part
discourse: that bit is the Greek in him).
For him Nothing is not merely the nuga-
tory that equates with the non-existent
(das Wesenlose); ‘rather,’ he preaches,
‘we should experience in Nothing the vast-
ness of that which gives every being the
warrant to be’ (385). Hence, what is in-
structive is his exhortation that rather than
‘a leap of faith’ the task of ‘letting oneself
go into the abyss of Nothing’ is more im-
portant, that is to say, ‘freeing oneself
from idols as all have and to which we are
wont to go cringing’ and lastly, letting this
‘suspense’—‘morbid mood, dread’ (383)
range where it will, so that it may continu-
ally swing back again to the ground ques-
tion of metaphysics, which is wrested from
Nothing itself (and he ends with this): ‘Why
is there any Being at all—why not far rath-
er Nothing?’ Wrested from Nothing, Hei-
degger brings back concepts of sacrice
as gifting and thanking, feeling empathy
for the other (Sorge/care), disburdening
calculative and utilitarian thinking, and all
the promises of techno-scientic culture,
even obedience to the ‘voice of being,’
alongside imagination, the work of art, po-
etical ights into the holy, and so forth.
In this abyss, which is only repre-
sentationally poised in opposition to Being,
Heidegger nds the Abgrund of freedom:
it is the groundless ground that is indis-
tinguishable from nothing and from which
all determinations emerge. Hegel had al-
ready explained the peculiar relationship
between nothingness and freedom in
these words: ‘In this highest form of ex-
plication nothingness would be freedom.
But this highest form is negativity insofar
as it inwardly depends itself to its highest
intensity; and in this way it is itself arma-
tion—indeed absolute armation’ (TAY-
LOR, 2007, p. 117). Negativity is arma-
tive insofar as it is the condition of creative
emergence of everything that exists. It is
a theme—this latter—that postmodern-
ist philosophers have taken up and as it
were run the full gauntlet on, and I wish to
get to this in drawing the essay to a close.
‘Perfect nothingness…shadows…neither
light nor absence of light: origin of that
which has no origin, groundless ground,
abyss, freedom, imagination, creativity.
For Nietzsche, the plenitude of this void
is the nonplace of the birth of tragedy; for
Derrida it is la diérance worked into the
non-metaphysical deconstructive theology
of absence.’ Mark C Taylor more recently
commenting on these tropes compares
Kant’s schemata of productive imagination
(in the work of poetry, art, etc.) to God cre-
ating freely ex nihilo.
The power of imagination ‘reveals’
the concealment—the as-yet-unearthed—
at the heart of subjectivity. It is precisely in
the moments of radical temporality when
the subject encounters deep within its own
absence that nothingness haunts subjec-
tivity; the dues absonditus of Kierkegaard,
Luther, Calvin, and possibly Don Scotus,
becomes subjectus absconditus; only in
the next inspired moment does self-reex-
ivity arise, and the ‘something’ presenced
to consciousness is given representation
or expression. The German Romanti-
cists, such as Schlegel, had identied the
springing of this agency within subjectiv-
ity variously with the ‘breath,’ ‘Will,’ Be-
ing, ousia, logos, telos, ideas, even Rea-
son (with Hegel) of Spirit (Geist), and the
Holy Ghost: ‘Every good human being is
progressively becoming God.’ In short,
the premise is that belien nothing/noth-
ingness in this radical sense of the tem-
porality of subjectivity that isthe driving
force towards its self-reexivity is not in-
and-of-itself nihilistic; rather, it opens the
oodgates of light towards transcendence
(even Nietzsche would be citedas conced-
ing to this premise). ‘After God—is art; af-
ter art—life; Three-in-one–One-in-three’—
as Taylor sketches this interloping trinity.
But what does ‘after mean inthis locution
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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as indeed in the title of his recent, rather
controversial book, After God (taking a hint
from MacIntyre’s After Virtue)?
This is his iteration:
God is not the ground of being that
forms the foundation of all beings
but the gure constructed to hide the
originary abyss from which everything
emerges and to which all returns.
While this abyss is no thing, it is not
nothing – neither being nor nonbeing
it is the anticipatory wake of the un-
gurable that disgures every gure
as if from within. Far from simply de-
structive, disguring [I read kronos] is
the condition of the possibility of cre-
ative emergence. Even when expect-
ed, emergence is surprising—[as the
consciousness out of singularity is for
Dave Chalmers] —without surprise,
there is no novelty; without novelty,
there is no creativity; without creativ-
ity, there is no life [animation]’.
For my purposes, what I take
away from all this is the preparedness to
take the possibility of nothingness as a
ground, or the lurking empty space, tun-
neling vacuum, or where God intervenes
or plays out her Will, energetic Desire
(tejasvikāma, mahimānah˙), whatever,
which is quite an admission: whether the
ultimate cause is traced to an intelligent
mind, causeless cause, or an innite re-
gress of endless internal triggers, disin-
terested Desire, integers of zeros, old
universes, or turtles all the way down…
is not the moot point; for all such pos-
sibilities seem to have been entertained
and dare I say anticipated in the early
insights and cosmological developments
that occurred in the debates between
the Vedic-Upanis˙adic bards and the
śrāmaṇic doubters. There is not much
that is crudely or naively pre-scientic
here; metaphysical it might be, even trie
speculative and mythical, but it is also
challengingly troubling, or so for any sen-
sitive, worrying philosophical mind.
Heidegger is very aware of Chinese
thinking in this context and as he attempts
to translate with a Chinese scholar the
Tao-te-Ching, he is moved by this particu-
lar verse on the Dao, I will cite as I end this
section on Heidegger:
The Dao (Way) that can be told of is
not the eternal Dao;
The name that can be named is not the
eternal name…
Therefore let there always be non-be-
ing so we may see their subtlety,
And let there always be being so we
may see their outcome.
The two are the same,
But after they are produced, they have
dierent names
They both may be called deep and
profound..
Deeper and more profound…
Tao-teChing by Lao-tzu, trans by Wing-
Tsit Chan (Tao = Dao)
PART C.
Now in the next part of the talk I
move to Jaspers.
Jaspers for his part tells us that
Western theology and philosophy have re-
ected on” Who or what is God? And he ex-
plains that most philosophers of our times
seem to evade the question of whether
God exists. Among those who confront it,
some philosophers oer logical proofs for
the existence of God, while others argue
that if all proofs of the existence of God can
be refuted, then there is no God.7 Jaspers
rejects both of these positions, and argues
that the existence of God can neither be
proved nor can it be disproved in logic or
language (echoing Kant, and perhaps also
Pascal here). The supposed proofs and
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disproofs of God’s existence treat God as
an object and are therefore invalid. These
proofs and disproofs are only attempts to
achieve subjective certainty through the
use of fallacious modes of reasoning.” Ac-
cording to Jasperswe cannot make God
an object of our knowledge. Still, even if
we admit we cannot know God it doesn’t
follow that we cease to philosophize, or
throw up our arms saying: It is best not to
talk of what we do not know.
So he takes up the oldest form of in-
ferential proof for the existence of God: the
cosmological argument. Rather than refut-
ing the argument Jaspers looks upon it to
derive a metaphorical chipper; and this is
what he adduces (quite interesting);
“… this notion takes on a new mean-
ing when it is no longer regarded as
a proof. Then metaphorically, in the
form of an inference, it expresses
awareness of the mystery inherent in
the existence of the world and of our-
selves in it. If we venture the thought
that there might be nothing, and ask
with Schelling: Why is there something
and not nothing? we nd that our cer-
tainty of existence is such that though
we cannot determine the reason for it
we are led by it to the Com- prehen-
sive, which by this very essence is
and cannot not be, and through which
everything else is. But if from all this
abounding mystery we infer that God,
the benevolent creator, exists, we must
call to mind all that is ugly, disordered,
base in the world. And this gives rise
to fundamental attitudes for which the
world is alien, frightening, terrible, and
it seems as plausible to infer the exis-
tence of the devil as of God. The mys-
tery of transcendence is not thereby
solved but merely grows deeper. But
what clinches the matter is the imper-
fectibilityof the world. The world is not
nished, but in con- tinuous change;
our knowledge of the world cannot be
completed, the world cannot be appre-
hended through itself. “
Far from proving the existence of
God, these so-called proofs mislead us
into placing God within the real world, or
second cosmos, which is as it were ascer-
tained at the limits of the cosmos. Thus
they obscure the idea of God.
But they move us deeply when,
leading through the concrete phenomena
of the cosmos, they confront Nothingness
and imperfectibility. For then they seem
to admonish us not to content ourselves
with the world as the sole meaning of our
life in the world.
So yes, it is true, Jaspers argues, we
cannot know God, God is incomprehensi-
ble; but we can believe in God. He can have
or entertain belief as distinct from knowl-
edge; however, belief in God requires faith.
What though warrants this call to faith, what
is the source of faith, and what kind of epis-
teme is this? Does it have its loci in reason,
cognition, clear light of mind or intellect, or
is its radiance to be found elsewhere? Well,
Jaspers asserts at this point, which might
be disappointing to a deeply thinking philos-
opher, that Freedom is the source of faith,
and our freedom comes from God. True
awareness of freedom produces certainty
of the existence of God.
Indeed, faith in God is not the same
as knowledge of God, but we may gain a
clarity of insight through philosophy which
may enable us to have a comprehensive
consciousness of God. Jaspers argues
that in boundary situations we may per-
ceive either being or nothingness. And
he further argues that the concept of hu-
man freedom without God, in which the
will to make free choices is perceived as
if it were independent of God, exemplies
nothingness. If we acknowledge that we
depend on God for our being, and if we ac-
cept responsibility for making our own free
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choices, then our awareness of our own
freedom becomes an awareness of God.
How can Jaspers be so certain?
That in perceiving or introspecting the
phenomenology of our own freedom we
arrive at a certitude about the being of
God? Heidegger chided Jaspers precisely
on this sorts of claim as smacking of ex-
treme subjectivism and a misinterpretation
of phenomenology. Let is press on with the
discussion on faith, with a question. Is this
the same faith as that of the religious, sec-
tarian, evangelical adepts? That is, does
Jaspers mean to collapse the conditions
for the possibility of philosophical aware-
ness of the divine with religious and theo-
logical faith? Faith in Jasper’s thinking is
a category that stands squarely within the
pure conceptual-metaphysical schema,
only just touches the borders of the spiri-
tual, albeit via Nothingness, which it must
overcome in ontology not in as it were the
heart as such. Let me go on with this and
develop a critical background from con-
temporary philosophy of religion and some
cross-cultural refractions, that will help un-
pack Jasper’s thinking on this matter.
First up, there is an epistemological
question of how much weight can we give
to ‘faith’ vis-à-vis belief. Jaspers collapses
the two. Surely, we reduce whole junks of
knowledge-claims to beliefs and represent
these in propositions, sentences, and then
begin to interrogate or connect them logi-
cally with other sets of beliefs for their co-
herence, correspondence with reality and
so on. In old-style philosophical theology,
‘faith’ belonged to matters religious, a reli-
gious way of life, commitment to ultimate
values and some ultimate inexplicable and
ineable reality. Faith in that sense would
be personal, even a matter of feeling, emo-
tions, evocation, and subjective disposition
, and it has the most tangential connection
with the proposition and thought in which it
might be articulated and expressed, but not
necessarily so. ‘Belief’ just might be tagged
onto it as the could labels in our overow-
ing email inbox, in deference to ersatz folk
psychology but not in strict philosophical
thinking, unless we are prepared to subject
the contents of the belief to rational scru-
tiny and the criteria of justied true belief
or unjustied false belief (there can’t be ‘or
neither position here).
Whereas of belief, again, as the
philosopher of religion , J L Schellenberg
has put it, ‘the belief that p is a disposition
to form the thought that p.’ Feelings are not
essential for belief, much less a sense of
condence and even certitude that is not
given in a justicatory calculus. Hence,
‘faith-that’ is not identical with ‘belief-that’
(PF review p 6); belief that p is a dispo-
sition to think p, while faith that p is vol-
untarily thinking (i.e thinking or portending
its possibility) or just feeling that p. (though
thinking is not essential to it).
Second point, John Schellenbach,
who develops a theory of what he calls ‘Ut-
limism’ , argues nevertheless for the ‘nei-
ther position: that neither belief in theism,
nor belief in naturalism is justied; and
faith in personal God is not justied, but
only faith in Ultimism. This is very inter-
esting: taking my cue from Schellenberg I
wish to argue Jasper’s God in as much it
is a Being of a Certain Divine Status has
a ‘missing Personal qualia’ - in it – that
is the missing element and is what es-
sentially makes Her/That invisible – and
so there is no necessity of having ‘faith in
a Personal God’ in this sense; however,
since J’s God is not Dead (not Nietzsche’s
Moribund God), you could safely bet that
the missing God (even Heidegger’s God-
Yet-To-Be incubating in a prenatal cosmic
womb, Hindu Hiranyagarbha, in all pos-
sible worlds except this one)… may show
up, become itself manifest or be found loi-
tering around at any time in this or another
space,) ersatzly, faith in that Transcendent
Possibility - Ultimism – that there is an elu-
sive Ultimate - is not unwarranted.
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God is not what we may see with our
eyes ; not as factual elements of deity, but
as symbolic ciphers of human possibility,
or symbols of transcendence, as the hu-
man existential possibility of inner change,
reversal and transformation. Wherever this
cipher is hypostatically dened as mere
positive fact of belief, he concluded howev-
er, the freedom of transcendence obtained
through the sympathetic interpretation and
recuperation of this cipher is obstructed.
Jaspers kept a book of critical notes
on Heidegger, and he routinely described
Heidegger’s fundamental ontology in a
tone of moral-humanistic disapprobation,
yet a common association of Heidegger
and Jaspers is that transcendence can
intrude (be something of an intrusion) in
human consciousness only as an experi-
ence of the absolute insuciency of this
consciousness for interpreting its originary
or metaphysical character.
Historically, then, we are at the apo-
theosis of a crisis in transcendence, or cri-
sis of metaphysics.
Jaspers’ own metaphysics is always
a post-Kantian metaphysics: it is a nega-
tive metaphysics, which resists all sugges-
tion that human reason might give itself an
account of metaphysical essences, which
denes the realm of human meaning as
formed by its dierence against positive
metaphysical knowledge, but which none-
theless sees reason, in Kierkegaardian
manner, as driven by a despairing desire
for metaphysical transcendence.
Remains for me to elucidate on two
mutually distinguishing pair of concepts
I have introduced here: Missing vis-à-vis
Dead; Faith vis-à-vis Belief.
Stop: ad lib rest of the stu.
Begin with atyantābhāva.
The Missing God in Indian Thought
The Nyāya work up the most so-
phisticated argument to date in the Indian
tradition for the existence of God – de-
scribed often as bearing on “cosmo-tele-
ological inferential proofs” (BILIMORIA,
2011, p. 664). Our interest presently is
not with this argument as such, nor with
the robustness of the logical analyses and
evidence of a complicated ontology devel-
oped over 1200 years, but rather with the
issue of how God’s goodness and other
benign properties fare within the discourse
when confronted with the ubiquitous prob-
lem of evil. In terms of Īśvara’s properties,
he is said to possess certain divine quali-
ties that include being an intelligent agent/
maker (buddhismat-kartṛ), single/unitary
(eka), omni-extended (vibhu), omniscient
(sarvavid), omnipotent (sarvaśakti), and
timeless (śāśvat). He does not possess or
exercise the property of creating the world
in the way that the Abrahamic traditions (á
la the Genesis), and later Vedānta schools,
would ascribe to the supreme divine be-
ing of which there is no greater. He is at
best an ecient cause and not a material
cause of the universe, and this fact is dem-
onstrated through a set of inferences from
the world to the existence of a rst cause
or necessary being. The “proof” (which
would not get past Kant’s critical gaze) in
a nutshell reads something like the follow-
ing: “Because the world has an apparent
design – that is, it appears to be an arte-
fact – there must be an intelligent designer
who made it”.
Hence, on the cosmological front,
Īśvara, not unlike the potter, does not pro-
duce the universe ab initio (much less, out
of nothingness); rather, he fully depends
on prior materials (pre-existing constitu-
ents of dyads-triads of atoms, geometric
forms and remnant banks of karma from
the previous collapse of the universe).
Thirdly, much like the demiurge, exercising
his omni-will, the cosmic architect fashions
190
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minor deities and other divinely-endowed
beings who might be entrusted with the
task of threading together inert atoms and
properties, and even to provide support
for an upright and operative cosmos. This
is not a case of ‘creationism’ as such; but
still one would expect God to be in full con-
trol over his dominion. One may dispense
with the property of creating the world ab
initio, out of nothing; however, if the prop-
erties of omnipotence and goodness are to
be maintained, then the fact of evil, or gra-
tuitous suering for that matter, poses the
same problem as it does in any account
that includes a monotheistic deity.
And so the question arises: Why is
there such vast amounts of evil and suer-
ing, especially if God in his merciful wis-
dom could have ne-tuned and ‘fashioned’
or constructed a much better universe af-
ter correcting the defects and deciencies
in each prior world-state, one that comes
cleansed of evil and its sorrowful conse-
quences? In defence, the Nyāya response
is standardly that God through his omni-
scient state oversees the operation of kar-
ma, which is binding on all selves except
God’s self, and through his yogic (‘supra-
natural’) powers dispenses rewards and
punishments on the basis of the agent’s or
collective’s stock of merits and demerits.
At the same time, the almighty relies
on human eorts (as well as on the mid-
dling gods, the natural orderliness of plan-
ets, other creatures, and eco-systems in
our world) towards regulating the cosmos.
At the end of the day, compassion does
mark God’s intentions, even in the face
of natural calamities and misfortunes that
may or may not be caused by an agent’s
previous karma; God, though, is not re-
sponsible for these. God’s compassion
also has its limitations, for he is respect-
ful of the laws of karma and leaves people
to work-o their karma in ways most ap-
propriate and conducive for their salvic
future. The soteriological end for which
the world could be said to have been cre-
ated – i.e. ultimate good and salvation for
all human beings if not all sentient crea-
tures (gods and animals alike) – seems to
be sparsely hinged onto the cosmological
design of the universe (as paradoxical as
this may sound).
So there is absent anything close
to the Western religious concept of provi-
dence in this account, because there is
neither a full-scale creation, nor a very de-
cisive teleology, nor any sense of a contin-
uous presence of the divine Geist through-
out history; he is not a fellow-suerer with
human beings, much less with other ‘lowly’
creatures (CHATTERJEE, 1997, p. 325).
In other words, God relies on a pre-exist-
ing set of conditions which were then put
in place at the time of creation, including
dharma, right order or law, and karma, the
root trigger of evil in the world, which is
governed by its own inexorable laws. For
this reason God does not intervene; but
the overall cosmic design ensures that the
ultimate good can still be striven for and
attained, ceteris paribus. The cogency of
this argument is of course questionable: it
is not clear why God does not intervene
if he desires the best (niḥśreya) for all
sentient beings? Suppose the cumulative
karma perpetuates itself seamlessly and
individuals under the veil of their own igno-
rance fail defeasibly to heed to the edicts
of dharma, and so no one reaches the so-
teriological end or liberation. That ultimate
good is forfeited, and evil reins supreme –
until the end-time, after which another cy-
cle returns, and so on, ad innitum, like a
cosmic circus. Does God just sit back and
let it be? That would be rather callous of
him, and not a tting tribute to his omnipo-
tence and benevolence.
There are further questions raised by the
Mīmāṃsā philosophers, very much in the
spirit of, or anticipating, the Humean cri-
tique (BILIMORIA, 1990). They point to the
imperfections of the world and ask wheth-
191
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er God might have botched up the job, and
that he might therefore be an inecient de-
signer, as well as morally callous, indier-
ent, and lacking in compassion. Moreover,
why does the huge amount of bad karma
that abounds in the world not bring blem-
ish upon God’s nature? Is he really in con-
trol? In other words, if God is omnipotent,
then he should be able to eliminate all evil
accruing from karma by mitigating the re-
sidual traces of all acts. If he is omniscient
he would know each individual’s karma
(which he probably does when he puts his
mind to it) and the suering this will likely
bring about; but in his innite wisdom, he
should also be able to guide the individual
toward a safer recourse or rescue from the
deleterious consequence of the prior kar-
ma-eected disposition.
The short answer to these ques-
tions, usually, is that human eort can both
be culpable and ecacious toward coun-
tering the pitiable travails of existence:
that indeed is the hidden hand of karmic
laws. It also means that being thus free
to choose, human beings are not pawns
in the hands of a superior power. But still,
wouldn’t there be greater justice possible
if God, who is said to be good by virtue of
his nature (not just by some arbitrary at),
actually did intervene rather than simply
allow the brute, impersonal operations of
karma to determine certain specic out-
comes? Besides, do all instances of good
karma get rewarded equally and fairly, or
is some favouritism involved, particularly
where God is moved to respond to the
obsequious prayers and, supplications, of
some but chooses to ignore those of the
indels or the unrepentant? Is he, in his
innite resignation, incapable of allowing
another chance, or transmuting or even
transferring karma elsewhere, or oering
some rehabilitative dispensation rather
than be hamstrung by a rigidly impersonal
retributive justice automaton? Human be-
ings complain about the uneven calculus
– amounting to starkly universal injustice.
Nor does the justicatory paradigm
based on karma account for the presence
of natural evil. Are earthquakes, tsunamis,
bush-res, hurricane and other devastating
natural turbulences of necessity casually
linked to people’s karma, especially that
of the hundreds and thousands of victims,
particularly innocent children, animals and
plant-life, aected by such disasters? What
have the latter done to deserve this igno-
miny? Wouldn’t a personal judge who has
compassion and empathy be better placed
to make adjustments, avert such disasters
which he in his omniscient mind should be
able to foresee coming? Or, alternatively
would he not desire to compensate the
victim, even of a culprit who has behaved
heinously, on the basis of their prior good
karmas and felicitous track-records, etc.?
Is ita moral imperative to accumulate good
karma or merely a prudential decree? This
question is asked because there are clear-
ly set moral consequences when it comes
to accruing bad karma, which appears not
to be so with respect to good karmas, and
therefore the respective consequences
are calculated dierentially between pro-
scribed bad acts and prudentially good
acts. Just as, for example, in some hu-
man social and lial practices, a perceived
misdemeanour or egregious conduct may
be gravely admonished and indeed pun-
ished rather harshly, especially if remorse
and expiatory atonement are not evinced
in the culpable agent, or there is threat of
potential recurrence, such that all prior
good deeds and virtues of the agent may
forever remain unacknowledged and unre-
warded (which is why, in modern secular
India, capital punishment has been abol-
ished in most states). So there just isn’t
a proportionate balance conceptually and
ontologically between the planks of good
and bad karmas; the supposed symmetry
between ‘reward’ and ‘punishment’ is en-
tirely misplaced, such that the former may
aord one ‘an orange for Christmas’ (as
in Ray Charles’ experience) but the latter
could well sentence him to capital punish-
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ment, i.e. death (KAUFMAN, 2005, p. 21)
Is then the theory of karma aligned with
God as an available but too often inacces-
sible moderator an unexemplary model
for divine justice? And if God does or can
intervene or interfere with the operation
of the laws of karma, does it mean there
could be something unjust – not quite right
– in the operation of karma (hence, karmic
injustice)? Perhaps an impersonal law is
neither just nor unjust – it does what it is
as it were programmed to do, regardless
(CHADHA; TRAKAKIS, 2007, p. 541). But
if it cannot be mitigated either by God or
human free will to a large extent then it is
a case of hard determinism. A theodicy for
karma is not at stake, for as argued, left
to its own devices, karma theory does al-
low for assuaging the moral burden in less
deterministic or fatalistic terms than often
imagined; but since a God is involved and
he is supposed to be essentially good and
yet there is evil, the Nyāya theodicy runs
into a few problems.
III
Bibliograa:
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God: towards a Mīmāṃsā Deconstrution. Interna-
tional Philosophical Quartely, 30, 1990, p. 481-499.
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Problem of Evil. Philosophy East and West, 55, no.
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TAYLOR, Mark C. After God. Chicago and London:
The University of Chicago Press, 2007.
Recebido em 08/08/2017
Aprovado em 01/09/2017
I Purushottama Bilimoria. PhD vinculado ao Center for
Dharma Studies Distinguished Teaching Fellow & Core
Doctoral Faculty; Researcher/Editor (Global Scholar),
Graduate Theological Union. Professor na Universidade
da California (Berkeley, EUA). Contato: pbilimoria@gtu.
edu
II I discuss this in my recent paper “Why is there Noth-
ing rather than Something? An Essay in the Compara-
tive Metaphysic of Non-Being,” for the Max Charlesworth
Festschrift in Sophia, 51(4), 2012, pp. 509-30.
III I have eschewed going into further historical develop-
ments in Nyāya where more fortied arguments for the
existence of God [in the face of evil in the world] were
harnessed (from Udayana, 11th cent. to Gaṅgeśa, 14th
cent). There weregallant attempt to shield orthodox be-
liefs from misperceived theodicy and criticisms [that had
been] brandished by Indian non-theists (Buddhists and
Jains) and Hindu agnostics (Mīmāṃsā, Yoga-Sāṁkhya).
For whichsee Vattanky 1993, and Patil 2009.