DOSSIÊ “PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS,
PATRIMÔNIO CULTURAL E TERRITÓRIOS
DOSSIER “SOCIO-CULTURAL PRACTICES,
CULTURAL HERITAGE AND TERRITORY
Apresentação do Dossiê
Dossier’s presentation
FÁBIO CASTRO, LUIZ AUGUSTO RODRIGUES e RENATA ROCHA
Territórios da diplomacia cultural brasileira entre
2003 e 2010: continentes, países e cidades
Territories of Brazilian cultural diplomacy between 2003 and 2010:
continents, countries and cities
BRUNO DO VALE NOVAIS
Desaos da participação e da descentralização na
gestão de políticas culturais nas cidades
Participation and decentralization as management’s principles
in cultural policies in Bogotá
MONICA CRISTINA MORENO-CUBILLOS
Federalismo e relações intergovernamentais: uma
análise dos processos de implementação e gestão dos
Sistemas Municipais de Cultura
Federalism and intergovernmental relations:
an analysis of the processes for the implementation and
management of municipal systems of culture
RAFAEL AQUINO
“ICMS - Patrimônio Cultural”: um estudo sobre a política
pública de preservação cultural do Estado de Minas
Gerais com ênfase no processo de Educação Patrimonial
“ICMS - Cultural Heritage”: a study on the public policy for the cultural preservation
of the State of Minas Gerais with emphasis on heritage education process
CLÉSIO BARBOSA LEMOS JÚNIOR
Bongar e vencer nos editais: políticas públicas
culturais, mercado e grupos artísticos populares
Bongar and win in the biddings:
cultural public policies, market and popular culture groups
GABRIELA PIMENTEL DE ARAÚJO, LEONARDO LEAL ESTEVES
e LADY SELMA FERREIRA ALBERNAZ
Novas dinâmicas culturais: tensão e vitalidade nas cidades
New cultural dynamics: tension and vitality in the cities
RACHEL GADELHA
Cidadania Cultural: entre a democratização da cultura
e a democracia cultural
Cultural Citizenship: between democratization of the culture and cultural democracy
VALMIR DE SOUZA
Cidade vista de dentro
City view from inside
LÚCIA MACIEL BARBOSA DE OLIVEIRA
Modelos de formação de agenda na análise
de políticas públicas aplicados à cultura:
o caso do projeto de Reestruturação do Acervo
da Pinacoteca de São Bernardo do Campo
Models for training schedules in the analysis of public policies
applied to culture: the case of the restructuring project of the
collection of the Pinacoteca of São Bernardo do Campo
LÚCIO NAGIB BITTENCOURT e MAYRA C. A. OLIVEIRA
A regulamentação legal do grate: Perspectivas
e caminhos a partir de uma experiência prática em Curitiba
The legal regulation of the graphite: Perspectives and paths
from a practical experience in Curitiba
ANGELA CASSIA COSTALDELLO e FRANCISCO BLEY
Os contratempos do espaço:
patrimônio cultural imaterial e o Livro de Registro
Atividades Econômicas Tradicionais e Notáveis
The space’s contradictions: cultural heritage and the new
form of heritage’s registries named “Traditional and Notable
Economic Activities”
JOÃO DOMINGUES
Os processos de (re)tradicionalização e patrimonialização
no carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro
The processes of (re)traditionalization and patrimonialization
in the carnival of the blocks of street in Rio de Janeiro
MARINA BAY FRYDBERG
Apropriação do patrimônio cultural na região
portuária do Rio de Janeiro: políticas culturais
entre a territorialidade e a exploração
Appropriation of the cultural heritage in the port region
of Rio de Janeiro: cultural policies between territoriality and exploitation
MARIANA ALBINATI
Cultura hip hop: Batalha dos Bombeiros
- entre rimas e reivindicações
Hip hop culture: Batalha dos Bombeiros – among claims and rhymes
AMANDA ROSIÉLI FIUZA E SILVA, SANDRA RÚBIA DA SILVA e JONÁRIA FRANÇA DA SILVA
Identidade e ethos conservador na política cultural.
Estudo comparado França- Brasil
Identity and conservative ethos in cultural politics.
Study comparing France-Brazil
MARINA RAMOS NEVES DE CASTRO
Ano VIII nº 14 - out/2017 a mar/2018
www.pragmatizes.uff.br
ISSN 2237-1508
PragMATIZES
Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Ano VIII nº 14 - out/2017 a mar/2018
EDITORES
1. Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
2. Luiz Augusto Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
3. Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
1. Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Brasil
2. Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Brasil
3. Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Comunicação, Brasil
4. João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e
Comunicação Social, Departamento de Arte, Curso de Produção Cultural, Brasil
5. José Maurício Saldanha Alvarez, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Estudos de Mídia, Brasil
6. Leandro Riodades, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes
e Estudos Culturais, Brasil
7. Leonardo Guelman, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
8. Lívia de Tommasi, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Sociologia, Brasil
9. Lygia Segala, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Fundamentos Pedagógicos, Brasil
10. Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Estudos de Mídia, Brasil
11. Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento, Brasil
12. Rossi Alves, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
13. Wallace de Deus Barbosa, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
1. Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Brasil
2. Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural / Director
de La Fundación Contemporánea, Espanha
3. Alessandra Meleiro, Universidade Federal de São Carlos, Brasil
4. Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará e Universidade Federal
do Ceará, PPG Cultura e Sociedade, Brasil
5. Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Direito /
UFRJ/PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Brasil
6. Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Master en Gestión Cultural /
Director geral de Transit projectes, Espanha
7. Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências / Pesquisador do CNPq, Brasil
8. Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Ciência da Informação, Brasil
9. Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Departamento de Administração / Pesquisadora do CNPq, Brasil
10. Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Instituto
Interdisciplinario de Estudios Avanzados/CONICET: Consejo Nacional de
Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
11. Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de
Multimeios, Mídia e Comunicação, Brasil
12. Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus de
Paris, Faculdad Gestión, Derecho y Finanzas , França
13. Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad de
Buenos Aires, Argentina
14. Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, PPG em História, Brasil
15. Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Arte, Brasil
16. Guillermo Mastrini, Universidad Nacional de Quilmes, Maestría en Industrias
Culturales, Argentina
17. Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
18. Isabel Babo - Universidade Lusófona do Porto, Portugal
19. Jaime Ruiz-Gutierrez, Universidad de los Andes, Colombia
20. Jeferson Francisco Selbach, Universidade Federal do Pampa, curso de
Produção e Política Cultural, Brasil
21. José Luis Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, Instituto de Gestion
del conocimiento y del aprendizaje en ambientes virtuales, México
22. José Márcio Barros, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PPG
em Comunicação, Brasil
23. Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Master Estudios Culturales, Espanha
24. Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
25. Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG em
Urbanismo, Brasil
26. Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, Brasil
27. Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Departamento
de Arte, Brasil
28. Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciências Administrativas, Brasil
29. Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Artes e
Estudos Culturais, Brasil
30. Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
31. Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e
Culturas, Portugal
32. Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisadora do CNPq, Brasil
33. Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia – sede Medellín, Profesora
jubilada y honoraria da Faculdad de Ciencias Humanas y Económicas, Colombia
34. Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes / CONICET: Consejo
Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas, Argentina
35. Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Maestria en Estudios
Culturales, Argentina
36. Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação / Pesquisador do CNPq, Brasil
37. Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Brasil
38. Patricio Rivas, Escola de Gobierno de la Universidad de Chile, Chile
39. Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências, Brasil
40. Ricardo Gomes Lima, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Departamento de Artes e Cultura Popular, Brasil
41. Stefano Cristante, Università del Salento, Professore associato in Sociologia
dei processi culturali, Italia
42. Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Profesora Titular del
Departamento de Sociologia, Cuba
43. Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Departamento de Cinema, Brasil
44. Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, curso de Relações
Públicas [com ênfase em Produção Cultural], Brasil
45. Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Maestría
de Estudios Culturales, Peru
46. Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes / Maestria em Estudios
Culturales, Colômbia
EDITORES ASSOCIADOS JUNIOR:
1. Bárbara Duarte, doutoranda em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba
2. Deborah Rebello Lima, mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo
CPDOC, Fundação Getúlio Vargas / pesquisadora pela Fundação Casa de Rui Barbosa
3. Gabriel Cid, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4. Leandro de Paula Santos, doutorando em Comunicação pela ECO, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro
5. Marine Lila Corde, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
6. Sávio Tadeu Guimarães, doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro
7. Virginia Totti Guimarães, doutoranda em Direito, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro / professora de Direito Ambiental (PUC-Rio)
CRIADOR DA MARCA:
Laert Andrade
DIAGRAMAÇÃO:
Ubirajara Leal
REALIZAÇÃO:
APOIO:
PARCEIROS:
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
+55 21 2629-9755 / 2629-9756 | pragmatizes@gmail.com
PragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura.
Ano VIII nº 14, (OUT/2017 a MAR/2018). – Niterói, RJ: [s. N.], 2017.
(Universidade Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais -
LABAC)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão on line)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e expressões
artísticas. I. Título.
CDD 306
Sumário / Summary
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ / DOSSIER’S PRESENTATION
DOSSIÊ: Práticas socioculturais, patrimônio cultural e territórios
DOSSIER: Socio-cultural practices, cultural heritage and territory
FÁBIO CASTRO, LUIZ AUGUSTO RODRIGUES e RENATA ROCHA 07
DOSSIÊ / DOSSIER 13
Territórios da diplomacia cultural brasileira entre 2003 e 2010:
continentes, países e cidadesa
Territories of Brazilian cultural diplomacy between 2003 and 2010:
continents, countries and cities
BRUNO DO VALE NOVAIS 14
Desaos da participação e da descentralização
na gestão de políticas culturais nas cidades
Participation and decentralization as management’s principles
in cultural policies in Bogotá
MONICA CRISTINA MORENO-CUBILLOS 29
Novas dinâmicas culturais: tensão e vitalidade nas cidades
New cultural dynamics: tension and vitality in the cities
RACHEL GADELHA 43
Federalismo e relações intergovernamentais: uma análise
dos processos de implementação e gestão dos Sistemas Municipais de Cultura
Federalism and intergovernmental relations: an analysis of the processes
for the implementation and management of municipal systems of culture
RAFAEL AQUINO 55
“ICMS - Patrimônio Cultural”: um estudo sobre a política pública de preservação
cultural do Estado de Minas Gerais com ênfase no processo de Educação Patrimonial
“ICMS - Cultural Heritage”: a study on the public policy for the cultural preservation
of the State of Minas Gerais with emphasis on heritage education process
CLÉSIO BARBOSA LEMOS JÚNIOR 67
Bongar e vencer nos editais: políticas públicas culturais,
mercado e grupos artísticos populares
Bongar and win in the biddings: cultural public policies, market and popular culture groups
GABRIELA PIMENTEL DE ARAÚJO, LEONARDO LEAL ESTEVES e LADY SELMA FERREIRA ALBERNAZ 84
Cidadania Cultural: entre a democratização da cultura e a democracia cultural
Cultural Citizenship: between democratization of the culture and cultural democracy
VALMIR DE SOUZA 97
Cidade vista de dentro
City view from inside
LÚCIA MACIEL BARBOSA DE OLIVEIRA 108
Modelos de formação de agenda na análise de políticas públicas
aplicados à cultura: o caso do projeto de Reestruturação
do Acervo da Pinacoteca de São Bernardo do Campo
Models for training schedules in the analysis of public policies
applied to culture: the case of the restructuring project of the collection
of the Pinacoteca of São Bernardo do Campo
LÚCIO NAGIB BITTENCOURT e MAYRA C. A. OLIVEIRA 118
A regulamentação legal do grate:
Perspectivas e caminhos a partir de uma experiência prática em Curitiba
The legal regulation of the graphite: Perspectives and paths
from a practical experience in Curitiba
ANGELA CASSIA COSTALDELLO e FRANCISCO BLEY 135
Os contratempos do espaço: patrimônio cultural imaterial
e o Livro de Registro Atividades Econômicas Tradicionais e Notáveis
The space’s contradictions: cultural heritage and the new form
of heritage’s registries named “Traditional and Notable Economic Activities”
JOÃO DOMINGUES 144
Os processos de (re)tradicionalização e patrimonialização
no carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro
The processes of (re)traditionalization and patrimonialization
in the carnival of the blocks of street in Rio de Janeiro
MARINA BAY FRYDBERG 161
Apropriação do patrimônio cultural na região portuária do Rio de Janeiro:
políticas culturais entre a territorialidade e a exploração
Appropriation of the cultural heritage in the port region of Rio de Janeiro:
cultural policies between territoriality and exploitations
MARIANA ALBINATI 177
Cultura hip hop: Batalha dos Bombeiros - entre rimas e reivindicações
Hip hop culture: Batalha dos Bombeiros – among claims and rhymes
AMANDA ROSIÉLI FIUZA E SILVA, SANDRA RÚBIA DA SILVA e JONÁRIA FRANÇA DA SILVA 188
Identidade e ethos conservador na política cultural.
Estudo comparado França- Brasil
Identity and conservative ethos in cultural politics.
Study comparing France-Brazil
MARINA RAMOS NEVES DE CASTRO 203
7
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Apresentação do Dossiê
“Práticas socioculturais,
patrimônio cultural
e territórios”
8
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Práticas socioculturais, patrimônio cultural e territórios
Socio-cultural practices, cultural heritage and territory
Fábio Castro (Universidade Federal do Pará)
Luiz Augusto Rodrigues (Universidade Federal Fluminense)
Renata Rocha (Universidade Federal da Bahia)
Apresentamos neste dossiê diver-
sas reexões do campo cultural, em es-
pecial aquelas que buscam tensionar a
temática dos territórios e das territorialida-
des. Entendemos que tais discussões são
bases expressivas para o campo da ges-
tão e das políticas culturais. Assim, propo-
mos aos leitores uma diversidade de olha-
res que se complementam na expectativa
de melhor embasar os estudos em cultu-
ra, levando em consideração realidades
brasileiras, e também algumas interfaces
com outras partes do mundo.
O texto Territórios da diplomacia
cultural brasileira entre 2003 e 2010:
continentes, países e cidades, de Bruno
do Vale Novais, apresenta como essa
política pública foi realizada nas cida-
des, países e continentes por meio de
três agentes: Ministério das Relações
Exteriores (MRE), pelo Ministério da
Cultura (MINC) e pelo Ministério da Edu-
cação (MEC) no período citado. O autor
debruçou-se sobre a diplomacia cultural
brasileira no primeiro decênio do sécu-
lo XXI focalizando as áreas de Língua,
Livro, Leitura e Literatura e Editoração,
armando que “o Estado brasileiro tem
por desao o entendimento de que é
preciso passar a olhar tal vertente da
política externa do País como recurso
estratégico ao projeto contemporâneo
de inserção internacional do Brasil”.
O artigo seguinte é de Monica
Cristina Moreno-Cubillos. Intitula-se De-
saos da participação e da descentraliza-
ção na gestão de políticas culturais nas
cidades. A inserção da participação e da
descentralização como princípios para
a gestão das políticas culturais é anali-
sada tomando como exemplo a capital
da Colômbia, mediante o levantamento
documental de material normativo sobre
políticas culturais nesse país e o estudo
de caso intrínseco por meio dos depoi-
mentos de diferentes sujeitos, dentro e
fora da institucionalidade, que reetem
sobre os mecanismos estabelecidos es-
pecicamente em Bogotá. Para tal m,
exploram-se os principais traços da go-
vernança urbana no período neoliberal e
as particularidades dessa cidade, revisa-
-se a incorporação dos princípios de par-
ticipação e descentralização nas políticas
culturais e nas diretrizes para a gestão
cultural da Colômbia e discute-se a forma
como estes se materializam nas políticas
culturais, visibilizando algumas fraquezas
relacionadas com o desenho do sistema,
a capacidade institucional e dos agentes
culturais que agem nos espaços, a arti-
culação entre diversos canais de parti-
cipação e a incidência dos acordos em
decisões como distribuição de recursos,
entre outros. Finalmente, apontam-se al-
guns desaos em três perspectivas: a in-
tegração dos públicos nas discussões, o
9
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
grau de autonomia dos espaços, e a ne-
cessidade de debater a categoria ‘cultura’
como ponto de partida para a denição
das linhas de intervenção.
Os estudos apresentados por Ra-
chel Gadelha no artigo Novas dinâmicas
culturais: tensão e vitalidade nas cida-
des pretendem trazer elementos para
a reexão sobre as dinâmicas culturais
contemporâneas, abordando algumas
mudanças que estão em curso e os de-
saos que estão postos para os agentes
culturais no âmbito das cidades e suas
repercussões em uma nova institucio-
nalidade da cultura. Para tanto, faz-se
um breve histórico das políticas culturais
recentes no Brasil, de forma a facilitar
a compreensão da conjuntura atual e
proporcionar uma visão mais ampliada
do campo cultural contemporâneo e de
seus distintos agentes, entendendo-o
como resultante, também, de um regime
de valores e discursos com forte vincula-
ção ao contexto social e político cultural
do Brasil nas últimas décadas. A autora
aponta como instigações para os estu-
dos a identicação de novas dinâmicas
da cultura e de movimentos de criação
emergentes nas cidades, as questões
que se conguram hoje e os desaos
que estas impõem aos gestores culturais
e aos demais agentes do campo; assim
como a investigação de como esses no-
vos uxos se relacionam e afetam uma
nova institucionalidade cultural.
Passando para a esfera munici-
pal, o texto de Rafael Aquino - Federalis-
mo e relações intergovernamentais: uma
análise dos processos de implementa-
ção e gestão dos Sistemas Municipais
de Cultura – se debruça sobre a efetivi-
dade da indução federativa na tomada
de decisão dos municípios em pactuar
com a política de organização intergo-
vernamental da gestão cultural, propos-
ta pelo Sistema Nacional de Cultura. A
partir da análise documental e da coleta
de material empírico, realizada por meio
de estudos de caso, busca-se evidenciar
os aspectos discricionários, formais, téc-
nicos, sociais e políticos envolvidos no
processo de implementação e gestão
dos Sistemas Municipais de Cultura. Fo-
ram tomados como objetos do estudo de
caso os municípios de Betim, Contagem,
e Sabará, em função das diferenciações
políticas, administrativas e de recursos
nanceiros disponibilizados para viabili-
zar suas políticas locais de cultura. As
administrações municipais enfocadas
têm população superior a 100 mil habi-
tantes e possuem Índice de Desenvolvi-
mento Humano Municipal (IDHM) entre
os patamares alto e médio. Minas Gerais
é o estado da federação com o maior nú-
mero de municípios, somando um total
de 853 governos locais, que possuem
situação econômica e formação socioes-
pacial bastante diversa. Neste contexto,
o conjunto que forma a Região Metropo-
litana de Belo Horizonte (RMBH) permite
elaborar uma contribuição conceitual e
analítica referente à efetividade do de-
senvolvimento local das políticas públi-
cas de cultura, estabelecidas em regime
de cooperação intergovernamental.
Os estudos sobre aspectos da re-
alidade cultural mineira seguem no artigo
de Clésio Barbosa Lemos Júnior: “ICMS
- Patrimônio Cultural”: um estudo sobre
a política pública de preservação cultural
do Estado de Minas Gerais com ênfase
no processo de Educação Patrimonial. O
autor argumenta que uma política pública,
em particular, de preservação cultural, só
se mostra correta e consequente quan-
do além de contemplar medidas referen-
tes à memória e identidade de um povo,
baseia-se amplamente em uma concep-
ção que integra as questões socioeconô-
micas, técnicas, artísticas e ambientais,
articulando-as com as questões de quali-
dade de vida, meio ambiente e cidadania.
Diante desse mote, o estudo foi organiza-
do a partir da análise da política pública
10
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
de preservação do patrimônio cultural no
Estado de Minas Gerais. Primeiramente
abordou-se, de maneira sucinta, o históri-
co que deu origem a lei conhecida como
“Lei Robin Hood”, responsável pelo orde-
namento da referida política pública. Em
um segundo momento tratou-se da espe-
cicidade do critério patrimônio cultural,
cujo reconhecimento se dá pelo termo
“ICMS - Patrimônio Cultural”. O proces-
so de educação para o patrimônio cultu-
ral, tratado como educação patrimonial,
foi abordado na terceira seção do artigo
com enfoque nas ações que podem ser
desenvolvidas para a efetiva aplicação
dessa metodologia educacional. Por m,
algumas considerações foram feitas na
tentativa de reforçar a temática e fomen-
tar novas discussões.
Seguindo na lógica de se reetir
sobre as leis de mecenato cultural, tem-
-se o artigo Bongar e vencer nos editais:
políticas públicas culturais, mercado e
grupos artísticos populares, de Gabriela
Pimentel de Araújo, Leonardo Leal Es-
teves e Lady Selma Ferreira Albernaz.
Este trabalho resulta da junção de duas
pesquisas, feitas separadamente, mas
orientadas pela terceira autora que o
subscreve. Ambas são relativas à cultura
popular e suas relações com as políticas
públicas de cultura por meio de editais,
os quais podem requerer novas estraté-
gias de organização destes grupos, bem
como implicam em sua provável inser-
ção, bem-sucedida ou não, no mercado
e indústria cultural, podendo ter desdo-
bramentos para a autonomia de signi-
cados rituais que tais grupos expressam.
Ambas as pesquisas basearam-se nos
métodos da antropologia, por meio de
trabalho de campo, que incluiu observa-
ção participante, elaboração de diário de
campo, recolha de documentos e entre-
vistas. As reexões sobre as tensões e
desigualdades que marcam as relações
entre mestres e grupos de cultura popu-
lar, Estado e mercado de cultura, nota-
damente a indústria cultural, toma como
referência o caso do grupo Bongar, cuja
fundação e a atuação salientam aspec-
tos importantes sobre políticas públicas,
voltadas às culturas populares, no esta-
do de Pernambuco nas últimas décadas,
cujas relações que são orientadas pelos
instrumentos burocráticos dos editais
para incentivo. Tentamos reunir suges-
tões para evitar que, nos editais, sejam
feitas exigências que criem obstáculos
para a autonomia nanceira e ritual dos
grupos de cultura popular.
Estudos sobre realidades paulistas,
neste dossiê, iniciam-se com o texto de
Valmir de Souza: Cidadania Cultural: entre
a democratização da cultura e a democra-
cia cultural que traz a análise de dois pa-
radigmas de políticas culturais, democra-
tização da cultural e democracia cultural,
apresentando diferentes experiências de
gestão cultural na Europa e no Brasil que
adotaram estes dois modelos, com ênfase
na gestão cultural em São Paulo.
Tais rumos são seguidos pelas re-
exões de Lúcia Maciel Barbosa de Olivei-
ra no artigo Cidade vista de dentro, que
busca articular à noção de democracia
a de participação, na perspectiva de au-
mento da qualidade democrática. A parti-
cipação democrática se efetua de manei-
ra concreta no espaço local, na cidade. A
partir da experiência de cogestão de uma
ocupação cultural em Ermelino Matara-
zzo, rmada entre coletivos culturais e a
Secretaria de Cultura do Município de São
Paulo, através de entrevista com um dos
participantes do movimento, se atém às
formas de articulação entre democracia
representativa e democracia participativa,
novas institucionalidades que permitam
experimentações, sendo o campo da cul-
tura privilegiado para isso.
Modelos de formação de agenda
na análise de políticas públicas aplica-
dos à cultura: o caso do projeto de Re-
11
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
estruturação do Acervo da Pinacoteca
de São Bernardo do Campo, de Lúcio
Nagib Bittencourt e Mayra C. A. Olivei-
ra, discute a reestruturação do referido
acervo, realizada de dezembro de 2016
a novembro de 2017, com recursos pro-
venientes do Programa de Ação Cultu-
ral do Governo do Estado de São Pau-
lo (ProAC). A questão levantada é se a
entrada de recursos estaduais via Edi-
tal ProAC gerou desdobramentos para
além do projeto, inserindo-o na agenda
pública governamental, como problema
público relevante para o município. Para
respondê-la, os autores mobilizam refe-
renciais teóricos relacionados ao estudo
de formação de agenda na análise de
políticas públicas, especicamente as
teorias dos Múltiplos Fluxos e do Equi-
líbrio Interrompido. Além dessa revisão
bibliográca, os métodos utilizados en-
volveram a realização de análise do do-
cumento submetido ao Edital nº19/2016
- disponível para acesso público, pesqui-
sa documental para o levantamento de
dados quantitativos e entrevista semies-
truturada com a coordenadora do proje-
to. Os resultados indicam que embora
não seja possível armar que o projeto
em discussão tenha entrado na agenda
municipal, ele foi desenvolvido e gerou
desdobramentos. Com isso, ao nal, le-
vantamos questionamentos acerca das
contribuições e limites associados à mo-
bilização desse referencial teórico para
análise de políticas públicas, buscando
contribuir para estudos futuros de dife-
rentes formas de ação pública – em es-
pecial, as culturais.
Os estudos de Angela Cassia Cos-
taldello e Francisco Bley - Perspectivas
e caminhos a partir de uma experiência
prática em Curitiba – têm como escopo
investigar as legislações existentes acer-
ca da prática do grate no Brasil, eviden-
ciando seus avanços históricos, e ques-
tionando suas insuciências perante a
realidade de seu exercício em âmbito lo-
cal. Para tanto, serão levadas em consi-
deração as pesquisas do projeto “Clínica
Direito e Arte” da Universidade Federal
do Paraná, cujo trabalho ocorre junto a
grateiros e artistas da cidade de Curitiba
para a construção de políticas públicas
para o setor em questão.
Os artigos seguintes focalizam em
especial a questão do patrimônio cultu-
ral, em estudos que se debruçam sobre
a cidade do Rio de Janeiro.
O artigo de João Domingues – Os
contratempos do espaço: patrimônio cul-
tural imaterial e o Livro de Registro Ati-
vidades Econômicas Tradicionais e Notá-
veis - discute as intervenções em áreas
urbanas centrais e suas conexões com
as políticas culturais. E, de maneira mais
especíca, como a radicalização da mer-
cantilização do espaço urbano cria con-
dições de interferência em processos de
reconhecimento e vivência patrimonial.
No caso em questão, destaca-se o imbró-
glio envolvendo o processo de registro no
Livro Patrimonial “Atividades Econômicas
Tradicionais e Notáveis”, uma novidade
nas políticas patrimoniais da cidade do
Rio de Janeiro. O autor busca demons-
trar a inexorabilidade das inscrições so-
ciais nas relações espaciais e temporais,
carregadas de conitos discursivos, e
sua determinação para a continuidade
das expressões selecionadas no novo li-
vro de registros imateriais.
Marina Bay Frydberg investiga Os
processos de (re)tradicionalização e pa-
trimonialização no carnaval dos blocos
de rua no Rio de Janeiro. Como aponta
a autora, o século XXI trouxe consigo a
expansão do carnaval dos blocos de rua
na cidade do Rio de Janeiro em propor-
ções cada vez mais expressivas, tanto
no número de blocos quanto no de foli-
ões. Inseridos nesta recente valorização
de brincar o carnaval, tais expressões
culturais se veem em meio a uma dis-
12
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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cussão entre o aumento da rentabilidade
econômica através da mercantilização
da/na festa, associada à sua prossiona-
lização, e a valorização de práticas tradi-
cionais de se brincar o carnaval através
da discussão da sua patrimonialização.
Busca-se, a partir desse panorama,
compreender o processo de (re)tradi-
cionalização pelo qual vem passando o
carnaval dos blocos de rua na cidade do
Rio de Janeiro, problematizando os múl-
tiplos signicados que a noção de tradi-
ção carnavalesca tem para os diferentes
agentes que organizam a festa e ações
em prol de sua patrimonialização.
O artigo de Mariana Albinati, inti-
tulado Apropriação do patrimônio cultu-
ral na região portuária do Rio de Janeiro:
políticas culturais entre a territorialidade
e a exploração. O estudo se debruça so-
bre diferentes agentes e ações de polí-
tica cultural que disputam, no contexto
do projeto Porto Maravilha, os discursos
e práticas acerca da cultura na Zona
Portuária da cidade do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, investiga as diferentes
lógicas que operam a apropriação do pa-
trimônio cultural materialmente situado
ou simbolicamente referido na região: de
um lado a lógica da territorialidade que,
atuando em diversas escalas, é marcada
pela apropriação simbólica, pelo sentido
de pertencimento (diferente de proprie-
dade) e pela produção de bens comuns
urbanos; de outro a lógica da explora-
ção, marcada pela apropriação privada
do capital simbólico coletivo produzido
por grupos culturalmente subordinados
em políticas culturais promovidas por
e para grupos dominantes. Para tanto,
parte-se de um entendimento ampliado
acerca das políticas culturais, reconhe-
cendo suas diferentes esferas de produ-
ção (institucionais ou não, do Estado ou
da sociedade civil), sem ignorar a posi-
ção privilegiada que o Estado – e a co-
alizão de poderes e favor da qual opera
– detém na disputa pela legitimidade da
expressão das diferentes culturas que o
espaço urbano reúne.
O texto Cultura hip hop: Batalha
dos Bombeiros - entre rimas e reivin-
dicações, de Amanda Rosiéli Fiuza e
Silva, Sandra Rúbia da Silva, e Jonária
França da Silva, descreve os resulta-
dos obtidos através de pesquisa etno-
gráfica que analisou se a Batalha dos
Bombeiros, evento da cultura hip hop
da cidade de Santa Maria/RS, pode ser
considerado um espaço de representa-
ções e reivindicações sociopolíticas. A
investigação revelou tal prática cultural
como cenário de múltiplos significados,
isto é, a praça constitui-se em um es-
paço simbólico de resistência onde jo-
vens oriundos das periferias da cidade,
por meio das expressões culturais e da
apropriação do espaço público, mani-
festam suas lutas sociais e reivindicam
melhores condições de vida.
O dossiê termina com o artigo
Identidade e ethos conservador na po-
lítica cultural. Estudo comparado Fran-
ça- Brasil, de Marina Ramos Neves de
Castro, que discute o ethos identitário
das políticas culturais conservadoras,
observando as práticas de controle e
disciplina da identidade pelo Estado.
A reflexão é realizada com base numa
perspectiva comparada, observando a
conformação histórica das políticas cul-
turais da França e do Brasil.
13
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Dossiê
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Territórios da diplomacia cultural brasileira entre 2003 e 2010:
continentes, países e cidades
Territorios de la diplomacia cultural brasileña entre 2003 y 2010:
continentes, países y ciudades
Territories of Brazilian cultural diplomacy between 2003 and 2010:
continents, countries and cities
Bruno do Vale Novais
I
Resumo:
O presente texto apresenta parte da análise desenvolvida na
dissertação de mestrado intitulada “Caminhos trilhados, horizontes
possíveis: um olhar sobre a diplomacia cultural do Estado brasileiro
entre 2003 e 2010”, defendida em 2013 na Universidade Federal da
Bahia. O artigo apresenta como essa política pública foi realizada nas
cidades, países e continentes por meio de três agentes: Ministério
das Relações Exteriores (MRE), pelo Ministério da Cultura (MINC)
e pelo Ministério da Educação (MEC) no período citado. Para isso
realizou-se mapeamento das ações culturais trabalhadas entre 2003
e 2010 pelos entes escolhidos para esta investigação acadêmica.
Por meio deste percurso compreendeu-se que é possível falar em
diplomacia cultural brasileira no primeiro decênio do século XXI a qual
privilegiou as regiões da América do Sul, Europa e África e as áreas
de Língua, Livro, Leitura e Literatura e Editoração. Assim, o Estado
brasileiro tem por desao o entendimento de que é preciso passar a
olhar tal vertente da política externa do País como recurso estratégico
ao projeto contemporâneo de inserção internacional do Brasil. A
cultura brasileira tem a chance de fortalecer a presença do País no
mundo de maneira autônoma e soberana uma vez que é reexo de
características internas da nação, de maneira especíca o caráter
pacíco e criativo de seus cidadãos e a busca pelo desenvolvimento
em diversas esferas sociais, dentre elas a cultural.
Palavras chave:
Diplomacia Cultural
do Brasil
Políticas Culturais
Ministério das Relações
Exteriores do Brasil
Ministério da Cultura
do Brasil
Ministério da Educação
do Brasil
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Resumen:
Este texto presenta parte del análisis desarrollado en la tesis titulada
“Caminos trillados, horizontes posibles: una mirada a la diplomacia
cultural del Estado brasileño entre 2003 y 2010”, defendida en 2013
en la Universidad Federal de Bahía. El artículo presenta cómo esta
política pública se llevó a cabo en las ciudades, países y continentes
a través de tres agentes: Ministerio de Relaciones Exteriores (MRE),
por el Ministerio de Cultura (MINC) y por el Ministerio de Educación
(MEC) en el período. Para esta asignación se llevó a cabo acciones
culturales trabajadas entre 2003 y 2010 por las entidades elegidas para
esta investigación. Por esta vía dio cuenta que es posible hablar de
diplomacia cultural brasileña en la primera década del siglo XXI la cuál
privilegió las regiones de América del Sur, Europa y África y las áreas de
Lenguaje, Libro, Lectura y Literatura y Edición. Así, el estado brasileño
tiene el desafío de la comprensión que es necesario comprender esta
vertiente de la política exterior del País como un recurso estratégico
para el diseño contemporáneo de la inserción internacional de Brasil. La
cultura brasileña tiene la oportunidad de fortalecer la presencia del país
en el mundo de manera autónoma y soberana, ya que es reejo de las
características interiores de la nación, de manera especíca, el carácter
pacíco y creativo de sus ciudadanos y la búsqueda de desarrollo en
diversos ámbitos social, entre ellos, el campo cultural.
Abstract:
This text presents part of the analysis developed in the master’s thesis
entitled “Treated paths, possible horizons: a look at cultural diplomacy
the Brazilian State between 2003 and 2010”, defended in 2013 at the
Federal University of Bahia. The article presents how this public policy
was held in cities, countries and continents through three agents: Ministry
of Foreign Affairs (MRE), by the Ministry of culture (MINC) and by the
Ministry of Education (MEC) in the period. For this mapping was carried
out cultural actions worked between 2003 and 2010 by public institutions
chosen for this academic research. Through this route gured out that it
is possible to speak in Brazilian cultural diplomacy in the rst decade of
the 21st century which privileged regions of South America, Europe and
Africa and the areas of Language, Book, Reading and Literature and
Publishing. Thus, the Brazilian State has the challenge of understanding
that we need to spend to look such a part of the country’s foreign
policy as a strategic resource to the contemporary design of Brazil’s
international insertion. Brazilian culture has a chance to strengthen the
country’s presence in the world of autonomous and sovereign manner
since it is reection of interior features of the nation, so peaceful and
creative character specic to its citizens and the search for development
in various spheres social, among them, the cultural sphere.
Palabras clave:
Diplomacia Cultural
de Brasil
Políticas Culturales
Ministerio de Relaciones
Exteriores de Brasil
Ministerio de Cultura de
Brasil
Ministerio de Educación
de Brasil
Keywords:
Brazil’s Cultural
Diplomacy
Cultural Policies
Ministry of External
Relations of Brazil
Ministry of Culture of
Brazil
Ministry of Education
of Brazil
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Territórios da diplomacia cultural
brasileira entre 2003 e 2010:
continentes, países e cidades
Palavras Inicias
Raros são estudos, pesquisas e pu-
blicações concernentes à diplomacia cultural
brasileira. A iniciativa do Embaixador Edgar
Telles Ribeiro - que é também escritor e ex-
-chefe do Departamento Cultural do Itama-
raty – em produzir uma tese no ano de 1989
como requisito para conclusão do Curso de
Altos Estudos no Instituto Rio Branco, mini-
miza essa ausência bibliográca. Esse es-
tudo intitulado por Diplomacia cultural: seu
papel na política externa brasileira represen-
ta, portanto, trabalho investigativo preliminar
para entendimento da atuação externa do
Estado brasileiro no campo da cultura.
Passei, então, a investigar documen-
tos publicados pelo Ministério das Relações
Exteriores (MRE), pelo Ministério da Cultura
(MINC), pelo Ministério da Educação (MEC).
Ademais, busquei e estudei artigos e livros so-
bre políticas culturais, política externa do Bra-
sil, relações culturais internacionais e diploma-
cia cultural na observância de meu tema de
pesquisa. Assim, compreendi que há três prin-
cipais agentes responsáveis pela diplomacia
cultural do País. O primeiro é o MRE. Isso
pode ser justicado com o argumento de que
a própria natureza de suas funções o incumbe
pela tarefa de trabalhar a diplomacia cultural
brasileira, sobretudo, por meio das Represen-
tações Brasileiras no Exterior (Embaixadas,
Consulados, Delegações e Missões) em con-
sonância com o Departamento Cultural do Ita-
maraty situado em Brasília. Ou seja, o MRE é
o órgão estatal primaz para a concretização
da diplomacia cultural brasileira.
Em segundo lugar estão o Ministério
da Cultura (MINC) e o Ministério da Edu-
cação (MEC). O primeiro, por ter inserido e
fortalecido a dimensão internacional em seu
escopo de atuação a partir de 2003. O se-
gundo, por realizar projetos e programas que,
grosso modo, favorecem o intercâmbio cultu-
ral do Brasil com outros países em diversos
continentes. Há outros entes ministeriais que
executam ações no exterior. O Ministério de
Ciência e Tecnologia (MCT), por exemplo, de-
senvolve ações de cooperação cientíca com
países de menor desenvolvimento relativo,
dentre outras ações que podem ser enten-
didas como diplomacia cultural. No entanto,
diante dos limites do formato da dissertação
de mestrado e o pouco tempo que tive para
desenvolvê-la, foi necessário optar por um
grupo menor de agentes, sem negligenciar o
entendimento de que a diplomacia cultural do
País tem sido trabalhada por outros atores,
além dos estudados por esta pesquisa.
Um olhar sobre os territórios
da diplomacia cultural brasileira
Neste trabalho foi considerada a
existência de 198 países em todos os con-
tinentes e subcontinentes com base em
dados das Nações Unidas. Desses, 179
mantiveram no período em análise, rela-
ções diplomáticas com o Brasil por diver-
sas formas. No caso da diplomacia cultural,
o Brasil desenvolveu ações em 104 países.
Em termos percentuais signica dizer foi
realizada diplomacia cultural brasileira com
37% do total de Estados nacionais que
mantém relações diplomáticas com o País.
A diplomacia cultural brasileira foi
realizada em todos os continentes – África,
América Central e Caribe, América do Nor-
te, América do Sul, Ásia, Europa, Oceania e
Oriente Médio – tido como continente nesta
pesquisa apesar de alguns geógrafos o con-
siderarem como integrante da Ásia. Todos
os países da América do Sul e da América
do Norte foram contemplados com ações
da diplomacia cultural brasileira no período
em estudo. Para vericar o caso dos demais
continentes, observe a Tabela 1.
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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No que concerne ao número de paí-
ses com os quais o Brasil mantém relações
diplomáticas e à quantidade de Estados
nacionais que realizaram diplomacia cultu-
ral brasileira entre 2003 e 2010 é possível
deduzir que: a) todos os países da América
do Sul e da América do Norte mantiveram
relações diplomáticas com o Brasil, bem
como realizaram diplomacia cultural bra-
sileira; b) Europa e América Central estão
em segundo e terceiro posicionamento em
termos de realização de diplomacia cultural
do Brasil – 65% e 58% respectivamente –
e são territórios potenciais para a amplia-
ção desse campo nestas regiões; c) o nível
de diplomacia cultural brasileira na região
africana está aquém do grau de relações
diplomáticas do Brasil com os países deste
continente – uma taxa de participação in-
ferior a 50% – e não está consoante aos
objetivos da política externa brasileira uma
vez que essa designou tal espaço mundial
como uma de suas prioridades entre 2003
e 2010; d) a Oceania é o território de menor
atuação da diplomacia cultural brasileira.
No tocante a outro indicador “nú-
mero de ações realizadas nas cidades”,
observa-se a seguinte conguração em
cada continente: África (7%), América
Central e Caribe (5%), América do Norte
(6%), América do Sul (47%), Ásia (4%),
Europa (23%), Oceania (1%), Oriente
Médio (7%). Percebe-se que América
do Sul permanece como a região cuja
concretização de atividades da diploma-
cia cultural do Brasil entre 2003 e 2010
obteve maior frequência. Em seguida
estão: Europa, África, Oriente Médio,
América do Norte e América Central e
Caribe, Ásia e Oceania.
Ou seja, as cidades sul-america-
nas foram prioritárias para a diplomacia
cultural brasileira no intervalo temporal
analisado em termos de quantidade de
ações realizadas.No que diz respeito ao
indicador “países que realizaram diplo-
macia cultural brasileira de 2003 a 2010
em cada continente”, a participação foi
análoga ao item anterior.
Tabela 1 – Índice percentual de países que mantêm relações diplomáticas com o Brasil
e de países que realizaram diplomacia cultural brasileira no período 2003-2010.
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Com efeito, se for considerado os
indicadores Cidade e Países nos conti-
nentes para compreender prioridades
em termos de espaço ou territórios da
diplomacia cultural brasileira, será cor-
reto dizer que América do Sul e Euro-
pa têm sido continentes privilegiados.
Pois, agregam juntos de 65% a 70% das
ações realizadas por cidade e por país
entre 2003 e 2010. Nota-se, ademais,
que Oriente Médio (6% a 7%) teve de-
sempenho parecido com o alcançado na
América do Norte (6%). Isso, certamen-
te, ocorreu devido à nova conguração
da política externa brasileira, a qual, por
sua vez, buscou diversicar espaços de
atuação e parcerias rumo à ampliação
da inserção internacional do Brasil no
cenário atual.
No tocante ainda à América Cen-
tral e Ásia - com índices percentuais de
participação aproximados - observa-se
que são espaços/territórios potenciais
para o investimento em diplomacia cul-
tural por parte do Brasil. Na Ásia, por
exemplo, há países, como China e Ja-
pão, que são parceiros já consolidados
do Brasil. A nação chinesa, aliás, integra
junto com Brasil, Rússia, Índia e África
do Sul, o BRICS – agrupamento que
pode inserir a temática cultural em sua
agenda de discussão e de trabalho com
vistas à cooperação e intercâmbio cultu-
rais. No caso da América Central e Ca-
ribe, a similitude com a América do Sul
– em termos culturais, regionais, sociais
etc. – torna-se favorável ao compartilha-
mento e a cooperação em matéria de
políticas para a cultura, dentre outras
áreas correlacionadas.
A Europa, apesar de responder
pela segunda maior participação, pode
avançar mais, uma vez que esse conti-
nente é potencial e estratégico para a
política externa brasileira no que con-
cerne à ampliação do número de cida-
des de execução de projetos consoan-
tes à diplomacia cultural do Brasil. A
Oceania, por fim, também pode elevar
sua taxa de participação das cidades no
que se refere à diplomacia cultural bra-
sileira. Isso pode ocorrer uma vez que
as próprias relações diplomáticas entre
Brasil e esse continente forem amplia-
das e diversificadas.
Território da América do Sul: prioridade
da diplomacia cultural do Brasil
Foram catalogadas 1 544 ações
de diplomacia cultural na América do
Sul. Em termos percentuais, entende-
-se que o maior índice observado neste
estudo, portanto, corresponde à Amé-
rica do Sul (43%). Isto significa que a
diplomacia cultural do Brasil trabalhou
de modo mais frequente no território o
qual está situado em consonância com
as diretrizes da política externa brasi-
leira no período em questão. No que
se refere ao indicador Perspectivas, a
diplomacia cultural brasileira de 2003 a
2010 na América do Sul obteve a se-
guinte divisão percentual: 51% das
ações concernem à perspectiva bilate-
ral e 49% à multilateral. Se comparada
ao desempenho em todos os continen-
tes - 36% referente a essa perspecti-
va e 64% àquela - observa-se que no
sul-americano não houve discrepância
acentuada entre as perspectivas como
ocorreu na avaliação geral.
No gráco seguinte estão a per-
centagem de atividades realizadas nos
doze países que compõem o continente.
Infere-se dessa classicação que 59%
das ações ocorreram no Brasil. Este índi-
ce exprime que no próprio País foi inten-
so o trabalho de diplomacia cultural. Se
o Brasil for excluído desta contabilidade,
percebe-se que a Argentina - parceira
estratégica do Brasil - assumiria a posi-
ção de primeiro lugar neste ranking como
mostra o Gráco 1:
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Outro quesito de diagnóstico diz
respeito às cidades sul-americanas
onde ocorreram projetos categorizados
como diplomacia cultural brasileira. En-
tre 2003 e 2010, executaram-se ações
em 113 cidades da América do Sul em
todos os países do continente. No Bra-
sil, Brasília é a cidade cuja atuação da
diplomacia cultural foi mais intensa entre
2003 e 2010. Em seguida, Rio de Janei-
ro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte
e Porto Alegre. No exterior, Buenos Aires
lidera o ranking.
Território da África: anidades
culturais e prioridade da política
externa brasileira
No tocante à diplomacia cultural
brasileira executada nesse continen-
te, é correto dizer que foi realizado
contingente de 365 ações de 2003 a
2010 em 25 dos 53 países africanos.
Nesses, 25 cidades desenvolveram
projetos, sendo que na África do Sul,
em Cabo Verde e na Nigéria aconte-
ceram ações em mais de uma cidade
– em três cidades deste país e duas
de cada um daqueles Estados. Quanto
às perspectivas das ações, constatou-
-se que 82% das atividades estão re-
lativas à perspectiva bilateral e 18% à
multilateral. Ou seja, a diplomacia cul-
tural brasileira no continente africano
de 2003 a 2010 ocorreu predominan-
temente por meio do prisma bilateral.
Em relação aos âmbitos de atuação,
afirma-se que dos 53 países africanos,
52 mantém relações diplomáticas com
o Brasil. Desse grupo, em 23 foram re-
alizadas ações.
Gráco 1 – Volume de ações da diplomacia cultural brasileira na América do Sul de 2003 a 2010 sem
considerar a atuação no Brasil
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Percebe-se, com base na Tabela 2
que dois países integrantes da CPLP (Co-
munidade dos Países de Língua Portugue-
sa) se destacaram - Guiné-Bissau e Moçam-
bique -, os quais obtiveram participação de
17% cada um. A tradição diplomática entre
Brasil e esses países é um dos fatores que
favoreceram a supremacia desses Estados
em relação aos demais. Além disso, o idioma
português comum facilitou a inserção de pro-
jetos culturais brasileiros nesses espaços.
Nesse sentido, embora com número menor
de atividades realizadas em comparação
aos países citados, Angola e Cabo Verde,
terceiro e quarto colocados respectivamen-
te, também se destacaram no mapeamento.
Os fatores citados anteriormente também
contribuíram para o posicionamento alcan-
çado por ambos. A África do Sul ainda apare-
ce como quinta colocada neste ranking. Isso
Tabela 2 – Países africanos contemplados pela diplomacia cultural brasileira por parte do Ministério
das Relações Exteriores, do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação no período 2003-2010
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
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Gráco 2 – Países europeus contemplados com ações da diplomacia cultural do Brasil
no período 2003-2010: volume de atividades realizadas
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
pode ter ocorrido por conta de maior aproxi-
mação recente do Brasil com esse país - os
quais integram o BRICS e o IBAS (Fórum de
Diálogo Índia, Brasil e África do Sul).
No tocante ao indicador “Cidade” cata-
logou-se atividades em 32 cidades africanas.
Dessas, quatro pertencem à África do Sul,
três à Nigéria e duas a Cabo Verde. No caso
das demais, observou-se que houve diploma-
cia cultural brasileira em uma cidade de cada
país africano. Nesse sentido, somou-se o
número de atividades em cada cidade desse
continente para vericar a qual realizou mais
e menos projetos. Maputo e Bissau são cida-
des da África onde o contingente de ativida-
des da diplomacia cultural brasileira de 2003
a 2010 foi maior. Percentualmente, essas
cidades representam 21% e 20%. Ou seja,
41% do total de ações no continente africano.
Território da Europa: diplomacia
cultural brasileira no Velho Mundo
Entre 2003 e 2010, foram levantadas
824 ações concernentes à diplomacia cultural
brasileira na Europa. Destas, 35% atividades
correspondem a projetos com perspectiva
multilateral e 65% bilateral. Observa-se que
o nível de bilateralismo na diplomacia cultural
brasileira na Europa é alto. Ademais, salienta-
-se que o Brasil mantém relações diplomáticas
com 92% dos países europeus. Em relação a
esse grupo, constatou-se que entre 2003 e
2010 foi realizada diplomacia cultural brasileira
com 58% dos Estados da Europa, sobretudo,
em quatro países: Espanha, França, Alema-
nha e Itália. Assim, por meio do gráco a seguir
será apresentado o modo pelo qual as ativida-
des foram distribuídas nos 28 países europeus
que realizaram diplomacia cultural brasileira.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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No Gráco 2 nota-se a seguinte congu-
ração: Espanha, França, Alemanha e Itália fo-
ram os países onde a diplomacia cultural brasi-
leira foi mais expressiva, o que reete o nível de
gestão da diplomacia cultural em tais cidades e/
ou a disponibilização de informações pertinen-
tes ao trabalho cultural realizado pelos agentes
ministeriais estudados. No tocante ao indicador
“Cidade”, contabilizou-se 65 que realizaram di-
plomacia cultural brasileira nesse período.
Tabela 3 – Cidades europeias contempladas com ações da diplomacia cultural do Brasil por parte do MRE, MINC e MEC no período 2003-2010
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
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Destacam-se as ações em Madri,
Paris, Oslo e Berlim. A Espanhadesponta
como o território cujas atividades e cuja
descentralização de cidades em relação
às demais dos países europeus são de
maior contingente. França e Itália seguem
esta tendência e Noruega, Croácia, Ale-
manha, Suíça as sucedem. Nos demais
países, a diplomacia cultural brasileira
ocorreu numa variação de uma a duas
cidades, embora as ações alternassem
de uma – a exemplo da Letônia - a 164
ações, como no caso da Espanha.
Território da América Central e Caribe:
diplomacia cultural brasileira nessa região
O mapeamento contabilizou 252
ações de diplomacia cultural brasileira as
quais foram realizadas na América Central
e no Caribe entre 2003 e 2010. Dessas,
78% são de perspectiva bilateral e 22%
multilateral. Ademais, dos 20 países que
compõem essa região continental, o Bra-
sil mantém relações diplomáticas com 19
nações. Em 13 países desse grupo foram
realizadas atividade de diplomacia cultu-
ral brasileira no período analisado: 1) Bar-
bados; 2) Belize; 3) Costa Rica; 4) Cuba;
5) El Salvador; 6) Guatemala; 7) Haiti; 8)
Honduras; 9) Jamaica; 10) Nicarágua; 11)
Panamá; 12) República Dominicana; 13)
Trinidad & Tobago.
El Salvador, Costa Rica, Nicará-
gua, Cuba, República Dominicana e Pa-
namá são os países da América Central e
do Caribe cuja quantidade de ações reali-
zadas foi maior em relação aos demais –
16%, 13%, 12%, 12%, 10% e 10% respec-
tivamente. No que concerne ao indicador
Cidades, o levantamento contabilizou 141
ações com cidades sinalizadas. Ou seja,
117 ações da diplomacia cultural realizada
nessa região entre 2003 e 2010 não tive-
ram a cidade identicada o que dicul-
ta análise mais precisa dessa vertente da
política externa brasileira.
Foram constatadas atividades em
14 cidades centro-americanas e caribe-
nhas. Dessas, duas pertencem a El Sal-
vador e duas à Guatemala. As outras
correspondem a um país. São elas: 1)
Bridgetown (Barbados); 2) Belmopan (Be-
lize); 3) São José (Costa Rica); 4) Havana
(Cuba); 5) São Salvador (El Salvador); 6)
Antíguo Cuscatlán (El Salvador); 7) Antí-
gua (Guatemala); 8) Cidade de Guatemala
(Guatemala); 9) Porto Príncipe (Haiti); 10)
Kingston (Jamaica); 11) Manágua (Nica-
rágua); 12) Cidade do Panamá (Panamá);
13) São Domingos (República Dominicana)
e 14) Portof Spain (Trinidad & Tobago).
Em São Salvador foi realizada
maior quantidade de ações, isto é, foram
executadas nessa cidade 21% do total de
ações. Manágua está em segundo lugar
com participação percentual de 18%. De-
pois, São José com 13% e São Domingos
com 11%. Porto Príncipe e Havana estão
empatados com 10% em cada cidade.
A Cidade do Panamá segue a lista com
8% de participação. Belmopan procede
ao ranking com 3%. As demais cidades,
individualmente, representaram 1%: a) Ci-
dade de Guatemala; b) Bridgetown; c) An-
tíguo Cuscatlán; d) Antígua; e) Kingston; f)
Portof Spain. Por m, percebe-se que os
cinco primeiros colocados – São Salva-
dor, Manágua, São José, São Domingos,
Porto Príncipe e Havana congregam 83%
do total de ações, realizadas na América
Central e no Caribe. Logo, são cidades
prioritárias para a diplomacia cultural bra-
sileira nessa região continental.
Território da América do Norte:
diplomacia cultural brasileira
no Canadá, Estados Unidos e México
O mapeamento das ações cultu-
rais concernentes à diplomacia cultural
do Brasil na América do Norte no perío-
do de 2003 a 2010 identicou 210 ações
realizadas. Destas, 60% concernem a
24
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
projetos com perspectiva bilateral e 40%
multilateral. Em relação ao indicador Pa-
íses salienta-se que o Brasil mantém re-
lações diplomáticas com todas as nações
da América do Norte, bem como realizou
diplomacia cultural com os três países que
formam este continente. Ademais, notou-
-se que 70% das ações foram executadas
nos Estados Unidos da América. Nessa
contabilidade, México teve 22% de partici-
pação e Canadá 8%.
No que diz respeito ao indicador
Cidades, constata-se que em 18 cidades
norte-americanas foram desenvolvidos pro-
jetos concernentes à diplomacia cultural do
Brasil de 2003 a 2010: Miami, Washington,
Cidade do México, Nova York, Houston,
Ottawa, San Francisco, Los Angeles, Aus-
tin, Cambridge, Gainesville, Guadalajara,
Toronto, Montreal, Champaing, Filadéla,
Las Vegas, Vancouver. Dentre esse grupo,
Miami se destacou. A taxa de participação
dessa cidade corresponde a 20%. Em se-
guida, está outra cidade dos EUA, Washing-
ton com 15%. Em terceiro lugar, encontra-se
a Cidade do México com 13%. Logo, Miami
e depois Washington são prioritárias para a
diplomacia cultural do Brasil.
Território do Oriente Médio:
diplomacia cultural brasileira
na região de conitos contemporâneos
O levantamento das ações da diplo-
macia cultural do Brasil no Oriente Médio
identicou 229 atividades nesse continen-
te. Essas foram classicadas do seguinte
modo: 81% correspondem ao prisma bila-
teral e 19% à perspectiva multilateral. Ade-
mais, dos 17 países pertencentes à região,
14 mantêm relações diplomáticas com o
Brasil. Desses, em nove foram realizados
projetos concernentes à diplomacia cultu-
ral do País entre 2003 e 2010. Nesse sen-
tido, foram mapeadas ações nos seguin-
tes Estados: Israel (50%), Líbano (27%),
Catar (5%), Chipre (5%), Palestina (4%),
Síria (3%), Arábia Saudita (3%), Emirados
Árabes Unidos (1%) e Omã (1%).
Observa-se, assim, que Israel acar-
reta 50% do total de atividades. Ou seja, é
prioritário para a diplomacia cultural brasi-
leira no Oriente Médio. Ademais, em 22 ci-
dades dessa região foram realizadas ações
pertinentes à diplomacia cultural do Brasil de
2003 a 2010. Beirute, no Líbano, e TelAviv,
em Israel, se destacaram dentre o grupo.
Gráco 3 – Cidades do Oriente Médio contempladas com ações
da diplomacia cultural brasileira no período 2003-2010
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
25
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Por meio do Gráfico 3, é possível
observar quais cidades tiveram maior
e menor participação na diplomacia
cultural do Brasil de 2003 a 2010. Por-
tanto, apesar de Israel ser o país com
maior atividade, uma vez que o mesmo
congrega ações das cidades de Jeru-
salém e Tel Aviv, a cidade de Beirute
no Líbano foi contemplada com mais
ações da diplomacia cultural brasileira
entre 2003 e 2010. Assim, é um espa-
ço prioritário para a atuação da política
externa no Oriente Médio no tocante à
vertente cultural.
Território da Ásia:
diplomacia cultural no Pacíco e Índico
O mapeamento detectou 130
atividades da diplomacia cultural bra-
sileira na Ásia. Constatou-se que 67%
das ações correspondem ao prisma
bilateral e 33% ao multilateral. Quan-
to a Países, observou-se que dos 28
Estados que compõem o continente,
14 mantém relações diplomáticas com
o Brasil e em todos esses ocorreram
projetos pertinentes à diplomacia cul-
tural brasileira no período de 2003 a
2010: Japão, Índia, China, Timor Les-
te, Tailândia, Coreia do Sul, Cazaquis-
tão, Tunísia, Malásia, Vietnã, Seiche-
les, Indonésia, Cingapura e Armênia.
Japão é o país asiático onde a diplo-
macia cultural brasileira entre 2003 e
2010 foi mais intensa. Nesse, foram
realizadas 27 ações, o que percentu-
almente representa 21%. No tocante
às Cidades, em 18 foram executados
projetos pertinentes à diplomacia cul-
tural do Brasil de 2003 a 2010: Tóquio,
Bangkok, Pequim, Seoul, Astana, Kua-
la Lampur, Kyoto, Nova Delhi, Dili, Tú-
nis, Hanoi, Cingapura, Almaty, Cantão,
Goa, Jacarta, Lerevan, Shanghai e
Victória. Tóquio, com 19% do total de
ações realizadas, é a cidade de maior
participação percentual na diplomacia
cultural brasileira de 2003 a 2010. Por-
tanto, é possível afirmar que o Brasil
priorizou o Japão em sua política ex-
terna direcionada ao campo cultural no
continente asiático no intervalo tempo-
ral mencionado.
Território da Oceania:
diplomacia cultural brasileira
na Austrália e Nova Zelândia
Entre 2003 e 2010, a diplomacia
cultural do Brasil também desenvol-
veu projetos na Oceania. Foram iden-
tificadas 28 ações trabalhadas nesse
continente. Dessas, 71% são conso-
antes à perspectiva bilateral e 29%
ao prisma multilateral. Ademais, dos
14 países da Oceania, cinco mantém
relações diplomáticas com o Brasil.
Desses, diagnosticou-se execução de
atividades da diplomacia cultural bra-
sileira em apenas dois: Austrália (36%
das ações) e Nova Zelândia (64% do
total de projetos).
No tocante ao indicador Cida-
des, em três foram realizadas ações:
Auckland (Nova Zelândia), Sydney
(Austrália) e Wellington (Nova Zelân-
dia). A cidade de Wellington é o terri-
tório prioritário para a atuação da di-
plomacia cultural brasileira entre 2003
e 2010, com participação de 89% do
total de ações. Em Auckland, soma-se
6% e em Sydney, 5%.
O que esses indicadores nos dizem?
Observem a tabela seguinte:
26
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Por meio da Tabela 4 é possível
armar que o continente europeu e o con-
tinente sul-americano realizaram ativida-
des em quantidade maior de cidades. Áfri-
ca e Oriente Médio estão com número de
cidades aproximado, bem como, América
Central e Caribe e América do Norte. Ade-
mais, em todos os continentes, as ações
com perspectiva bilateral foram preponde-
rantes em relação ao prisma multilateral.
Tabela 4 – Diplomacia cultural do Estado brasileiro no mundo: total de ações, total de cidades
e perspectiva de atuação bilateral e multilateral em cada continente no período 2003-2010
Quadro 1 – Prioridades da diplomacia cultural brasileira no mundo no período 2003-2010
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013.
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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O Quadro 1 apresenta indicadores
prioritários da diplomacia cultural brasileira
em cada continente. Percebe-se que nos
países desenvolvidos, situados principal-
mente na América do Norte, Ásia e Europa
América do Sul adentra-se a esse gru-
po no tocante ao quesito referido – houve
priorização da área de Língua, Livro, Lei-
tura e Literatura. Por que isso ocorreu? E
os territórios? Por que foram prioritários?
Para responder essas questões recorrer-
-se-á ao que advoga o Itamaraty.
Segundo o MRE, Ásia, Europa e
América do Norte são parceiros relevan-
tes do Brasil no que diz respeito à parti-
cipação do País no mercado global – no
caso do primeiro –, e da vinculação polí-
tica, econômica e cultural – no caso dos
demais (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2010, p.18). Assim, en-
tende-se a necessidade de difundir a
presença da cultura brasileira nesses
âmbitos importantes para a política exter-
na contemporânea. No entanto, é neces-
sário que a diplomacia cultural não seja
calcada somente na linguagem escrita.
É preciso ampliar para outras áreas com
vistas à valorização da diversidade cultu-
ral brasileira e pela busca de adequação
da linguagem cultural de maneira que
possa potencializar interesses do Brasil
nesses cenários externos.
No caso dos países com menor
desenvolvimento relativo, os quais estão,
sobretudo na América Central, no Caribe e
na África, verica-se que a área de Educa-
ção foi privilegiada por parte da diplomacia
cultural brasileira. A cooperação educacio-
nal para com a América Central e o Ca-
ribe tem sido incumbência assumida pelo
Brasil, inclusive de 2003 a 2010. Segundo
o MRE, algumas ações exemplicam tal
assertiva: a) intercâmbio de estudantes
por meio dos Programas de Estudante-
-Convênio de Graduação (PEC-G) e de
Pós-Graduação (PEC-PG); cooperação
técnica e ações na fronteira direcionadas
principalmente ao ensino bilíngue e ao
ensino da língua portuguesa nos Centros
Culturais do Brasil que há nessas regiões.
Horizontes possíveis
Por meio da observância do ce-
nário de alargamento do escopo de atu-
ação mundial do Brasil, notou-se que, a
partir do ano de 2003, houve demanda
por diplomacia cultural coerente com as
diretrizes da política externa do País na
atualidade.A aprovação da Convenção
da Unesco sobre a diversidade das ex-
pressões culturais em 2005, por exem-
plo, sinaliza necessidade de valorização
da temática da cultura na agenda global
recente. Por seu turno, a celebração des-
se tratado também foi importante para o
Brasil, uma vez que o país atuou como
líder global por meio de ação conjun-
ta entre MRE e MINC no que se refere
ao processo de articulação dos países-
-membros das Nações Unidas com vistas
à aprovação do acordo (KAUARK, 2009).
Defende-se, portanto, que há espa-
ço para fortalecer e ampliar a diplomacia
cultural brasileira. Tal argumento tornou-se
sustentável uma vez que políticas de cultura
por parte da Administração Pública Federal
foram ampliadas a partir de 2003, particu-
larmente por meio da nomeação de Gilberto
Gil para a chea do Ministério da Cultura.
Desse modo, reitera-se que o MINC inseriu
a dimensão internacional em seu escopo
de atuação e trabalhou em parceria com o
Itamaraty no tocante à difusão da cultura
brasileira no exterior e ao desenvolvimento
de políticas culturais em âmbito mundial. O
MEC foi colaborador da diplomacia cultural
por meio de programas de difusão da língua
portuguesa e de cooperação educacional –
que favoreceram o intercâmbio cultural do
Brasil com outros países.
A diplomacia cultural brasileira tem
potencial para abrir mais caminhos para o
28
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
processo de desenvolvimento nacional do
País. É preciso que o campo cultural e o
campo político nacional dialoguem e bus-
quem construir consensos na perspectiva
de que os horizontes possíveis possam
servir aoprincipal destinatário de quais-
quer políticas públicas: o povo brasileiro.
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Recebido em 21/11/2017
Aprovado em 23/02/2018
I Bruno do Vale Novais. Mestre em Cultura e Socieda-
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produtorbrunonovais@gmail.com
29
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Desaos da participação e da descentralização
na gestão de políticas culturais nas cidades
Desafíos de la participación y la descentralización
en la gestión de políticas culturales en las ciudades
Participation and decentralization as management’s principles
in cultural policies in Bogotá
Monica Cristina Moreno-Cubillos
I
Resumo:
Analisa-se a inserção da participação e da descentralização como
princípios para a gestão das políticas culturais, tomando como
exemplo a capital da Colômbia, mediante o levantamento documental
de material normativo sobre políticas culturais nesse país e o estudo
de caso intrínseco através dos depoimentos de diferentes sujeitos,
dentro e fora da institucionalidade, que reetem sobre os mecanismos
estabelecidos especicamente em Bogotá. Para tal m, exploram-
se os principais traços da governança urbana no período neoliberal
e as particularidades dessa cidade, revisa-se a incorporação dos
princípios de participação e descentralização nas políticas culturais
e nas diretrizes para a gestão cultural da Colômbia e discute-se a
forma como estes se materializam nas políticas culturais da cidade,
visibilizando algumas fraquezas relacionadas com o desenho do
sistema, a capacidade institucional e dos agentes culturais que agem
nos espaços, a articulação entre diversos canais de participação e a
incidência dos acordos em decisões como distribuição de recursos, entre
outros. Finalmente, apontam-se alguns desaos em três perspectivas:
a integração dos públicos nas discussões, o grau de autonomia dos
espaços, e a necessidade de debater a categoria ‘cultura’ como ponto
de partida para a denição das linhas de intervenção.
Palavras chave:
Participação
Descentralização
Políticas Culturais
Governança urbana
Bogotá
30
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Se analiza la inserción de la participación y la descentralización como
principios para la gestión de las políticas culturales tomando como
ejemplo la capital de Colombia mediante el levantamiento documental de
material normativo sobre políticas culturales en ese país y el estudio de
caso intrínseco a través de los testimonios de diferentes sujetos dentro
y fuera de la institucionalidad que reexionan sobre los mecanismos
establecidos especícamente en Bogotá. Para esto, se exploran los
principales trazos de la gobernanza urbana en el periodo neoliberal y
las particularidades de esa ciudad, se revisan la incorporación de los
principios de participación y descentralización en las políticas culturales
y en las directrices para la gestión cultural de Colombia, y se discute
la forma como estos se materializan en las políticas culturales de la
ciudad visibilizando algunas debilidades relacionadas con el diseño del
sistema, la capacidad institucional y de los agentes culturales que actúan
en los espacios, la articulación entre diversos canales de participación
y la incidencia de los acuerdos en decisiones como distribución de
recursos, entre otros. Finalmente, se apuntan algunos desafíos en tres
perspectivas: la integración de los públicos en las discusiones, el grado de
autonomía de los espacios y la necesidad de debatir la categoría ‘cultura’
como punto de partida para la denición de las líneas de intervención.
Abstract:
We analyze the insertion of participation and decentralization as
management’s principles of cultural policies taking as an example
the capital of Colombia through the documentary survey of normative
material on cultural policies in that country and the intrinsic case study
through the testimonies of different subjects inside and outside the
institutions that reect on the mechanisms established specically in
Bogotá. To this end, we explore the main features of urban governance
in the neoliberal period and the particularities of that city, we review
the incorporation of participation and decentralization as principles of
cultural policies and guidelines for cultural management in Colombia,
and we discuss how they materialize in the cultural policies of the city,
highlighting some weaknesses related to the design of the system, the
institutional and the cultural agents’ capacity that act in the spaces, the
articulation between diverse channels of participation and the incidence
of the agreements in decisions like distribution of resources, among
others. Finally, we point out some challenges in three perspectives: the
integration of the public in the discussions, the degree of autonomy of
the spaces and the need to debate the category ‘culture’ as a starting
point for the denition of the lines of intervention.
Palabras clave:
Participación
Descentralización
Políticas Culturales
Gobernanza urbana
Bogotá
Keywords:
Participation
Descentralization
Cultural Policies
Urban governance
Bogota
31
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Desaos da participação
e da descentralização na gestão
de políticas culturais nas cidades
Introdução
A imposição das reformas neolibe-
rais nos países da América Latina trouxe a
aplicação de mecanismos como controle
social, rendição de contas, desregulamen-
tação, parcerias público-privadas, pros-
sionalização do serviço público, participa-
ção, descentralização, entre outros, para a
gestão dos assuntos públicos em diferen-
tes campos sociais e níveis de governo,
que foram introduzidos paulatinamente
sob as demandas que também zeram os
movimentos sociais advogando por uma
forma de aceder às decisões públicas.
Esta situação não é alheia para as
cidades onde se manifestam nitidamente
os efeitos sociais provocados pelo sistema
capitalista de produção que, em seu está-
gio atual, agudiza questões como pobreza,
desigualdade, informalidade, discriminação,
marginalização, iniquidade no acesso aos
serviços e equipamentos urbanos, segre-
gação, além de outras, sendo objeto de dis-
cussão nas políticas públicas urbanas. Nes-
te contexto, as políticas culturais têm sido
usadas como ferramentas de ação que vi-
sam à coesão e a inclusão social de grupos
que historicamente foram mais afetados.
Com este panorama, propõe-se ana-
lisar a inserção da participação e da des-
centralização como princípios para a gestão
das políticas culturais especicamente em
Bogotá mediante o estudo dos documentos
ociais que guiam a implementação das li-
nhas de intervenção em confronto com de-
poimentos de representantes (dentro e fora
da institucionalidade) dos espaços de con-
certação abertos na cidade para acessar às
decisões sobre formulação, implementação
e avaliação de políticas e projetos neste
campo. Por conseguinte, os procedimentos
metodológicos utilizados são o levantamen-
to documental e o estudo de caso intrínseco
que permitem a coleta de material norma-
tivo sobre políticas culturais na Colômbia e
em Bogotá (incluindo documentos ociais
de formulação e relatórios sobre o desen-
volvimento deste campo na cidade), além
de publicações resultantes dos processos
de pesquisa e formulação de políticas cultu-
rais disponíveis nas bibliotecas públicas da
cidade,que reúnem as opiniões de pesqui-
sadores, acadêmicos, centros de pesquisa
e estudos, e funcionários públicos de altos
níveis dentro do governo municipal, mos-
trando um leque de visões e posições.
Desta forma, inicialmente se explo-
ram os principais traços da governança ur-
bana no período neoliberal, especicando
o caso de Bogotá; depois se revisa a in-
corporação dos princípios de participação
e descentralização nas políticas culturais
e em especial nas diretrizes para a gestão
cultural da Colômbia; em seguida se dis-
cute a forma como estes se materializam
nas políticas culturais da cidade visibili-
zando algumas fraquezas; e nalmente se
mencionam três desaos que deveriam se
considerar em novos processos de formu-
lação de políticas culturais na cidade.
A modalidade de governança urbana
no neoliberalismo
A crise de superprodução e scal de
1970 pôs em xeque o Estado de Bem-Estar,
levando a que o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional (principalmente) re-
assumissem e promovessem as ideias da
primazia do livre mercado como regulador da
vida social registradas no Consenso de Wa-
shington em 1989. Ainda quando a Europa e
os Estados Unidos as introduziram na atua-
ção de seus governos, os países do Tercei-
ro Mundo as adotaram com maior rigor me-
diante a redução dos gastos públicos sociais,
32
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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prestando atenção àqueles gerados por cau-
sa do funcionamento do aparato estatal.
Nessa conjuntura surge o paradigma
administrativo conhecido como Novo Geren-
cialismo Público (NGP) que tem como no-
ção implícita que as organizações públicas
devem se gerenciar como negócios para
alcançar a competitividade (ROBINSON,
2015; KAPUCU, 2007) sob a premissa de
que um governo eciente custa menos.
Portanto, as principais estratégias que se
demandam na gestão pública estão relacio-
nadas com cortes no orçamento das orga-
nizações, privatizações, separação entre a
política e a administração, subcontratação,
imposição de taxas de utilização, introdução
do conceito de cliente, concorrência, liber-
dade para gerir (desenho de incentivos),
descentralização, medição do desempe-
nho, melhora dos processos contábeis e da
gestão nanceira, auditorias, planejamento
estratégico, gestão da mudança, uso de tec-
nologias de informação, racionalização das
competências e das estruturas administrati-
vas, análise e avaliação de políticas, e de-
mocratização e participação dos cidadãos
nas decisões (GRUENING, 2001).
Nas cidades, a adoção dos princí-
pios neoliberais e a implementação do NGP
se evidencia no fomento de políticas de
desenvolvimento econômico que invocam
o estabelecimento de parcerias público-pri-
vadas, o aumento de programas para ate-
nuar a exclusão social (exigindo uma maior
atenção no setor cultural), o incentivo de
novas formas de coordenação intersetorial
e intergovernamental
II
(BRENNER & THE-
ODORE, 2002; HARVEY, 2007; JANOS-
CHKA & HIDALGO DATTWYLER, 2014)
sem esquecer as ações para o impulso e o
fortalecimento do controle social e a partici-
pação cidadã que abrange a aplicação de
mecanismos como os processos de consul-
ta da população afetada negativamente pe-
las decisões públicas, o estabelecimento de
estruturas consultivas e deliberativas e, em
alguns casos, a transferência das funções
do Estado para as organizações e institui-
ções da sociedade civil (RIVIÈRE D’ARC,
1993; LÓPEZ MOYA, 2010), ou para níveis
de governo com presença e autoridade em
uma área denida ou parte especíca do
território, também conhecida como descen-
tralização (LEVY, 1993; SPINK, 1993).
Assim, a participação e a descentra-
lização aparecem imbricadas na gestão pú-
blica urbana como parte das estratégias de
desenvolvimento econômico e social que,
no discurso, visam redenir as relações de
poder, tornando os efeitos dos programas
duráveis no longo prazo (SPINK, 1993) e
aumentando a intervenção dos cidadãos
na tomada de decisões para fortalecer a
democracia local (LEVY, 1993). Contudo,
na prática, observam-se como estes princí-
pios terminam servindo a outros interesses
que despolitizam a atuação dos governos
municipais mediante modelos técnicos e
gerencialistas, e aumentam a concorrência
dos governos e entidades territoriais por
atrair maiores investimentos, entre outros
efeitos (RESTREPO BOTERO, 2003), res-
tringindo os conitos e lutas pelo poder em
componentes administrativos.
Bogotá, capital da Colômbia, não é
indiferente a estas práticas, as quais fo-
ram introduzidas com maior vigor desde
a década de 1990, momento de abertu-
ra democrática visto que coincide com a
eleição de prefeitos municipais no país –
estratégia instaurada em 1988 como um
mecanismo para descentralizar adminis-
trativamente a estrutura pública – e a re-
forma à Constituição Política em 1991.
Algumas transformações experimen-
tadas na capital se relacionam com o início do
processo de administração mista de serviços
públicos permitindo a entrada de capital pri-
vado e racionalizando os benefícios econô-
micos, a venda de empresas públicas, a des-
centralização do serviço básico de vigilância
mediante Comandos de Atenção Imediata
da polícia nos bairros com maiores índices
33
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de insegurança, o saneamento das nanças,
a reforma à norma administrativa e a moder-
nização da estrutura pública municipal (RE-
DACCIÓN BOGOTÁ, 2015; CÁRDENAS S.
et. al., 2007); além da criação e formalização
de diferentes canais, programas e instru-
mentos de participação cidadã e descentra-
lização como os Quadros de Gestão Local
III
(QGL), os Conselhos de Planejamento Loca-
l
IV
(CPL) e o Sistema Distrital de Cultura com
todos seus espaços de concertação
V
, ou a
elaboração de planos zonais
VI
e programas
como ‘obras com saldo pedagógico’
VII
(RES-
TREPO BOTERO, 2003).
Por conseguinte, não é casualida-
de que os planos de governo das últimas
duas décadas estabeleçam dentro de seus
princípios de ação – com diferentes graus
de importância – a participação, o controle
social e a descentralização como forma de
legitimar suas propostas e ações.
O NGP e as políticas culturais
Os princípios de participação e des-
centralização nas políticas culturais têm sido
tema de discussão de longa data. Como
exemplo disso, na Conferência Mundial
sobre Políticas Culturais (MONDIACULT)
de 1982, convocada pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (UNESCO), incorporaram-se
estas categorias com ligações diretas na
relação cultura e democracia. Deste modo,
estabeleceu-se que as manifestações cul-
turais não podem ser privilégio das elites
nem na produção nem nos benefícios, ra-
zão pela qual é necessário descentralizar a
vida cultural e as instituições que agem no
campo (geográca e administrativamente),
garantindo a participação de todos os indi-
víduos (UNESCO, 1982).
Sob esta perspectiva se constroem
os principais paradigmas nas políticas cul-
turais tradicionais: a democratização cul-
tural e a democracia cultural que, ainda
apresentando-se como opostas, discor-
rem sobre estes dois elementos.
A democratização cultural tenta de-
volver ao povo a possibilidade de eleger
quais obras ou atividades culturais prefere
e, por tanto, quais artistas devem ser apoia-
dos para assim facilitar a todos o acesso às
criações artísticas e estéticas (VIDAL-BE-
NEYTO, 1981) sob o postulado que para
produzir adesão é suciente o encontro
público-obra. Em consequência, as políticas
culturais que seguem este paradigma dão
prioridade aos prossionais, à descentrali-
zação dos grandes equipamentos e à redu-
ção dos preços ou a gratuidade completa de
eventos que suponham a alteração das de-
sigualdades no ingresso (BOTELHO, 2001).
A democracia cultural “tem por prin-
cípio favorecer a expressão de subculturas
particulares e fornecer aos excluídos da cul-
tura tradicional os meios de desenvolvimen-
to para eles mesmos se cultivarem, segundo
suas próprias necessidades e exigências”
(BOTELHO, 2001, p. 24) defendendo a co-
existência das múltiplas culturas em uma
mesma sociedade, propiciando seu desen-
volvimento autônomo e relações igualitárias
para a participação de cada pessoa na sua
cultura e na cultura dos outros, dado que se
reconhece que não há uma cultura legítima
e que as políticas culturais não devem difun-
dir só a cultura hegemônica, mas promover
o desenvolvimento de todas (GARCÍA CAN-
CLINI, 1987). Com tal característica, as po-
líticas culturais orientadas por este paradig-
ma visam “estimular a ação coletiva através
de uma participação organizada, autogeri-
da, reunindo as mais diversas iniciativas (de
todos os grupos, no político, no social, no re-
creativo, etc.)”
VIII
(GARCÍA CANCLINI, 1987,
p. 51, tradução própria) que supõe dar voz a
todos os grupos presentes no território.
Contudo, ainda quando os movi-
mentos sociais exigiram esta forma de
ação, as reformas neoliberais permeiam e
se valem destas reivindicações para legiti-
34
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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mar interesses e objetivos da economia de
mercado dando como resultado políticas
culturais instrumentais “ante os possíveis
efeitos de processos como a homogenei-
zação cultural, o aumento das desigualda-
des sociais ou a dissolução das identida-
des coletivas”
IX
(ZAMORANO et. al., 2014,
p. 23, tradução própria) que assumem os
princípios do NGP para a implementação
e gestão fazendo com que a descentrali-
zação se traduza em desregulamentação
e a participação em transferência de res-
ponsabilidades para a sociedade civil. Em
palavras de García Canclini (2008)
[...] transferir a iniciativa à sociedade
civil quer dizer, para o discurso neo-
conservador, concentrar o poder em
empresas privadas monopólicas. O
desinteresse do Estado em que a in-
formação, a arte e as comunicações
sejam serviços públicos faz com que
se convertam preferencialmente em
mercadorias e só sejam acessíveis
a setores privilegiados. Nessa con-
juntura a fragmentação dos públicos,
fomentada pela diversicação das
ofertas, reduz a expansão dos bens
simbólicos. De fato, o que se produz
é uma segmentação desigual dos con-
sumos (p. 371, grifo do autor).
Na Colômbia, a descentralização e
a participação também têm sido categorias
centrais na formulação de políticas culturais
que a partir do primeiro plano cultural nacio-
nal em 1974 incluiu medidas relacionadas
com a descentralização, a incorporação
das crianças e dos jovens como núcleo e
população objeto da política cultural, o es-
tímulo à criação e à participação dos cria-
dores e o nanciamento. Daqui em diante,
os planos nacionais seguiram discutindo
estas categorias, as quais seriam nalmen-
te materializadas com a criação do Sistema
Nacional de Cultura e Desenvolvimento
Institucional composto por conselhos nacio-
nal, regionais, departamentais e municipais
constituídos como organismos assessores
para a formulação de políticas culturais di-
recionando o estabelecimento de ações
que contribuíssem ao desenvolvimento cul-
tural do país e o acesso da comunidade aos
bens e serviços culturais (MENA LOZANO;
HERRERA CAMPILLO, 1994).
Contudo, mediante a Lei 397 de
1997 ou Lei Geral de Cultura a participa-
ção e a descentralização se posicionam
como princípios reitores para o funcio-
namento do Sistema Nacional de Cultu-
ra (COLOMBIA, 1997). Apesar disso, um
vazio que se evidencia nesta normativa é
a falta de denição destas categorias que
deixa aberta sua interpretação e a forma
de ser implementada.
Desta forma, observa-se como a des-
centralização e a participação são princípios
impulsados nas políticas culturais tanto pe-
los organismos internacionais quanto pelos
movimentos sociais com distintos objetivos,
mas articulados no mesmo discurso que di-
lui e encobre as tensões e contradições que
sua implementação representa.
Desencontros na participação
e na descentralização nas
políticas culturais em Bogotá
Ainda quando em Bogotá se desen-
volveram múltiplas iniciativas em matéria
cultural, só até inícios do século XXI foram
publicadas as primeiras políticas culturais
formais que seriam objeto de revisão e
atualização uma vez terminado o prazo
de ação denido dando origem a um se-
gundo documento ocial. Destaca-se que
as duas políticas culturais foram construí-
das de forma participativa nos espaços de
concertação abertos pelo Sistema Distrital
de Cultura que segue a forma do Sistema
Nacional, em menor escala territorial.
As primeiras políticas culturais ‘Bogotá
en acción cultural 2001-2004 são a resposta
à demanda dos artistas, criadores e gestores
35
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culturais por um documento elaborado con-
juntamente entre o governo e suas institucio-
nalidades, os representantes do setor e ou-
tros sujeitos interessados no campo cultural
que não deram conta unicamente da visão e
interesses do Prefeito de turno, mas que de-
nissem regras de longo prazo para a gestão e
a promoção artística e cultural no nível muni-
cipal e local (RODRÍGUEZ ROMERO, 1999;
REPRESENTANTE DE LOS ARTISTAS AL
CONSEJO DISTRITAL DE CULTURA, 1999;
CORPORACIÓN ESCUELA DE FORMACI-
ÓN CIUDADANOS SIGLO XXI, 2000).
Em vista disso, partindo de preceitos
como a cultura como um valor universal; a le-
gitimação da pluralidade e a diversidade cul-
tural; o estímulo à produção, gestão e criação
cultural; o apoio mediante a educação, difu-
são e pesquisa; a armação da identidade
e proteção das tradições das comunidades
negras e indígenas; a defesa das pessoas
com deciência e o povo ROM; a democrati-
zação do acesso a bens e serviços culturais;
a difusão e apoio às manifestações culturais
(incluídas as minorias étnicas); a recupera-
ção da importância do público; a aplicação
das recomendações da UNESCO para a
salvaguarda da cultura tradicional e popular;
denem-se as sete linhas temáticas para a
intervenção (organização, formação e capa-
citação, patrimônio cultural, fomento à arte e
à cultura, promoção e divulgação da cultura,
infraestrutura cultural e pesquisa) conduzidas
por cinco estratégias fundamentais: o contro-
le social, o nanciamento, a comunicação, a
participação e a descentralização (COMITÉ
DE POLÍTICAS CULTURALES, 2003).
Neste caso, a descentralização é en-
tendida no político como os espaços para a
tomada de decisões, no administrativo, onde
as localidades
X
cam responsáveis do cultural
e da procura de níveis de complementaridade
para potencializar a intervenção, no orçamen-
tal para a destinação de recursos a serem
executados pelas localidades seguindo cri-
térios claramente estabelecidos pelo Instituto
Distrital de Cultura e Turismo (IDCT)
XI
, e no
planejamento a concertação da política cultu-
ral como parte do Plano do Governo da cida-
de. Por sua parte, a participação abrangeria
a cooperação na formulação, implementação
dos processos e projetos locais e do Plano do
Governo geral de Bogotá, e no controle social
do investimento dos recursos públicos desti-
nados ao desenvolvimento cultural (COMITÉ
DE POLÍTICAS CULTURALES, 2003).
Assim, a introdução destas estra-
tégias tem origem numa reivindicação dos
sujeitos que colaboraram na formulação do
documento. No entanto, é importante men-
cionar que o Estado as aprova utilizando cer-
ta retórica, enquanto os movimentos sociais
se apropriam do sentido delas com outro tipo
de signicação (OCHOA GAUTIER, 2003).
De forma pontual, sobre a descentra-
lização, o processo implica a designação de
gestores locais vinculados ao IDCT os quais
seriam o que “o diretor do instituto é à reali-
dade centralizada da cidade, isto é, o geren-
te deve ser pensado dentro de um processo
de descentralização como gerente ou reitor
ou secretário de cultura da localidade”
XII
(LI-
ZARAZO, 1999, p. 64-65, tradução própria)
cumprindo funções como: exercer a direção
da política cultural da localidade, conhecer
a localidade em matéria cultural, realizar
sua gestão com base no plano de ação de
cultura no nível local sob as orientações do
IDCT, gerenciar a execução do plano de
ação, representar o IDCT nas suas respon-
sabilidades locais e avaliar o processo local
permanentemente (LIZARAZO, 1999).
Por sua parte, para os movimentos
sociais, no processo de descentralização
é necessária “a geração de organização
artística e cultural pela base e particular-
mente por áreas e disciplinas artísticas, re-
armando que a experiência vivida na lo-
calidade é possível e desejável de replicar
para fortalecer os Sistemas Locais de Cul-
tura, entre outros”
XIII
(CORPORACIÓN ES-
CUELA DE FORMACIÓN CIUDADANOS
SIGLO XXI, 2000, p. 3, tradução própria).
36
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Por conseguinte, é claro que para
a institucionalidade o processo de descen-
tralização não implica a autonomia das lo-
calidades visto que está restrita aos guias
dados desde a Prefeitura em matéria cul-
tural representada pelo IDCT. Este ponto
é rearmado quando se expressa que a
descentralização orçamental será conse-
guida sempre e quando as localidades si-
gam os ‘critérios claramente estabelecidos
pelo IDCT’. Aliás, é evidente a forma como
as discussões nas localidades são dirigi-
das seguindo os padrões do setor central,
reduzindo-se aos temas que a instituciona-
lidade tem o interesse de debater, mas ex-
cluindo outros que são importantes para os
grupos. Neste sentido, um dos Conselhei-
ros das localidades, em 2003, expressa:
[...] consideramos que há uma forte
homogeneização sob um único mo-
delo de políticas culturais, perdendo
a possibilidade de construir a partir
dos ritmos e peculiaridades de cada
localidade seus próprios processos. É
dizer, queremos homogeneizar, quere-
mos trabalhar sob um único esquema
dentro do Distrito e o que foi mostrado
é que cada localidade tem seu próprio
ritmo, uma particularidade e desenvol-
vimento que torna necessário construir
com essa realidade particular
XIV
(RA-
MÍREZ, 2003, p. 98, tradução própria).
O segundo documento de políticas
culturais ‘Políticas Culturales Distritales
2004-2016’ foi igualmente elaborado no seio
do Sistema Distrital de Cultura sob a lideran-
ça do IDCT. Neste se reorganiza a interven-
ção dividida em quatro eixos e doze linhas
de ação (Tabela 1) enfrentando os principais
problemas identicados nos diagnósticos.
Esta se orienta por oito princípios: a inter-
culturalidade, a concertação, a criatividade,
a sustentabilidade, a articulação, o valor do
público, a descentralização e a participação.
Tabela 1: Eixos e linhas de ação das Políticas Culturales Distritales 2004-2016
Fonte: ELABORAÇÃO PRÓPRIA BASEADO EM COMISIÓN DE POLÍTICAS CULTURALES, 2004, p. 49-62
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Novamente a descentralização
e a participação são consideradas
princípios guias. A descentralização é
definida como “a transferência de po-
der, recursos, funções e capacidade
de decisão do centro para as unida-
des territoriais e no fortalecimento de
infraestruturas e organizações locais
que possam efetivamente desenvolver
esse processo”
xv
(COMISIÓN DE PO-
LÍTICAS CULTURALES, 2004, p. 63,
tradução própria). A participação com-
preende a atuação ativa “nas decisões
que os afetam e na vida econômica,
política, administrativa e cultural da na-
ção como um direito constitucional”
XVI
(COMISIÓN DE POLÍTICAS CULTU-
RALES, 2004, p. 63, tradução própria).
Ambas, outra vez, se materializam no
Sistema Distrital de Cultura e seus es-
paços de concertação.
Ainda quando no diagnóstico o
Sistema é posicionado como um dos
mecanismos mais ecientes, reconhe-
cem-se algumas deciências que geram
contradições para alcançar os objetivos
de transferência de poder, fortalecimen-
to das organizações locais e atuação nas
decisões que afetam diferentes campos
da vida social. As fraquezas podem ser
agrupadas nas seguintes categorias:
1) desenho do sistema, 2) capacidade
institucional e dos agentes culturais, 3)
articulação e 4) incidência dos acordos
(OBSERVATORIO DE CULTURAS &
DIRECCIÓN DE ARTE CULTURA Y PA-
TRIMONIO, 2014).
Sobre o desenho do modelo se
encontra que este é percebido como fe-
chado com limites na representatividade
dos conselheiros. Neste aspecto, tem-se
constatado como alguns conselheiros 1)
são designados por um número mínimo
de eleitores o que resulta na busca de
interesses individuais por desconheci-
mento das demandas do grupo que re-
presenta (RUBIANO PINILLA, 2009); 2)
não consultam outros sujeitos para a to-
mada de posição reetindo suas aspira-
ções particulares visto que o acesso ao
sistema provê informação preferencial e
relacionamento estratégico (OBSERVA-
TORIO DE CULTURAS & DIRECCIÓN
DE ARTE CULTURA Y PATRIMONIO,
2014); e 3) quase 50% dos conselhei-
ros distritais têm sido reelegidos desde
o início com o que o posicionamento de
interesses se perpetua.
Aliás, o Sistema é um modelo de
participação institucional, com dinâmicas
de interação concretas, que não foi con-
cebido como uma iniciativa dos cidadãos
(ARIZA PORRAS, 2015; OBSERVATO-
RIO DE CULTURAS & DIRECCIÓN DE
ARTE CULTURA Y PATRIMONIO, 2014;
CORTÉS GÓMEZ, 2007), mas como
uma opção que o Estado projetou para
‘democratizar a tomada de decisões no
campo cultural as quais, na maioria dos
casos, cam presas em temas como a
designação de recursos, a abertura de
editais ou o concurso por bolsas (ARIZA
PORRAS, 2015, p. 135).
Finalmente, apresenta-se uma
situação paradoxal: por um lado, a par-
ticipação no Sistema é estendida a di-
ferentes grupos sociais e profissionais
que têm interesse no campo cultural;
contudo, os grupos têm se fracciona-
do populacional e setorialmente cau-
sando problemas de articulação dentro
dos espaços, reforçando a tendência
de favorecer interesses concretos (OB-
SERVATORIO DE CULTURAS & DI-
RECCIÓN DE ARTE CULTURA Y PA-
TRIMONIO, 2014). No mesmo sentido,
esta forma de organização que induz
à garantia dos direitos das minorias
(indígenas, afro-colombianos, LGBTI,
população idosa, crianças, etc.), pode
levar à exclusão de grandes camadas
de maiorias necessitadas que fiquem
fora do enfoque populacional (FERRO
PULIDO, 2013, p. 82).
38
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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No relativo à capacidade ins-
titucional e dos agentes culturais
existe um reconhecimento por parte da
instituição líder (a SCRD antes IDCT)
sobre a baixa capacidade para coor-
denar o Sistema; assim como a iden-
tificação de limitadas competências e
capacidades por parte dos cidadãos e
agentes culturais para participar da for-
ma em que o Sistema requer, gerando
problemas de interação e construção
coletiva do público.
Um dos determinantes desta situ-
ação é a falta de acompanhamento e as-
sessoria dos Escritórios de Planejamento
das Prefeituras Locais para a formulação
de projetos culturais e a entrega de infor-
mação necessária gerando desinteres-
se, afastamento e desmotivação para a
apresentação de propostas (RAMÍREZ,
2003, p. 99). Além disso, às vezes, os
Conselhos Locais de Cultura se compor-
tam como instâncias fechadas que não
admitem ou promovem consultas nem
encontros com a cidadania, perdendo
espaços para conhecer as necessidades
da população e divulgar as políticas cul-
turais, seus programas, projetos e resul-
tados (RAMÍREZ, 2003). Isto se traduz
em diculdades no interior do Sistema,
na apropriação dos espaços deliberati-
vos por parte dos cidadãos (FERRO PU-
LIDO, 2013, p. 82), e na interação dos
conselheiros e a cidadania.
No referente à capacidade de arti-
culação se observa uma baixa interlocu-
ção entre os Conselhos Locais de Cultura
e outras instâncias de planejamento local
como os CPL ou os QGL que faz com que
as decisões tomadas em todos estes es-
paços não persigam os mesmos objetivos
ou sejam até contraditórias, e que os ci-
dadãos e, em alguns casos, as mesmas
autoridades desconheçam os Conselhos
Locais de Cultura como mecanismos para
a participação e a construção das políticas
culturais (RAMÍREZ, 2003).
Finalmente, as rupturas entre
conselheiros e comunidade, e dos Con-
selhos com as outras instâncias de
participação (FERRO PULIDO, 2013,
p. 81) produz uma baixa incidência
dos acordos e decisões para a exe-
cução da política cultural (OBSERVA-
TORIO DE CULTURAS & DIRECCIÓN
DE ARTE CULTURA Y PATRIMONIO,
2014), ocasionando desconfiança nos
processos de participação e na institu-
cionalidade, levando a que as decisões
fiquem em mãos dos Prefeitos das loca-
lidades e seus interesses. Como Brom-
berg (2003) aponta:
Em geral, apenas os atores estatais
têm o poder de decidir, porque esse
poder é atribuído a eles por lei. Os
outros têm o poder de inuenciar.
Na área da política cultural local, o
Prefeito, o Conselho, o prefeito local,
os UEL e, [...] – em um nível infe-
rior – os Quadros de Gestão Local
tomam decisões. [...] O prefeito local
é aquele que toma as decisões so-
bre quais projetos são executados
com um orçamento local. [...] Todas
as outras instâncias e autoridades
apenas exercem pressão sobre ele.
Nem o QGL, nem o Conselho Local
de Cultura, nem os Encontros Cida-
dãos tomam decisões relevantes (p.
70, tradução própria)
XVII
.
Alguns desaos para a implementação
da participação e da descentralização
nas políticas culturais
É certo que as políticas culturais
em Bogotá têm aberto canais de partici-
pação descentralizados, que dão a pos-
sibilidade a grupos de discutir questões
relacionadas com o campo focalizadas
nos territórios. Ainda quando é um Sis-
tema inovador, suas fraquezas desesti-
mulam a atuação dos sujeitos e limitam
o alcance das decisões tomadas aí; ali-
39
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ás, dada a organização e regras para a
entrada, o Sistema não representa as
opiniões da maioria dos cidadãos, mas
só daqueles que desenvolvem ativida-
des artísticas ou culturais que, segundo
os dados dos diagnósticos nos quais se
fundamentam as políticas, representam
6% do total da população.
Em consequência, destacam-se três de-
saos a considerar na formulação de no-
vas políticas culturais para a cidade.
O primeiro se relaciona com a in-
tegração das vozes dos ‘consumidores’
ou ‘público’ nos espaços de participação
acabando com o enfoque que dá priori-
dade exclusivamente aos grupos oferen-
tes para a formulação. Por uma parte,
Durand (2001) expressa que esta ques-
tão se constitui como o ‘lado faltante’
para a formulação de políticas em cultu-
ra e a alocação de recursos no campo.
Por outra parte, Bromberg (2003) aponta
que a falta de caracterização de grupos
e serviços que demandam práticas cul-
turais origina formas muito distintas de
interação, visto que não são os cidadãos
‘público’ que pedem os eventos ou os
programas de formação, entre outros;
mas são os ‘provedores’ os que estrutu-
ram o que se fornece e pedem os orça-
mentos e apoios.
O segundo desafio remete à re-
visão do grau real de autonomia dos
espaços descentralizados sem que isso
se traduza em falta de complementari-
dade, sinergias e articulações entre a
SDCR, o Conselho Distrital de Cultura
e os Conselhos Locais.
Finalmente, o terceiro se foca em
chamar ao debate à denição, com to-
das as consequências que se derivam,
da principal categoria objeto de inter-
venção, ou seja, ‘cultura’. Quanto a isso,
concorda-se com as considerações de
Vich (2005) quando arma que
[...] qualquer política cultural [...] que
evite esse problema está destinada
a se contentar com a gestão admi-
nistrativa pura e necessária – e, na
verdade, pode ser muito eciente
– mas não a libera de uma rede de
cumplicidades que podem acabar
levando-a à impossibilidade de gerar
articulações mais criativas entre vá-
rios atores sociais (p. 274-275, tra-
dução própria)
XVIII
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Recebido em 21/11/2017
Aprovado em 24/02/2018
I Monica Cristina Moreno-Cubillos. Mestra em Po-
líticas Públicas pela Universidade Federal do Mara-
nhão. Especialista em análise de políticas públicas
da Alcaldía Mayor de Bogotá (Colombia). Contato:
Monica.m.cubillos@gmail.com
II Cooperação entre o governo nacional e munici-
pal, entre municípios, entre regiões ou com gover-
nos de outros países.
III Juntas Administradoras Locales.
IV Concejos Locales de Planeación.
V O Sistema Distrital de Cultura é a interação so-
cial dinâmica e organizada entre os Agentes Cul-
turais, Instituições e Organizações dos campos de
arte, cultura e patrimônio (BOGOTÁ, 2007) que se
compõe de cinco subsistemas (Arte, Patrimônio
Cultural, Equipamentos Culturais, Grupos Étnicos
e Setores Sociais e Etários, e Localidades), acom-
panhado paralelamente por mesas de trabalho en-
focadas em ONGs Culturais, Artesãos, Instituições
Educativas e Museus.
VI Estes planos implicam a divisão da cidade em
pequenas áreas que agrupam bairros com carac-
terísticas sociodemográficas similares. Para sua
elaboração é necessário priorizar as estratégias de
ação e o programa de investimentos anual e para o
período de governo de cada Prefeito.
42
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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VII Impulsado pela administração de Enrique Peña-
losa (1998-2000), esta estratégia convocou a par-
ticipação comunitária através de um concurso que
focalizava projetos que só tinham impacto em um
determinado bairro ou rua.
VIII ...estimular la acción colectiva a través de una par-
ticipación organizada, autogestionaria, reuniendo las
iniciativas más diversas (de todos los grupos, en lo po-
lítico, lo social, lo recreativo, etc.).
IX ...ante los posibles efectos de procesos como la
homogeneización cultural, el aumento de las desi-
gualdades sociales o la disolución de las identida-
des colectivas.
X Subdivisão política e territorial da cidade que se dene
de acordo com as características sociais dos habitantes.
Bogotá possui 20 localidades cada uma com as compe-
tências e as funções administrativas correspondentes.
XI Para a época era a entidade que tinha como
objetivo promover, programar, integrar, coordenar
e financiar as atividades culturais e turísticas, da
mesma forma que os cenários culturais da cidade
que estavam dispersos em diferentes agências. De-
pois da reforma administrativa de 2007 foi substitu-
ída pela Secretaria Distrital de Cultura, Recreación
y Deporte (SCRD).
XII ...el director del instituto es a la realidad cen-
tralizada de la ciudad, es decir, el gestor debe ser
pensado dentro de un proceso de descentralizaci-
ón como gerente o rector o secretario de cultura
de la localidad.
XIII ...la generación de organización artística y cultural
por la base y particularmente por áreas y disciplinas ar-
tísticas, rearmando que la experiencia vivida en la loca-
lidad es posible y deseable de replicar para fortalecer los
Sistemas Locales de Cultura, entre otros.
XIV ...consideramos que hay una fuerte homogenei-
zación bajo un modelo único de políticas culturales,
perdiéndose la posibilidad de construir a partir de los
ritmos y particularidades de cada localidad sus pro-
pios procesos. Es decir, se quiere homogeneizar, se
quiere trabajar bajo un solo esquema en el ámbito del
Distrito y lo que se ha evidenciado es que cada locali-
dad tiene un ritmo propio, una particularidad propia y
un desarrollo que hace que se deba construir a partir
de esa realidad particular.
XV ...la transferencia de poder, recursos, funciones
y capacidad de decisión del centro a las unidades
territoriales y en el fortalecimiento de infraestructu-
ras y organizaciones locales que puedan desarrollar
eficazmente este proceso.
XVI ...en las decisiones que los afectan y en la vida
económica, política, administrativa y cultural de la nación
como un derecho constitucional.
XVII En general, [...] sólo los actores del Estado
tiene la facultad de decidir, porque este poder se
los atribuye la ley. Los demás sólo tiene facultades
para influir. En el tema de política cultural local, to-
man las decisiones el Alcalde Mayor, el Concejo, el
alcalde local, las UEL [...] y --en menor instancia--
las Juntas Administradoras Locales. [...] La alcaldía
local es quien toma las decisiones sobre cuáles son
los proyectos que se ejecutan con un presupuesto
local. [...] Todas las demás instancias y autoridades
sólo ejercen presión sobre él. Ni la JAL, ni el Con-
sejo Local de Cultura, ni los Encuentros Ciudadanos
toman decisiones relevantes.
XVIII [...] toda política cultural [...] que evada dicha
problemática está destinada a contentarse con la
pura gestión administrativa que es necesaria -- y,
de hecho, puede ser muy eficiente --, pero que no la
libra de un entramado de complicidades que pueden
terminar conduciéndola a la imposibilidad de gene-
rar articulaciones más creativas entre diversos ac-
tores sociales.
43
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Novas dinâmicas culturais: tensão e vitalidade nas cidades
Nuevas dinámicas culturales: tensión y vitalidad en las ciudades
New cultural dynamics: tension and vitality in the cities
Rachel Gadelha
I
Resumo:
Este trabalho pretende trazer elementos para a reexão sobre as
dinâmicas culturais contemporâneas, abordando algumas mudanças
que estão em curso e os desaos que estão postos para os agentes
culturais no âmbito das cidades e suas repercussões em uma nova
institucionalidade da cultura. Para tanto, faremos um breve histórico
das políticas culturais recentes no Brasil, de forma a facilitar a
compreensão da conjuntura atual e proporcionar uma visão mais
ampliada do campo cultural contemporâneo e de seus distintos
agentes, entendendo-o como resultante, também, de um regime de
valores e discursos com forte vinculação ao contexto social e político
cultural do Brasil nas últimas décadas. Instiga-nos a identicação de
novas dinâmicas da cultura e de movimentos de criação emergentes
nas cidades, as questões que se conguram hoje e os desaos que
estas impõem aos gestores culturais e aos demais agentes do campo;
assim como a investigação de como esses novos uxos se relacionam
e afetam uma nova institucionalidade cultural.
Palavras chave:
Produção cultural
Gestão cultural
Cultura e cidade
Institucionalidade da
cultura
Dinâmicas culturais
44
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Este trabajo pretende traer elementos para la reexión sobre las
dinámicas culturales contemporáneas, abordando algunos cambios
que están en curso y los desafíos que están puestos para los agentes
culturales en el ámbito de las ciudades y sus repercusiones en una nueva
institucionalidad de la cultura. Para ello, haremos un breve histórico de
las políticas culturales recientes en Brasil, con la nalidad de facilitar
la comprensión de la coyuntura actual y proporcionar una visión más
ampliada del campo cultural contemporáneo y de sus distintos agentes,
entendiéndolo como resultante, también, de un régimen de valores y
discursos con fuerte vinculación al contexto social y político cultural de
Brasil en las últimas décadas. Nos instiga la identicación de nuevas
dinámicas de la cultura y de movimientos de creación emergentes en las
ciudades, las cuestiones que se conguran hoy y los desafíos que éstas
imponen a los gestores culturales ya los demás agentes del campo;
así como la investigación de cómo estos nuevos ujos se relacionan y
afectan a una nueva institucionalidad cultural.
Abstract:
This paper intends to bring elements for the reection on contemporary
cultural dynamics, addressing some changes that are underway and the
challenges that cultural agents have to deal with within the cities scope
and their repercussions on a new institutionality of culture. Therefore,
we will give a brief history of recent cultural policies in Brazil, in order
to facilitate understanding of the current conjuncture and provide a
broader view of the contemporary cultural eld and its different agents,
understanding it also as a result of a regime of values and discourses
with strong ties to the social and political cultural context of Brazil in the
last decades. It instigates the identication of new cultural dynamics
and emerging creative movements in the cities, the issues that are
congured today and the challenges they impose on cultural managers
and other actors in the eld; as well as the investigation of how these
new ows interrelate and affect a new cultural institutionality.
Palabras clave:
Producción cultural
Gestión cultural
Cultura y ciudad
Institucionalidad
de la cultura
Dinámicas culturales
Keywords:
Cultural production
Cultural management
Culture and the city
Institutionality of culture
Cultural dynamics
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Novas dinâmicas culturais:
tensão e vitalidade nas cidades
Um breve histórico
A gestão pública da cultura no Bra-
sil é fortemente marcada por uma tradi-
ção política paternalista, pela alternância
de interesses que oscilam de acordo com
distintos governos e por políticas alinha-
das com anidades artísticas pessoais
de gestores. Temos em nossa memória a
imagem de um Estado que dava um pou-
co para (quase) todos, comprometendo
aqueles que recebiam as benesses com
gratidão e silencioso consentimento.
Relações que marcaram a atuação
dos agentes no campo cultural, contribuin-
do para o estabelecimento de práticas
amadoras, cenários instáveis e uma con-
dição de submissão ao poder instituído
que, de alguma forma, ainda permeiam o
imaginário e a vivência dos artistas, ges-
tores e prossionais que se confrontam
cotidianamente com crescentes necessi-
dades de empoderamento e autonomia,
em paradoxal coexistência com uma for-
te dependência do Estado, ainda respon-
sável pelas principais fontes de recursos
destinados à cultura no Brasil.
As Leis de Incentivo
II
tiveram o mé-
rito de apresentar aos agentes culturais
uma nova possibilidade de nanciamento
de seus projetos e sinalizar para uma ate-
nuação da relação de dependência direta
do Estado, apesar dos recursos continu-
arem sendo públicos. Estimularam a pro-
ssionalização dos agentes da cultura,
o surgimento de um incipiente mercado
cultural e de uma nova categoria pros-
sional: os produtores culturais. Induzi-
ram também uma maior qualicação dos
agentes para o ingresso no novo “merca-
do da cultura”, uma vez que tiveram que
aprimorar discursos e incorporar técnicas
gerenciais na criação de projetos cultu-
rais “viáveis e atrativos”.
O início do século XXI trouxe sig-
nicativas mudanças na cultura política
do país, com um novo regime de valores
que se instaurou no país no Governo Lula
(2003 a 2011). Já no discurso de posse
de Gilberto Gil
III
quando esteve à frente
do Ministério da Cultura (MINC), podemos
perceber toda a carga simbólica e política
que orbitava em torno da Cultura quan-
do arma que o novo governo represen-
ta uma “mudança estratégica e essencial,
que mergulhe fundo no corpo e no espírito
do país” e continua enfatizando o papel
das políticas culturais do governo como
“parte do projeto geral de construção de
uma nova hegemonia em nosso país... e
que deverá permear todo o governo, como
uma espécie de argamassa de nosso novo
projeto nacional”. Neste discurso, Gil ar-
ma que cabe ao Ministério da Cultura cor-
rigir as distorções do mercado e assumir
uma postura mais intervencionista. Era a
senha para o que estava por vir.
Foi com essa missão ampla e
complexa, que o Ministério da Cultura na
gestão de Gil e Juca (2003 a 2010) esta-
beleceu uma importante fase da política
cultural com a formulação e execução de
diversos programas e projetos, a abertura
de diálogos com a sociedade e a inserção
da pauta da Cultura brasileira na agenda
política do país.
Deu-se também, com mais ênfase,
a proposição de outro mecanismo de in-
centivo à cultura: os editais
IV
. Devido a seu
poder de capilaridade social e sua esfera
de micro atuação, tornaram-se instrumen-
to imprescindível na concepção das novas
políticas culturais. Apesar de reconhecer-
mos a validade dessa modalidade de re-
passe de recursos, não podemos deixar
de registrar alguns “efeitos colaterais”.
Além de gerar uma excessiva dependên-
46
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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cia estatal criando o que podemos chamar
de geração de “editais dependentes”, foi
responsável pela indução de conceitos
adotados pelo Estado e absorvidos pelo
campo como se fossem inerentes à pró-
pria ação cultural contemporânea.
Observou-se, nesse contexto, a
ênfase nas políticas para a cultura, em
detrimento das políticas para arte e a
crescente inserção de conceitos como
acessibilidade, inclusão cultural, demo-
cratização da cultura, diversidade e plu-
ralidade cultural, dentre outros. Dessa
forma, como argumentado por Yúdice, a
cultura passou a ser utilizada progressi-
vamente como importante recurso para
a obtenção de ns sociopolíticos e eco-
nômicos e minimização de problemas so-
ciais, conferindo-lhe um caráter de cultu-
ra utilitária, conforme assinala:
hoje em dia é quase impossível en-
contrar declarações públicas que não
arregimentem a instrumentalização
da arte e da cultura... A arte se do-
brou inteiramente a um conceito ex-
pandido de cultura que pode resolver
problemas, inclusive o de criação de
empregos. Seu objetivo é auxiliar na
redução de despesas e, ao mesmo
tempo, ajudar a manter o nível de in-
tervenção estatal para a estabilidade
do capitalismo. Uma vez que todos os
atores da esfera cultural se prenderam
a essa estratégia, a cultura não é mais
experimentada, valorizada ou compre-
endida como transcendente... a arte
e a cultura são vistas como funda-
mentalmente interessadas. (YÚDICE,
2004, p. 27-28)
Para compreender a dimensão e
o alcance desse novo regime de valores,
podemos nos remeter ao lósofo francês
Michel Foucault, que trata das formas de
poder não mais como uma concentra-
ção de força unidirecional, total e global;
mas como um campo reativo e energi-
zado, em constante mutação, construí-
do historicamente através de diferentes
mecanismos e processos (BARBALHO;
BEZERRA; GADELHA, 2014). Segundo
Foucault, para se produzir verdades faz-
-se necessário governar coisas. Coisas
que criam sentidos e estabelecem rela-
ções entre os homens, armando que o
que se governa são “os homens em suas
relações com outras coisas que são os
costumes, os hábitos, as formas de agir
ou pensar (...) que o governo diga res-
peito às coisas entendidas como im-
bricação de homens e coisas...” (FOU-
CAULT, 1984, p. 283).
E é sob essa perspectiva de um
poder acionado por meio de ideias e po-
líticas que destacamos uma dimensão
subjetiva das políticas do Governo Lula.
Além de mecanismos concretos de ges-
tão de uma política cultural, muitos dele
agora em “cheque” na conjuntura atual,
vimos a criação de um conjunto de dis-
positivos que geraram consensos em
toda uma geração de agentes culturais,
marcada pela percepção de uma cultura
benéca, totalizante, abrangente e so-
cialmente redentora.
Ainda sem saber como dar conta
dessa enorme responsabilidade social, os
agentes culturais assistiram mudanças no
âmbito da cultura no Brasil. Primeiro deu-
-se um esvaziamento silencioso e inespe-
rado do prestígio da pauta da Cultura no
Governo de Dilma Roussef (2011 a 2016)
e posteriormente as disputas políticas no
país que ocasionaram o impeachment da
presidente, levando a posse de Temer
V
.
Cenários que trouxeram novos desaos
aos agentes culturais, assim como a todo
o campo da cultura. Em um curto espaço
de tempo, vivemos a ameaça da extinção
do Ministério da Cultura, a posse de três
ministros, escândalos relativos à Pasta
em noticiários, suspeições na aplicação
da Lei Rouanet e a criação de uma instru-
ção normativa
VI
para sua utilização.
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Presenciamos também ocupações
e atos de resistência por todo o país, de-
bates e mobilizações em torno da cultu-
ra, formação de fóruns e associações, e
reações da sociedade na defesa da ma-
nutenção das conquistas e avanços nas
políticas culturais. Reações que também
convivem com a apatia de grande parte
dos agentes culturais, o desânimo por fal-
ta de verbas, a desvalorização da Pasta e
o desmantelamento de iniciativas e insti-
tuições que pareciam consolidadas.
Muito mais do que falta de recur-
sos, falta visão política e percepção so-
cial do valor e relevância da cultura. Há
um sentimento generalizado de perple-
xidade e descrença por parte dos agen-
tes culturais em um presente viável e
em um futuro possível. Observa-se tam-
bém um esgotamento na institucionali-
dade cultural que já não consegue dar
conta das novas dinâmicas e exigên-
cias do campo. Na administração pú-
blica ainda não conseguimos atingir um
padrão eficiente de gestão da cultura e
o que é mais grave, não temos sequer
consensos mínimos sobre o lugar da
centralidade que as políticas culturais
deveriam assumir.
Paira uma desconança sobre as
leis de incentivo que, somada à crise
econômica, ameaça a continuidade de
projetos que vêm sendo realizados por
meio de incentivo scal, agravando a
precária perspectiva de sustentabilidade
ao setor. Os editais não conseguem dar
conta da imensa e crescente demanda
de artistas e produtores em todo o Brasil
e, ainda assim, não conseguem efetuar
os devidos repasses nanceiros em tem-
po hábil. Diante dessa realidade, uma
quantidade signicativa de artistas e pro-
dutores se encontra paralisada, como se
não houvesse vida possível fora das be-
nesses do recurso público. Além da frus-
tração, há um rancor incontido contra o
Estado provedor.
Paralisados, sem o apoio e distan-
tes de um mercado das artes (discrimina-
do, diminuído e desvalorizado), os agentes
culturais se veem diante da perplexida-
de de um novo cenário e com grandes
inquietações. Estado, artistas, gestores
e sociedade civil parecem não encon-
trar caminhos que traduzam e atendam
às novas necessidades. Em tempos de
exacerbação de Direitos Culturais, de in-
compreensões e acusações mútuas, e de
fronteiras ilimitadas com as múltiplas pos-
sibilidades das culturas computacionais; a
institucionalidade da cultura se vê amea-
çada por uma ausência de delicadeza e
excessiva rigidez de processos, pelo risco
da indução e direcionamento de valores;
pela pouca percepção de sua relevância
política; por marcos legais inadequados e
processos de scalização que não acom-
panham a dinâmica e os uxos culturais.
Urge como diz Certeau, superar os limites
repressivos de uma política que “não ga-
rante a felicidade nem confere signicado
às coisas. Que cria ou recusa condições
de possibilidades. Interdita ou permite:
torna possível ou impossível” (CERTEAU,
2012, p. 214).
Todas essas questões se relacio-
nam, em maior ou menor intensidade,
com a institucionalidade
VII
da cultura, fa-
zendo deste tema um grande desao no
Brasil contemporâneo, não pela di-
culdade de encontrar padrões de gestão
e organização que consigam dar conta
de um sistema de signos tão amplo, re-
ativo, mutável como aquele que permeia
o campo da cultura e das artes, mas tam-
bém pelo contexto político, econômico e
social em que estão inseridas as políticas
de cultura no país.
Segundo Martinell (2017), a pró-
pria noção de institucionalidade já traz
em si uma resistência à mudança, dicul-
dade de adaptação ao presente e pouca
capacidade de antecipação de futuro.
Essa condição se revela em nosso con-
48
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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texto de macro política social e permeia
todos os processos da institucionalidade,
dicultando a aproximação com a socie-
dade civil e impedindo a percepção das
necessidades, mudanças, desejos, rotas
de fuga e formas de resistência em curso
no campo cultural.
São inúmeras as questões que
estão postas no âmbito da instituciona-
lidade da cultura e todas anunciam, de
alguma maneira, as novas dinâmicas
culturais e as relações de disputas, ten-
sões e paradoxos que precisam ser en-
frentadas hoje pelos gestores culturais
na contemporaneidade em seus distin-
tos contextos territoriais.
Novas Dinâmicas Culturais
Um dos maiores desaos que te-
mos pela frente é a (in)compreensão do lu-
gar da cultura no Brasil, ainda pouco claro
para a sociedade em geral, para os políti-
cos e até mesmo para os próprios agentes
culturais. A falta de um entendimento mí-
nimo sobre a cultura incide sobre o cam-
po de várias maneiras. Desde a desconti-
nuidade, desarticulação e diversidade das
políticas até a falta de clareza sobre seus
propósitos e resultados. A ausência de da-
dos e processos avaliativos inviabiliza a
geração de indicadores esclarecedores e
signicativos no âmbito da cultura.
Ao propor uma discussão sobre a
ideia da cultura e o valor simbólico de um
bem cultural, Teixeira Coelho (2008) dire-
ciona o olhar para outro ponto nevrálgico
das políticas culturais recentes ao armar
que a cultura é vista como positiva em si,
importante mecanismo de contenção so-
cial, de inclusão, cidadania e desenvolvi-
mento, portadora de uma essência que a
isenta de avaliações críticas.
Políticas que trouxeram consequ-
ências importantes para o campo da cul-
tura, conforme apontado por Teixeira Co-
elho (2008), quando destaca uma espécie
de hierarquização de conceitos, onde a
arte, em seu caráter transgressor e estéti-
co, é posicionada em segundo plano, em
comparação ao poder estruturador da cul-
tura. É um desao para a nova institucio-
nalidade compreender a cultura para além
de sua positividade e acolher a arte em
seu papel fundamental de negação dessa
cultura. Uma arte inútil, sem serventia e
principalmente, impossível de ser domes-
ticada é também um desao para a institu-
cionalidade cultural.
Em tempos de Direitos Culturais,
vivemos em um cenário de tensões, po-
lêmicas e debates no campo das liberda-
des culturais; paradoxalmente, cada vez
mais, com menos espaço para o respei-
to às diferenças e o diálogo. Parece não
haver consensos possíveis e vale muito
mais armar do que buscar entendimen-
to. No centro desse debate muitas ve-
zes está a arte, incômoda e demonizada
em seu potencial questionador, como
podemos perceber com as polêmicas
em torno da Mostra Queermuseu
VIII
em
Curitiba. Arte que, ainda segundo Teixei-
ra Coelho, é extremamente perigosa por
sua capacidade de preencher “todos os
espaços vazios de conteúdo e sensibi-
lidade”. (COELHO, 2008, p. 105). Arte
que divide e estranha; mas também que
sensibiliza, aproxima e nos faz reconhe-
cer como semelhantes.
Outro efeito nefasto da percepção
positiva da cultura é o caráter messiânico
e a ideia de abnegação que é transferido
àqueles que trabalham em seu campo,
gerando uma espécie de tabu e distancia-
mento em relação ao mercado, como se
a aproximação com este, desmerecesse e
desclassicasse um bem cultural e artísti-
co. É preciso criatividade e coragem para
investir na formação de um mercado com
vistas a minimizar a excessiva dependên-
cia do Estado no processo de criação e
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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circulação das artes. Além de ampliar
mercados, precisamos buscar novas for-
mas de sustentabilidade e desenvolver
tecnologias de nanciamento e produção
cultural colaborativa, criando projetos que
façam sentido para as comunidades onde
se inserem, onde as pessoas comuns
possam se sentir envolvidas de alguma
forma. Investir na formação de públicos e
consumidores de cultura e desconcentrar
a oferta e produção cultural nas cidades.
Buscar formas de mobilizar pessoas para
projetos que conciliem qualidade estética
e liberdade artística. Criar alternativas de
subsistência digna para além do Estado.
Atinar para o fato de que nem sem-
pre os processos de democratização do
acesso à cultura passam pela gratuida-
de obrigatória, mas muito mais por fato-
res relacionados à educação, à oferta de
produtos artísticos e culturais continua-
da, descentralizada, ampla e plural; ou
seja, a um valor a esse bem atribuído. É
uma conquista a não se perder de vista,
fundamental para um cenário de cultura
mais favorável e consistente nas próxi-
mas gerações.
É preciso ainda (e cada vez mais)
não permitir que o Estado recue em suas
funções de garantir as políticas e assegu-
rar os direitos culturais, mas também bus-
car formas de (co)existir para além dele.
Romper um ciclo antigo e oscilante de
dependência e ressentimentos. Atuar in-
cansável e politicamente, de forma propo-
sitiva, afetiva e coletiva. Para isso, Estado
e agentes culturais precisam se qualicar,
perceber os novos uxos e acessar outras
forças criativas e mobilizadoras.
E aqui consiste um dos maiores de-
saos de uma nova institucionalidade da
cultura: é preciso que o Estado seja per-
meável, exível, capaz de acolher críticas
e tensionamentos. Perceber mudanças,
construir com a sociedade e reconhecer
os agentes culturais como companheiros
essenciais e inevitáveis nessa jornada.
Requer uma nova institucionalidade da
cultura, novas percepções e leituras e, so-
bretudo, muita escuta.
Em primeiro lugar e de forma es-
sencial, é preciso que se abandone uma
linguagem unívoca e que se passe a tra-
balhar com multiplicidade de sistemas que
fujam aos imperativos únicos de uma ad-
ministração central e irredutíveis a uma
fórmula global, conforme apregoa Certe-
au (2012). Há uma ausência de sentidos
(tatos, escutas, visões...) que faz com que
o Estado se apresente como incapaz de
perceber as novas dinâmicas culturais, a
pluralidade de poderes e as formações
emergentes de sujeitos políticos em distin-
tos contextos territoriais, anunciado tam-
bém por Lucia Maciel (2017) ao destacar
a “pouca porosidade” das instituições para
uma nova realidade.
Muito além da aparente desmobili-
zação e desmonte das políticas culturais
na contemporaneidade, vislumbramos
aqui novas dinâmicas culturais e territo-
riais e outras possibilidades de existência
criativa, surgidas além do Estado e inde-
pendente de sua tutela direta e ainda as-
sim, em forte relação com ele. Onde tudo
parece ruir, surge uma nova força vinda
de distintos atores culturais que atuam
em forma de redes e localizações incer-
tas, por meio de experimentações e acio-
namento de micropolíticas em distintos
contextos territoriais, desejos, múltiplos
recursos e tecnologias computacionais.
Diante de um cenário de desconcertos e
incertezas, vislumbramos oportunidades,
desaos e possibilidades de reinvenções
que já estão em curso.
Novas dinâmicas nas Cidades
Segundo Teixeira Coelho (2008, p.
9), “a cidade é a primeira e decisiva es-
fera cultural do ser humano”. É, portanto,
50
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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o lugar onde a vida acontece, onde cons-
truímos nossas sociabilidades; espaço
de nossos sonhos, afetos e realizações.
É na cidade onde se concentram as ne-
cessidades básicas, mas também as
energias criadoras, as possibilidades de
transformação e reinvenção, as microrre-
voluções e inovações. Território de atu-
ação, resistência e criação dos distintos
agentes culturais.
E é nesse lócus privilegiado de in-
teração cultural que se dá a reinvenção do
nosso cotidiano cultural, em suas diversas
dimensões, e as inúmeras conquistas que
temos pela frente, conforme enunciado
por Coelho (2008, p. 9):
A renovação e expansão dos recursos
culturais da cidade; o apoio às institui-
ções culturais centrais, a criação de
recursos culturais de porte cotidiano
criando uma malha cultural sólida; a
denição de modos culturais criativos
de relacionamento com os equipa-
mentos e problemas urbanos; o estí-
mulo à cidade culturalmente diversa; a
opção pelo desenvolvimento humano
ainda mais que pelo desenvolvimento
econômico; o cuidado no respeito e
na multiplicação dos direitos culturais,
renovados com criatividade; o apoio à
ideia de uma nova cidade transforma-
da que com seu exemplo possa mover
o mundo; a denição do que podem
ser os indicadores dessa nova ges-
tão cultural da cidade; a nova institu-
cionalidade da cultura solicitada pelos
novos desaos; a sustentabilidade do
processo cultural e, nalmente, mas
não em último lugar, o papel da socie-
dade civil no novo arranjo da cultura
na cidade que deve tornar realidade
uma política cultural de proximidade...
É no âmbito de atuação da socie-
dade civil que se efetiva a importância
dos agentes culturais, que com sua ca-
pacidade de mobilização e capilaridade
territorial ativam a rede cultural da cidade
fazendo pulsar a vida nas diversas loca-
lidades do Brasil. São eles, inúmeros e
quase invisíveis, que com ou sem a pre-
sença do Estado, estimulam os movimen-
tos culturais e a criação artística nos bair-
ros periféricos e pequenos distritos. Em
todos os lugares improváveis do Brasil
“profundo” criam projetos que afetam as
cidades com aproximações sociais e co-
munitárias e buscam alternativas inova-
doras de sustentabilidade e formação de
público e mercado. Fazem emergir uma
força criativa de baixo para cima que é
capaz de afetar o Estado e que vai ao
encontro das políticas públicas. Seja no
alinhamento ou no enfrentamento.
Nessa perspectiva, ganham uma
maior relevância os agentes da cultura
nas mais distintas cidades e localidades
do país. Conforme apresentado por Alfons
Martinelli, os agentes culturais são
atores (individuais, coletivos, institu-
cionais, etc.) que interveem ou po-
dem intervir, ativa ou passivamente,
em sentido positivo ou negativo, na
articulação das políticas em diferen-
tes estruturas sociais... elemento de
dinamismo de um território... fator de-
terminante da consolidação de uma
intervenção social, da vida cultural e
uma garantia democrática. (MARTI-
NELL, 2017, p. 1)
São esses agentes culturais, atu-
antes nas distintas cidades do país, que
Martinell considera os “portadores dos
murmúrios cotidianos”. Atuam onde mui-
tas vezes o Estado não tem olhos nem ou-
vidos e carregam consigo toda a potência
de ativação da cultura nos diversos ter-
ritórios. Criam ações que repercutem na
economia, educação, e desenvolvimento
social de distintos territórios brasileiros.
Para isso, é preciso um processo de escu-
ta sensível e atento, feito em muitas vias
e vozes. Estimular a interação e sinergia
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dos agentes culturais de um determinado
campo ou território e compreender suas
distintas demandas e congurações exige
mudança em nossa tradição política enri-
jecida que não favorece uma perspectiva
de protagonismo, empoderamento e auto-
nomia aos distintos atores sociais.
Para que esse processo se amplie
e se consolide, destacamos como fun-
damentais alguns fatores. O reconheci-
mento da importância de que os agentes,
culturais são um elemento essencial às
dinâmicas culturais, sejam eles artistas,
militantes, produtores, mobilizadores ou
gestores, não só por serem portadores
dos anseios históricos, mas também por
sua capacidade de apontar novos ca-
minhos. Muitas vezes agem onde o Es-
tado não chega e com suas ações, dão
materialidade às políticas e programas.
Em outras, apontam novas rotas e criam
realidades improváveis. Por sua diver-
sidade e capilaridade territorial, trazem
importantes contribuições e perspectivas
à gestão pública. Por tudo isso, defende-
mos como premissa básica que não se
faz política cultural e gestão democrática
para os agentes, e sim com os agentes.
Para essa vitalidade cultural nas ci-
dades, precisamos reconhecer ainda que
as políticas culturais se dão em conjunto
de forças, algumas vezes convergentes e
em outras não, mas sempre em processos
de tensão e disputa. Portanto, faz parte da
atividade da gestão e da produção cultu-
ral, o exercício da conciliação, da negocia-
ção e esforços de mediação entre distin-
tos atores e expectativas.
Ao nos relacionarmos com as múl-
tiplas territorialidades e as diferentes pers-
pectivas dos agentes culturais, compre-
endendo as tensões como processos de
construção e compartilhamento, estamos
estimulando a potência e a vitalidade do
campo cultural. Vitalidade que contem-
pla distintas interações e trocas; anima e
acolhe novos conhecimentos e caminhos;
possibilita a participação da sociedade, de
forma a dinamizar a energia que anima
e enriquece a tessitura social. Vitalidade
como sinônimo de potência criativa.
E são esses distintos agentes atu-
ando nas diversas cidades brasileiras, em
uma relação de reconhecimento mútuo,
vitalidade e tensão, que possibilitarão o
surgimento de uma nova forma de ativa-
ção da cultura no país. Deslocando cen-
tros de poder, realizando potentes micror-
revoluções, descentralizando espaços,
formando artistas e técnicos, estimulando
novos públicos e gerando economia e de-
senvolvimento social. Só com cultura e
arte construiremos novas cidades.
Com o Estado e para além do Esta-
do, precisamos construir uma política cria-
tiva que não seja engessada pelo aparato
burocrático, que se mostre dinâmica e or-
gânica, possibilite novas éticas, promova
outras formas de criação e interação so-
cial e outros cenários para a cultura nas
cidades. Uma cultura plural, descentrali-
zada espacial e socialmente, com novos
atores e múltiplas linguagens, onde pos-
samos criar e produzir mais livremente e
voltar a trabalhar de forma compartilhada
em um lócus territorial, interagindo com a
multiplicidade de pessoas, cidades, bair-
ros e empresariado local.
Criar e ampliar mercados. Buscar
novas formas de sustentabilidade e de-
senvolver tecnologias de nanciamento
e produção cultural colaborativa, criando
projetos que façam sentido para suas co-
munidades, onde as pessoas possam se
sentir envolvidas de alguma forma. Investir
na formação de públicos e consumidores
de cultura e desconcentrar a oferta cultu-
ral nas cidades. Buscar formas de mobili-
zar pessoas para projetos que conciliem
qualidade estética e liberdade artística.
Atinar para o fato de que nem sempre os
processos de democratização da cultura
52
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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passam pela gratuidade obrigatória e pela
cobrança de ingressos (ainda que com va-
lores simbólicos), mas muito mais por fa-
tores relacionados à educação, à oferta de
produtos artísticos e culturais continuada,
descentralizada, ampla e plural; ou seja, a
um valor a esse bem atribuído.
É preciso também não permitir que
o Estado recue em suas funções de ga-
rantir as políticas e assegurar os direitos
culturais, mas também buscar formas de
(co)existir para além do Estado. Romper
um ciclo antigo e oscilante de dependên-
cia e ressentimentos. Aprender a atuar po-
liticamente, de forma propositiva, afetiva e
coletiva. Dessa forma, segundo Barbalho
(2016), faz-se necessária uma política cul-
tural que desloque os campos do sensível,
que possibilite a vista das manifestações
e movimentos culturais antes encobertos,
a escuta de discursos onde antes só se
ouviam barulhos e que sejam inventadas
questões que antes não existiam.
Cidades precisam de vitalidade e
proximidade, efetivadas por meio de uma
política cultural que, segundo Lúcia Maciel
(2008, p. 77):
só pode ser pensada hoje enquanto
ação coletiva, criada e implementada
com a participação ativa dos indivídu-
os, sem o que não faz mais sentido.
Proximidade torna-se a palavra chave
para designar as políticas culturais:
quanto mais perto dos indivíduos,
mais viável se torna sua participação,
reetindo os desejos daqueles que
dela se beneciarão.
Esses são alguns dos desaos que
estão postos e, para eles, não há caminho
fácil. Uma das primeiras tarefas consiste
em criar condições e oportunidades de
aproximar arte e cultura da vida cotidiana
das pessoas, onde quer que estejam, de
forma a gerar nelas a sensação de per-
tencimento, encantamento e identicação.
Cultura e arte passariam assim a não ser
“assunto” exclusivo de artistas, produtores
e Estado, mas de pessoas comuns, que
sonham, habitam e labutam nas cidades.
Teixeira Coelho (2017) aponta um cami-
nho possível ao armar que “o microcul-
tural é a mola, a semente, o estopim”. É
na vida vivida, nas rotas de fugas e en-
frentamentos cotidianos que se fará uma
política criativa.
Como estopins dispersos em todas
as cidades, os agentes culturais carregam
consigo uma potência de ativação territo-
rial capaz de provocar ssuras na institu-
cionalidade da cultura por meio de guerri-
lhas, disputas e tensões. Em sua potência
de vida e desejos, trazem uma nova pers-
pectiva à cultura no país. Onde impera o
discurso do deserto, há muita vida pulsan-
do. O novo já está acontecendo. Perceber
e acolher esse movimento são tarefas que
nos cabem, e é também o convite que Fa-
biano dos Santos
IX
, poeta e Secretário da
Cultura do Ceará nos faz:
Precisamos mobilizar as pessoas
e animar as cidades. Animá-las no
sentido de alma mesmo – ânima – e
de espírito. E quem insua as almas
e espíritos de uma cidade? Respon-
do: as artes e a cultura com seus sa-
beres, estéticas e experiências. Sem
alma não há habitantes. Precisamos
habitar de almas nossos habitantes
com repertórios e percursos cultu-
rais. Arrepiar as pessoas por entre as
veredas da cidade! Arrepios capazes
de mobilizar as pessoas e animar
as cidades através das artes... Tra-
vessia. Porque, em primeira análise
estamos falando mesmo é do direito
à cidade como o direito de reinventá-
-la em outra cidade. Mais humanista
e solidária. De reinventá-la por meio
de movimentos de afetos, mas tam-
bém de bravuras; de experiências de
delicadezas, mas também de forças;
de mobilidades de existências, mas
53
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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também de resistências; de uxos
espontâneos, mas também de sus-
tentabilidades. Dinâmicas necessá-
rias para construção de novos con-
vívios sociais e de novas zonas de
contatos e tatos culturais que só as
artes permitem movimentar em prol
de uma cidade com convivências
mais justas e bonitas... pensando na
Microfísica do Poder de Michel Fou-
cault... fui tomado por substantivos
compostos do tipo micro práticas,
micro feixes, micro relações, micro
cruzamentos, micro Malhas, micro
redes, micro teias, micro-ondas cul-
turais que podemos gerar numa es-
pécie de cultura bacteriana de artes
que pode tomar conta das cidades.
Microrganismos que para serem vis-
tos não necessitam exatamente de
microscópios privados ou estatais,
mas, talvez, de caleidoscópios que
podem gerar combinações a partir
de luzes e olhares diversos numa
cartograa poética da cidade.
Nos inspiramos também em um
convite de Michel Maffesoli (2011), que
incita a perceber novas potências, com-
preender atualizações, estar permeável
a pequenas mudanças e às formas diver-
sas que estas assumem, captando o que
ele nomeia de ruído do fundo do mundo.
A metáfora do som do fundo do mundo
remete a uma escuta atenta e sensível;
a uma postura não temerosa, a coragem
de enxergar o que ainda não está posto;
a busca por novos sinais e espaços, ou,
como ele diz, por aquilo que está “em
vias de aparecer no céu de nossa socie-
dade” (MAFFESOLI, 2011, p. 23). Para
isso, o autor apresenta caminhos que
podem auxiliar essa escuta sensível do
novo. Segundo ele, “é preciso ver bem
para trás, para poder ver muito à fren-
te” (idem). E foi assim que ao mirar um
passado recente das políticas culturais
no Brasil, vislumbramos um novo que já
está acontecendo.
Nessa perspectiva, Maffesoli apre-
senta pistas para onde devemos direcionar
o olhar ao evocar vinculações territoriais,
sensibilidades ecológicas, a valorização
de produtos da terra, a estética e o ins-
tante presente. Aponta ainda a tendência
ao envolvimento, em contraposição ao
desenvolvimento, destacando uma visão
mais sensível e qualitativa, necessária
para a compreensão do que denomina de
muda pós-moderna.
Eis o processo de muda em que
nos encontramos. Está chegando o tempo
onde “não se pode mais negar a importân-
cia do poder espiritual, o retorno vigoroso
da cultura, o prevalecimento do imaterial,
a presença do invisível” (idem, p.29). Evo-
camos também a necessidade de uma
institucionalidade cultural mais sensível
que possibilite, segundo Morin e Teixeira
(COELHO, 2017), a expressão poética
da vida e a arte como companheira de
viagem. Ter nas cidades campos férteis
onde os agentes culturais possam atuar
incansavelmente arando as terras de um
Brasil profundo, rico e diverso.
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Recebido em 12/12/2017
Aprovado em 26/02/2018
I Rachel de Souza Gadelha Costa. Graduada em Antro-
pologia pela Unicamp e Mestre em Políticas Públicas e
Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará. Pos-
sui curso de pós-graduação em Administração e Ges-
tão Cultural pela Universidade de Barcelona e Gestão e
Políticas Culturais pelo Itaú Cultural e Universidade de
Girona. Gestora cultural na Secretaria da Cultura do Es-
tado do Ceará. Contato: rachelgadelha@gmail.com
II Lei nº 7.505, de dois de julho de 1986, conhecida
como Lei Sarney e Lei nº 8.313 do dia 23 de dezembro
de 1991, denominada popularmente como Lei Rouanet.
III Discurso proferido em 02/01/ 2003. Disponível
em http://ovinocaprinocultura/discursos/-/as set_pu-
blisher/DmSRak0YtQfY/content/discurso-do-minis-
tro-Gilberto-gil-na-solenidade-de-transmissao-do-
-cargo-35324/10883
IV Instrumentos de seleção para escolha de projetos a
serem nanciados pelo poder público, direcionados a
segmentos culturais e sociais estabelecidos como prio-
ritários pelo Estado.
V Em 31 de agosto de 2016.
VI Instrução Normativa nº 1, de 20 de março de 2017.
VII Conjunto de leis, normas e estruturas administra-
tivas ou como um aglomerado de organizações, equi-
pamentos e serviços que uma comunidade, ou melhor,
um país, tem criado ao longo da sua história. (MARTI-
NELL, 2017b, p.1).
VIII Exposição realizada no Centro Cultural Santander,
em Curitiba, em setembro de 2017. Fechada um mês
antes do previsto depois de intensos protestos de gru-
pos religiosos e do MBL (Movimento Brasil Livre) por ter
seu conteúdo considerado nocivo à sociedade.
IX Depoimento feito nas redes sociais – facebook pes-
soal em 15 de novembro de 2016.
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Federalismo e relações intergovernamentais:
uma análise dos processos de implementação e gestão
dos Sistemas Municipais de Cultura
Federalismo y relaciones intergubernamentales:
un análisis de los procesos de implementación y gestión
de los Sistemas Municipales de Cultura
Federalism and intergovernmental relations:
an analysis of the processes for the implementation and management
of municipal systems of culture
Rafael Aquino
I
Resumo:
O artigo tem como objetivo analisar a efetividade da indução federativa
na tomada de decisão dos municípios em pactuar com a política de
organização intergovernamental da gestão cultural, proposta pelo
Sistema Nacional de Cultura. A partir da análise documental e da
coleta de material empírico, realizada por meio de estudos de caso,
busca-se evidenciar os aspectos discricionários, formais, técnicos,
sociais e políticos envolvidos no processo de implementação e gestão
dos Sistemas Municipais de Cultura. Foram tomados como objetos do
estudo de caso os municípios de Betim, Contagem, e Sabará, em função
das diferenciações políticas, administrativas e de recursos nanceiros
disponibilizados para viabilizar suas políticas locais de cultura. As
administrações municipais objeto do estudo têm população superior
a 100 mil habitantes e possuem Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal (IDHM) entre os patamares alto e médio. Minas Gerais é o
estado da federação com o maior número de municípios, somando
um total de 853 governos locais, que possuem situação econômica e
formação socioespacial bastante diversa. Neste contexto, o conjunto
de municípios que formam a Região Metropolitana de Belo Horizonte
(RMBH) permite elaborar uma contribuição conceitual e analítica
referente à efetividade do desenvolvimento local das políticas públicas
de cultura, estabelecidas em regime de cooperação intergovernamental.
Palavras chave:
Federalismo
Relações
Intergovernamentais
Municípios
Políticas Culturais
Sistema Nacional de
Cultura
56
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El artículo tiene como objetivo analizar la efectividad de la inducción
federativa en la toma de decisión de los municipios en pactar con la política
de organización intergubernamental de la gestión cultural, propuesta por
el Sistema Nacional de Cultura. A partir del análisis documental y de la
recogida de material empírico, realizada por medio de estudios de caso, se
busca evidenciar los aspectos discrecionales, formales, técnicos, sociales
y políticos involucrados en el proceso de implementación y gestión de
los Sistemas Municipales de Cultura. Han sido tomados como objetos de
estudio de caso los municipios de Betim, Contagem e Sabará, en función
de las diferencias políticas, administrativas y de recursos nancieros
disponibilizados para viabilizar sus políticas locales de cultura. Las
administraciones municipales objeto de estudio tiene población superior
a 100 mil habitantes y poseen Índice de Desarrollo Humano Municipal
(IDHM) entre los niveles alto y medio. Minas Gerais es el estado de la
federación con más municipios, sumando un total de 853 gobiernos
locales, que poseen situación económica y formación socioespacial
bastante diversa. En este contexto, el conjunto de municipios que forman
la Región Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) permite elaborar una
contribución conceptual y analítica referente a la efectividad del desarrollo
local de las políticas públicas de cultura, establecidas en régimen de
cooperación intergubernamental.
Abstract:
This article aims to analyze the effectiveness federative induction in
the decision-making of the municipalities to agree with the policy of
intergovernamental organization of cutural management, that was
proposed by National System of Culture. Based on the documentary
analyses and in the collection of empirical material, realized throught
case studies, it seeks to evidence the discretionary, formal, techinical,
social and political aspects from the implementation and management
of Municipal Cultural System. Municipalities as Betim, Contagem and
Sabará were taken as exemples of case studies, due to the political,
administrative and nancial differentations available to nod their local
cultural policies. These municipal administrations has population
higher of 10 thousand inhabitants and dispose of a Municipal Human
Development Index between higher and medium levels. Minas Gerais
has the largest number of municipalites of Brazil, with a total of 853 local
governments and diverse economic situation and socio-spatial formation.
Therefore, the set of municipalities that make up the Metropolitan Region
of Belo Horizonte allows the formulation of a analytical and conceptual
contribution allusive to the effectiveness of local development of public
policies of cultural dened in an intergovernamental cooperation regime.
Palabras clave:
Federalismo
Relaciones
Intergubernamentales
Municipios
Políticas Culturales
Sistema Nacional de
Cultura
Keywords:
Federalism
Intergovernmental
Relations
Municipalities
Cultural Policies
National System of
Culture
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Federalismo e relações
intergovernamentais: uma análise dos
processos de implementação e gestão
dos Sistemas Municipais de Cultura
Introdução
Os estudos empreendidos no cam-
po das relações intergovernamentais e
da organização federativa do Brasil são
fundamentais para compreender as pe-
culiaridades do desenho institucional que
consiste na descentralização de diversas
políticas públicas e programas governa-
mentais. O formato sistêmico desenvol-
vido para viabilizar a gestão das políticas
públicas em regime de cooperação possi-
bilita a integração administrativa entre a
União, os estados e os municípios. A insti-
tucionalização dos canais de participação
da sociedade civil, organizados por meio
das instâncias de formulação, controle,
deliberação e consulta pública, a exem-
plo dos conselhos, conferências e fóruns
intersetoriais, são também elementos es-
senciais na conguração destes padrões
de governança democrática.
O presente trabalho consiste num
estudo de caso desenvolvido com o intuito
de identicar os graus de efetividade das
ações do Ministério da Cultura (MinC) que
buscam induzir a adesão dos governos
subnacionais (estados e municípios) ao
Sistema Nacional de Cultura, que possui
como objetivo central introduzir na agen-
da dos governos locais o cumprimento de
suas obrigações constitucionais corres-
pondentes ao dever de proteger, apoiar,
promover e garantir o pleno exercício dos
direitos culturais. Os estados e municípios
que formalizam sua adesão ao SNC se
comprometem a implementar seus pró-
prios sistemas de cultura. No entanto, a
tomada de decisão das administrações
municipais em assumir novas competên-
cias no campo das políticas públicas e de
realizar a gestão em regime de coopera-
ção com os demais entes federativos (es-
tados e/ou União) deriva de um cálculo do
qual são considerados, simultaneamente,
os custos e benefícios envolvidos em as-
sumir a provisão de serviços em determi-
nados setores. Por outro lado, entra em
cena a avaliação em relação aos recursos
estruturais, scais e administrativos com
os quais cada administração necessita
contar para desempenhar determinada
atribuição (ARRETCHE, 2000).
Para o desenvolvimento deste tra-
balho foi tomado como referência a Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH),
considerada a terceira maior RM do país,
constituída por 34 municípios, que repro-
duzem a expressiva heterogeneidade po-
lítica, administrativa e econômica carac-
terística dos municípios brasileiros. Estas
diferenciações são os principais fatores
que determinam as profundas desigualda-
des existentes entre os municípios quanto
à capacidade de administrar a gestão das
políticas públicas (ARRETECHE, 2000).
Os aspectos vocacionais e cívicos de cada
localidade também podem interferir no ali-
nhamento dos municípios com as políticas
induzidas pelo governo federal.
Neste contexto, foram tomados
como referência os municípios de Be-
tim, Contagem e Sabará, que no arran-
jo socioespacial da RMBH, fazem parte
do conjunto de cidades com população
superior a 100 mil habitantes, que pos-
suem maior densidade econômica e ca-
pacidade administrativa. Contudo, eles
se diferenciam quanto à abrangência e
desenvolvimento no âmbito das políticas
culturais, mesmo que executadas em re-
gime de cooperação intergovernamental,
que tem por princípio estabelecer um mo-
delo padronizado de gestão. Os três mu-
nicípios escolhidos tiveram sua formação
inuenciada pelo ciclo do ouro em Minas
Gerais, que se iniciou no século XVII. A
58
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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descoberta de ouro em Sabará deu ori-
gem ao primeiro povoado do estado e à
construção de um dos primeiros aglome-
rados urbanos da região sudeste do país.
A necessidade de abastecer a região da
mineração deu origem ao povoamento
dos atuais municípios de Betim e Con-
tagem, que se emanciparam no início do
século XX. A partir da década de 1940, os
dois municípios passaram a abrigar gran-
des plantas industriais, o que contribuiu
para ambos se transformarem nas cida-
des mais populosas do estado e desta-
que na economia regional e nacional.
O objetivo de identicar os impac-
tos da indução federativa no reordena-
mento de atribuições das administrações
municipais, na esfera das políticas pú-
blicas de cultura, procura evidenciar os
graus de efetividade atribuídos ao SNC,
no que corresponde à implementação dos
Sistemas Municipais de Cultura. Como
variáveis independentes foram conside-
rados o alinhamento ideológico das co-
alizões partidárias existentes entre os
níveis de governo no plano federativo e
a capacidade política, administrativa e -
nanceira dos municípios, disponível para
assegurar o desenvolvimento da cultura
local.Os estudos de caso foram também
orientados a partir da revisão bibliográca
pertinente ao campo das relações inter-
governamentais, organização federativa,
o conceito antropológico de cultura, sua
posição no conjunto dos direitos funda-
mentais, estruturação das políticas cultu-
rais no Brasil, o histórico, principais dire-
trizes e o estágio atual do SNC.
Indução federativa e a formulação
do Sistema Nacional de Cultura
O desenho institucional brasileiro
passou por diferentes mudanças ao lon-
go das transições políticas, que condu-
ziram ao m dos regimes autoritários. A
raticação da Constituição de 1988, rees-
tabeleceu as bases do Estado federativo
brasileiro, promoveu a descentralização
scal e reconheceu a autoridade política
dos níveis de governos estaduais e mu-
nicipais. O governo federal, passou a in-
duzir os estados e municípios, por meio
de legislações especícas e transferên-
cias nanceiras, a assumirem os cres-
centes gastos com as políticas sociais. A
organização dos “sistemas” para a ges-
tão das políticas públicas em regime de
colaboração intergovernamental e com a
participação da sociedade civil, tornou-se
instrumento estratégico na execução de
programas e projetos em diferentes áre-
as. Conforme Cunha Filho (2007), a orga-
nização sistêmica das políticas públicas
promove a integração entre os órgãos
governamentais, coordena a distribuição
de competências, otimiza a aplicação dos
recursos, propicia eciência e universali-
dade no atendimento à população.
Neste sentido, o Sistema Nacional
de Cultura (SNC) foi formulado e estrutu-
rado para induzir os governos subnacio-
nais a assumirem suas competências e
atribuições na gestão pública de cultura.
O Ministério da Cultura possui a responsa-
bilidade de coordenar a gestão do sistema
em regime de cooperação com os órgãos
responsáveis pela gestão cultural dos es-
tados e municípios. O SNC tem como ob-
jetivo introduzir na agenda dos governos
locais o cumprimento de suas obrigações
constitucionais correspondentes ao dever
de proteger, apoiar, promover e garantir o
pleno exercício dos direitos culturais. Des-
sa forma, propõe o fortalecimento institu-
cional da administração pública na gestão
das políticas culturais desenvolvidas no
território nacional. A arquitetura do SNC
prevê a articulação e a pactuação na es-
fera das relações intergovernamentais,
concomitante ao exercício pleno da cida-
dania, ancorado nos princípios da demo-
cracia participativa, conforme determina
a CF-88. A União, os estados e os muni-
cípios devem implementar uma estrutura
59
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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própria que compreende nove elementos
constitutivos, sendo cinco considerados
centrais, como o órgão gestor de cultu-
ra, as instâncias de participação através
dos conselhos de políticas culturais e
das conferências de cultura, os planos
de cultura que estruturam programas e
ações de longo prazo que garantam a va-
lorização e a preservação da diversidade
cultural, e o sistema de nanciamento à
cultura. Os demais elementos constituti-
vos do sistema são: sistemas setoriais de
cultura, comissões intergestores (tripartite
e bipartites), sistemas de informações e
indicadores culturais e programa de for-
mação na área da cultura.
A proposta de organização sistê-
mica da cultura surgiu primeiramente em
2002, na publicação “A Imaginação a Ser-
viço do Brasil – Programa de Políticas Pú-
blicas de Cultura”. No campo de pesqui-
sa das políticas culturais brasileiras, este
documento é considerado imprescindível
para compreender a linha de atuação do
MinC rumo à consolidação de políticas
estruturadas com base na articulação en-
tre os entes federativos. A partir de 2003,
o MinC passou a empreender uma série
de iniciativas com foco na implementação
de políticas públicas de cultura que incor-
porassem as formulações expressadas
no documento “A Imaginação a Serviço
do Brasil”. A adoção do conceito antropo-
lógico de cultura como parâmetro nortea-
dor das ações do MinC, permitiu o esta-
belecimento de um novo signicado para
o papel da cultura no campo das políticas
públicas, as ações desenvolvidas foram
marcadas pelo diálogo com diferentes
instituições e esferas de governo. A aber-
tura dos canais de participação inaugurou
a inserção da sociedade civil na agenda
ministerial, com a função de exercer o
controle e subsidiar a elaboração de po-
líticas públicas para o setor cultural. Nes-
te período, ocorreu a reformulação do
Conselho Nacional de Políticas Culturais
(CNPC), realização de seminários em to-
das as regiões do país, organização de
consultas públicas, criação das Câmaras
Setoriais de Cultura, apoio às conferên-
cias de cultura dos estados e municípios,
que antecederam a Primeira Conferência
Nacional de Cultura, realizada em 2005
(CALABRE, 2011; GARCIA, 2013). A po-
lítica nacional de cultura passou a ser
delineada por três dimensões: simbólica,
econômica e cidadã.
A integração federativa do SNC
é realizada de forma voluntária, em fun-
ção da autonomia constitucional de cará-
ter político e administrativo dos governos
subnacionais. A princípio a adesão dos
estados e municípios ao SNC foi reali-
zada com a assinatura de Protocolos de
Intenção (2005 e 2006) e posteriormente
com a assinatura do Acordo de Coopera-
ção Federativa. Dessa forma, governado-
res e prefeitos se comprometem a estru-
turar sistemas de cultura instituídos por
leis próprias, implementando pelo menos
cinco dos nove elementos constitutivos
do SNC: Secretaria de Cultura ou órgão
equivalente, Conselho de Política Cultural,
Conferência de Cultura, Plano de Cultura
e Sistema de Financiamento da Cultura.
Os esforços em busca da institucio-
nalização e implementação do SNC, qua-
licou o debate sobre a gestão cultural no
Brasil. Neste percurso, foram realizadas
três Conferências Nacionais de Cultura,
sendo a primeira em 2005, com o tema
“Estado e Sociedade Construindo Políti-
cas Públicas de Cultura”; a segunda em
2010, com o tema “Cultura, Diversidade,
Cidadania e Desenvolvimento”, e a tercei-
ra em 2013, com o tema “Uma Política de
Estado para a cultura: Desaos do Siste-
ma Nacional de Cultura”. As conferências
de políticas públicas acumulam a capaci-
dade de aprimorar as RIG’s e a participa-
ção social no campo democrático.
Elas são convocadas por decreto pre-
sidencial que delimita a temática e
60
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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delega o dever de organizá-las aos
respectivos ministérios. Ao regula-
mentá-las, o ministério em questão
detalha os temas e objetivos e estabe-
lece as comissões organizadoras, os
cronogramas e os regulamentos para
a implantação das reuniões regionais
e para as eleições de delegados. Nes-
te sentido, as conferências constituem
espaços de participação que reque-
rem esforços diferenciados, tanto de
mobilização social quanto de consti-
tuição da representação em torno da
denição de uma determinada política
pública (FARIA; PETINELLI, 2011).
As conferências de cultura realiza-
das nos estados e municípios formaram
uma ampla plataforma de participação e
deliberação, que subsidiou as três confe-
rências nacionais, em que o SNC gurou
entre os temas. As ações de implemen-
tação do SNC tiveram um forte estímulo
em 2005, quando ocorreram, paralela-
mente, o envio ao Congresso Nacional
da Proposta de Emenda à Constituição
para instituir o SNC (PEC nº 416/2005)
e a realização da Primeira Conferência
Nacional de Cultura, quando seus obje-
tivos, diretrizes e normas foram ampla-
mente debatidos com a sociedade civil e
representantes das administrações mu-
nicipais, que nessa ocasião assinaram o
protocolo de intenções, rmando o com-
promisso de cooperar para a implemen-
tação do sistema. A PEC nº416/2005,
foi aprovada no Congresso Nacional em
2012, estabelecendo a Emenda Consti-
tucional nº 71, que acrescentou o artigo
216-A na Constituição Federal, instituin-
do o Sistema Nacional de Cultura (SNC).
A institucionalização do SNC confere o
caráter de política pública permanente,
que de maneira sistêmica permitirá, com
maior incidência, o alcance aos setores
mais amplos da sociedade, “de forma a
dar um formato político e administrativo
mais estável e resistente às alternâncias
de poder” (BRASIL, 2011).
O SNC é um modelo federativo de
organização da gestão pública de cultu-
ra, que ainda carece de lei regulamentar
e de normas operacionais quem orientem
os governos subnacionais a implementar
e manter em funcionamento seus siste-
mas próprios de cultura, como já existente
em outros sistemas de políticas públicas,
como o Sistema Único de Saúde (SUS)
e o Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). O pressuposto da Teoria Geral
de Sistemas versa sobre um conjunto or-
denado de elementos, que interligados
em diferentes espaços interagem entre si
(DUARTE; FARIA, 2012). O Procedimen-
to Operacional Padrão (POP) expressa a
sequência de operações necessárias ao
cumprimento de metas, com o objetivo de
reduzir a ocorrência de desvios na execu-
ção de tarefas essenciais ao funcionamen-
to do processo. Em um território formado
por municípios que possuem acentuadas
diferenças de ordem administrativa, polí-
tica e econômica, esta fragilidade das di-
retrizes normativas e administrativas do
SNC compromete profundamente o pro-
cesso de implementação e de gestão dos
sistemas municipais de cultura.
A implementação dos Sistemas
Municipais de Cultura na RMBH
As análises demonstram como os
municípios da RMBH reagem ao proces-
so de adesão ao Sistema Nacional de
Cultura, uma política prevista na Cons-
tituição Federal, mas que ainda neces-
sita trilhar um longo percurso para se
legitimar inteiramente como política de
Estado. Desde 2003, está na pauta do
governo federal, por meio do Ministério
da Cultura, induzir os governos subna-
cionais a participar do SNC, mesmo sem
denir as operações que orientem os go-
vernos locais no processo de implemen-
tação dos Sistemas Municipais de Cultu-
ra e o mecanismo de transferências de
recursos fundo a fundo.
61
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Como variáveis independentes
foram considerados o alinhamento ideo-
lógico das coalizões partidárias das ad-
ministrações municipais frente governo
federal, a capacidade política, administra-
tiva e nanceira dos municípios disponí-
vel para assegurar o desenvolvimento da
cultura local. A análise também relaciona
a formulação das políticas culturais nos
municípios, no que refere à implemen-
tação e gestão do Sistema Municipal de
cultura e de seus elementos constitutivos.
O Quadro1 apresenta a estrutura dos sis-
temas municipais de cultura dos municí-
pios que foram objetos do estudo de caso.
Nele é possível vericar a grau de imple-
mentação alcançado por cada município
referente aos cinco elementos centrais,
necessários para instituir o Sistema Mu-
nicipal de Cultura, conforme determinado
pelo Ministério da Cultura.
Para avaliar os investimentos de
cada administração municipal na gestão
da política local de cultura, foram toma-
dos como referência a Lei Orçamentária
Anual (LOA) e o percentual da PEC 421
II
. Em comparação com o piso de 1% pre-
visto para os municípios, de acordo com
a PEC 421, verica-se que Contagem,
mesmo registrando o terceiro maior PIB
do estado e o 27º lugar no ranking na-
cional que avalia o PIB dos 5.570 muni-
cípios brasileiros, o investimento anual
em cultura atinge em média 0,2% do seu
orçamento. O município de Betim apre-
senta os investimentos em cultura den-
tro do patamar proposto pela PEC 421,
porém ocorreram sucessivos cortes nos
últimos exercícios, que ocasionaram o
cancelamento de editais e fechamento
de centros populares de cultura. O mu-
nicípio de Sabará apresenta uma média
de investimento superior ao piso cons-
titucional proposto pela PEC 421/2015.
Vale considerar que Sabará participa de
importantes programas de nanciamen-
to do Governo Federal, como o PAC Ci-
dades Históricas, o CEU das Artes e da
Rede de Pontos de Cultura.
Quadro 1
Fonte: ELABORAÇÃO PRÓPRIA
62
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Os municípios de Sabará e Betim
estiveram entre os 20 municípios bra-
sileiros contemplados pelo Projeto de
Assistência Técnica para Elaboração
dos Planos de Cultura de Capitais e Re-
giões Metropolitanas. O projeto foi uma
parceria de cooperação técnica entre o
Ministério da Cultura e a Universidade
Federal da Bahia (UFBA). O projeto foi
iniciado em 2011 com previsão de con-
clusão em 2012. Já o município de Con-
tagem não contou com consultorias para
implementar nenhum dos elementos es-
truturantes do SNC.
O município de Betim possui a
quinta maior população do estado, esti-
mada em 422.354 habitantes, extensão
territorial de 346 Km², é formado por dez
regionais administrativas e encontra-se a
26 Km de Belo Horizonte (IBGE, 2016).
De acordo com o Centro de Estatística e
Informações da Fundação João Pinheiro,
em 2014 Betim registrou o quarto maior
PIB do estado, mas no ranking nacional
caiu da 19º posição para a 35º. A orga-
nização das políticas culturais de Betim,
com a criação de um órgão gestor de cul-
tura exclusivo, instrumentos de participa-
ção social, mecanismo de nanciamento
e programa de formação na área cultural,
começou a ser estruturada no nal de -
cada de 1980. Este formato de gestão pú-
blica de cultura se desenvolveu ao longo
da década de 1990, e nos anos seguintes
vem se recongurando, em função das al-
ternâncias de poder da política local, do
nível da participação social e, mais tarde,
por inuência das diretrizes do SNC.
A adesão de Betim ao SNC acon-
teceu em 2009, no governo da prefeita
Maria do Carmo (PT). Durante este man-
dato o município foi contemplado com a
consultoria da UFBA para elaboração do
Plano Municipal de Cultura. Os principais
elementos estruturantes do sistema, como
órgão gestor de cultura exclusivo, fundo
de nanciamento à cultura e a conferên-
cia municipal de cultura, são anteriores ao
SNC, sendo que os dois últimos foram es-
truturados durante as administrações do
PT (1993-1996 e 1997-2000). Entretanto,
o segundo mandato da prefeita Maria do
Carmo encerrou em 2012 sem que a lei
geral do sistema municipal, o conselho
municipal de política cultural e o plano
fossem implementados. No mandato do
prefeito Carlaile Pedrosa do PSDB (2013-
2016), os gestores deram continuidade ao
processo de implementação do SMC, prio-
rizando as contribuições das conferências
e fóruns de cultura, mas desconsideraram
as ações realizadas na consultoria que o
município recebeu na gestão anterior, para
elaboração do plano municipal de cultura.
A lei geral do sistema foi aprovada a sete
meses do nal do mandato, em junho de
2016, as aprovações da legislação do con-
selho e do plano permanecem pendentes.
O município de Contagem possui
a terceira maior população do estado, es-
timada em 653.800 habitantes, extensão
territorial de 195.268 Km², formado por
oito regionais administrativas e encontra-
-se a 21 Km de Belo Horizonte (IBGE,
2016). Segundo dados da Fundação João
Pinheiro, em 2013 Contagem registrou o
terceiro maior PIB de Minas Gerais, po-
rém, na lista dos maiores do país, caiu da
25º para a 27º posição. O primeiro man-
dato da prefeita Marília Campos do PT
(2005 a 2008) foi durante um período de
forte atuação do Ministério da Cultura em
todo o país para construção do SNC, o
município atendeu ao chamado para rea-
lização da primeira conferência municipal,
em 2005. Nesta conferência as principais
demandas colocadas pela sociedade civil
foram a criação do órgão gestor exclusi-
vo, criação da lei municipal de incentivo
à cultura, descentralização das ativida-
des culturais e realização de um censo. A
prefeita, reeleita em 2008 não realizou a
conferência de cultura de 2009, a lei de in-
centivo foi aprovada, mas sem regulamen-
tação não chegou a funcionar, o projeto de
63
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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lei para instituir o órgão gestor exclusivo
tramitou em caráter de urgência em 2012,
a seis meses de nalizar o mandato. No
caso de Contagem, mesmo com a prefei-
ta pertencendo ao mesmo grupo político
à frente do Governo Federal, não houve
avanços signicativos no âmbito do SNC
durante seus dois mandatos. No mandato
seguinte, governou o prefeito Carlin Mou-
ra, pertencente ao PCdoB, partido que in-
tegra as coalizões de esquerda no Brasil.
Neste mandato, todos os elementos cons-
titutivos do SNC foram implementados e
o alinhamento ideológico com o Governo
Federal contribuiu com o processo. Mas
a principal motivação para o prefeito prio-
rizar o sistema em seu governo, se deve
às mobilizações da militância cultural da
cidade, diante da inércia do governo ante-
rior em prol do SNC.
A adesão de Contagem ao SNC
ocorreu no nal de 2012, mas como o
prazo de validade do Acordo de Coopera-
ção Federativa havia expirado, foi preciso
assiná-lo novamente em 2015, mas dessa
vez com vigência por tempo indetermina-
do a partir da data de sua celebração. O
Sistema Municipal de Cultura (SMC) foi
instituído pela Lei nº 4647, em 2013, pri-
meiro ano de funcionamento da Fundação
Municipal de Cultura. A lei institui todos os
elementos constitutivos necessários para
estruturar a política cultural do município,
conforme as diretrizes do SNC. O Fundo
Municipal de Incentivo à Cultura (FMIC) e
o Conselho Municipal de Política Cultural
(CMPC) passaram a funcionar em 2014.
O Plano Municipal de Cultura, Lei nº 4762,
foi aprovado em 2015, neste mesmo ano,
em parceria com a Secretaria Municipal
de Educação, houve audiências públicas
para discutir o Plano Municipal do Livro,
Leitura, Literatura e Biblioteca, que per-
manece aguardando denição do executi-
vo para ser encaminhado para apreciação
da Câmara Municipal. A elaboração e im-
plementação do SMC e de seus elemen-
tos constitutivos cou sob a responsabili-
dade da assessoria direta da presidência
da fundação municipal de cultura.
Os 15 Km de distância de Belo Ho-
rizonte fazem de Sabará a cidade histórica
mais próxima da capital mineira. Segun-
do o IBGE, os dados de 2016 apontam
uma estimativa populacional de 135.196
habitantes e seu território possui 302.173
Km². O município de Sabará, durante o
período de adesão e implementação do
Sistema Municipal de Cultura, passou por
três administrações de prefeitos liados a
partidos de corrente ideológica de centro-
-esquerda (PSB) e centro (PV e PMDB).
A primeira ação do município alinhada às
diretrizes do SNC foi na Conferência Inter-
municipal de Cultura, realizada em 2005
junto aos municípios de Caeté, Jabutica-
tubas e Santa Luzia. O MinC incentivou
a realização das conferências de cultura
nos estados e municípios, que antece-
deram a primeira conferência nacional.
Nesta primeira experiência foi pertinente
possibilitar a união de esforços, uma vez
que a organização de conferências ainda
era novidade para muitos governos sub-
nacionais e as diculdades de mobilização
da comunidade cultural eram evidentes
(SANTA LUZIA, 2013).
De 2009 a 2012, no mandato do
prefeito Willian Borges (PV), aconteceu a
conferência de cultura e o município foi
contemplado com a consultoria para im-
plementação do plano municipal de cultu-
ra. Durante o mandato 2013-2016 do pre-
feito Diógenes Fantini (PMDB) não houve
continuidade no processo de construção
do plano, os gestores deste período de-
cidiram priorizar a aprovação da lei geral
do sistema municipal de cultura, e em se-
guida seus demais elementos estruturan-
tes. A lei geral do sistema municipal de
cultura e do conselho de política cultural
foram sancionadas a poucos meses do
nal do mandato. A primeira eleição do
conselho de política cultural aconteceu
na 4º conferência municipal de cultura,
64
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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realizada no segundo semestre de 2017,
processo que contou com ampla partici-
pação da sociedade civil.
Nos três municípios, a caracterís-
tica da variável partidário-eleitoral frente
ao alinhamento dos prefeitos com o Go-
verno Federal não inuenciou no processo
de adesão ao SNC. O Sistema Nacional
de Cultura é um instrumento instituciona-
lizado para organizar a gestão cultural em
todos os níveis de governo, porém toman-
do por base outros sistemas de políticas
públicas em funcionamento no país, cons-
tata-se que não existe indução federativa
no Brasil que funcione sem incentivos -
nanceiros. Neste contexto, o mecanismo
de repasse fundo a fundo previsto no SNC
é essencial para consolidar a cooperação
federativa na gestão pública de cultura, de
maneira que incentive os governos sub-
nacionais a implementar e desenvolver a
gestão dos seus próprios Sistemas Muni-
cipais de Cultura.
Para haver avanços na perspecti-
va do SNC a mobilização da sociedade
civil foi essencial nos três municípios pes-
quisados. Em Betim, apesar de não pos-
suir conselho de política cultural, as con-
ferências de cultura são instituídas por lei
e devem ser realizadas a cada dois anos.
Os fóruns de cultura são realizados no
ano que antecede a conferência munici-
pal de cultura, com o objetivo de subsi-
diar as discussões que serão tratadas em
caráter de deliberação nas conferências.
A interlocução entre poder público e so-
ciedade, intercalada entre fóruns e confe-
rências de cultura, serviu para reunir um
considerável volume de propostas. Sa-
bará seguiu todos os chamados do MinC
para a realização de conferências (2005,
2009, 2013). A lei que institui o Sistema
Municipal de Cultura de Sabará prevê a
realização das conferências, dessa for-
ma, a 4º conferência foi realizada em
2017 independente da convocação do
Governo Federal.
Nos primeiros anos de indução do
MinC à adesão dos municípios ao SNC,
não houve avanços em Contagem. A pri-
meira conferência municipal de cultura foi
realizada em 2005, mas nenhuma das pro-
posições foi implementada nos anos se-
guintes. O descaso da prefeitura no cam-
po das políticas culturais desencadeou, a
partir de 2009, uma série de mobilizações
da sociedade civil, que resultou na criação
do Fórum Popular de Cultura. No período
de criação do FPC, o município não pos-
suía órgão gestor exclusivo de cultura,
não havia mecanismo de nanciamento,
houve a devolução de quase 1 milhão de
reais ao MinC, porque a administração
municipal não cumpriu com as contrapar-
tidas do Programa Cultura Viva, além de
não ter realizado a segunda conferência
municipal de cultura.
Considerações Finais
Os casos analisados demonstra-
ram que os passos mais relevantes em
direção à consolidação dos Sistemas
Municipais de Cultura aconteceram no
último ano de mandato. O Quadro 1 de-
monstra que ações fundamentais refe-
rentes à gestão das políticas culturais
aconteceram a poucos meses das elei-
ções municipais, quando as atenções se
voltam prioritariamente para a reeleição
ou sucessão dos prefeitos.
A falta de vontade política dos go-
vernos locais na estruturação dos siste-
mas de cultura tem se confrontado com a
ampliação dos canais de participação que
foram estimulados pelo governo federal,
por meio das conferências, fóruns e dos
conselhos de cultura. A implementação do
SNC tem ocorrido a passos lentos, alter-
nando em períodos de avanços e retro-
cessos no âmbito do próprio MinC. Mas,
demonstra ser uma referência importante
para a organização das políticas de cul-
tura dos municípios brasileiros, principal-
65
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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mente no que se refere à estruturação do
órgão gestor de cultura, dos mecanismos
de participação e de nanciamento.
Ainda foi possível identicar o
quanto as sucessões administrativas
comprometem a efetividade das ações
empreendidas no campo das Relações In-
tergovernamentais. De maneira geral, tais
rupturas são previsíveis nas mudanças de
gestão ocorridas em função das eleições
para cargos no poder executivo nos três
níveis federativos. As descontinuidades
administrativas motivadas pelas mudan-
ças de governo estão enraizadas na cultu-
ra política do país, o caminho para superar
a naturalização desta prática encontra-se
justamente no fortalecimento e ampliação
da participação social, dentro das instân-
cias de formulação, avaliação e controle
das políticas públicas. A CF-88 assegura
o princípio da participação popular nas de-
cisões e ações governamentais. O direito
conferido à sociedade de interagir com o
Estado na denição de prioridades e na
elaboração de políticas públicas deve ser
inerente ao exercício democrático.
Para municípios como Betim, que
já possuem suas políticas culturais estru-
turadas antes da sua integração ao SNC,
os gestores reconhecem que este formato
de organização sistêmica tem contribuído
para que os programas e projetos sejam
modernizados e planejados em conjunto
com a sociedade civil, visando alcançar re-
sultados de médio e longo prazo. Por outro
lado, também foi possível vericar que mu-
nicípios como Contagem, que não seguia
nenhuma das diretrizes propostas pelo
SNC, passaram a contar com uma referên-
cia direta de como constituir sua estrutura
administrativa para executar a gestão das
políticas culturais. Levando em conside-
ração as particularidades locais, Sabará,
que possui grande tradição na preservação
do patrimônio histórico material e imate-
rial, a partir da inuência do SNC passou
a aprimorar seus mecanismos de gestão e
de participação, para dialogar com outros
atores, que também devem ter os seus di-
reitos culturais assegurados. Entretanto, é
imprescindível que o SNC seja regulamen-
tado e passe a contar com normas opera-
cionais que orientem os governos subna-
cionais na implementação dos sistemas
de cultura. Salvo as profundas diferenças
regionais do país, o processo de regu-
lamentação SNC é o caminho que pode
contribuir para superar as diferentes inter-
pretações discricionárias e até mesmo as
descontinuidades que tanto prejudicamos
processos de implementação e gestão dos
Sistemas Municipais de Cultura.
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Recebido em 01/12/2017
Aprovado em 23/02/ 2018
I Rafael Luiz de Aquino. Mestre em Ciências Sociais
pela PUC Minas, na linha de pesquisa Políticas Públi-
cas, Poder Local e Participação. Membro do Observató-
rio da Diversidade Cultural, idealizador da Casa Criativa
de Contagem e coordenador de projetos da Associação
Move Cultura. Contato: emaildoaquino@gmail.com
II Proposta de Emenda Constitucional 421/2014, conhe-
cida como “PEC da Cultura” (substitui a PEC 150/2003),
prevê a ampliação do orçamento público na área da cul-
tura, por meio do repasse anual de 2% do orçamento
federal, 1,5% do orçamento dos Estados e do Distrito
Federal e 1% do orçamento dos municípios, vindos das
receitas resultantes de impostos.
67
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
“ICMS - Patrimônio Cultural”:um estudo sobre a política pública
de preservação cultural do Estado de Minas Gerais com ênfase no
processo de Educação Patrimonial
“ICMS - Patrimonio Cultural”: un estudio sobre la política pública para
la preservación cultural del Estado de Minas Gerais con énfasis en el
proceso de Educación Patrimonial
“ICMS - Cultural Heritage”: a study on the public policy for the cultural
preservation of the State of Minas Gerais with emphasis on heritage
education process
Clésio Barbosa Lemos Júnior
I
Resumo:
Uma política pública, em particular, uma política de preservação cultural,
só se mostra correta e consequente quando além de contemplar medidas
referentes à memória e identidade de um povo, baseia-se amplamente
em uma concepção que integra as questões socioeconômicas, técnicas,
artísticas e ambientais, articulando-as com as questões de qualidade
de vida, meio ambiente e cidadania. Diante desse mote, esse estudo
foi organizado a partir da análise da política pública de preservação do
patrimônio cultural no Estado de Minas Gerais. Para tanto, o artigo foi
estruturado da seguinte forma: primeiramente abordou-se, de maneira
sucinta, o histórico que deu origem a lei conhecida como “Lei Robin
Hood”, responsável pelo ordenamento da referida política pública. Em
um segundo momento tratou-seda especicidade do critério patrimônio
cultural, cujo reconhecimento se dá pelo termo “ICMS - Patrimônio
Cultural”. O processo de educação para o patrimônio cultural, tratado
como educação patrimonial, foi abordado na terceira seção do
artigo com enfoque nas ações que podem ser desenvolvidas para a
efetiva aplicação dessa metodologia educacional. Por m, algumas
considerações foram feitas na tentativa de reforçar a temática e
fomentar novas discussões.
Palavras chave:
“ICMS - Patrimônio
Cultural”
Política Pública
Preservação
Educação Patrimonial
Minas Gerais
68
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
Políticas públicas, en particular, una política de preservación cultural,
si muestra correcta cuando contempla medidas relacionados con la
memoria y la identidad de un pueblo y se basa en un diseño que integra
los aspectos socioeconómicos, técnicos, artísticos y ambientales,
articulados con los problemas de calidad de vida, ambiente y
ciudadanía. Teniendo en cuenta esto, este estudio fue organizado a
partir del análisis de la política pública de preservación del patrimonio
cultural en el Estado de Minas Gerais. De esta manera, el artículo se
estructuró como sigue: primera se acercó de la historia que dio origen a
la ley conocida como “Robin Hood”, responsable de la planicación de
dicha política pública. En segundo lugar, se habló de la especicidad de
los criterios de patrimonio cultural, cuyo reconocimiento se otorga por
“ICMS - Patrimonio Cultural”. El proceso de educación patrimonial fue
discutido en la tercera sección del artículo con énfasis en acciones que
pueden desarrollarse para la aplicación efectiva de esta metodología
educativa. Por último, si hace algunas consideraciones en un intento de
reforzar el tema y promover nuevas discusiones.
Abstract:
Public policy, in particular, a policy of cultural preservation, if it shows
correct when it considers measures related to the memory and the
identity of a people and is based on a design that integrates socio-
economic, technical and artistic aspects and environmental, articulated
with the problems of quality of life, environment and citizenship. With
this in mind, this study was organized based on the analysis of public
policy of preservation of the cultural heritage in the State of Minas
Gerais. In this way, the article was structured as follows: rst came the
history that gave rise to the law known as “Robin Hood”, responsible
for the planning of public policy. Secondly, discussed the specicity
criteria of cultural heritage, whose recognition is given by “ICMS -
Cultural Heritage”.The process of patrimonial education was discussed
in the third section of the article with an emphasis on actions that can
be developed for the effective implementation of this methodology.
Finally, if you do some considerations in an attempt to reinforce the
theme and promote further discussion.
Palabras clave:
“ICMS - Patrimonio
Cultural”
Políticas Públicas
Preservación
Educación Patrimonial
Minas Gerais - Brasil
Keywords:
“ICMS - Cultural
Heritage”
Public Policy
Preservation
Heritage Education
Minas Gerais - Brazil
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Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
“ICMS - Patrimônio Cultural”:
um estudo sobre a política pública
de preservação cultural do Estado de
Minas Gerais com ênfase no processo
de Educação Patrimonial
Sobre a “Lei Robin Hood”
As regras sobre a distribuição do Im-
posto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços (ICMS) estão estabelecidas pelo
artigo 158 da Constituição Federal que diz:
Art. 158. Pertencem aos Municípios:
I - o produto da arrecadação do impos-
to da União sobre renda e proventos de
qualquer natureza,incidente na fonte,
sobre rendimentos pagos, a qualquer
título, por eles, suas autarquias e pelas
fundações que instituírem e mantiverem;
II - cinquenta por cento do produto da
arrecadação do imposto da União so-
bre a propriedade territorial rural, rela-
tivamente aos imóveis neles situados,
cabendo a totalidade na hipótese da
opção a que se refere o art. 153, § 4º;
III - cinquenta por cento do produto da
arrecadação do imposto do Estado so-
bre a propriedade de veículos automo-
tores licenciados em seus territórios;
IV - vinte e cinco por cento do produto
da arrecadação do imposto do Estado
sobre operações relativas à circulação
de mercadorias e sobre prestações de
serviços de transporte interestadual e
intermunicipal e de comunicação.
Parágrafo único. As parcelas de recei-
ta pertencentes aos Municípios, men-
cionadas no inciso IV, serão creditadas
conforme os seguintes critérios:
I - três quartos, no mínimo, na propor-
ção do valor adicionado nas opera-
ções relativas à circulação de merca-
dorias e nas prestações de serviços,
realizadas em seus territórios;
II - até um quarto, de acordo com o que
dispuser lei estadual ou, no caso dos Ter-
ritórios, lei federal. (BRASIL, 1988, s/p)
Assim, apreende-se que do valor
total arrecadado pelos Estados, 25% per-
tence aos municípios (inciso IV), devendo
ser repassado, no mínimo três quartos,
proporcionalmente ao Valor Adicionado
Fiscal (VAF) e o restante de acordo com o
estabelecido nas leis estaduais.
No caso do Estado de Minas Gerais,
obedecendo ao que estabelece a Consti-
tuição, cou denido pelo Decreto-Lei
32.771, de julho de 1991, que a distribuição
da cota-parte do ICMS dos municípios obe-
deceria a três critérios, quais sejam: o Valor
Adicionado Fiscal (VAF), os municípios mi-
neradores e compensação nanceira por
desmembramento de distrito. Contudo, a
distribuição do ICMS realizada a partir da
denição desses critérios, demonstrava um
maior grau de concentração de recursos nos
municípios mais desenvolvidos e mais ativos
economicamente e, consequentemente, um
menor grau de recursos para aqueles muni-
cípios menos desenvolvidos e mais pobres.
Diante dessa realidade e na tentati-
va de amenizar parte dessa discrepância,
em 28 de dezembro de 1995 foi sanciona-
da a Lei Nº 12.040 que visava descentra-
lizar a distribuição do imposto. Essa nova
lei trouxe mudança nos critérios para repar-
tir a cota-parte do referido imposto e cou
sendo conhecida como “Lei Robin Hood”.
Nesse sentido, o seu eixo condutor foi des-
concentrar renda e transferir recursos para
regiões mais pobres; incentivar a aplica-
ção de recursos municipais nas áreas so-
ciais; induzir os municípios a aumentarem
sua arrecadação e a utilizarem com mais
eciência os recursos arrecadados e, por
m, criar uma parceria entre estado e mu-
nicípios, tendo como objetivo a melhoria da
qualidade de vida da população destas re-
giões. Dessa forma, com os novos critérios
estabelecidos pela nova lei foram introduzi-
70
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
das variáveis que modicaram a metodolo-
gia de cálculo, logo, modicaram o valor de
repasse para os municípios (FJP, 2010)
II
.
A partir de dezembro de 1996 foi
publicada a Lei Nº 12.428, alterando a
lei anterior. Das alterações propostas por
essa legislação destaca-se a diminuição
do peso do VAF, assim como a melhoria
da participação dos critérios: área geográ-
ca, população, população dos 50 muni-
cípios mais populosos, educação, saúde,
meio ambiente, produção de alimentos,
receita própria e patrimônio cultural.
Essa lei prevaleceu até o ano de
2000 quando entrou em vigor a Lei Nº
13.803 de 27 de dezembro, que manteve
os critérios e as variáveis da lei anterior,
contudo, determinou a redução progres-
siva da compensação nanceira que até
então recebiam, de maneira especíca, os
municípios de Mateus Leme e Mesquita,
até a sua extinção a partir de 2004.
A Lei Nº 13.803 preponderou até o
ano de 2009quando, após vários debates
promovidos pela Assembleia Legislativa do
Estado de Minas Gerais, foi aprovada e publi-
cada, em 12 de janeiro, a Lei Nº 18.030 que
até hoje está em vigor. Com a sua aprovação
foram promovidas várias mudanças na distri-
buição da cota-parte do ICMS, dentre elas
a inclusão de seis novos critérios de avalia-
ção, a saber: turismo, esportes, municípios
sede de estabelecimentos penitenciários,
recursos hídricos, ICMS solidário e mínimo
per capita. Além desses, incluiu-se também
o subcritério denominado “ICMS Ecológico”
- mata seca. A nova lei entrou em vigor em
janeiro de 2010, contudo, a distribuição reali-
zada com base nos novos critérios somente
iniciou a partir de 2011 (FJP, 2010).
Dessa forma, pode-se dizer que a
“Lei Robin Hood” dispõe sobre a distribui-
ção da parcela da receita do produto da
arrecadação do Imposto sobre Operações
Relativas à Circulação de Mercadorias e so-
bre Prestações de Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comuni-
cação - ICMS - pertencente aos municípios
e seus principais objetivos são: (i) reduzir
as diferenças econômicas e sociais entre
os municípios; (ii) incentivar a aplicação de
recursos em áreas de prioridade social; (iii)
utilizar com eciência as receitas próprias e;
(iv) descentralizar a distribuição do ICMS.
Com relação ao sistema de transferência
tratado pela lei entende-se que do montante
arrecado de ICMS pelo Estado, 25% perten-
ce aos municípios (CF 1988, art 158, Inciso
IV, parágrafo único). Desses 25%, 75% são
distribuídos pelo índice do VAF e os 25%
restantes, de acordo com o que estabelece
a referida lei. São beneciados os municí-
pios mais populosos, os municípios minera-
dores, os municípios que são sedes de es-
tabelecimentos penitenciários, os que têm
combatido a renúncia scal e aqueles que
investem nas áreas de: educação, saúde,
preservação do meio ambiente, produção
de alimentos, esportes, turismo e conserva-
ção do patrimônio cultural (FJP, 2010).
Acerca dos critérios de distribuição e
dos órgãos envolvidos na avaliação desses
critérios temos: (i) Valor Adicionado Fiscal
(VAF), cujo objetivo é apurar o montante glo-
bal do movimento econômico do município
cando sob a responsabilidade da Secretaria
de Estado da Fazenda (SEF); (ii) Área geo-
gráca, está sob a responsabilidade do Ins-
tituto de Geociências Aplicadas (IGA) e sua
nalidade é medir a relação percentual entre
a área geográca do município e a área total
do Estado; (iii) População, esse critério visa
medir a relação percentual entre a população
residente no município e a população total do
Estado, sua responsabilidade ca a cargo da
Fundação João Pinheiro (FJP) e do Instituto
Brasileiro de Geograa e Estatística (IBGE);
(iv) População dos 50 Municípios mais Po-
pulosos, tem como objetivo: contemplar os
50 municípios mais populosos do Estado, a
responsabilidade desse critério também ca
a cargo da Fundação João Pinheiro (FJP) e
do Instituto Brasileiro de Geograa e Estatísti-
71
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ca (IBGE); (v) Educação, está sob a respon-
sabilidade da Secretaria de Estado da Edu-
cação (SEE), tem como objetivo melhorar a
capacidade de atendimento das escolas mu-
nicipais, de forma a absorver todo o potencial
do município; (vi) Produção de Alimentos,
o objetivo desse item é incentivar a produção
de alimentos, considerando-se critérios relati-
vos à área cultivada, ao número de pequenos
produtores rurais, ao apoio a produção e co-
mercialização de produtos agrícolas e o apoio
institucional das prefeituras ao desenvolvi-
mento agropecuário do município, o órgão
envolvido é a Empresa de Assistência Técni-
ca e de Extensão Rural do Estado de Minas
Gerais (EMATER); (vii) Patrimônio Cultural,
sob a responsabilidade Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Ge-
rais (IEPHA) tem como objetivo estimular a
preservação das obras de arte, paisagens e
conjuntos arquitetônicos importantes para a
memória dos municípios; (viii) Meio Ambien-
te, o objetivo desse critério é estimular a ado-
ção de iniciativas de conservação ambiental
através da realização de investimentos em
unidades de conservação e na solução de
problemas de saneamento, os órgãos en-
volvidos são a Secretaria de Estado de Meio
Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
(SEMAD), o Instituto Estadual de Florestas
(IEF), no subcritério Unidade de Conserva-
ção e Mata Seca e a Fundação Estadual de
Meio Ambiente (FEAM) no subcritério sanea-
mento; (ix) Saúde, o objetivo desse critério é
incentivar o desenvolvimento e manutenção
de programas de atendimento à saúde das
famílias e o aumento da aplicação per capita
de recursos em saúde, os órgãos envolvidos
são o Tribunal de Contas do Estado de Mi-
nas Gerais (TCEMG), a Secretaria de Estado
da Saúde (SES) e a Fundação João Pinhei-
ro (FJP); (x) Receita Própria, sob a respon-
sabilidade do Tribunal de Contas do Estado
de Minas Gerais (TCEMG) esse critério tem
como objetivo medir a relação percentual
entre a receita própria do município, oriunda
de tributos de sua competência e as trans-
ferências de recursos federais e estaduais
recebidas, buscando incentivar o município
a aumentar sua arrecadação; (xi) Cota Míni-
ma, o objetivo desse critério é distribuir igual-
mente entre todos os municípios do Estado a
parcela cabível ao respectivo peso - 5,5%, o
órgão envolvido é a Fundação João Pinheiro
(FJP); (xii) Municípios Mineradores, visan-
do valorizar os municípios mineradores pela
efetiva arrecadação do Imposto Único Mine-
ral (IUM), xado no exercício de 1988, esse
critério está sob a responsabilidade da Secre-
taria de Estado da Fazenda (SEF); (xiii) Re-
cursos Hídricos, tendo como objetivo bene-
ciar os municípios que tem área alagada por
reservatório de água destinado a geração de
energia, esse critério ca a cargo da Secreta-
ria do Estado da Fazenda (SEF) e da Agência
Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); (xiv)
Municípios Sede de Estabelecimentos
Penitenciários, com o objetivo de favorecer
mais recursos aos municípios que possuem
estabelecimentos penitenciários instala-
dos em seu domínio, esse critério está sob
a responsabilidade da Secretaria de Estado
de Defesa Social (SEDS); (xv) Esportes, vi-
sando incentivar a criação e manutenção de
programas voltados para o desenvolvimento
de atividades esportivas no município, esse
critério ca a cargo da Secretaria de Estado
de Esportes e Juventude (SEEJ) e da Funda-
ção João Pinheiro (FJP); (xvi) Turismo, tendo
como objetivo incentivar a criação e manuten-
ção de programas voltados para o desenvol-
vimento do potencial turístico do município,
esse critério é vinculado à Secretaria de Esta-
do de Turismo (SETUR) e à Fundação João
Pinheiro (FJP); (xvii) ICMS Solidário, com o
objetivo de proporcionar melhor distribuição
dos recursos nanceiros, tendo em vista a
desigualdade entre os municípios do Estado,
esse critério ca sob a tutela da Fundação
João Pinheiro (FJP) e do Instituto Brasileiro
de Geograa e Estatística (IBGE); (xviii) -
nimo per capita, também com o objetivo de
proporcionar melhor distribuição dos recursos
nanceiros, tendo em vista a desigualdade
entre os municípios do Estado, esse critério
também ca sob a tutela da Fundação João
Pinheiro (FJP) e do Instituto Brasileiro de Ge-
ograa e Estatística (IBGE) (FJP, 2009).
72
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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A periodicidade da aferição dos ín-
dices de cada um dos critérios é anual,
com exceção do critério Produção de ali-
mentos que é semestral, do critério Meio
ambiente que é trimestral e do critério
Saúde que tem a particularidade de ser
mensal para o índice Programa Saúde da
Família (PSF)e anual para o índice Saúde
per capita. Os repasses são realizados no
segundo dia útil de cada semana e os va-
lores são depositados na conta geral das
prefeituras municipais.
Visando sintetizar parte das infor-
mações dessa seção do trabalho, assim
como, para uma melhor compreensão
de como vem sendo realizado o repasse
aos municípios do Estado de Minas Ge-
rais, foi confeccionada e é apresentada,
a seguir, uma tabela intitulada - Repasse
de ICMS/MG - onde podem ser vistos os
valores percentuais de cada um dos crité-
rios adotados pelo Estado considerando
um comparativo entre os anos de 2009,
2010 e a partir de 2011.
Tabela - Repasse de ICMS/MG
FONTE: ALMG e FJP - ADAPTADO
73
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Conforme especicado anterior-
mente, a apuração dos índices de cada
um dos critérios ca a cargo dos órgãos
mencionados, contudo, cabe à Funda-
ção João Pinheiro (FJP) publicar o resul-
tado do julgamento dos itens referentes
aos 853 municípios do Estado. Caso os
prefeitos e as associações de municípios
ou seus representantes não concordem
com o resultado publicado, estes pode-
rão impugnar os dados e os índices rela-
tivos aos critérios de apuração. O prazo
para recurso para todos os índices é de
15 dias, com exceção do índice do VAF,
que tem prazo de 30 dias contados a
partir da sua publicação (FJP, 2009).
Para efeito ilustrativo segue
abaixo um quadro com os valores de
transferência feitos aos municípios re-
ferentes ao mês de novembro de 2017.
Na sua elaboração foram consideradas
as transferências globais e o critério
patrimônio cultural.
Quadro - Valores de Transferência
FONTE: DADOS BÁSICOS: BANCO ITAÚ - ELABORAÇÃO FJP/CEPP - ADAPTADO
Sobre o “ICMS - Patrimônio Cultural
Apresentada como única em todo o
país, a “Lei Robin Hood” repassa recursos
nanceiros para os municípios que pre-
servam a sua memória e a sua produção
cultural. Dessa forma, o Estado de Minas
Gerais, desde 1995, distribui 1% dos 25%
dos recursos nanceiros provenientes do
ICMS para os municípios que implantam
políticas públicas de preservação cultural.
Dos requisitos exigidos pelo
Instituto Estadual do Patrimônio His-
tórico e Artístico de Minas Gerais (IE-
PHA), órgão responsável por receber
a documentação dos municípios, para
atribuir uma pontuação no critério pa-
trimônio cultural destacam-se: Núcleo
Histórico (NH); Conjunto Urbano ou
Paisagístico (CP); Bens Imóveis (BI);
Bens Móveis (BM); Registro de Bens
Culturais Imateriais (RI); Inventário de
74
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Proteção do Patrimônio Cultural (INV);
Educação Patrimonial (EP); Planeja-
mento e Política Municipal de Prote-
ção do Patrimônio Cultural e outras
ações (PCL) e Fundo Municipal de
Preservação do Patrimônio Cultural
(FU); (IEPHA, 2007).
Para fazer jus a uma pontuação
nos atributos os municípios devem aten-
der às exigências especicadas pela
Deliberação Normativa do Conselho Es-
tadual do Patrimônio Cultural (CONEP).
Dentre as reivindicações, o Art. 3º da
atual deliberação dene:
Art. 3º: Para análise dos atributos,
os municípios deverão encaminhar
os conjuntos documentais definidos
nos Quadros I, II e III indicados a
seguir. Os municípios também de-
verão atender às recomendações
da ficha de análise do ano de exer-
cício anterior, quando houver.
1) QUADRO I - GESTÃO
A) Política Municipal de Proteção
ao Patrimônio Cultural e Outras
Ações: relação de procedimentos
a serem documentados e informa-
dos sobre a implementação de uma
política municipal de proteção do
patrimônio cultural local, desen-
volvida pelo município no âmbito
de uma política cultural; B) Inves-
timentos e Despesas Financeiras
em Bens Culturais Protegidos: re-
lação de procedimentos a serem
documentados e informados sobre
a criação do Fundo Municipal de
Preservação do Patrimônio Cultu-
ral/FUMPAC e a gestão dos seus
recursos e, ainda, sobre investi-
mentos e/ou despesas advindas de
outras fontes de financiamento de
bens culturais materiais tombados
ou inventariados e/ou em bens ima-
teriais registrados.
2) QUADRO II - PROTEÇÃO
A) Inventário de Proteção do Patri-
mônio Cultural: relação de procedi-
mentos a serem documentados e
informados sobre a elaboração do
plano e a execução, pelo município,
de Inventário do Patrimônio Cultu-
ral; B) Processos de Tombamento
de Bens Materiais, na esfera muni-
cipal: relação de procedimentos a
serem documentados e informados
sobre os tombamentos de bens ma-
teriais no nível municipal - Núcleo
Histórico Urbano; Conjuntos Urba-
nos ou Paisagísticos localizados
em zonas urbanas ou rurais; Bens
Imóveis incluídos seus respectivos
acervos de bens móveis e integra-
dos, quando houver, e Bens Móveis.
Somente processos de tombamento
definitivo serão considerados para
efeito de pontuação; C) Processos
de Registro de Bens Imateriais, na
esfera municipal: relação de proce-
dimentos a serem documentados e
informados sobre os processos de
registro de bens imateriais no nível
municipal. Somente processos de
registro definitivo serão considera-
dos para efeito de pontuação.
3) QUADRO III - SALVAGUARDA E
PROMOÇÃO
A) Laudos Técnicos do Estado de
Conservação dos Bens Materiais
Protegidos, na esfera municipal:
relação de procedimentos a serem
documentados sobre os laudos de
estado de conservação específicos,
os quais informam sobre o efeito do
tombamento; B) Relatórios de Im-
plementação das Ações e Execu-
ção do Plano de Salvaguarda dos
Bens Protegidos por Registro, na
esfera municipal: relação de proce-
dimentos a serem documentados e
informados sobre os relatórios de
implementação das ações de salva-
guarda do bem imaterial, os quais
informam sobre a continuidade dos
procedimentos específicos de cada
registro; C) Programas de Educa-
75
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
ção para o Patrimônio nas Diversas
Áreas de Desenvolvimento: relação
de procedimentos a serem docu-
mentados e informados sobre a ela-
boração de projetos e a realização
de atividades de educação patrimo-
nial; D) Difusão: relação de ações
de difusão tais como publicações e
outras ações advindas de progra-
mas de pesquisa e de divulgação
do patrimônio cultural do município.
(CONEP, 2017: 2-3)
Para aperfeiçoar a compreensão
das exigências, assim como, para uma
melhor organização da documentação
nos arquivos do Instituto, o Art. 4º da
Deliberação Normativa solicita que os
documentos sejam encaminhados em
pastas assim organizadas:
FONTE: DELIBERAÇÃO NORMATIVA DO CONEP - Nº 01/2016 E Nº 03/2017 - CONSOLIDADA
Dessa forma, cada município
deve encaminhar para o IEPHA, todo
ano, 09pastas referentes aos 03quadros
- Gestão, Proteção e Salvaguarda e Pro-
moção. As especicidades exigidas para
cada uma das pastas são detalhadas na
Deliberação Normativa.
Da primeira versão da lei até
hoje, o número de municípios partici-
pantes, no critério patrimônio cultural,
cresceu mais de 700%. Dos iniciais 104
municípios pontuados em 1996, che-
gou-se em 2017 com 797 municípios,
conforme pode ser visto no quadro ao
lado intitulado: ICMS - Patrimônio Cul-
tural. Percebe-se também, no quadro
exposto, que existe uma alteração no
número de municípios pontuados de
um ano para o outro. Isso se dá devido
a alguns municípios não cumprirem as
exigências da Deliberação Normativa,
essa postura desabilita tais municípios
a receberem os recursos.
76
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
FONTE: IEPHA/MG - ADAPTADO
Outra questão curiosa, porém, in-
feliz, que pode ser percebida, tem rela-
ção com as eleições municipais, ou seja,
aparentemente, existe uma tendência de
menor participação dos municípios quan-
do estes passam por mudança de gestão,
haja vista a transição dos anos de 2012
para 2013, de 2008 para 2009 e de 2004
para 2005.Tal episódio pode ser explicado
pelo fato do período de ação e preserva-
ção, referência para a pontuação, trans-
correr entre 01 de dezembro do ano ante-
rior a 30 de novembro do ano seguinte e,
uma vez que, a entrega da documentação
deve ser realizada, impreterivelmente, até
o dia 10 de dezembro de cada ano, desa-
77
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
fortunadamente, é senso comum, quando
há a substituição da equipe administrativa,
que a gestão anterior não envie a docu-
mentação ao IEPHA, prejudicando tanto
a arrecadação quanto a própria política
de preservação. Além disso, a maioria
das administrações municipais não conta
com uma equipe técnica concursada em
seu quadro de funcionários, dessa forma,
necessita utilizar serviços terceirizados de
escritórios especializados, assim, exige-se
a abertura de licitação para contratação,
que normalmente só acontece depois da
nova administração se inteirar dos assun-
tos do município. Contudo, considerando
a totalidade dos 853 municípios do Esta-
do de Minas Gerais conclui-se que atual-
mente 85,69% possui políticas públicas de
preservação e valorização do patrimônio
cultural. (IEPHA, s/d)
Bom seria se pudéssemos acredi-
tar que os 797 municípios que cumpri-
ram seus compromissos com a política
pública de preservação do patrimônio
cultural, em 2017, assim o zeram por
verdadeiramente conhecerem e reco-
nhecerem o valor dos seus bens cultu-
rais. Infelizmente, é sabido que boa parte
das administrações públicas municipais
implanta a política apenas para arreca-
dar os recursos nanceiros provenientes
do critério patrimônio cultural, uma vez
que o recurso nanceiro é depositado na
conta geral das prefeituras de onde sai
para pagar os mais variados compromis-
sos e, dicilmente, retorna como inves-
timentos no patrimônio e/ou na manu-
tenção da própria política. No sentido de
amenizar essa realidade, desde 2010, a
Deliberação Normativa do Conselho Es-
tadual do Patrimônio Cultural (CONEP)
solicita aos municípios a criação do Fun-
do Municipal de Proteção ao Patrimônio
Cultural (FUMPAC), cuja nalidade es-
pecíca é prestar apoio nanceiro em
caráter suplementar, ou seja, aumentar
os benefícios das ações destinadas à
promoção, preservação, manutenção e
conservação do patrimônio cultural do
município. (IEPHA, s/d)
Diante da impossibilidade de tratar,
exclusivamente nesse estudo, as especi-
cidades de cada uma das pastas e aten-
dendo ao objetivo especíco desse artigo,
na próxima seção será tratado o processo
de educação para o patrimônio cultural,
denido como um processo educativo vol-
tado para o reconhecimento, a valorização
e a preservação do patrimônio cultural.
O programa “ICMS - Patrimônio
Cultural” foi premiado pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) em 2002 e também foi reconheci-
do pelo Fundo das Nações Unidas para a
Criança e o Adolescente (UNICEF), como
o melhor programa de distribuição de ren-
da do Brasil. Além disso, destaca-se que
desde a criação da política pública de pre-
servação, o IEPHA vem formando, no Es-
tado de Minas Gerais, um banco de dados
valioso e fonte de informação para pesqui-
sas referentes à temática da preservação
do patrimônio cultural.
Sobre o processo de educação
para o Patrimônio Cultural
Antes de se abordar, especica-
mente, as questões do processo de edu-
cação para o patrimônio cultural, adiante
denominado simplesmente educação pa-
trimonial, torna-se relevante apresentar,
mesmo que sucintamente, aquilo que se
compreende como educação. Para tanto,
parte-se dos conceitos de educação for-
mal, não formal e informal.
A educação formal caracteriza-se
por ser estruturada e por se desenvolver
no seio de instituições, tais como: esco-
las e universidades, onde o aluno deve
seguir um programa pré-determinado.
Na concepção de Von Simson, Park e
Fernandes (2001), a educação formal
78
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
tem o caráter compulsório e a responsa-
bilidade de transmitir determinados con-
teúdos, assim como, de estar subordina-
da a uma estrutura hierarquizada e a um
poder centralizado.
A educação não formal processa-
-se fora da esfera escolar e é veicula-
da pelos museus, meios de comunica-
ção e outras instituições que organizam
eventos das mais diversas ordens, tais
como: cursos livres, feiras e encontros.
A aprendizagem não formal desenvolve-
-se de acordo com os desejos do indi-
víduo, num clima especialmente conce-
bido para se tornar agradável. Para as
autoras citadas anteriormente, a edu-
cação não formal não é obrigatória, os
conteúdos são os mais variados e não
existem conteúdos obrigatórios. Nessa
modalidade ao denir-se atividades e
conteúdos deve-se voltar para as neces-
sidades e desejos expressos pelo grupo
com o qual se irá trabalhar. Ainda segun-
do as autoras, a estrutura organizacional
da educação não formal é bastante e-
xível e pouco hierarquizada e as formas
de participação são descentralizadas
e pouco formalizadas (VON SIMSON;
PARK; FERNANDES, 2001).
Por sua vez, a educação informal é
aquela que ocorre de forma espontânea,
no cotidiano, por meio de conversas e vi-
vências com familiares, amigos, colegas e
interlocutores ocasionais. Nas palavras de
Ebenezer Menezes e Thais Santos a edu-
cação informal é:
Termo atribuído à educação desenvol-
vida fora dos estabelecimentos de en-
sino ou que ocorre sem planejamento.
Geralmente, é um tipo de educação
que transcorre em espaços de ativi-
dades culturais, com a família, amigos
ou grupos de interesse comum. Uma
característica marcante dessa educa-
ção é a aparente naturalidade do pro-
cesso, ocultando valores, signos e até
preconceitos. No entanto, os meios
educativos informais exercem grande
inuência na formação dos indivíduos.
(MENEZES; SANTOS, 2001, s/p)
Focando a atenção naquilo que se
propõe nessa seção, todo indivíduo, a par-
tir da educação, deve criar sua identidade
pessoal relacionada com o contexto cultu-
ral no qual está inserido, conforme disse
Flávio Carsalade (2002, p. 68):
(...) apenas com a construção de pa-
râmetros pessoais e de autonomia,
inseridos em determinado contexto
geográco, histórico e social, o ser hu-
mano pode, efetivamente, educar-se e
usar a educação para o crescimento
da sociedade em que vive (...).
A partir desse ponto e considerando
que o patrimônio cultural é também a ma-
terialização da cultura na qual se insere o
aprendiz, pode-se estabelecer fortes rela-
ções entre a educação e o patrimônio cultu-
ral, assim como, pode-se dizer que a educa-
ção patrimonial é o amálgama que os une.
Ações educativas ou sensibiliza-
doras das comunidades detentoras de
bens culturais ocorrem desde a criação do
IPHAN, em 1937. Mário de Andrade, em
seu projeto apontava para a importância do
caráter pedagógico dos museus. Rodrigo
Melo Franco de Andrade, diretor do IPHAN
na década de 1960, destacou a importân-
cia da educação pelas palavras: “Em ver-
dade, um meio ecaz de assegurar
a defesa permanente do patrimônio de arte
e de história do país: é o da educação po-
pular”. Posteriormente, na década de 1970,
sob o comando de Aloísio de Magalhães, a
questão foi abordada de maneira mais con-
tundente e o lema de atuação passou a ser
sintetizado pela frase:“ a comunidade é a
melhor guardiã do seu patrimônio”.
Todavia, a expressão educação
patrimonial foi introduzida no Brasil, em
79
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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termos conceituais e práticos, por ocasião
do Iº Seminário de Educação Patrimonial,
realizado no Museu Imperial de Petrópo-
lis (RJ), inspirado no trabalho educacional
que vinha sendo desenvolvido na Inglater-
ra com o nome de “Heritage Education”.
A educação patrimonial é um
trabalho permanente de envolvimento
de todos os segmentos que compõem
a comunidade, visando à preservação
dos marcos e manifestações culturais,
compartilhando responsabilidades e
esclarecendo dúvidas, conceitos e, ao
mesmo tempo, divulgando trabalhos
técnicos pertinentes e seus resultados.
Visa principalmente fortalecer a auto-
estima das comunidades pelo reconhe-
cimento e valorização de sua cultura e
de seus produtos. Esse processo edu-
cacional formal e não formal usa situ-
ações e ações que provocam reações,
interesse, questionamentos e reflexões
sobre o significado e valor dos acervos
culturais e sua manutenção e preserva-
ção. Nas palavras de Maria de Lourdes
Parreiras Horta:
A Educação Patrimonial é um instru-
mento de alfabetização cultural que
possibilita ao indivíduo fazer a leitura
do mundo que o rodeia, levando-o à
compreensão do universo sociocultu-
ral e da trajetória histórico-temporal
em que está inserido. Este processo
leva ao reforço da autoestima dos in-
divíduos e comunidades e à valoriza-
ção da cultura brasileira, compreendi-
da como múltipla e plural (HORTA et
al., 1999, p. 6)
No que tange a política pública do
Estado de Minas Gerais, a Deliberação
CONEP Nº 03/2017 dene que os proces-
sos de educação patrimonial devem consi-
derar a democratização do conhecimento
em seu alcance e diversidade, promover
o diálogo permanente entre os agentes
culturais e sociais e a participação efetiva
das comunidades detentoras e produtoras
das referências culturais.
Dentre os princípios e diretrizes
sugeridas para as ações de educação
patrimonial destacam-se: (i) implemen-
tar uma postura educativa em todas as
ações institucionais; (ii) rmar parcerias
para realizar programas que estreitem o
diálogo com a sociedade sobre políticas
de identicação, reconhecimento, prote-
ção e promoção do patrimônio cultural;
(iii) promover a participação efetiva da co-
munidade na formulação, implementação
e execução das atividades propostas; (iv)
implementar programas que contemplem
bens culturais inseridos e associados à
vida cotidiana da comunidade; (v) promo-
ver a educação patrimonial como proces-
so de mediação; (vi) contemplar os diver-
sos territórios como espaços educativos;
e (vii) implementar programas que con-
templem a intersetorialidade das políticas
públicas. (CONEP, 2017)
Como metodologia de trabalho, a
m de implementar uma postura educativa
pautada no patrimônio cultural, os municí-
pios podem executar projetos de interven-
ção, formação, seminários, rodas de con-
versa, fóruns, abertos ao público geral ou
a grupos especícos da comunidade local,
como por exemplo: terceira idade, jovens
em vulnerabilidade social, detentos, pes-
soas com necessidades especiais, ges-
tores municipais, militares, etc. Dentre os
eixos temáticos que podem ser contem-
plados destacam-se: o patrimônio cultural
material e imaterial; a história; a memória;
a identidade e a cultura.
Dessa forma, a partir desses eixos
temáticos, os municípios podem promover
ações integradas de educação patrimonial
com ênfase nos processos culturais, seus
produtos e suas manifestações. Os muni-
cípios podem ainda desenvolver e/ou exe-
cutar uma ou mais ações educativas, de
acordo com o demonstrado a seguir:
80
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Em se tratando de trabalhos vol-
tados para a educação formal, salienta-
-se que antes de se iniciar um trabalho de
educação patrimonial devem estar bem
denidos os objetivos educacionais e os
resultados esperados com a atividade. O
educador deverá estar atento às habili-
dades, conceitos e conhecimentos que a
atividade desenvolverá nos educandos,
assim como deverá saber de que modo as
atividades se inserem no currículo escolar.
A educação patrimonial possui as
seguintes etapas de trabalho: Observa-
ção; Registro; Exploração e Apropriação.
O quadro abaixo, sintetiza cada uma das
etapas, apresentando os objetivos e suge-
rindo uma metodologia.
FONTE: DELIBERAÇÃO CONEP Nº 03/2017 - ADAPTADO
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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A educação patrimonial para além
de ser “um instrumento de alfabetização
cultural, que possibilita ao indivíduo fazer
a leitura do mundo que o rodeia, levando-
-o à compreensão do universo sociocul-
tural e da trajetória histórico-temporal em
que está inserido” (HORTA, 1999, p. 6), é
também um princípio jurídico. Como tal,
gura na Constituição Federal, como im-
posição expressa, e faz parte das ações
do Ministério Público como pode ser per-
cebido na obra intitulada - “Princípios Bá-
sicos da Proteção ao Patrimônio Cultu-
ral”, de autoria do Professor e Promotor
de Justiça do Ministério Público do Esta-
do de Minas Gerais Dr. Marcos Paulo de
Souza Miranda, que traz:
Na “Carta de Goiânia” - 1º Encontro
Nacional do Ministério Público na
Defesa do Patrimônio Cultural ficou
consignado na conclusão de nº 04:
Só por meio da educação é possível
mudar valores e incluir a preserva-
ção do Patrimônio Cultural na rotina
de vida dos cidadãos. É preciso que
as instituições de cultura, educação
e a sociedade em geral incluam a
educação sobre o patrimônio em
seus projetos. É necessário criar
essa “consciência cultural”, pois a
condição primária para a preserva-
ção de um bem cultural é o reconhe-
cimento de seu valor pela comunida-
de onde está inserido. (MIRANDA,
2009, p. 21-22).
Dessa forma, encerra-se essa
seção reforçando a crença de que a
educação tem papel fundamental na es-
truturação, na consolidação, e no desti-
no de uma sociedade. Parafraseando o
célebre educador Paulo Freire, a edu-
cação de homens se dá pelo contato de
uns com os outros, intermediada pelo
mundo que os cerca.
FONTE: HORTA, 1999 - ADAPTADO
Quadro - Etapas da Educação Patrimonial
82
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Considerações nais
O pluralismo democrático estabe-
lecido após a promulgação da Consti-
tuição Federal, em 1988, reete e res-
palda a diversidade cultural brasileira e,
ao mesmo tempo, permite que diferen-
tes grupos sociais acessem o poder. Tal
condição, ao consentir a manifestação
de diferentes práticas culturais, respalda
novas referências.
Proteger nossas referências cultu-
rais implica em ir além do estabelecimento
de dispositivos jurídicos, requer o (re)co-
nhecimento por meio de ações educativas.
Não há dúvida que incrementar e enalte-
cer os aspectos culturais de uma socieda-
de são ações de extrema relevância, da
mesma forma que a participação popular
ainda é a melhor maneira, e a mais demo-
crática, para tentar melhorar as condições
de vida de todos. Mas, para que se tenha
resultados que atendam satisfatoriamente
à maior parte da população, é necessário
que esta mesma população esteja capaci-
tada para opinar, coerentemente, sobre as
ações a serem implementadas.
Diante do exposto, salienta-se que
toda produção cultural deve ser valorizada
independentemente da riqueza ou pobre-
za da região que a produz. Assim, primei-
ramente, se deve reconhecer o caráter
democrático da política pública do Estado
de Minas Gerais que vem permitindo, tan-
to aos municípios mais ricos quanto aos
mais pobres, receberem recursos nan-
ceiros de maneira um pouco mais justa e,
em especial, por destinar, mesmo que por
uma parcela mínima, recursos para prote-
ger o patrimônio cultural do Estado.
Acredita-se que uma política pú-
blica, em particular uma política de pre-
servação cultural, só se mostra correta
e consequente quando, além de con-
templar medidas referentes à memória
de um povo, baseia-se mais amplamen-
te em uma concepção que integra as
questões socioeconômicas, técnicas,
artísticas e ambientais, articulando-as
com as questões de qualidade de vida,
meio ambiente e cidadania. A integra-
ção do patrimônio cultural ao cotidiano
das pessoas e às suas celebrações faz
com que este exerça sua força gerado-
ra de identidade étnica, de valorização
ética e de referência.
Malgrado o exposto, para uma so-
ciedade que se pretenda democrática de
direito, não basta o princípio participativo,
muitas vezes manipulado por meia dúzia
de detentores do saber, se faz necessá-
rio “combater a pobreza”. Esta, entendida
não como a falta de recursos nanceiros,
mas como a falta de discernimento, em-
poderamento e capacidade de opinar e
criticar, positiva ou negativamente, uma
determinada situação que diz respeito à
vida dos cidadãos. Para tanto, sugere-se
reforço no tratamento das políticas públi-
cas, principalmente, de educação e cul-
tura, pois se acredita que estas são as
responsáveis por moldar e dar oportuni-
dades aos indivíduos.
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Recebido em 22/12/2017
Aprovado em 26/02/2018
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III São entendidas como Casas de Memória os ar-
quivos, os museus, as bibliotecas, as comunidades
tradicionais e ans.
84
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Bongar e vencer nos editais: políticas públicas culturais, mercado e
grupos artísticos populares
Bongar y vencer en los edictos: políticas públicas culturales, mercado y
grupos artísticos populares
Bongar and win in the biddings: cultural public policies, market and
popular culture groups
Gabriela Pimentel de Araújo
I
Leonardo Leal Esteves
II
Lady Selma Ferreira Albernaz
III
Resumo:
Este trabalho resulta da junção de duas pesquisas, feitas
separadamente, mas orientadas pela terceira autora que o subscreve.
Ambas são relativas à cultura popular e suas relações com as políticas
públicas de cultura por meio de editais, os quais podem requerer novas
estratégias de organização destes grupos, bem como implicam em
sua provável inserção, bem-sucedida ou não, no mercado e indústria
cultural, podendo ter desdobramentos para a autonomia de signicados
rituais que tais grupos expressam. Ambas as pesquisas basearam-
se nos métodos da antropologia, por meio de trabalho decampo,
que incluiu observação participante, elaboração de diário de campo,
recolha de documentos, entrevistas. A análise de dados baseou-se
na interpretação de signicados, a maneira de Geertz (1989), e na
teoria da prática, conforme Ortner (2007, 2011). Utilizamo-nos dos
debates teóricos de José Jorge de Carvalho (2010) sobre as tensões
e desigualdades que marcam as relações entre mestres e grupos de
cultura popular, Estado e mercado de cultura, notadamente a indústria
cultural. Para analisar estas questões, tomamos como referência o caso
que nos parece bastante emblemático do grupo Bongar. A fundação e
a atuação do Bongar salientam aspectos importantes sobre políticas
públicas, voltadas às culturas populares, no estado de Pernambuco nas
últimas décadas, cujas relações que são orientadas pelos instrumentos
burocráticos dos editais para incentivo. Tentamos reunir sugestões para
evitar que, nos editais, sejam feitas exigências que criem obstáculos
para a autonomia nanceira e ritual dos grupos de cultura popular.
Palavras chave:
Cultura popular
Políticas Culturais
Editais
Prossionalização
artística
Bongar
85
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Resumen:
Este trabajo resulta de la unión de dos investigaciones, hechas separadamente,
pero orientadas por la tercera autora que los uscribe. Ambas son relativas
ala cultura popular y sus relaciones con las políticas públicas de cultura a
través de edictos, que pueden requerir nuevas estrategias de organización
de estos grupos, así como implican en su probable inserción, exitosa o no,
en el mercado e industria cultural, pudiendo tener desdoblamientos para
la autonomía de signicados rituales que tales grupos expresan. Ambas
investigaciones se basaron en los métodos de la antropología, por medio
de trabajo de campo, que incluyó observación participante, elaboración de
diario de campo, recogida de documentos, entrevistas. El análisis de datos
se basó en la interpretación de signicados, la manera de Geertz (1989),
y en la teoría de la práctica, según Ortner (2007, 2011). Se utilizó de los
debates teóricos de José Jorge de Carvalho (2010) sobre las tensiones y
desigualdades que marcan las relaciones entre maestros y grupos de cultura
popular, Estado y mercado de cultura, notadamente la industria cultural. Para
analizar estas cuestiones, tomamos como referencia el caso que nos parece
bastante emblemático del grupo Bongar. La fundación y la actuación del
Bongar subrayan aspectos importantes sobre políticas públicas, orientadas a
las culturas populares, en el estado de Pernambuco en las últimas décadas,
cuyas relaciones que están orientadas por los instrumentos burocráticos de
los editales para incentivo. Intentamos reunir su gerencias para evitar que
en los editales se hagan exigencias que creen obstáculos para la autonomia
nanciera y ritual de los grupos de cultura popular.
Abstract:
This work results from the combination of two researches, done separately,
but oriented by the third author that subscribes. Both are related to popular
culture and its relations with public policies of culture through biddings,
which may require new strategies of organization of these groups, as well as
imply in their probable insertion, successful or not, in the market and cultural
industry, and may have consequences for the autonomy of ritual meanings
expressed by such groups. Both researches were based on the methods of
anthropology, through eld work, which included participant observation, eld
diary preparation, document collection, interviews. Data analysis was based
on the interpretation of meanings, the manner of Geertz (1989), and on the
theory of practice, according to Ortner (2007, 2011). We use the theoretical
debates of José Jorge de Carvalho (2010) on the tensions and inequalities
that feature the relations between masters and groups of popular culture,
State and market of culture, especially the cultural industry. In order to analyze
these questions, we take as reference the case that seems to us quite
emblematic of the Bongar group. The foundation and performance of Bongar
highlight important aspects of public policies aimed at popular cultures in the
state of Pernambuco in the last decades, whose relations are guided by the
bureaucratic instruments of the calls for incentive. We have tried to gather
suggestions to avoid that the biddings make demands that create obstacles
to the nancial and ritual autonomy of popular culture groups.
Palabras clave:
Cultura popular
Políticas Culturales
Edictos
Profesionalización
artística
Bongar
Keywords:
Popular culture
Cultural Policies
Biddings
Artistic
professionalization
Bongar
86
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Bongar e vencer nos editais:
políticas públicas culturais, mercado
e grupos artísticos populares
Introdução
Este trabalho resulta da junção de
duas pesquisas
IV
, feitas separadamente,
mas orientadas pela terceira autora que o
subscreve. Ambas são relativas à cultura
popular e suas relações com as políticas
públicas de cultura por meio de editais, os
quais podem requerer novas estratégias
de organização destes grupos, bem como
implicam em sua provável inserção, bem-
-sucedida ou não, no mercado e indústria
cultural, podendo ter desdobramentos
para a autonomia de signicados rituais
que tais grupos expressam.
A inspiração e motivação de sua
escrita atenderam à demanda de Gabrie-
la Pimentel. Ela convidou Lady Selma F.
Albernaz, orientadora do seu TCC, para
compor um artigo em coautoria. Tendo em
vista a defesa recente de um trabalho de
doutoramento por Leonardo Esteves, so-
bre tema correlato, também orientado por
Albernaz, foi proposta uma junção de am-
bos. Com isso procuramos ampliar o es-
copo da questão e fortalecer os argumen-
tos que procuram respondê-la, a partir das
duas investigações as quais, encaminha-
das de forma independente, convergem
em muitos aspectos dos seus resultados.
Ambas as pesquisas basearam-se
nos métodos da antropologia, por meio de
trabalho de campo, que incluiu observação
participante, elaboração de diário de cam-
po, recolha de documentos, entrevistas. A
análise de dados baseou-se na interpreta-
ção de signicados, a maneira de Geertz
(1989), e na teoria da prática, conforme
Ortner (2007, 2011). Utilizamo-nos dos de-
bates teóricos de José Jorge de Carvalho
(2010) sobre as tensões e desigualdades
que marcam as relações entre mestres e
grupos de cultura popular, Estado e mer-
cado de cultura, notadamente a indústria
cultural. Consideramos ainda nossas dife-
rentes experiências com cultura popular,
a partir de posições de pesquisadores,
público apreciador, e atuação artística em
grupos populares.
Com a concordância da tríplice au-
toria formulamos as seguintes questões:
como se organizam os grupos artísticos,
baseados na estética popular, para inscri-
ção e concorrência nos editais de nan-
ciamento de cultura, propostos por órgãos
do estado de Pernambuco, promotores de
políticas públicas com este cariz? Como
se formaram tais políticas e quais os pro-
pósitos de editais públicos para nanciar
a cultura? Como os grupos se organizam
internamente para atender as exigências
destes editais? Como as políticas impli-
cam, ou não, em inserção no mercado cul-
tural? A partir destas questões pensamos
em contribuir para um renamento dos
editais, de forma que as exigências que
eles fazem, não tragam prejuízos para
mestres e grupos de cultura popular.
Para analisar estas questões, to-
mamos como referência o caso que nos
parece bastante emblemático (e ao mes-
mo tempo atípico) do grupo Bongar. Este
grupo foi criado em 2001, por jovens liga-
dos ao Terreiro Santa Bárbara – Ilé Axé
Oyá Meguê, da Nação Xambá, localizado
na cidade de Olinda – PE. O samba de
coco sempre esteve relacionado às festas
e rituais sagrados realizadas pelas lhas e
lhos de santo do Terreiro
V
. A fundação e
a atuação do Bongar salientam aspectos
importantes sobre políticas públicas, vol-
tadas às culturas populares, no estado de
Pernambuco nas últimas décadas. Tam-
bém chama a atenção para mudanças nas
relações sociais entre as comunidades e
grupos culturais, produtoras de festas, ri-
87
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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tuais, com a esfera do Estado. Relações
que são orientadas pelos instrumentos bu-
rocráticos dos editais para incentivo, apoio
e fomento destes mesmos grupos, com
rebatimentos em suas comunidades.
O artigo está divido em dois itens.
O primeiro traz uma contextualização mais
geral acerca das políticas culturais. O se-
gundo trata das práticas dos grupos para
inscrição e concorrência em editais, a par-
tir da trajetória do grupo Bongar. Nas con-
siderações nais retomam-se a discussão
sobre impasses e desdobramentos preju-
diciais das políticas para os grupos de cul-
tura popular. Tentamos reunir sugestões
para evitar que, nos editais, sejam feitas
exigências que criem obstáculos para a
autonomia nanceira e ritual dos grupos
de cultura popular.
I.
Para compreender a participação
do Bongar em editais de apoio e fomen-
to às culturas populares, bem como seu
processo de formação e dinâmicas sociais
correlatas, é importante uma contextua-
lização inicial sobre políticas públicas de
cultura no Brasil. As relações do poder
público com as chamadas “culturas po-
pulares” no país - seja no âmbito federal,
estadual ou municipal - têm passado por
uma série de transformações ao longo da
história; implicando em modicações na
forma de compreender as danças, mú-
sicas, rituais, festas, crenças, modos de
fazer e algumas de suas tradições. O Es-
tado brasileiro aderiu a tratados interna-
cionais que preconizam o respeito e o fo-
mento à diversidade cultural. Nas últimas
décadas, várias ações e políticas públicas
foram criadas para nanciar as culturas
populares. Elas decorreram dos avanços
democráticos (ainda que frágeis), con-
quistados em razão da luta permanente
de diferentes atores sociais, para alcançar
maior participação política e verem aten-
didas demandas históricas de segmentos
da sociedade, afetados por desigualdades
de riqueza, prestígio e poder
VI
.
Considera-se, com relativo consen-
so, que os anos 1930 foram um marco im-
portante para o desenvolvimento de polí-
ticas públicas estritamente voltadas para
o campo da cultura no Brasil. A partir daí
a administração governamental brasileira
sofreu uma série de alterações em sua es-
trutura e normatização, mesmo que de for-
ma descontínua, tardia, autoritária e ambí-
gua, com o intuito de implantar ações de
estado em acordo com o espírito “desen-
volvimentista” vigente (ASSIS, 2007; CA-
LABRE, 2009; GRUMAN, 2008; RUBIM,
2007; ESTEVES, 2016). Esta tentativa de
“modernização” - notadamente inspirada
no modelo de administração racional we-
beriano
VII
- repercutiu em diferentes cam-
pos de atuação do Estado (BRESSER-
-PEREIRA, 2007).
A partir dos anos 1930, na chama-
da “Era Vargas”, as relações do Estado
com o campo cultural se transformaram.
Tais relações caracterizaram-se, de modo
geral, por atuações mais direcionadas e
sistemáticas e pela criação de estruturas
administrativas e burocráticas. Os resul-
tados se materializaram em fundação, em
ampla escala, de entidades museológicas,
de órgãos de preservação, de instituições
de pesquisa e de leis para regular a produ-
ção cultural. A maioria dos autores concor-
da que, a partir de então, o Brasil passou a
desenvolver políticas públicas especícas
para o campo cultural, com planejamen-
to e continuidade no tempo (CALABRE,
2009; GRUMAN, 2008; RUBIM, 2007;
ESTEVES, 2016). Isto não evitou que as
políticas públicas, de fomento às culturas
populares, cassem livres da forma patri-
monialista de gestão do estado até o nal
do século XX. Foi recorrente a presença
de políticos como “apoiadores individuais”
ou “padrinhos” das manifestações popu-
lares, como estratégia de legitimidade de
88
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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sua gestão e de sua atuação como políti-
co (ALBERNAZ, 2004; CARVALHO, 2010;
COSTA; MELLO; FONTES JULIANO,
2010, ESTEVES, 2016).
Somente nas últimas décadas as
políticas públicas voltadas à cultura pas-
saram por um processo de reorganização
burocrática das instituições, orientada por
uma perspectiva gerencialista em defesa
de uma melhor “governança”
VIII
- (CALA-
BRE, 2009; GRUMAN, 2008; RUBIM, 2007,
2015). As mudanças foram justicadas por-
que, garantiria, supostamente, uma maior
isonomia, transparência, democratização
no acesso e no controle de uso dos recur-
sos públicos
IX
(FILGUEIRAS, 2011; LEITE,
2014). Tanto a sociedade como os órgãos
de controle da administração pública reque-
riam que fossem cumpridas as normas e le-
gislações vigentes, comumente permeadas
pelo patrimonialismo, um tipo de guia oculto
das práticas de gestores públicos.
Com isto, as relações do poder pú-
blico com as tradições populares, vieram
a ser realizadas, cada vez mais, por meio
de procedimentos institucionais e burocrá-
ticos. Passaram a exigir dos representan-
tes das expressões culturais uma série de
transformações nas práticas e na dinâmi-
ca de suas tradições, incluindo a formali-
zação jurídica dos grupos culturais, com
base em uma lógica cada vez mais contra-
tual e pragmática frente ao Estado.
De acordo com Arantes, Lourei-
ro, Couto e Teixeira (2010), a Constitui-
ção previu, desde a sua promulgação em
1988, o controle mais intenso por parte
dos órgãos de scalização e da socie-
dade sobre as ações do governo. Foi
apenas a partir das últimas décadas que
estas práticas de controle sobre a admi-
nistração pública passaram a ser realiza-
das de forma mais efetiva, por meio de
órgãos, tais como o Tribunal de Contas e
o Ministério Público, e com a participação
mais ativa da sociedade civil.
A administração pública, em suas
diferentes esferas, passou a desenvolver
uma série de normas, decretos e/ou por-
tarias para regulamentar suas ações de
fomento
X
. Neste contexto, apesar de não
tratarem as manifestações da cultura po-
pular diretamente como um objeto passí-
vel de licitação, vieram a lidar com estas
expressões culturais de modo bastante
similar e lhes impondo rigorosos proces-
sos de formalização e burocratização (ES-
TEVES, 2016)
XI
. Esta forma de lidar com
os investimentos públicos, portanto, que,
de alguma maneira, estariam consagra-
dos em alguns campos da administração,
passou também a ser utilizada de modo
mais ou menos similar para lidar com os
investimentos governamentais em relação
às manifestações de cultura popular.
Foram instituídos ou mesmo am-
pliados diversos mecanismos de seleção
pública, tais como os chamados “editais”,
destinados à seleção de projetos e ações
culturais, às “convocatórias” para apoio e
apresentação artística em eventos e, por
m, às “premiações” e “concursos” para
ações exemplares realizadas (CALABRE,
2009; GRUMAN, 2008; RUBIM, 2007; ES-
TEVES, 2016). Estes mecanismos podem
ser entendidos, de um modo geral, como
diferentes atos ociais instituídos pelo po-
der executivo com o propósito de garantir a
isonomia e a transparência em suas ações.
Em Pernambuco, por exemplo, foi
criado em 2002 o Fundo Pernambucano
de Incentivo à Cultura – Funcultura, insti-
tuindo um mecanismo de apoio e fomento
permanente a projetos por meio de edi-
tais, com recursos advindos do Imposto
de Circulação de Mercadorias e Serviços
– ICMS (PERNAMBUCO, 2002). Como
aponta Menezes (2008), este mecanismo
passou a ser uma importante ferramenta
de nanciamento da cultura no estado,
junto aos demais processos de seleção e
contratação direta durante os ciclos festi-
vos, como Carnaval, São João, Natal; bem
89
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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como, os outros mecanismos de patrocí-
nio e convênios rmados com a Fundação
do Patrimônio Histórico e Artístico de Per-
nambuco (FUNDARPE) e a Empresa de
Turismo de Pernambuco (EMPETUR).
Nos editais do Funcultura, e nos
demais mecanismos de seleção estabe-
lecidos pelo poder público, há a necessi-
dade de cumprir uma série de exigências.
Por exemplo: elaboração de projetos ou
planos de trabalho, contendo normal-
mente apresentação do objeto e objetivo
da ação; justicativa; detalhamento das
etapas a serem executadas; período e
local de execução; identicação da equi-
pe principal; currículo ou portfólio, com as
devidas comprovações; número de parti-
cipantes; cartas de anuência; público alvo;
estimativa de público a ser atingido; esti-
mativa de receitas; produtos a serem ge-
rados; plano de distribuição dos produtos;
orçamento analítico de execução do pro-
jeto; cronograma físico-nanceiro; dentre
outros elementos.
Em alguns editais é necessário que
a entidade seja juridicamente formaliza-
da e, neste caso, que esteja quite com
os seus compromissos scais em nível
federal, estadual e municipal, para que
se possa estabelecer o convênio com o
poder público. Há também uma série de
exigências relativas à prestação de contas
que inclui: relatórios; registro de imagens
que comprovem as atividades realizadas;
cópia de cotações; notas scais e recibos;
comprovante da distribuição dos produtos;
comprovante de recolhimento de impos-
tos; etc. Certamente é muita documenta-
ção, por isso o conjunto de pesquisas e
de grupos populares critica este modelo
como promotor de burocratização.
Em razão da complexidade do atual
campo relacionado às políticas de fomen-
to, as relações dos grupos culturais com
o Estado têm sido estabelecidas, quase
sempre, por meio dos chamados “produ-
tores culturais”. Os produtores detêm um
conjunto de habilidades, conhecimentos
e técnicas necessárias para transformar
bens simbólicos em bens de consumo
(ESTEVES, 2016). Ainda que saibamos
que os bens de consumo, de uma manei-
ra geral, estão “carregados de sentidos”,
como nos apontaram Bourdieu (2009),
Douglas e Isherwood (2006) e Sahlins
(2004), pode-se dizer que a atividade de
produção cultural, em última instância,
está relacionada à capacidade de reduzir
semiologicamente e transformar em um
“produto” toda a complexidade e a dinâmi-
ca de uma expressão cultural
XII
.
Tal “produto cultural” - que não
deixa de ser algo extremamente rico em
formas de expressão e cheio de sentidos
para seus participantes - para que possa
ser fomentado pelo poder público e poste-
riormente “consumido” como espetáculo,
evento, ocina, registro musical, atração
- ou “objeto de entretenimento” - necessi-
ta que seja pragmaticamente traduzido (e
reicado) em um “projeto” ou “proposta”.
Este, por sua vez, deve descrever de ma-
neira sucinta, clara e objetiva como será
executado, qual a sua importância social,
cultural e econômica e quais os resulta-
dos serão obtidos a partir desta produção.
Pensamos que uma cultura, ou seus even-
tos, que é vivida e traduzida em experiên-
cias pelas pessoas que a ela se sentem
pertencentes, não pode ser objeticada
dessa maneira (ORTNER, 2011)
XIII
.
Este processo inicial de tradução
pode parecer simples para a burocracia
do Estado. Mas, seguindo Sherry Ortner,
de fato exige uma série de conhecimentos
especícos, que estão longe das práticas
cotidianas e rituais do universo simbólico
de muitos agentes que fazem a chamada
“cultura popular”. Ao traduzir e transformar,
por exemplo, um ritual ou uma festividade
em uma proposta ou projeto cultural
XIV
, es-
tes mediadores atendem aos interesses
de “transformações das tradições perfor-
90
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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máticas afro-brasileiras e indígenas, sa-
gradas ou profanas” para satisfazer “dese-
jos estéticos” de um determinado público
consumidor na contemporaneidade, con-
forme discutido por Carvalho (2004, p. 7).
Não é por acaso, como demons-
tra Esteves (2016), que mestres dos
maracatus de baque solto enfrentavam
frequentemente enormes constrangi-
mentos ao lidar com as exigências de
formalização e burocratização impostas
pelo poder público para concorrer aos
editais. Por isso, a gura dos produtores
culturais, muitas vezes, é imprescindível,
tendo em vista que os maracatuzeiros
têm diculdade de lidar com os meca-
nismos de fomento a suas brincadeiras.
Entretanto, a atividade de produção cul-
tural é um serviço prossional, que deve
ser remunerado, geralmente sendo um
percentual do nanciamento, implicando
em novas despesas, que se somam às
já existentes, as quais são indispensá-
veis à continuidade das agremiações.
Neste sentido o caso do grupo Bongar
nos parece bastante emblemático para
compreender as mudanças exigidas na
organização social dos grupos de cultura
popular para ter acesso às políticas cul-
turais que lhes são destinadas.
II.
Como discutido anteriormente, a
principal política cultural em vigor no es-
tado de Pernambuco, que proporciona
dentre outras atividades: gravação de CD,
DVD, realização de shows e ocinas, sele-
cionados em editais públicos por meio da
proposta de um projeto cultural é o Fun-
do de Incentivo à Cultura (Funcultura/PE).
Em contraponto com a relação apresen-
tada entre os maracatuzeiros, as políticas
públicas de cultura e os produtores cul-
turais, apresentamos agora a relação do
Grupo Bongar e sua forma de lidar com as
exigências dessas políticas.
Como mencionamos anteriormen-
te, o Bongar foi criado em 2001, por um
grupo de doze jovens ligados ao Terreiro
da Nação Xambá. O processo de prossio-
nalização artística do grupo e a relação de
seus membros com as políticas culturais
têm uma longa trajetória, que destoam da
realidade da maior parte dos grupos liga-
dos à chamada “cultura popular”. Em 2002,
por exemplo, o terreiro da Nação Xambá
foi transformado pela própria comunidade,
em um memorial, com um rico acervo de
fotograas e documentos relacionados à
história da comunidade. Em 2004, seus
membros foram um dos contemplados no
concorrido edital, promovido pelo Ministé-
rio da Cultura, para seleção de Pontos de
Cultura. Além disto, a região, onde está lo-
calizada sua sede, recebeu em 2006, da
Fundação Cultural Palmares, a certidão
de autorreconhecimento da comunidade
como Quilombo Urbano (GUERRA, 2011;
PALMARES, 2006). A trajetória de pros-
sionalização artística dos integrantes do
grupo Bongar acompanha, portanto, esta
crescente organização da própria comuni-
dade e sua relação com diferentes políti-
cas públicas, que passaram a ser instituí-
das em nível federal.
O samba de coco executado pelo
Bongar é cheio de sentidos, como assina-
lado na Introdução. Ele está relacionado
com a tradição desta comunidade, que há
décadas realiza uma roda de coco para
celebrar o aniversário da Yalorixá “Mãe
Biu”, Dona Severina Paraíso da Silva já
falecida, e celebrar também o dia de São
Pedro, 29 de junho (GUERRA, 2011). A
festa reúne os lhos e lhas da casa e
na última década ampliou o público que
a prestigia para além da comunidade e vi-
zinhança do Terreiro. É importante notar
que os músicos se revezam nos instru-
mentos, usando o conhecimento do toque
dos ilus, aprendido ao longo da vida no
Terreiro. O coco é um ritmo e dança que
promove uma integração coletiva. As pes-
soas dançam em grupos que permitem a
91
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livre entrada e saída, ao mesmo tempo
elas cantam os versos responsivos das
músicas, executadas pelos percussionis-
tas conduzidos por um mestre. É o mes-
tre que puxa as toadas e faz a sequência
musical, que mantém uma alternância de
emoções intensas e mais brandas, propi-
ciando uma duração longa no tempo.
O Bongar, portanto, surge e perdura
há mais de 15 anos, a partir de uma inser-
ção em políticas de Estado tanto para cul-
tura, como para reconhecimento político
dos direitos de reparação a população ne-
gra brasileira
XV
. Somou-se a este conheci-
mento a ideia original de formar um grupo
de coco, com intenções de preservar, pro-
pagar e continuar a tradição do terreiro,
relacionada também com o enfrentamento
às desigualdades raciais. Consideramos
que esta convergência de fatores – mais
políticas para cultura popular, ainda que
burocratizada em excesso; mais políticas
de enfrentamento ao racismo, ainda que
insucientemente institucionalizadas; re-
modelação do mercado cultural, e dos es-
tilos aceitos pela indústria cultural, ainda
que mantendo a intenção maior nos lucros
– proporcionou ao Bongar um terreno mais
aplainado, para concorrer em políticas pú-
blicas para cultura, por meio de editais.
***
O Bongar passou por várias forma-
ções, em 2016 era composto por: Guitinho,
Nino, Beto, Memé, Túlio. Quando pergun-
tados sobre a formação do grupo em 2001,
seus integrantes remetem às relações de
parentesco e amizade, por um lado, e por
outro, ao conhecimento sobre o coco des-
de muito tenra idade. Estes fundadores –
mais ou menos doze pessoas – ressaltam
que são todos da mesma família, primos e
irmãos, pertencentes ao Terreiro Xambá.
Cada um trouxe consigo um conhecimento
artístico aprendido no terreiro, incorporada
como experiência
XVI
. Apenas uma pessoa,
Jadiel, não era parente, mas sim um gran-
de amigo, que tinha um conhecimento ar-
tístico mais erudito que compartilhou com
o grupo – em certa medida, facilitando o
diálogo com outros ritmos que marca o pro-
cesso de prossionalização posterior.
O Grupo foi pensado como forma
de resistência, inserindo a cultura popu-
lar num espaço de visibilidade e respeito.
Ao mesmo tempo em que se destaca pela
preservação da tradição, valorização e
continuidade da cultura popular por meio
do coco, se destaca também por assumir
uma postura “prossional”, no sentido de
adaptar-se para apresentações em “pal-
co”, e não mais apenas no “terreiro”. Guiti-
nho explica que essa postura prossional,
essa adaptação, ocorre em forma de re-
sistência. Segundo ele, o principal objetivo
do grupo é conquistar espaços para a cul-
tura popular. Tocar em palco, nos festivais
e eventos famosos, possibilita a visibili-
dade, fortalece o reconhecimento e serve
também de exemplo e estímulo para que
outros grupos, também de cultura popular,
possam alcançar o mesmo sucesso.
Nesse processo o Bongar compre-
endeu que se prossionalizar, implicava
em se adequar às exigências do mercado
cultural, se quisesse trilhar um caminho
de continuidade no tempo, acompanhado
por formação de um público abrangente e
que mantivesse o interesse renovado na
sua produção artística. A política de edi-
tais, especialmente do Funcultura, parecia
uma excelente estratégia para obter recur-
sos e colocar em prática estes objetivos.
O encontro do grupo com Marileide Al-
ves, jornalista de formação e produtora do
Bongar, foi fundamental para desmisticar
os editais, descobrir como inscrever-se,
rompendo a barreira da burocracia e con-
seguir nanciamento. Vencer nos editais
propiciou um processo de prossionaliza-
ção e sosticação técnica do grupo, que
ocorreu com relativo planejamento e pela
prática cotidiana, na qual eles levavam a
92
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experiência e o conhecimento que tinham
e praticavam no terreiro – sua cultura de
pertença – para os palcos.
Esse entendimento de se prossio-
nalizar, segundo Marileide, sempre foi um
desejo do grupo, ir além do espaço do ter-
reiro, não car parado, como dito, sina-
lizando para um sentido de sucesso. Eles
passaram a investir no conhecimento téc-
nico das aparelhagens eletrônicas, para
reunir com o conhecimento de percussão,
ocorrido no curso da vida no Terreiro Xam-
bá. Também se voltaram para qualquer
tipo de informação sobre como alcançar
o reconhecimento do seu trabalho. Ainda
de acordo com Marileide, o meio principal
para o acesso a essas informações é a in-
ternet, além dos amigos e da rede de cul-
tura na qual o grupo está inserido, devido
ao seu posicionamento político, ativista,
caracterizado por fazer arte, difundir a cul-
tura e lutar pelas causas do povo negro.
Outro elemento característico e de
extrema importância para o desenvolvi-
mento prossional de um grupo de cultu-
ra popular, é sua forma de organização,
seu modo de se relacionar para e com o
trabalho. É através disso que podemos
compreender melhor a relação do grupo
com as políticas culturais, com os editais
de fomento – principal recurso utilizado
por eles – para conseguirem se inserir e
se manter no mercado cultural, por meio
da produção e venda de seus produtos
XVII
.
Na organização do Bongar, a gura
de Marileide, como produtora cultural, foi
fundamental para concorrer e vencer nos
editais
XVIII
. Ela encarregava-se de: desco-
brir editais; inscrever o grupo – por via ele-
trônica e/ou presencial; reunir documen-
tos para inscrição; acompanhar as etapas
de seleção, até o resultado nal. Também
se encarregava de administrar os recur-
sos nanceiros e realizar as prestações de
contas. Como armamos no item anterior,
o conjunto de papéis e etapas seletivas é
numeroso e também oneroso em termos
de dinheiro, tempo e trabalho para respon-
der às exigências burocráticas. Neste sen-
tido a presença de Marileide voltada para
esta empreitada de editais públicos, deu
aos músicos do Bongar tempo e tranquili-
dade para investir na criação musical, com
exclusividade. Isso faz enorme diferença
na organização dos grupos de cultura po-
pular. Ao longo do processo, os músicos
do Bongar aprenderam com Marileide os
meandros dos editais, de tal maneira, que
mesmo no palco, eles desenvolvem ativi-
dades que alimentarão exigências buro-
cráticas futuras, como por exemplo, reali-
zar registros fotográcos adequados. Este
conhecimento permeia a organização atu-
al do grupo, com uma divisão de trabalho
entre seus integrantes que contemplam as
atividades artísticas, bem como a divisão
de responsabilidades administrativas con-
duzidas por Marileide.
A partir daí podemos compreender
que para o grupo se manter prossional-
mente e atuante no mercado cultural, ele
vive num constante processo de aprendi-
zagem, estudando, tocando, fazendo mú-
sica, trocando conhecimentos, interagindo
com outras tradições, sempre se atuali-
zando. Com o objetivo de estar sempre
em destaque em seu meio, utilizam as
redes sociais como principal forma para
estabelecer um vínculo com seu público e
divulgar tudo o que está acontecendo na
vida prossional e artística do Bongar. E
como fruto desse processo de prossio-
nalização, desse amadurecimento artísti-
co, dessa construção de uma consciência
prossional, da dedicação exclusiva dos
integrantes do grupo a sua carreira, vem a
possibilidade de viver de seu trabalho, por
meio da venda dos produtos artísticos.
Podemos pensar que a posição e a
ação do Bongar no mercado cultural, ven-
cendo os editais e ganhando os recursos
por mérito próprio, tornaram-se exemplos
positivos para outras comunidades acio-
93
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narem sua própria arte, e seguir caminho
semelhante ao dele. Desse modo, consi-
deramos que conhecer e ter o domínio da
técnica da cultura ocidental sobre burocra-
cia estatal, bem como das tecnologias li-
gadas à amplicação da música, foi muito
importante para seu sucesso. O Bongar
conseguiu um espaço artístico para a cul-
tura popular, uma relação mais equitativa
no mercado cultural, e sendo também um
exemplo para outros gêneros artísticos da
cultura popular. Ousamos sugerir que o
seu sucesso também pode ter sido uma
justicativa para a continuidade das polí-
ticas culturais no formato de editais. Des-
tacamos ainda que o Bongar desenvolveu
uma “tecnologia social” que favorece tanto
os grupos populares como suas comuni-
dades de origem
XIX
.
Desse ponto de vista a política de
editais mostra-se em parte positiva. Entre-
tanto, o trabalho de campo junto ao Bon-
gar permite-nos vericar que sua relação
com o produtor cultural pode ser caracte-
rizada como horizontal. Ou seja, Marileide
não foi apenas uma produtora cultural, ela
tornou-se uma aliada do grupo, compar-
tilhando seus conhecimentos, de forma
que seu trabalho como produtora teve um
retorno constante, e não apenas pontual.
Nem todos os grupos tiveram a possibili-
dade de realizar parcerias do mesmo tipo.
Como apontado no primeiro item, os ma-
racatus de baque solto cam dependen-
tes dos produtores, com exemplos reco-
nhecidos de exploração dos mesmos do
trabalho e do conhecimento dos mestres
de cultura popular. Como disse Carvalho
(2010), um tipo de canibalização da cultu-
ra popular, diretamente relacionada com
sua espetacularização.
Considerações nais
Como vem sendo problematiza-
do nesse trabalho, a burocratização das
políticas públicas de cultura afeta a or-
ganização interna dos grupos de cultura
popular. Por um lado, as exigências dos
editais vão além e são inadequadas aos
conhecimentos dos mestres de cultura
popular. Neste sentido limita suas ações
junto ao estado para ter acesso a nan-
ciamento público, porque os idealizadores
destas políticas, não levam em conta o
conhecimento dos próprios mestres sobre
como gerir e nanciar a cultura popular.
Conforme descrito por Carvalho a cultura
popular se diferencia da indústria cultural
e de outros tipos de eventos estéticos, por
ter se mantido de forma autogestionária e
autonanciada ao longo de uma história,
no geral de resistência, para manter suas
especicidades culturais nos contextos de
sociedades capitalistas.
Por outro lado, para vencer esta
barreira de conhecimento técnico da bu-
rocracia do estado exposta nos editais,
os mestres e grupos populares podem se
tornar dependentes de terceiros para con-
quistar recursos que o próprio estado, por
meio das políticas públicas, quer demo-
cratizar. A posição, os limites de atuação
e os valores de remuneração, da gura
do produtor cultural, não são claramente
denidas nos editais. Esta falta de regula-
ção da relação entre produtores, mestres
e grupos de cultura popular, deixa espa-
ço para atuações verticalizadas dos pro-
dutores culturais. Desse modo a relação
corre risco de tornar-se assimétrica, com
ganhos maiores para os produtores em
detrimento dos grupos populares.
Concordando com José Jorge de
Carvalho (2010) a espetacularização, que
é simultaneamente um processo estéti-
co, político e econômico, na ausência de
uma atenção dos gestores públicos sobre
os limites dos editais para a promoção da
autogestão dos grupos populares, pode
tornar-se uma regra, e não uma exceção.
O grupo Bongar é uma exceção porque
reuniu-se, desde sua formação, com uma
produtora cultural disposta a ensinar e a
94
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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aprender, bem como aliando-se ao grupo
no seu percurso bem-sucedido, de manei-
ra que trabalha com o grupo, quase com
total exclusividade. Se este exemplo fosse
utilizado para pensar as políticas de edi-
tais, com o intuito de refazê-las, os gru-
pos de cultura popular poderiam entrar e
permanecer no mercado com maior inde-
pendência de recursos públicos, alcançar
sucesso e em simultâneo, manter a auto-
nomia e controle sobre seus conteúdos e
signicados culturais expressos pela esté-
tica de sua arte.
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Ocial do Estado de São Paulo, 2004.
Recebido em 12/01/2018
Aprovado em 23/02/2018
I Gabriela Pimentel de Araújo. Graduada em Ci-
ências Sociais e mestranda em Antropologia pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco. Contato:
gabbypimentell@gmail.com
II Leonardo Leal Esteves. Bolsista do Programa Na-
cional de Pós-Doutorado PNPD/CAPES e Professor
Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Antro-
pologia da Universidade Federal de Sergipe. Doutor em
Antropologia pela Universidade Federal de Pernambu-
co. Contato: leonardolesteves@gmail.com
III Lady Selma Ferreira Albernaz, Professora Associa-
da 2, Departamento de Antropologia e Museologia da
Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Ci-
ências Sociais pela Universidade Estadual de campinas
(UNICAMP). Contato: selmaalbernaz@gmail.com
IV A primeira pesquisa embasou o trabalho de con-
clusão de curso (TCC) em ciências sociais, defendido
por Gabriela Pimentel de Araújo (2017), sobre a traje-
tória de prossionalização do grupo Bongar por meio
de editais públicos de nanciamento de cultura em Per-
nambuco. A segunda pesquisa resultou na tese de dou-
torado em Antropologia, defendida por Leonardo Leal
Esteves (2016), sobre as exigências burocráticas do
estado aos grupos de cultura popular para concorrer e
vencer em editais de nanciamento público, elaborados
pelos órgãos de políticas culturais. Ambos os cursos
estão vinculados ao Departamento de Antropologia e
Museologia da Universidade Federal de Pernambuco.
96
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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V Ver Lucia Helena Guerra (2010) para maiores apro-
fundamentos sobre história do Terreiro Xambá.
VI Para uma discussão sobre distribuição de prestigio,
poder e riqueza ver Ortner (2007; 2011).
VII Segundo Weber, a administração moderna (2004,
p. 198): “Rege o princípio das competências ociais -
xas, ordenadas, de forma geral, mediante regras: leis
ou regulamentos administrativos, isto é: 1) existe uma
distribuição xa das atividades regularmente necessá-
rias para realizar os ns do complexo burocraticamente
dominado, como deveres ociais; 2) os poderes de man-
do, necessários para cumprir estes deveres, estão tam-
bém xamente distribuídos, e os meios coativos (físicos,
sacros ou outros) que eventualmente podem empregar
estão também xamente delimitados por regras; 3) para
o cumprimento regular e contínuo dos deveres assim
distribuídos e o exercício dos direitos correspondentes
criam-se providências planejadas, contratando pessoas
com qualicação regulamentada de forma geral”.
VIII Como observa Ana Flávia Leite (2014) este princí-
pio foi defendido inicialmente a partir da chamada “Re-
forma Gerencialista” no nal dos anos 1990. De acordo
com a autora, “a reforma do Estado, que ganhou a al-
cunha de Reforma Gerencial da administração pública,
foi um movimento de transformação implantado no pri-
meiro mandato do Governo Fernando Henrique Cardo-
so, mais precisamente a partir de 1995, com o objetivo
de, em um primeiro plano, aprimorar a qualidade da
gestão pública e, em segundo plano, de promover a
´racionalidade´ segundo ns, na acepção weberiana”
(Leite, 2014, p. 19). A partir de 2002, estes mecanismos
passaram a ser utilizados para regulamentar boa parte
dos investimentos no campo da cultura.
IX De acordo com Filgueiras (2011), diferentes diag-
nósticos reconheceram uma histórica desorganização,
ineciência e corrupção da estrutura burocrática do
Estado brasileiro, incrementadas após a Era Vargas.
Por pressão de organismos internacionais o poder pú-
blico procurou adotar, em meados dos anos 1990, o
chamado modelo “gerencialista”, sob o comando do
ex-ministro Bresser-Pereira, regido pelos princípios de
descentralização, da accountability, da inclusão social
e da eciência scal.
X Com base no inciso XXI, do Art. 37º da Consti-
tuição Federal de 1988, e na Lei nº 8.666, de 21 de
junho de 1993, que tratam das normas gerais para
contratação das obras, serviços, compras e aliena-
ções pelo poder público.
XI Conforme a regulamentação relativa aos investi-
mentos públicos, “ressalvados os casos especicados
na legislação, as obras, serviços, compras e aliena-
ções devem ser contratados mediante processo de
licitação pública”. A licitação “destina-se a garantir a
observância do princípio constitucional da isonomia e
a selecionar a proposta mais vantajosa para a Admi-
nistração” (Brasil, 1988).
XII Referendando-se em José Jorge de Carvalho
(2004; 2010), Esteves (2016) demonstra as diferenças
entre as apresentações artísticas de grupos, como os
maracatus de baque solto, consoante suas modalida-
des: palcos ou desles em passarelas, durante o Car-
naval, e as atividades promovidas pelos próprios folga-
zões, para a comunidade em suas sedes e terreiros. O
autor conclui que rituais, com densidade e intensidade
simbólicas (como uma sambada) relativas ao senti-
mento de pertencimento e armação de valores cultu-
rais, são espetacularizados, com ns de entretimento
de foliões e turistas, durante o Carnaval.
XIII No sentido que a cultura é um tipo de lente para
ver e constituir o mundo. Cultura na sua dimensão
subjetiva constitui pessoas, e por mais reexiva que
seja, não se objetiva em termos racionais como pre-
tendem os burocratas, veja-se os trabalhos de Ortner
indicados em nota anterior.
XIV Conforme armado antes, determinando: tempo de
apresentação, números de integrantes, papeis sociais
formalmente denidos, etc.
XV A discussão sobre prossionalização do Bongar an-
cora-se no trabalho de Araújo, 2017.
XVI No sentido de reunir, o que foi vivido, com reexões
sobre sentir, pensar e agir, de forma que permite situar-
-se socialmente, relacionando seu grupo de pertença
com a cidade, numa perspectiva de justiça.
XVII De acordo com os integrantes do grupo, eles re-
conhecem o resultado do seu processo de “prossiona-
lização” enquanto produtos, quais sejam: CDs, DVDs,
aulas-espetáculo (o conteúdo apresenta as diferentes
variações rítmicas do coco; formas de toque e de dança;
postura de palco; etc.), shows.
XVIII Para ser produtor cultural – pessoa física ou jurí-
dica – o proponente deve se cadastrar no Funcultura,
no Cadastro de Produtor Cultural (CPC), pelo menos 6
meses antes do edital que pretende concorrer. A pessoa
submete-se a uma avaliação técnica do seu currículo,
devidamente comprovado. A partir daí torna-se apto a
representar grupos culturais.
XIX O termo tecnologia social foi utilizado por Gabriela
Pimentel e acatado pelos demais autores. Ele descreve
o investimento técnico e intelectual para reunir conheci-
mentos tradicionais de grupos de cultura popular, com
uma ação política de enfrentamento de desigualdades,
especialmente da população negra, com as exigências
burocráticas do estado, de modo a ter acesso a nancia-
mentos que retornam positivamente para o grupo artís-
tico e sua comunidade. A inspiração para o termo surgiu
de uma conversa informal com Marcelo Renan, pesqui-
sador e funcionário da Fundarpe, a quem agradecemos.
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Cidadania Cultural:
entre a democratização da cultura e a democracia cultural
Cidadania Cultural:
entre la democratización de la cultura e la democracia cultural
Cultural Citizenship:
between democratization of the culture and cultural democracy
Valmir de Souza
I
Resumo:
Análise de dois paradigmas de políticas culturais, democratização da
cultural e democracia cultural, apresentando diferentes experiências de
gestão cultural na Europa e no Brasil que adotaram estes dois modelos,
com ênfase na gestão cultural em São Paulo.
Palavras chave:
Cultura
Democracia
Democratização
Gestão
Política cultural
98
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
Análisis de dos paradigmas de políticas culturales, democratización de
la cultura y democracia cultural, presentando diferentes experiencias de
gestión cultural en Europa y Brasil que adoptaron estos dos modelos,
con énfasis en la gestión cultural en São Paulo.
Abstract:
Analysis of two paradigms of cultural policies, cultural democratization
and cultural democracy, presenting different experiences of cultural
management in Europe and Brazil that adopted these two models,
with emphasis on cultural management in São Paulo.
Palabras clave:
Cultura
Democracia
Democratización
Gestión
Política Cultural
Keywords:
Culture
Democracy
Democratization
Management
Cultural Policy
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Cidadania Cultural:
entre a democratização da cultura
e a democracia cultural
Serão discutidos, neste artigo, dois
paradigmas de política cultural: a demo-
cratização da cultura, voltada para a di-
fusão da cultura de elite e a democracia
cultural que enfatiza o reconhecimento
da produção autônoma. Este tema tem
recebido a atenção por parte de estudio-
sos das políticas culturais com enfoques
mais voltados para as produções e ativi-
dades culturais. Depois de apresentar os
paradigmas, apontaremos para algumas
políticas clássicas que operaram com es-
tes modelos, principalmente na Inglaterra
e na França. À luz dos dois paradigmas,
vamos analisar a gestão cultural em São
Paulo e sua Política de Cidadania Cultural
que incorporava elementos dos dois mo-
delos, ainda que na prática da gestão te-
nha preponderado a estratégia da difusão
e fruição de bens culturais.
Democratização da cultura
Para Ezequiel Ander-Egg (1987), o
paradigma da democratização da cultura
pretende ampliar o acesso do grande pú-
blico à cultura e à vida artística, caracte-
rizando-se por distribuir os benefícios da
cultura para a população, mediante a difu-
são desde as instituições, e consistiria em
proporcionar conhecimentos e serviços
da elite cultural, buscando diminuir a de-
sigualdade no acesso aos bens culturais,
bem como ao patrimônio histórico.
Aí predomina a ideia de um público
consumidor de cultura, receptor de bens
e serviços, e se utiliza dos “templos cul-
turais” como lugares privilegiados de re-
alização da ação cultural, com ênfase no
direito ao acesso à cultura artística. Mas
além do acesso, também pressupõe a pro-
dução de um tipo de arte e cultura que se
baseia na cultura estabelecida. Portanto,
junto com a distribuição dos bens culturais
de uma elite, haveria a possibilidade de se
fazer arte, com os critérios da produção
cultural vigente.
Esta prática apoia-se na burocracia
cultural para dar conta destas tarefas, o
que pressupõe a ação do Estado. O mote
aqui seria a cultura ao alcance de todos, e
o cidadão seria visto como receptáculo de
uma ação cultural do Estado ou da iniciati-
va privada (ANDER-EGG, 1987, p. 42-45).
Corroborando esta linha de racio-
cínio, e centrado na experiência de pa-
íses latino-americanos, Nestor Garcia
Canclini arma: “Este paradigma [demo-
cratização da cultura] concebe a política
cultural como um programa de distribui-
ção e popularização da arte, o conheci-
mento cientíco e as demais formas de
‘alta cultura’. Sua hipótese se baseia na
ideia de que uma melhor difusão poderá
corrigir as desigualdades no aceso aos
bens simbólicos.” (CANCLINI, 1987, p.
46, tradução própria).
Esta concepção, tendo como obje-
tivo a difusão cultural, opera com o con-
ceito de cultura restrito ao campo das
artes consagradas. Estas ideias têm sido
disseminadas e praticadas por duas tra-
dições de políticas culturais, que iremos
revisar brevemente por trazerem elemen-
tos que auxiliam no estudo da gestão cul-
tural em São Paulo.
A tradição inglesa
A primeira tradição, iniciada nos
anos 1940, tem como base a atuação do
Arts Council (A.C.), na Inglaterra, inaugu-
rado por John Maynard Keynes, em 1946.
Este órgão foi criado em um momento
100
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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em que o Estado, através das artes e da
cultura, trabalharia para levantar a auto-
estima da população inglesa, no Pós-Se-
gunda Guerra, apoiando uma política de
retomada do desenvolvimento econômico,
buscando, além de nanciar as artes, pre-
servar a herança cultural nacional. Este é
o momento do Welfare State (VOLKER-
LING, 1996, p. 196)
O Arts Council estabeleceu uma
política que operava no sentido de investir
nas artes através de “corpos governamen-
tais semiautônomos” que repassavam
fundos às instituições privadas. Sobre a
instalação do A.C, Keynes observa, em
um programa de rádio da BBC, que “um
corpo semi-independente é dotado de
fundos modestos para estimular e manter
quaisquer corpos ou sociedades [artísti-
cos] sejam da iniciativa privada ou local.”
(apud UPCHURCH, 2004, p. 203, trad.
própria). Essa modalidade de política cul-
tural era operada por comissões indepen-
dentes que julgariam os projetos e pro-
postas artísticas (avaliação pelos pares),
aplicando-se o princípio do “arm’s length”
(administração a distância), ainda que se
considerasse o papel do Estado como fo-
mentador das artes. Para a época, esta
política se apresentava como uma inova-
ção no nanciamento das artes.
Em sua atuação no A.C., Keynes
sofreu críticas sobre o direcionamento dos
subsídios. Para alguns, suas intervenções
não procuravam desenvolver a criativida-
de artística, mas sim as instituições que
abrigavam os artistas de áreas como ópe-
ra, dança e teatro, que teriam recebido as
maiores porcentagens das verbas públicas
(UPCHURCH, 2004, p. 204, 214 e 216).
Esta política cultural tinha como ob-
jetivo investir na produção da “boa cultura”
para todos e não apenas para uma classe
alta que já era consumidora dessa cultura.
Ainda assim, este modelo estava voltado
para a produção e reprodução de uma cul-
tura de classes alta e média, principalmente
na fase “fundacional” (1945-65), considera-
da “idealista”, e que baseava seu discurso
na universalização de uma monocultura
branca e urbana, pretendendo ao mesmo
tempo o “esclarecimento” artístico de uma
camada social de produtores e fruidores de
artes (VOLKERLING, 1996, p. 193-4).
A tradição francesa
A segunda tradição, francesa, te-
ria a centralidade do Estado como di-
ferencial em relação à política cultural
inglesa. A ideia de cidadania e de polí-
tica cultural tem sido considerada uma
“invenção” francesa, tradição na qual o
Estado teria o papel de subvenciona-
dor de programas culturais e artísticos,
apoiando projetos e criando empregos
públicos (URFALINO, 1989 e 2004). En-
m, o Estado atuaria diretamente como
patrocinador das artes e da cultura.
Nesta tradição, principalmente em
seus inícios, o domínio das políticas cul-
turais do Estado se limitou, durante mui-
to tempo à preservação do patrimônio, à
difusão do que era produzido pela elite
cultural, apoiando a criação artística tra-
dicional. Mais recentemente, ampliou o
escopo da atuação do Estado, com a des-
centralização cultural, mas ainda assim,
conservaram-se as tradições de apoio es-
tatal (MOULINIER, 1999, p. 27 e 29). As-
sim como na tradição inglesa, esta política
cultural ainda estaria pautada pela prática
difusionista da cultura consagrada, não
levando em conta a produção cultural de
grupos e comunidades não hegemônicos
presentes na sociedade francesa. O con-
ceito subjacente nessas duas tradições de
política cultural estava restrito às produ-
ções artísticas estabelecidas.
A experiência francesa dos anos
1950 a 1970 sofreu reavaliações e críti-
cas por parte de estudiosos e pesquisado-
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res que se debruçaram sobre as gestões
culturais daquele país, devido ao caráter
“restrito” da política francesa de democra-
tização da cultura. Sabe-se que a partir
dos 1970, a ideia de desenvolvimento cul-
tural e a ampliação do conceito de cultura,
a política tradicional do Ministério da Cul-
tura teve de ser revista à luz dessas novas
percepções (DONNAT, 2003).
Assim, o que diferencia as duas tra-
dições acima citadas, é a menor ou maior
ênfase dada ao papel do Estado. Na tra-
dição inglesa, este teria função de nan-
ciar sem interferir no processo de escolha
do que viria a ser nanciado, utilizando-se
para isso de comissões julgadoras autô-
nomas do poder público. Já na tradição
francesa, o Estado teria função precípua
na denição dos investimentos públicos,
através de subvenções diretas. As duas
políticas, no entanto, convergem quan-
to ao paradigma da democratização do
acesso às belas artes.
Democracia cultural
O outro paradigma de política pú-
blica voltada para a cultura, a democracia
cultural, teria a função de proporcionar a
indivíduos, grupos e comunidades ins-
trumentos necessários para desenvolver
suas potencialidades culturais, com a
possibilidade de os cidadãos participarem
ativamente da vida social. Nesta perspec-
tiva, a população se apropriaria de meios
necessários para desenvolver suas pró-
prias práticas, dinamizando a cultura local
a partir de suas referências e não tendo
como horizonte somente as práticas ar-
tísticas consagradas. O centro desta con-
cepção tem a ver com a cultura local e au-
tônoma, enfatizando-se a cultura realizada
por todos. O mais importante passa a ser
a participação na criação e nos proces-
sos culturais. Aqui, a cultura é vista como
processo em que cada um possa conduzir
sua vida de modo autônomo, com o m de
desenvolver o conjunto de suas potenciali-
dades, com especial atenção à identidade
cultural. Esta política busca valorizar as
produções e ações culturais independen-
tes, sem que o Estado interra nas esco-
lhas e nos fazeres de grupos e comunida-
des (ANDER-EGG, 1987, p. 41-45).
Neste diapasão, Néstor Garcia
Canclini (1987), adota a expressão demo-
cracia participativa com sentido asseme-
lhado ao de democracia cultural como si-
nônimo de um projeto abrangente em que
a população participasse das decisões do
fazer cultural. Arma o autor:
Diferentemente das posições unidi-
mensionais e elitistas que sustentam
os paradigmas do mecenato, tradi-
cionalista, estatal e privatizante, e se
inltram inclusive no modelo demo-
cratizador, esta concepção defende
a coexistência de múltiplas culturas
em uma mesma sociedade, propicia
seu desenvolvimento autônomo, e re-
lações igualitárias de participação de
cada indivíduo em cada cultura e de
cada cultura em relação às demais.
Posto que não há somente uma cultu-
ra legítima, a política cultural não deve
dedicar-se a difundir só [cultura] hege-
mônica, mas a promover o desenvolvi-
mento de todas que sejam representa-
tivas de toda a sociedade (CANCLINI,
1987, p. 50, 51, tradução própria).
Canclini destaca que seria natural
que os partidos de esquerda se envolves-
sem com esta concepção, já que histori-
camente lutaram por democracia e pela
democratização da cultura. Mas aponta
que mesmo partidos progressistas “parti-
ciparam de concepções antidemocráticas,
ou pela via do estatismo, ou pela do par-
tidocratismo, e acabaram em alguns mo-
mentos impondo “às classes subalternas
concepções paternalistas de democratiza-
ção.” (CANCLINI, 1987, p. 50, 51, tradu-
ção própria).
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Canclini e Ander-Egg concordam
que este paradigma se baseia num con-
ceito ampliado de cultura, indo além da
cultura mainstream. Essa abrangência do
conceito se fez notar em vários lugares
que buscaram inovar as políticas culturais
com a participação de um maior núme-
ro de pessoas no campo da cultura. Por
exemplo, no caso da tradição inglesa, es-
pecialmente do Arts Council, Franco Bian-
chini (1987) mostra como a gestão dos tra-
balhistas no Conselho (GLC, 1981 a 1986)
politizou a questão cultural, promovendo
uma visão de cultura mais ampla, depois
de um período de despolitização do A. C.,
que também tinha como horizonte as prá-
ticas culturais do establishment.
Neste período, o Conselho incen-
tivou ações ligadas a grupos e movimen-
tos sociais, de gênero, etnias, etc, indo
além da área estritamente artística, am-
pliando o conceito de cultura na política
cultural. A política dos trabalhistas tam-
bém enfatizava a manutenção e melhoria
dos equipamentos tradicionais, a progra-
mação cultural em praças públicas para
ampliar o acesso da sociedade londrina
aos eventos, especialmente das popula-
ções das periferias e das culturas popu-
lares urbanas que tinham poucas oportu-
nidades de produzir cultura (BIANCHINI,
1987, p. 103 e 104).
Essa política de democracia cul-
tural, no âmbito da “virada comunitária”,
passou a dar destaque ao multicultura-
lismo, se posicionando na contracorrente
da fase fundacional da política cultural in-
glesa. Passou-se a valorizar a presença
e o trabalho de vários grupos, e também
a se pensar no desenvolvimento comu-
nitário. Essa prática se disseminou por
vários países, como Austrália, Nova Ze-
lândia e Canadá, incluindo questões li-
gadas às etnias e povos nativos dessas
regiões. Previa-se aí a participação direta
de grupos e comunidades, no sentido de
empoderar esses sujeitos para efetuar
mudanças culturais, inclusive escolhendo
suas próprias criações e ações culturais.
(VOLKERLING, 1996, p. 194, 198). Com
isso, percebe-se uma forte inexão em
relação à ideia da democratização da cul-
tura, promovendo uma guinada também
na concepção de cultura pressuposta nas
políticas culturais.
A tabela 1 ilustra e sintetiza os dois
paradigmas analisados.
Tabela 1: Políticas clássicas de produção e difusão cultural
Tabela reproduzida (com alterações) a partir do trabalho de Luciana Lima, Pablo Ortellado e Valmir de Souza (2013)
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Contexto da Política de Cidadania
Cultural (1989-1992)
Durante os anos 1980 houve gran-
de efervescência nos debates sobre as
questões culturais no Brasil. No campo
político progressista foram elaboradas
propostas de políticas culturais, que não
eram levadas em conta no conjunto das
políticas sociais. Alguns governos locais
progressistas passaram a destacar a
questão cultural nos programas e políticas
sociais, como foi o caso da administração
em São Paulo, com a política de Cidada-
nia Cultural que passou a ser uma das re-
ferências no país. Outras administrações
também incrementaram seus orçamentos
na área de cultura, como Santo André,
Porto Alegre, São Bernardo do Campo,
como documentado na Revista N. 12 Do
Instituto Pólis. O caso de São Paulo se
tornou emblemático devido à importância
estratégica do município no contexto na-
cional e também pela dimensão territorial
e simbólica da cidade.
A gestão pública municipal se de-
parou com a falta de uma tradição de
política cultural que tivesse a cidadania
como foco, o que a levaria a romper com
a série histórica da ausência do Estado
nesse campo. O problema da falta de
tradição nessa área se localizava em
outros lugares do Brasil, como registra-
do no Modo Petista de Governar: “... no
caso da cultura, os secretários munici-
pais e coordenadores municipais tiveram
que inventar por conta e risco uma polí-
tica cultural no âmbito dos municípios”
(BITTAR, p. 194). Para a “reinvenção de
uma tradição” a gestão revisitou gesto-
res públicos anteriores, ressignican-
do projetos culturais que se orientavam
pelo paradigma da democratização da
cultura, e buscando a participação das
comunidades nos projetos da cidade.
Um do s pilares da reinven-
ção da política cultural para cidade de
São Paulo teria que se constituir com
base na ideia de direito à cultura preco-
nizado no Programa de Governo (CHAUÍ,
2006, p. 136). Conceber a cultura como
direito constituiu, para a época, uma no-
vidade no campo das políticas públicas, e
implicava colocar novas tarefas ao Esta-
do como indutor do fazer cultural.
Essa política se posicionava como
antagonista em relação à fragilização do
papel do Estado no campo social nos anos
1980-90, e invocava o papel das políticas
públicas como essenciais para a popula-
ção. Para isso a política de Cidadania Cul-
tural teria de enfrentar a tradição do popu-
lismo cultural e a onda neoliberal (CHAUÍ,
1992, p. 5). Marilena Chauí se opunha
frontalmente às forças de mercado e às
forças da indústria cultural, predominan-
tes no período da gestão, contrapondo a
essas forças a ideia de direito à cultura.
Assim, a política cultural desse pe-
ríodo pretendia promover uma política de
acesso à cultura, combinada com a expe-
rimentação como um direito. Em seu dis-
curso de posse, a secretária indica uma
política direcionada aos produtores e cria-
dores de símbolos, à experimentação ar-
tística “de vanguarda”, mas também aos
trabalhadores. Vejamos:
Se a Secretaria de Cultura pretende
ser espaço de representação e de par-
ticipação dos que trabalham na cria-
ção dos símbolos que constituem a
cultura, se pretende ser o espaço de
encontro para os que desejam fruir os
bens culturais e descobrir suas capa-
cidades como criadores de símbolos,
ela só poderá fazê-lo concebendo a
cultura do ponto de vista da cidada-
nia cultural. Isto signica que tomará
a cultura como um direito do cidadão
e, em particular, como direito à cria-
ção desse direito por todos aqueles
que têm sido sistemática e delibera-
damente excluídos do direito à cultu-
104
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ra neste país: os trabalhadores, tidos
como incompetentes sociais, políticos
e culturais, submetidos à condição
de receptores de ideias, ordens, nor-
mas, valores e práticas cuja origem,
cujo sentido e cuja nalidade lhes es-
capam. Mas esta Secretaria também
dedicará seus esforços para promover
o direito à cultura daqueles criadores
cujo trabalho experimental nas artes,
nas técnicas, nas ciências e nas prá-
ticas socioculturais têm sido bloquea-
do, impedido, censurado e não reco-
nhecido pelos poderes estabelecidos
(CHAUÍ, 1989, p.3).
Depreende-se daí que a criativida-
de dos trabalhadores e a criação artística
experimental seriam tratadas igualmente.
Sem abandonar as práticas mais consa-
gradas de produção cultural, a política si-
nalizava um avanço signicativo nos direi-
tos culturais dos “não-artistas”. Esta tensão
perpassa o projeto, pois ainda que reco-
nheça a cultura criada pelos trabalhadores
(bailes da periferia e festas populares), o
texto arma a necessidade de “descobrir
(…) suas [dos trabalhadores] capacidades
como criadores de símbolos”, em outras
palavras, de ajudar os trabalhadores a de-
senvolverem suas capacidades de produ-
tores culturais, através do ensino da arte
aos que querem praticar cultura amadora.
Essa política promoveu a democra-
tização dos bens artísticos, mas encontrou
barreiras para implementar a democracia
cultural nos termos propostos inicialmen-
te, pois esta exigiria um esforço coletivo
para romper com as práticas conceituais
então vigentes.
Um dos avanços dessa experiên-
cia foi a ampliação da ideia de cultura,
repensada na dimensão cidadã e a re-
visão da atuação do Estado em relação
às manifestações culturais e artísticas da
sociedade. Uma política que pretendia
transformações profundas, com forte ên-
fase no direito à cultura e direito à cida-
de, esbarrou na burocracia despreparada
para implementar projetos que não se en-
quadrassem na visão cultural hegemôni-
ca. Assim, a estrutura do Estado colocou
grandes empecilhos para gerir a cultura
na cidade, principalmente no que se refe-
re ao arcabouço jurídico.
Política de Cidadania Cultural
e os dois paradigmas
Parte da tradição inglesa de políti-
ca cultural voltada para a população teve
ressonância nas diretrizes do Projeto de
Cidadania Cultural, desenvolvido durante
a gestão cultural de Marilena Chauí (1989-
92), que apontava para uma visão repu-
blicana e democrática (FARIA, 1997). Em
seu discurso de posse, Chauí aponta para
o direito à cultura dos velhos, crianças, jo-
vens, estudantes, diferentes etnias, pes-
soas com necessidades especiais, ecolo-
gistas, mulheres, etc. (CHAUÍ, 1989, p. 4),
pautas identitárias que eram um avanço
notável em relação aos discursos prece-
dentes na cidade de São Paulo. Também
houve eventos realizados em praças,
eventos de rua e “aulas públicas” que te-
matizaram questões sociais e políticas, o
que lembra a política cultural do GLC em
Londres no período mencionado. Enm,
pode-se perceber a tentativa de estabele-
cer uma política cultural que abrangesse
a população como um todo e não só seg-
mentos artísticos, o que denota o possível
alargamento do conceito de cultura.
Porém, no caso do direito à produ-
ção de cultura por parte da população, a
gestão paulistana teria se limitado a pro-
porcionar instrumentos para produzir um
determinado tipo de cultura, não indo
além da capacitação de agentes culturais,
o que coloca em questão a proposta de
uma política cultural “radicalmente” demo-
crática, isto é, uma democracia cultural
efetiva, que valorizasse a cultura pratica-
105
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da pela população. O que a aproximava
mais ao paradigma de democratização
cultural francês. Isso demonstra os limites
e dilemas das políticas culturais que pre-
tendiam alterar as condições de produção
e criação culturais e artísticas.
Lembre-se que a expressão demo-
cracia participativa, pensada por Canclini,
se aproximava da formulação apresen-
tada por Marilena Chauí da democracia
cultural, enfatizando a ideia de participa-
ção política. Vejamos a proposta de Chauí
para a atuação da Secretaria Municipal de
Cultura (SMC) de São Paulo, no discurso
de posse, “Reexos da cidadania”:
[...] a Secretaria de Cultura do gover-
no do PT, enquanto campo de cultura
política, irá pautar-se por duas ideias-
-práticas fundamentais: e de que seu
trabalho principal é o da criação de
condições para o advento da cidada-
nia político-cultural dos trabalhadores
e de que esse advento exige um tra-
balho de modicação nos valores e
comportamentos da classe dominante
para que esta tenha condições de pas-
sar de um universo determinado por
valores e comportamentos senhoriais
para um campo de forças políticas
conitante e com direito à expressão e
ao exercício efetivo, isto é, à compre-
ensão de que a classe trabalhadora
não é escrava nem serva, mas cidadã.
É nessa perspectiva que denimos a
democracia cultural e a democratiza-
ção da cultura. (CHAUÍ, 1989, p. 3,
graa atualizada)
Para a autora, a democracia cul-
tural estaria articulada à ideia de partici-
pação, cabendo à Secretaria, “em seu
trabalho de cultura política, [...] criar um
campo concreto de participação cultural
capaz de intervir ativamente no todo da
política.” “Democratizar a cultura signi-
ca fazer do direito à opinião e à decisão o
campo denido do funcionamento interno
e externo da Secretaria.” (CHAUÍ, 1989, p.
5). Depreende-se daí o peso que a ação
política seria o norte da ação cultural da
SMC. Essa ideia carregava muito da práti-
ca petista que investia na participação da
sociedade (movimentos sociais, sindica-
tos, associações) em decisões de gover-
no, o que implicava, de certa forma, uma
“politização” dos processos culturais.
Na perspectiva do documento de
Chauí, as noções de democratização da
cultura e democracia cultural são de al-
guma forma embaralhadas, denotando
que uma expressão implica a outra, con-
cretizado nas expressões “direito à pro-
dução” e “direito à participação” - como
se o incremento da participação política
(nas políticas culturais) implicasse na
participação na produção cultural. No
polo da democratização da cultura terí-
amos a difusão e produção cultural, en-
quanto que no polo da democracia cul-
tural teríamos a “participação cultural”.
Junto com esta última, na prática a de-
mocratização da cultura em sentido ar-
tístico-cultural ganhou grande destaque
na ação cultural da Secretaria. Só no
nal da gestão é que a democracia cul-
tural começou a dar frutos, por exemplo,
com o aumento signicativo de presen-
tes em assembleias e audiências para
denição do orçamento.
Além das tradições internacionais
já citadas, Chauí dialoga com as gestões
e políticas culturais anteriores a ela na
cidade de São Paulo. Vale lembrar o tra-
balho realizado por várias administrações
culturais, desde Mário de Andrade até
Gianfrancesco Guarnieri. Em geral, estas
gestões culturais se orientavam pelo para-
digma da democratização da cultura, ain-
da que em alguns momentos buscassem
a participação das comunidades nos pro-
jetos culturais da SMC. Mas o foco dessas
administrações anteriores foi uma políti-
ca de difusão dos bens culturais da elite.
(SOUZA, 2012, p. 54).
106
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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No caso da Cidadania Cultural, o
projeto colocava em jogo também as no-
ções expostas anteriormente, tanto em ní-
vel internacional como em nível nacional.
No entanto, a proposta da SMC de trans-
formar as práticas culturais teria enfatizado
mais uma política de democratização da
cultura do que a política de democracia cul-
tural como forma de radicalizar os direitos
de grupos e pessoas a produzir sua própria
cultura de modo autônomo, ainda que hou-
vesse intenção explícita dos governantes
de valorizar as culturas das camadas mais
pobres da população e dos trabalhadores.
Democratização e democracia cultural
Apesar de não explicitar referên-
cias teóricas e experiências de gestão
cultural de outros países, o projeto de
Cidadania Cultural da Secretaria Mu-
nicipal de Cultura de São Paulo estava
sintonizado com as propostas da de-
mocratização da cultura e da democra-
cia cultural das experiências na Euro-
pa (CHARTRAND, 1989; VOLERLING,
1996) e também na América Latina.
Em se u discurso de posse já men-
cionado, Chauí propunha a garantia do di-
reito à cultura (produção, experimentação,
fruição, participação e informação) e sina-
lizava para o direito de vários segmentos
da sociedade (Chauí, 1989, p. 4). Para
isso, acionou um repertório de atividades
cursos, ocinas, eventos em praças,
ruas e “aulas públicas” - que tematizaram
questões sociais e políticas da época.
Esta política abria o leque da SMC
para a população em geral e não apenas
para segmentos artísticos, o que lembra a
política do Arts Council inglês. Os elemen-
tos que lembram a tradição francesa cons-
tavam das ideias de Cidadania Cultural.
A política da SMC preconizava o
apoio à produção cultural de grupos da
sociedade, com ênfase na participação
política, incentivando atividades artísti-
cas amadoras nas Bibliotecas, Casas de
Cultura e em outros equipamentos, o que
sinaliza a transição do modelo da demo-
cratização da cultura para o da democra-
cia cultural. Havia aí a abertura de espa-
ços públicos para a apreciação e fruição
das linguagens artísticas e o incentivo à
participação cultural característicos da
democracia comunitária.
Também nota-se a combinação
de práticas culturais amadoras, verica-
da em atividades como ocinas e cursos.
Desse modo, a política adquiriu caracte-
rísticas que mesclavam os dois paradig-
mas em suas variantes. Sublinhe-se que
a conotação de apoio à arte amadora não
se encontrava explicitada e, a princípio,
não orientava a política de democracia
cultural de São Paulo.
Assim, para além de uma lógica
binária, os dois paradigmas coexistem
em diversos programas e projetos da
SMC. Vista deste ponto de vista, a ex-
pressão “democracia cultural” compor-
taria dois sentidos: o sentido da parti-
cipação (com resultados incipientes) e
o sentido pragmático de colocar bens
culturais à disposição da população
(bastante evidenciado). Assim, a polí-
tica de democracia cultural avançou no
sentido de propiciar ferramentas para
a prática e fruição cultural nos limites
da arte tradicional, o que a aproxima-
ria ao paradigma da democratização
da cultura.
Apesar dos esforços da SMC para
quebrar barreiras administrativas e con-
ceituais, junto com a política de demo-
cratização, e das propostas de criar me-
canismos de participação, incentivando
mudanças da cultura política; apesar de
ampliar os direitos culturais como direito
de cidadania, resultou disso uma política
predominantemente difusionista.
107
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Recebido em 15/12/2017
Aprovado em 20/02/2018
I Valmir de Souza, pós-doutor em Políticas Públicas de
Cultura pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da Universidade de São Paulo/USP, doutor em Teoria
Literária pela USP, professor da Universidade de Guaru-
lhos e coordenador da área de cultura do Instituto Pólis.
Contato: valmir@polis.org.br
108
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Cidade vista de dentro
Ciudad vista desde dentro
City view from inside
Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira
I
Resumo:
O presente artigo busca articular à noção de democracia a de
participação, na perspectiva de aumento da qualidade democrática.
A participação democrática se efetua de maneira concreta no
espaço local, na cidade. A partir da experiência de cogestão de
uma ocupação cultural em Ermelino Matarazzo, firmada entre
coletivos culturais e a Secretaria de Cultura do Município de
São Paulo, através de entrevista com um dos participantes do
movimento, busca-se refletir sobre formas de articulação entre
democracia representativa e democracia participativa, novas
institucionalidades que permitam experimentações, sendo o campo
da cultura privilegiado para isso.
Palavras chave:
Cidade
Democracia
Democracia
Participativa
Políticas Culturais
Equipamentos Culturais
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Resumen:
El presente artículo busca articular a la noción de democracia la de
participación, en la perspectiva de aumento de la calidad democrática.
La participación democrática se efectúa de manera concreta en el
espacio local, en la ciudad. A partir de la experiencia de cogestión
de una ocupación cultural en Ermelino Matarazzo, rmada entre
colectivos culturales y la Secretaría de Cultura del Municipio de
São Paulo, a través de una entrevista con uno de los participantes
del movimiento, se busca reexionar sobre formas de articulación
entre democracia representativa y democracia participativa, nuevas
institucionalidades que permitan experimentos, siendo el campo de
la cultura privilegiado para ello.
Abstract:
This article tries to articulate the notion of democracy and participation
in the perspective of increasing democratic quality. Democratic
participation takes place concretely in local space, in the city. From
the experience of co-management of a cultural occupation in Ermelino
Matarazzo, signed between cultural collectives and the Department
of Culture of the Municipality of São Paulo, through an interview with
one of the participants of the movement, it is sought to reect on forms
of articulation between representative democracy and participatory
democracy, new institutions that allow experimentation, the eld of
culture being privileged for this.
Palabras clave:
Ciudad
Democracia
Democracia Participante
Políticas Culturales
Equipo Culturale
Keywords:
City
Democracy
Participatory
Democracy
Cultural Policies
Cultural Equipment
110
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Cidade vista de dentro
Os viajantes do planalto, os pastores
que transuman os armamentos, os
passarinheiros que vigiam as redes,
os eremitas que colhem raízes, todos
olham para baixo e falam de Irene.
Às vezes, o vento traz uma música
de bumbos e trompas, o crepitar de
morteiros na iluminação de uma festa;
às vezes, o alarido da metralhadora,
a explosão de um paiol de pólvora no
céu amarelado dos incêndios ateados
durante a guerra civil. Os que olham
de lá de cima fazem conjeturas sobre
o que está acontecendo na cidade,
perguntam-se se encontrar-se em Ire-
ne naquela tarde seria bom ou ruim.
Não que tenham intenção de ir – e,
de qualquer modo, as estradas que
descem ao vale são ruins -, mas Irene
magnetiza olhares e pensamentos de
quem está lá no alto.
A esta altura, Kublai Khan espera
que Marco diga como é Irene vista
de dentro. E Marco não pode fazê-
-lo: não conseguiu saber qual é a
cidade que os moradores do planalto
chamam de Irene; por outro lado, não
importa a vista de dentro, seria uma
outra cidade; Irene é o nome de uma
cidade distante que muda à medida
que se aproxima dela.
(Italo Calvino, As cidades invisíveis)
A longa citação de Calvino a abrir
o presente texto nos instiga a imaginar
que vivemos, nós que habitamos cidades
complexas do século XXI, a impossibili-
dade de apreensão do espaço onde ha-
bitamos, processo permanente e mutante
que nos escapa a todo instante. Cada um
reconhece e se reconhece de maneira
singular na cidade, ou desconhece de ma-
neira singular a cidade. É na cidade que
se desenrola a vida, nela se manifesta de
maneira mais visível a complexidade dos
processos contemporâneos. No território
da cidade se dá a cultura ao vivo a par-
tir dos encontros, confrontos, interações,
onde o sujeito e o coletivo se relacionam,
se encontram e confrontam suas diferen-
ças e os diferentes modos de viver, usar
e habitar a cidade. Henri Lefebvre (2001)
há muito aludira ao direito à vida urbana
como local que se habita, obra de partici-
pação e criação coletiva. A cidade como
projeto coletivo parece ser desejo utópico
quando a realidade urbana se move por
interesses privados, pela especulação,
pela ênfase no valor de troca em detri-
mento do valor de uso. Cada sociedade
produz um determinado espaço, destaca
ainda Lefebvre. Vivemos embates perma-
nentes entre diferentes projetos de cidade
que são reexo de embates mais intensos
que se desenrolam na sociedade.
Jacques Rancière em seu livro
Ódio à Democracia, busca compreender
como no interior das supostas sociedades
democráticas uma intelligentsia dominan-
te, que não deseja viver sob outro regime,
acuse diariamente os males causados
pela democracia, “a catástrofe da civiliza-
ção democrática”. Em outras palavras, a
expansão da democracia incomoda, so-
bretudo pelo princípio segundo o qual o
poder de qualquer um para governar, para
adentrar as esferas antes reservadas a
poucos, é seu cerne. A intensidade da vida
democrática, sua ingovernabilidade advin-
da da constante e conitiva expansão que
opera em seu interior, fundamenta seu
governo. Historicamente, a ampliação da
esfera pública signicou o reconhecimen-
to da qualidade de iguais e de sujeitos po-
líticos “àqueles que a lei do Estado repelia
para a vida privada dos seres inferiores”
(RANCIÈRE, 2014, p.73). Da mesma for-
ma, “conseguir que fosse reconhecido o
caráter público de tipos de espaço e de
relações que eram deixados à mercê do
111
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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poder da riqueza” (idem). Signicou a luta
pela armação do caráter público de rela-
ções, instituições e espaços considerados
privados. Na perspectiva de Rancière, a
extensão da igualdade do homem público
a outros domínios da vida comum, sobre-
tudo aos que são governados pela ilimita-
ção capitalista da riqueza, assim como a
rearmação a todos e a qualquer um do
pertencimento à esfera pública são eixos
do movimento democrático, permanente-
mente transgredindo seus próprios limites:
“processo desse perpétuo pôr em jogo,
dessa invenção de formas de subjetivação
e de casos de vericação que contrariam
a perpétua privatização da vida pública”
(ibidem, p.81).
Como desenvolvemos em reexão
anterior, a razão de ser da democracia é
o reconhecimento do outro, o permanen-
te exercício de reconhecimento, e tem
como princípio fundamental a ampliação
dos direitos, cuja matéria prima é o desejo
(RIBEIRO, 2017). A sociedade civil pres-
siona o Estado para que seus direitos se-
jam reconhecidos, ampliados, armados,
congurando a ideia da democracia como
invenção (LEFORT, 2011), como exercí-
cio permanente de criação e subversão,
reinstituindo o social e o político. A demo-
cracia se move e se amplia por meio do
desejo. É o desejo dos sujeitos, com no-
vas lógicas e novas sensibilidades na are-
na pública, que lutam por reconhecimento.
Vivemos, portanto, um fenômeno próprio
do desenvolvimento democrático que é a
constante busca pela ampliação do espa-
ço na arena pública, que advém da multi-
plicidade de desejos. A administração des-
sa diversidade é algo próprio da dinâmica
da democracia e um dos grandes desaos
da gestão democrática. Para dizer de ou-
tra forma, a democracia não chegará a um
momento em que estará consolidada, na
medida em que tem, por princípio, essa
dinâmica de ampliação pelos desejos. A
batalha pelo alargamento da participação
na arena pública por sujeitos e grupos
dela excluídos gera tensões com muitos
daqueles que nela já estão. Há um perma-
nente tensionamento.
Se na contemporaneidade a demo-
cracia se verica também nas redes, no
mundo virtual, em decorrência do desen-
volvimento das tecnologias de informa-
ção e comunicação, é no mundo real, nas
ruas, que ela se consubstancia de manei-
ra potente. As manifestações de sujeitos
e grupos que têm pipocado pelo globo de
maneira mais enfática a partir de 2010,
inserem-se nesse contexto, reetindo a
nova etapa global do desenvolvimento ca-
pitalista assim como o descompasso entre
o Estado e a sociedade civil, seus desejos
e necessidades.
A disjunção entre a sociedade civil
e o Estado tem ganhado proporção, evi-
denciando o esgotamento de instituições
tradicionais das democracias representa-
tivas que não conseguem dar respostas
satisfatórias à sociedade, desvelando a
crise da democracia representativa, que
não dá vazão à multiplicidade de dese-
jos e de voz pública, não mais passíveis
de contenção nos espaços delimitados e
pelas instituições tradicionais. Ao mesmo
tempo, o desejo de conter o incontrolável
tem ampliado os mecanismos de controle
em um mundo que se move pela interco-
nectividade e pela participação. A disjun-
ção só faz aumentar.
O livro de Boaventura Sousa San-
tos, A difícil democracia, tem início com
uma questão: “Para onde vai a democra-
cia?”. Se o período entre 2011 e 2013 foi
dominado por revoltas em diferentes par-
tes do mundo que reivindicavam “demo-
cracia já”, três anos depois domina o de-
sencanto, sustenta o autor. E vai além ao
questionar se “há futuro para a democra-
cia num mundo dominado pelo capitalismo
nanceiro global, pelo colonialismo e pelo
patriarcado nas relações sociais” (SAN-
TOS, 2016, p. 8). A obra é recheada de
112
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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questionamentos e problematizações, as-
sim como de assertivas desconcertantes:
“a segunda década do milênio está domi-
nada, talvez como nunca, pelo monopólio
de uma concepção de democracia de tão
baixa intensidade que facilmente se con-
funde com a antidemocracia”. E continua:
“vivemos em sociedades politicamente de-
mocráticas e socialmente fascistas” (idem,
p.13). A radicalização da democracia, a in-
tensicação de sua densidade, passam,
segundo Boaventura, por uma série de
transformações, das quais destacamos: a
invenção de novas institucionalidades que
permitam articular, nas diferentes escalas
de governança, a democracia representa-
tiva e a democracia participativa; a refor-
mulação do sistema político de maneira a
articular a democracia representativa com
a democracia participativa.
Alternativas possíveis ligam-se à
ampliação de espaços de participação e ex-
perimentação da sociedade civil articulados
às formas de democracia representativa.
Democracia participativa congura-se no
espaço local, nos territórios de vida e ação
dos sujeitos e coletivos, na cidade. Muitos
desses sujeitos e coletivos têm lutado pela
abertura de espaços de participação, pela
ampliação dos limites de ação e experimen-
tação de outras formas de vida que alar-
guem as fronteiras, dia a dia mais rijas.
A cidade como território
de experimentação
Alan Victor Correa, Alvico, artista,
ativista cultural e professor, em entrevista
concedida em outubro de 2016
II
, discorre
sobre sua trajetória no movimento que cul-
minou na Ocupação Cultural de Ermelino
Matarazzo, situada na zona leste da cida-
de de São Paulo
III
. Ingressou na Rede Cul-
tura ZL em 2008, rede cultural que preten-
dia juntar coletivos culturais já ativos na
região e traçar ações organizadas nas di-
ferentes sedes desses coletivos, nas ruas
e nas praças, de forma a potencializar e
dar visibilidade a essas ações, uma delas
constituindo-se na luta por uma Casa de
Cultura no bairro, que fervia com ações
culturais sem espaço público para que pu-
dessem se efetivar (o bairro, densamente
povoado, contava apenas com uma bi-
blioteca pública, fechada para reforma). A
bandeira pela Casa de Cultura se tornou
uma ação de ponta do movimento que ti-
nha como uma de suas táticas os mani-
festos culturais realizados em praças,que
foram dando visibilidade ao movimento. O
desejo e a necessidade zeram com que
a Rede Cultura ZL começasse a articular
alternativas para conquistar a Casa de
Cultura para o bairro. Em parceria com
o poder público, buscaram espaços que
pudessem abrigá-la. Não houve um inte-
resse real do poder público para que se
efetivasse tal conquista para o bairro. Nas
palavras de Alvico:
Ermelino nunca foi colocado muito na
pauta. Quando os coletivos e a Rede
de Cultura ZL entenderam que as coi-
sas não viriam de forma tão bondosa
assim, pensou-se de forma mais au-
tônoma, independente, o que gerou
maior união e maior consciência de
luta entre os grupos. E passou-se de
uma união de agendas para uma jun-
ção de lutas por esse espaço
IV
. Conco-
mitante a isso, a cidade efervescia em
outras lutas. Começou aqui no bairro
a primeira reunião do Movimento Cul-
tural das Periferias, que ainda era o
Fórum de Cultura da Zona Leste, que
encabeçou a Lei de Fomento à Perife-
ria, à cultura da periferia, começou em
Ermelino e se tornou itinerante.
O movimento passou a se inserir
nas lutas da cidade, em pautas mais am-
plas. Perceberam que outros bairros que
também não tinham casas de cultura po-
deriam unir-se para fortalecer o movimen-
to. O Movimento Cultural das Periferias
tinha algumas bandeiras, destacadas por
113
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Alvico: ocupações pela cidade, casas de
cultura, leis de fomento. Em 2013, ocupa-
ram um equipamento público que havia
sediado a Subprefeitura de Ermelino Mata-
razzo, mas havia sido desativado há mais
de dez anos por problemas estruturais no
prédio. A subprefeitura passou a funcionar
em um espaço alugado. Fala Alvico:
Daí a gente tomou a frente, realizou
uma ocupação mesmo, reunimos for-
ças. Inicialmente tivemos a adesão da
subprefeitura, a abertura, que não du-
rou muito por conta da uência das ati-
vidades, da necessidade de ser aberto
mais e ser visível para a população, co-
locar a população aqui dentro também
para interagir e construir conjuntamente
com todo mundo. A subprefeitura trouxe
novamente a questão da condenação
do prédio, que nunca se comprovou
juridicamente; não se acha documento
que comprove a condenação do prédio.
A necessidade da retomada de
ações no território se fez visível e os mani-
festos na praça mostravam-se fundamen-
tais. O Grupo Balaio estava em uma itine-
rância e iria realizar uma apresentação em
Ermelino Matarazzo. O grupo montou um
picadeiro e convidou os coletivos para re-
alizarem uma semana de ocupações con-
juntas. Surgiu a vontade de novas ações e
o picadeiro cou montado por mais de um
ano. Simultaneamente ocorreram diversas
reuniões com a Secretaria de Cultura do
Município de São Paulo, gestão de Nabil
Bonduki
V
, para reconquistar o espaço an-
teriormente ocupado. Houve o reconheci-
mento da Secretaria Municipal de Cultura
da ocupação e, posteriormente, da Sub-
prefeitura de Ermelino Matarazzo, a quem
o equipamento está vinculado. Havia trami-
tações em curso para que o equipamento
fosse transferido para a Secretaria Munici-
pal de Cultura em caráter permanente
VI
.
O prédio continua na gestão da Sub-
prefeitura com uma concessão ao
Movimento Cultural Ermelino Mata-
razzo e há um reconhecimento pelo
copatrocínio da Secretaria Municipal
de Cultura para fazer com que a coisa
aconteça, sendo estruturado nancei-
ramente também. Prevê uma cogestão
do equipamento entre a Secretaria e
os coletivos. Quem faz a gerência jun-
to ao Movimento é o Periferia Invisível,
coletivo já institucionalizado, que pode
receber recursos e prestar contas. O
projeto que nós enviamos foi reconhe-
cido como um modelo para as casas de
cultura do município; não foi implemen-
tado pela impossibilidade de gerir todas
as casas de cultura dessa forma.
Seria ideal para as casas de cultura
que só dispõem de um coordenador
e dois funcionários, no máximo. Então
essa é a estrutura atual. É precário
também. O que nós temos aqui são
diversos coletivos, diversas forças,
diversos equipamentos, e a possibili-
dade de remunerar a produção cultu-
ral local. Reconhecer quem produz,
quem faz no bairro, que é importante,
quem vem de fora, quem vê de cima,
não consegue enxergar. Como nós já
atuamos, isso está sendo valorizado
agora. Daí o possível reconhecimen-
to de um modelo de gestão de outros
equipamentos públicos. Mas é uma
luta grande para quebrar todo esse
coronelismo que temos em outras lo-
calidades, em outros bairros.
Há um diálogo forte da Secretaria para
que a subprefeitura dê essas conces-
sões constantemente. Mas isso é uma
visão política dessa gestão. A gente sabe
que não é uma visão política do poder lo-
cal, e historicamente nunca foi da gestão
que irá assumir
VII
. Então vai ser uma luta
zerada para 2017, é a nossa perspecti-
va. Mas acreditamos que nesses meses
a gente consiga ncar algumas raízes
aqui, com visibilidade pública.
A entrevista de Alvico nos permite
compreender novas dinâmicas nas rela-
114
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ções entre coletivos culturais, nesse caso
situados na Cidade de São Paulo, e a
Secretaria Municipal de Cultura, em uma
gestão que se abriu para um diálogo mais
largo com as dinâmicas da cidade, com
grupos, sujeitos e coletivos que reivindi-
cavam, desde muito antes, um olhar mais
atento à sua ação, às suas pautas e aos
gargalos que impediam o desenvolvimen-
to de ações culturais em territórios pouco
atingidos pelas políticas públicas, como
são as periferias da cidade.
A perspectiva anteriormente de-
senvolvida, de articulação entre formas de
democracia representativa e participativa -
articulação fundamental para a intensica-
ção da qualidade democrática, na esteira
do pensamento de Boaventura de Sousa
Santos, congura-se claramente no experi-
mento embrionário de modelo de cogestão
criado e proposto pelo Movimento Cultural
Ermelino Matarazzo. A Ocupação Cultural
Ermelino Matarazzo deu visibilidade à luta
pela Casa de Cultura e, apesar da impor-
tância da ocupação, ainda operava com
poucos recursos, em espaço que neces-
sitava de ampla reforma para atender aos
desejos e necessidades do bairro. A Secre-
taria Municipal de Cultura mostrou-se sen-
sível, mas não articulou com força neces-
sária para que se garantisse a permanência
da parceria com a mudança de governo.
A gestão seguinte, do prefeito João
Dória, que tem como secretário de cultu-
ra André Sturm, confrontou os movimen-
tos culturais da periferia desde seu início,
tendo protagonizado um episódio em tudo
execrável, quando o secretário ameaçou
“bater na cara” de Gustavo Soares, inte-
grante do Movimento Cultural Ermelino
Matarazzo, em reunião organizada pela
Secretaria, em maio de 2017, poucos me-
ses depois de seu início. Uma das pautas
era justamente a renovação do contrato
para a continuidade das ações da Ocupa-
ção Cultural Ermelino Matarazzo, segundo
o Secretário sem previsão orçamentária
para que as atividades fossem mantidas,
sugerindo a adoção do pagamento de par-
te das atividades desenvolvidas e a im-
plantação de um café. Resposta de Gus-
tavo Soares à proposta: “Não vejo como
vantagem nenhuma a gente burocratizar
um processo, que está de forma autôno-
ma, articulando o movimento. (...) sincera-
mente, a proposta não me agradou”
VIII
.
Neste nal de setembro de 2017,
a Ocupação está ameaçada de reinte-
gração. Não há nenhuma perspectiva da
atual gestão para a articulação que se
operou anteriormente, que não cabe no
projeto neoliberal delineado, deixando
evidente a fragilidade das políticas de go-
verno, facilmente desmontadas. A tensão
anteriormente aludida advinda da luta pelo
alargamento da participação na arena pú-
blica por sujeitos e grupos dela excluídos,
que reete projetos políticos antagônicos,
evidencia-se claramente.
Alvico centra sua fala na perspecti-
va da organicidade da cultura por quem a
produz, o que signica que a participação
dos “próprios fazedores” é fundamental.
Diz ele: “sempre há um pensamento pater-
nalista ou até scalizador, censurador, de
que as gestões têm que estar nas mãos
deles”. A ação no campo da cultura permi-
te experimentações que transbordam para
outros campos. Arma ainda:
O movimento cultural, nas suas ações
culturais, artísticas, expressa muito
fortemente essas visões políticas. Eu
acho que se antigamente os partidos
conseguiam estruturar e ter a fala polí-
tica, hoje os movimentos culturais ga-
nham muito mais esse panorama. Tem
a música, tem o sarau, no sarau as
poesias versam fortemente sobre as
transformações, a revolução, o povo
periférico fortemente político. O hip
hop é importante, sempre foi impor-
tante para a periferia, e esses espaços
acabam sendo acolhidos e acolhem
115
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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todas essas vertentes. E acho que é
isso, eu vejo como as novas trinchei-
ras. Não é nova, mas é o que está se
consolidando, não mais de forma se-
cundária, mas essencialmente o fator
principal, primário para a transforma-
ção política, pois acho que o país vem
ganhando alguns cenários negativos,
mas também positivos em algumas
áreas, em algumas partes.
Alvico faz referência ainda ao fato
de que muitos dos integrantes dos movi-
mentos da periferia passaram por progra-
mas da própria Secretaria de Cultura do
Município de São Paulo, como o Programa
Vai – Programa para a Valorização de Ini-
ciativas Culturais, criado em 2003, a par-
tir de projeto de lei apresentado por Nabil
Bonduki em uma das suas gestões como
vereador, “com a nalidade de apoiar -
nanceiramente, por meio de subsídio, ati-
vidades artístico-culturais, principalmente
de jovens de baixa renda e de regiões do
Município desprovidas de recursos e equi-
pamentos culturais”, que tem como um de
seus objetivos o estímulo às dinâmicas
culturais locais e à produção artística, im-
plantado em 2004. Muitos desses jovens
receberam formação e subsídios para de-
senvolver ações culturais e artísticas atra-
vés de programas como o VAI
IX
e o Progra-
ma Vocacional
X
, que foram estimulantes
para a criação de redes e coletivos, mas
que são voltados à iniciação artística e dei-
xam uma lacuna quando termina o período
coberto pelos programas, não oferecendo
alternativas aos jovens que gostariam de
desenvolver atividades no campo cultural
de maneira prossionalizada.
Como grupos jovens, surgidos direta-
mente de políticas públicas desenvolvi-
das na periferia, como o Núcleo Voca-
cional e Programa VAI, questionamos:
o não reconhecimento dos artistas jo-
vens enquanto produtores de cultura;
a falta de uma política de desenvolvi-
mento e fomento cultural a longo prazo
voltada aos jovens, que contemple as
quatro esferas fundamentais em um
trabalho artístico: formação, produção,
difusão e pesquisa; a mercantilização
da cultura por parte das políticas de
isenção scal, que ao entregar a tare-
fa de fomentar as artes às logicas do
mercado diculta ainda mais o acesso
aos recursos por parte das iniciativas
jovens; [...] o preconceito com relação
aos méritos artísticos dos projetos so-
cioculturais realizados em comunidade,
tidos frequentemente como assisten-
cialistas e rotulados como esteticamen-
te inferiores; a diculdade de rmar
parcerias para obtenção de espaços
físicos/sedes em longo prazo, para o
desenvolvimento de projetos agrava-
dos pelo preconceito em relação ao jo-
vem considerado despreparado, inca-
pacitado, irresponsável, etc. (Manifesto
Policêntrico da Rede Livre Leste, 2010,
apud MAIA, 2014, p. 59).
Tentando resolver uma parte do
problema, foi criado o Programa VAI 2,
sancionado pelo Prefeito Fernando Ha-
ddad em novembro de 2013, para dar
continuidade às ações de jovens já fo-
mentados pelo VAI. “O programa passou
a ser dividido em duas categorias: VAI I,
destinada a grupos e coletivos compos-
tos de pessoas físicas, jovens entre 18 e
29 anos, de baixa renda; e VAI 2, que é
destinada a grupos e coletivos compos-
tos por jovens ou adultos de baixa ren-
da, que tenham, no mínimo, dois anos de
atuação em localidades com alto índice
de vulnerabilidade, desprovidas de recur-
sos e equipamentos culturais”
XI
. A pres-
são de coletivos e grupos para abertura
crescente de espaços de participação e
aporte de recursos, em oposição ao lou-
vor à precariedade, culminou na Lei de
Fomento à Periferia, sancionada em julho
de 2016. Sobre isso comenta Alvico:
Eu acho que a Lei de Fomento à Pe-
riferia é uma revolução nesse sentido,
116
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ela vem dar condições em um ou dois
anos para que esse fazedor consiga
sobreviver das suas práticas. Então
eu vejo assim: o VAI 1 revolucionário,
o VAI 2 como uma continuação dessa
revolução, mas há uma lacuna ainda
para se tornar protagonista. O VAI teve
essa intenção, agora é preciso criar
outros mecanismos, a Lei de Fomento
está aí, não sei se ela vai conseguir
abarcar, agregar toda essa transfor-
mação, se ela será reconhecida, e
temos a troca de gestão, acreditando
que o movimento cultural das perife-
rias não vai se dar por satisfeito, cien-
te de que a coisa ainda não caminhou
para efetivação; mas acho que é isso,
chegamos ao nível em que esse tipo
de fomento precisa subir outro degrau.
O primeiro edital previa repasses da
ordem de nove milhões de reais a trinta e
um grupos, cujas atividades teriam início
em 2017. Em agosto de 2017 a Secretaria
Municipal de Cultura publicou uma notícia
de paralisação do segundo edital por solici-
tação do Tribunal de Contas do Município,
que pedia esclarecimentos. Como se vê, a
continuidade do processo está em risco.
Falas Ampliadas
“A contemporaneidade é o momen-
to em que certa memória coletiva de opres-
são se transmuta em antecipação coletiva
de uma alternativa possível” (SANTOS,
2016, p.167).
A experiência embrionária do mo-
delo de cogestão de um equipamento cul-
tural na periferia de São Paulo, nos per-
mite vislumbrar alternativas aos modelos
instituídos, anada a formas que ampliem
a qualidade da democracia no século XXI,
enorme desao que estamos instados a
enfrentar. À ideia de representação pode-
-se somar a ideia de apresentação, de pro-
dução da presença, que se refere à ação,
à ação de corpos nos espaços praticados,
tornados territórios. Milton Santos nos aler-
tou para o fato de que “o território são for-
mas, mas o território usado são objetos e
ações, sinônimo de espaço humano, espa-
ço habitado” (SANTOS, 2005, p. 255).
Da ideia de sujeitos tutelados, pas-
samos a uma compreensão alargada de
que vivemos em sociedades de falas am-
pliadas (MARTÍN-BARBERO, 2014), falas
que saem dos lugares de autoridade e dos
lugares de poder e ampliam-se, tornando-
-se audíveis. As maneiras de apresentar-
-se e apresentar o mundo estão em mu-
tação, em tensão. O alerta de Boaventura
para os rumos fascistas que parecem guiar
as sociedades democráticas na atualidade
nos deveria servir para repensar formas de
ampliação dos espaços de participação,
de presença dos sujeitos nas decisões
que dizem respeito ao futuro das cidades
com vistas à transformação da sociedade.
A experimentação de novos arranjos e ar-
ticulações, com amplo protagonismo dos
cidadãos, é caminho a ser trilhado.
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VI Nº 16 (enero-abril 2005), Buenos Aires, CLAC-
SO, 2005.
Agradecimento especial à Alan Victor Correa,
Alvico, pela acolhida na Ocupação Cultural Er-
melino Matarazzo e pela entrevista concedida
em outubro de 2016.
Recebido em 22/11/2017
Aprovado em 25/02/2018
I Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira. Doutora em Ciência
da informação pela Universidade de São Paulo / USP,
professora da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Contato: mbol.lucia@gmail.com
II A entrevista faz parte de um projeto por mim desen-
volvido em 2016, dentro do Programa Ano Sabático do
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
Paulo em parceria com a Pró-Reitoria de Pesquisa. Um
dos resultados da pesquisa foi a produção do lme “Di-
nâmicas, utuações e pontos cegos”, em parceria com
a cineasta Priscila Lima, com 24’ de duração, disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=2LmLi9XGPCU.
III A Zona Leste é a região mais populosa da capital
paulista, segundo o Datafolha. São 3,9 milhões de habi-
tantes, cerca de 35% dos moradores de São Paulo, de
acordo com o IBGE. Ermelino Matarazzo apresenta den-
sidade populacional de 13.059 habitantes por Km². 97%
dos moradores não trabalham no distrito e a renda média
de 67% da população é de até R$ 1.550,00 (fonte: http://
www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2012/09/1154226-o-
-que-pensa-a-regiao-mais-populosa-da-cidade-de-sao-
-paulo.shtml - Acesso 28/09/2017).
IV O entrevistado se refere à Ocupação Cultural Ermeli-
no Matarazzo, local onde foi realizada a entrevista.
V Nabil Bonduki foi Secretário de Cultura, 2015-2016,
na gestão do prefeito Fernando Haddad (2013-2016),
sucedendo o secretário Juca Ferreira e antecedendo a
gestão de Maria do Rosário Ramalho (2016).
VI Apesar das tramitações e das promessas, a gestão
de Fernando Haddad não ocializou o acordo.
VII O entrevistado se refere à gestão do Prefeito João
Dória, do PSDB, que assumiu em janeiro de 2017.
VIII Fonte: sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,vou-
-quebrar-a-sua-cara-diz-secretario-da-cultura-de-doria-
-a-ativista,70001818838. Acesso em 28/09/2017.
IX O Programa Vai prioriza jovens de baixa renda com
idade entre 18 e 29 anos em regiões desprovidas de
recursos e de equipamentos culturais. Repassa os re-
cursos para pessoas físicas, de maneira a atender a
população jovem não formalmente constituída, desburo-
cratizando o processo. Ver http://programavai.blogspot.
com.br/p/sobre-o-vai.html
X “O Programa Vocacional, existente na cidade de São
Paulo desde 2001, tem como objetivo a instauração de
processos criativos emancipatórios por meio de práticas
artístico-pedagógicas. Nesse contexto, abrem possibili-
dades de o indivíduo se tornar sujeito de seus próprios
atos e seus próprios percursos. Para tanto, essas prá-
ticas artístico-pedagógicas buscam a apropriação dos
meios e dos modos de produção ao instaurar novas
formas de convivência, territórios de aprendizado e de
transformação mútua”. Acessível em http://www.prefei-
tura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/formacao/
vocacional/index.php?p=7548. Acesso em 29/09/2017.
XI Acessível em http://polis.org.br/noticias/prefeito-de-
-sao-paulo-anuncia-o-vai-2-programa-de-incentivo-a-
-cultura/. Acesso em 29/09/2017.
118
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Modelos de formação de agenda na análise de políticas públicas
aplicados à cultura: o caso do projeto de Reestruturação do Acervo
da Pinacoteca de São Bernardo do Campo
Modelos de capacitación en el análisis de las políticas públicas
aplicadas a la cultura: el caso del proyecto de reestructuración
de la colección de la Pinacoteca de São Bernardo do Campo
Models for training schedules in the analysis of public policies
applied to culture: the case of the restructuring project of the collection
of the Pinacoteca of São Bernardo do Campo
Lúcio Nagib Bittencourt
I
Mayra C. A. Oliveira
II
Resumo:
Este artigo discute a reestruturação do Acervo da Pinacoteca Municipal
de São Bernardo do Campo, realizada de dezembro de 2016 a novembro
de 2017, com recursos provenientes do Programa de Ação Cultural do
Governo do Estado de São Paulo (ProAC). A questão levantada é se a
entrada de recursos estaduais via Edital ProAC gerou desdobramentos
para além do projeto, inserindo-o na agenda pública governamental,
como problema público relevante para o município. Para respondê-la,
mobilizamos referenciais teóricos relacionados ao estudo de formação
de agenda na análise de políticas públicas, especicamente as teorias
dos Múltiplos Fluxos e do Equilíbrio Interrompido. Além dessa revisão
bibliográca, os métodos utilizados envolveram a realização de
análise do documento submetido ao Edital nº19/2016 - disponível para
acesso público, pesquisa documental para o levantamento de dados
quantitativos e entrevista semiestruturada com a coordenadora do
projeto. Os resultados indicam que embora não seja possível armar
que o projeto em discussão tenha entrado na agenda municipal, ele foi
desenvolvido e gerou desdobramentos. Com isso, ao nal, levantamos
questionamentos acerca das contribuições e limites associados à
mobilização desse referencial teórico para análise de políticas públicas,
buscando contribuir para estudos futuros de diferentes formas de ação
pública – em especial, as culturais.
Palavras chave:
Políticas Públicas
Análise de Políticas
Públicas
Cultura
ABC Paulista
Pinacoteca Municipal de
São Bernardo do Campo
119
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Resumen:
Este artículo discute la reestructuración del Acervo de la Pinacoteca
Municipal de São Bernardo do Campo, realizada de diciembre de
2016 a noviembre de 2017, con recursos provenientes del Programa
de Acción Cultural del Gobierno del Estado de São Paulo (ProAC). La
cuestión planteada es si la entrada de recursos estadales vía Edital
ProAC generó desdoblamientos más allá del proyecto, insertándolo en
la agenda pública gubernamental, como problema público relevante
para el municipio. Para responderla, movilizamos referenciales teóricos
relacionados al estudio de formación de agenda en el análisis de
políticas públicas, especícamente las teorías de los Múltiples Flujos
y del Equilibrio Interrumpido. Además de esta revisión bibliográca,
los métodos utilizados involucraron la realización de análisis del
documento sometido al Edicto nº19 / 2016 - disponible para acceso
público, investigación documental para el levantamiento de datos
cuantitativos y entrevista semiestructurada con la coordinadora del
proyecto. Los resultados indican que aunque no es posible armar
que el proyecto en discusión haya entrado en la agenda municipal, fue
desarrollado y generado desdoblamientos. Con eso, al nal, planteamos
cuestionamientos acerca de las contribuciones y límites asociados a
la movilización de ese referencial teórico para el análisis de políticas
públicas, buscando contribuir a estudios futuros de diferentes formas
de acción pública - en especial, las culturales.
Abstract:
This article discusses the restructuring of the Collection of the Municipal
Pinacoteca of São Bernardo do Campo, from December 2016 to
November 2017, with resources coming from the Program of Cultural
Action of the Government of the State of São Paulo (ProAC). The
question raised is whether the entry of state resources through Edital
ProAC generated developments beyond the project, inserting it into
the public agenda, as a public problem relevant to the municipality. To
answer this question, we mobilized theoretical references related to the
study of agenda formation in the analysis of public policies, specically
the Theories of Multiple Streams and Interrupted Equilibrium. In addition
to this bibliographic review, the methods used involved the analysis of the
document submitted to ProAC nº. 19/2016 - available for public access,
documentary research for the collection of quantitative data and semi-
structured interview with the project coordinator. The results indicate that
although it is not possible to say that the project under discussion has
entered the municipal agenda, it has been developed and generated
unfolding. With this, in the end, we raise questions about the contributions
and limits associated to the mobilization of this theoretical framework for
public policy analysis, seeking to contribute to future studies of different
forms of public action - especially cultural ones.
Palabras clave:
Políticas Públicas
Análisis de Políticas
Públicas
Cultura
ABC Paulista
Pinacoteca Municipal de
São Bernardo do Campo
Keywords:
Public Policies
Analysis
of Public Policies
Culture
ABC Paulista
Pinacoteca Municipal de
São Bernardo do Campo
120
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Modelos de formação de agenda
na análise de políticas públicas
aplicados à cultura: o caso do projeto
de Reestruturação do Acervo da
Pinacoteca de São Bernardo do Campo
III
Introdução
O presente artigo discute o projeto
de reestruturação do Acervo da Pinacoteca
de São Bernardo do Campo, realizada de
dezembro de 2016 a novembro de 2017,
com recursos provenientes do Programa
de Ação Cultural do Governo do Estado
de São Paulo (ProAC). Uma iniciativa que
parte da sociedade civil em conjunto com
a administração pública e fomento estadu-
al, a m de buscar novas soluções para a
melhoria deste espaço.
A questão levantada é se a entra-
da de recursos estaduais via Edital ProAC
gerou desdobramentos para além do pro-
jeto, inserindo-o na agenda pública gover-
namental como problema público relevan-
te para o município.
Para essa discussão, mobilizamos
a literatura de análise de políticas públicas,
tendo o ciclo como referência para essas
análises, especicamente, a ideia de forma-
ção de agenda. Portanto, neste artigo, como
parte da revisão bibliográca, escolhemos
como referências a teoria dos Múltiplos Flu-
xos, do autor John Kingdon, e do Equilíbrio
Interrompido, dos autores Baumgartner e
Jones, por estas buscarem responder por
que determinado assunto se torna tão im-
portante a ponto de transformar-se em pau-
ta de discussão de um governo enquanto
outros nunca chegam a ser notados.
Além da revisão bibliográca, tam-
bém foram realizados outros três proce-
dimentos metodológicos. Sendo eles: 1)
análise documental do projeto submetido
ao Edital nº19/2016, disponível para acesso
público, a m de levantar o panorama histó-
rico que circunscreve a ação de reestrutura-
ção. 2) levantamento de dados quantitativos
sobre o ProAC, através do Boletim UM, o
qual apresenta números referentes aos 10
anos da modalidade de fomento “editais”.
3) Entrevista semiestruturada com Caroline
Silvério, propositora e coordenadora do pro-
jeto, com o objetivo de levantar informações
sobre o desenvolvimento desse após apro-
vação do recurso, a m de vericar se as ex-
pectativas descritas no documento submeti-
do inicialmente estavam sendo alcançadas
e em caso negativo, por quais motivos.
Este trabalho está dividido em qua-
tro partes além desta introdução. Primeiro é
apresentado o Programa de Ação Cultural,
ProAC e o estudo de caso deste artigo, o
Projeto de Reestruturação do Acervo da Pi-
nacoteca de São Bernardo do Campo, com
base na análise documental e entrevista. A
segunda parte consiste na revisão biblio-
gráca, à luz dos modelos de formação de
agenda dos Múltiplos Fluxos e do Equilíbrio
Interrompido. Terceiro é realizada a discus-
são do caso apresentado à luz das teorias
previamente abordadas. Ao nal, na conclu-
são, são apresentados os resultados da aná-
lise e levantados questionamentos acerca
das contribuições e limites associados à mo-
bilização desse referencial teórico para aná-
lise de políticas públicas, buscando contribuir
para estudos futuros de diferentes formas de
ação pública – em especial, as culturais.
1. Programa de Ação Cultural (ProAC) e
o Projeto Reestruturação do Acervo da
Pinacoteca de São Bernardo do Campo
1.1 ProAC
Originalmente nomeado PAC, o
atual Programa de Ação Cultural (Pro-
AC) foi instituído no dia 20 de fevereiro de
2006, pela Lei nº 12.268, ligado à Secre-
taria de Cultura do Estado de São Paulo.
121
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Esse programa tem como objetivos prin-
cipais apoiar, patrocinar e difundir o patri-
mônio do Estado, fomentando a diversida-
de assim como a proliferação de espaços
voltados para a produção cultural.
Desde a sua criação, o programa
está disponível em duas modalidades:
ICMS e Editais. A primeira delas, estabele-
ce um mecanismo de renúncia scal com
o objetivo de atrair investimentos privados
para a produção cultural no Estado, con-
forme descrito na própria lei:
O contribuinte do Imposto sobre Ope-
rações Relativas à Circulação de
Mercadorias e sobre Prestações de
Serviços de Transporte Interestadual
e Intermunicipal e de Comunicação –
ICMS poderá, nos termos e condições
estabelecidos pelo Poder Executivo,
destinar a projetos culturais creden-
ciados pela Secretaria de Estado da
Cultura parte do valor do ICMS a re-
colher, apurado nos termos do artigo
47 da Lei no 6.374, de 1o de março de
1989. (SÃO PAULO, 2006, s/p)
Já a segunda modalidade, de acor-
do com site da Secretaria do Estado de
São Paulo
IV
, envolve o lançamento anual
de concursos por meio de editais de sele-
ção pública de projetos e ações culturais
desenvolvidas no estado conforme dire-
cionamento destacado em cada um deles
e organizado pela SEC-SP. Uma comis-
são formada por cinco prossionais espe-
cializados é responsável pela escolha dos
vencedores e dos suplentes em cada con-
curso. Os recursos, provenientes do orça-
mento da Secretaria, são repassados di-
retamente aos proponentes selecionados,
sem necessidade de captação de patrocí-
nios. Por esses motivos, o ProAC Editais é
mais acessível a projetos de menor porte
V
.
Como regra principal para concorrer
aos recursos, os proponentes devem resi-
dir no Estado de São Paulo há pelo menos
2 anos e os projetos devem ser destinados
à atividades culturais independentes, de
caráter privado, entre de 20 segmentos: Te-
atro, Artes Cênicas; Audiovisual; Festivais,
Difusão; Música; Dança; Produção Literária
e Leitura; Multidisciplinares; Circo; Culturas
tradicionais; Artes Visuais; Patrimônio; Hip
Hop; Museus; LGBT; Culturas Negras; Cul-
turas Indígenas; Saraus Culturais; Espe-
ciais e Digital. Como contrapartida ao valor
cedido pelo governo, o projeto contempla-
do deve oferecer atividades culturais aces-
síveis para a população.
Esta política pública completou 10
anos ininterruptos no ano de 2016, tra-
zendo números interessantes. De acordo
com os dados coletados pelo Boletim UM,
realizada pela Unidade de Monitoramento
da Secretaria da Cultura de São Paulo, de
2006 a 2015, na modalidade Editais, fo-
ram investidos um total de 252 milhões de
reais, aplicados à 4.863 projetos. A partir
do ano de 2014 foi superada a marca de
40 editais por ano, apresentando uma mé-
dia superior à 3 editais por mês
VI
.
O documento em questão também
levanta dados interessantes acerca das
categorias e regiões do estado contem-
pladas pelo fomento. De acordo com os
resultados do Boletim UM os segmentos
menos contemplados são Patrimônio, Mu-
seus, LGBT, Culturas Negras, Culturas
Indígenas, Saraus Culturais, Especiais e
Digitais. Em relação às regiões, é possí-
vel perceber que com o passar dos anos a
verba vem a cada ano sendo melhor dis-
tribuída dentro do território do Estado de
São Paulo. Uma preocupação do progra-
ma, que no ano de 2015 institui uma nova
regra aos editais, os quais 50% são desti-
nados a projetos fora da Capital Paulista.
Na próxima seção abordaremos um
Edital em especíco, da categoria Museus,
que selecionou um projeto localizado na
cidade de São Bernardo do Campo, apre-
sentado como estudo de caso deste artigo.
122
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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1.2 Projeto Reestruturação do Acervo
da Pinacoteca de São Bernardo do Campo
No ano de 2016, a modalidade Pro-
AC Editais recebeu mais de 5 mil propostas,
selecionando 374 projetos para receber os
benefícios nanceiros. Entre os seleciona-
dos encontra-se o projeto Reestruturação
da Reserva Técnica da Pinacoteca de São
Bernardo do Campo, dentro da modalidade
Preservação de Acervos Museológicos, o
tema de análise deste artigo.
As informações abaixo serão apre-
sentadas com base no documento subme-
tido ao Edital ProAC nº 19/2016
VII
. Nossa
análise buscou levantar, a partir do proje-
to, o panorama histórico que circunscreve
a ação de reestruturação. Durante a análi-
se do documento, também foram incluídas
referências de reportagens locais; não por
sua representatividade, mas por estarem
de alguma forma presentes no cotidiano
de um dos autores deste trabalho.
Para complementar as informações
descritas no documento, foi realizada uma
entrevista semiestruturada com a coorde-
nadora do projeto, Caroline Silvério, com
objetivo levantar informações sobre o de-
senvolvimento do projeto após aprovação
do recurso, a m de vericar se as expec-
tativas descritas no documento submetido
inicialmente estavam sendo alcançadas
e em caso negativo, por quais motivos. A
partir da entrevista foi possível compreen-
der os objetivos supracitados e também os
desdobramentos do projeto, que vão além
do que é apresentado no documento.
De acordo com o documento, a Pi-
nacoteca Municipal de São Bernardo do
Campo é um espaço que nasce em 1975,
institucionalizando o acervo que vinha
sendo construído por João Delijaicov Fi-
lho desde meados da década de 1960. O
desenvolvimento econômico da cidade de
São Bernardo do Campo possibilitou a cria-
ção de núcleos voltados à arte e à cultura
na região do Grande ABC – notadamente
em Santo André, São Bernardo do Campo
e São Caetano do Sul – dentre eles Salões
de Arte renomados, como o Salão de Arte
Luiz Sacilotto, e a própria Pinacoteca.
De 1975 a 2008 João Delijaicov Fi-
lho esteve à frente da Pinacoteca como
administrador e, a partir de 2009 até 2015,
como curador – cargo até então inexisten-
te. Este espaço constituiu um rico acervo
por meio de aquisições nos Salões de Arte
da Região do ABC, doações de artistas e
suas famílias e aquisições por parte do
poder público. Atualmente conta com um
conjunto de 1382 obras.
A partir da entrevista semiestrutura-
da realizada com Caroline Silvério, foi pos-
sível levantarmos informações sobre o fun-
cionamento da Pinacoteca como instituição
pública e sobre o desenvolver do projeto.
Ao nal do ano de 2016, o cargo de cura-
dor foi comissionado a Thomaz Pacheco,
galerista e empreendedor do ciclo das ar-
tes visuais
VIII
. De acordo com Caroline Sil-
verio, historiadora, ex-mediadora da OMA
Galeria
IX
, atual servidora da Universidade
Federal do ABC e propositora do projeto,
nesse momento de transição Thomaz Pa-
checo começou a levantar os pontos que
mereciam maior atenção dentro da Pinaco-
teca de São Bernardo do Campo, para que
uma reforma institucional começasse a ser
feita a partir de 2017 – pois até então todas
as ações da Pinacoteca Municipal não pos-
suíam um planejamento a longo prazo, es-
tando intimamente ligadas à gura do João
Delijaikov Filho e suas relações pessoais,
por conta da falta de recursos nanceiros e
humanos da instituição.
Externamente, o município de São
Bernardo do Campo no ano de 2016 es-
tava em processo de construção e apro-
vação de um Plano Municipal de Cultura
X
, documento responsável por orientar as
políticas públicas culturais no município pe-
los próximos dez anos, o qual vinha sendo
123
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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desenvolvido a partir de mecanismos para
a promoção da participação social
XI
. Sem
o Plano, o Município não poderia aderir ao
Sistema Nacional de Cultura (SNC), por
meio do qual são promovidas políticas pú-
blicas culturais em regime de colaboração
entre os três entes federados e a socieda-
de civil
XII
. Fazer parte do SNC viabilizaria o
acesso a repasses de verbas do governo
federal, aumentando as possibilidades de
investimento em cultura. Consequente-
mente, a adesão poderia também contri-
buir para ampliar as ações da Pinacoteca e
a realização de reformas estruturais.
De acordo com a entrevista, em pa-
ralelo à transição de cargos de curadoria
na Pinacoteca, Caroline Silverio vinha par-
ticipando individualmente, de algumas ati-
vidades propostas pelo Sistema Estadual
de Museus de São Paulo (SISEM-SP), a
m de expandir sua formação prossional.
Ao participar do Encontro Paulista
de Museus, atividade proposta anualmen-
te pelo SISEM
XIII
, Caroline Silvério entrou
em contato com o ProAC, tomando cons-
ciência que por meio dessa política esta-
dual de fomento era possível submeter
projetos vinculados a Museus e Patrimô-
nios e captar recursos, independente do
Município ou do Governo Federal.
Sendo assim, essa acionou Tho-
maz Pacheco e João Delijaicov
XIV
, apre-
sentando-lhes uma possibilidade para dar
início as reformas previstas para a insti-
tuição, submetendo ao ProAC uma pro-
posta de trabalho a qual contemplaria a
reestruturação física do acervo da Pina-
coteca de São Bernardo do Campo, com
os objetivos, como consta no projeto, de:
conceber uma política de acervo; realizar
a reforma estrutural da Reserva Técnica
e do Laboratório de Conservação; higieni-
zar as obras; catalogar o acervo; conceber
uma política de segurança para o espaço;
e, por m, realizar uma exposição com as
obras do acervo (Silverio, 2016, s/p). To-
das essas etapas seriam cumpridas den-
tro do prazo de 10 meses e estariam den-
tro do orçamento proposto de 75 mil reais.
Caroline Silverio, por até então não
possuir nenhum vínculo institucional com
a Prefeitura, como exigido no Parágrafo
único do Artigo 8º da Lei 12.268
XV
que Ins-
titui o Programa de Ação Cultural – PAC,
atualmente ProAC, assume a posição de
propositora do projeto, elencando como
integrantes 5 funcionários da Prefeitura
Municipal de São Bernardo do Campo,
envolvidos com o espaço e com o tema
em questão: Priscila Xavier, então vincula-
da ao Departamento de Patrimônio e Me-
mória, e que seria responsável por coor-
denar a concepção e formação da política
de acervo; Luana Aparecida Neves Seve-
riano, bibliotecária da Prefeitura, respon-
sável por coordenar as atividades de hi-
gienização e catalogação das obras; João
Delijaicov Filho, no projeto nomeado como
curador da instituição por estar em perí-
odo de transição de cargos, responsável
por monitorar os trabalhos de catalogação
e acondicionamento; Jefferson Carvalho
dos Santos, agente de biblioteca e arqui-
vo, responsável por higienizar, catalogar
e acondicionar as obras; Marcelo Oliveira
Koch, auxiliar de biblioteca e também res-
ponsável por higienizar, catalogar e acon-
dicionar as obras (SILVÉRIO, 2016, s/p).
Posteriormente à concepção e sub-
missão do documento, Caroline Silverio
toma posse como técnica administrativa
na Universidade Federal do ABC, em ju-
lho de 2016, e, em sua perspectiva, co-
meça a pensar possíveis parcerias caso
ganhassem o Edital.
A missão da Universidade Federal
do ABC, como consta no seu Plano de De-
senvolvimento Interno 2013 - 2022 é “Pro-
mover o avanço do conhecimento através
de ações de ensino, pesquisa e extensão,
tendo como fundamentos básicos a inter-
disciplinaridade, a excelência e a inclusão
124
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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social” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO
ABC, 2013, p.4). Tratando-se especi-
camente da extensão, o PDI arma que
“entende-se a extensão como uma por-
ta permanentemente aberta, que permite
que a universidade interaja de forma or-
gânica estrutural com a sociedade” (Idem,
p.70) e “entre as diretrizes levantadas por
atores internos e externos inclui-se a valo-
rização de projetos sobre a identidade e a
memória regional” (Idem, p.72). Ou seja,
promover a integração entre a Universida-
de e o espaço da Pinacoteca atenderia às
expectativas do Plano de Desenvolvimen-
to Interno, e fortaleceria o vínculo regional.
O projeto submetido ao ProAC foi
nalmente aprovado em dezembro de
2016. Além dos integrantes formais – os
cinco servidores públicos -, uma equipe
de 20 voluntários
XVI
foi formada a partir
de projeto de extensão desenvolvido pela
universidade, tendo então como partici-
pantes estudantes e professores da UFA-
BC, além de membros da sociedade civil.
Entretanto, houve mudanças políti-
cas em 2017. A Prefeitura que nos últimos
dois mandatos vinha sendo comandada
por Luiz Marinho, do Partido dos Trabalha-
dores (PT), passou a contar com Orlando
Morando como Prefeito, do Partido da So-
cial Democracia Brasileira (PSDB). Com
a justicativa de reduzir custos diante da
crise econômica nacional e regional
XVII
, a
Secretaria Municipal de Cultura é extinta
XVIII
e a votação do Plano Municipal de Cul-
tura não acontece. Em relação especica-
mente à Pinacoteca de São Bernardo do
Campo, seu corpo institucional é renova-
do de acordo com as diretrizes do novo
governo, assim como alguns integrantes
formais do projeto que são realocados ou
exonerados de seus cargos, como seu ex-
-curador Thomaz Pacheco.
Segundo Caroline, ao visar maior
engajamento por parte dos estudantes, e
garantir a continuidade do projeto no cená-
rio político de 2017, o qual já apresentava
indícios de mudanças no m de 2016, foi
submetido no nal deste ano, ao Edital Pro-
EC - Programa de Apoio a Ações de Cultu-
ra - PAAC 2017 da Universidade Federal do
ABC, um projeto a m de viabilizar recursos
nanceiros na forma de bolsas de estudos
para alguns estudantes voluntários, o qual
é contemplado no início de 2017.
Diante das reformas institucionais
que o governo municipal passou a pro-
mover, a equipe responsável pelo proje-
to adotou como estratégia a divulgação
do que vinha acontecendo na Pinacoteca
desde o nal de 2016, para a sociedade
civil e o poder público, dando atenção es-
pecial à comunicação institucional.
Em junho de 2017, Mariana Alves,
jornalista com experiência na área da Cultu-
ra e ex-assessora de imprensa da OMA Ga-
leria, integra a equipe como assessora de
imprensa, como previsto no documento do
projeto, para coordenar o grupo de trabalho
(GT) de Comunicação, formada por estu-
dantes voluntários da UFABC. Desde a sua
aprovação até junho a imprensa havia publi-
cado apenas duas matérias sobre o ProAC
ganho pela Pinacoteca de SBC. A partir de
junho de 2017 até agosto deste ano - após o
início dos trabalhos do GT de Comunicação
– o número de publicações cresce para seis,
em jornais regionais como Diário do Grande
ABC, Metro ABC e ABC da Comunicação,
abordando as melhorias proporcionadas
pelo projeto, a participação da Universidade
Federal do ABC e os estágios da reforma.
É importante notar que a mudança
de governo não alterou o projeto em si,
que continua caminhando de acordo com
o seu planejamento inicial, mas alterou
o espaço em que esse está inserido, as
ações que o complementariam e as estra-
tégias adotadas.
Segundo a Coordenadora, a ideia
inicial de Thomaz Pacheco era atrelar a
125
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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reforma da reserva técnica com outras
mudanças de ordem estrutural como a
criação de núcleos especializados respon-
sáveis pela gestão do Educativo, da Co-
municação, da Administração e do Acervo,
até então não formalizadas.
Além disso, diante das diculdades
nanceiras encontradas no município e
dos cortes de verbas no âmbito federal,
Thomaz se preocupou com a captação de
recursos, sem depender exclusivamente
do poder público. Para isso propôs a cria-
ção do projeto Amigos da Pina SBC, inspi-
rado diretamente no programa Sociedade
Amigos da Pinacoteca, da Pinacoteca do
Estado de São Paulo, o qual contempla
diferentes categorias de doações acessí-
veis a diferentes tipos de doadores
XIX
. En-
tretanto até agora não existem indícios de
que o novo corpo técnico irá realizar tais
reformas institucionais.
No momento o projeto encontra-se
em nalização. A exposição prevista no
documento de submissão do Edital ProAC
Nº 19/2016 está em cartaz desde novem-
bro, as catalogações estão sendo naliza-
das, os relatórios dos alunos voluntários
estão sendo entregues ao poder público,
além da nalização do laboratório de con-
servação.
2. Modelos de Análise: Múltiplos Fluxos
e Equilíbrio Interrompido
Diante dessas dinâmicas, descritas
na seção anterior com base na análise do
documento do projeto submetido ao PRO-
AC na modalidade Editais, complemen-
tados por meio de entrevista semiestru-
turada com sua coordenadora, podemos
propor a seguinte pergunta: este projeto
promoveu alguma alteração na formação
da agenda municipal quanto ao papel que
a Pinacoteca Municipal de São Bernardo
do Campo pode desempenhar nas políti-
cas públicas culturais locais?
A denição e formação de agenda
são conceitos associados à análise de
políticas públicas (HOWLETT; RAMESH,
2013) e dizem respeito ao estudo sobre
como certas dinâmicas sociais ou situa-
ções passam a ser vistas em um determina-
do momento sob o estatuto de problemas
públicos relevantes e, consequentemente,
a estar sob a atenção de governos para
elaborar e desenvolver intervenções es-
pecícas. Pelos menos duas abordagens
teóricas vêm sendo mais difundidas nes-
ses estudos (CAPELLA, 2006): a Teo-
ria dos Múltiplos Fluxos e a do Equilíbrio
Pontuado. Revisaremos a seguir seus as-
pectos centrais para, em seguida, discu-
tir suas contribuições e eventuais limites
para a análise da relação entre o projeto
desenvolvido junto à Pinacoteca Municipal
de São Bernardo do Campo por meio do
PROAC, modalidade editais, e a agenda
do município na área da cultura.
2.1 Os Múltiplos Fluxos
O modelo dos Múltiplos Fluxos, de-
senvolvido por Kingdon (2006), foca na
formação da agenda e escolha de alterna-
tivas. Traz como base teórica uma crítica
ao pluralismo, armando que as não de-
cisões do governo importam tanto quan-
to as decisões e que o jogo político não é
composto por atores homogêneos, como
arma a teoria pluralista, mas por atores
diversos, culminando na desigualdade de
poder dentro deste cenário. Capella (2006)
dene como foco principal deste modelo a
preocupação com os estágios pré-decisó-
rios da formulação de políticas, em que a
agenda é um conjunto de assuntos sobre
os quais pessoas e governos concentram
sua atenção em determinado momento.
A agenda é denida por Kingdon
(2006) como uma lista de temas ou proble-
mas que são alvo em dado momento de
séria atenção, tanto da parte das autorida-
des governamentais como de pessoas fora
do governo, mas estreitamente associadas
126
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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às autoridades. Essa agenda se divide em
duas categorias: 1) a agenda governamen-
tal, responsável por organizar as pautas de
debates e reuniões, e 2) a agenda de deci-
são, a qual realmente delibera sobre os as-
suntos discutidos. O processo de estabe-
lecimento de agenda reduz o conjunto de
alternativas possíveis relacionadas a um
problema inserido nesta a um conjunto me-
nor, potencializando o resultado da ação.
O processo de especicação de alter-
nativas restringe o grande conjunto de
alternativas possíveis a um grupo me-
nor, a partir do qual as escolhas são
realmente efetuadas. Essa distinção
entre agenda e alternativas se mostra
muito útil do ponto de vista analítico
[...] (KINGDON, 2006, p. 225)
Para que determinado problema
entre na agenda, Kingdon arma ser ne-
cessário o alinhamento entre três uxos: o
dos problemas, o das políticas públicas e
o do jogo político. Para que uma situação
seja considerada como um problema, por
sua vez, é necessário que haja um “reco-
nhecimento” desta como tal:
Toleramos vários tipos de situações
todos os dias, e essas situações não
ocupam lugares prioritários em agen-
das políticas. As situações passam a
ser denidas como problemas e au-
mentam suas chances de se tornarem
prioridade na agenda, quando acredi-
tamos que devemos fazer algo para
mudá-las (KINGDON, 2006, p.227).
Ou seja, problemas são constru-
ções sociais, forjados a partir de indicado-
res quantitativos, eventos pontuais e ava-
liações governamentais: não é porque hoje
uma situação é um problema que amanhã
esta continuará ocupando essa posição.
Os problemas podem sair da agen-
da por diversos fatores, tais como: por
conta da diculdade em denir alternati-
vas politicamente e/ou economicamente
viáveis - como, por exemplo, quando há
corte de orçamento e o governo decide
interromper programas em detrimento de
outros; e por conta de tentativas malsuce-
didas de solução.
As políticas públicas, também co-
nhecidas como o uxo de soluções, cor-
respondem a um caldo primitivo de políti-
cas com ideias geradas a partir das policy
communities. Algumas dessas ideias são
descartadas, ou se recombinam e outras
poucas sobrevivem. As soluções sobrevi-
ventes geralmente representam valores,
crenças e ideias de grande aceitação.
O terceiro uxo é o jogo político, o
qual se relaciona às forças políticas orga-
nizadas, ou seja, aos grupos de pressão.
Também diz respeito ao humor nacional,
variável de acordo com as mudanças de
governo: “Uma tendência nacional perce-
bida como profundamente conservadora
reduz as possibilidades de novas iniciati-
vas de alto custo, ao passo que um am-
biente nacional mais tolerante permite
maiores gastos” (KINGDON, 2006, p.229).
Esses três uxos, quando alinhados,
possibilitam a abertura uma janela de opor-
tunidade, um momento em que as dinâmi-
cas do campo político se convergem e se
unem, aumentando signicativamente as
chances de um evento se tornar parte da
agenda de decisão. Como arma o autor:
Os problemas que chegam às agen-
das de decisões sem propostas de so-
luções não têm as mesmas chances
de serem deliberados do que aqueles
que incluem propostas e soluções. E
propostas sem apoio político tem me-
nos probabilidade de serem decididas
do que aquelas que têm esse apoio.
(KINGDON, 2006, p.235)
É importante ressaltar que essa ja-
nela não é aberta apenas por um uxo. Os
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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três devem coincidir e a ação de um ator
especíco é fundamental para “costurar”
os interesses de cada um. Esse é o papel
do Empreendedor de Políticas Públicas,
“pessoas dispostas a investir recursos
para promover políticas que possam lhes
favorecer” (KINGDON, 2006, p.238). Es-
sas pessoas são inuentes e podem ser
encontradas dentro e fora da política, sen-
do elas acadêmicos, jornalistas, políticos,
funcionários públicos, entre outros. Como
empreendedoras, são responsáveis por
unir soluções aos problemas, problemas
às forças políticas e forças políticas às
propostas (KINGDON, 2006, p.239).
2.2 O Equilíbrio Interrompido
Outro modelo que mobilizamos para
discussão neste trabalho é o do Equilíbrio
Interrompido, desenvolvido por Baumgart-
ner e Jones (1993; 2007) o qual, segundo
Capella (2006), converge com o modelo
desenvolvido por Kingdon, pois “ambos
entendem que a denição de uma ques-
tão, expressa numa imagem ou símbolo, é
central ao estudo da formação de agenda”
(p. 43). O modelo do Equilíbrio Interrompi-
do desenvolvido por Baumgartner e Jones
(1993; 2007) pode ser simplicadamente
entendido como quando “longos períodos
de estabilidade, em que as mudanças se
processam de forma lenta, incremental e
linear, são interrompidos por momentos de
rápida mudança” (CAPELLA, 2006. p. 39).
O Equilíbrio Interrompido foi desen-
volvido para analisar o processo político
norte-americano, assim como a teoria dos
Múltiplos Fluxos desenvolvida por Kingdon,
com o intuito de explicar como ocorrem es-
sas alterações de estabilidade e equilíbrio
político, com base na formação de agenda
e nas estruturas institucionais, dialogando
e complementando o modelo dos Múltiplos
Fluxos, analisado anteriormente.
Esse modelo tem como base ana-
lítica o conceito de Racionalidade Limita-
da, desenvolvido por Simon (1997), o qual
considera que os seres humanos são in-
capazes de escolher todas as alternativas
satisfatórias a todos os objetivos deseja-
dos; alternativamente, ocorreria a escolha
da melhor solução, dentro das circuns-
tâncias apresentadas. Com base nesse
conceito, os autores propõem que, a m
de garantir eciência e que a maioria dos
objetivos sejam cumpridos, os governan-
tes dividem o sistema político em subsis-
temas, possibilitando a entrega do melhor
resultado possível. Os subsistemas, por-
tanto, são entendidos como mecanismos
que permitem o sistema político se enga-
jar em processos diversos paralelamente,
os quais são comandados por agentes
governamentais e subordinados ao ma-
crossistema, enquanto este processa as
diversas questões de forma sequencial.
Quando um único interesse predo-
mina dentro de um subsistema, este mo-
delo o classica como um monopólio de
políticas. De acordo com os autores “todo
interesse, todo grupo, todo empreendedor
de políticas públicas tem como interesse
primário estabelecer um monopólio”
XX
. O
principal motivo desse interesse é que a
partir do momento em que um subsistema
é caracterizado como monopólio, as chan-
ces do assunto defendido por esse grupo
ser levado ao macrossistema aumenta,
possibilitando que este novo assunto en-
tre na agenda governamental, e posterior-
mente na agenda de decisão, rompendo
com o equilíbrio estabelecido.
Mas por que subsistemas e macros-
sistemas estão relacionados com o equilí-
brio ou desequilíbrio de políticas? Quando
um subsistema político detém dentro de si
grupos de interesse que divergem em va-
lores e objetivos, é muito mais difícil que
esse subsistema chegue a ser um mono-
pólio, entre na agenda do macrossistema
e cause alguma mudança no sistema po-
lítico vigente. Portanto os autores classi-
cam que esses subsistemas possuem um
128
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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feedback negativo, pois são responsáveis
por manter a estabilidade política, sem
grandes variações. Entretanto quando o
oposto ocorre, Baumgartner e Jones ar-
mam que este subsistema desencadeará
um feedback positivo, pois “quando um
problema está na agenda macro-política,
pequenas mudanças nas circunstâncias
objetivas podem causar grandes mudan-
ças na política”
XXI
, rompendo assim o equi-
líbrio estabelecido, ou ainda, de acordo
com Kingdon (2006) abrindo uma janela
de oportunidade para mudanças.
Contudo, para que determinado as-
sunto entre na agenda, apenas ser classi-
cado como um monopólio não é sucien-
te. Ao analisar os casos do sistema político
americano, Baumgartner e Jones obser-
varam três pontos importantes. O primeiro
deles é que a formulação de políticas salta
e sofre períodos de estagnação, à medida
que as questões emergem e se afastam
da agenda pública. O segundo ponto é
que no sistema político americano a ten-
dência para o equilíbrio pontuado é exa-
cerbada. Por m, o ponto mais importante
observado é que as imagens de políticas
públicas desempenham um papel crítico
na explicação de questões além do con-
trole de especialistas e interesses espe-
ciais que ocupam os monopólios políticos
(Baumgartner; Jones, 2007).
Portanto, a construção de uma ima-
gem é extremamente importante. O con-
ceito de imagem da política pública criado
pelos autores pode ser entendido como:
As ideias que sustentam os arranjos
institucionais, permitindo que o enten-
dimento acerca da política seja comu-
nicado de forma simples e direta en-
tre os membros de uma comunidade,
e contribuindo para a disseminação
das questões, processo fundamental
para a mudança rápida e o acesso de
uma questão ao macrossistema (CA-
PELLA, 2006, p.40).
Quando a imagem construída para
sustentar determinada política é bem acei-
ta, esta consegue transformar questões
antes despercebidas em problemas:
Da mesma forma que Kingdon (2003),
Baumgartner e Jones entendem que
questões políticas e sociais não se
transformam necessariamente e auto-
maticamente em problemas. Para que
um problema chame atenção do gover-
no, é preciso que uma imagem, ou um
consenso em torno de uma política efe-
tue a ligação entre problema e uma pos-
sível solução (CAPELLA, 2006, p.41).
Contudo, para que o equilíbrio seja
rompido, é necessário a ação de um ator
muito importante, também essencial para
o modelo de Múltiplos Fluxos: o empreen-
dedor de políticas. Responsável por argu-
mentar e encaixar seu objeto de interesse
na agenda política, mobilizando quantos
grupos de interesse forem possíveis. Este
é o elo entre soluções e problemas.
Os empreendedores buscam cons-
tantemente ganhar espaço nas arenas po-
líticas, que são “locais institucionais onde
são tomadas decisões autorizadas sobre
uma questão determinada”
XXII
. Existem
questões que dependem apenas da con-
quista de uma arena, entretanto, outras
dependem do convencimento de duas ou
mais arenas.
Em uma analogia simplicada des-
te modelo, os subsistemas disputam entre
si para denir qual a imagem predominan-
te. Essa briga vence quem possui maior
exibilidade para formar aliados, crian-
do assim um monopólio de interesses. A
partir do momento em que a imagem está
estabelecida, o empreendedor de políticas
deve fazer uso desta para o processo de
convencimento, defendendo essa imagem
dentro da agenda do macrossistema, con-
quistando arenas políticas e assim esta-
belecendo um rompimento no equilíbrio
129
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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da agenda vigente, quando essa imagem
é colocada em prática.
3. Os modelos de formação de
agenda Múltiplos Fluxos e Equilíbrio
Interrompido e a Reestruturação da
Pinacoteca de SBC
Conforme pudemos observar, a Pi-
nacoteca Municipal de São Bernardo do
Campo passou por uma mudança em sua
administração em 2015; no ano seguinte,
passou a contar com o apoio de um projeto
desenvolvido com recursos do PROAC. A-
nal, quais os impactos dessas mudanças?
Seriam elas sucientes para incluir a Pina-
coteca na agenda das políticas públicas cul-
turais locais? A seguir, discutiremos as con-
tribuições das teorias dos Múltiplos Fluxos
e do Equilíbrio Interrompido para desenvol-
vermos esta análise de políticas públicas.
3.1 Múltiplos Fluxos
De acordo com o modelo dos Múl-
tiplos Fluxos, desenvolvido por Kingdon
(2006), para que um assunto entre na
agenda política este primeiramente deve
ser considerado como um problema, deve
haver um uxo de soluções que possam
resolvê-lo e pessoas no poder dispostas
a trabalhar com a temática na qual ele se
encaixa. Portanto, é necessário o alinha-
mento dos três uxos elencados pelo au-
tor – problemas, soluções e jogo político
– para que haja a abertura de uma janela
de oportunidade e posteriormente a possi-
bilidade de uma questão à agenda.
Ao analisar a Reestruturação da Pi-
nacoteca de São Bernardo do Campo, po-
demos considerar ao menos três aspectos
que parecem ser relevantes para o estu-
do desta experiência e sua relação com a
agenda municipal.
Em primeiro lugar, a Pinacoteca pa-
recia vista como uma instituição frágil, pois
todo seu planejamento, o qual não era pen-
sado a longo prazo, estava ligado direta-
mente ao seu ex-curador e, consequente-
mente, suas relações políticas e pessoais.
Esta situação é percebida no documento
do projeto submetido e na entrevista rea-
lizada como um problema fora da agenda
governamental, assim como a diculdade
em obter recursos do poder público para as
ações especícas do museu.
Em segundo lugar, a existência da
política pública de fomento à cultura do Go-
verno do Estado de São Paulo - o ProAC
modalidade Editais - possibilita o acesso a
recursos por projetos culturais independen-
tes. No caso analisado, o projeto apareceu
como uma oportunidade de nanciamento
independente dos repasses municipais e
federais, tornando possível o início das re-
formas previstas por Thomaz Pacheco.
Finalmente, o momento político pa-
recia favorável à proposta de reestruturação
do equipamento cultural. A gestão municipal
vigente em 2016 parecia comprometida com
o setor da Cultura, uma vez que estava en-
volvida com a construção de um Plano Muni-
cipal de Cultura que indicaria as prioridades
desse setor a partir da aprovação de diretri-
zes, metas e ações a serem desenvolvidas
nos próximos dez anos. A partir do relato de
Caroline Silverio seria possível armar que a
equipe envolvida pelo projeto compunha um
grupo de interesses responsável por defen-
der as necessidades da Pinacoteca e do se-
tor como um todo, o qual naquele momento
tinha Thomaz Pacheco como ator principal.
Por m, Caroline Silverio, além de propor o
projeto formalmente, cria um vínculo entre
instituição e comunidade, trazendo estu-
dantes da Universidade Federal do ABC de
diversas formações para auxiliarem a exe-
cução do projeto, e também na intenção de
transformar futuramente o espaço em tema
para pesquisas acadêmicas.
A teoria dos Múltiplos Fluxos desen-
volvidas por Kingdon, então, poderia ser
130
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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mobilizada para identicar e problematizar
esses aspectos como a ilustração dos três
uxos, uma vez que envolvem a identi-
cação de uma situação como problema, a
proposta de soluções e sua relação com
o jogo político. No entanto, embora seja
interessante notar essas três dinâmicas,
não há evidências de que elas estejam
associadas à formação da agenda munici-
pal – ou seja, à inclusão da Pinacoteca na
agenda das políticas públicas locais.
Com base nesse modelo, ainda,
poderíamos propor como empreendedor
de políticas a gura de Thomaz Pache-
co, responsável por tentar unir soluções a
problemas, estes problemas a forças polí-
ticas e estas forças políticas a propostas,
a m de construir um plano institucional
complementar às reformas previstas no
ProAC, a longo prazo. No entanto, tam-
pouco há evidências de que estas ações
estejam associadas à inclusão do museu
na agenda local.
3.2 Equilíbrio Interrompido
A teoria do Equilíbrio Interrompido,
por sua vez, considera que subsistemas
são coalizões temáticas baseadas em
crenças e valores, que podem ser forma-
das por pessoas ou instituições, as quais
têm como objetivo tentar mudanças polí-
ticas. Com base nela, poderíamos propor
a Pinacoteca de São Bernardo do Campo
como um subsistema – assim como as po-
líticas públicas culturais locais. Apesar de
por mais de quatro décadas estar centra-
da na gura de uma única pessoa, essa
instituição é dotada de crenças e valores,
e diante das circunstâncias de instabilida-
de enfrentadas pelo setor da cultura, ti-
nha como foco principal primeiramente se
manter de pé.
A partir do momento em que Tho-
maz Pacheco assume a curadoria e pos-
teriormente o projeto de reestruturação
do acervo proposto por Caroline Silverio
ganha o ProAC, um grupo de interesses
passa a se constituir dentro e fora da Pi-
nacoteca. À luz da teoria do Equilíbrio In-
terrompido poderíamos considerar essa
dinâmica associada à formação de um
monopólio quanto às políticas a serem
adotadas neste subsistema, o qual deve-
ria construir uma imagem pública forte o
suciente perante à sociedade civil e ao
poder público, para romper com o equilí-
brio político existente e alcançar a agenda
governamental.
Entretanto, a mudança governa-
mental de 2017 trouxe diculdades para
a entrada dos interesses do museu na
agenda do Macrossistema Político. Por
conta de agentes externos, como extinção
da secretaria de Cultura e a não votação
do Plano Municipal de Cultura - o qual po-
deria aumentar as chances de obter recur-
sos para a instituição por conta da adesão
ao Sistema Nacional de Cultura; e internos
à Pinacoteca, como a exoneração do car-
go de curador de Thomaz Pacheco. Com
isso, o planejamento institucional a longo
prazo para a Pinacoteca, complementar à
ação do ProAC, e mesmo sua inclusão na
agenda municipal, tornam-se incertos.
Diante dessas mudanças, o cenário
exigiu que o monopólio recém-fortalecido
fosse obrigado a se adaptar às condições
atuais, para que não fosse rompido. Como
estratégias para fortalecer a legitimação
do projeto foi estreitada a relação entre Pi-
nacoteca e Universidade Federal do ABC,
por meio da concessão de bolsas de Ex-
tensão, a m de fortalecer o vínculo entre
as instituições. Outra estratégia escolhida
foi a antecipação da atuação da Assesso-
ria de Imprensa do projeto, a qual estava
programada para a etapa nal do crono-
grama proposto. A ideia foi registrar passo
a passo do projeto por meio da divulga-
ção das ações desenvolvidas na imprensa
para futura prestação de contas e divulga-
ção do espaço, na tentativa de estabele-
cer vínculos mais fortes com a própria re-
131
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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gião e também de mostrar a relevância do
espaço para a nova gestão municipal que
então se iniciava.
Com isso, imaginava-se que, ao
passo que essa nova imagem fosse legi-
timada, a possibilidade de que o espaço
entrasse na agenda do macrossistema au-
mentaria e, consequentemente, mudanças
em longo prazo poderiam ocorrer, rompen-
do com o equilíbrio pré-estabelecido.
Assim como no modelo de King-
don, a teoria proposta pelos autores
propõe que é necessário a abertura de
uma janela de oportunidade, a partir dos
esforços conjuntos nos três uxos, cos-
turados por um empreendedor de políti-
cas. Porém, no modelo de Baumgartner
e Jones (1993; 2007) uma imagem públi-
ca forte só consegue romper com o equi-
líbrio vigente quando um empreendedor
de políticas consegue levá-la à agenda
do macrossistema.
No caso analisado, apesar dos es-
forços em reconstruir a imagem pública
e das dinâmicas e ações que podemos
associar à ideia dos múltiplos uxos ten-
do em vista a abertura de uma janela de
oportunidade, a Pinacoteca ainda não foi
capaz de entrar para a agenda do ma-
crossistema. As mudanças recentes na
gestão municipal em relação ao setor da
cultura colaboraram para que a reforma
institucional da Pinacoteca de São Ber-
nardo do Campo se limitasse à nalização
do Projeto de Reestruturação do Acervo,
nanciado pelo ProAC, a qual estava pre-
vista para ser concluída até novembro de
2017. Ou seja, a ideia de que os recursos
do ProAC pudessem iniciar uma sucessão
de reformas a longo prazo no museu não
está mais vigente.
Retomando nossa questão inicial
proposta neste artigo, portanto, podemos
observar que a entrada de recursos por
meio do Programa de Ação Cultural na
modalidade editais, não produziu desdo-
bramentos capazes de inserir a reforma
do acervo da Pinacoteca Municipal de
São Bernardo do Campo na agenda go-
vernamental local. Entretanto, foi capaz
de disponibilizar recursos de diferentes
tipos nanceiros, técnicos para uma
instituição que tinha grande diculdade
para acessá-los. Se é possível consi-
derar, com base nas fontes consultadas
para a produção deste trabalho, que a
Pinacoteca esteve sob um período de
inércia durante mais de quatro décadas,
é possível reconhecer que, por conta do
projeto, estudantes e pesquisadores da
Universidade Federal do ABC começa-
ram a se aproximar deste espaço, o que
pode trazer outras formas de contribuição
para a Pinacoteca por meio de atividades
de extensão e pesquisa no futuro. Além
disso, o projeto proporcionou à comuni-
dade a exposição “Narrativas da Pina”
XXIII
, inaugurada no dia 23/11/2017, a qual
teve como curadores os próprios volun-
tários responsáveis pela catalogação das
obras. Por conta do projeto, este é o úni-
co museu do Grande ABC a possuir um
Plano Museológico
XXIV
– documento obri-
gatório exigido pelo IBRAM para qualquer
museu do Brasil – de acordo com Caro-
line Silverio, concebido por especialistas
e voluntários envolvidos com o ProAC,
tornando-se exemplo com potencial de
multiplicação para a Região.
Outro desdobramento interessante
foi a publicação do relatório Projeto de Re-
estruturação do Acervo da Pinacoteca Mu-
nicipal de São Bernardo do Campo
XXV
, na
revista Expressa Extensão, coordenada
pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão
da Universidade Federal de Pelotas, com
autoria dos alunos voluntários - Daniel
Donato Ribeiro, Dario Santos de Oliveira,
Marcos Vinícius Gomes de Medeiros, Vitó-
ria Peccora - da coordenadora do projeto
Caroline Silverio e da Professora Dr. Silvia
Passarelli, incluindo contribuições ao mu-
seu por meio do debate acadêmico.
132
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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4. Conclusão
Este artigo buscou desenvolver
análise de políticas públicas tendo como
referencial teórico os estudos sobre for-
mação de agenda de Kingdon (2006) e
Baumgartner e Jones (1993; 2007), apli-
cado ao projeto desenvolvido junto à Pi-
nacoteca Municipal de São Bernardo do
Campo por intermédio de uma política
estadual consolidada e em crescimento,
o ProAC. Pudemos, com isso, identicar
dinâmicas relativas à interação Estado e
sociedade civil, à captação de recursos
para o desenvolvimento de ações públicas
em um setor no qual estes são escassos,
além das mudanças e entrada de novos
atores na instituição.
O ProAC, especicamente, não
apenas disponibilizou recursos nancei-
ros por meio deste projeto especíco, mas
também contribuiu para conectar a Pina-
coteca e a Universidade Federal do ABC,
a qual a partir deste projeto passou a de-
senvolver atividades de maneira mais pró-
xima. Além disso, permitiu problematizar
o espaço: se até então era considerado
como produtor de poucas atividades ten-
do em referência seu potencial e com di-
culdades em atrair interesse da população
local por atores próximos à sua atuação,
passou a ser possível perceber como no
espaço pode estar associado a projetos
alternativos em disputa – o que, conse-
quentemente, traz o debate sobre como
são tomadas as decisões acerca de sua
atuação e quem participa e não participa
desse processo. Essa situação ca mais
evidente quando consideramos a mudan-
ça da gestão municipal e a alteração de
continuidade das ações propostas como
de longo prazo para a Pinacoteca, como,
por exemplo, as incertezas quanto às con-
sequências do Plano Museológico elabo-
rado.
Por m, podemos considerar que
o projeto de reestruturação do acervo da
Pinacoteca, apoiado pelo ProAC não con-
seguiu entrar para a agenda local. Embora
o referencial teórico adotado neste traba-
lho esteja mais relacionado à investigação
sobre a formação das agendas, observa-
mos sua contribuição para identicar di-
nâmicas, questões, atores e ações rela-
cionados a questões públicas relevantes,
mas que não passam a compor, de fato, a
agenda municipal local. Com isso, abrem-
-se possibilidades de aprofundamento
deste estudo, seja em relação a entrevis-
tas com agentes envolvidos no projeto,
seja quanto à compreensão e análise de
processos especícos agora identicados
como parte do desenvolvimento do pro-
jeto. Outra possibilidade está no estudo
sobre as políticas públicas culturais que
estão sendo desenvolvidas no município
de São Bernardo do Campo e nas demais
cidades do ABC, buscado discutir objeti-
vos, recursos disponíveis e agentes asso-
ciados a estas políticas.
Considerando que “as políticas
públicas não constituem o único modelo
de atuação dos analistas, como a políti-
ca tão pouco é o único meio de atuação
dos políticos” (KINGDON, 1995, p. 226),
propomos para estudos futuros a proble-
matização da análise de políticas públicas
tendo como referencial central a ideia do
ciclo de políticas públicas
XXVI
, uma vez que
outras formas de ação pública, capazes
de articular Estado e sociedade civil na
construção de alternativas diante de ques-
tões publicamente relevantes se mostram
presentes. Especicamente, os casos as-
sociados ao tema da cultura parecem ser
especialmente interessantes para apro-
fundar essa análise, uma vez que a pro-
dução cultural envolve frequentemente ar-
ranjos como o estudado neste artigo, em
que o Estado busca fomentar tanto ações
mais autônomas, produzidas pela socie-
dade civil, como ações em que socieda-
de civil e Estado se articulam em torno de
questões comuns – como discutimos aqui,
no funcionamento de um museu público.
133
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
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pdf> Acesso em: 13 set 2017.
Recebido em 14/01/2018
Aprovado em 22/02/2018
I Lúcio Nagib Bittencourt. Professor Adjunto da Univer-
sidade Federal do ABC (UFABC), vinculado ao Bacha-
relado em Políticas Públicas (BPP), ao Bacharelado em
Ciências e Humanidades (BCH) e ao Programa de Pós-
-Graduação em Políticas Públicas (PGPP). Doutor em
Administração Pública e Governo, pelo Fundação Getú-
lio Vargas de São Paulo. Contato:
II Mayra Carolina Ataíde de Oliveira. Graduada em Rá-
dio, TV e Internet pela Universidade Metodista de São
Paulo. Contato: mayra.ataide.oliveira@gmail.com
III Agradecemos aos docentes Diego Corrêa Sanches
e Gabriela Spanghero Lotta, professores da disciplina
“Análise de Políticas Públicas”, responsáveis pelo de-
senvolvimento e avaliação da primeira versão deste ar-
tigo.
IV Disponível em<http://www.proac.sp.gov.br>Acesso
em: 18 dez 2017.
V Disponível em <http://www.proac.sp.gov.br/proac_
editais/principal/> Acesso em: 16 dez 2017.
VI Dados apresentados pelo Boletim Um - Pesquisa
realizada pela Unidade de Fomento à Cultura (UFEC)
da Secretaria, de 2006 à 2015. Disponível em <http://
www.transparenciacultura.sp.gov.br/wp-content/
uploads/2016/03/2017.02.17-Boletim-UM-n.-3-ProAC-
-Editais.pdf > Acesso em: 13 set 2017
VII Disponível em < http://www.editaisproac.sp.gov.br/
InscricoesEditaisUFDPC/consultas/projetosContempla-
dos.action;jsessionid=AD820AA4F59D770CEF1BE543
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134
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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VIII Disponível em <http://www.abcdoabc.com.br/
sao-bernardo/noticia/thomaz-pacheco-novo-curador-
-pinacoteca-sao-bernardo-campo-39264> Acesso
em: 07 dez 2017.
IX Galeria de arte contemporânea localizada em São
Bernardo do Campo, propriedade do galerista Thomaz
Henrique Pacheco. Disponível em < http://www.omaga-
leria.com/a-galeria/> Acesso em: 20 dez 2017.
X Disponível em <http://www.saobernardo.sp.gov.br/
home/-/asset_publisher/YVwaH6UqAMbt/content/prefei-
to-encaminha-plano-municipal-de-politicas-culturais-a-
-camara/maximized?inheritRedirect=false>
XI Disponível em <http://www.saobernardo.sp.gov.br/
noticias/-/asset_publisher/pBwTf7tTIXRH/content/lide-
rancas-culturais-de-sao-bernardo-debatem-plano-muni-
cipal-de-cultura/maximized> Acesso em: 05 dez 2017.
XII Disponível em <http://www.cultura.gov.br/sistema-
-nacional-de-cultura> Acesso em 16 dez 2017.
XIII Essa é uma política estadual, sancionada em 1986
pelo Decreto nº 24.634 (São Paulo, 1986) a qual tem
como um dos principais objetivos formar e informar os
museus localizados no Estado de São Paulo, buscando
fortalecer o vínculo entre essas instituições e aperfeiçoar
a formação dos envolvidos. Disponível em<http://www.
al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1986/decre-
to-24634-13.01.1986.html> Acesso em: 13 set 2017.
XIV Entrevistar outras pessoas poderia trazer mais ele-
mentos sobre o processo, mas este não é o objetivo des-
te artigo.
XV LEI Nº 12.268, DE 20 DE FEVEREIRO DE 2006:
Artigo 8º: Poderão apresentar projetos, como
pessoa física, o próprio artista ou detentor de direitos so-
bre o seu conteúdo e, como pessoa jurídica, empresas
com sede no Estado que tenham como objetivo ativida-
des artísticas e culturais, e instituições culturais sem ns
lucrativos.
Parágrafo único – O disposto no “caput” deste
artigo não se aplica a órgãos e entidades da administra-
ção pública, direta ou indireta, federal, estaduais e mu-
nicipais, as quais poderão ser apenas beneciárias de
projetos referentes a atividades artísticas e culturais.
XVI Uma das autoras deste artigo atuou como voluntá-
ria do projeto, como membro da sociedade civil, no perí-
odo de dezembro de 2016 a fevereiro de 2017. A ação foi
registrada na ProEC UFABC sob nº FC 140/2016.
XVII Disponível em < https://saobernardodocampo.
info/7205/prefeito-orlando-morando-medidas-reduzir-
-gastos-publicos/> Acesso em: 07 dez 2017.
XVIII A reforma administrativa da nova gestão ainda
não foi sancionada. Atualmente a Secretaria possui
apenas um cargo, o de Secretário Adjunto, ocupado por
Adalberto Guazzelli, o qual no momento está respon-
dendo diretamente à Secretaria de Esportes, ocupada
pelo secretário Alexandre Mognon.
XIX Disponível em < http://pinacoteca.org.br/apoie/ami-
gos-da-pina/> Acesso em: 16 dez 2017.
XX Citação original: “every interest, every group, every
policy entrepreneur has a primary interest in establishing
a monopoly.” (Baumgartner; Jones, 1999, p. 6)
XXI Citação original: “When an issue area is on the
macro political agenda, small changes in the objective
circumstances can cause large changes in policy” (Bau-
mgartner; Jones, 2007, p.160)
XXII Citação original: “institution allocations where au-
thoritative decisions are made concerning to a given is-
sue” (Baumgartner; Jones, 1993, p.32)
XXIII Disponível em <http://www.dgabc.com.br/Noti-
cia/2803015/avanco-na-arte-da-regiao> Acesso em: 13
dez 2017.
XXIV Aguardando aprovação da Prefeitura Munici-
pal. De acordo com Caroline Silverio o Plano Muse-
ológico será enviado à Museóloga Denise Yonami-
ne para a devida assinatura de profissional com o
Registro no Conselho de Museologia até o final de
2017, o qual levará também a assinatura de todos
que participaram do projeto. Entretanto sua imple-
mentação ainda não é garantida.
XXV Disponível em< https://periodicos.ufpel.edu.br/
ojs2/index.php/expressaextensao/article/view/11826>
Acesso em 12 dez 2017.
XXVI Historicamente [...} um dos meios mais populares
de simplicar a policy-making, para ns analíticos, foi
pensa-la como processo, isto é, como um conjunto de
estágios inter-relacionados através dos quais os temas
políticos (policy-issues) e as deliberações uam de uma
forma mais ou menos sequencial, desde os “insumos
(problemas) até os “produtos” (políticas). [...] A sequên-
cia resultante de estágios é muitas vezes reconhecida
como “ciclo político-administrativo”. (Howlett, 1955, p.12)
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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A regulamentação legal do grate:
Perspectivas e caminhos a partir de uma experiência prática em Curitiba
La reglamentación legal del grato:
Perspectivas y caminos a partir de una experiencia práctica en Curitiba
The legal regulation of the graphite:
Perspectives and paths from a practical experience in Curitiba
Angela Cassia Costaldello
I
Francisco Bley
II
Resumo:
O escopo do presente texto é investigar as legislações existentes
acerca da prática do grate no Brasil, evidenciando seus avanços
históricos e demonstrando suas insuciências perante a realidade
de seu exercício em âmbito local. Para tanto, serão levadas em
consideração as pesquisas do projeto “Clínica Direito e Arte” da
Universidade Federal do Paraná, cujo trabalho ocorre junto a grateiros
e artistas da cidade de Curitiba para a construção de políticas públicas
para o setor em questão.
Palavras chave:
Grate
Regulamentação
Políticas Públicas
Direito
Arte
136
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El propósito del presente trabajo es investigar la legislación existente
con respecto à las practicas del grafti en Brasil, evidenciando sus
desarrollos historicos y demostrando sus insuciencias en ámbito local.
Para tanto, serán llevadas en consideración las pesquisas del grupo
“Clínica de Derecho y Arte”, de la Universidad Federal de Paraná, cuyo
trabajo ocurre junto de los artistas del grafti en la ciudad de Curitiba, de
modo que sean creadas políticas públicas para el setor.
Abstract:
The scope of this paper is to investigate the existing legislation
concerning graffiti art practices in Brazil, evidencing their historical
development and demonstrating its unsifficiencies toward their
exercise locally. For this purpose, researches made by the project
“Clínica Direito e Arte”, at the Federal University of Paraná will
be taken in consideration. The referred work occurs together with
graffiti artists from the city of Curitiba, in order to create public
policies to the sector.
Palabras clave:
Grafti
Regulamentación
Políticas Públicas
Derecho
Arte
Keywords:
Grafti
Regulamentation
Public Policies
Law
Art
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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A regulamentação legal do grate:
Perspectivas e caminhos a partir
de uma experiência prática em Curitiba
1. Introdução
1.1 O grate: breve histórico
Entre as décadas de 1960 e 1970, o
termo italiano “grafti” foi adotado pela im-
prensa nos Estados Unidos para denominar
a prática de escrever e desenhar em muros
e paredes, enquanto jovens se utilizavam
dos termos “writing”, “tagging” ou “hitting”.
Estes jovens, ao deixarem suas marcas
pelas grandes cidades estadunidenses,
sofreram intensa perseguição. O que lá era
denominado grafti, equivale ao que co-
nhecemos hodiernamente por pichação. As
marcas eram utilizadas por gangues para
ns de demarcação de território, além de
armações de posicionamentos políticos.
No Brasil, o grate, com o termo
adaptado ao português, teve destaque no -
nal dos anos 70, em pleno regime militar. Nes-
sa época, a prática foi adotada por artistas
anônimos e estudantes de artes e comunica-
ção, que viam na prática uma oportunidade
de exercerem sua liberdade de expressão.
Entretanto, a difusão do grate no
país se deu, principalmente, nos anos 90,
na cidade de São Paulo, por contribuição
da prática do skate e da cultura Hip Hop.
Tal cultura urbana, sendo detentora de uma
losoa de utilização dos espaços públicos
para manifestação artística independente-
mente de autorização, foi paulatinamente
mesclando ambos os movimentos. Isso fez
com que o grate obtivesse mais visibilida-
de, assim como uma nalidade armativa,
reivindicativa ou de protesto.
Somente na década seguinte, com
a conquista da atenção de críticos estran-
geiros que tinham como especialização a
arte de rua, o grate teve maior destaque
diante das autoridades administrativas,
de modo que órgãos públicos passaram a
encomendar murais em exposições, tanto
em galerias quanto em museus. Somen-
te um grupo seleto de artistas, entretanto,
foi generosamente remunerado, de modo
que restou menor atenção a projetos de
grateiros menos célebres.
1.2 A cidade como suporte: a produção
de espaços físicos e simbólicos
A cidade é, em essência, utilizada
como o suporte artístico do grate. Ao in-
vés de telas, são pintados muros, paredes
e outros elementos constitutivos da paisa-
gem urbana. É próprio de uma arte que
ocorre nas ruas denunciar o caráter polí-
tico-ideológico da organização da cidade.
Nesse sentido, a intrínseca relação entre
o espaço e a cultura nele produzida assu-
me um caráter de armação da cidadania,
de representação da ideologia contida no
próprio ambiente urbano.
O espaço, de acordo com Henri Le-
febvre, citado por Ahmed (2015), abarca
tanto a dimensão física – o território em
si – quanto o plano simbólico, relacionado
aos espaços de representação, de orga-
nizações discriminatórias e segregadoras.
No pensamento de Lefebvre, lembra Ah-
med (2015, p. 375), este conceito refere-
-se ao estabelecimento dos centros de
decisão, de riqueza, de poder, de conhe-
cimento e de informação, que restringem
aos espaços periféricos os que não parti-
cipam dos privilégios políticos.
Em termos simbólicos, o grate é
extremamente potente em sua capacida-
de de escancarar a construção político-
-ideológica acima descrita. Além disso, as
atuais discussões acerca de sua prática
envolvem tanto sua incisiva ecácia como
instrumento de denúncia social quanto
suas possibilidades de inclusão em seto-
138
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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res organizados da economia criativa e no
mercado regularizado das artes.
A ambivalência da expressão artís-
tica em questão suscita debates inúmeros,
sobretudo acerca do ainda incipiente tra-
tamento conferido pelo ordenamento jurí-
dico brasileiro às possibilidades legais de
sua execução e produção. Em âmbito le-
gal, diferentemente do que ocorre em ou-
tros setores como as artes e a economia,
residem ainda diretrizes demasiadamente
amplas e carentes no que dizem respeito
ao conteúdo programático das normas.
Tal armação pode ser aclarada
não justicando, por óbvio, a precariedade
regulamentar – pelo fato de que os pontos
de contato entre o direito e a cultura, nas
suas múltiplas manifestações, são profusas.
2. Regulamentações jurídicas da arte
do grate no Brasil
2.1 A Constituição de 1988 e os direitos
culturais
Levando em consideração o recor-
te temporal histórico esposado, congura-
-se primordial o levantamento dos fun-
damentos que constituem as previsões
legais aplicáveis ao grate. Seu respaldo
mais amplo encontra-se inserido na vasta
discussão acerca dos direitos culturais.
Embora possa ser considerado por
meio de diferentes acepções provocadas
pela polissemia do termo, o tratamento da
cultura no ordenamento jurídico é profícuo
no que diz respeito à Constituição Federal
de 1988. A seção especíca para o tema
inicia-se no artigo 215, cujo caput versa:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o
pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional,
e apoiará e incentivará a valorização e
a difusão das manifestações culturais.
Os parágrafos complementares do
artigo transcrito possuem, de acordo com
Francisco Humberto Cunha Filho, caráter
tanto prestacional quanto de abstenção em
relação ao papel do Estado (CUNHA FI-
LHO, 2015, p. 33). São ações distintas, rela-
cionadas ao acesso, apoio, incentivo, valori-
zação e difusão da cultura. E neste aspecto,
a doutrina apresenta-se uníssona quanto à
fundamentalidade dos direitos culturais, tan-
to como norma agendi como facultas agen-
di, no que concerne ao dever do Estado e
ao direito do cidadão (SILVA, 2012, p. 822;
COSTA-CORRÊA, 2009, p. 2292).
Embora haja tentativas de catego-
rização pormenorizada de um rol dos di-
reitos culturais, há que se atentar ao dina-
mismo e ao constante caráter de inovação
da seara artística e, sobretudo, em relação
ao grate. A característica programática
das normas de direitos culturais, por ou-
tro lado, coaduna-se com a possibilidade
de adaptação da maneira como será con-
cebido o planejamento e a concretização
das políticas públicas da área.
Dessa forma, ca evidente que uma
tentativa de arrolamento dos direitos cultu-
rais implicaria em uma necessidade cons-
tante de atualização por parte do legislador.
Frente a tal constatação, ao invés de elen-
car-se um rol, foram estabelecidas catego-
rias de tais direitos, como as propostas por
José Afonso da Silva (2012, p. 822):
a) direito à criação cultural, compreen-
didas as criações cientícas, artísticas
tecnológicas;
b) direito de acesso às fontes da cultu-
ra nacional;
c) direito de difusão da cultura;
d) liberdade de formas de expressão
cultural;
e) liberdade de manifestações cultu-
rais; e
f) direito-dever estatal de formação do
patrimônio cultural brasileiro e de pro-
teção dos bens de cultura.
139
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Os direitos culturais possuem como
escopo a viabilidade de sua concretização.
Nesse sentido, a compreensão da tutela
constitucional dos direitos acima categoriza-
dos exige que a premissa de que manifes-
tações artísticas, como o grate, possuam,
de fato, amparo no âmbito da Constituição
Federal. O agasalho constitucional é im-
prescindível, não apenas na proteção dos
bens culturais produzidos e o resguardo de
direitos inerentes à cidadania e à democra-
cia, mas e sobretudo para a elaboração de
políticas públicas ecazes, com a inserção
de previsões na legislação orçamentária, a
execução e a scalização do uso do recur-
sos destinadas ao setor em questão.
2.2 Em âmbito federal: a lei de crimes
ambientais
A previsão normativa que incide de
maneira mais incisiva sobre o ato de gra-
tar é a Lei n.o 9.605/98, conhecida como
“Lei de Crimes Ambientais”. O art. 65 de
seu texto original traçava a distinção e a
proibição das práticas de pichar, gratar e
conspurcar. O dispositivo proibia o exer-
cício das três atividades, havendo ou não
consenso por parte do proprietário, a par-
tir do argumento de proteção ao meio am-
biente cultural e visual.
Em 2011, entretanto, a Lei n.o
12.408 alterou a redação do art. 65 da Lei
n.o 9.605/98, ao mesmo tempo descrimi-
nalizando a conduta de gratar e proibindo
a comercialização de tintas aerossol para
menores de 18 anos. Versa o dispositivo
em questão:
Art. 65. Pichar ou por outro meio cons-
purcar edicação ou monumento urba-
no: Pena - detenção, de 3 (três) meses
a 1 (um) ano, e multa.
§ 1.o Se o ato for realizado em mo-
numento ou coisa tombada em virtude
do seu valor artístico, arqueológico ou
histórico, a pena é de 6 (seis) meses a
1 (um) ano de detenção e multa.
§ 2.o Não constitui crime a prática de
grate realizada com o objetivo de va-
lorizar o patrimônio público ou privado
mediante manifestação artística, des-
de que consentida pelo proprietário e,
quando couber, pelo locatário ou ar-
rendatário do bem privado e, no caso
de bem público, com a autorização
do órgão competente e a observância
das posturas municipais e das normas
editadas pelos órgãos governamen-
tais responsáveis pela preservação e
conservação do patrimônio histórico e
artístico nacional.
A partir das alterações acarretadas
pela Lei n.o 12.408/2011, portanto, cam
especicados critérios para a desconstitui-
ção do caráter criminal do grate, a saber:
a necessidade de valorização do patrimô-
nio público, o consentimento do proprietá-
rio – nos casos de bens privados – ou a
autorização do órgão competente – nos
casos em que os bens sejam públicos. Foi
um importante avanço, posto que é uma
regulamentação que considera as nuances
existentes entre as diferentes vertentes de
arte urbana, diferindo a pichação do grate.
Com efeito, a Lei n.o 12.408/2011,
ao excluir a responsabilidade penal dos
artistas e grateiros e ao recepcionar a
prática perante o ordenamento jurídico, re-
presenta um acolhimento do grate frente
à sociedade. É um dispositivo que produz
avanços concretos no tratamento jurídico
do tema, embora seu conteúdo normativo
não abarque todas as demandas advindas
da produção do grate em âmbito local. A
insuciência de abrangência e profundi-
dade da norma, quando da aplicação aos
casos concretos de ocorrência municipal,
será pormenorizada na sequência.
2.3 A necessidade de previsão jurídica
em lei orgânica dos municípios
Como consectário do sistema fede-
rativo, a Constituição Federal de 1988, em
140
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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seu artigo 30, expressa a autonomia dos
municípios para legislar sobre assuntos
de interesse local. Dessa forma, compete
a essa unidade da Federação suplemen-
tar a legislação federal e estadual nos ca-
sos em que tais normas fossem parcas,
como o do grate.
A falta de regulamentação da prática
do grate em âmbito municipal faz com que
somente se possa utilizar o respaldo legal
trazido pela Lei de Crimes Ambientais, uma
lei federal de aplicabilidade nacional. Decor-
re disso a celeuma relacionada ao caráter
geral desse diploma legal que, não obstan-
te descriminalize a prática, deixa inúmeras
lacunas as quais dão margem à indetermi-
nação e à vagueza semântica quando de
sua aplicação a casos concretos.
Ademais, na prática, o caráter geral
da Lei de Crimes Ambientais não abarca
as especicidades das demandas jurídi-
cas que ocorram em âmbito local, produ-
zindo um silêncio por parte do legislador
e dicultando a adoção de medidas pro-
tetivas e fomentadoras pela administração
pública municipal.
Com efeito, o hiato legislativo dá
margem a diversos embaraços e obstácu-
los relacionados à resolução de conitos
atinentes à prática, sobretudo no que diz
respeito às obras realizadas por meios es-
truturados, como, por exemplo, os proje-
tos de leis de incentivo.
As consequências da não regula-
mentação do grate em âmbito municipal
serão, todavia, pormenorizadas adiante.
3. A política cultural e suas facetas
3.1 A omissão na regulamentação do
grate: desvalor e insegurança jurídica
Expostas a regulamentação já exis-
tente e as lacunas deixadas à revelia da
própria legislação, a não regulamentação
do grate em âmbito local traz consequên-
cias para todos os segmentos envolvidos:
autores, sociedade e adminsitração pública.
A ausência de normas abre brechas
para problemas incomensuráveis. Por par-
te dos artistas, a proteção ao bem jurídico
cultural criado corre diversos riscos se não
respaldada por uma legislação que a tutele.
Além da insegurança gerada acer-
ca da permanência ou não da obra – que
ca sujeita a ser apagada ou danicada
há um risco bastante expressivo no que
diz respeito aos grates feitos via proje-
tos de lei de incentivo. Por exemplo, se a
obra desaparece, a prestação de contas
ca comprometida, fato que pode causar
complicações para o artista. A não regu-
lamentação, pois, transcende o âmbito in-
trínseco da existência da obra, atingindo,
inclusive, uma dimensão patrimonial dos
agentes da arte que optem pelos cami-
nhos legais e estruturados de produção.
A par disso, a não regulamentação
também deixa em aberto os espaços pú-
blicos permitidos ou não para a prática,
assim como não desanuvia a discussão
acerca da legalidade da arte urbana em
setores historicamente tombados. Nesta
hipótese estão em jogo a preservação de
duas ordens patrimoniais igualmente pro-
piciadoras de resguardo: o patrimônio his-
tórico, artístico, arqueológico, e obras que
revelam a liberdade de expressão cultural
por meio do grate.
Conquanto seja imprescindível a lei
especíca que regulamente, em âmbito
local, as práticas urbanas do grate, sua
mera previsão legal é inecaz ou de ecá-
cia rudimentar. Dessa forma, embora seja
uma problemática que suscita um campo
de discussão extremamente amplo e pro-
fícuo, a menção acerca da prossionaliza-
ção da Administração da Cultura mostra-
-se elementar na abordagem crítica do
presente trabalho.
141
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Por m, frente ao silêncio do legis-
lador em relação a um tema tão prolíco,
perde-se a possibilidade de utilização do
grate como instrumento de inclusão so-
cial. Nascida como uma arte de caráter
periférico, sua criminalização refere-se
também à seletividade do que é conside-
rado ou não expressão artística legítima.
A lacuna normativa, ao se resguardar em
abstenção, deixa de propor políticas pú-
blicas de inclusão, formação e reconheci-
mento de identidades culturais presentes
e atuantes na sociedade. A regulamenta-
ção do grate poderia prever, pois, direitos
de caráter prestacional os quais reconhe-
cessem o poder da arte urbana como for-
madora de subjetividades.
4. Projeto de lei de regulamentação
do grate: a contribuição do projeto
“Clínica de Direito e Arte” da UFPR
4.1 Por um papel ativo na construção
de uma política cultural ecaz
Durante os meses de junho a se-
tembro de 2017, a Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
por meio de uma ação de extensão univer-
sitária intitulada “Clínica de Direito e Arte”,
capitaneou um projeto de fomento às dis-
cussões albergadas pelo presente artigo.
O projeto nasceu a partir de uma
demanda concreta de um grateiro curiti-
bano, que teve uma obra executada por
meio de edital de Mecenato Subsidiado
da Prefeitura de Curitiba. A obra em ques-
tão passou a sofrer ameaças de diversos
setores da sociedade, que exigiam, entre
outras coisas, sua retirada, em função de
sua suposta ilegalidade.
Um dos argumentos, possivelmen-
te o mais contundente, em favor do apa-
gamento era o fato de que a localidade
escolhida para sua execução congurava
área tombada, o que impossibilitaria a per-
manência da obra já ali alocada. A falta de
previsões jurídicas de âmbito local gerou
uma severa diculdade na resolução do
conito, fazendo com que o artista solici-
tasse assessoria jurídica por parte da Fa-
culdade de Direito da UFPR.
Pelo período de quatro meses, alu-
nos e professores
III
da UFPR realizaram
um intenso trabalho de mapeamento das
possibilidades acerca do caso, com o in-
tuito de proposição de uma ação que não
apenas respaldasse o exemplo concreto
em questão, mas que, de fato, propuses-
se uma mudança efetiva na maneira como
as discussões acerca do grate e da arte
urbana são enfrentados na cidade. O en-
caminhamento de tal ação de mapeamen-
to foi a compreensão da necessidade de
elaboração de um projeto de lei junto à
Câmara Municipal de Curitiba.
Foi obtido, então, o apoio de um
representante da Câmara municipal e, em
conjunto com os alunos e professores,
desenvolveram-se ações de pesquisa de
projetos de lei que já houvessem lidado
com a temática da regulamentação na es-
fera municipal.
Foram encontrados projetos de lei
em andamento em São Paulo, Uberlândia
e Salvador, alguns deles com pareceres
favoráveis emitidos pelas Comissões de
Constituição e Justiça dos respectivos mu-
nicípios, embora nem todos tivessem ainda
sido aprovados até aquele momento.
Durante a etapa de pesquisas, foi
notória a percepção de que a questão da re-
gulamentação do grate não é uma deman-
da pontual. Há casos massivos, ocorrentes
por todo o país, que evidenciam a urgência
de uma discussão aprofundada e motivado-
ra de efeitos concretos sobre o tema.
Findo o levantamento de ações
análogas em outros municípios, foi pros-
pectada pela “Clínica de Direito e Arte”
142
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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uma reunião pública com grateiros da ci-
dade. Com execução prevista para 2018,
o escopo da ação é a coleta de demandas
concretas por parte dos artistas, traduzin-
do-as em regulamentações apropriadas
que, de fato, acrescentem na estruturação
da classe artística da cidade.
4.2 Tempos de resistência e adesão de
propostas contrárias
Embora todas as evidências supra-
citadas acerca da necessidade de con-
sistência e postura crítica no tocante às
políticas públicas para a cultura, há, em
tempos hodiernos, um crescente esvazia-
mento do debate sobre o tema, cujos efei-
tos são a consequente criminalização das
práticas do grate e da arte urbana.
No dia 09/11/2017, foi aprovado na
Câmara Municipal de Curitiba um projeto
de lei que porpõe o aumento das multas
para agrantes de pichação em patrimô-
nios públicos ou particulares. O projeto
prevê que a atual multa de R$ 1.693,84
(mil seiscentos e noventa e três reais e oi-
tenta e quatro centavos) fosse reajustada
para R$ 5 mil (cinco mil reais), em caso de
danos a imóveis particulares, ou R$10 mil
(dez mil reais) a patrimônios públicos.
Consta da justicativa do projeto que
a proposta visava “fechar o cerco para alcan-
çar o infrator e imputar-lhe as sanções mais
graves, com o intuito de diminuir as ações
dos vândalos que depredam imóveis”.
O explícito escopo punitivo do pro-
jeto de lei em questão visa à perpetuação
da já consolidada prática de imputação
penal baseada na construção da imagem
de um suposto inimigo, que deve ser com-
batido de modo irretorquível.
Ao reduzir por completo a discus-
são das perspectivas de tratamento jurídi-
co dos praticantes do grate e da pichação
à ideia de vandalismo, o projeto escanca-
ra a incapacidade do legislador de levar
a efeito um debate verdadeiramente pro-
dutivo. Excluiu-se a possibilidade de cons-
trução de um diálogo que considere tanto
o interesse da sociedade em reduzir as
práticas ilegais de arte urbana quanto as
reais motivações desses artistas.
A posição anacrônica e equivocada
do tema demonstrada no projeto de lei está
a conrmar a premência de regulamenta-
çao séria e tecnicamente adequada.
Ademais, a proposição de agravo
da pena – sobretudo por incidir em uma
dimensão pecuniária sobre uma classe já
marginalizada da sociedade – é um modelo
notadamente inócuo de resolução de con-
itos, uma vez que aposta em um modelo
penal de prevenção geral, há muito tempo
combatida na seara do Direito Penal.
Nessa perspectiva, a imputação da
pena serviria, sobretudo, para coagir a so-
ciedade a não praticar delitos. Além de ter
embasado políticas criminais consagrada-
mente falhas no passado, tal viés argumen-
tativo mascara o caráter seletivo do sistema
penal, que incide de maneira muito mais
pungente sobre os setores sociais econo-
micamente menos favorecidos, como é o
caso da maioria dos praticantes do grate.
5. Conclusão
Frente à crescente consolidação de
posturas retrógradas e criminalizadoras
da arte urbana na cidade de Curitiba, na
contramão dos movimentos inclusivos do
grate, se fazem ainda mais necessárias
ações concretas e contra-hegemônicas
que possibilitem a organização política
dos setores artísticos.
O trabalho da “Clínica Direito e
Arte” da UFPR parte da premissa de que
os debates acerca do assunto necessitam
ocorrer levando em consideração o cará-
143
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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ter amplo do grate. que se sopesar
os eventuais riscos oferecidos pela prática
com suas reais perspectivas de valoriza-
ção do patrimônio público, de construção
de um setor consistente no que diz respeito
à economia criativa e, sobretudo, garantin-
do a liberdade de expressão de seus prati-
cantes da maneira mais ecaz possível.
Dessa forma, se faz premente a
revisão dos dispositivos legais que dizem
respeito ao tema, explicitando suas con-
tribuições e evidenciando seus limites,
deixando à margem conceitos vagos e
reducionistas de uma prática que oferece
soluções sucientemente plurais.
As propostas de regulamentação
do grate em âmbito local, somadas à
consequente tutela legal das possibilida-
des de produção se mostram, pois, im-
prescindíveis.
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e zoneamento urbano como instrumento de pro-
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Altera o art. 65 da Lei n.o 9.605, de 12 de feverei-
ro de 1998, para descriminalizar o ato de gratar,
e dispõe sobre a proibição de comercialização de
tintas em embalagens do tipo aerossol a menores
de 18 (dezoito) anos. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/
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al à Constituição. 8. ed. atual. até a Emenda
Constitucional 70, de 22.12.2011. São Paulo:
Malheiros, 2012.
Recebido em 07/02/2018
Aprovado em 26/02/2018
I Angela Cassia Costaldello, doutora em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora
de Direito Administrativo e Urbanístico do Departamen-
to de Direito Público da Faculdade de Direito e do Pro-
grama da Pós-graduação em Direito da UFPR. Visiting
Fellow na Università degli Studi di Palermo (Itália). Con-
tato: acostaldello@gmail.com
II Francisco Tapias Bergamaschi Bley, pesquisador
graduando em Direito pela UFPR. Contato: francisco.
bbley@gmail.com
III Projeto coordenado pelo Prof. Dr. Marcelo Miguel
Conrado e pela Prof.a Dr.a Angela Cassia Costaldello.
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Os contratempos do espaço: patrimônio cultural imaterial
e o Livro de Registro Atividades Econômicas Tradicionais e Notáveis
Los contratiempos del espacio: patrimonio cultural inmaterial
y el Libro de Registro Actividades Económicas Tradicionales y Notables
The space’s contradictions: cultural heritage and
the new form of heritage’s registries named
“Traditional and Notable Economic Activities”
João Domingues
I
Resumo:
O presente artigo
II
tem como objetivo discutir as intervenções em
áreas urbanas centrais e suas conexões com as políticas culturais. De
maneira mais especíca, pretende-se analisar como a radicalização
da mercantilização do espaço urbano cria condições de interferência
em processos de reconhecimento e vivência patrimonial. No caso em
questão, destaca-se o imbróglio envolvendo o processo de registro no
Livro Patrimonial “Atividades Econômicas Tradicionais e Notáveis”, uma
novidade nas políticas patrimoniais da cidade do Rio de Janeiro. Ao
nal, espera-se demonstrar a inexorabilidade das inscrições sociais nas
relações espaciais e temporais, carregadas de conitos discursivos, e
sua determinação para a continuidade das expressões selecionadas no
novo livro de registros imateriais.
Palavras chave:
Empreendedorismo
urbano
Patrimônio cultural
Rio de Janeiro
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Resumen:
El presente artículo tiene como objetivo discutir las intervenciones en
áreas urbanas centrales y sus conexiones con las políticas culturales.
De manera más especíca, se pretende analizar cómo la radicalización
de la mercantilización del espacio urbano crea condiciones de
interferencia en procesos de reconocimiento y vivencia patrimonial. En
el caso en cuestión, se destaca el imbróglio envolviendo el proceso de
registro en el Libro Patrimonial “Actividades Económicas Tradicionales
y Notables”, una novedad en las políticas patrimoniales de la ciudad
de Río de Janeiro. Al nal, se espera demostrar la inexorabilidad de
las inscripciones sociales en las relaciones espaciales y temporales,
cargadas de conictos discursivos, y su determinación para la
continuidad de las expresiones seleccionadas en el nuevo libro de
registros inmateriales.
Abstract:
This article aims to discuss spatial interventions in urban areas and
their connections with cultural policies. More specically, it intends to
analyze how the increased commodication of urban spaces interferes
in recognition processes and cultural heritage’s experiences. The
objective expression for that question is the contradictions involving
the heritage process of historical small business ventures in the city of
Rio de Janeiro, including a new forms of heritage’s registries named
“Traditional and Notable Economic Activities”. In the end, it is hoped
to demonstrate the inexorability of social inscriptions in spatial and
temporal social relations, loaded with discursive conicts.
Palabras clave:
Emprendimiento urbano
Patrimonio cultural
Rio de Janeiro
Keywords:
Urban
entrepreneurialism
Cultural heritage
Rio de Janeiro
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Os contratempos do espaço: patrimônio
cultural imaterial e o Livro de Registro
Atividades Econômicas Tradicionais
e Notáveis
Introdução
O presente trabalho dedica-se a in-
terpelar as relações entre a gestão urbana
contemporânea, as políticas patrimoniais
e as práticas culturais em centros urbanos.
Procura-se ressaltar que estas relações
se conformam no ínterim das contradições
inerentes aos processos de acumulação
urbana, incidindo sobre diferentes apro-
priações, interpretações e interesses que
produzem o espaço.
É razoavelmente consensual ar-
mar na literatura aplicada ao campo do
urbanismo contemporâneo que as mu-
danças estruturais traduzidas como a
fase exível do capital consolidaram um
novo modo de administração das cidades,
orientado para a promoção do desenvolvi-
mento econômico, explorando vantagens
locacionais para oferta de bens e servi-
ços e para atração de capitais nanceiros
(BRENNER ET AL., 2011; COMPANS,
2004, HARVEY, 2006).
Neste processo a reocupação dos
centros urbanos ganha outra importância.
Essenciais por sua função habitacional,
pela concentração de matrizes empresa-
riais ou equipamentos culturais essenciais
à cotidianidade, os centros carregam par-
te essencial da história que organiza as
comunidades políticas a que se referem.
As características deste “retorno
ao centro” (SMITH, 2006) se apresentam
de forma geral como uma tentativa da re-
solução de problemas urbanos referen-
tes à estagnação econômica. Assim dito
de forma genérica, tenderíamos a supor
que este processo conta com parâmetros
universalistas de renovação da econo-
mia urbana. Mas a forma dominante do
padrão nanceiro do capital movimenta-
-se sob outra direção, superando quais-
quer didáticas dotadas de eufemismos. A
base de investimentos na região central
normalmente se concentra em um con-
junto bastante estrito de parcelamen-
tos espaciais – os capazes de oferecer
maior rentabilidade –, tendo em vista a
maximização dos investimentos de cer-
tos setores capitalistas.
Relativamente esvaziados, inclu-
sive em sua importância simbólica, os
centros veem-se comumente repletos de
capitais xos desvalorizados, sendo facil-
mente transacionados a preços módicos
de mercado. Neste aspecto, o alto grau
especulativo do capital que circula o es-
paço encontra nos centros urbanos “opor-
tunidades” únicas de gerar sobre-valores
espaciais, operando em retóricas de su-
peração da degradação espacial, da in-
segurança e da inércia econômica do uso
(HARVEY, 2006).
Neste âmbito a operação de re-
novação da economia urbana poderá
encontrar várias de suas ambiguidades
explícitas. Entre as formas de ocupação
– por vezes centenárias – e a promoção
de condições de rentabilidade ao inves-
timento capitalista, o solo urbano se vê
imerso nas tensões entre políticas de
conservação ou estímulos à destruição
própria da espacialização do capital. A
trajetória arquitetônica, seus valores-de-
-uso, os sujeitos usuários e moradores
circundam o processo de retorno como
empecilho ou formas ativas da reorienta-
ção econômica do espaço.
Neste sentido, as administrações e
os viventes das cidades vêm enfrentando
desaos de enorme monta, em especial
no que concerne às possibilidades de con-
jugação dos parâmetros característicos da
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urbe – a ideia de diversidade social, por
exemplo à atração e xação de uxos
nanceiros dispersos como condicionante
privilegiado para o desenvolvimento eco-
nômico urbano.
Como tal, é possível imaginar que
certos parâmetros da vida citadina me-
nos propensos à integração social subor-
dinada às exigências da espacialização
contemporânea do capital podem ver-se
atravessados por dinâmicas conituosas
quanto às perspectivas de continuidade
e publicização de seus projetos. A ges-
tão urbana, quando alinhada ao caráter
de viabilização da acumulação urbana,
pode então conter em sua dinâmica cer-
tos obstáculos que, no cumprimento da
gestão empreendedora da cidade, aca-
bam por gerar distintos graus de invisi-
bilidade de práticas e de deformação da
experiência da diversidade cultural. E
neste processo vivências urbanas que
encontram o patrimônio cultural podem
ser diretamente afetadas. Formas de e-
xibilização sobre o uso do solo podem
criar condições de interferência em ex-
periências patrimoniais, e de forma às
vezes menos evidente para as agências
e corpos que as representam.
Para este artigo, a materialização
deste processo se fará na análise do
centro da cidade do Rio de Janeiro, mais
especicamente acerca dos imbróglios
envolvendo a continuidade de algumas
atividades comerciais com larga idade na
Rua da Carioca, tendo como tese de fun-
do as interferências do modelo de gestão
urbana caracteristicamente empreende-
dor (HARVEY, 2006) e seus efeitos para
experiências no subcampo do patrimônio
cultural. Propõe-se, portanto, a analisar
possíveis interações entre as políticas
patrimoniais e a gestão urbana contem-
porânea, em especíco acerca das dinâ-
micas de sobreposição entre interesses
privados de acumulação urbana e formas
explícitas de intervenção da municipali-
dade. Para tal, procurou-se investigar a
criação do novo livro de registro patrimo-
nial imaterial intitulado “Atividades Eco-
nômicas Tradicionais e Notáveis”, uma
iniciativa do Instituto Rio Patrimônio da
Humanidade (IRPH), órgão criado pelo
Executivo municipal para planejar e exe-
cutar os programas e projetos relativos ao
patrimônio cultural (DOMINGUES, 2016).
No caso do Rio de Janeiro é pos-
sível ainda destacar as profundas trans-
formações que a cidade vem sofrendo em
sua gestão urbana e em sua política de
patrimônio cultural, reivindicando, inclusi-
ve, aproximações com a gramática parti-
cular da economia criativa
III
. Por óbvio, o
centro da cidade tem chamado atenção
nestas novas relações.
O que é notável perceber é que
as ações de radicalização da mercan-
tilização espacial do centro da cidade
do Rio de Janeiro vêm incorporando
interesses de atores públicos ligados à
área do patrimônio cultural, e de forma
muito peculiar. Se pudemos perceber
até a década de 2000 certa preocupa-
ção com a dimensão imobiliária e com
os conjuntos arquitetônicos e ambien-
tais, a década de 2010 conformará uma
conexão entre dimensões imateriais li-
gados ao campo do patrimônio cultural
e a capacidade de geração de um tipo
muito especial de sobrevalor espacial
(DOMINGUES, 2016).
De certa maneira, hipostasiar um
Rio de Janeiro antigo, um território “tra-
dicional”, atualiza ao patrimônio cultural
condições únicas de sua conguração
enquanto um setor produtivo. De forma
conexa aos seus ocupantes, o que lhes
darão sentido, uma certa “autenticidade”
e “veracidade” de sua “tradicionalidade”
estarão ocupados em táticas de perma-
nência. No caso a analisar, ver-se-á que
a descrição desta ação patrimonial é ta-
manho novidadeira que implica a criação
148
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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de um livro patrimonial cujo interesse de
registro está ligado a atores de ativida-
des econômicas – uma mudança radical
de trajetória das políticas patrimoniais,
onde se procura atender como princípio
protetivo o domínio da posse de um pe-
queno comércio.
O que se pretende aqui apresen-
tar é um breve relato de uma pesquisa
de campo que procurou interpelar as re-
lações mais moleculares que hoje tencio-
nam vínculos entre a espacialização do
capital e a especialização do patrimônio
cultural imaterial. Ao m, é cabal perce-
ber que o substrato da fala destes “novos
atores tradicionais” está repleto de re-
ceios, seja acerca de sua “desconexão”
ao tempo presente seja sobre seu medo
de exclusão nas atividades laborais.
Rua da Carioca, Rua do Piolho:
elementos heterotópicos como fontes
potenciais do patrimônio cultural
Volta-se agora à questão concreta
que subjaz à indagação deste trabalho.
Para demonstrar como as relações en-
tre a gestão urbana empreendedora e o
campo político-cultural fazem-se de for-
ma tensa, analisar-se-á o imbróglio en-
volvendo as atividades do conjunto ur-
bano imobiliário – e de suas expressões
componentes – da Rua da Carioca, no
centro da cidade do Rio de Janeiro, em
relação à curta trajetória das políticas de
patrimônio.
A Rua da Carioca encontra-se
como logradouro no limite das Ruas da
Assembleia, Uruguaiana, ligando o Largo
da Carioca à Praça Tiradentes. Por rmar-
-se nesta conuência de ocupação da ci-
dade, a Rua da Carioca é um caso exem-
plar das muitas transformações que o Rio
de Janeiro experimentou, desde sua fun-
dação. De maneira ainda mais importante,
o estudo da Rua da Carioca em sua atual
circunstância igualmente expõe a recente
reocupação do centro da cidade do Rio de
Janeiro, em sua nova função para a repro-
dução urbana de tipo único.
Como tal, é possível perceber as
utuações no planejamento da cidade, os
resquícios de endurecimento das ativida-
des populares promovidas pela regulação
do poder público, a anterioridade das pro-
priedades imobiliárias, as confusas inter-
venções transescalares, que incidiram so-
bre a diminuição de importância e pujança
econômica da cidade.
Aberta no nal do século XVII, pró-
xima aos limites da zona urbana da cida-
de, a Rua da Carioca – então chamada
Rua do Egito – era vizinha ao Morro de
Santo Antônio, propriedade da Ordem
dos Franciscanos. Sua ocupação come-
çaria no margeamento da propriedade
franciscana, e apenas no século XVIII co-
meçaram a surgir imóveis do lado opos-
to. Era a mesma época de construção do
Hospital da Ordem Terceira de São Fran-
cisco da Penitência.
Em 1741 a rua ganharia outro nome;
Rua do Piolho, que remetia à alcunha de
um morador especialista em vasculhar
cartórios, como “piolho em costura”. Ape-
nas em 1848 a Câmara Municipal deu-lhe
o nome de Rua da Carioca, em referên-
cia ao trajeto dos moradores na busca de
água no chafariz do Largo da Carioca
IV
.
O lado ímpar da Rua da Carioca
foi povoado com imóveis de construções
neoclássicas. O lado par remete à fase
eclética da arquitetura brasileira, que
substituiu as originais, logo no início do
século XX.
Em fins do século XIX e início
do XX, a Rua da Carioca será então
capturada pela lógica sanitarista e em-
belezadora da interferência urbana re-
publicana. Este processo compunha
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concomitantemente dois anseios: capi-
talizar o modelo estético e memorial do
período imperial, inclusive o acúmulo de
novas operações urbanas; e preparar a
capital da novíssima República para os
novos tempos de modernidade. Como
tal, é possível perceber que apenas no
decorrer do século XX muitas das análi-
ses sobre os possíveis aformoseamen-
tos da cidade do Rio de Janeiro seriam
de fato levadas a cabo, em especial
pelas reformas produzidas no centro
da cidade do Rio de Janeiro durante a
prefeitura de Pereira Passos (ANDRE-
ATTA, 2008). Os efeitos concretos das
reformas gradualmente retirariam o uso
residencial do centro, deixando-a dispo-
nível para o uso comercial. Como tal, a
ocupação imobiliária da Rua da Carioca
destinou-se quase que exclusivamente
a esta funcionalidade.
O lado ímpar da Carioca é ainda
hoje formado por construções neoclás-
sicas datadas de meados de 1880, en-
quanto que as do lado par da rua foram
substituídas já na primeira década do
século XX, e a rua, alargada. As constru-
ções são, em si, alvo de proteção prévia
pelo Decreto Municipal nº 20.048/2001,
do município do Rio de Janeiro, que pro-
íbe a demolição de edicações constru-
ídas até o ano de 1937. Este decreto
altera artigos do Regulamento de Licen-
ciamento e Fiscalização, de 20 de abril
de 1970, e determina que a “demolição e
a alteração das edicações construídas
até 1937, inclusive, somente serão auto-
rizadas após pronunciamento favorável
do Conselho Municipal de Proteção do
Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro”
(RIO DE JANEIRO, 2001).
Este instrumento legislativo, ainda
que não contenha em si a mesma quali-
dade jurídica nem a perspectiva de ação
político-cultural dos processos de tomba-
mento, já pôde garantir à Rua da Carioca
uma certa permanência de seu conjunto
urbano no âmbito municipal. Ademais, os
casarios da Rua da Carioca são tomba-
dos pelo Instituto Estadual do Patrimônio
Cultural (INEPAC) desde 1983, e o con-
junto arquitetônico protegido pela Lei nº
506, de janeiro de 1984, que cria a Zona
Especial do Corredor Cultural. Como tal,
a dimensão imobiliária da Rua enquadra-
-se numa organização mais ampla do
caráter patrimonial municipal, incidindo,
inclusive, na restrição ao aumento do ga-
barito de construções.
Mas o que os decretos, processos
e leis que tenham como vínculo a dimen-
são patrimonial ainda não se mostram
precisos diz respeito às garantias de per-
manência das atividades que conferem
o caráter de reconhecimento público a
certos capitais xos dotados da anterio-
ridade necessário à consagração como
patrimônio cultural.
Como já citado, a Rua da Carioca
mantém em si suas peculiaridades espa-
ciais. Interligando o Largo da Carioca à
Praça Tiradentes e bem próxima à Lapa, a
Rua ilustra as experiências heterotópicas
de informalidade cotidianas (LEFÈBVRE,
1999) e as ondas de transformações es-
paciais do centro da cidade.
Se o bairro da Lapa é hoje reconhe-
cido como um dos locais onde a produção
cultural da cidade do Rio de Janeiro ga-
nha aspectos de nova prossionalização e
a Praça Tiradentes acompanha a indução
de investimentos públicos para a amplia-
ção de empreendimentos criativos, a outra
margem da Rua da Carioca aponta ainda
para outros vínculos territoriais.
O Largo da Carioca é ainda um
local de experimentos espaciais muito
especiais. O Largo sintetiza no encla-
ve certos vínculos que todas as cidades
mantêm com o mundo do trabalho, em
especial àqueles que não dispõem das
mesmas quantidades de capitais (eco-
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nômicos, culturais e sociais) hoje con-
vencionados como pré-requisitos à sua
inserção em rotinas formais. Por óbvio
estas se consolidam em tensão, quando
a plêiade de sujeitos, que hoje não estão
inseridos no mercado de trabalho formal,
mostram-se muitas vezes desprotegidos
às dimensões de ação regulatória espa-
cial da “ordem pública”.
Ademais, o Largo é também um
dos marcos da história urbana do Rio de
Janeiro. Sua localização nas proximida-
des dos centros de cultura e economia
de serviços da cidade reforça sua fun-
ção comercial, “além de reforçar a ima-
gem de centro de “afazeres” da cidade”
(VALVERDE, 2009, p. 26). Lotado de
músicos de rua, camelôs, capoeiras, pa-
lhaços, malabaristas, pastores e outros
religiosos, é um território de imensa di-
nâmica social e identitária. Sendo uma
das saídas mais movimentadas do Metrô
que corta a cidade, lotado de sedes de
pequenos estabelecimentos empresa-
riais e autônomos, o uxo diário de seus
circunstantes nas rotinas de trabalho é
imenso (VALVERDE, 2009).
A variedade de atividades e cor-
pos normativos e desviantes inscritos no
espaço impõe a percepção de que exis-
tem – e de certa forma, até resistem ao
processo hegemônico em voga – dinâ-
micas econômicas peculiares, em gran-
de parte construídas em razões afetivas
e territoriais.
De certa maneira, esta condição
de invisibilidade é correlata às descritas
das políticas de patrimônio na área cen-
tral da cidade, cuja trajetória acentua sua
dimensão material. O trajeto Largo/Rua
da Carioca expõe uma singularidade ao
processo de requalicação em andamen-
to na cidade do Rio de Janeiro quando
envolvidas as dimensões imateriais do
patrimônio. De certa forma, a Rua da Ca-
rioca apresenta-se como um “espaço en-
tre” ofertas isotópicas de intervenção no
espaço e práticas heterotópicas de rela-
cionalidades espaciais.
Esta evidente tensão viria a se
mostrar ainda mais dramática no contex-
to da produção espacial da região central
nos anos 2010. É essencial recordar que
a cidade do Rio de Janeiro recebeu uma
agenda de megaeventos durante esta
década e isto implicou incisivamente no
modo de acumulação de sua economia
urbana (VAINER, 2016).
Esta agenda também sintetiza
uma série de alterações no padrão de
planejamento urbano, amplamente dis-
cutido pela literatura crítica do espaço
(ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000;
BROUDEHOUX, 2007; GOLD, 2008;
MARSHALL, 2000; SÁNCHEZ, 2010).
Quer-se chamar atenção para um novo
parâmetro de interesses que se organiza
a partir do crescimento da renda agrega-
da ao uso do solo urbano, unindo gru-
pos privados aos diferentes poderes es-
tatais. A gestão urbana será formulada
em grande parte para garantir diferentes
maneiras de intensicação de extração
de rendimentos privados que o espaço
propicia (FERREIRA, 2003). No caso
em questão, o centro da cidade seria um
dos marcadores preferenciais para tal.
Este modelo de interposições re-
etirá também nos vínculos entre a ma-
terialidade patrimonial e a imaterialida-
de das práticas patrimoniais, que viria a
se mostrar frágil diante das estratégias
capitalistas de acumulação urbana. As
propriedades imobiliárias da Rua da Ca-
rioca estavam disponíveis à liquidez do
capital especulativo imobiliário em voga
no cenário de requalicação do centro da
cidade do Rio de Janeiro, os pequenos
comércios que ocupavam estas proprie-
dades, viam-se fragilizados diante deste
processo. Até então, os valores de loca-
ção de grande parte dos imóveis na Rua
151
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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da Carioca tinham ajustes baixos para
o padrão do mercado imobiliário dispo-
nível no Centro, após negociação entre
os comerciantes e a Venerável Ordem
Terceira de São Francisco da Penitência
(VOT) – proprietária dos imóveis.
Bem próximo à Praça Tiradentes,
que à época já se encontrava em intenso
processo de ocupação de serviços criati-
vos, e um dos espaços-chave para a vin-
culação entre requalicação urbana isotó-
pica e o campo cultural, a Rua da Carioca
explicitaria uma gama de tensões para a
vida patrimonial da cidade. Outrora per-
tencentes à VOT, dezenove casarões do
lado ímpar da Rua da Carioca foram ad-
quiridos em lote pelo Banco Opportunity
ainda em 2013.
Segundo notícias da época, os in-
vestimentos do Banco visavam retomar
a “aura de sosticação” da Carioca, cuja
ocupação seria destinada a escritórios
“estilizados”, segundo o diretor do Ban-
co, Jorge Monnerat
V
. Em sendo, é de se
supor que, ao lado das atividades comer-
ciais que construíram certa anterioridade
no local, outros comerciantes populares
fossem empecilhos à nova estilização
proposta. Vários deles anunciavam o re-
ceio de revisão dos preços dos aluguéis,
o que tornaria a permanência de suas ati-
vidades impraticável
VI
.
E nesta operação incide uma
nova relação de poderes territoriais.
Tendo como primado a dimensão finan-
ceira, do tráfego mais veloz possível em
direção à acumulação urbana, certos
laços até então consolidados no “espa-
ço entre” da Carioca seriam submetidos
a um novo tipo de “incorporeidade” do
poder, fisicamente inacessível aos que
não possuem os convites de entrada
(BAUMAN, 2001).
Onde se pressupunha que as
concorrências e acordos ociais da
constelação sócio-espacial especíca
produzissem relações contratuais cor-
respondentes, viram-se posteriormente
obstaculizados pela sensação de “novos
negócios” que a posse dos capitais xos
concediam. Por óbvio, os interesses de
um banco em nada se parecem com os
de instituições religiosas que de certa
forma marcam a própria história do lu-
gar. Como tal, vizinhos indesejáveis ou
inoportunos aos novos vínculos de dese-
jo negocial a se construir serão substituí-
dos por outros.
Um novo livro para o patrimônio
cultural: a tradição como um
recurso de permanência espacial?
Os efeitos deste processo têm
desdobramentos para além da lógica
empreendedora urbana. De alguma ma-
neira, é a própria diversidade social –
um axioma da dimensão urbana – que
pode ser reduzida ao isolamento e ho-
mogeneidade espacial produzidos pelo
tipo de produção capitalista no espaço.
É comum à lógica de aceleração rentis-
ta da acumulação urbana condicionar a
dispersão espacial em moldes seletivos
de expressões culturais, garantindo a
segurança de uma “monótona similari-
dade de todos dentro do campo visual”
(BAUMAN, 2001, p. 54).
Como tal, nota-se que as prote-
ções patrimoniais em voga à época –
que tendiam a lidar quase que exclusi-
vamente com a perspectiva material do
patrimônio – mostravam-se desmobiliza-
das para interromper o uxo de acumu-
lação capitalista via monopólio espacial.
Ademais, é essencial rearmar como se
imiscuem relações de acumulação de
certos setores capitalistas aos interes-
ses e investimentos públicos no empre-
endedorismo urbano. Indicado no pla-
no estratégico Pós-2016 o processo de
transformação da área central da cidade
152
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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encontra na Prefeitura do Rio de Janeiro
o principal agente de atração de capitais
especulativos (PEC, 2010).
Ao ampliar o investimento em in-
tervenções urbanas sem disponibilizar a
mesma atenção na ampliação da parti-
cipação popular na discussão e acom-
panhamento dos projetos urbanísticos
de intervenção ou de medidas públicas
para a interrupção dos processos de
gentricação (SMITH, 2006), os efeitos
incidirão de forma mais decisiva à maior
rentabilidade possível ao capital. Com
isso, vê-se a possibilidade de constitui-
ção de um tempo produtivo do espaço
que rechaça os corpos desviantes, ago-
ra em evidente risco.
De igual forma, é necessário inter-
pelar dimensões patrimoniais possíveis
no âmbito das relações entre economia
criativa e o espaço urbano. Alguns ar-
ranjos produtivos compreendidos como
parte da economia criativa podem dis-
por de maior ou menor facilidade para
ingressar em ambientes onde a produ-
tividade espacial se constrói como uma
regra padrão da acumulação urbana.
Arranjos mais afeitos a linguagens pró-
ximas à noção de inovação – portanto,
capazes de oferecer serviços especiali-
zados – são alvos preferenciais dos in-
vestimentos em estilização adequados
ao consumo global e aos processos de
sobrevalor imateriais espaciais.
De maneira correlata, certas ex-
periências patrimoniais, que se veem
com menor propensão a contribuir para
a acumulação destes atores capitalistas,
não podem prescindir do diálogo com
avizinhamentos que permitem reduzir os
custos materiais de sua própria reprodu-
ção. Nesta razão, é possível supor que
algumas canastras e seus atores prefe-
renciais conquistam não apenas a sim-
patia dos investidores da requalicação
espacial, como também as capacidades
inerentes a se apresentarem como seus
usuários mais adequados.
Há de se indagar, portanto, as di-
ferentes capacidades de mobilidade que
os sujeitos sociais detém ante seu acú-
mulo – alto ou não – de relações comu-
nitárias e associativas (BAUMAN, 2001).
É possível supor que alguns grupos
sociais mais ativos em sua aproxima-
ção com classes rentistas conseguem
mobilizar mais capitais necessários ao
deslocamento espacial que outros. Em
oposição, sujeitos sociais que dispõem
de menos capitais (econômicos ou cultu-
rais) para deslocar-se precisam requisi-
tar meios de rearmação de seus víncu-
los territoriais e culturais para denir sua
permanência no espaço.
É também neste sentido que a ex-
periência patrimonial encontra na cidade
seu lugar de disputas entre os possíveis
sentidos a se conceber territorialmente.
Este apanágio imerso em contradições de-
monstra vínculos entre os que se mostram
indesejáveis à condição empreendedora
da urbanidade, mas que podem resistir
reivindicando ser parte ativa na memória
compartilhada pelos habitantes da cidade.
Durante os anos de 2013 e 2014,
os contratos de locação da Rua da Cario-
ca foram sendo reajustados segundo os
valores do mercado imobiliário corrente
no período. É perceptível que os dispên-
dios anteriores de locação ofertados pela
VOT contribuíam de forma decisiva para
amenizar os custos xos de reprodução
do próprio comércio na região. A expan-
são da especulação imobiliária na área
central, tendo em vista o já citado acúmulo
de renovação das franjas da Rua da Ca-
rioca, contribuiu para construir um cenário
de diculdades para a permanência dos
comerciantes na Rua.
Em entrevistas, vários comercian-
tes referiam-se ao reajuste dos preços
153
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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de locação como uma medida sumária
de sua expulsão da Carioca e também
denunciavam não terem sido preferen-
ciados na possibilidade de aquisição in-
dividual dos imóveis, tal como rege a lei.
Já no mês de abril de 2013, nove lojistas
estariam envolvidos com noticações
de despejo, após correção locatária fei-
ta pelo Banco
VII
. É difícil supor que as
medidas de reajuste fossem conexas a
qualquer expectativa de máxima liquidez
em relação aos investimentos de aquisi-
ção dos imóveis.
Em face disso, os comerciantes
ali instalados procuraram organizar-se
para impedir os riscos de despejo, uti-
lizando, em especial, argumentos que
recuperassem dimensões afetivas e pa-
trimoniais da cidade. A Sociedade Ami-
gos da Rua da Carioca e Adjacências
(SARCA) promoveria então uma série de
ações para a publicização do caso. Am-
plamente divulgado pela imprensa ocial
e pela rádio informal que corta todo o
ambiente, a Rua da Carioca veria ainda
seus imóveis lotados com várias faixas
que denunciavam a questão.
Neste momento entra em cena um
curioso personagem, o senhor Roberto
Cury. Citado pelos lojistas como o princi-
pal articulador dos comerciantes na busca
por sua permanência no local, o Senhor
Cury é membro fundador e Presiden-
te da SARCA no momento do imbróglio.
Também comerciante e extremamente
articulado e carismático, Roberto Cury é
um tipo muito especíco de militante. Em
entrevista, ele deixava claro que a So-
ciedade fora criada em 1977 em função
de um projeto do período Lacerda para
demolição do lado ímpar e de recuo do
lado par da Rua da Carioca, que viabiliza-
ria uma via expressa do centro ao bairro
da Tijuca. Segundo Cury, já era interesse
da Ordem Terceira a derrubada do local,
onde seria possível a construção de dois
espigões de prédios, mais rentáveis
VIII
.
A resposta da Prefeitura implicou
na maior novidade em termos de políticas
patrimoniais na década. Procurando an-
tecipar-se à questão, a Prefeitura do Rio
de Janeiro, no Decreto 37.271, de 12 de
junho de 2013, cria, após pronunciamen-
to favorável do Conselho Municipal de
Proteção do Patrimônio Cultural do Rio
de Janeiro, o Livro de Registro de Ativida-
des Econômicas Tradicionais e Notáveis
(RIO DE JANEIRO, 2013a). O texto do
Decreto indica que os livros de registro
patrimoniais que até então orientavam os
parâmetros das políticas de patrimônio
imaterial (Saberes; Formas de expres-
são; Celebrações; e Lugares) não abran-
giam as especicidades das atividades.
Como complemento, e através do
Decreto 37.273, de 12 de junho de 2013,
a Prefeitura do Rio de Janeiro, conside-
rando “a importância da Rua da Carioca
para a história e memória cultural da Ci-
dade” e “o expressivo número de imóveis
reconhecidos ocialmente como de va-
lor cultural para a cidade”, criou o Sítio
Cultural da Rua da Carioca, tomba nove
imóveis, e registra as nove atividades
comerciais nestes situados no novo livro
de Atividades Econômicas Tradicionais e
Notáveis: Casa Nova Zurita; Irmãos Cas-
tro; Mala de Ouro; Mariu’s Sport; Padaria
e Confeitaria Nova Carioca; Ponto Mas-
culino; Loja Vesúvio; A Guitarra de Prata;
e, o Bar Luiz (RIO DE JANEIRO, 2013b).
O que se deriva é uma contradi-
ção entre vínculos possíveis de trans-
missão pública da noção acionada de
“tradição” e sua legitimidade associada
à permanência destes atores sociais em
um espaço em vias de transformação.
Ao determinar uma nova categoria como
elemento fundacional de um novo livro
de registro – no caso, a ideia associa-
da de um comércio de pequena escala
à tradicionalidade notável – a Prefeitura
dene como parâmetro de associação os
seguintes critérios cumulativos: i) “em-
154
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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presas que possuem uma marca ou re-
putação reconhecida”; ii) “empresas fa-
miliares que preservam o negócio entre
gerações”, iii) “comércios que preservam
técnicas e processos de produção arte-
sanais ou tradicionais”; e iv) “que sejam
reconhecidos símbolos ou como parte da
história da cidade do Rio de Janeiro”
IX
.
É certo que os que parecem social-
mente legitimados para exercer o sentido
de classicação do mundo patrimonial
estão nos informando algo. Se acionam
alguma extensão ou renovação da noção
de “tradição” é porque esta invenção pa-
rece explicitar a necessidade incessante
da própria modernidade em atualizar seu
parâmetro de informação social de tempo
(GIDDENS, 2000).
A crença produzida, no entanto,
desloca um certo parâmetro expressivo
da performance até então entendida no
vínculo patrimonial. Não se trata mais
das coisas que intuímos serem de “anti-
gamente”, não apenas as que nos con-
vencemos serem “originais” ou atempo-
rais, cujo domínio de anterioridade é para
alguns poucos seletos.
Vimos descrito em nossa frente
que agora assumem como performance
tradicional concedida por estatuto legiti-
mado alguns “novos” corpos. Corpos que
nunca necessitaram – ou nunca domina-
ram estas formas especícas de associa-
ção – acionar de forma explícita o que a
normatividade estatal dene como a “tra-
dição” que move a arqueologia das políti-
cas de patrimônio cultural.
O incrível é perceber que estes
corpos novo-associados à tradição notá-
vel são já corpos endurecidos, gerenciais,
pragmáticos e facilmente reconhecidos
pelo próprio capital. Não são corpos facil-
mente deslocáveis do discurso patrimo-
nial ao possível espetáculo – outro nível
de associação da vida capital. São corpos
privados, rotineiros, xados no tempo.
Quando informados de sua tradicionali-
dade não sabem o que dela realizar.
Como percebido, a despeito dos
vínculos ao patrimônio material conso-
lidados tanto pela legislação municipal
quanto pela estadual, os imóveis per-
maneciam à mercê do capital imobiliá-
rio e especulativo. De certa maneira, o
processo lembraria o ocorrido na região
central da cidade durante as décadas de
1990 e de 2000.
A diferença fundamental é que a
Rua da Carioca se trata de um polígo-
no com ativação territorial única, com
cotidianidade afetiva amplamente difun-
dida entre os citadinos, mesmo os que
buscam entretenimento noturno ou al-
ternativo. Portanto, um dos principais ar-
gumentos retóricos utilizados para justi-
car intervenções deste tipo no caso, a
degradação ou o esvaziamento espacial
– perderia seu sentido de naturalização
e legitimidade de atuação. O que pres-
supunha a liquidez de investimentos pri-
vados, aproveitando-se dos investimen-
tos públicos na área, em nada lembraria
a onda de “revitalização” com a qual as
franjas da Rua da Carioca seriam roti-
neiramente celebradas, mas a sumária
condenação aos que não participam di-
retamente do projeto de acumulação ur-
bana em processo.
No caso da criação do Livro Ati-
vidades Econômicas Tradicionais e
Notáveis, é necessário igualmente es-
tabelecer alguns comentários. Já foi ci-
tado o interesse expresso da Prefeitu-
ra do Rio de Janeiro em conceber uma
nova realidade de ocupação do solo na
área central da cidade, tendo inclusive
a cultura como um de seus eixos espe-
ciais (PEC, 2010).
Mas existe um evidente hiato entre
as expectativas dos gestores públicos e
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os que conferem materialidade à rotina
de certas atividades patrimoniais. Desta
maneira, a transição do patrimônio cul-
tural ao conjunto de canastras que ex-
pressam a economia criativa não se dá
de maneira simplicadora, como se po-
deria supor. Para concretizar-se, seria
essencial conceber os diferentes tipos de
programas de educação patrimonial com-
plementares e os respaldos jurídicos que
preservariam o comércio tradicional em
relação à dinâmica espacial corrente.
Como tal, desde a criação do Sí-
tio Cultural da Rua da Carioca, entre idas
e vindas, dois estabelecimentos foram
removidos do circuito. O Ponto Mascu-
lino conseguiu, em juízo, a compra de
seu imóvel até então alugado. Resolvida
sua pendência, seus donos sequer se
interessaram em conceder depoimen-
to sobre a participação no Sítio. A Mala
de Ouro fechou as portas. Em entrevista
concedida em junho de 2013, o senhor
Henrique Cardoso, um dos sócios do em-
preendimento, reclamava da inecácia
do decreto e anunciava que os estabele-
cimentos ainda corriam os riscos de des-
pejo. Extremamente comovido, dizia não
entender qual o real efeito do novo livro
de registro para a resolução do impasse
e ainda desconhecer os planos do Banco
Oportunnity para os imóveis
X
.
No mês de abril de 2014 a SAR-
CA convocou os comerciantes a perfor-
marem um ato simbólico de enterro da
Rua da Carioca. Milhares de circunstan-
tes puderam acompanhar uma pequena
fanfarra executar a marcha fúnebre, en-
quanto os lojistas e outros simpatizan-
tes impediam o tráfego normal dos au-
tomóveis. A despeito das inúmeras falas
de apoio dos citadinos que listavam um
abaixo-assinado a ser entregue à Pre-
feitura, e dos muitos apelos ao Banco
em considerar a inscrição dos estabele-
cimentos na memória da cidade, o caso
permanecia sem solução aparente.
Este fato expõe as dificuldades que os
instrumentos de proteção ao patrimônio
cultural até então disponíveis têm quan-
do interpelados pela razão empreende-
dora urbana.
Eis uma curiosa associação: o
ritual da morte performatizada demons-
trava de forma bastante explícita como
agências em risco apelam à associação
de um corpo que já não mais se move ou
respira. O enterro da Rua da Carioca re-
atualiza a percepção de que são os cor-
pos que dão signicado ao espaço. Um
livro patrimonial parece guardar apenas
a expectativa de registrá-los.
O grau de desânimo e descren-
ça faz supor que a adesão ao novo li-
vro de registro só poderia se fazer na
incorporação de outros mecanismos da
legislação urbana disponível. A principal
demanda dos estabelecimentos regis-
trados não estava ligada diretamente ao
universo patrimonial, embora fosse este
um argumento para atração afetiva dos
citadinos. Foi constantemente citado
que o pleito à Prefeitura era claramente
a desapropriação dos imóveis e a inde-
nização ao banco
XI
.
O Decreto nº 38.645, de 2 de maio
de 2014, declara de utilidade pública,
para ns de desapropriação, os imóveis
7, 15, 17, 19, 21, 35, e 37 da Rua da Ca-
rioca (RIO DE JANEIRO, 2014). Estavam
desde já excluídos o Ponto Masculino –
por óbvio não se tratar de ns de desa-
propriação deste tipo – e a Mala de Ouro,
com suas atividades já encerradas.
Neste desenrolar, percebe-se
que a eficácia do novo livro de registro
do patrimônio imaterial cede em relação
à dinâmica de acumulação urbana na ci-
dade empreendedora. Sem a disponibi-
lidade de estratégias complementares,
o simples ato de registro de atividades
não carrega em si as competências su-
156
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ficientes para a continuidade da comu-
nidade detentora de sua especificidade
memorial ante a tensa relação entre
propriedade privada e função social da
cidade. Ademais, quando conduzidas
sem o comum entendimento dos sujei-
tos sociais ativos da expressão patrimo-
nial – de forma a estender e potencia-
lizar dinâmicas da referência cultural –,
inclusive investindo na melhor adequa-
ção do texto de lei e no esclarecimento
dos reais motivos de sua adequação, o
registro parece dever muito mais à re-
produção da “retórica da perda” (GON-
ÇALVES, 1996) do que à real ativação
do patrimônio e de suas especificidades
na economia espacial. Igualmente, não
há nenhum caráter explícito de como
será empenhada a gestão dos imóveis,
nem planos de envolvimento destes
empreendimentos agora registrados em
modelos de desenvolvimento econômi-
co que estejam de acordo com suas ati-
vidades patrimoniais.
Contratempos do espaço:
tradição e produtividade espacial
Procura-se aqui, nesta discus-
são final, indagar as relações entre
empreendedorismo urbano, patrimônio
cultural e a abertura de um novo livro
patrimonial sob uma mudança esca-
lar radical. O vínculo até aqui propos-
to procurou interpelar generalizações
da gestão contemporânea da cidade e
os níveis de construção e legitimação
das políticas patrimoniais. Como tal, se
demonstrou como as relações entre pa-
trimônio material e imaterial adquirem
níveis de enfrentamento da questão ur-
bana razoavelmente desiguais no âmbi-
to da política patrimonial da cidade do
Rio de Janeiro.
Em que pesem as formas ideais
apresentadas no texto, que procuram
sinalizar a Rua da Carioca como um
espaço entre perspectivas isotópicas
e práticas heterotópicas, é necessário
questionar-se quantas sobreposições
espaciais são passíveis de se encontrar
no processo. Empregando entrevistas
com vários dos comerciantes e trabalha-
dores dos estabelecimentos erguidos à
condição de atividade econômica notá-
vel, pode-se perceber como, em sua per-
cepção, são ainda frágeis as relações do
patrimônio com a cidade.
Foi curioso notar como, em suas fa-
las, o tempo e o medo articulam-se mutua-
mente. Ao mesmo passo em que o tempo
é o registro de ativação de sua legitimida-
de patrimonial como uma oposição ao ren-
tismo imobiliário, é o medo de sua desco-
nexão espacial em um Rio de Janeiro que
parece não contrair mais sentido no atual
estágio da acumulação urbana.
Traz para a discussão a necessi-
dade de se pensar padrões de tempo-
ralidades compostas na análise. A ine-
xorabilidade das relações espaço-tempo
impõe ao registro do novo livro patrimo-
nial um desao de alta monta. Dado que
as concepções de espaço e tempo são
criações fundamentais da ação humana
e servem à reprodução da vida social
(HARVEY, 2004), o registro das con-
dições notáveis da economia local só
podem ser condicionadas às variáveis
espaciais sobre as quais estes registros
temporais se mostram consolidados, fa-
zendo o esforço de recuo histórico no
acompanhamento de sua trajetória até
o tempo presente. Em sendo, é apenas
na contínua captura e interpretação das
narrativas dos atores-chave componen-
tes destas atividades que se mostrará
possível perceber em qual grau a inexo-
rabilidade descrita se relaciona com for-
ma mais contemporânea de espacializa-
ção do empreendedorismo urbano.
Este nexo que faz supor que a
Rua da Carioca não se trata apenas de
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um “espaço entre”, mas essencialmen-
te de um espaço que conecta tempos,
temporalidades e corporalidades “entre”.
De certa maneira é esta conexão entre
os efeitos da isotopia (que estes comer-
ciantes também fazem apropriar-se, evi-
dentemente) às diversas perspectivas
heterotópicas vizinhas.
Vale aqui registrar de imediato
que o tempo da produtividade do capital,
do rentismo e da liquidez imediata não
se vale das mesmas categorias sociais
que os citadinos ora representantes do
comércio da área constroem para si em
relação à cidade. Desta feita, o que pare-
ce conduzir parte das contradições des-
critas não é apenas o apego das clas-
ses capitalistas aos negócios urbanos e
à máxima lucratividade, mas igualmente
a assincronia entre registros de experi-
mentação de tempos e espaços sociais
em choque no espaço. Nestas estão in-
cluídas formas capitais não corporica-
das ativos nanceiros –, cuja relação
com o espaço se dá em máxima acelera-
ção de seu valor, em detrimento de for-
mas de oferta de serviços, grande parte
consolidados numa dada economia de
afetos espaciais, em nada capazes de
antepor-se nas condições de acumula-
ção de agentes nanceiros.
Aparentemente destino irremediá-
vel da acumulação, a Rua e o Largo da
Carioca atuam como lacunas. Um espa-
ço que não se comove à velocidade des-
ta acumulação, e que teima em residir
em outro aspecto temporal. Como tal, os
sujeitos que usufruem de sua sicalida-
de respondem aos anseios de renovação
espacial como espectros. Aparentemen-
te inadequados ao tempo proposto pelo
capital ou pelo produtivismo criativo, re-
pousa em suas falas a ausência de pers-
pectivas sobre o poder público, e mais
propriamente o receio da perda ou inade-
quação. Servem como que indutores si-
lenciados de uma história em vias de ser
ressignicada, aparentemente tardios no
modelo atual de produção espacial.
Implicitamente, dedicou-se até aqui
a explicitar como o espaço é construído de
forma desigual pelos sujeitos sociais. No
caso em questão, é na posse imobiliária
– como direito constituído de propriedade
– e nos vínculos patrimoniais – como sele-
ção induzida das políticas culturais – onde
se fará perceber com mais evidência a
maneira diferenciada de ação no espaço.
Desta feita, ainda que ressaltando o
grau novidadeiro do novo livro patrimonial,
é em sua perspectiva de atuação não inci-
siva no espaço seu laço mais preocupan-
te. Atuações diferentes no espaço dizem
também respeito às perspectivas diferen-
tes de futuro do espaço. A aceleração da
produtividade do solo – no caso em ques-
tão expresso na especulação imobiliária –
em nada parece adequar-se às atividades
que ainda presenciam uma certa nostalgia
comercial local.
Como mediador no campo políti-
co, a procura da Prefeitura do Rio de Ja-
neiro em equacionar a questão a partir
da abertura de um novo livro de registro
mostrou-se problemática, em parte por-
que os registros foram estabelecidos na
perspectiva de permanência dos comer-
ciantes e trabalhadores no local. Nas en-
trevistas produzidas com os comercian-
tes cujas práticas foram registradas no
livro de Atividades Econômicas Notáveis,
em nenhum momento se zeram anima-
dos com o fato, estando cientes de que
a questão demandava outro acento da
legislação urbana corrente. O novo livro
demonstrara, portanto, pouco valor até
o momento em que designou os imóveis
como de interesse público. Apenas na
perspectiva da posse imobiliária que o
imbróglio parece resolver-se.
Se um dos interesses da Prefeitu-
ra fora aproximar a perspectiva patrimo-
158
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
nial ao universo gerencial da economia
criativa, traduzindo a aproximação entre
cultura e negócios urbanos, este se fez
em certo desacordo à concepção patri-
monial vigente no centro da cidade do
Rio de Janeiro pós-década de 1980. Se
nesta fase da política patrimonial da ci-
dade fora consolidada a perspectiva de
um conjunto urbano a se proteger, im-
pedindo o lastro de descaracterização
imobiliária e paisagística dos mercados
futuros de construção civil e da especu-
lação, esta nova ação – que congrega ao
mesmo passo um novo livro de registro
patrimonial e o Sítio Cultural da Rua da
Carioca – foi produzida não de maneira
a interpor-se aos anseios especulativos,
mas de minimizar seus efeitos. A dimen-
são requerida de Sítio também precisa
ser melhor problematizada.
Ao percorrer a Rua da Carioca
percebe-se nitidamente que outros tan-
tos imóveis se mostrariam face de um
conjunto mais denso à atividade patri-
monial
XII
. Como tal, a escolha dos nove
empreendimentos, o encerramento das
atividades da Mala de Ouro, a desistên-
cia do Ponto Masculino em fazer parte
do conjunto, fazem crer que o conjunto
de iniciativas finalmente concebidas no
nível do novo livro de registro mostra-se
menos um sítio e mais um aglomerado
de iniciativas atomizadas. Em sendo, re-
flete novas formas-fetiche patrimoniais,
em nada construídas na relação territó-
rio-cidade-economia urbana. Dá-se que
sua produção discursiva – uma tradi-
ção notável – parece ter sido concebida
nesta gestação como uma aderência ao
desespero de ver estes corpos e estas
agências potencialmente removidas do
cotidiano suportável de um espaço dis-
ponível à acumulação urbana com base
especulativa. O que vemos hoje, alguns
anos após a iniciativa da Prefeitura e
em momento de entrave do capitalismo
no Brasil, é que o vazio da Rua da Ca-
rioca expõe a opção do discurso do pa-
trimônio cultural como uma metonímia
irrealizável
XIII
.
Com relação à dinâmica espaço-
-tempo, este processo poderá gerar de-
saos ainda mais complexos à perma-
nência de outros “sujeitos econômicos
notáveis”. A necessidade de eleição de
tradições econômicas notáveis e sua -
xação num ponto espacial, que ora pro-
jeta um novo avizinhamento, não faz dos
arranjos econômicos destas iniciativas
em geral, arranjos com uxo de caixa
não elevado, e de caráter mais popular –
necessariamente desejáveis aos deten-
tores das propriedades imobiliárias. Na
dinâmica dos “tempos entre”, o tempo
“passado” xado nos empreendimentos
notáveis e o tempo “futuro” de renova-
ção do padrão de acumulação parecem
concorrentes. Ademais, viceja-se tam-
bém a descaracterização do conjunto
urbano na sua totalidade. Se o anterior
avizinhamento das tradições constitui-se
em dinâmicas que não se consolidavam
por mediação de livros patrimoniais, é de
difícil suposição que as próximas terão
a benemerência da tradição em despei-
to da máxima acumulação possível aos
que dominam a produção do espaço.
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aprovado pelo Decreto 3.800, de 20 de abril de
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que menciona, e dá outras providências. Diário
Oficial do Município do Rio de Janeiro, Poder
Executivo, 2013b.
160
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Recebido em 24/11/2017
Aprovado em 24/02/2018
I João Luiz Pereira Domingues. Doutor em Planeja-
mento Urbano e Regional pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro/IPPUR. Professor Adjunto III do De-
partamento de Arte, do Curso de Graduação em Pro-
dução Cultural e do Programa de Pós-Graduação em
Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Flu-
minense. Líder do Grupo de Pesquisa “Cultura, Política
e Território”, cadastrado na base de dados do CNPQ.
Contato: joaolpdomingues@gmail.com.
II O presente artigo é uma versão atualizada de um
trabalho publicado nos anais do XVII Encontro Nacional
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Planejamento Urbano e Regional, e um dos resul-
tados parciais das pesquisas “Rua da Carioca: usos do
patrimônio cultural como fonte de repertórios da econo-
mia criativa”, contemplada na Chamada n. 80/2013 –
CNPq/SEC/MinC, e “A articulação entre políticas urba-
nas e políticas culturais: o empreendedorismo urbano e
o patrimônio cultural na zona portuária do Rio de Janei-
ro”, contemplada pelo Programa Jovens Cientistas do
Nosso Estado, da FAPERJ.
III A economia criativa é uma ideia-força que no Bra-
sil foi anunciada como um certo tipo de organização
de arranjos produtivos com “potencial” de geração de
valor extraído de propriedades intelectuais ligadas a
atividades expressivas e linguagens artísticas. Em se
tratando de uma razoável novidade de animação das
relações entre o campo cultural e o campo econômico,
esta ideia-força detém uma série de interpretações,
que em nossa interpretação interagem majoritaria-
mente com o ciclo histórico do capitalismo exível.
Para mais, ver Domingues (2013).
IV Para mais, ver <http://emendasesonetos.blogspot.
com.br/2008/07/dos-magros-bucfalos-aos-burros-sem-
-rabo.html>. Acesso em 20 jul. 2017.
V Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/um-re-
duto-criativo-na-praca-tiradentes-1-12763521>. Acesso
em: 15 de setembro de 2016.
VI Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noti-
cias/geral,casaroes-do-centro-do-rio-na-mira-do-alto-
-luxo,934390>. Acesso em: 21 de outubro de 2016.
VII Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/nove-
-lojistas-da-rua-da-carioca-recebem-ordem-de-despe-
jo-8246595>. Acesso em: 19 de outubro de 2016.
VIII Entrevista de Roberto Cury a João Domingues, Ma-
rio Pragmácio e Rebeca Eler, 30 de maio de 2013.
IX Para mais, ver <http://www.rio.rj.gov.br/web/irph/
exibeconteudo?id=6411214>. Acesso em 24 jul. 2017.
X Entrevista de Henrique Cardoso a João Domin-
gues, 18 de junho de 2013.
XI Até o momento da finalização deste texto não
havia nenhuma confirmação do pagamento de inde-
nização ao Banco Opportunity e nem seu valor final.
Segundo a legislação vigente, a declaração de uti-
lidade pública demanda pagamento de indenização
para fins de desapropriação, cuja caducidade tem
validade de 5 anos.
XII Em especial o Cine Iris e o Cine Ideal, imóveis
que não fazem parte do conjunto adquirido pelo Ban-
co Opportunity.
XIII Sobre o vazio de ocupação comercial da Rua
da Carioca, ver <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/
noticia/comercio-em-crise-g1-percorre-a-rua-da-ca-
rioca-e-ve-1-loja-fechada-a-cada-10-metros.ghtml>.
Acesso em 23 jul. 2017.
161
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Os processos de (re)tradicionalização e patrimonialização
no carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro
Los procesos de (re)tradicionalización y patrimonialización
en el carnaval de los bloques de calle en Río de Janeiro
The processes of (re)traditionalization and patrimonialization
in the carnival of the blocks of street in Rio de Janeiro
Marina Bay Frydberg
I
Resumo:
O século XXI trouxe consigo a expansão do carnaval dos blocos
de rua na cidade do Rio de Janeiro em proporções cada vez mais
expressivas, tanto no número de blocos quanto no de foliões. Inseridos
nesta recente valorização de brincar o carnaval, os blocos de rua na
cidade do Rio de Janeiro se veem em meio a uma discussão entre o
aumento da rentabilidade econômica através da mercantilização da/na
festa, associada à sua prossionalização, e a valorização de práticas
tradicionais de se brincar o carnaval através da discussão da sua
patrimonialização. Busca-se, a partir desse panorama, compreender o
processo de (re)tradicionalização pelo qual vem passando o carnaval
dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro, problematizando os
múltiplos signicados que a noção de tradição carnavalesca tem
para os diferentes agentes que organizam a festa e suas ações pela
patrimonialização da festa.
Palavras chave:
Carnaval
Tradição
Patrimônio
162
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Resumen:
El siglo XXI trajo consigo la expansión del carnaval de los bloques
de calle en la ciudad de Río de Janeiro en proporciones cada vez
más expresivas, tanto en el número de bloques y de folios. En los
últimos años se ha convertido en una de las principales causas de
la crisis económica mundial, que se ha convertido en una de las
principales causas de la crisis económica mundial. tradicionales de
jugar al carnaval a través de la discusión de su patrimonialización.
Se busca, a partir de ese panorama, comprender el proceso de (re)
tradicionalización por el cual viene pasando el carnaval de los bloques
de calle en la ciudad de Río de Janeiro. Problematizando los múltiples
signicados que la noción de tradición carnavalesca tiene para los
diferentes agentes que organizan la esta y sus acciones por la
patrimonialización de la esta.
Abstract:
The XXI century brought with it the expansion of the carnival of the
blocks of street in the city of Rio de Janeiro in ever more expressive
proportions, as much in the number of blocks as of revelers.
Inserted in this recent valorization of playing the carnival, the blocks
of street in the city of Rio de Janeiro are seen in the middle of a
discussion between the increase of economic protability through the
commercialization of the party, associated to its professionalization,
and the valuation of practices traditional way of playing the carnival
through the discussion of its patrimonialization. From this perspective,
one seeks to understand the process of (re) traditionalization through
which the carnival of street blocks in the city of Rio de Janeiro has
been passing. Problematizando the multiple meanings that the notion
of carnival tradition has for the different agents who organize the party
and its actions for the patrimonialization of the party.
Palabras clave:
Carnaval
Tradición
Patrimonio
Keywords:
Carnival
Tradition
Heritage
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Os processos de (re)tradicionalização e
patrimonialização no carnaval
dos blocos de rua no Rio de Janeiro
Introdução
O Um dos músicos do bloco Or-
questra Voadora, considerado por alguns
um bloco tradicional e por outros como
expressão do m da tradição do carnaval
dos blocos do Rio de Janeiro, dene a im-
portância da discussão sobre os proces-
sos de tradicionalização pelo qual o carna-
val de rua vem passando.
Eu entendo esse tradicionalismo, a
gente enraizar uma tradição. Mas
eu não sei se funciona. Porque as-
sim, no carnaval não existe uma for-
ma só de brincar o carnaval. O car-
naval acontece não só no Brasil. Ele
acontece em várias partes do mun-
do. Então assim, no Rio de Janeiro
a gente tem blocos de marchinhas
de samba. Em Pernambuco a gen-
te tem bloco de maracatu, de frevo,
de coco, de ciranda. Na Bahia tem
blocos de afoxé, de ijexá. Na Co-
lômbia vão ter blocos de cumbia. No
México você vai ter blocos tocando
música tradicional mexicana. Então
é difícil você dizer que para ser um
bloco de carnaval você tem que ter
isso! Tem que tocar essa música,
tem que ter o estandarte. Eu acho
legal deixar isso registrado. Eu acho
legal que você registre como: o car-
naval tradicional do Rio de Janeiro
se faz assim. Mais como registro,
mas não como uma regra.
(Tiago Rodrigues, bloco Orquestra Vo-
adora, em entrevista para a pesquisa.)
Na cidade do Rio de Janeiro no
carnaval de 2016 foram contabilizados
587 desles de 505 blocos
II
, embora
esse número seja um tanto maior já que
muitos blocos não são contabilizados
pelos agentes públicos que organizam
o carnaval carioca, acontecendo muitas
vezes em posição de questionamento
a estes agentes. O carnaval carioca
III
,
segundo dados da RIOTUR
IV
(Empresa
de Turismo da cidade do Rio de Janei-
ro), mobilizou mais de cinco milhões de
foliões para a rua em 2016, sendo um
milhão de turistas. Pelo lado econômico,
movimentou três milhões de dólares. Em
proporções cada vez mais expressivas,
tanto no número de blocos quanto de fo-
liões, o carnaval dos blocos de rua na ci-
dade do Rio de Janeiro vem vivendo uma
expansão no calendário anual da festa
que impulsiona uma nova organização
da celebração carnavalesca, tanto por
parte do poder público quanto dos blo-
cos. Inserida nesta recente valorização
de brincar o carnaval, os blocos de rua
na cidade do Rio de Janeiro se veem em
meio a uma discussão entre o aumento
da rentabilidade econômica através da
mercantilização da/na festa, associada
à sua prossionalização, e a valorização
de práticas tradicionais de se brincar o
carnaval através da discussão da sua
patrimonialização.
Este artigo
V
busca, a partir desse
panorama, compreender o processo de
(re)tradicionalização pelo qual vem pas-
sando o carnaval dos blocos de rua na ci-
dade do Rio de Janeiro, problematizando
os múltiplos signicados que a noção de
tradição carnavalesca tem para os dife-
rentes agentes que organizam a festa
VI
.
O carnaval dos blocos de rua
tornou-se, assim, um campo de dispu-
tas pelos signicados que envolvem a
ideia de tradição, que são transformadas
em ações ociais legalistas impulsio-
nadas pelo poder público e pelas ligas/
associações – de patrimonialização da
festa. Explorar como se constrói no nível
do discurso, a ideia do que poderíamos
164
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
entender por tradicional no carnaval dos
blocos de rua do Rio de Janeiro, será
aqui apresentada a partir dos principais
agentes envolvidos na organização da
festa – blocos, ligas/associações, e poder
público – buscando traçar a linha que liga
o discurso sobre a tradição carnavalesca
com ações de patrimonialização da festa
nos blocos de rua.
Tradição e Blocos: Entre noções
estéticas, históricas e territoriais
Entendendo que ao falar de blo-
cos de rua hoje no Rio de Janeiro es-
tamos falando de um todo heterogêneo,
envolvendo mais de 652 blocos
VII
, com
percepções distintas do que seria a tra-
dição carnavalesca. Desta forma, não
pretendo aqui desenvolver a noção de
tradição em todos os blocos, tarefa mui-
to mais ampla do que a proposta deste
artigo e da própria intenção da pesqui-
sa, mas analisar a partir do discurso de
alguns representantes de blocos como
são construídas certas noções sobre a
tradição e a consequente classicação
interna entre os blocos que respeitam ou
não esta noção. Todavia para entender
esse processo de tradicionalização dos
blocos é preciso recuperar um pouco da
história dessa manifestação cultural, já
que em um primeiro momento a tradição
é associada a antiguidade.
A tradição de se brincar o carna-
val foi trazida para o Brasil pelos portu-
gueses e ganhou força a partir da vinda
da família real em 1808. Até 1840, se-
gundo Queiroz (1999), o entrudo centra-
lizava as atenções durante os dias de
carnaval, os dias gordos. Tratava-se de
uma comemoração urbana que envol-
via criar combates utilizando objetos e
materiais que sujassem. Com o tempo
a forma de festejar foi mudando, o que
faria desaparecer o entrudo no início do
século XX. Este modo popular de brincar
o carnaval, vai sendo progressivamen-
te substituído, como denomina Queiroz
(1999), pelo Carnaval Veneziano ou
Grande Carnaval, que inspirado nos bai-
les de máscaras da Europa acontecia
nas sociedades carnavalescas, também
conhecidas como clubes. As camadas
populares também criaram novos mode-
los de brincar o carnaval. Queiroz (1999)
entende que somente com o crescimen-
to ao longo dos anos do Pequeno Carna-
val, principalmente com os ranchos, os
cordões, os blocos e, posteriormente, as
escolas de samba, que foi possível a in-
tegração de camadas sociais inferiores
nas comemorações.
Esse carnaval tradicional trazido
de Portugal, ganhou características es-
pecícas ao modo de vida local e, desde
o seu início, construiu a festa carnava-
lesca nas ruas das cidades brasileiras.
O carnaval dos blocos de rua que surgiu
no início do século XX na cidade do Rio
de Janeiro, passou por momentos de va-
lorização e esquecimento durante mais
de um século de história. Propomos in-
dicar quatro momentos distintos na his-
tória dos blocos de rua no Rio de Ja-
neiro (FRYDBERG; EIRAS, 2015) e da
construção das suas tradições. Tradição
aqui entendida no sentido de Hobsbawm
(1984) dá para as tradições inventadas:
O termo “tradição inventada” é utiliza-
do em um sentido amplo, mas nunca
indenido. Inclui tanto as “tradições”
realmente inventadas, construídas e
formalmente institucionalizadas, quan-
to as que surgiram de maneira mais
difícil de localizar em um período limi-
tado e determinado de tempo – as ve-
zes coisas de poucos anos apenas – e
se estabelecem com enorme rapidez.
(HOBSBAWM, 1984, p. 9)
O primeiro momento que represen-
ta a criação dos primeiros blocos e que
tem como referência o Cordão da Bola
165
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Preta, maior e mais antigo bloco em fun-
cionamento na cidade, fundado em 1918.
Este período de consolidação do carnaval
de rua na cidade ocupa as primeiras dé-
cadas do século passado. Temos um se-
gundo momento em termos de criação de
blocos que vai da década de 40 até mea-
dos dos anos 60, período de início do seu
declínio, muito inuenciado pelo cenário
político da instauração do golpe militar de
1964. São fundados, nesse segundo mo-
mento, blocos tradicionais com o Bafo de
Onça (1956), Cacique de Ramos (1961) e
Banda de Ipanema (1965).
A cidade do Rio de Janeiro viveu
dois momentos de retomada dos blocos,
o primeiro no início dos anos 80, reexo
do processo de redemocratização que o
país passou, com a criação de um gran-
de número de blocos e o deslocamen-
to da festa para a zona sul da cidade.
Foram criados nesse terceiro momento,
blocos hoje considerados tradicionais
como Bloco dos Barbas (1981), Simpatia
é quase amor (1985) e Suvaco do Cristo
(1986). E o segundo boom acontece a
partir dos anos 2000 (HERSCHMANN,
2013), depois de um declínio do carna-
val nos anos 90 por conta da violência na
cidade, e que permanece com força até
os dias de hoje. Os blocos que iniciaram
esse quarto momento de retomada do
carnaval foram criados no nal dos anos
90 e início dos anos 2000 e já são consi-
derados tradicionais, como o Cordão do
Boitatá (1996), Monobloco (2000) e Mu-
lheres de Chico (2006), primeiro bloco
temático a ser criado.
É ampla a esfera de possibilidade
de classicação de um bloco como tra-
dicional por conta do ano e do momento
de sua criação, mesmo que possa ha-
ver nuances entre a noção de tradição,
construindo-se uma gradação entre mais
ou menos tradicionais, consideram-se
blocos tradicionais do Cordão da Bola
Preta, fundado em 1918, ao Mulheres de
Chico, fundado em 2006. Essa noção de
tradição presente nos blocos de rua tem
como parâmetro a história do bloco em
termos do ano da sua fundação e asso-
ciada a ela determinada prática carnava-
lesca. Preceitos estes que são exíveis e,
principalmente, contextuais e relacionais.
Assim, um mesmo bloco pode ou não ser
considerado tradicional dependendo de
quais são as referências de comparação
para essa classicação.
Os membros dos blocos estão
construindo através de suas falas uma
série de parâmetros para a classifica-
ção destes segundo seu nível de tra-
dição. Associado ao caráter histórico,
muitas vezes para dar força a ele, está
também o caráter territorial. Ou seja,
um bloco não é tradicional exclusiva-
mente por conta de quando ele foi cria-
do, mas também pela ligação com o lu-
gar que ele desfila. Assim essa tradição
dos blocos passa a ser territorializada
e associada de forma direta aos territó-
rios específicos da cidade.
É uma tradição. É uma relação com o
lugar. Relação de pertencimento. Os
caras são músicos, entram no carro
de som e saem. Eles não têm uma
relação com aquele espaço onde eles
estão. Essa é a grande diferença.
(Alvanísio Damasceno, bloco Carme-
litas, em entrevista para a pesquisa.)
Desta forma, com a associação
entre história e território a tradição serve
como construtora de um modo especí-
co de ser no carnaval, uma identidade
para a prática carnavalesca. Essa tradi-
ção carnavalesca é elaborada de forma
muito semelhante com o que Hobsba-
wm (1984) denominou de invenção das
tradições, ou seja, uma estruturação de
práticas simbólicas que ligam o presen-
te com um passado determinado. Sendo
assim, todos os blocos que se vinculam
com uma prática do passado carnava-
166
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
lesco, podem ser entendidos como tra-
dicionais, no sentido de uma tradição in-
ventada. Essa associação a um passado
pode acontecer a partir de três elemen-
tos: da música, do uso de fantasias e da
espontaneidade.
Talvez seja essa que eu dena de uma
essência carnavalesca. Acho que tem
que ter música, dança e fantasia, são
três coisas que se vai com o enfoque
que você quiser dar, mas as pesso-
as têm que ouvir música, as pessoas
têm que mover com o seu corpo. É a
festa da dança, da reunião dos cor-
pos em comunicação. Acho que isso
é carnaval. Acho que car no entorno
dos bares na conversa ainda com uma
máscara, com a fantasia e enchendo a
cara é uma forma carnavalesca de es-
tar ainda. Acho que é isso, o carnaval
em si requer música, fantasia e movi-
mento de corpo.
(Yeda Dantas, bloco Gigantes da Lira,
em entrevista para essa pesquisa. )
Elementos estéticos e artísticos
como a música tocada pelos blocos e o
uso de fantasias auxiliam na construção
da tradição, na sua reprodução e, prin-
cipalmente, na sua representação. Con-
solidam-se como tradições inventadas
no sentido dado por Hobsbawm (1984)
quando podemos identicá-las como uma
série de práticas rituais e simbólicas que
seguem regras que as ligam a um passa-
do histórico especíco. Essa continuida-
de com o passado tem que ser construída
no presente como “reações a situações
novas que ou assumem a forma de re-
ferência a situações anteriores, ou esta-
belecem seu próprio passado através da
repetição quase que obrigatória” (HOBS-
BAWM, 1984 p.9).
A questão musical pode tornar-se
fundamental, para alguns blocos, na de-
terminação do tradicional. Tocar samba,
marchinhas e/ou variações desses ritmos
são características que podem fazer um
bloco ser considerado tradicional, ou nem
mesmo bloco de carnaval.
Tradição do carnaval pra mim é farra!
É a brincadeira, é a farra, entende.
E a gente sente que o, até dentro da
Sebastiana, tem bloco que defen-
de mais os blocos de música, tem
blocos que são mais contrários. Eu
to mais no lado dos contrários, mas
não pára acabar com isso, mas eles
talvez tenham que ter outro nome,
não é um bloco de rua, digamos as-
sim. Por exemplo, o Monobloco pra
mim não é um bloco de rua, estão
tocando na rua. A Preta Gil também
não é um bloco. É a Preta Gil em
cima de um trio elétrico, entendeu?
[...] Só que não dá pra chamar de a
mesma coisa. Acho que tem que ter
essa origem da farra e passa pela
música. E não a origem a música
que passa pela farra. Acho que tem
esse movimento contrário.
(Alvanísio Damasceno, bloco Carme-
litas, em entrevista para a pesquisa.)
Todavia essa discussão estética
musical como característica distintiva de
tradição não é vista para todos os blocos
da mesma forma. Alguns representan-
tes de blocos, principalmente dos blocos
fundados no quarto momento, não iden-
ticam como necessário um repertório
musical especíco para ser considerado
bloco tradicional. O que constrói a noção
de tradição é a espontaneidade da festa,
expressa seja no samba como no rock.
Isso é uma coisa que eu falo sempre,
eu acho que carnaval antes de qual-
quer coisa é uma data. São aqueles 40
dias antes da páscoa que as pessoas
tradicionalmente aproveitam para ex-
travasar. Então o carnaval é o momen-
to de extravasar e se permitir. Vou me
fantasiar, bandido vira herói, rico vira
pobre, pobre vira rico, santa vira puta.
167
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Então é o momento que tem que ex-
travasar, extravasar mesmo, colocar a
alegria pra fora. Pra mim, o carnaval,
o carnaval tradicional é um momento
que tem espaço pra isso, independen-
te de gênero musical. Porque a pes-
soa que ouvindo rock é a forma
dele extravasar. “Ah! O carnaval é pe-
gação!”. Tem coisa mais primitiva que
pegação? Deixa o povo se pegar. Pra
mim o carnaval tradicional é esse. O
carnaval que você se diverte.
(Cristina Couri, bloco Desliga da Justi-
ça, em entrevista para essa pesquisa.)
Assim o carnaval da desordem re-
presenta o carnaval da tradição, susten-
tado na ideia da possibilidade de inversão
da ordem social (BAKTHIN, 1993). Toda-
via a noção central deste argumento, in-
dependente de especicidades estético
musicais, está na valorização da tradição
através da noção de espontaneidade,
mesmo que atualmente o carnaval dos
blocos de rua seja cada vez mais organi-
zado e prossionalizado.
Eu acho que é o nosso, é um carnaval
sem muitas responsabilidades. É um
carnaval na rua, que você sai fantasia-
do, que você tem a sua bateria, o seu
samba e não tem muita ordem. Tem
uma certa desordem. Esse é um car-
naval tradicional de rua do Rio de Ja-
neiro. Você entra com camiseta, sem
camiseta. Você sai a hora que quer,
você entra a hora que quer. Começa
acaba, é isso aí, esse é o carnaval que
você poderia dizer como tradicional.
(João Avelleira, bloco Suvaco do Cris-
to, em entrevista para essa pesquisa.)
Junto à noção de história, data de
fundação do bloco, e de território, liga-
ção do bloco com uma região da cida-
de, a tradição está aqui sendo constru-
ída como prática espontânea de brincar
o carnaval. Espontaneidade construída
pelos blocos com organização e pros-
sionalismo, mas que serve como carac-
terística distintiva do carnaval dos blocos
de rua do Rio de Janeiro com relação a
outros carnavais de rua. A tradição dos
blocos de rua também ganha recortes
estéticos, na valorização das fantasias,
e permanece em disputa com relação
aos estilos musicais.
Tradição e as ligas/associações:
Das ações de patrimonialização
ao direito à cidade
As ligas/associações são formas
coletivas e colaborativas de reunião
de blocos com o objetivo de ampliar
seu poder de negociação tanto com o
poder público como com possíveis pa-
trocinadores. Mas as ligas/associações
também exercem poder no exercício
da definição dos limites sobre a prática
carnavalesca, ajudando assim na cria-
ção da noção de tradição. Seja pelos
critérios estabelecidos pelas ligas/asso-
ciações para a entrada de blocos, pela
pressão junto ao poder público, pelos
critérios para a autorização dos blocos
para desfilar segundo noções de tradi-
ção, ou de manifestos contra as formas
que o carnaval de rua tem tomado, esse
grupo de blocos também possui visões
diversas para a tradição. E inserem-se,
assim, nesse campo de disputa pelo ter-
mo e pelos caminhos possíveis que o
próprio carnaval pode seguir.
Embora com visões distintas sobre
tradição, as ligas/associações disputam
essas representações no nível do discur-
so e de ações mais efetivas, sejam as-
sociadas ao poder público ou de forma
direta contra as ações do mesmo. Ligas/
associações como a Sebastiana, a Folia
Carioca e os Amigos do Zé Pereira pen-
sam a tradição dos blocos e do carnaval
a partir da preservação de suas práticas
e da formulação de limites para a festa.
Esses limites podem ser, assim como
168
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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nos blocos, históricos e territoriais, mas a
ação para o respeito desses limites está
vinculada com o estabelecimento de di-
álogos e pressões com o poder público,
especicamente a Prefeitura Municipal
do Rio de Janeiro.
A Zona Sul começou a car muito in-
comodada porque além dos blocos
que já existiam na Zona Sul, todo
mundo começou a querer deslar
na Zona Sul. Então o AfroReggae
foi deslar em Ipanema. A Preta Gil,
que surgiu do nada, foi deslar em
Ipanema. O Sargento Pimenta, que
também surgiu assim do nada, foi
deslar no mesmo lugar e no mes-
mo dia que o Bloco de Segunda, que
tem 28 anos. Entendeu? Como é que
você faz pra decidir naquele espaço
público, na territorialidade, quem tem
direito ou não? Aí começa a precisar
de uma regra porque se eu to dispu-
tando com você o mesmo espaço,
qual é a regra? A prefeitura decidiu,
a regra é a antiguidade.
(Rita Fernandes, presidente da Se-
bastiana e do bloco Imprensa que eu
gamo, em entrevista para pesquisa.)
Mas a disputa também pode acon-
tecer no campo da discussão estética e
musical, o que faz essas ligas/associa-
ções não utilizarem os mesmos critérios
sobre o que pode ou não ser feito no car-
naval dos blocos de rua do Rio de Janeiro.
Eu acho interessante. Com base em
determinadas características, né,
que eu falei. A matriz do samba,
a batucada, que não seja de cunho
comercial, que não tenha abadá. De
preferência que não tenha trio elétri-
co, que não tem nada a ver com o
Rio de Janeiro. Entendeu? Elétrico
devia ser proibido. Uma coisa é trio
elétrico, outra coisa é carro de som.
Praticamente todos tem carro de
som, não tem trio elétrico. Chama de
trio elétrico, mas poucos têm. Um ou
outro que tem guitarrista, essa coisa
axé, baiana. Mas poucos têm trio.
Ricardo Rabelo, presidente da Asso-
ciação Folia Carioca e do Bloco Ba-
fafá, em entrevista para a pesquisa.
Hoje em dia, tradição se mistura
com o que ela se transformou. Tra-
dicionalmente era um carnaval que
tocava samba tradicional, em todas
as regiões da cidade. Isso não acon-
tece mais. Continua acontecendo
sim, muito mais do que acontecia,
graças a essa diversidade e explo-
são que aconteceu. O samba ocorre
na cidade muito mais do que acon-
tecia há 15 anos atrás, mas várias
outras coisas também acontecem,
vários outros blocos de várias ma-
neiras, das formas mais bizarras. Até
bloco de sertanejo universitário tem.
[...] Como eu falei, não tá escrito em
lugar nenhum. Ele se mantém muito
na base da conversa, na base da tro-
ca de informações. Nós não vamos
aceitar isso, não queremos isso. Aí,
entra muito com a prefeitura próxima
dos blocos também pra ouvir essa
opinião e ajudar a criar canais de
veto. A Cláudia Leite queria fazer um
bloco, pra 100 milhões de pessoas,
vai destruir a cidade. Isso é um cri-
tério que a prefeitura usa um pouco
pra conseguir travar esse tipo de ini-
ciativa. O único que tem mesmo é o
da Preta Gil.
(Rodrigo Resende, presidente da Liga
dos Amigos do Zé Pereira, em entre-
vista para a pesquisa.)
Mesmo com divergências com re-
lação a padrões estéticos musicais que
podem fazer parte do carnaval carioca,
ambas as ligas/associações trabalham
com a ideia de estabelecer limites para
a incorporação de novos ritmos musicais
(axé ou sertanejo) e formas produção
(trio elétrico) no carnaval de rua do Rio
de Janeiro. Nessa construção relacional
169
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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da noção de tradição do carnaval de rua
do Rio de Janeiro com o carnaval de Sal-
vador, começa a ser construída a cate-
goria acusatória baianização, entendida
por alguns como a venda de camisetas
ou abadás e o uso de cordas isolando
quem as possui. Ou ainda o entendimen-
to de que o modelo do carnaval baiano é
o carnaval que já sucumbiu à lógica do
mercado sofrendo um processo de co-
mercialização/mercantilização da festa.
Esta dicotomia entre o carnaval dos blo-
cos de rua na cidade do Rio de Janeiro,
pensado como manifestação cultural, em
oposição a uma comercialização/mer-
cantilização apontada no carnaval baia-
no, aparece de forma explícita na fala de
blocos, ligas/associações, poder público
e mídia. A baianização, ou melhor a luta
para que ela não aconteça, é uma ação
central das ligas/associações, unicando
a todas na ordem do discurso, mas não
na forma de agir.
No momento em que você coloca um
bloco na rua, ele é pra quem quiser
entrar. Anal, a rua é pública. Se você
e os seus amigos querem festejar
daquela forma, é uma festa pública.
Naturalmente, você está obrigado a
receber quem chega. Então você não
pode colocar uma corda ou delimitar
um território. Se você quer delimitar
um território, você vai fazer uma festa
fechada num lugar fechado.
(Rita Fernandes, presidente da Se-
bastiana e do bloco Imprensa que eu
gamo, em entrevista para pesquisa.)
Umas das ações diretas em defe-
sa do carnaval dos blocos de rua e con-
tra o modelo da baianização do carnaval
é a patrimonialização da festa de rua no
Rio de Janeiro. Para isso a Sebastiana
entrou com um pedido junto ao IPHAN
(Instituto de Patrimônio Histórico e Artís-
tico Nacional) para reconhecer o modo
tradicional de brincar o carnaval dos blo-
cos de rua no Rio de Janeiro como patri-
mônio imaterial do Brasil. Através do re-
conhecimento de uma tradição e de seu
valor histórico e simbólico, o carnaval
dos blocos de rua se protegeria do pos-
sível desgaste gerado pelo efeito moda
e, principalmente, de uma possível des-
caracterização das suas tradições. Com
essa ação a Sebastiana ocializa o en-
tendimento de que existam modos mais
ou menos autênticos e tradicionais de
brincar o carnaval dos blocos e, desta
forma, blocos mais ou menos legítimos
da tradição desta festa.
Nosso segundo movimento, foi esse
de levar a ideia pro IPHAN pelo se-
guinte: quando começa este momen-
to de comercialização do carnaval e
de certa banalização do tema porque
o tema está balizado. Nós não esta-
mos gostando disso. Está banalizado
na mídia, na própria ação dos blocos.
A gente começou a achar que preci-
sávamos fazer um movimento ideo-
lógico pra que a gente preservasse o
carnaval na sua essência e nas suas
características originais. Daí surgiu
a ideia do IPHAN. “Vamos pedir pra
transformar em patrimônio, em pa-
trimônio imaterial do Rio e depois do
Brasil”. Como a gente já tava juntando
material pra memória, vimos que era o
mesmo caminho.
(Rita Fernandes, presidente da Se-
bastiana e do bloco Imprensa que eu
gamo, em entrevista para pesquisa.)
Ao entendermos a busca pela pa-
trimonialização dos blocos de rua como
maneira pela qual se vai preservar a me-
mória e a prática de carnavais de outros
tempos, não se pode deixar de pensar na
memória como construção, em que se
operam lembranças e esquecimentos, e
que só pode ser compreendida enquan-
to um campo de disputa (POLLAK, 1989;
1992). Esta disputa da memória quando
associada a um sentimento de identidade
passa a ter que ser ainda mais identi-
170
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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cada a um campo de disputas entre gru-
pos políticos diversos (POLLAK, 1992,
p. 205). Estes grupos políticos diversos
estão aqui através das ligas/associações
disputando uma memória sobre o carna-
val de rua do Rio de Janeiro para através
de ações de patrimonialização, ou seja,
de reconhecimento e preservação dessa
memória, construírem o autêntico carna-
val dos blocos de rua do Rio de Janeiro.
O caminho trilhado pela Desliga
dos Blocos para preservação da memó-
ria é distinto da Sebastiana, embora am-
bas busquem a preservação do modo
tradicional de brincar o carnaval. Neste
campo de disputas a Desliga busca pre-
servar a tradição através da retomada
de um carnaval de outra escala, espon-
tâneo e que não passe pela organização
e consequente mercantilização da/na
festa carnavalesca. A Desliga foca suas
ações em um embate mais direto com o
poder público, principalmente através da
exigência por parte da prefeitura de auto-
rização para que os blocos possam des-
lar, o que eles acusam de um processo
de burocratização da festa.
Aquilo que eu via quando era criança
pequena pode acontecer hoje, os blo-
cos se juntavam, não tinham estan-
dartes. Chegava uma pessoa tocan-
do, juntava uma galera e se formava
o bloco. O carnaval do Rio tem que se
pensar nesse aspecto. Agora, a gente
acha que decretos que limitam a es-
pontaneidade do carnaval e impõem
a ele uma atrelação ao mercado são
nocivos e não fazem sentido. Decisão
judicial pra defender carnaval tam-
bém é uma coisa que não cabe. Um
fórum que se discuta carnaval, nunca
houve um sério. Eu nunca vi a prefei-
tura sentar numa mesa e discutir se-
riamente carnaval.
(Luís Otávio, representante da Desliga
dos Blocos e do bloco Boi Tolo, em en-
trevista para a pesquisa.)
Através do discurso de valorização
da tradição esse grupo defende a ocupa-
ção da cidade, e consequentemente do
espaço público, de forma espontânea sem
normas e legislações. A maioria dos blo-
cos associados a Desliga dos Blocos sai
no carnaval sem pedir autorização para a
prefeitura e sem seguir o calendário e a
organização do poder público. Eles orga-
nizam eventos paralelos como a “Abertura
ocial do carnaval não ocial” e uma -
rie de bloqueatas, ou seja, passeatas de
blocos que transformam o carnaval em um
espaço de luta política. Eles defenderam
em manifesto publicado no blog da liga/
associação em 2010 que:
O carnaval de rua é festa do povo. É
feito pelo povo e para o povo. Manifes-
tação de espontaneidade, criatividade
genuína e espírito livre. Nos dias de
folia devemos respeito à Sua Majes-
tade, o Momo. Não ao personagem
raquítico que ultimamente tenta nos
ensinar a brincar, como se ele próprio
soubesse, mas ao mitológico, roliço,
guloso, amante dos prazeres da carne
e da alma, àquele que nos mostra que,
ao contrário do que muitos pensam,
no carnaval é quando se tiram as más-
caras. Assim, há uma troca de ordem.
Sai de cena a ordem careta, elitista e
monetarizada e, em seu lugar, entra a
ordem de Momo e a ordem do Rei é
sambar quatro dias sem parar.
[...]
O decreto 32.664 da Prefeitura apro-
funda o ataque à liberdade criativa e à
espontaneidade do carnaval do Rio e
o processo de “bahianização” da festa,
ao obrigar os blocos a pedir autoriza-
ções com seis meses de antecedência
e a cumprir inúmeras exigências, que
arrepiariam até mesmo uma empresa
estabelecida, ainda mais os pequenos
blocos. A essência está sendo sufoca-
da pelo dinheiro.
Manifestamos aqui que não reconhe-
cemos esse decreto que, além de
171
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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tratar desiguais como iguais, fere a
Constituição e a tradição e cultura do
povo carioca.
(DESLIGA DOS BLOCOS DO RIO DE
JANEIRO – MANIFESTO MOMESCO)
Compartilhando com Lefebvre
(1991) o argumento de que todos pos-
suímos direito à cidade e à vida urbana,
essa apropriação da cidade pela festa é
defendida pela Desliga dos Blocos como
um direito, o único durante o ano, em que
o povo pode vivenciar a cidade de outra
forma. A cidade, que durante o tempo
do cotidiano se mostra excludente e se-
gregadora, no tempo da festa, ou seja,
durante o carnaval de rua, transforma-se
em um espaço e um tempo próprio. É na
defesa dessa espacialidade e tempora-
lidade própria do carnaval de rua que a
Desliga dos Blocos constrói seu argu-
mento contra essa prática de comercia-
lização/mercantilização do carnaval ca-
rioca dos blocos expressa na categoria
acusatória baianização.
Outro manifesto também foi dis-
tribuído pela Desliga dos Blocos, nova-
mente defende a ocupação da cidade e
do espaço público pela festa e pelos fo-
liões, associando essa atitude a uma vi-
são crítica com relação a essa crescente
visão do carnaval enquanto produto a ser
vendido. Para isso recuperam-se perso-
nagens tradicionais do carnaval, como o
Zé Pereira, para recuperar a forma de-
sordeira de organização da festa e sua
forma, também caótica, de ocupar o es-
paço público. Para a Desliga dos Blocos,
é através da desobediência presente no
carnaval tradicional que vai se buscar
uma nova opção de cidade e de postu-
ra, frente à política urbana que no Rio
de Janeiro vem sendo imposta por conta
dos megaeventos como Copa do Mundo
(2014) e Olimpíadas (2016).
O carnaval é e sempre será um ato
político (como demonstrou bem nes-
se ano de 2010 o bloco “Vergonha da
Zona Sul” que levou a banda de ca-
tadores e mendigos para a praia de
Ipanema). É a incorporação da arte
no cotidiano. Lutar para preservar sua
potência é lutar por uma rua que nos
é sempre tirada. Avancemos foliões
nômades!! Viva o carnaval, viva o
Pereira e o Saci Pererê, viva o sorri-
so doce dos que desobedecem.... Em
tempos de tanques nas ruas, não re-
trocedamos, com a certeza de que um
dia, o exército de palhaços vencerá!!
(DESLIGA DO BLOCOS - MANIFES-
TO NÔMADE)
As ligas/associações ocupam um
espaço importante no carnaval dos blo-
cos de rua do Rio de Janeiro hoje, elas
funcionam como mediadoras entre blo-
cos e empresas privadas com potencial
de nanciar a festa. Realizam também a
mediação com o poder público quanto à
organização do carnaval e com relação
à xação de signicados para a tradição
carnavalesca. São um campo privilegia-
do, dado à visibilidade que as ligas/as-
sociações têm na mídia, de determinar
representações e disputar a tradição do
carnaval carioca. Mesmo que com visões
distintas e até opostas, o respeito à tradi-
ção do carnaval de rua do Rio de Janei-
ro é algo fundamental para as ligas/as-
sociações. As formas como elas buscam
a valorização das tradições podem ser
diferenciadas, via patrimonialização ou
disputa da cidade, mas partem da ideia
da preservação da memória e de sua prá-
tica como forma de lidar com a presença
constante do diferente no carnaval, reco-
nhecido através da categoria acusatória
de baianização.
Tradição e poder público:
A normatização da festa
O poder público, mais especica-
mente a Prefeitura Municipal do Rio de
172
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Janeiro, entra na discussão de tradição
na festa carnavalesca através de ações
que visam a normatização da festa. As
ações de normatização da festa passam
a acontecer de forma mais efetiva a par-
tir da gestão do prefeito Eduardo Paes,
iniciada em 2009. Essa normatização do
carnaval de rua pode acontecer através
de ações de patrimonialização dos blo-
cos escolhidos como mais representati-
vos, mas também de decretos e leis que
organizam o carnaval de rua no Rio de
Janeiro. Assim a tradição passa ser legi-
timada através do patrimônio e passa a
ser respeitada através de uma série de
denições sobre o que pode ou não acon-
tecer no carnaval.
O poder público tendo como pre-
ocupação a permanência da festa com
suas características tradicionais utiliza-
-se do instrumento da patrimonialização
como forma de reconhecimento das ma-
nifestações culturais populares, como os
blocos de carnaval, limitando-se a legi-
timá-las através de mecanismos legais,
mas não garantindo a sua existência. O
reconhecimento de alguns blocos como
patrimônio cultural de natureza imaterial
carioca legitima esses blocos como tradi-
cionais, mas não auxilia na sua sustenta-
bilidade. Assim como qualquer exercício
de valorização da memória, escolhe-se
algo para lembrar e entender como tra-
dicional, são eles: a Banda de Ipanema,
declarada patrimônio em 2004
VIII
; o bloco
Cacique de Ramos, declarado patrimô-
nio em 2005
IX
; e o Cordão da Bola Preta,
declarado patrimônio em 2007
X
. Essas
ações aconteceram no governo de Cé-
sar Maia, durante o mandato de Eduardo
Paes voltou-se os esforços para organi-
zação da festa. O gênero musical da mar-
chinha de carnaval, também foi conside-
rado patrimônio cultural da cidade do Rio
de Janeiro em 2015
XI
, já na gestão Paes.
A tradição do carnaval de rua tam-
bém é preservada a partir da organiza-
ção da festa com decretos que determi-
nam regras para o carnaval acontecer,
sendo a principal delas a necessidade
dos blocos pedirem autorização em pe-
ríodo estabelecido pela prefeitura da
cidade
XII
. Em 2013, a prefeitura cria a
“Comissão Especial de Avaliação dos
Blocos de Rua”
XIII
composta de nove re-
presentantes de diferentes secretarias
do município e duas entidades represen-
tativas dos blocos e bandas tendo como
critério para escolha destas a tradição
e representatividade. Neste decreto o
próprio poder público incorpora a noção
de tradição como característica distinti-
va entre os blocos e ligas/associações,
embora sem explicitar o seu signicado.
Neste mesmo decreto a prefeitura esta-
belece os critérios de avaliação dos blo-
cos que são construídos a partir de dois
argumentos, denição de tradicional en-
quanto representativo do carnaval de rua
carioca e a relação dessa tradição com o
território da cidade, argumento também
utilizados por blocos e ligas/associações
e, inclusive, dispostos como fundamen-
tais através da mediação da Sebastiana.
Os critérios para a autorização são:
I - a tradição do Bloco de Rua;
II - as características do Bloco em rela-
ção ao Carnaval de Rua do Rio
de Janeiro;
III - as características do Bairro/Região
onde pretende deslar o Bloco;
IV - a relação que o Bloco de Rua man-
tém com a localidade/comunidade;
V - o local de realização do desle pre-
tendido;
VI - a estimativa de público;
VII - os possíveis impactos que pos-
sam interferir no dia-a-dia da localida-
de.
(RIO DE JANEIRO, Decreto No
37.182, de 20 de Maio de 2013)
O poder público, coligado com di-
ferentes ligas/associações e com muitos
blocos, opera sobre a tradicionalização
173
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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da festa através de mecanismos de de-
nição simbólica sobre a regulamenta-
ção da prática carnavalesca. A defesa
da tradição e das características do car-
naval dos blocos de rua no Rio de Ja-
neiro se dá através de ações, legais e
sociais, contra o uso de cordas identi-
cando quem comprou o abadá, também
proibindo a comercialização deste como
pré-requisito para brincar o carnaval nos
blocos de rua. Desta forma, blocos, li-
gas/associações e a prefeitura se posi-
cionam contra a baianização do carna-
val carioca e, através de decretos e do
discurso, estabelecem os limites do que
pode ou não acontecer no carnaval de
rua da cidade.
Art. 1o. Fica proibida, na Cidade do
Rio de Janeiro, a delimitação de es-
paços, por meio de cordas e/ou segu-
ranças (“áreas privadas”), pagos ou
não, nos desles de blocos ou ban-
das de rua e nos ensaios carnavales-
cos de rua, no período de que trata
o art. 1o do Decreto no 30.453/2009.
Parágrafo único. Excepcionalmente,
poderá ser delimitado espaço, por
meio de cordas e/ou seguranças,
para uso exclusivo dos integrantes
da bateria e/ou da banda, bem como
daqueles diretamente envolvidos na
organização do desle.
Art. 2o. Ficam automaticamente cas-
sadas as autorizações já concedidas
para os desles de blocos, bandas e
ensaios carnavalescos que não res-
peitem o disposto neste Decreto.
§ 2o A RIOTUR, com o apoio da
Guarda Municipal, adotará as medi-
das necessárias para coibir desles
que contrariem o disposto neste De-
creto.
Art. 3o. O não cumprimento do dis-
posto no art. 1o implicará no indeferi-
mento do pedido de autorização para
desle nos períodos carnavalesco e
pré-carnavalesco do ano subsequen-
te, nos termos do art. 14 do Decreto
no 30.453/2009.
(RIO DE JANEIRO, Decreto No
36.760, de 5 de Fevereiro de 2013)
Estabelecem-se, assim, fronteiras
rígidas, entre o que pode ser considera-
do típico do carnaval de rua do Rio de
Janeiro e o que representa expressões
diferentes oriundas de outros carnavais.
O não respeito a essas fronteiras será
punido pelo não reconhecimento ocial
do bloco através da autorização para o
desle no ano posterior, no âmbito da
prefeitura, e a desvalorização do bloco
no meio carnavalesco. A baianização
torna-se assim categoria acusatória tam-
bém utilizada pelo poder público, que ao
mesmo tempo que combate a mercan-
tilização da festa por parte dos blocos,
privatiza o seu carnaval através de par-
cerias público-privadas. Assim, por meio
de ações normatizadoras, tanto em ter-
mos organizacionais quanto simbólicos,
por parte da Prefeitura Municipal do Rio
de Janeiro, o poder público adentra o
debate sobre os limites da prática carna-
valesca tradicional e autêntica dos blo-
cos de rua, legitimando e ocializando a
distinção entre eles.
Sob todos os aspectos, o carnaval é
a nossa principal manifestação cul-
tural. Ele tem um papel no desen-
volvimento da identidade do brasi-
leiro e do carioca em especial que
é absolutamente inigualável. […]
Carnaval é fundamental, ele tem
uma função social, tem uma função
de catarse coletiva, que é bacana,
mas é aquela coisa de quando o ca-
rioca é mais carioca. Acho que esse
é um dos pontos mais positivos. E
que bom que a gente tem visto nos
últimos anos que o carioca quer ser
carioca de novo.
(Alex Martins, Supervisor do carna-
val dos blocos de rua na RIOTUR no
governo Paes, em entrevista para a
pesquisa.)
174
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
Entendendo o carnaval como re-
presentação da identidade do carioca, o
poder público ao buscar preservar sua
memória, valoriza consequentemente a
identidade (POLLAK, 1992) associada a
ela. Através de discursos que retomam as
práticas tradicionais os organizadores da
festa justicam suas escolhas e usam de
políticas públicas para preservação des-
se movimento de tradicionalização dos
blocos. Tradicionalização aqui entendida
não só como tradições inventadas (HO-
BSBAWAM, 1984), mas como “reexão
acompanhada da práxis das expressões
advindas das tradições culturais” (TEI-
XEIRA, 2004, p. 09). Tradicionalização
construída através de ações do poder pú-
blico de patrimonialização e exercícios de
denição do que é, e principalmente do
que não pode ser. O carnaval dos blocos
de rua no Rio de Janeiro hoje, busca res-
peitar a identidade local ao mesmo tempo
que a transforma em produto a ser ven-
dido para consumo externo, através da
valorização do turismo.
Considerações Finais
A proposta de pensar processos
de tradicionalização do carnaval dos
blocos de rua carioca está diretamente
associada com a discussão sobre a no-
ção de tradição para os agentes que o
organizam e vivenciam. A noção de tra-
dição pode adquirir diferentes facetas,
entre elas expressar uma relação dire-
ta com um tempo histórico determinado,
quando a tradição é associada a funda-
ção dos blocos, representando um exer-
cício de construção de uma continuidade
com o passado. Essa tradição histórica
ca ainda mais forte se associada com
um território especíco. Assim a tradição
passa a ser territorializada, critério que
legitima a atuação dos blocos junto ao
poder público e ligas/associações. Tradi-
ção, passa assim, a ser entendida como
história e territorialidade.
Critérios estéticos, como uso de
fantasia, e musicais, como respeito ao
samba e suas variações, consolidam-se
como elementos classicatórios da tradi-
ção de um bloco, embora com fronteiras
menos rígidas que as anteriormente ci-
tadas. Todavia ajudam na construção da
ideia da tradição associada a determina-
da prática espontânea e autêntica da ex-
pressão cultural carnavalesca carioca.
Desta forma, passível de ser protegida
através de processos de patrimonializa-
ção e normatização da festa, a tradição
ganha contornos simbólicos de disputa
por representação e identidade, ajudan-
do como característica distintiva do car-
naval de rua carioca com o de outros lu-
gares do país.
É importante você ter a tradição, ela é
importante para a nossa cultura, para
a nossa identicação enquanto so-
ciedade. Mas ela não pode ser uma
coisa fechada. Até porque a cultura
brasileira ela foi toda feita através de
transformações de outras culturas. O
carnaval carioca, o próprio samba.
[...] então você não pode fechar isso
e não deixar mais a transformação
acontecer. É importante que a gen-
te se registre para que não se per-
ca. Não se perca a tradição. Eu acho
que perder a tradição é ruim, mas
se engessar dentro de uma tradição
também é ruim!
(Tiago Rodrigues, bloco Orquestra Vo-
adora, em entrevista para a pesquisa.)
Tiago Rodrigues e o bloco Or-
questra Voadora nos ajudam nesse
entendimento de que a valorização da
tradição, tenha ela o significado adqui-
rido no contexto em que está inserida,
representa uma ação processual e rela-
cional. Processos de patrimonialização
reconhecem e legitimam a tradição, mas
para que o carnaval dos blocos de rua
permaneça expressivo de uma prática,
é necessário que os seus agentes ao
175
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
mesmo tempo que adentram o campo
de disputa pelo significado da tradição,
continuem em um constante processo
de (re)tradicionalização, ou seja, de in-
venções e reinvenções do carnaval de
rua no Rio de Janeiro.
Bibliograa
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RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 30.453,
de 09 de fevereiro de 2009. Determina as nor-
mas e procedimentos para a realização de des-
les de blocos e bandas carnavalescas no âmbito
do Município do Rio de Janeiro e dá outras provi-
dências. Diário ocial do município, Rio de Janei-
ro, RJ, 9 fev. 2009. Disponível em: <http://sma-
online.rio.rj.gov.br/legis_consulta/31123Dec%20
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mas e procedimentos para os desles de blocos
carnavalescos no Município do Rio de Janeiro.
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8 mai. 2009. Disponível em: <http://smaonli-
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ção da “Comissão Especial de Avaliação de
Blocos de Rua” na Cidade do Rio de Janeiro,
e outras providências. Diário ocial do mu-
nicípio, Rio de Janeiro, RJ, 21 mai. 2009. Dis-
ponível em: <https://leismunicipais.com.br/a/
rj/r/rio-de-janeiro/decreto/2013/3719/37182/
decreto-n-37182-2013-dispoe-sobre-a-criacao-
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RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 36.760, de
05 de fevereiro de 2013. Dispõe sobre a proibição
da demarcação de áreas privadas nos blocos de
carnaval na Cidade do Rio de Janeiro e dá outras
providências. Diário ocial do município, Rio de
176
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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cultural carioca o gênero musical conhecido por
marchinha de carnaval. Disponível em: <https://
leismunicipais.com.br/a1/rj/r/rio-de-janeiro/decre-
to/2015/3975/39751/decreto-n-39751-2015-de-
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cal-conhecido-por-marchinha-de-carnaval>.
Acesso em: 1 fev. 2016.
TEIXEIRA, João Gabriel L. C. Apresentação. In:
TEIXEIRA, João Gabriel L. C.; GARCIA, Marcus
Vinícius Carvalho; GUSMÃO, Rita. Patrimônio
imaterial, performance cultural e (re)tradicionali-
zação. Brasília: ICS-UnB, 2004.
Recebido em 09/12/2017
Aprovado em 24/02/2018
I Marina Bay Frydberg. Doutora em Antropologia
Social pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Professora do Departamento de Arte da Uni-
versidade Federal Fluminense. Contato: marina-
frydberg@gmail.com
II http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2016/
noticia/2016/01/veja-lista-com-data-e-hora-de-des-
file-dos-blocos-de-rua-do-rio-em-2016.html – Aces-
sado em 06/03/2016.
III Considerando o carnaval das escolas de samba e
dos blocos.
IV http://www.rio.rj.gov.br/web/riotur/
exibeconteudo?id=5914149
- Acessado em 06/03/2016.
V Este artigo é resultado de uma pesquisa maior que
se iniciou em 2014 junto ao Observatório de Economia
Criativa do Estado do Rio de Janeiro, contando com
nanciamento do Ministério da Cultura. Desde 2015 a
pesquisa conta com o nanciamento, através de bolsa
de iniciação cientíca do CNPq e da Faperj, com o
auxílio dos alunos do bacharelado em Produção Cul-
tural da Universidade Federal Fluminense, Alex Kos-
sak, Gustavo Portella Machado, Maria Emília Ribeiro
Vasconcelos e Rebeca Eler de Carvalho Eiras.
VI Uma primeira versão desse texto foi apresentada
na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada
entre o s dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pes-
soa /PB. Agradeço às organizadoras e participantes
do GT Cultura Popular, patrimônio e performance
pelo debate que enriqueceu a análise.
VII Desde 2014 venho fazendo de forma sistemática
o levantamento do número de blocos que desfilam no
carnaval de rua do Rio de Janeiro chegando a esse
número até 2016.
VIII DECRETO N° 23.926 de 23 de janeiro de 2004 –
D.O.M. do Rio de Janeiro.: 26/01/2004.
IX LEI Nº 4.068 de 24 de maio de 2005. – D.O.M. do Rio
de Janeiro: 06/06/2005.
X DECRETO N° 27.594 de 14/02/2007. – D.O.M. do
Rio de Janeiro.: 15/02/2007.
XI DECRETO Nº 39.751 de 05/02/2015. - D.O.M. do Rio
de Janeiro.: 06/02/2007.
XII DECRETO Nº 30.453 de 9 de fevereiro de 2009,
complementado e revogado pelo DECRETO Nº
30.659 de 7 de maio de 2009.
XIII DECRETO Nº 37.182 de 20 de maio de 2013.
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Apropriação do patrimônio cultural na região portuária
do Rio de Janeiro: políticas culturais entre a territorialidade e a exploração
Apropiación del patrimonio cultural de la región del puerto
de Rio de Janeiro: las políticas culturales entre territorialidad y explotación
Appropriation of the cultural heritage in the port region of Rio de Janeiro:
cultural policies between territoriality and exploitation
Mariana Albinati
I
Resumo:
O artigo se debruça sobre diferentes agentes e ações de política cultural
que disputam, no contexto do projeto Porto Maravilha, os discursos
e práticas acerca da cultura na Zona Portuária da cidade do Rio de
Janeiro. Nesse sentido, coloca em discussão as diferentes lógicas que
operam a apropriação do patrimônio cultural materialmente situado ou
simbolicamente referido na região: de um lado a lógica da territorialidade
que, atuando em diversas escalas, é marcada pela apropriação simbólica,
pelo sentido de pertencimento (diferente de propriedade) e pela produção
de bens comuns urbanos; de outro a lógica da exploração, marcada pela
apropriação privada do capital simbólico coletivo produzido por grupos
culturalmente subordinados em políticas culturais promovidas por e para
grupos dominantes. Para tanto, parte-se de um entendimento ampliado
acerca das políticas culturais, reconhecendo suas diferentes esferas de
produção (institucionais ou não, do Estado ou da sociedade civil), sem
ignorar a posição privilegiada que o Estado – e a coalizão de poderes e
favor da qual opera – detém na disputa pela legitimidade da expressão
das diferentes culturas que o espaço urbano reúne.
Palavras chave:
Patrimônio cultural
Porto Maravilha
Territorialidade
Apropriação
Políticas culturais
178
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El artículo se centra en diferentes agentes y acciones de política cultural
que disputan, en el contexto del proyecto Porto Maravilha, los discursos
y prácticas acerca de la cultura en la Zona Portuaria de la ciudad de
Rio de Janeiro. En este sentido, pone en discusión las diferentes
lógicas que operan la apropiación del patrimonio cultural materialmente
situado o simbólicamente referido en la región: de un lado la lógica de
la territorialidad que, actuando en diversas escalas, está marcada por
la apropiación simbólica, por el sentido de pertenencia (diferente de
propiedad) y por la producción de bienes comunes urbanos; de otro la
lógica de la explotación, marcada por la apropiación privada del capital
simbólico colectivo producido por grupos culturalmente subordinados
en políticas culturales promovidas por y para grupos dominantes.
Para ello, se parte de un entendimiento ampliado acerca de las
políticas culturales, reconociendo sus diferentes esferas de producción
(institucionales o no, desde el Estado o de la sociedad civil), sin ignorar
la posición privilegiada que el Estado – y la coalición de poderes en
favor de la cual opera – detiene en la disputa por la legitimidad de la
expresión de las diferentes culturas que el espacio urbano reúne.
Abstract:
The article focuses on different agents and actions of cultural policy that,
in the context of the Porto Maravilha project, dispute the discourses and
practices about culture in the portuary zone of the city of Rio de Janeiro.
Therefore, the article discuss the different logics that operate the
appropriation of the cultural patrimony materially situated or symbolically
referred to in the region: on the one hand the logic of territoriality that,
acting on several scales, is marked by symbolic appropriation, by the
sense of belonging (different from property) and the production of
urban common goods; on the other, the logic of exploitation, marked
by the private appropriation of the collective symbolic capital produced
by culturally subordinated groups in cultural policies promoted by and
for dominant groups. To do so, this piece is based on an expanded
understanding of cultural policies, recognizing their different spheres of
production (institutional or not, from the state or civil society), without
ignoring the privileged position that the state - and the coalition of powers
and favor of which it operates - holds in the dispute for the legitimacy
of the expression of the different cultures that the urban space gathers.
Palabras clave:
Patrimônio cultural
Porto Maravilha
Territorialidad
Apropriación
Políticas culturales
Keywords:
Cultural heritage
Porto Maravilha
Territorialy
Social appopriation
Cultural policies
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Apropriação do patrimônio cultural
na região portuária do Rio de
Janeiro: políticas culturais entre a
territorialidade e a exploração
A Zona Portuária do Rio de Janeiro,
onde desde 2009 está em curso a Opera-
ção Urbana Porto Maravilha, é um impor-
tante espaço de referência da produção
de bens do patrimônio cultural material e
imaterial. A região é frequentemente nar-
rada como cenário do surgimento do sam-
ba, dentre outras expressões culturais de
herança africana, que a zeram conhecida
como Pequena África, nome criado na dé-
cada de 1920 pelo compositor Heitor dos
Prazeres. Abriga ainda uma Área de Pro-
teção do Ambiente Cultural (APAC) voltada
para a preservação de edicações e usos,
além de constituir um campo de pesquisas
arqueológicas com achados de relevância
mundial. Encontrado através de escava-
ções arqueológicas realizadas em meio às
obras do Porto Maravilha em 2011, o Cais
do Valongo, porto que recebeu o maior nú-
mero de africanos escravizados na Améri-
ca Latina, foi inscrito na lista do Patrimônio
Cultural da Humanidade da UNESCO em
2017, reconhecido como sítio histórico sen-
sível e maior referência para a memória da
diáspora africana fora do continente.
A Operação Urbana Porto Maravilha
coloca a região correspondente aos bair-
ros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo sob
gestão de um consórcio de construtoras
privadas por 15 anos, podendo ser toma-
da como exemplo da chamada governan-
ça empreendedorista neoliberal (SANTOS
JÚNIOR, 2015), fruto do processo atual de
reorganização capitalista, onde se ampliam
as bases espaciais da acumulação, através
de destruição/criação de estruturas urba-
nas e da sua disponibilização aos agentes
do mercado. Os aspectos simbólicos que
compõem essas estratégias de novo tipo
ganham relevo em uma sociedade marcada
pela centralidade da cultura, onde se pode
observar a aproximação crescente entre a
gestão urbana e as políticas econômicas e
culturais, produzindo novos sentidos para
os processos de patrimonialização de ob-
jetos, memórias e práticas culturais.
A reestruturação em curso na Zona
Portuária pode ser considerada um projeto
de gentricação do lugar, e, nesse sentido, a
lida do Porto Maravilha com as territorialida-
des estabelecidas por agentes das classes
populares na região, relações de pertenci-
mento e identidade cultural, objetiva conver-
ter esses conteúdos simbólicos em atrativos
para os novos públicos – e capitais – a que
o projeto se destina. Para tanto, os agentes
envolvidos no empreendimento lançam mão
de uma construção discursiva que, ao mes-
mo tempo, constrói a ideia da Zona Portuária
como espaço vazio e decadente justican-
do assim a necessidade de sua renovação –
e se apóia em aspectos da cultura local para
legitimar suas ações e fomentar o ambiente
multicultural – com ingredientes do cosmo-
politismo misturados a aspectos seleciona-
dos e controlados da cultura popular – que
marca as novas capitais globais.
Embora para o projeto isotópico, ca-
pitaneado pelo Estado segundo interesses
de mercado, o patrimônio cultural seja en-
carado de forma utilitária com ns econômi-
cos e de legitimação política, para uma série
de outros agentes que constituem a região
portuária como território carregado de sim-
bologias e afetos, a patrimonialização de
objetos, práticas culturais e referências his-
tóricas, ocializada ou não pelos órgãos do
patrimônio, está ligada a outra ordem, a da
territorialidade ou da identicação com seu
espaço de vida e construção subjetiva.
Em um cenário de forte intervenção
nas dinâmicas espaciais da região, diferen-
tes agentes e ações de política cultural parti-
cipam da disputa em torno da signicação e
apropriação do patrimônio cultural na Zona
180
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Portuária do Rio de Janeiro. Este texto tem
por objetivo identicar e propor reexões so-
bre duas lógicas distintas que condicionam
diferentes práticas de apropriação do pa-
trimônio cultural espacialmente situado ou
referenciado na região, nos bairros históri-
cos da Gamboa, Saúde e Santo Cristo. Em
primeiro lugar, a lógica da territorialidade,
que marca processos em que o patrimônio
é apropriado como elemento constituinte do
sentimento de pertencimento ao território,
como referência para a constituição simbó-
lica de sujeitos e grupos e sua relação com
o espaço do entorno do Porto da cidade.
Em segundo lugar, a lógica da exploração
ou da espoliação, predominante nos proje-
tos e ações em que o patrimônio, material
e imaterial, é entendido como ativo econô-
mico, não importando sua existência ativa
enquanto elemento de registro de movimen-
tos estéticos e processos construtivos, de
memória e reexão histórica, de expressão
cultural e armação de identidades, mas sim
o aspecto multicultural que empresta aos
espaços mercantilizados na nova rodada de
apropriação capitalista do espaço.
A palavra apropriação, nessas duas
lógicas, apresenta signicados opostos:
quando identicada com a territorialidade,
se refere ao estabelecimento de laços afe-
tivos e de pertencimento; já na lógica da
exploração, signica a tomada indevida de
posse sobre algo. De um lado, pertenci-
mento, identidade, liberdade e produção
de comuns. De outro, posse, captura, pri-
vatização e mercantilização de comuns.
As disputas em torno do patrimônio
integram políticas culturais produzidas por
diferentes agentes que atuam sobre a re-
gião, em esferas institucionais ou não, do
Estado ou da sociedade civil. Vale salien-
tar aqui a opção por um conceito amplo de
políticas culturais, entendendo que práticas
culturais (valores, visões de mundo, formas
de expressão, etc.) fazem parte do cotidiano
dos diversos grupos sociais e que posicio-
namentos tomados tanto pelos grupos como
pelo Estado determinam a valorização, o
estímulo e a disseminação de determina-
das práticas, objetos e memórias, ao passo
em que denem também a invisibilização,
o constrangimento e a destruição de outras
formas e fontes de expressão cultural.
A noção de políticas culturais diz res-
peito a ações organizadas que interferem
na produção e preservação de memórias,
objetos e práticas culturais, tendo como ob-
jetivo, mais ou menos explícito, limitar ou
dinamizar a diversidade cultural e as várias
experiências da alteridade. Nesse sentido,
nota-se que “além de políticas culturais que
se limitam a celebrar a diversidade sem to-
car em seu conteúdo político – trabalho inó-
cuo ou deliberadamente avesso à armação
das diferenças –, há aquelas que promo-
vem a desvalorização das experiências de
alteridade, subordinando os seus sujeitos”
(DOMINGUES; ALBINATI, 2017, p. 110).
Mesmo reconhecendo a multiplici-
dade dos agentes das políticas culturais,
é fundamental notar a posição privilegiada
que o Estado – e a coalizão de poderes a
favor da qual opera – detém na disputa pela
legitimidade da expressão das diferentes
culturas que o espaço urbano reúne. Assim,
a opção por um modelo de cidade que privi-
legia as relações entre cultura e economia,
determinando o caráter empreendimentista
nas políticas culturais e sua colagem utili-
tária às políticas urbanas, invisibiliza, cons-
trange e por vezes destrói expressões de
culturas que não se adequam ao modelo.
No contexto de um projeto avassala-
dor como o Porto Maravilha, em que grandes
interesses privados determinam os rumos de
um território cuja relevância cultural e histó-
rica vai muito além dos 5 milhões de metros
quadrados localizados no centro do Rio de
Janeiro (área compreendida pelo projeto), as
disputas em torno da legitimidade das políti-
cas culturais se acirram. Especialmente no
momento em que, imersos em uma crise de
governabilidade – uma saga que envolve es-
181
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
peculação nanceira, investigações de cor-
rupção e mudanças na coalizão de poderes à
frente do projeto –, o órgão gestor (CDURP)
e o consórcio de empresas (Consórcio Porto
Novo) que implementa a Operação Urbana
já não sinalizam com apoio material para a
realização de projetos culturais na região, di-
minuindo o seu papel na determinação direta
das políticas culturais locais.
As disputas em torno das políticas
culturais e, notadamente, das políticas de
preservação do patrimônio ganharam ain-
da mais fôlego quando, em julho de 2017,
foi divulgada pela UNESCO a inscrição
do Cais do Valongo na lista do Patrimônio
Mundial. Desde então, as três esferas do
governo – Município, Estado e União – e
os três poderes – executivo, legislativo e
judiciário –, movimentos sociais, ONGs,
pesquisadores, moradores da região, entre
outros agentes que ali mantêm vínculos de
territorialidade vêm participando da arena
pública que discute e articula a construção
de um espaço de memória vinculado ao
sítio arqueológico. Embora a construção
desse espaço cultural tenha sido armada
como compromisso pela Prefeitura no dos-
siê de candidatura submetido à UNESCO,
as denições sobre o seu projeto estão ain-
da em aberto e em disputa.
A fala de Luiz Eduardo Negrogum,
presidente do Conselho Estadual dos Di-
reitos do Negro – CEDINE, feita durante
a audiência pública “Cais do Valongo: Pa-
trimônio Cultural da Humanidade: E Ago-
ra?”, promovida pela Procuradoria da Re-
pública no Rio de Janeiro em agosto de
2017, demonstra as duas diferentes lógi-
cas que operam a apropriação do patrimô-
nio cultural na região portuária:
o que está em voga é apropriação dum
território negro pelo negro, com a his-
tória do negro (…) e a Docas André
Rebouças [onde se pleiteia construir o
espaço cultural] hoje, hoje ela tem que
ser única e exclusivamente, totalmente
um espaço afrodescendente. Tem que
ser a nossa história e se tiver que ter
uma ONG ali pra gerir a nossa história,
que seja uma ONG comprometida com
a nossa história, que venha das nossas
raízes, das nossas entranhas. Se não
for por assim, meu querido, pra usar
mais uma vez, pessoas usando a nos-
sa história pra se apropriar, enriquecer,
tchau e bença! [grifos nossos]
II
.
Primeiramente, o depoimento traz
a apropriação como constituidora de uma
relação de territorialidade, ou seja, como
dado imaterial que faz daquele território
um território. Nesse sentido, a “apropriação
dum território negro pelo negro” se refere
a uma relação espacial de pertencimento,
mas também de poder, dada a congura-
ção especíca do espaço da Zona Portuária
como portador de referências à escravidão
negra e seu legado de desigualdades nos
dias presentes. No segundo momento, ao
se referir a projetos não identicados com
a história negra e que poderiam obter ga-
nhos materiais através da sua atuação no
referido território, a apropriação se refere à
exploração de bens culturais imateriais per-
tencentes ao povo negro, mercantilizando
o capital simbólico coletivo produzido por
este grupo subordinado.
Um importante episódio que em
2015 mobilizou diversos agentes em torno
das possibilidades de apropriação do pa-
trimônio na Zona Portuária foi a resistên-
cia à apresentação da peça teatral João
de Alabá e a Pequena África, um dos mui-
tos projetos culturais que se utilizaram de
uma narrativa pacicada do patrimônio
aquela divulgada pelo Porto Maravilha e
seu Circuito Histórico e Arqueológico da
Herança Africana a m de captar parte
das verbas que então convergiam para a
dinamização da cena cultural da região.
Em junho de 2015, quando foi noti-
ciada a estréia da Peça João Alabá e a Pe-
quena África, com texto e direção de Alexei
182
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Waichenberg, o conito entre as diferentes
formas de apropriação da memória da es-
cravidão negra veio à tona de forma es-
pecialmente vigorosa
III
. A foto de uma atriz
branca caracterizada para o papel de mãe
de santo, que viveria na peça, repercutiu en-
tre militantes do movimento negro, que or-
ganizaram um ato de repúdio ao espetáculo.
Na página do ato na rede social Facebook
IV
,
o debate colocava a questão da escravidão
no tempo presente, tratando fundamental-
mente de racismo e apropriação cultural. O
diretor do espetáculo, branco, assim como
atriz retratada, chegou a se defender em al-
gumas postagens, com armações que fo-
ram prontamente desconstruídas pelos mi-
litantes, que apontaram o conteúdo racista
do projeto cultural e da sua defesa.
A direção do projeto Porto de Memó-
rias, que encenou outras peças em espaços
públicos e se preparava para encenar João
de Alabá e a Pequena África na Pedra do
Sal, se informou através das redes sociais
sobre a indignação provocada e convocou
uma reunião com os organizadores do ato,
encontro realizado no Instituto Pretos No-
vos. Compareceram à reunião represen-
tantes da comunidade, do Candomblé e do
movimento negro. Na ocasião, a militante
negra Alessandra Nzinga, respondendo à
queixa de que a mobilização visava denegrir
o projeto e o espetáculo, armou: “Denegrir
realmente é o que a gente quer, porque de-
negrir signica tornar negro. Denegrir pra
gente não é ofensa, muito pelo contrário. E
é por isso que a gente está aqui: porque a
gente quer denegrir esta peça”
V
.
O site Mamapress, que divulgou o
vídeo, relatou os resultados da reunião:
os moradores da região da antiga Peque-
na África, representantes do Movimento
Negro e representantes do Candomblé,
além de artistas negros e negras, apre-
sentaram as seguintes propostas à di-
reção da peça, para dirimir a celeuma e
indignação provocada pela publicação
da foto de uma atriz branca, paramen-
tada exoticamente de Yalorixá, que iria
representar o papel principal na peça
dedicada a louvar as tradições culturais
negras da região: Retratação pública da
propagação e exposição de foto e ca-
racterização ofensiva das Religiões de
Matrizes Africanas, que possam ser in-
terpretadas como racismo. Substituição
da atriz branca por uma atriz negra. Ou
suspensão da apresentação para que
seja reavaliada (ROMÃO, 2015, online).
Diante da resistência à peça, a pre-
tensão do grupo em apresentá-la na Pedra
do Sal não foi à frente e o espetáculo, pri-
meiramente adiado para “reparos”, termi-
nou por ser apresentado em duas sessões
no Centro Cultural da Light, patrocinadora
do projeto, na Gamboa.
No dia em que o espetáculo seria
apresentado, o movimento realizou na
Pedra do Sal o Ato em Honra à Pequena
África
VI
, que reuniu diversas organizações
de militância negra, não necessariamente
situadas nos bairros portuários, mas que
por sua origem racial guardam relações
de territorialidade com aquela região e seu
patrimônio cultural.
A Pedra do Sal, tombada como pa-
trimônio cultural pelo INEPAC em 1987,
reconhecida como o mais antigo monu-
mento vinculado à história do samba ca-
rioca, é um espaço cobiçado tanto pelos
grupos que dele se apropriam como re-
ferente identitário, como por aqueles que
procuram capitalizar seus projetos asso-
ciando-se a um espaço reconhecido e tra-
dicionalmente muito frequentado. O caso
do samba da Pedra do Sal é emblemático
para a observação das disputas em torno
do patrimônio cultural na Zona Portuária,
uma vez que o samba vem sendo aponta-
do por antigos frequentadores, moradores
da região, como um espaço apropriado
por agentes “de fora”, o que desvirtua a
territorialidade inicialmente estabelecida.
183
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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O samba a que nos referimos acon-
tece há cerca de dez anos, às segundas-
-feiras, aos pés da Pedra do Sal, em um
largo contíguo ao Largo da Prainha, que
também abriga uma série de eventos mu-
sicais. No mesmo espaço físico, porém em
dias diferentes da semana, outros grupos
musicais se apresentam ali, o que condi-
ciona especialidades facilmente distinguí-
veis para o observador externo e mais ain-
da pelos moradores que usam o espaço
cotidianamente. Apontado como um im-
portante espaço de sociabilidade e lazer
para os moradores da região, o samba de
segunda-feira foi recongurado a partir da
chegada do Porto Maravilha e dos novos
agentes que a Operação atrai para o ter-
ritório. Depoimentos de agentes culturais
da região revelam as ssuras no samba
enquanto um bem comum urbano:
Samba na Pedra do Sal foi um sam-
ba que era gostoso de se ir. Hoje não
é mais... O de segunda. O de sexta é
muito gringo, você não conhece nin-
guém, mas a segunda já era legal.
Você chegava lá e conhecia todo mun-
do! E até ia até a galera que não gos-
tava de samba (...) A roda de samba
tem oito anos ali, são os mesmos mú-
sicos, mas com a revitalização o públi-
co se renovou, mudou muito.
VII
Hoje eu não gosto de frequentar a Prai-
nha. Porque tem lugares e pessoas ali
que são experts... Ali não são eventos
nossos. (...) O problema é que esse pes-
soal, os produtores culturais, recebe di-
nheiro pra fazer esses eventos culturais
– esse pessoal paraquedista – e mora-
dor mesmo não vai. Porque pro morador
aquilo não faz parte da sua cultura.
VIII
Ambos os exemplos trazidos, da re-
sistência à peça João de Alabá e do incô-
modo dos antigos frequentadores com a re-
conguração do público do samba da Pedra
do Sal, demonstram a percepção, por parte
dos agentes culturais que guardam vínculos
de territorialidade com a região, das conse-
quências do projeto de renovação urbana
quanto à apropriação ou captura dos bens
comuns urbanos que produzem. No caso da
peça, a crítica é direcionada à apropriação
racista de elementos do patrimônio negro e
à exploração econômica do capital simbólico
coletivo desse grupo social – suas memó-
rias, história e produção cultural – por agen-
tes externos. A mobilização de agentes do
movimento negro contrária à encenação da
peça, um movimento de defesa de território
e tomada do patrimônio para si, evidencia a
necessidade de que o protagonismo na de-
nição dos signicados e políticas de preser-
vação do patrimônio seja daqueles agentes
para quem as memórias, objetos e práticas
patrimonializados são mais signicativos,
colocando em evidência a questão dos limi-
tes no acesso a determinados comuns.
No caso do samba da Pedra do Sal,
embora o comum não se desfaça com a
chegada dos novos usuários, que inclusive
são atraídos por suas qualidades – o espa-
ço festivo de encontro com a cultura negra,
o ambiente amistoso onde “todo mundo se
conhece” –, o acesso franqueado aos no-
vos frequentadores degrada esse comum,
que deixa inclusive de ser compartilhado
por parte do grupo que o criou. David Har-
vey nos lembra que “nem todas as formas
do comum requerem acesso livre” (HAR-
VEY, 2014, p.142), no entanto, por ser pro-
duzido em um espaço público, um largo no
sopé da Pedra do Sal, o samba de segun-
da-feira, enquanto um comum urbano, não
pode restringir o acesso a outros grupos
que queiram dele participar.
Além da questão da degradação
do seu valor de uso, o problema do aces-
so aos bens comuns urbanos se agrava
quando esses comuns possibilitam a assi-
milação de valor de troca. Ainda mais nos
casos em que agentes externos procuram
mercantilizar determinados comuns, en-
tendendo-os como capital simbólico cole-
tivo passível de apropriação privada.
184
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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O patrimônio é um objeto de dispu-
ta especialmente delicado, pela potência
que combina enquanto símbolo de resis-
tência de grupos sociais subordinados, a
que os projeto renovadores costumam ex-
pulsar, e também como “diferencial” – aqui
vale o sentido comercial da palavra – que
agrega valor de troca no processo de mer-
cantilização das cidades que se almeja
converter em capitais globais através de
um urbanismo neoliberal.
Reginaldo dos Santos Gonçalves
questiona o sentido da negação da mer-
cantilização nos discursos do campo do
patrimônio cultural: “Há um esforço cons-
tante e sempre precário de manter os obje-
tos classicados como “patrimônio” fora do
alcance da contaminação que o mercado
possa desencadear. Mas, paradoxalmente,
esses objetos são, enquanto patrimônio,
um efeito mesmo do mercado” (GOLÇAL-
VES, 2007, p. 243). Porém, se as “incon-
tornáveis e ambíguas relações com o mer-
cado” são parte constituinte das políticas
de preservação no mundo moderno, quais
os limites para a exploração econômica do
patrimônio cultural? Quais os riscos que
essa relação coloca para a sua existência
enquanto um comum? Que grupos podem
ou não participar de sua comunalização e
quais os que podem ativá-lo como capital?
O foco da crítica aqui tecida à apro-
priação privada do patrimônio cultural en-
quanto um bem comum urbano não está no
seu uso para obtenção de valor de troca,
mas sim na possibilidade de que a apro-
priação privada desse valor de troca seja
realizada por agentes que não compõem
o coletivo que produziu o comum ou para
quem ele é mais signicativo do ponto de
vista do seu valor de uso. O problema re-
side nos modos de exploração capitalis-
ta do patrimônio que expropriam de seus
agentes a possibilidade de usufruírem des-
ses comuns como valor de uso e/ou como
valor de troca. O processo de gentricação
acarretado pelos projetos de renovação ur-
bana, que retira dos espaços renovados as
classes populares que lhes emprenharam
de comuns de todos os tipos, exemplica
essas práticas de expropriação.
Um grupo comunitário que luta por
manter a diversidade étnica em seu
bairro e protegê-lo da gentricação
pode descobrir repentinamente que
os preços (e os impostos) de suas pro-
priedades aumentam à medida que os
agentes imobiliários propagandeiam
para os ricos o “caráter” multicultural,
diversicado e movimentado de seu
bairro. Quando o mercado concluísse
seu trabalho destrutivo, não só os re-
sidentes originais seriam despojados
do comum que eles haviam criado
(sendo constantemente forçados pelo
aumento dos aluguéis e dos impostos
sobre a propriedade), como também
o próprio comum já se teria degrada-
do a ponto de tornar-se irreconhecível
(HARVEY, 2014, p. 152).
A noção de capital simbólico coleti-
vo (HARVEY, 2005) deriva do conceito de
capital simbólico bourdiesiano, que enten-
de os diferentes tipos de capitais, inclusive
o econômico, como intercambiáveis. Um
comum cultural pode ser capitalizado na
forma de capital simbólico coletivo, pro-
porcionando aos membros do grupo pro-
dutor recursos que têm valores diferentes
nos diferentes campos. Pertencer ao gru-
po originário do samba de segunda-feira
da Pedra do Sal, por exemplo, é fonte de
prestígio e reconhecimento em determi-
nados segmentos do campo cultural – por
exemplo, entre os agentes que almejam
participar daquele comum, mas não pos-
suem os requisitos para tal – o que sig-
nica capital simbólico que, em última
instância, pode ser em algum momento
convertido em econômico. Porém, a pre-
dominância do valor de uso na criação do
comum talvez seja o que lhe confere al-
gum valor de troca, o que o transforma em
capital simbólico coletivo.
185
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
As políticas culturais de preserva-
ção do patrimônio, promovidas por orga-
nizações do Estado ou da sociedade civil,
inseridas em um contexto de imbricação
entre cultura e economia, privilegiam
questões relacionadas ao consumo turís-
tico e à “sustentabilidade” do patrimônio,
ou seja, às estratégias para que dele se
extraia valor de troca. Como arma Gon-
çalves (2007, p.244),
Um prédio tombado como “patrimô-
nio cultural” existe na medida em que
se inibe ou se limita sua condição de
mercadoria: não pode ser vendido ou
não pode sofrer alterações. No entanto,
essa sua condição de mercadoria está
presente não apenas na possibilidade
de ser alienado, mas efetivamente na
sua condição de objeto de consumo
turístico, portanto enquanto suporte de
uma determinada imagem que é con-
sumida: o passado nacional, a cultura
popular, a cultura nativa, ou antigos
bairros de uma cidade, como é o caso
das “Áreas de Preservação Ambiental e
Cultural” (as APACS) no Rio de Janeiro.
Uma dessas APACs, aliás, está si-
tuada na região portuária (APAC SAGAS)
e foi alvo de projetos revitalizadores ante-
riores ao Porto Maravilha, quando não ha-
viam sido desenterrados tantos registros
da história da escravidão e quando a ima-
gem para consumo turístico projetada pela
Prefeitura do Rio de Janeiro era a de um
conjunto remanescente de ocupação por-
tuguesa e espanhola, características pre-
sentes em parte da ocupação do Morro da
Conceição GUIMARÃES, 2014) e que ao
serem evidenciadas procuravam também
invisibilizar a presença negra na constitui-
ção daquele território portuário. A história
da APAC SAGAS apenas ilustra o tipo de
apropriação do patrimônio que os projetos
renovadores levam a cabo, menos interes-
sado no conteúdo dos objetos e práticas
patrimonializados e nas relações de terri-
torialidade que se estabelecem em torno
desse patrimônio e mais no seu uso como
signo da multiculturalidade que caracteriza
as cidades globais. Nesse entendimento, o
foco da política cultural não está no valor
de uso do patrimônio, em sua existência
enquanto comum, mas no seu potencial de
geração de valor de troca, através da mer-
cantilização da imagem ou da “experiência”
de contato com os bens materiais e imate-
riais patrimonializados.
Se o patrimônio cultural pode ser
encarado como um comum e, no caso do
patrimônio inserido em espaços onde a
governança neoliberal se impõe, como um
bem comum urbano ameaçado, é impor-
tante notar que a chave de entendimento
do conceito de bens comuns urbanos está
na apropriação social. David Harvey deno-
mina “bens comuns urbanos” aos frutos da
produção coletiva de grupos sociais dispo-
níveis para sua apropriação não mercantil
(HARVEY, 2014). Não se trata simplesmen-
te dos espaços públicos, pois, embora estes
favoreçam a existência de práticas de co-
munalização, só se tornam comuns quando
efetivamente apropriados e comunalizados
por grupos sociais. O comum é, então, fru-
to da apropriação social, entendida, confor-
me Henri Lefebvre, como “modalidade su-
perior de liberdade” (LEFEBVRE, 2008, p.
129), prática que transforma o que estava
somente disponível em algo próprio no sen-
tido subjetivo, tomado por usos/práticas que
correspondem aos desejos e ao repertório
simbólico dos usuários/praticantes.
O ambiente e a atratividade de uma cida-
de, por exemplo, é um produto coletivo
de seus cidadãos, mas é o mercado do
turismo que capitaliza comercialmente
esse comum (...). Por meio de suas ativi-
dades e lutas cotidianas, os indivíduos e
grupos sociais criam o mundo social da
cidade ao mesmo tempo em que criam
algo de comum que sirva de estrutura
em que todos possam abrigar-se. Em-
bora esse comum culturalmente criativo
não possa ser destruído pelo uso, pode
186
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ser degradado e banalizado pela utiliza-
ção abusiva (HAVEY, 2014, p. 146).
Embora seja um bem comum urba-
no, o conjunto de referências do patrimônio
negro situadas ou referenciadas espacial-
mente na Zona Portuária carioca não per-
tence necessariamente a todos de forma
igual, pois, conforme Harvey, a comunaliza-
ção pode denir usos exclusivos por deter-
minado grupo social ou parcial ou totalmente
abertos a toda a sociedade (HARVEY, 2014).
A população negra, que estabelece práticas
cotidianas de comunalização desse patrimô-
nio, para quem o seu valor de uso é mais
representativo, deve ser então participar de
forma privilegiada na denição da gestão do
comum, que também requer certas prote-
ções que garantam a sua preservação.
A lógica da exploração na lida com
o patrimônio é ainda mais problemática
quando serve à apropriação, por outros
agentes, de comuns produzidos por gru-
pos culturalmente subordinados. Ou seja,
quando a apropriação privada do capital
simbólico coletivo produzido por grupos
subordinados é realizada através de polí-
ticas culturais promovidas por e para gru-
pos dominantes em detrimento e contra os
demais grupos sociais.
Na Zona Portuária carioca o risco
maior da apropriação do patrimônio ligado
à herança africana no bojo de um projeto
gentricador é a expulsão gradativa dos
agentes para quem a história da escravi-
dão é revivida cotidianamente, sendo ainda
determinante de sua condição social subor-
dinada. Agentes que produziram na região
o território negro, repleto de expressões e
referências culturais, de que outros grupos
sociais – como o grupo que compõe a coa-
lizão de poderes por trás do Porto Maravi-
lha – buscam agora se apropriar.
Outro risco a que é importante aten-
tar é o da despolitização ou pacicação na
interpretação desse patrimônio, fato que
pode vir a ocorrer na nova rodada de dis-
putas que o reconhecimento do Cais do
Valongo estabelece, a depender da posi-
ção que o movimento negro consiga assu-
mir nesse jogo, visando garantir sua parti-
cipação prioritária na elaboração e gestão
das políticas culturais. Desta forma, ga-
rantindo que a população negra possa se
apropriar do patrimônio enquanto um co-
mum, mas também enquanto capital sim-
bólico, estando em condição também de
captar os benefícios objetivos que certa-
mente a gestão de um bem do Patrimônio
da Humanidade pode vir a conferir.
Em um cenário de mercantilização
das cidades, quem tem acesso a determina-
dos bens comuns urbanos também pode se
beneciar da sua mercantilização, mesmo
não intencionalmente e mesmo de forma
subordinada, sob as condições colocadas
pelo capitalismo contemporâneo e sua car-
tilha empreendimentista. Esse aproveita-
mento secundário (que não é o objetivo dos
projetos de renovação urbana, mas pode
ser aceito como um efeito colateral não ma-
léco) garante, muitas vezes, oportunida-
des melhor remuneradas ou mais rentáveis
para pessoas e grupos sociais que mantém
os comuns urbanos em circulação.
Como o discurso produzido para
estimular a reapropriação capitalista da
região portuária do Rio de Janeiro se uti-
liza dos signos da herança africana – fato
que, aliás, deriva da mobilização política
de agentes que se relacionam com essa
herança – encarando-os como “diferen-
cial” no sentido da obtenção de renda de
monopólio (HARVEY, 2005) sobre o espa-
ço, o mesmo grupo que promove a gentri-
cação do lugar precisa também estimular
a permanência e a expressão cultural das
populações que o qualicam através da
sua produção de bens comuns urbanos.
O patrimônio, como bem dene
José Reginaldo Gonçalves, é uma catego-
ria ambígua, “uma vez que liminarmente si-
187
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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tuada entre o passado e o presente, entre
o cosmos e a sociedade, entre a cultura e
os indivíduos, entre a história e a memória”
(2007, p.246). Nesse sentido, o cenário de
disputas em torno da apropriação do patri-
mônio cultural na Zona Portuária carioca
precisa ser encarado de forma dialética,
pois envolve também ambiguidades e com-
plexas relações entre valor de uso e valor
de troca, bem comum e capital simbólico.
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Mamapress, 17 de jun. 2015 (online). Disponível em:
<https://mamapress.wordpress.com/2015/06/17/de-
negrir-nao-e-ofensa-queremos-denegrir-esta-peca-
-joao-alaba-e-a-pequena-africa/>.
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Gover-
nança empreendedorista: a modernização neoli-
beral. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz (org.).
Rio de Janeiro: transformações na ordem urba-
na. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório
das Metrópoles, 2015.
Recebido em 21/02/2018
Aprovado em 26/02/2018
I Mariana Luscher Albinati. Doutora em Planejamento
Urbano e Regional pelo IPPUR/Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Pesquisadora do Observatório das Me-
trópoles. Contato. marianaalbinati@yahoo.com.br
II Fala transcrita pela Procuradoria da República no Rio
de Janeiro, obtida através de solicitação ao órgão.
III www.geledes.org.br/artistas-negras-somem-da-pai-
sagem-do-rio-de-janeiro-de-2015-artistas-negras-pro-
testam-na-pedra-do-sal/
IV www.facebook.com/events/853865534662910/per-
malink/858246834224780/
V Fala extraída do vídeo disponível em www.youtube.
com/watch?v=j48SbboBjiU
VI Vídeo sobre o Ato em Honra à Pequena África, dispo-
nível em www.youtube.com/watch?v=ku7IRVA4Z9I
VII Entrevista cedida à autora em janeiro de 2015.
VIII Entrevista cedida à autora em junho de 2015.
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Cultura hip hop: Batalha dos Bombeiros - entre rimas e reivindicações
Cultura hip hop: Batalha dos Bombeiros - entre rimas y reivindicaciones
Hip hop culture: Batalha dos Bombeiros – among claims and rhymes
Amanda Rosiéli Fiuza e Silva
I
Sandra Rúbia da Silva
II
Jonária França da Silva
III
Resumo:
Neste artigo descrevo os resultados obtidos através da experiência de
uma pesquisa etnográca intitulada “Batalha dos Bombeiros: elementos
da cultura hip hop como ferramenta de resistência sociopolítica”. A
investigação analisou se a Batalha dos Bombeiros, evento da cultura
hip hop da cidade de Santa Maria/RS, pode ser considerado um
espaço de representações e reivindicações sociopolíticas. O objetivo
foi compreender como e quais são as práticas que auxiliam na
construção do caráter de resistência sociopolítica da cultura hip hop
na Batalha dos Bombeiros. A metodologia utilizada foi a etnograa e
como procedimento metodológico foi realizada a técnica de entrevista
individual em profundidade. As observações participantes ocorreram
durante cinco meses consecutivos do ano de 2014. E as entrevistas
foram realizadas com sete jovens classicados entre organizadores da
Batalha dos Bombeiros, integrantes da cultura hip hop e espectadores
do evento. A investigação revelou a Batalha dos Bombeiros como
cenário de múltiplos signicados, isto é, a praça onde são desenvolvidas
práticas culturais constitui-se em um espaço simbólico de resistência
onde jovens oriundos das periferias da cidade, por meio das expressões
culturais e da apropriação do espaço público, manifestam suas lutas
sociais e reivindicam melhores condições de vida. Assim, a Batalha
dos Bombeiros é um espaço de articulações políticas, vivências e
experiências, um legítimo espaço de resistência sociopolítica.
Palavras chave:
Cutura
Hip Hop
Periferia
Resistência
Espaço
189
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Resumen:
En este artículo describo los resultados obtenidos a través de la
experiencia de una investigación etnográca titulada Batalha dos
Bombeiros: elementos de la cultura hip hop como herramienta de
resistencia sociopolítica”. La investigación analizó si la Batalha dos
Bombeiros, evento de la cultura hip hop de la ciudad de Santa Maria / RS,
puede ser considerado un espacio de representaciones y reivindicaciones
sociopolíticas. El objetivo fue comprender cómo y cuáles son las prácticas
que auxilian en la construcción del carácter de resistencia sociopolítica
de la cultura hip hop en la Batalha dos Bombeiros. La metodología
utilizada fue la etnografía y como procedimiento metodológico se realizo
la técnica de entrevista individual en profundidad. Las observaciones
concurrentes ocurrieron durante cinco meses consecutivos del año 2014.
Y las entrevistas fueron realizadas con siete jóvenes que se clasicaron
entre organizadores de la Batalha dos Bombeiros, integrantes de la
cultura hip hop y espectadores del evento. La investigación revelo la
Batalha dos Bombeiros como escenario de múltiples signicados, es
decir, la plaza donde se desarrollan prácticas culturales se constituye
en un espacio simbólico de resistencia donde jóvenes oriundos de las
periferias de la ciudad, por medio de las expresiones culturales y de
la apropiación del espacio público, maniestan sus luchas sociales y
reivindican mejores condiciones de vida. Así, la Batalha dos Bombeiros
es un espacio de articulaciones políticas, vivencias y experiencias, un
legítimo espacio de resistencia sociopolítica.
Abstract:
This paper describes the results obtained through an ethnographic
research experience entitled “Batalha dos Bombeiros: hip hop cultural
elements as a sociopolitical resistance tool”. The Batalha dos Bombeiros
was analyzed in this investigation, a hip hop culture event in Santa Maria/
RS, it is considered a sociopolitical claim and representation space. The
goal was understanding how and which practices assist in character
construction of a sociopolitical resistance in hip hop culture in the Batalha
dos Bombeiros. Ethnography was used as methodology and individual
interview in depth was the methodological procedure utilized. The
observation data used dates from the year of 2014 in ve consecutive
months. Seven Young adults were interviewed, among them were
Batalha dos Bombeiros organizers, hip hop culture members and event
spectators. The investigation reveals Batalha dos Bombeiros as a multiple
meaning scenario, in other words, the square were cultural practices are
developed is constituted as a symbol of the resistance were young adults
from the suburbs use cultural expression and public space appropriation,
manifesting social struggles and claim better living conditions. Therefore,
the Batalha dos Bombeiros is a political and experiences articulation
space, a legitimate sociopolitical resistance space.
Palabras clave:
Cultura
Hip Hop
Periferia
Resistencia
Espacio
Keywords:
Culture
Hip Hop
Periphery
Resistance
Space
190
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Cultura hip hop:
Batalha dos Bombeiros
- entre rimas e reivindicações
1. Introdução
Antes de tudo, iremos trazer a com-
preensão do que se trata a cultura hip hop.
É consenso entre os autores Herschmann
(2008; 2005), Coutinho e Araújo (2008),
Salles (2007) e Rose (1997) que a cultura
hip hop é composta por quatro elementos
principais, dentre eles: o grate, rap, bre-
ak, Disc Jockey (DJ) ou mestre de cerimô-
nia (MC). Conforme Salles (2007, p.32) “o
grate são pinturas realizadas com tinta
spray, sobre as mais variadas superfícies:
muros, laterais de trens, painéis [...]”.
De acordo com Herschmann (2005)
o rap é a expressão musical surgida nos
anos 70 nos subúrbios dos EUA, que pro-
vém da mistura de vários instrumentos
eletrônicos, tais como samplers, mixado-
res, repentes eletrônicos, entre outros. O
nome rap é a junção das iniciais das pa-
lavras que compõe a frase “rythm and po-
etry”, que ao ser traduzido para a língua
brasileira signica “ritmo e poesia”.
O break é o estilo de dança da cultu-
ra hip hop, tendo como características que
os movimentos são passos quebrados e
robóticos. Conforme Salles (2007), muitos
passos dessa dança, surgida nos nais
dos anos 1960, foram inspirados pelo con-
texto da guerra. Assim, foram criados para
protestar contra a guerra do Vietnã. Salles
(2007, p. 32) aborda que alguns passos
“simulavam os movimentos de soldados
norte-americanos que retornavam mutila-
dos, outros aludiam a equipamentos usa-
dos no conito”.
DJ ou MC eram os responsáveis por
animar a festa e também que “selecionam
os discos, determinam sua ordem de pas-
sagem e seu encadeamento” (SALLES,
2007, p. 31). Na atualidade, os avanços
tecnológicos e o surgimento das mesas
de som digitais facilitaram o processo da
escolha de discos para seleção das mú-
sicas que rodam com auxílio de programa
de computadores.
As expressões da cultura hip hop,
em grande maioria, são desenvolvidas
por jovens oriundos da periferia. Este fator
contribui para que esta cultura adquira uma
característica de resistência por represen-
tar a voz de populações que trazem a tona
à realidade social a que estão submetidos
os moradores das periferias. Assim, como
formas de reivindicação e denúncia social
as expressões do hip hop dão visibilidade
às questões sociais, denunciam as opres-
sões e violências sofridas por esses jo-
vens e questionam a estrutura social.
Então, buscamos a partir desta
pesquisa, compreender quais aspectos
de resistência e reivindicações sociais
que a Batalha dos Bombeiros promove
a partir da relação entre a apropriação
do espaço público e as expressões cul-
turais do hip hop no espaço do evento.
Desta forma, a investigação consistiu
em analisar a cultura hip hop e entender
os mecanismos de comunicação e rei-
vindicações sociais expressadas pelos
jovens do hip hop na cidade de Santa
Maria/RS, especicamente, no âmbito
da Batalha dos Bombeiros.
A Batalha dos Bombeiros é um
evento da cultura hip hop de Santa Maria/
RS que é realizado desde o ano de 2012
na cidade. A Batalha dos Bombeiros foi
idealizada e é organizada pelo Coletivo
de Resistência Artística Periférica (CO-
-RAP). Este evento ocorre esporadica-
mente, toda segunda sexta-feira do mês,
na Praça Menna Barreto, espaço público
central da cidade, popularmente conheci-
da como “Praça dos Bombeiros”. A Bata-
191
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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lha dos Bombeiros consiste em duelos de
rimas feito à capela
IV
. No evento, vários
rappers ou MCs da cidade se enfrentam
numa disputa de rimas improvisadas. O
vencedor é o rapper que conseguir cons-
truir melhor suas rimas e cativar o público
presente, que atua como juiz, escolhen-
do o vencedor de cada duelo. Em agosto
de 2017, a batalha completou cinco anos
de existência, apesar de já ter ocorrido
em outros locais da cidade, tais como
Diretório Central de Estudantes (DCE)
da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM) e Parque Itaimbé, todavia eram
eventos isolados que não ocorriam com
determinada frequência.
Esta investigação tratou a Batalha
dos Bombeiros como um expoente do
movimento hip hop na cidade. A motiva-
ção surgiu frente ao cenário cultural da
cidade, pois apesar de Santa Maria ser
considerada “Cidade Cultura”, as ma-
nifestações artísticas oriundas das pe-
riferias não são valorizadas, tampouco
recebem espaço na agenda cultural da
cidade. Percebemos que a abertura de
espaços para a cultura hip hop costuma
ser negligenciada. A maioria dos eventos
da cultura hip hop realizados na cidade
costumam ser organizados e desenvol-
vidos pelos próprios jovens sem apoio
do poder público.
Então, tendo em vista o contexto cul-
tural da cidade de Santa Maria e os fatores
que estão relacionados à cultura hip hop, a
pesquisa foi importante para compreender
como se constrói o caráter de comunicação
alternativa e todo o processo de resistência
sociopolítica que envolve o movimento hip
hop na ambiência da Batalha dos Bombei-
ros. Além disso, esta investigação permite
desmisticar a visão estigmatizada da cul-
tura hip hop, mostrando que os jovens das
periferias têm consciência política e sabem
encontrar modos de atuar perante um sis-
tema opressor que a todo custo tenta aba-
far as vozes da periferia.
Para tanto, o enfoque que norteou
todo o percurso da investigação cientíca
consistiu em entender como é construído
o aspecto de resistência sociopolítica da
cultura hip hop de Santa Maria, através da
análise etnográca da Batalha dos Bom-
beiros. Dessa forma, o objetivo principal
foi investigar quais são as práticas que
auxiliam na construção do caráter de re-
sistência sociopolítica da cultura hip hop
na Batalha dos Bombeiros. Almejamos
entender de que forma neste cenário de
relações conituosas, entre privilegiados
e desfavorecidos, que a cultura hip hop
atua como forma de representação social
e reivindicação sociopolítica, intervindo,
através das expressões culturais, por me-
lhores condições sociais.
2. A cultura das periferias: o hip hop
como comunicação e resistência
Nossas discussões compreen-
dem três perspectivas: comunicação al-
ternativa, apropriação de espaço público
e cultura hip hop,as quais são relevan-
tes para entendermos como e porque a
cultura hip hop pode ser compreendida
como uma ferramenta de comunicação
e resistência sociopolítica. Precisamos,
antes de tudo, refletir acerca do contex-
to de surgimento e trajetória da cultura
hip hop para que seja possível compre-
ender seu caráter de resistência socio-
política. Do mesmo modo, percebermos
como as expressões culturais do hip
hop podem se constituir como forma de
comunicação alternativa frente ao sis-
tema de comunicação dominante
V
. Por
fim, a questão de apropriação de espa-
ço público é imprescindível devido ao
fato da Batalha dos Bombeiros acon-
tecer numa praça central da cidade e
promover elementos da cultura urbana
advinda das periferias.
A cultura hip hop, segundo Couti-
nho e Araújo (2008), tem sua origem em
192
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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um contexto conturbado. Surgiu em me-
ados dos anos 1960/1970 nos Estados
Unidos da América (EUA), em meio ao
auge da Guerra Fria. O contexto local era
de descontentamento devido às pertur-
bações causadas pela guerra. Além dis-
so, nessa época, as comunidades negras
viviam submetidas a leis severas, que
eram aplicadas com o objetivo de man-
ter um processo de segregação, fazendo
com os negros se mantivessem restritos
aos seus subúrbios. A situação dos gue-
tos, além da precariedade estrutural, era
de insatisfação e clima tenso, um am-
biente propício para revolta.
Rose (1997) aborda que foi jus-
tamente a desordem estrutural que im-
pulsionou os jovens dos subúrbios a
encontrarem alternativas de lazer frente
ao caos e precariedade que vivencia-
vam no cotidiano. Assim, de forma isola-
da os elementos do movimento hip hop
estavam sendo desenvolvidos. Nas le-
tras de rap os jovens expressavam suas
inquietações sociais, faziam críticas ao
sistema e revelavam suas experiências
de vida, cercadas de violência, repres-
são e pobreza.
O hip hop acabou se constituindo
como uma cultura de resistência pelo
fato que a partir dos elementos culturais
os jovens expressavam suas críticas e
denúncias. Dessa forma, notamos que
as expressões culturais do hip hop são
mecanismos alternativos de comuni-
cação dos jovens dos subúrbios e pe-
riferias, pois revelam a estrutura social
opressora que promove e mantém as
desigualdades sociais.
Como bem explana Coutinho
(2008), os moradores de periferia cons-
troem estratégias de expressão para
fugir dos mecanismos de repressão so-
cial. Estas estratégias são denominadas
pelo autor de “rotas de comunicação al-
ternativa”, pois são as maneiras que os
moradores encontram de terem voz e
adquirirem visibilidade para suas reivin-
dicações sociais.
Ao contrário do que se costuma
imaginar, se não ouvimos a fala po-
lítica dos habitantes das favelas – e
mesmo dos moradores de rua – não
é porque eles estejam anestesia-
dos, passivos ou não tenham nada
a dizer: é porque sua voz é calada,
abafada, distorcida (COUTINHO,
2008, p.65).
Conforme Coutinho (2008) as “ro-
tas de comunicação alternativa” são os
caminhos alternativos que a população
periférica encontra para fugir dos meca-
nismos de coerção hegemônica. Para o
autor, o sistema sempre encontra mo-
dos de silenciar a voz da população pe-
riférica, isto é, através de mecanismos
de controle social tenta fazer com que
a voz da periferia não seja escutada.
Nesta perspectiva, as “rotas de comu-
nicação alternativa” são justamente os
meios que as pessoas, moradoras das
comunidades periféricas, encontram de
“burlar” esse sistema opressor e dar voz
às suas reivindicações.
As expressões da cultura hip hop
são desenvolvidas a partir das percep-
ções que os jovens têm da sociedade,
sendo formas de agir sobre a realida-
de vivenciada, constituindo-se em im-
portantes ferramentas de denúncia e
transformação social. Para Coutinho
(2008), a cultura hip hop é uma forma
de expressão que desmascara o “mito
da sociedade democrática”, a partir do
momento que expõe as desigualdades
sociais, as mazelas das comunidades
periféricas, as diferenças de oportunida-
des e tratamento dado aos moradores
da periferia. Herschmann (2005, p. 38),
complementa “regime democrático que,
mesmo reinstalado desde a década de
80, não conseguiu concretizar efetiva-
193
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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mente a cidadania nem oferecer melho-
res condições de vida”.
Pela razão de a Batalha dos Bom-
beiros ocorrer em espaço público localiza-
do na região central da cidade de Santa
Maria e a cultura hip hop ser um elemento
representativo das comunidades periféri-
cas, a construção da resistência sociopo-
lítica neste local precisou ser entendida
também pela lógica da apropriação de es-
paço público da cidade.
Magnani (2000; 2012) contribui no
diálogo sobre apropriação de espaço pú-
blico. O autor utiliza a expressão “pedaço”
para designar o espaço que os grupos utili-
zam para construir novas relações sociais
diferentes das estabelecidas no ambiente
da comunidade de origem, visto que neste
caso as relações na sua maioria são pa-
rentais, constituindo “novos arranjos so-
ciais”. Além disso, segundo o autor esse
“pedaço” também é utilizado pelos grupos
para a prática de atividades de lazer ou
até mesmo como um espaço para discus-
sões e debates, em que os jovens, através
da construção de novas redes de sociabili-
dade constroem e obtém visibilidade para
suas reivindicações.
Borja e Muxí (2000) percebem os
espaços públicos como lugares de múlti-
plas signicações, constituindo-se em es-
paços físicos, simbólicos e políticos, isto
é, como lugares de representação em
que a sociedade ca visível. Para Borja e
Muxí (2000), os espaços públicos são os
suportes que possibilitam aos cidadãos
realizarem as manifestações populares e
movimentos sociais.
Ainda, Borja e Muxí (2000) ar-
mam que o espaço público é um direito
de primeira ordem “assim o espaço pú-
blico deve garantir em termos de igualda-
de o direito à apropriação de diferentes
coletivos sociais e culturais, de gênero e
de idade” (BORJA; MUXÍ, 2000, p.11, tra-
dução nossa). Sendo assim, segundo os
autores, o espaço público seria o lugar de
representação e expressão de todos os
cidadãos, onde a cidadania é efetivada.
Compreendemos que a apropria-
ção do espaço é uma prática que traz
outro signicado àquele local, isto é, é
uma prática simbólica que tem haver
com o uso que os sujeitos fazem dos
espaços. A apropriação dos espaços pú-
blicos promove encontros e trocas bem
como põe em conito as contradições da
sociedade. A apropriação do espaço pú-
blico para práticas de eventos culturais
ou até mesmo de lazer propicia que o
espaço urbano, na maioria do tempo um
espaço de passagem, constitua-se em
um “pedaço” onde a vida cotidiana trans-
corre, onde os grupos coexistem e onde
o encontro acontece. É no espaço públi-
co que as relações de desigualdades e
as diferenças são postas em contato e
as tensões acontecem.
Dessa forma, os espaços públicos
são lugares de sociabilização e resistên-
cia. A ocupação desses locais é uma das
alternativas que os jovens encontraram
para enfrentar os mecanismos de segre-
gação e “enclausuramento” que as políti-
cas de desenvolvimento de infraestrutu-
ra das cidades criam. Os jovens, através
de suas culturas juvenis, buscam resistir
e utilizar esses espaços para reivindicar
seus direitos enquanto cidadãos.
3. Metodologia
No que se refere à metodologia de
pesquisa, estivemos amparadosna etno-
graa devido ao fato que as inserções em
campo dão a possibilidade de explorar o
universo do fenômeno pesquisado. Se-
gundo Caiafa (2007, p. 139), a pesquisa
etnográca “leva em conta toda a profu-
são das impressões e informações que
espocam nos encontros em campo”. En-
194
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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tão, através da observação participante
adentramos no campo da pesquisa para
analisar o fenômeno estudado e ainda ti-
vemos a possibilidade de vivenciar novas
experiências, uma vez que “a experiência
em campo é talvez o aspecto mais mar-
cante e denidor da pesquisa etnográca
[...]” (CAIAFA, 2007, p. 147).
Além da observação participante
como procedimento metodológico utiliza-
mos a técnica de entrevistas individuais
em profundidade, com base em Duarte
(2005). Segundo este autor, a entrevista
em profundidade “é uma técnica qualita-
tiva que explora um assunto a partir da
busca de informações, percepções e ex-
periências de informantes para analisá-
-las e apresentá-las de forma estrutura-
da” (DUARTE, 2005, p. 62). Conforme o
autor, essa modalidade possibilita que o
entrevistador tenha maior liberdade para
conduzir a entrevista de acordo com
suas intenções, ajustando as perguntas
às necessidades informacionais da pes-
quisa ao mesmo passo que o informante
tem livre arbítrio de responder utilizando
sua própria linguagem, ou seja, sem pre-
cisar utilizar termos que não são sejam
de seu conhecimento.
Assim sendo, estivemos imer-
sas em campo durante cinco edições
da Batalha dos Bombeiros, mais espe-
cicamente, na 21ª, 22ª, 23ª, 24ª e 25ª.
Ocorridas respectivamente nos meses de
Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outu-
bro do ano de 2014, sempre na segunda
sexta-feira do respectivo mês. Nessas in-
serções contamos com o auxílio do diá-
rio de campo no qual zemos anotações
referentes às observações, as reexões
surgidas a partir de alguns acontecimen-
tos, percepções obtidas por meio de con-
versas, entre outras coisas, tais como re-
gistros fotográcos.
Em relação às entrevistas foram
realizadas sete ao total. Inicialmente es-
tavam previstas dez, mas devido à recu-
sa de alguns representantes de outros
coletivos, foram concretizadas apenas
sete. Estas entrevistas foram realizadas
com a intenção de obter informações que
fossem relevantes à investigação e pu-
dessem embasar as observações adqui-
ridas em campo. Devido à necessidade
de uma abordagem que contemplasse
três perspectivas diferentes, conside-
rando os múltiplos públicos que estão
envolvidos no ambiente da Batalha, as
entrevistas foram divididas nas seguin-
tes categorias: 1) Espectadores 2) Orga-
nizadores e 3) Membros da cultura hip
hop. Sendo assim, foram realizadas as
seguintes entrevistas: quatro com repre-
sentações dos membros da cultura hip
hop, dois representantes do grupo de
espectadores e um representante do co-
letivo organizador da Batalha.
No critério de seleção dos entre-
vistados buscamos por membros de co-
letivos da cultura hip hop que participam
da Batalha dos Bombeiros, para entender
como os diferentes membros da cultura
e das várias regiões da cidade de San-
ta Maria percebem a Batalha, captando,
assim, sob vários vieses as percepções
sobre o fenômeno estudado. Na escolha
dos espectadores selecionamos os que
notamos mais seguidamente no evento,
ou seja, que tivessem comparecido em
pelo menos duas edições da Batalha. Já
na questão do representante do coletivo
que organiza a Batalha dos Bombeiros,
CO-RAP, a escolha cou a critério interno
do próprio coletivo.
Sendo assim, as entrevistas foram
realizadas individualmente e com auxílio
do gravador do celular, posteriormente,
foram transcritas. Por se tratarem de
entrevistados de categorias diferentes o
questionário foi organizado com pergun-
tas em comum e perguntas especícas
para cada grupo de informantes. As in-
formações coletadas nessas entrevistas
195
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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foram importantes para entendermos a
percepção e importância da Batalha dos
Bombeiros através de três pontos de vis-
ta diferentes, isto é, membro da cultura
hip hop, organizadores e espectadores.
Pretendíamos a partir disso, analisar a
existência de percepções em comum,
mas também de reexões e desdobra-
mentos diversicados que ampliassem o
escopo da pesquisa.
4. Batalha dos bombeiros:
espaço de conitos e negociações
Primeiramente, cabe ressaltar que
os resultados apresentados perpassam
dois aspectos importantes que estão re-
lacionados no ambiente da Batalha dos
Bombeiros, para efeitos de análise po-
dem ser tratados da seguinte forma: 1)
ocupação do espaço público central e 2)
elementos da cultura hip hop presentes
na Batalha dos Bombeiros. Por essa ra-
zão, os relatos tratam sobre a ocupação
do espaço central e o que este fator con-
tribui para o aspecto de resistência so-
ciopolítica e, além disso, para a própria
cultura hip hop. Além disso, abordam os
elementos da cultura hip hop encontrados
na Batalha dos Bombeiros e como eles
são utilizados pelos membros para mani-
festarem suas reivindicações sociais.
Para compreender como o am-
biente da praça é transformado em ce-
nário de resistência e manifestações so-
ciopolíticas e ganha características da
comunidade periférica,chegávamos uma
hora antes e permanecíamos no local por
mais uma hora após o evento. Esta per-
manência em campo de estudo possibi-
litou visualizarmos o ambiente da praça
antes e após a da Batalha dos Bombei-
ros, percebendo como a praça iria aos
poucos sendo transformada em espaço
de representações e manifestações so-
ciopolíticas. Neste sentido, através da
observação participante notamos que a
ocupação do espaço público central para
a realização da Batalha dos Bombeiros
(re)signica a Praça Menna Barreto tra-
zendo para este local características/sím-
bolos típicos da comunidade periférica,
além disso, transforma aquele “pedaço”
(MAGNANI, 2003) em um verdadeiro es-
paço de representações e manifestações
sociopolíticas.
4.1 Ocupar é resistir: a apropriação e
ressignicação da Praça.
Percebemos que a ocupação da
Praça Menna Barreto, localizada em es-
paço central da cidade, dá voz a tensões
e conitos, pois promove o encontro de
diferentes classes sociais. Neste sentido,
a prática de ocupar o espaço tornando-o
“palco” de expressões artísticas oriundas
da periferia torna visíveis as diferenças e
expõe as desigualdades sociais. A ocu-
pação por jovens advindos dos bairros
e comunidades é o primeiro aspecto que
ressignica o espaço, antes ocupado por
jovens e senhoras de classe média mora-
dores dos entornos da Praça.
De fato, a transformação simbóli-
ca do espaço começa a ser constituída
quando os integrantes do CORAP esten-
dem o varal de bandeiras entre as árvo-
res da praça. Assim, o cenário de resis-
tência e representação da comunidade
periférica vai aos poucos sendo compos-
to pela expressão estética da cultura hip
hop, representado através das bandei-
ras com desenhos feitos à tinta, spray
ou até mesmo com a técnica do stencil.
As bandeiras trazem algumas reivindica-
ções sociais dos membros da cultura hip
hop, seus conteúdos são diversicados,
desde frases, tais como “Perigo! Rede
Globo aliena”, quanto a imagens que re-
ferenciam militantes de outras épocas,
como a caricatura de Che Guevara. Além
disso, o banner com a logo do CO-RAP
está exposto no local como armação da
identidade periférica do coletivo.
196
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Gabriela da Silva, representante
do CO-RAP, ao explicar a utilização das
bandeiras arma que são usadas para
demarcação de espaço, pois demons-
tram os coletivos presentes no evento
e algumas das reivindicações sociais
que fazem parte das lutas do movimen-
to. Ela cita três exemplos para corrobo-
rar as suas percepções, assim como: a
presença da bandeira das mulheres, as
bandeiras formadas por crew
XI
e a ban-
deira que reivindica a questão da mídia.
Continuando suas reexões, ela arma
que a exposição das bandeiras cria novo
aspecto ao ambiente da praça, isto é,
através da criação de novo arranjo es-
pacial, faz com que os membros da cul-
tura se sintam em ambiente familiar, ou
seja, imprime características da cultura
hip hop e das comunidades periféricas
para aquele local.
Lucas Santiago, espectador, acre-
dita que através da Batalha consegue
ver a representação da periferia que é o
“local onde tem cultura negra, tem cultu-
ra hip hop, tem vários elementos que tu
não encontra em festas comuns no centro
da cidade”. O entrevistado menciona que
a Batalha possibilita que a periferia ocupe
os espaços centrais da cidade, trazendo
seus elementos para esses locais, sua
cultura, os elementos do hip hop, possibi-
litando que diferentes públicos conheçam
mais sobre a cultura de resistência e até
sobre a própria periferia.
Ao questionar os entrevistados so-
bre a ocupação do espaço público cen-
tral e o que este fator acrescenta para a
realização da Batalha dos Bombeiros e
para cultura hip hop, também obtivemos
respostas as quais ajudaram a compre-
ender que a utilização da praça auxilia
na forticação da cultura hip hop e das
suas relações de produção e consumo. O
informante Rafael Menezes, membro do
coletivo Rima Suprema, respondeu que
a Batalha ajuda a forticar a cultura hip
hop a qual estava um pouco enfraquecida
na cidade e, além disso, serve como um
painel, isto é, um espaço onde os MCs
podem mostrar seu trabalho para os dife-
rentes públicos que frequentam o evento.
Figura 1: Bandeiras expostas na Batalha e representantes do CO-RAP.
Fonte: FACEBOOK DO CO-RAP. DISPONÍVEL EM <https://www.facebook.com/corapsm>.
197
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Segundo ele, através da Batalha as pes-
soas têm a oportunidade de conhecer o
trabalho dos MCs, que são em sua maio-
ria produções independentes, e, caso
gostem, podem se tornar compradoras
dessas criações.
Sendo assim, pode-se dizer que a
Batalha é um espaço onde o circuito de
produções independentes se mantém e
fortalece. Além disso, um espaço onde
são construídas novas redes de sociabili-
dade, fortalecimento das relações sociais
e da própria cultura hip hop. Assim como
conrma Cauê Jacques, membro do co-
letivo Nova Beat, falando que foi através
da Batalha dos Bombeiros que conheceu
70% dos MCs da cidade. Ele contou que
antes do evento não conhecia as pesso-
as que participavam da Batalha. Em sua
concepção, a Batalha foi um “divisor de
águas” para falar sobre a unicação da
cultura hip hop, principalmente do ele-
mento rap, pois menciona o fato de que
antes da Batalha os MCs faziam os sons
isolados nos seus bairros.
As respostas obtidas ajudaram a
reetir sobre o que arma Souza (2012)
ao abordar a relação do rapper com a co-
munidade, armando que existem redes
de sociabilidades dentro da comunidade,
mas que para forticar a cultura hip hop
é preciso construir novas redes fora des-
se ambiente. Segundo esta perspectiva,
a Batalha dos Bombeiros é um espaço
que oportuniza aos rappers a criação de
novas redes de sociabilidade e, dessa
forma, possibilita a ampliação do campo
de visibilidade das criações culturais para
além das comunidades de origem.
Já a informante Gabriela Marques,
membro do coletivo CO-RAP, menciona
que a utilização do espaço central possi-
bilita o conhecimento sobre a cultura hip
hop e até mesmo que esta seja menos
discriminada. Os membros da cultura têm
a oportunidade de mostrarem o que carac-
teriza a cultura hip hop para os habitantes
da região central da cidade. Gabriela da
Silva, representante do CO-RAP, corrobo-
ra armando que a Batalha dos Bombei-
ros é favorável para demonstrar que nas
comunidades periféricas também existe
cultura e outros aspectos positivos.
Lucas Santiago, espectador, men-
ciona que o evento auxiliou no aprofun-
damento de seus conhecimentos sobre
a cultura hip hop, cita que aprendeu que
existem várias vertentes e formas de
atuação e de luta do movimento. O en-
trevistado complementa falando que a
Batalha auxilia na conexão de diferentes
segmentos da sociedade e possibilita a
interação e integração de vários movi-
mentos sociais, auxiliando na quebra de
certos preconceitos.
[...] eu acho que a interação entre
os grupos é essencial para a convi-
vência, que eles convivam assim pra
não segregarem espaços onde eles
não possam se conhecer e quebrar
certos preconceitos, assim. Agora
mesmo na última Batalha teve o Co-
letivo Voe que pode fazer uma inter-
venção, uma aula pública antes da
Batalha dos Bombeiros, né, trazen-
do até as discussões do movimento
LGBTT’s pra Batalha, então isso
vai ser duas culturas, duas resistên-
cias que vão tá convivendo e se de-
senvolvendo junto. (Lucas Santiago,
frequentador da batalha, 2014).
Neste sentido, a própria ocupação
do espaço público central para realização
da Batalha dos Bombeiros que promove
e fortica a cultura de rua é um ato de
enfrentamento aos mecanismos criados
pelo sistema para o connamento e se-
gregação dos moradores da periferia aos
espaços da comunidade, isto é, essa rup-
tura que ocorre quando o espaço central
é ocupado se congura em uma forma de
resistência sociopolítica.
198
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
A fala de Gabriela da Silva, re-
presentante do CO-RAP, contemplou as
minhas percepções acerca da Batalha,
visto que a informante concebe a Bata-
lha dos Bombeiros como um espaço de
fortalecimento da juventude, pois são os
jovens que estão construindo e (re)signi-
cando aquele espaço. Para, além dis-
so, a informante arma que é neste local
que os jovens têm espaços para mostrar
suas demandas.
[...] mostrar as demandas que a ju-
ventude periférica e não periférica
têm, que é esse anseio, essa fome
por cultura, essa fome do que fazer,
sabe. Então, eu acho que vem mos-
trando isso tanto para os represen-
tantes do poder público da nossa
cidade, que já não enxergam perife-
ria na periferia e ali talvez é uma
maneira que consigam enxergar [...]
é uma outra maneira de tá ocupando
e de mostrando quem a gente é
(Gabriela da Silva, representante do
CO-RAP, 2014).
Então, as inserções em campo
permitiram considerar que a represen-
tação da comunidade periférica se dá,
principalmente, através de dois aspectos:
através da presença de jovens morado-
res da periferia e dos elementos da cultu-
ra hip hop estruturados naquele espaço.
A presença dos jovens representa o povo
da comunidade, já as expressões artís-
ticas representam a cultura da periferia,
muitas vezes utilizadas como forma de
comunicação perante um sistema que
oprime a voz das comunidades. Assim
como nos arma Coutinho (2008), ao fa-
lar que a voz falada ou cantada é uma
das poucas formas de expressão utiliza-
das pelos moradores das comunidades
que os mecanismos de opressão não po-
dem silenciar. Neste sentido, o espaço da
batalha oportuniza que as demandas da
juventude sejam escutadas e que atra-
vés das expressões culturais os jovens
desenvolvam certa autonomia para en-
frentar e participar ativamente das lutas
sociais necessários para transformação
da sociedade.
4.2 Os elementos da cultura periférica
como forma de resistência sociopolítica
A cultura hip hop ou organização
sociocultural (SALLES, 2007) é composta
por várias expressões artísticas. Através
das inserções em campo observamos
quais elementos estão presentes na Ba-
talha dos Bombeiros. Então, analisamos
se esses elementos expressam reivindi-
cações sociais ou trazem questões so-
ciais para debate.
Na Batalha dos Bombeiros, per-
cebemos que o aspecto de resistência
sociopolítica da cultura hip hop é feito
através da rima freestyle
VII
e da utiliza-
ção de gratagens, porém, o elemento
break não aparece na Batalha. As ban-
deiras são os elementos utilizados para
representar o grate, todavia, não existe
a técnica de gratagem ao vivo. Gabriela
Marques, membro do coletivo CO-RAP,
durante a entrevista ao ser questiona-
da sobre o não aparecimento do break,
menciona ter conhecimento de Batalhas
em outras cidades, cita a Batalha de
Belo Horizonte, que misturam dança e
rima. Todavia, a informante arma que a
Batalha dos Bombeiros tem por objetivo
reforçar o movimento de origem da cul-
tura hip hop, a qual surgiu por meio das
rimas freestyle. Então, Gabriela acredita
que essa opção de formato foi mais por
uma questão cultural.
Ao analisar as temáticas das rimas
pronunciadas na Batalha notamos que
estas expressam reivindicações e críticas
variadas, isto é, cada MC revela suas ex-
periências de vida e num contexto geral
criticam o sistema social. Neste sentido,
as rimas falam sobre a realidade e a vi-
vência nos bairros e comunidades periféri-
199
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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cas, a exclusão social, a violência policial,
preconceito, elementos da cultura hip hop,
motivações e inspirações para compor e
sobre o fato de estarem ocupando aquele
espaço, isto é, sobre a inserção num local
diferente de sua “quebrada”.
O informante Telles Rodrigues,
espectador, aborda sobre a diferença
dos raps escutados através da mídia
e os que são pronunciados pelos MCs
na Batalha. Desse modo, o entrevista-
do fala que os raps vistos nos meios de
comunicação são banais e não contem-
plam a realidade das ruas e das peri-
ferias. Por outro lado, na Batalha dos
Bombeiros, ele escuta rimas que pro-
blematizam as questões de desigualda-
de social, preconceito, violência, entre
outras coisas do cotidiano. O informan-
te complementa dizendo que esse tipo
de rima contemplou as suas percepções
acerca da realidade do cotidiano e das
comunidades periféricas.
Então, apesar das rimas terem
temáticas variadas os MCs demonstram
bastante preocupação em exercer sua
função social e representar a comuni-
dade, ou seja, como denomina Salles
(2007) “ser um mediador entre a favela
e a sociedade no geral” (SALLES, 2007,
p.47). Conforme Herschmann (2005) “os
jovens se apresentam como espelhos do
seu tempo de uma realidade próxima,
mas nem sempre visível, promovendo
novas formas de integração social que se
conguram em territorialidades, diferen-
ças e tensões presentes no tecido urba-
no” (HERSCHMANN, 2005, p. 230). Sen-
do assim, é muito importante que os MCs
atuem como representantes dos seus
bairros/comunidades para apresentá-los
de forma realista, com seus aspectos ne-
gativos e positivos, pois na maioria das
vezes são invisibilizados ou apresenta-
dos apenas pelo viés negativo pela mí-
dia hegemônica. Como conrma Souza
(2012), exemplicando a partir da análise
dos bairros de Florianópolis, Santa Cata-
rina, o processo de invisibilidade ou até
mesmo de estigmatização dos bairros
periféricos, ao relatar que “alguns bairros
precisam ser ressignicados na sua rela-
ção com a cidade por serem invisibiliza-
dos ou negativados nas representações”
(SOUZA, 2012, p.103).
As entrevistas também revelaram
essa preocupação dos membros da cul-
tura hip hop em utilizarem as expressões
culturais de forma responsável. Matheus
Almeida, membro do coletivo Nova Beat,
percebe a cultura hip hop como uma fer-
ramenta de mudança social, em que as
expressões devem ser construídas de
acordo com a mensagem a ser passa-
da, isto é, a crítica deve sempre estar
presente nas canções/músicas. A partir
disso, para ele os rappers têm a respon-
sabilidade de utilizarem as expressões
culturais como mecanismos de ação po-
lítica, que além de criticarem o sistema,
atuem de forma a conscientizar as pes-
soas; posteriormente, essa conscien-
tização levará à transformação social.
Dessa forma, Matheus, compreende a
cultura hip hop como um dispositivo de
revolução social.
Na 24ª edição, antes do começo
da Batalha, ocorreu o lançamento do pro-
jeto Biblioteca de Rua. Segundo Matheus
Almeida, um de seus idealizadores, este
projeto visa levar o conhecimento, que
para ele é o quinto elemento da cultura
hip hop, aos moradores da periferia, dis-
tribuindo informação através da literatura
marginal. Através desse projeto alguns
livros, todos conseguidos através de do-
ações, são disponibilizados para os fre-
quentadores da Batalha, estes podem
pegar o livro que quiserem e car até a
próxima edição do evento.
Busquei entender a percepção
política dos membros da cultura hip hop
e do público frequentador do evento
200
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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para analisar se eles percebem as ex-
pressões culturais presentes no evento
como formas de atuação sociopolítica.
Dessa forma, em relação às percep-
ções do público frequentador, ou seja,
aquelas pessoas que não fazem parte
de nenhum coletivo da cultura hip hop
na cidade, busquei saber o que eles
consideram atuação política e se con-
seguem visualizar a Batalha como es-
paço de expressões sociopolíticas. Tel-
les Rodrigues, espectador, acredita que
a Batalha tem cunho totalmente políti-
co, seja através das rimas, da ocupa-
ção do espaço ou das intervenções que
ocorrem naquele local. Ele acrescenta
falando que a política não é essa que o
estado realiza, renega este tipo, abor-
dando que a política para ele é o povo
quem faz. Para, além disso, Telles faz
um contraponto entre prática e teoria
para explicar que a política é esse en-
frentamento, as vivências sofridas dos
moradores de periferia, não leem sobre
os assuntos, tais como violência, mas
sim sofrem violência.
Lucas Santiago, espectador, cor-
robora ao armar que a Batalha auxilia
na desconstrução de ideia de política
na cabeça da juventude. O entrevistado
aborda sobre a ideia senso comum de
política, sempre aliada ao político ladrão
e as questões de divulgação de campa-
nha. Exemplica falando que a própria
autonomia do coletivo organizador da
Batalha em não ter uma caixa de som e
não pedir auxílio à administração muni-
cipal já é um ato político.
No que se refere ao entendimen-
to dos entrevistados que são membros
de coletivos da cultura hip hop sobre
política e as percepções deles sobre a
Batalha dos Bombeiros como espaço
onde se perpetuam práticas de resis-
tência sociopolítica, a maioria renega
a política tradicional, todavia, eles têm
consciência do espaço da Batalha ser
um local oportuno para perpetuar as
ideologias e demandas da comunidade
periférica. Rafael Menezes, membro do
coletivo Rima Suprema, disserta que
não se envolve com política, menciona
o fato de ir votar porque é uma obriga-
ção. Cauê Jacques, membro do Nova
Beat, diz que a maioria dos MCs são
contra os políticos, pois acham que são
todo corruptos, além disso, menciona
que as rimas expressam essa falta de
empatia com a política tradicional e com
os políticos. No entanto, ele entende
que a política é uma coisa do cotidiano
e compara o movimento hip hop às si-
glas dos partidos políticos, falando que
a cultura hip hop é bem mais forte, pois
tem proporções mundiais.
Gabriela da Silva, representante
do CO-RAP, argumenta que a Batalha
é um espaço de expressões e manifes-
tações sociopolíticas, mas que, todavia,
esse aspecto precisa ser mais aprovei-
tado. A entrevistada traz um relato para
exemplificar, falando da 25ª edição da
Batalha dos Bombeiros, a qual aconte-
ceu poucos dias antes da votação elei-
toral, dialoga sobre o fato de quase nin-
guém ter mencionado as eleições, diz
que apenas um MC referenciou sobre a
importância de votar certo. A jovem rela-
ta que nesse momento uma pessoa da
plateia gritou “Vamos de Dilma” e que o
MC não se posicionou e ainda expres-
sou que não estava fazendo apologia
política. Gabriela acredita que esta se-
ria uma estratégia de atuação política,
devido ao fato de ter bastante público
presente. Desse modo, a entrevistada
compreende que muitas pessoas ainda
não percebem o potencial expressivo
do movimento hip hop e toda força de
atuação e resistência sociopolítica que
caracteriza a cultura como combativa. A
entrevistada completa dizendo que pa-
rece existir certa resistência, infelizmen-
te, da maioria do povo das periferias em
querer ser politizado.
201
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5. Considerações
Neste artigo relatamos os resul-
tados obtidos por meio das observações
de participantes,através da experiên-
cia etnográca realizada na Batalha dos
Bombeiros, abordando as estratégias
utilizadas pelos integrantes do hip hop
neste espaço para criar suas reivindica-
ções sociopolíticas através das expres-
sões culturais do hip hop. Então, direcio-
nando as investigações para o ambiente
da Batalha dos Bombeiros, percebemos
que a ocupação da praça central para
realização do evento cultural do hip hop
torna-se um ato de resistência a partir
do momento que os jovens advindos da
periferia ressignicam o aspecto da pra-
ça, trazendo para este local, elementos
característicos da cultura hip hop e das
comunidades periféricas, transformando
a praça em espaço de articulações políti-
cas, vivências e experiências.
Os integrantes da cultura hip hop
desenvolvem, no espaço da Batalha dos
Bombeiros, práticas culturais que auxiliam
nas reivindicações sociais, nas interações
sociais, na manutenção e fortalecimento
da cultura hip hop. Percebemos que as
expressões culturais do hip hop são tam-
bém formas de atuação política e de re-
sistência social perante um sistema que
promove e mantém as desigualdades.
Neste sentido, conseguimos con-
ceber a Batalha dos Bombeiros como um
espaço de expressões sociopolíticas que
permite compreendermos que as formas
de atuação política não se realizam e se
constroem apenas nos espaços gover-
namentais, mas que as práticas políticas
podem ser desenvolvidas cotidianamen-
te e, principalmente, através da cultura.
Além disso, auxiliou-nos para desmisti-
car a imagem que a sociedade tem dos
moradores de comunidades periféricas,
apresentando aspectos positivos do âmbi-
to das comunidades e também revelando
que os sujeitos moradores destes locais
têm formas de organização e articulação
política, as quais foram reveladas nesta
pesquisa através das expressões artísti-
cas da cultura hip hop no âmbito da Bata-
lha dos Bombeiros.
Todavia, também é perceptível que,
apesar de todas as práticas de resistên-
cia rearmadas no espaço da Batalha,
seja através das rimas ou até mesmo da
própria ocupação e (re)signicação do
espaço, ainda existe a necessidade do
amadurecimento em relação ao conceito
de atuação política de alguns membros da
cultura hip hop de Santa Maria/RS, para
que estes consigam aproveitar todo o po-
tencial que o espaço da Batalha oferece
como local onde as lutas sociais e o en-
frentamento aos mecanismos de poder
podem ser construídas.
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Recebido em 11/12/2017
Aprovado em 25/02/2018
I Amanda Rosiéli Fiuza e Silva. Mestranda em Comuni-
cação Midiática pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria,
Rio Grande do Sul. Contato: rosieliamanda@gmail.com
II Sandra Rúbia da Silva. Doutora em Antropologia So-
cial, pela Universidade Federal de Santa Catarina, pro-
fessora do Programa de Pós Graduação em Comunica-
ção da Universidade Federal de Santa Maria. Contato:
sandraxrubia@gmail.com
III Jonária França da Silva, Doutoranda em Comuni-
cação Midiática pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria.
Contato: jonariafranca@gmail.com
IV Termo utilizado para indicar que não são utilizados
equipamentos de som e o beat box é feito com a voz.
V Entendemos comunicação dominante a partir das ca-
racterísticas dos meios de comunicação que alcançam
públicos em larga escala e também aquelas produzidas
pelos grandes conglomerados da mídia.
VI É a sigla ou marca que os grupos utilizam como as-
sinatura.
VII Rima freestyle é o estilo livre que o MC tem para
compor suas rimas, ou seja, sem a necessidade de se-
guir uma temática.
203
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Identidade e ethos conservador na política cultural.
Estudo comparado França-Brasil
Identidad y ethos conservador en la política cultural.
Estudio comparado Francia-Brasil
Identity and conservative ethos in cultural politics.
Study comparing France-Brazil
Marina Ramos Neves de Castro
I
Resumo:
O artigo discute o ethos identitário das políticas culturais conservadoras,
observando as práticas de controle e disciplina da identidade pelo
Estado. A reexão é realizada com base numa perspectiva comparada,
observando a conformação histórica das políticas culturais da França
e do Brasil. Embora o interesse maior seja o caso brasileiro, a França
constitui um elemento de comparação instigante, em função de seu
pioneirismo no desenvolvimento de políticas culturais e da inuência
desse modelo sobre o Brasil e outros países. O artigo encontra duas
dimensões estruturantes desse ethos, uma tendência à centralização
e outra, à institucionalização. Essas duas tendências visam,
historicamente, ao mesmo objetivo: o processo de promoção e de
consolidação do Estado, elementocatalizador da política, na dinâmica
de consolidação do Estado moderno.
Palavras chave:
Política cultural
Identidade
Conservadorismo
Modernidade
204
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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Resumen:
El artículo discute el ethos identitario de las políticas culturales
conservadoras, observando las prácticas de control y disciplina de la
identidad por el Estado. La reexión se realiza sobre la base de una
perspectiva comparada, observando la conformación histórica de las
políticas culturales de Francia y Brasil. Aunque el interés mayor es
el caso brasileño, Francia constituye un elemento de comparación
instigante, en función de su pionerismo en el desarrollo de políticas
culturales y de la inuencia de ese modelo sobre Brasil y otros países.
El artículo encuentra dos dimensiones estructurantes de ese ethos, una
tendencia a la centralización y, otra, a la institucionalización. Estas dos
tendencias apuntan históricamente al mismo objetivo: el proceso de
promoción y de consolidación del Estado, elemento catalizador de la
política, en la dinámica de consolidación del Estado moderno.
Abstract:
The article discusses the identitary ethos of conservative cultural
policies, observing the practices of control and discipline of identity
managed by the State. The reection is carried out based on a
comparative perspective, observing the historical conformation of the
cultural policies of France and Brazil. Although the greater interest is the
Brazilian case, France is a compelling element of comparison, due to its
pioneering in the development of cultural policies and the inuence of
this model on Brazil and other countries. The article nds two structuring
dimensions of this ethos, a tendency of centralization, and another, of
institutionalization. These two tendencies historically aims at the same
objective: the process of promoting and consolidating the State, a
central dynamic for politics, in the consolidation of the modern State.
Palabras clave:
Política cultural
La identidad
Conservadurismo
Modernidad
Keywords:
Cultural heritage
Porto Maravilha
Territorialy
Social appopriation
Cultural policies
205
Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018
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Identidade e ethos conservador
na política cultural.
Estudo comparado França-Brasil
1. Introdução
O objetivo deste artigo é reetir a
respeito de um dos elementos constitutivos
do ethos – e da razão de ser – das políticas
culturais: a questão identitária. Para além
de uma perspectiva associada à democra-
tização do acesso e dos direitos à cultura,
que constitui a tônica dominante da produ-
ção cientíca mais contemporânea sobre
as políticas culturais, desejamos explorar o
elemento que, a nosso ver, conforma a mo-
tivação maior das políticas culturais con-
servadoras – e das políticas culturais em
geral, em seu fundamento, por via da sua
conformação histórica: as práticas de con-
trole e disciplina da identidade pelo Estado.
Realizaremos nossa reexão com
base numa perspectiva comparada: obser-
var a conformação histórica das políticas
culturais de dois países, França e Brasil,
destacando como, nelas, esse tema do
controle e da disciplina da identidade se faz
presente, geralmente de maneira indireta.
Evidentemente nosso interesse maior é
pelo caso brasileiro, espaço onde atuamos,
como pesquisadora. Escolhemos a França
como elemento de comparação porque,
como observam Fumaroli (1992), Autissier
(1999), Poirrier (2000), Regourd (2002) e
Djian (1996), se trata do Estado pioneiro no
desenvolvimento institucional de políticas
públicas para o campo cultural, assim acu-
mulando importante experiência que, efe-
tivamente, se conforma como um modelo,
no plano histórico, tanto para o Brasil como
para diversos outros Estados.
Comecemos com um desenvolvi-
mento desse modelo crítico – a suposição
sobre o controle e a disciplina da identi-
dade como ethos das políticas culturais.
Comecemos com uma suposição, com
uma suposição fundadora, a de que a po-
lítica cultural, qualquer que seja, direta ou
indiretamente, sugere um mito de origem,
realizando um discurso propositivo sobre
uma identidade conveniente ao Estado
que a elabora e produz.
Ainda que sugira o contrário, ou
que não o arme objetivamente, a política
cultural vincula-se a esse Estado, funda-
mentalmente, para representá-lo, ilustrá-
-lo e signicá-lo. Assim, necessariamente
coerente com a própria denição do Esta-
do, pode-se dizer que a política cultural,
nas suas origens conservadoras e exclu-
sivistas, procura impor-se como porta-
-estandarte de uma identidade, criando os
instrumentos estratégicos para que essa
identidade se manifeste.
Para discutir essa hipótese, organi-
zamos o artigo em quatro partes. Após esta
breve Introdução, discutimos, no tópico 2,
o modelo francês e, no tópico 3, o modelo
brasileiro. Buscamos perceber como o mo-
delo brasileiro se deixa derivar do modelo
francês, identicando algumas variáveis
desse processo. Anal, no tópico 4, proce-
demos à discussão de nossa hipótese.
2. A invenção da política cultural:
o “modelo francês”
Buscamos fazer aqui uma síntese
da política cultural elaborada na França,
em sua perspectiva histórica, com o intuito
de observar a constante interferência no
setor e o processo de construção hege-
mônico das camadas intelectuais da so-
ciedade francesa em sua associação com
o Estado e de, a partir dessa observação,
melhor compreender o caso em análise.
Partimos da observação de Djian
(1996), que “la politique culturelle est une
invention française”, fruto de uma preocu-
206
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
pação constante, dos poderes monárqui-
cos ou republicanos, de se encarregar, em
nome de uma mística nacional, da prote-
ção de determinado patrimônio artístico
e, por extensão, de encorajar a produção
que, no futuro, conformará, ela também,
esse patrimônio (DJIAN, 1996, p. 18).
A interferência direta do Estado na
vida cultural francesa remonta ao início do
século XVI com Francisco I. O rei, respon-
sável pela criação do Collège des lecteurs
au Royaume – que mais tarde se tornará
o Collège de France -, diminuiu o poder
e a tutela do clero sobre a população e
o reino, promovendo uma deslatinização
da comunidade intelectual. Após isto, ele
tornou obrigatório a utilização da língua
francesa nas redações de textos ociais,
anteriormente escritos em latim. Em se-
guida, por meio da criação dos Arquivos
Nacionais, Francisco I
consacre l’effort de la royauté dans
sa volonté inébranlable d’asseoir ins-
titutionnellement la nation France. Il
est d’ailleurs fort intéressant de sig-
naler que les Archives dépendent,
aujourd’hui comme hier, du ministère
de la Culture et qu’elles en constituent
historiquement le socle fondateur
(DJIAN,1996, p. 95).
II
No século XVII, numa ação de
política cultural semelhante, o cardeal
Richelieu criou a Academia Francesa,
atribuindo-lhe a função de promover, le-
gitimar, institucionalizar e regulamentaro
uso da língua francesa através de uma
política subjetiva nas relações que Estado
mantém com a classe intelectual e artís-
tica. Pode-se ressaltar, nesse sentido, o
exemplo de Le Discours de La Méthode,
de René Descartes, publicado em 1637,
que, por suainuência, impôs a língua
francesa como língua losóca, levando-a
a se apresentar como tal para o resto do
mundo. Ainda no século XVII, Louis XIV
procurou sustentar e encorajarum grande
número de produções artísticas, com o
objetivo de, por meio delas, ampliar a e-
cácia simbólica de seu poder. No seu rei-
nado foi instituída a Comédie Française,
e também foi criada a Surintendance des
Bâtiments, Arts et Manufactures, permitin-
do a conuência da técnica com a ciência,
como um elemento político de Estado.
No nal do século XVIII, a percep-
ção de importância da preservação do pa-
trimônio histórico e cultural já estava pre-
sente no espírito público e uma perspectiva
de “defesa” e “promoção” das artes, ou ao
menos de algumas delas, era constante-
mente tematizada no Conselho de Estado.
Isso fez com que o Estado criasse a Com-
missions de Monuments que passou a se
encarregar de elaborar estratégias para a
implantação de museus em todo o território
francês, além de reunir e proteger as obras
de artes. Em seguida, uma sequência de
instituições relacionadas à política cultural,
foi criada pelo Estado.Dentre as mais im-
portantes, apontamos o Institut de France,
o Conservatoire des Arts et Métiers e o Con-
servatoire National de Musique. Entretanto,
é com a revolução que o Estado francês
torna-se mais incisivo em estabelecer uma
verdadeira política para gerir e administrar
os bens culturais. Segundo Djian (1996, p.
65), é naquele momento que começam a
nascer as políticas culturais na França.
No início do século XIX, com o pri-
meiro Império, o Estado tornou-se paulati-
namente mais presente, seja através da re-
gulamentação das instituições já existentes
– como através do decreto de Moscou, as-
sinado em 1812, que deniu o papel da Co-
médie Française, seja através da criação
de novas instituições diretamente vincula-
das à cultura – como a Inspection Général
des Monuments Historiques, seja através
da política de restauração e conservação
de monumentos históricos e artísticos.
O Segundo Império procurou ter o
mesmo empenho e engajamento do Pri-
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meiro Império, dando continuidade à inter-
ferência do Estado no campo cultural, ou
mesmo social, no território francês. Como
reexo da mudança ocorrida no plano cul-
tural na França, cinco exposições foram
organizadas no nal do século XVIII; ex-
posições estas onde sempre o Estado es-
tava presente.
A III República, de maneira geral,
não se interessou muito pelos assuntos
culturais como ocorreu no período imedia-
tamente anterior. No entanto, o novo go-
verno interferiu, sobretudo, na vida mental
da sociedade, ou seja, na superestrutura
social, à medida em que se voltou em di-
reção à educação. Não deixou de fazer o
mecenato em relação aos artistas, mas o
reduziude maneira signicativa, priorizan-
do sempre os membros das academias.
Graças à proposição de priorizar a educa-
ção e a formação laica e republicana, a III
República ganhou certa fama de “réputa-
tion d’incult” (DJIAN, 1996, p. 65).
A partir de 1936, com a chegada da
esquerda à frente do Estado, uma políti-
ca alternativa foi proposta para o cenário
nacional. Os responsáveis por essas no-
vas ações culturais foram o ministro da
Instruction Publique et des Beaux-Arts e
o ministro des Sports et aux Loisirs. Essa
junção deu um caráter particular a essa
nova política, que procurou promover o
lazer e a cultura conjuntamente. Todavia,
em relação a essa nova política social,
o discurso democrático sempre permeou
as ações desse Estado em direção às
políticas aplicadas à cultura, tal como
demonstra Huissman, citado por Mon-
nier (1996, p. 66):
En réalisant une politique de loisir, en
marquant sa volonté que toutes les
classes de travailleurs soient amenées
par étapes successives à une exacte
compréhension de la culture, notre -
mocratie entend rompre avec dês er-
reurs qui onttrop duré.
III
Uma idéia também presente em
Djian:
Des centres d’éducation artistique sont
crée setles auberges de jeunes seson-
tin vitées à se rapprocher dês activités
de restauration dês monuments histo-
riques. Dans le même temps, les mu-
sées sont ouverts les oiran de faciliter
l’accès aux travailleurs. Le régime de
Vichy n’a d’autre ambitions que de res-
taurer un nouve lordre moral et culturel
(DJIAN, 1996, p. 66).
IV
A IV República, por sua vez, foi
marcada por uma participação decisiva
do Estado no ambiente cultural. Um dos
fatores mais signicativos desse período
foi a participação das instituições de cará-
ter não cultural no campo da cultura, as-
sim como a participação de prossionais
que acreditavam que a cultura e as artes
constituíam “un enjeu essentiel pour la
démocratie” (DJIAN, 1996, p. 67). Como
exemplo, tem-se a criação do Centre Na-
tional de Cinématographie sob a tutela do
Ministère Du Commerce et de l’Industrie
e a atuação de Jean Vilar em Avignon, no
Thêatre National Populaire.
De Francisco I à IV República, pode-
-se observar que o discurso estruturador
das políticas públicas do campo cultural
– seja ele direcionado às Belas Artes, às
Letras, à Ciência ou à Educação –esteve
assentado sobre a crença na “grandeur de
la France”. Essa crença, que se instalou no
discurso do Estado Francês durante aproxi-
madamente cinco séculos, permeou todas
as políticas públicas voltadas para o campo
da cultura e marcou o período em questão.
A partir de 8 janeiro de 1959, com a
V República, nasceu na França o Ministè-
re des Affaires Culturelles. Ainda que o fato
em si não signique uma grande e ambicio-
sa política cultural, a participação de André
Malraux, personagem proeminente da vida
cultural e política nacional, enquanto Mi-
208
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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nistre des Affaires Culturelles, resultou em
signicativa legitimidade à política cultural
praticada pelo Estado. O incômodo era a
parca receita destinada a este ministério,
que deixava muito a desejar, e a grande
resistência da maioria em relação a uma
esquerda intelectual e artística mobilizada.
Outro fator que caracterizou a gestão de
Malraux foram os efeitos contraditórios de
sua política, entre elitista, na qual o privilé-
gio de constituição e preservação do patri-
mônio estava mais presente em detrimento
da formação de público, e seu discurso de-
mocrático. Não obstante esse pode ter sido
um dos fatores que levou a
Nourrir la fonction même de la culture
dans la conscience collective des plus
éclairés des citoyens et à, d’une certain
efaçon, legitime le discours culturel pro-
duit par la puissance publique, autantil a,
probablement par excès de zele intellec-
tuel, affranchiles autres départements
ministériels (éducation radio-télévi-
sion…) d’une responsabilité essentielle
en la matière. (DJIAN 1996, p. 80).
V
Serge Grazini (2000) compreende
que “aussi embriqué soit-elle, la notion de
politique culturelle apparaît tout au long de
La V
EME
République comme une préocupa-
tion constante des différents gouvernements
qui se sont succédé” (GRAZINI, 2000, p. 1).
VI
Para ele a política cultural constitui,
na V República Francesa, um verdadei-
ro motor catalisador da vida política. Isso
porque “à travers la politique culturelle, il
s’agit de faire en sorte que l’Etat soit au
coeur du mouvement naturel de la société,
qu’il organise et qu’il lui donne son sens”
(GRAZINI, 2000, p. 3).
VII
Ou seja, a política cultural catalisa
a própria comunicação política do Estado:
deve haver uma política de Estado para a
cultura porque o Estado francês é o por-
tador de uma mensagem universal, como
testemunha sua história nacional.
Trata-se da famosa « exceção cul-
tural », elemento nuclear de toda política
cultural da V República e, portanto, da co-
municação política do Estado.
Após os acontecimentos de 1968,
durante a década de 1970, a maneira de
se desenvolverem as políticas culturais
mudou completamente. A partir deste pe-
ríodo, a política cultural passou a se ba-
sear em uma losoa mais aberta, mais
democrática. Os movimentos sociais e,
sobretudo estudantis, ocorridos no m dos
anos 60 e início dos anos 70, incitaram a
uma liberdade criativa, privilegiando mais
“le faire culturel” que o dirigismo aplicado
anteriormente. Durante este tempo, foi
produzido e difundido um discurso sobre
a ação cultural. O orçamento do Estado
para a área aumentou e um fundo público
foi criado e destinado às ações inovadoras
e experimentais, o que contribuiu para de-
terminar o papel do Ministère des Affaires
Culturelles no cenário administrativo e po-
lítico do país. Esses anos foram de grande
agitação, tanto no cenário social como no
cenário político da cultura, a tal ponto que,
entre 1969 a 1978, passaram pelo Minis-
tère des Affaires Culturelles nada menos
que sete diferentes ministros de Estado.
Os anos 1980 foram marcados pelo
espírito dos “grands travaux” que caracte-
rizaram o governo socialista de François
Mitterand. Esse momento cultural foi encar-
nado e marcado por Jack Lang, seuminis-
tro da cultura. De certa maneira, as ações
estabelecidas e desenvolvidas pelo gover-
no foram legitimadas por uma grande parte
da população, em especial por intelectuais,
e isso se deu, diferentemente do momen-
to anterior, sem grandes conitos, prova-
velmente por três razões. A primeira foi de
ordem ideológica,resultado de uma expec-
tativa de mudança e de uma mobilização
geral da sociedade francesa em torno do
primeiro momento do governo Mitterand.
A segunda foi de ordem política, vinculada
à sua disputa com a ordem anterior, que
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se propõe a radicalizar as ações culturais
para favorizar a “culture pour tous” e assim,
criar um antagonismo de projetos, proces-
so esse descrito por Moulinier (1995). E
nalmente, o que denitivamente marcou
o período, foi uma espécie de santicação
da cultura, o lugar que a cultura ganhou no
seio da nação, legitimada por um impulso
social amplo que parecia resgatar a condi-
ção gloriosa da França do tabuleiro das re-
lações internacionais, bem como também
resgatou a autoestima do país.
Diversas ações de caráter múltiplo
foram empreendidas por Jack Lang, e mu-
daram completamente o cenário cultural ou
a vida cultural do país. Dentre as ações de
caráter simbólico, podemos apontar o “prix
unique du livre”, que permitiu distinguir o
“produto cultural”, no caso o livro enquan-
to tal; a legitimação de acontecimentos so-
ciais marginalizados, como o rock,o jazz
criando assim “La Fête de la Musique”; a
banda desenhada, o circo, a alta gastro-
nomia (DJIAN, 1996, p. 87). Sua política
tocou também a questão do direito autoral
e a promoção e a institucionalização de ini-
ciativas culturais regionais através do de-
senvolvimento de centros culturais cientí-
cos e técnicos em todo o território nacional.
Outro fato determinante para mar-
car a passagem de Jack Lang no Ministère
des Affaires Culturelles é sua cumplicida-
de com o presidente da república france-
sa. Como aponta Dijan (1996, p. 83): A
la différence des sés prédécesseurs, Jack
Lang sait mobiliser toute son énergie et as
complicité avec François Mitterand pour
défendre son budget”.
VIII
Entretanto, não
se pode deixar de considerar que “Il y a,
chez Lang, une propension à mobiliser
toutes les énergie disponibles pour faire
s’épanouir les ‘gisements de la création’
avec le souci légitime d’enmontrer les -
sultats (DJIAN, 1996, p. 90).
IX
Observamos ainda as predisposi-
ções do presidente Mitterand em relação à
cultura. Segundo Emmanuel Roux (1993),
Mitterand fez da cultura sua arma secreta
com o objetivo de tornar-se imortal, seja
através de políticas simbólicas, seja através
das grandes obras que caracterizaram sua
gestão enquanto presidente da república,
dentre as quais podemos apontar a Pyrâmi-
de du Louvre, o cubo de l’Arche de La -
fense, a criação do Institutdu Monde Arabe,
a criação da Cité de la Musique, a criação
da nova Bibliothèque National, as colunas
do Palais Royal, dentre tantos outros.
Se Malraux conseguiu criar e gerir
uma política cultural que antes não existia
de forma institucionalizada foi Jack Lang
quem conseguiuconsolidar sua legitimi-
dade, pois foi a partir de sua gestão que
o status conquistado pelo Ministère des
Affaires Culturelles cresceu e se conso-
lidou na vida social, cultural e, principal-
mente, política da França de hoje.
Então, falar de Malraux sem falar do
governo e do Estado francês que estava
por trás dele é cometer um equívoco. Por
outro lado, falar de Jack Lang sem falar
de Mitterand é cometer o mesmo erro. Ou
seja, não importa a época; quem sustenta,
quem legitima uma política cultural é todo
um setor, uma camada da sociedade que
conseguiu validar, legitimar e instituciona-
lizar um discurso, mas que, portanto, só
pode assim o fazer porque estava de pos-
se do Estado, enquanto governo.
De Lang para os dias atuais houve
uma tendência de manutenção e consoli-
dação dessa construção histórica. A impor-
tância do Ministério da Cultura, bem como
dasdemais instituições promotoras de polí-
ticas culturais e das políticas culturais como
ação do Estado se tornam evidentes e pre-
sentes na tônica das propostas políticas,
um ponto passivo, sobre o qual não pe-
sam, normalmente, projetos de transforma-
ção mais radical. O que entra em questão,
na diversidade dos projetos políticos para
a cultura, é, basicamente, o orçamento a
210
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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ser destinado ao setor. Sua importância e a
forma de sua manutenção não constituem,
efetivamente, um debate maior em todo o
campo do espectro político do país.
3. As políticas culturais no Brasil
Durante um longo período da história
brasileira, que parte dos tempos coloniais
e alcança o período imperial, observa-se,
senão a existência políticas culturais pro-
priamente ditas, a produção de políticas de
caráter social-religioso, que buscaram re-
primir e hierarquizar posições, subordinan-
do agentes sociais, denindo seus papéis
de forma a impedir qualquer subversão à
ordem constituída. O resultado desse pro-
cesso foi a descontextualização da cultura
africana e ameríndia em favor de uma eu-
ropeização e de um embraquecimento cul-
tural, o que signica a construção de uma
ordem simbólica pautada pela hegemonia
de referenciais europeus na construção
simbólica da identidade e na institucionali-
zação das práticas de poder.
As políticas públicas para o setor
cultural, empreendidas pelo governo bra-
sileiro até um momento recente denossa
história, eram políticas comprometidas com
a armação de uma determinada visão de
mundo conservadora, própria das elites su-
destinas e nordestinas e que tinham, por
estratégia fundamental de sua reprodu-
ção social, a negação de todo conito e de
toda violência - simbólica, cultural, econô-
mica e social – presente na formação da
sociedade brasileira. Essas políticas foram
inuenciadas por intelectuais que acredita-
vam em uma identidade étnico-cultural ho-
mogênea, como resultado das misturas de
raças presentes no território do Brasil, um
pensamento que se consolidou e se tor-
nou dominante à partir da penetração, no
mainstream do pensamento brasileiro, da
teoria culturalista de Gilberto Freyre. Esse
pensamento possibilitou a consolidação
de uma determinada hegemonia política e
de um projeto de poder centrado nos inte-
resses mercantis e industriais dos setores
mais conservadores da sociedade.
A ideia de uma identidade nacional
brasileira corresponderiaà generalização
amalgamadora das diferenças étnicas e à
obliteração do fato de que esse processo de
‘mestiçagem’ foi, na verdade, um processo
violento de destruição e submissão de diver-
sas culturas àquela dos colonizadores.
Podemos localizar os primórdios
do pensamento que, mais tarde, produziu
a matriz da política cultural brasileira, nos
intelectuais que, nas décadas de 1920 e
1930,construíram essa matriz amalgama-
dora que foi a tese da mestiçagem pacíca.
Esses intelectuais, segundo Pécaut (1990),
quase sempre lhos das oligarquias nacio-
nais, acreditavam na existência de uma
identidade latente “conrmadas pela ma-
neira de ser, pelassolidariedades profundas
e pelo folclore” (PÉCAUT, 1990, p. 14). Era
urgente, para eles “organizar a nação… e
traçar uma cultura capaz de assegurar sua
unidade…” (PÉCAUT, 1990, p. 15), ou me-
lhor, sua identidade, capaz deassegurar de-
terminados interessesnacionais, baseados
em uma unicação imperativa. Identidade
construída de maneira hierárquica e arbi-
trária, que até os dias atuais conformam a
ordem social, e porque não, também a re-
gional, da sociedade brasileira.
Para melhor alcançar a padroniza-
ção desejada, foi necessárioarmaruma
nação, conformando-a através de ele-
mentos simbólicos que produzissem um
efeito, digamos assim, narcótico e que
pudessem ser sustentados por um Esta-
do presente, atuante e, necessariamente,
centralizador dos processos de produção
da subjetividade. Esses elementos sim-
bólicos pautaram-se pela positivação das
subjetividades identitárias nacionalistas e
essa estratégia de ativação de um Esta-
do centralizador pautou-se pela constru-
ção de um referencial de política cultural
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– ainda que não se usasse esse nome –
conservador e rigorosamente castrador de
toda diversidade.
Esse projeto intelectual de organizar
a nação e de produzir efeitos de identidade
consolidou um primeiro elemento institucio-
nal com a criação do Serviço do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN,
hoje IPHAN – em 1937. A anatomia desse
órgão indica, na sua formação, um apreço
muito grande pela dimensão arquitetônica
da cultura nacional e uma índole conser-
vadora e focada, num primeiro momento,
sobre formas arquitetônicas do centro-sul
do país. Essa índole se explicava, em pri-
meiro lugar, pelo predomínio de arquitetos
na instituição, em detrimento da participa-
ção de outros prossionais e intelectuais
das demais áreas. Em segundo lugar, pela
concentração, na hierarquia superior doór-
gão, de intelectuais mineiros e paulistas. E,
enm, em terceiro lugar, pela hegemonia
e estabilidade adquirida e preservada pela
instituição, presente até a gestão de Renato
Soeiro em 1979, o que possibilitou, ou pelo
desinteresse dos governos desse período,
ou pelo desinteresse da sociedade civil, de
maneira geral, pelopatrimônio histórico e ar-
tístico nacional -, a produção de uma cultura
institucional de longa duração, pautada pela
percepção centralizadora e conservadora
da cultura. De fato, o SPHAN tinha, em seu
discurso fundador, um caráter preservacio-
nista acentuado e, em geral, justicado pela
necessidade de promover a reprodução he-
gemônica das elites intelectuais sudestinas.
Fazendo referência à política direcio-
nada para a cultura através do IPHAN, Arru-
da Falcão coloca que “a questão da preser-
vação do patrimônio cultural nesses 45 anos
raramente se transformou numa ‘arena’ im-
portante no jogo ideológico, político e eco-
nômico nacional” (FALCÃO, 1984, p. 37).
Juntamente com o IPHAN, partici-
pavam da estrutura de política cultural bra-
sileira durante os anos 30 e 40, o Instituto
Nacional do Livro, criando no mesmo ano
do IPHAN, em 1937, a Biblioteca Nacional,
a Casa de Ruy Barbosa, o Museu Histórico
Nacional, o Museu de Belas Artes, o Serviço
Nacional do Teatro – SNT, o Serviço de Ra-
diodifusão Educativa e o Instituto de Cinema
Educativo (MICELI, 1984, p. 55). Notemos
que todas essas instituições possuíam duas
características comuns. A primeira é que
todas se localizavam na cidade do Rio de
Janeiro, então capital federal; e a segunda
é que atuavam de forma desarticulada en-
tre si, promovendo ações isoladas sem um
direcionamento estratégico. Esse tipo de
“não política” para a cultura esteve presente
no cenário nacional até a década de 1970,
quando o cenário político do país se alterou
drasticamentea partir do endurecimento do
regime militar instalado em 1964.
Os anos 1970 constituem um novo
momento de institucionalização da política
cultural, no Brasil,caracterizada por uma
participação maior do Estado na criação
de órgãos de fomento à cultura de cará-
ter nacional, num processo que podemos
bem acompanhar por meio da discussão
de Cohn (1984). Isso ocorreu devido ao
caráter ideológico do endurecimento polí-
tico dos anos 1960/70, pois foi graças ao
acirramento do projeto estratégico do regi-
me militar, cujas marcas foram os paradig-
mas da integração do território nacional e
da substituição dos bens de consumo im-
portados pelos fabricados no país.
Segundo Sérgio Miceli, a déca-
da de 70 “foi um período de aquecimen-
to dos motores, de início de decolagem”
(MICELI, 1984, p. 55) para as políticas e
institucionalização da cultura no Brasil. Em
agosto de 1973 foi lançado o Programa de
Ação Cultural – PAC que tinha por objetivo
abrir crédito a algumas áreas da produção
cultural e possibilitar um diálogo com os
meios artísticos e intelectuais com o intuito
de, através desses atores, legitimar o regi-
me político. Ou seja, legitimar um regime
político utilizando políticas públicas para a
212
pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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área da cultura que pudessem agir de ma-
neira subliminar no imaginário social.
Durante essa década, na gestão do
ministro de Educação e Cultura, Ney Bra-
ga, implementaram-se políticas importan-
tes visando a ‘construção institucional’ do
campo cultural: o Conselho Nacional de Di-
reito Autoral (criado em 1973, mas operan-
do a partir de 1975), o Conselho Nacional
de Cinema – Concine (criado em março de
1976), o lançamento da Campanha do Fol-
clore Brasileiro (em setembro de 1975), a
reformulação da Empresa Brasileira de Fil-
mes – EMBRAFILME (criada em setembro
de 1969 e reformada em 1975), da Funda-
ção Nacional de Arte – FUNARTE (em de-
zembro de 1975) e a expansão do já exis-
tente Serviço Nacional do Teatro.
Tão importante quanto a criação
de órgãos e instituições, nessa gestão, foi
a implementação da Política Nacional de
Cultura, primeiro plano ocial do Estado
brasileiro que se propunha a nortear a pre-
sença governamental na área da cultura.
Ou seja, foi somente na década de
1970 que o IPHAN começou a perder o
seu monopólio sobre as decisões e ações
políticas para a área da cultura, não so-
mente porque as novas instituições e as
já existentes passaram a ter metas e fun-
ções especícas, mas, sobretudo, porque
o IPHAN passou a estar subordinado ao
Ministério de Educação e Cultura.
Outro dado importante a observar,
neste cenário, foi a criação do Centro Na-
cional de Referência Cultural – CNRC, cria-
do pelo Ministério de Indústria e Comércio
e apoiado por diversos outros órgãos e
instituições federais.Este Centro, que era
ideologicamente diverso do IPHAN, devi-
do, provavelmente a composição eclética
de seu quadro de técnicos que era com-
posto por designers, físicos, antropólogos,
sociólogos e outros. Posteriormente,sua
junção ao IPHAN, retomava a proposta
original de Mário de Andrade - quando
criou o instituto 42 anos antes – procu-
rando, assim, corrigir os erros do passa-
do, centralmente, a redução do conceito
de patrimônio cultural aos bens históricos
signicativos para as elites nacionalistas.
Ressaltamos que todo o aparato
institucional criado para que o Estado pas-
sasse a “mediar”, através de programas e
política de incentivo, as atividades cultu-
rais no Brasil, foi criado e implementado
no contexto ideológico e político de um na-
cionalismo valorizado.
Esse processo ganhou importância
com o regime militar, que renovou a ide-
ologia nacionalista procurando, por meio
dela, legitimar-se. Um processo intensi-
cado por meio da associação das políticas
públicas com o setor privado das teleco-
municações e da produção de conteúdo
televisivo (Rede Globo de Televisão) e da
indústria editorial (Editora Abril, Jornal Es-
tado de São Paulo).
Nesse sentido cabe notar, ainda,
um momento de ampliação do consumo
cultural, efervescência estudada por Ortiz
(1986) e que se traduziu na ampliação do
consumo de livros, revistas, discos, au-
mento da bilheteria de teatros e cinemas
e, também, da audiência televisiva.
Na análise de Miceli (1984) a po-
lítica cultural brasileira do período militar
(1964-1985) teve sua ação de fomento ca-
racterizada por dois fatores: seu clientelis-
mo e seu assistencialismo. A primeira des-
sas características diz respeito à maneira,
geralmente passiva e autosubordinada,
como as demandas dos artistas e produto-
res culturais eram dirigidas e processadas
pelas agências de fomento e pelos órgãos
gestores da política cultural.
A segunda característica, por sua
vez, refere como essas agências e órgãos
passaram a apoiar os gêneros e lingua-
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gens artísticas que tinham mais diculda-
de de sobreviver no mercado estruturado
pela indústria cultural – como o teatro, o
circo, a dança, a ópera e a música de con-
certo, e ainda o folclore, de modo geral.
Miceli (1984) também observa como
a noção de “identidade cultural” foi usa-
da, nesse momento brasileiro: sempre de
uma forma ideológica, politicamente ins-
trumental, enquanto visão idealizada e, de
maneira alguma, como um processo mar-
cado por contradições internas – o que é,
naturalmente, evidente em toda a dinâmica
cultural. Assim, a “identidade cultural” te-
matizada pela política cultural do Estado
brasileiro, durante o regime militar, estava
pautada pelo compromisso com a padro-
nização, e não com a responsabilidade de
respeitar e promover a pluralidade cultural,
processo evidente e enraizado na diversi-
dade social, regional e étnica do país.
Um mapeamento do processo de
organização institucional das políticas
culturais brasileiras pode ser encontrado
em Ortiz (1986), Rubim (2007) e Calabre
(2009). Nesses autores é recorrente a
crítica ao modelo conservador do mains-
tream das políticas culturais no país e a
procura por soluções que viabilizem uma
gestão democrática do setor.
Com o processo da redemocratiza-
ção do país e durante todo o período de
democracia que prossegue de 1985 ao
golpe de Estado de 2016 o país experi-
mentou duas forças divergentes no cam-
po de suas políticas culturais: a tendência
conservadora, arraigada à experiência
histórica, e a tendência em prol da demo-
cratização do acesso à cultura e à liber-
dade do fazer cultural. Diversos autores,
como Barbalho (2016); Rubim; Barbalho,
Calabre (2015); Calabre (2015); Leitão;
Guilherme (2014); Barbalho (2013); Ga-
meiro; Carvalho (2013); Calabre (2009);
Rubim (2007), dentre outros, vêm discu-
tindo os processos contemporâneos da
política cultural no Brasil e ressaltando os
esforços das gestões Gilberto Gil e Juca
Ferreira no Ministério da Cultura como um
avanço importante e decisivo em direção
a essa perspectiva democrática. Não sen-
do nosso propósito discutir esse processo
neste trabalho, apenas o referimos, para
que se leve em conta a sua magnitude e
as possibilidades de ruptura que ele en-
gendra. Com efeito, o que nos interessa é
justamente o seu oposto: o ethos conser-
vador e suas práticas de controle e disci-
plina da identidade.
Dessa maneira, pode-se estabe-
lecer uma relação entre o modelo de po-
líticas culturais dos anos 80, e mesmos
posteriores, com o padrão, a concepção e
a forma da noção de cultura estabelecida
pela indústria cultural. Não que as políticas
culturais tenham se convertido em protó-
tipos ou em plataformas propulsoras das
indústrias culturais – embora em alguns
casos isso tenha realmente acontecido –
mas pelo fato de que a visão de mundo
redutora de conitos, padronizadora dos
costumes e simplicadora dos processos
passou a demarcar a ação e a concepção
teórica dos modelos de política cultural.
Nesse sentido, podemos falar num
proto-padrão de política cultural. Um mo-
delo que se conforma em meio ao choque
sociocultural da entrada em operação dos
grandes sistemas nacionais de produção
da cultura massicada.
Os elementos centrais desse mo-
delo são os seguintes: a concepção de
cultura como uma unidade conceitual; a
atribuição, à política cultural, da responsa-
bilidade de gerenciar conteúdos; um ins-
tinto de difusão; uma mística de derivação
de fontes, raízes e referências.
Pensamos que não apenas a polí-
tica cultural do regime militar foi tributária
desse modelo, mas que, também as polí-
ticas culturais do Estado brasileiro, poste-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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riores a esse momento, também o foram.
Da mesma forma, acreditamos que o pro-
to-padrão fundado pela indústria cultural
atingiu muitas experiências estaduais e
municipais brasileiras.
4. Discussão
Como acima sugerimos, nossa hi-
pótese de partida foi a de que, ainda que
sugira o contrário, ou que não o arme ob-
jetivamente, a política cultural vincula-se
a esse Estado, fundamentalmente, para
representá-lo, ilustrá-lo e signicá-lo.
Dessa maneira, necessariamente
coerente com a própria razão de ser do
Estado, pode-se dizer que a política cultu-
ral, nas suas origens conservadoras e ex-
clusivistas, procura impor-se como porta-
-estandarte de uma identidade, criando os
instrumentos estratégicos para que essa
identidade se manifeste.
Esse processo parece estar pre-
sente nos dois casos que descrevemos,
França e Brasil. De todo o processo histó-
rico francês, que resumimos destacando
alguns elementos, percebe-se dois veto-
res estruturantes: uma tendência à centra-
lização, tanto institucional como geográ-
ca e, outra, à institucionalização, por meio
do processo de produção de instituições
fortes, capazes, dessa maneira, a contro-
lar o processo.
Essas duas tendências visam, his-
toricamente, ao mesmo objetivo: o pro-
cesso de promoção e de consolidação do
Estado, elemento catalisador da política,
na dinâmica de consolidação do Estado
moderno. Pode-se perceber que, presen-
tes no bojo das instituições e das políticas
que referimos acima, essas tendências
estiveram a serviço de um projeto geral:
consolidar o Estado. E a cultura é um dos
elementos centrais para a constituição
desse projeto, pois a consolidação do Es-
tado se associa à capacidade deste em se
colocar como representante de uma dada
coerência: a coerência identitária que des-
velaria, pretensamente, o substrato de le-
gitimação de todo Estado moderno.
É nesse sentido que compreende-
mos as políticas culturais como uma força
conservadora, responsável pela consubs-
tancialização do poder estatal. Seu m se-
ria a produção de coerências nacionais.
O caso brasileiro, percebido em
suas disposições históricas, sugere uma
reprodução do modelo francês. Não há
uma variação expressiva nas duas tendên-
cias que caracterizam, historicamente, o
modelo conservador das políticas culturais
francesas, tanto a tendência à centraliza-
ção como a tendência à institucionalização.
Tal como na França, as políticas culturais
do Estado brasileiro estiveram comprome-
tidas, historicamente, com a prática conser-
vadora geral do controle da identidade.
Essa prática se deu de forma dife-
renciada e variada. Na proto-política cultu-
ral do processo colonizador, por meio do
genocídio dos povos indígenas e da nega-
ção das etnias e dos direitos básicos das
populações indígenas, africanas e mesmo
dos demais excluídos sociais da socieda-
de colonial. Já na história constituída das
políticas públicas nomeadas como “cultu-
rais”, por meio do cerceamento e restrição
do nanciamento, da ausência de diálogo,
da inexistência de perspectivas de ação
nos campos não convencionalizados da-
quilo que se entende por cultura.
Nos dois casos o controle da diver-
sidade étnica, identitária, social e política
parece estar nos fundamentos da ação
do Estado no campo da cultura. A polí-
tica cultura parece servir para disciplinar
a identidade – e, assim, para controlar a
diversidade e a heterogeneidade ineren-
tes à vida social, e não para apoiar a sua
dinâmica real.
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Trata-se, em nossa compreensão,
do ethos conservador que fundamenta o
Estado moderno e que tem, na domesti-
cação da diversidade cultural, um de seus
desaos estruturadores.
Esse ethos se constitui como a pró-
pria razão de ser do Estado moderno, hi-
pótese que é colocada por Souza Santos:
sob a égide do capitalismo, a moder-
nidade deixou que as múltiplas iden-
tidades e os respectivos contextos
intersubjetivos que a habitavam fos-
sem reduzidos à lealdade ao Estado,
uma lealdade devoradora de todas as
possíveis lealdades alternativas… A
globalização das múltiplas identidades
na identidade global tornou possível
pensar uma identidade simétrica do
Estado, global e idêntica com ele, a
sociedade (SANTOS, 1994, p. 38).
Ou seja, para Souza Santos, a rup-
tura do sistema da communitas medieval,
o triunfo da subjetividade individual sobre a
coletiva, da subjetividade abstrata sobre a
contextual, o advento da sociedade de mer-
cado e normatização da propriedade indivi-
dual – em síntese, dos fenômenos que ca-
racterizam a própria Modernidade, em seus
fundamentos – geraram a necessidade da
criação do super-sujeito, o Estado Liberal.
Porém, esse Estado, que emana
da sociedade, respaldando-se no contrato
social da ordem moderna, teria dado iní-
cio ao processo de alienação, exclusão e
amalgamamento dos diversos agentes so-
ciais nele presentes.
Essa força amalgamadora, por sua
vez, baseada numa noção de “racionalida-
de descontextualizada e abstrata crescen-
temente colonizada pelo instrumentalismo
e pelo cálculo cientíco” (SANTOS, 1994,
p. 38), procurou engendrar uma identidade
padronizadora das perspectivas culturais
diversas que compunham a sociedade.
De acordo com Souza Santos, hou-
ve na Europa uma forte contestação a essa
descontextualização cultural, com conse-
quente polarização das identidades hege-
mônicas resultantes da dialética da Moder-
nidade, que seriam o indivíduo e o Estado.
Exemplos dessas forças contestadoras te-
riam sido o romantismo e o marxismo.
A contestação marxista se propu-
nha a recontextualizar a identidade “atra-
vés do enfoque das relações sociais de
produção, no papel constitutivo destas,
nas ideias e nas práticas dos indivíduos
concretos e nas relações assimétricas e
diferenciadas destes com o Estado” (SAN-
TOS, 1994, p. 38), ou seja, contestação
baseada no vínculo de classes.
A contestação romântica, por sua
vez, proporia uma busca radical pela iden-
tidade, fenômeno que implicaria
uma nova relação com a natureza e a
revalorização do irracional, do incons-
ciente, do mítico e do popular e o reen-
contro com o outro da modernidade, o
homem natural, primitivo, espontâneo,
dotado de formas próprias de organi-
zação social (SANTOS, 1994, p. 38).
E, ainda, que essa busca pela iden-
tidade gloricaria “a subjetividade individu-
al pelo que há nela de original, irregular,
imprevisível, excessivo, em suma, pelo
que há nela de fuga à relação estatal-le-
gal” (SANTOS, 1994, p. 38).
Para o autor, a contestação român-
tica propõe a recontextualização das iden-
tidades pela armação de três vínculos
principais: o religioso, o étnico e o natural.
Através deles, supunha-se, as identidades
poderiam confrontar-se ao Estado moder-
no e mesmo superá-lo.
Essa constatação romântica se evi-
dencia em diversas formas que variam se-
gundo os valores culturais de uma socie-
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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura
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dade. Como exemplo dos mais evidentes,
ou, diria, dos mais eloquentes, colocamos
o romantismo alemão nas artes plásticas,
na pintura, no teatro, na música e a sua
valorização da natureza ou do ambiente
natural e cultural, que está acima do indi-
víduo e ao qual o indivíduo submete-se. É
signicativa a relação entre as ideias de
espaço e de identidade, tal como obser-
va Debuyst (1998) para a conformação da
cultura política conservadora.
No entanto, nenhuma dessas formas
de contestação, sejam os “vínculos” român-
ticos, seja a crítica marxista,conseguiram,
nos últimos cem anos, armar uma iden-
tidade alternativa que fosse de encontro
aos interesses desse Estado moderno.
Aliás, bem ao contrário, o Estado moder-
no soube apropriar-se do fundo referencial
dessas contestações e utilizá-las em bene-
fício da própria estratégia de armação da
identidade nacional que propunha. Veja-se
como ocorreu esse processo em cada um
dos “três vínculos” propostos, citando-os
por meio de exemplos:
A marginalização do “vínculo” re-
ligioso está presente em todo o processo
histórico do ocidente. Alguns exemplos
deste processo de descontextualização
(e tentativas de uma contextualização pró
Estado) estão presentes na expulsão dos
judeus e mouros da península Ibérica; na
Santa Inquisição; no consco de bens da
Igreja, seja na Europa ou na América e,
principalmente, na rivalidade entre Igreja e
Estado sobre o controle da educação dos
cidadãos (SANTOS, 1994, p. 37).
Quanto ao “vínculo” étnico, este,
em benefício de alguns Estados, foi absor-
vido pelo conceito de nação:
...um conceito inventado ora para legi-
timar a dominação de uma etnia sobre
as demais, ora criar um denominador
sociocultural comum sucientemen-
te homogêneo para poder funcionar
como base social adequada à obri-
gação política geral e universal exigi-
da pelo Estado, autodesignado assim
como Estado-Nação (SANTOS, 1994,
p. 37).
Para Souza Santos o conceito de
nação varia de acordo com a bases étni-
cas do Estado. Esse autor utiliza o Brasil
como exemplo de Estado-Naçãono qual a
identidade cultural foi, e é, sempre, sinôni-
mo de identidade nacional, no qual o ele-
mento étnico, caracterizador do discurso
do Estado-Nação brasileiro, seria a mistu-
ra harmônica de diversas etnias.
O vínculo natural, descontextuali-
zado frente à expansão do capitalismo co-
mercial europeu, teria se legitimado pela
ação de conquista do novo mundo. As-
sim, vericou-se a descontextualização da
subjetividade do homem natural, ou seja,
do índio da América diante do homem eu-
ropeu: “a subjetividade do outro(o ame-
ríndio) é negada pelo ‘fato’ de não cor-
responder a nenhuma das subjetividades
hegemônicas da modernidade em cons-
trução: o indivíduo e o Estado” (SANTOS,
1994, p. 38), justicando-se igualmente a
exploração da natureza pelo homem e a
exploração do homem pelo homem.
Colocando a questão no plano bra-
sileiro, observamos um embate tradicio-
nal entre a proposição de uma identidade
nacional, armada pelo GovernoFederal
num movimento de colonialismo interno,
e as diversas identidades regionais, ar-
madas, historicamente, como formas de
repulsão a essecolonialismo.
Também o Estado brasileiro, na
sua armação de uma identidade nacio-
nal comum a todos os brasileiros, usou
das estratégias usadas pelos demais es-
tados nacionais. E também as regiões
brasileiras procuraram contestar essa
ideia, oua da evocação romântica dos
“vínculos” de origem.
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O discurso, seja textual seja ima-
gético, utilizado por ambos, possui uma
evocação romântica no que se refere aos
“vínculos” de origem.
Nesse embate, pode-se observar
que a “identidade” não seria, propriamen-
te, o fruto de uma razão histórica, ou de
uma razão natural, mas fruto da necessi-
dade política de uma elite - que é repre-
sentada pelo Estado ou que o é pelas di-
versas forças institucionais presentes nas
regiões. A “identidade” de que se fala, por-
tanto, em ambos os casos, estaria mais
próxima de um projeto de identicação do
que de um processo de identidade, pro-
priamente dito.
É por essas razões que o controle
e a disciplina da identidade se tornam o
mote estruturante das políticas culturais.
Os exemplos aqui discutidos, França e
Brasil, ilustram a existência e a continuida-
de desse modelo. Nos dois casos tem-se o
vetor dominante de um ethos conservador
no campo das políticas culturais. As experi-
ências de democratização e de tolerância,
ou mesmo valorização dos efeitos sociais
decorrentes da diversidade social contra-
balanceiam, mas também demonstram a
prevalência histórica desse modelo.
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Recebido em 12/02/2018
Aprovado em 26/02/2018
I Marina Ramos Neves de Castro. Doutoranda em An-
tropologia pela Universidade Federal do Pará. Contato:
mrndecastro@gmail.com
!! “Consagra o esforço da realeza em sua vontade ir-
removível de instituir a nação francesa. Aliás, é muito
interessante assinalar que os Arquivos dependem, hoje
tal como no passado, do Ministério da Cultura e que eles
constituem, historicamente, o seu núcleo fundador”. Tra-
dução da autora.
III “Realizando uma política voltada para o lazer, mar-
cando sua vontade de que todas as classes trabalhado-
ras sejam levadas, por etapas sucessivas, a uma exata
compreensão da cultura, nossa democracia acredita que
rompe com os erros que já tanto duraram”. Tradução da
autora.
IV “Centros de educação artística estão sendo criados e
os albergues da juventude estão sendo convidados a se
aproximar das atividades de restauração dos monumen-
tos históricos. Ao mesmo tempo, os museus passaram
a ser abertos em horários noturnos, am de permitir o
acesso dos trabalhadores. O regime de Vichy não tem
outras ambições senão as de restaurar uma nova ordem
moral e cultural”. Tradução da autora.
V “Alimentar a função da cultura na consciência cole-
tivados cidadãos mais esclarecidos legitima, de uma
certa maneira, o discurso cultural produzido pelo poder
público, ainda que, provavelmente por excesso de zelo
intelectual, tenha liberado os outros departamentos mi-
nisteriais (educação, rádio, televisão...) de sua respon-
sabilidade essencial na matéria”. Tradução da autora.
VI “Por mais ambígua que seja, a noção de política cul-
tural aparece em toda a Quinta República como uma
constante preocupação de sucessivos governos que se
sucedem”. Tradução da autora.
VII “Através da política cultural, trata-se de fazer que
o Estado esteja no centro do movimento natural da so-
ciedade que ele próprio organiza e que lhe dá sentido”.
Tradução da autora.
VIII “À diferença de seus predecessores, Jack Lang
soube mobilizar toda a sua energia e cumplicidade com
François Mitterand para defender seu orçamento”. Tra-
dução da autora.
IX “Há em Lang uma propensão a mobilizar todas as
energias disponíveis para promover essas explosões de
criatividade, mas com a preocupação, legítima de mos-
trar os resultados”. Tradução da autora.