EJA E LITERATURA: “QUARTO DE DESPEJO” COMO DENÚNCIA DA
NEGAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
EJA AND LITERATURE: "EVICTION ROOM" AS A COMPLAINT OF THE
DENIAL OF SOCIAL RIGHTS
Marcia Soares de Alvarenga
121
Thiago Simão Dias
122
Ana Carolina Paulo da Cruz
123
Resumo
Este artigo tem como objetivo apreciar a obra Quarto de Despejo: Diário de uma
favelada como ferramenta de denúncia das negações dos direitos sociais diante dos
sujeitos pertencentes à classe trabalhadora da sociedade brasileira. Nessa perspectiva,
abordaremos a Literatura como fonte histórica e como instrumento de investigação
para pensarmos nas questões político-sociais e econômicas. Apresentar-se-á o livro
com o intuito de demonstrar as dificuldades vivenciada pela autora Carolina Maria de
Jesus. Além disso, faremos uma a contextualização do período histórico denominado
de “República Populista”. Por fim, analisaremos de que forma a literatura escolhida
serve de insumo para debatermos a exclusão social e a usurpação dos direitos sociais
no Brasil.
Palavras-chave: Direitos sociais. Exclusão social. Literatura. Políticas públicas.
Abstract
This article aims to appreciate the work Eviction Room: Diary of a favela woman as a
tool for denouncing the denials of social rights before subjects belonging to the
working class of Brazilian society. From this perspective, we will approach Literature as
a historical source and as a research tool to think about political-social and economic
123
Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Formação de
Professores (UERJ/FFP). Integrante do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão PPEJAT (Políticas Públicas e
Educação de Jovens e Adultos da Classe Trabalhadora). Atua como Professora-Alfabetizadora no "Espaço
Crescendo e Aprendendo" (São Gonçalo). E-mail: anasbcruz@gmail.com - Telefone: (21) 98653-4437.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0983-5923.
122
Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Formação de
Professores (UERJ/FFP). Integrante do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão PPEJAT (Políticas Públicas e
Educação de Jovens e Adultos da Classe Trabalhadora. Atua como Educador Social, exercendo a função
de Professor-Alfabetizador de Adultos e Idosos, na ONG Instituto Abraço do Tigre. E-mail:
thiago.dias.educ@gmail.com - Telefone: (21) 96503-4426. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5875-5543.
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Doutora em Educação pela UFRJ. Professora associada da UERJ, com atuação na Graduação e no
Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais.
Coordenadora do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão PPEJAT, vinculado ao Núcleo de Pesquisa e
Extensão Vozes da Educação (UERJ/FFP). E-mail: msalvarenga.uerj@uol.com.br - Telefone: (21)
98897-7012. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8686-9844.
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issues. The book will be presented in order to demonstrate the difficulties experienced
by the author Carolina Maria de Jesus. In addition, we will make a contextualization of
the historical period called “Populist Republic”. Finally, we will analyze how the chosen
literature serves as an input to debate social exclusion and the usurpation of social
rights in Brazil.
Keys words: Social rights. Social exclusion. Literature. Public Policies.
Introdução
Este trabalho de abordagem qualitativa tem como objetivo apreciar a obra
literária Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus,
publicada pela primeira vez no ano de 1960, como expressão de denúncia das
negações dos direitos sociais frente ao descaso histórico com os sujeitos pertencentes
à classe trabalhadora da sociedade brasileira.
Nessa perspectiva, abordaremos, inicialmente, como a Literatura conquistou
relevância e autenticidade enquanto ferramenta pujante de investigação, tornando-se
fonte histórica capaz de nos conduzir à reflexão e à construção de conhecimentos
sociais. Diante disso, faremos uma sucinta apresentação do livro escolhido, com o
intuito de descrever parte do texto e do contexto e convidá-los(as) à leitura –,
rememorando fragmentos da biografia da autora e da sua batalha (suas dificuldades
cotidianas) na favela do Canindé (SP), destacando a representatividade das suas
palavras e da sua voz, que enalteceram a importância de atentarmos para as
mensagens provindas das classes populares.
Posteriormente, contextualizar-se-á o período da História do Brasil
(1946-1964) denominado de “República Populista”, retomando alguns aspectos vitais
para a compreensão das relações político-sociais, educacionais e históricas que
afetaram diretamente Carolina e a riqueza da sua escrita.
Por fim, devido à obra eleita ser fonte inesgotável de interpretações e
meditações sobre a expropriação dos direitos sociais dos sujeitos esquecidos pelo
poder público, faremos uma discussão a partir do pressuposto de que a literatura
supracitada atua como instrumento de denúncias da exclusão social e da negação dos
direitos sociais, relacionando o descaso dos governantes com a miséria vivenciada pela
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autora, debatendo sobre estes pontos: fome, educação, moradia, trabalho e a
desigualdade entre classes sociais.
A Literatura como fonte histórica
A Literatura, especialmente a partir das últimas décadas do século XX,
adquiriu maior legitimidade enquanto instrumento investigativo para a construção de
narrativas historiográficas, sendo, com maior vigor, introduzida no universo das fontes
utilizadas entre os historiadores e acadêmicos de variados campos epistemológicos.
Segundo Sandra Pesavento (2006, p. 3), no Brasil, a articulação entre História
e Literatura, como seara de pesquisa, desenvolveu-se significativamente a partir da
década de 1990, entretanto, a aceitação de obras literárias sofreu resistência dos
historiadores conservadores. Assim como outras manifestações artístico-culturais, as
produções literárias não eram consideradas fontes autênticas para resgatar e
interpretar aspectos históricos (cf. FERREIRA, 2009, p. 63).
Somente com o surgimento da Escola dos Annales e com o desenvolvimento
da História Cultural que começou a ocorrer um deslocamento do paradigma tradicional
para uma vertente historiográfica que tornaria mais abrangente o espaço de inquirição
considerando outras áreas do saber como a Linguística, a Antropologia, a Sociologia e
a Literatura –, passando a incorporar novas temáticas e elementos culturais (crenças,
memórias, lutas sociais, rituais etc.), ratificando as singularidades dos conhecimentos
oriundos dos sujeitos e grupos sociais como importantes produtores de histórias.
Dessa maneira, “a maior contribuição da abordagem dos Annales tem sido a
demonstração de como compor o contexto dentro do qual poderia ser escrita a história
vista de baixo” (SHARPE, 1992, p. 51, grifo do autor).
Nesse contexto, os estudiosos da Escola dos Annales passaram a contestar as
correntes históricas positivistas, que entendiam os documentos históricos como
artefatos detentores da verdade, transmissores, por si só, dos conhecimentos
históricos, cabendo aos historiadores o exercício de consolidá-los (coletá-los e
agrupá-los) sem questioná-los (cf. SILVA & SILVA, 2010, p. 158). Logo, tais registros
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possuíam, inerentes a eles, a verdade em si, insuscetível de interpretações ou
posicionamentos críticos.
À medida que se foi rompendo com a noção pragmática, houve a ampliação
do conceito de fonte/documento histórico, que, de acordo com Chartier (1990, p. 159)
“foi modificado qualitativamente abarcando a imagem, a literatura e a cultura
material”. As fontes deixaram de se restringir unicamente aos documentos oficiais”
(os, até então, considerados autênticos) e outras formas de produção de conhecimento
obtiveram espaço, dentre elas, a Literatura.
Dessarte, desvencilhando-se da concepção da escola metódica (positivista), na
qual as fontes estão imbricadas em noções e veracidades perduráveis, cujo significado
de fonte histórica está vinculado à ideia de registos escritos (“oficiais”), passamos a
compreender o conceito de fonte registo ou documento histórico como toda e
qualquer criação da humanidade nos mais diversos espaços e tempos vivenciados;
heranças (imateriais ou materiais) deixadas por nossos ancestrais que servem de
estrutura para forjarmos conhecimentos históricos. Diante disso, a Literatura passou a
ser fonte de pesquisa e, consequentemente, lócus reconhecido de registro de saberes
socialmente elaborados e partilhados.
A relevância da Literatura (independente do gênero), na construção do
conhecimento histórico, dá-se mediante à possibilidade de problematizarmos
determinados contextos político-econômicos, socioculturais e educacionais nos quais
as obras literárias foram concebidas. Os discursos literários exprimem valores,
costumes e regras de convivência, evidenciando circunstâncias políticas e
características das identidades dos sujeitos e dos grupos sociais.
Transcendendo a ideia de expressão cultural e manifestação estética
(artística), a Literatura nos permite resgatar e reconstituir as realidades explicitadas por
intermédio dos sentimentos, anseios e fenômenos captados nas particularidades dos
autores, logo, a partir de subjetividades e experiências sociais. Enquanto testemunho
histórico, a Literatura é resultado de escolhas (porque o escritor seleciona as palavras
que vai presentear ao leitor) impactadas por processos sociais capazes de provocar
reflexões e (re)interpretações frente às suas especificidades temporais, em vista disso:
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[...] a expressão literária, sendo testemunha excepcional de uma
época, torna-se um produto sociocultural, um fato estético e
histórico, que representa as experiências humanas, os hábitos, as
atitudes, os sentimentos, as criações, os pensamentos, as práticas, as
inquietações, as expectativas, as esperanças, os sonhos e as questões
diversas que movimentam e circulam em cada sociedade e tempo
histórico (BORGES, 2010, p. 98).
O literato, dentro disso, registra seus escritos a partir da sua realidade, isto é,
influenciado pelo tempo que vive e pelas contradições da sua visão político-social (cf.
NÓVAK; URBAN, 2014, p. 7). Ele não parte do nada nem está neutro às condições
sociais, de maneira oposta: é afetado pelas manifestações culturais provenientes do
espaço onde está inserido e dialoga com as linguagens de sua época.
Ancorado em suas experiências, o literato desenvolve de modo imaginário
ou não mecanismos para expressar sua ótica, criando narrativas e elementos
enriquecedores para sua mensagem. Seus insumos históricos são fruto do pensamento
social vivenciado e de múltiplos fatores que o tangencia, que são componentes
indispensáveis para a composição de sua obra, por conseguinte, de uma fonte
histórica.
Conforme preconiza Pesavento, o pesquisador que faz uso da Literatura como
recurso de investigação precisa compreendê-la a partir do tempo em que foi
elaborada, da época que foi produzida e do prisma do autor, independente se o texto
discursa sobre o período que foi produzido, se narra o passado ou se fala do futuro
(2004, p. 83), uma vez que a Literatura é sempre fonte de si mesma, ou seja, diz sobre
o presente da sua escrita e não sobre a temporalidade do narrado” (2003, p. 39).
Em tal caso, faz-se imprescindível historicizar as fontes/obras literárias.
Devemos considerar sua configuração temporal e investigar as dinâmicas das relações
sociais mantidas no bojo da sociedade para tentarmos compreender sua conjuntura,
buscando pormenorizar o modo como a realidade social foi representada, pois, ao
passo que o pesquisador utiliza a Literatura como fonte para examinar a História, seu
interesse é pelo tempo do escrito, dirige sua primordial atenção ao objetivo de
desvelar a mentalidade de uma época” (ABUD; ALVES; SILVA, 2010, p. 46).
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Nessa compreensão, avançamos com Thompson no cotejo da obra de Carolina
de Jesus, sobretudo por ser este historiador marxista que faz opção em ser um
professor para além dos muros da academia, dando aulas em cursos secundários
noturnos para trabalhadores ingleses. Thompson se preocupava e se deteve para a
história vivida, dedicando-se a escrever, entre outras contribuições que atualizam a
dialética marxista como teoria social, o que se convencionou chamar de a “história
vista a partir de baixo”; praticando a historiografia com o olhar atento às experiências
de “gente comum”, propondo a experiência como categoria para pensar a realidade.
A recorrência deste autor à literatura como fonte histórica é, para ele e para
os estudos da teoria crítica expandida por Marx, condição muito relevante. Como
escreveu Christopher Hill:
Como Karl Marx, Thompson caminhou na contracorrente ao usar a
literatura como fonte para a história social e econômica; seu primeiro
livro foi sobre William Morris. Quem senão Thompson citaria
Chaucer, Tristam Shandy, Wordsworth, Dickens e os poetas do século
XVIII Stephen Duck e Mary Collier em um artigo sobre Tempo,
disciplina de trabalho e capitalismo industrial?’ (2001, p. 5).
A Literatura, portanto, é um documento passível de análise e nos permite
situar em determinado espaço-tempo e contexto sociocultural, político-econômico
o pensamento anunciado pelo(a) autor(a) que a produz acerca do assunto abordado e,
sobretudo, daqueles colocados à margem da história pelo capital. É pautado nesse
entendimento e com o propósito de explanar as experiências pessoais narradas pela
autora, relacionando-as aos momentos históricos, políticos e à negação direitos sociais
–, que, doravante, apresentaremos a magnifica obra Quarto de Despejo: Diário de uma
Favelada, de 1960, da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.
A experiência de vida de uma mulher negra, trabalhadora e favelada
O livro Quarto de despejo: Diário de uma favelada é uma autobiografia,
recortada entre 15 de julho de 1955 e de janeiro de 1960, que nos apresenta a vida
extremamente sofrida de uma mulher negra, mãe de três filhos (Vera Eunice, João José
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e José Carlos), solteira, pouco escolarizada (estudou até o ano do Ensino Primário),
trabalhadora, que morava num barraco na favela e vivia em condições desumanas
como catadora de lixo (de papel, ferros, latas, comida... de tudo!). Diante de todas
essas dificuldades, podemos imaginar em que personagem principal se tornou... Isso
mesmo... Escritora! Bom, talvez, certos preconceitos poderiam nos conduzir a
conclusões inconvenientes.
Isso mesmo! Carolina Maria de Jesus (1914–1977) nasceu no interior de Minas
Gerais e, ainda jovem, mudou-se para São Paulo em busca de melhores condições de
vida, porém acabou construindo um barraco na favela do Canindé (SP), local onde
escreveu os diários que iriam virar um livro. Ela foi uma mulher brasileira marginalizada
na vida social, quando era favelada, e contestada por muitos intelectuais, mesmo
depois de se tornar escritora, porque havia ainda quem a julgasse.
Carolina, por ser uma mulher muito politizada, lúcida e com plena consciência
crítica sobre a sociedade, mesmo numa batalha permanente pela sobrevivência da sua
família, produziu uma obra testemunhal do cotidiano miserável da favela onde esteve
inserida. Trata-se de uma história de resiliência perante tanto sofrimento: uma pessoa
paupérrima (economicamente) descrevendo, narrando de modo fidedigno, acerca da
pobreza brutal vivenciada por milhares de seres humanos.
As dificuldades reveladas pela autora sobre a vida na favela são horríveis e
inúmeras: saneamento básico deplorável, conflitos físicos e verbais entre vizinhos,
violência doméstica, assédio sexual, prostituição infantil, caráter misógino de nossa
sociedade, falta de privacidade, racismo; e a mais destacada por Carolina, a cruel fome.
Seus duros relatos apresentam algumas expressões culturais e marcas identitárias
daquela periferia. Numa visão singular da profunda pobreza, a autora experimentou e
mostrou a realidade da favela e de muitos sujeitos esquecidos pelo poder público.
Nesse âmbito, temos a visão crítica de uma mulher conduzindo o ato de
mostrar o dia a dia de indivíduos excluídos historicamente em nossa sociedade,
transparecendo o desenrolar das relações sociais em uma favela. Assim, a importância
dos registros postos no livro se dá pelo fato da autora possuir lugar de fala.
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Para não corrermos o risco de reduzir o conceito de lugar de fala somente às
vivências de uma pessoa, ressaltamos que a experiência é essencial, contudo, o âmago
é precisamente a capacidade de compreensão do sujeito diante das condições que se
estabeleceram dentro do grupo social e quais vivências o indivíduo partilhou com os
demais.
Dessa forma, é imprescindível ir além da perspectiva individual e refletir sobre
os posicionamentos dos indivíduos e suas classes sociais, uma vez que o lugar social
não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que
ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”
(RIBEIRO, 2017, p. 39-40).
Sendo assim, Carolina, uma escritora favelada ciente de que a linguagem é
mecanismo de poder, mostrou que algumas classes sociais e muitos seres humanos
não foram reconhecidos. Exerceu, deveras, um papel político e histórico de militância
enquanto alguém que representou diversas minorias sociais.
Portanto, era uma mulher no interior da favela capaz de compreender e
anunciar a realidade daqueles que vivenciavam a restrição dos direitos sociais e os
problemas cotidianos dentro da favela, isso que deu potência às suas palavras. Ao
narrar o mundo dos excluídos, produziu um discurso autêntico a partir da perspectiva
dos próprios excluídos. Ela deu voz às “pessoas comuns” e contou a história “vista de
baixo” (cf. SHARPE, 1992, p. 53-54), revelando detalhes da miséria humana sob um
prisma, até então, jamais notado em nossas literaturas.
Consideramos a importância das experiências das massas, entendendo que o
povo é constituído por sujeitos históricos e produtores de culturas. Fundamentados
nas afirmações de Sharpe (1992), queremos valorizar e escrever a história vista de
baixo, resgatando as experiências passadas da massa da população” (p. 42) e, além
disso, desejamos explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres,
cuja existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada
apenas de passagem na principal corrente da história” (p. 41).
É desse ponto de vista que Carolina manifestou suas angústias e mostrou
indignação frente à marginalização do povo favelado. Ela não assumiu a ideia de
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imparcialidade e, de forma crítica e bastante pertinente, fez diversas denúncias
políticas e sociais. Ela apontou: o abandono social do Estado frente essa parcela da
população; os interesses de certos políticos para com os favelados (querendo apenas
seus votos); as injustiças e as desigualdades sociais; em suma, desnudou a
invisibilidade social dos pobres enquanto sujeitos que não recebiam o mínimo de
dignidade humana.
Classificada como semianalfabeta, Carolina de Jesus foi além da leitura das
palavras escritas, precedendo a compreensão da vida e apreendendo a leitura do
mundo (cf. FREIRE, 2006, p. 11). Embora não tivesse os conhecimentos acadêmicos
requisitados para ser uma escritora” (se é que isso realmente existe), ela provou que
era possuidora de diversos outros saberes construídos nas suas vivências (nas
experiências de vida como ser humano), rompendo com o imaginário de que as
habilidades, competências e os saberes legítimos são somente aqueles forjados nos
espaços destinados à “educação formal”.
Com isso, ao defendermos as culturas e os saberes populares baseados na
indissociabilidade entre as experiências de vida dos indivíduos e seus processos
formativos, e endossamos a asserção de que haverá “uma cultura igualitária comum
se o intercâmbio dialético entre a educação e a experiência for mantido e ampliado”
(THOMPSON, 2002, p. 44). É nisso que nós acreditamos.
Antes de finalizar esta seção, cabe ressaltar que, mesmo tendo seus direitos
sociais negados, Carolina alcançou os principais objetivos apontados no livro: comprar
uma casa de alvenaria e dar uma condição melhor para seus filhos, apesar de, no final
da vida, ter sido esquecida e nunca ter saído da pobreza econômica.
Enfim, após esta resumida apresentação acerca do livro e da autora, faremos
uma contextualização do período da História do Brasil no qual a obra Quarto de
despejo foi produzida.
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Uma breve contextualização histórica, político-social e educacional (1946-1964)
O período da História do Brasil que foi de 1946, pós Era Vargas (1930-1945)
com a posse do presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) –, até 1964, com o Golpe
e implantação da Ditadura Militar (1964-1985), ficou conhecido como “República
Populista” (ou “Liberal-Democrática”). Conforme Gomes e Ferreira (2018, p. 254), não
é incomum que este período:
[...] seja designado como o da República Populista, explicando-se por
esse adjetivo uma série de características que assinalariam a vida
política do país e, ao mesmo tempo, que desqualificariam a vivência
dos atores políticos dessas décadas. A “fórmula” cunhada e muito
repetida expressa na categoria “populista” evidencia um modelo
de interpretação que atribui valor negativo ao experimento político
desses quase vinte anos de liberal-democracia.
Esses autores denominam esse período de Terceira República” e ambos
afirmam que “nesse período, o Brasil estava construindo uma experiência de
democracia representativa” (GOMES; FERREIRA, 2018, p. 254). Esse momento
caracterizou-se por fortes tensões políticas e intensa participação de diversos
segmentos da sociedade, que estavam divididos em: setores conservadores (aqueles
que defendiam a eliminação de direitos trabalhistas conquistados, querendo a
liberdade do capital estrangeiro no Brasil, a não intervenção do Estado na economia,
agindo contra a reforma agrária); e os grupos progressistas (que lutavam pela
ampliação das leis e benefícios trabalhistas, defendiam o nacionalismo econômico, a
reforma agrária, que buscavam mais direitos políticos e sociais para a população).
Nesse contexto, a classe trabalhadora apareceu com maior ênfase no cenário
político, através de partidos políticos e sindicatos, em greves, campanhas eleitorais e
manifestações públicas. Assim, tornou-se notório a importância de a população colocar
em pauta e aprender a lidar com os assuntos referentes aos direitos civis.
No âmbito político-partidário, o país passou a funcionar com diversos
partidos, destacando-se nacionalmente: a União Democrática Nacional (UDN), de
cunho liberal, moralista e conservador, liderada por Carlos Lacerda; o Partido Social
Democrático (PSD), tendo Juscelino Kubitschek como figura principal; o Partido
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Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Getúlio Vargas; além do Partido Comunista
Brasileiro.
Diante disso, Gomes e Ferreira (2018) apontam que foram alcançados avanços
essenciais no processo político-eleitoral mesmo que permanecessem elos históricos
com as práticas eleitoras antidemocráticas –, a saber: a organização e consolidação
nacional do sistema pluripartidário; o aumento quantitativo das práticas de
mobilização de eleitores; e, com destaque, a alteração ocorrida no tipo de competição
político-eleitoral, na medida em que o governo (a situação) perde o controle sobre os
resultados eleitorais” (p. 258).
Por sua vez, Rezende (1996, p. 33 apud CAMPELLO DE SOUZA, 1985),
considerando o voto umas das poucas formas na qual a população poderia exercer
poder político, assinala a reduzida participação eleitoral (37%, em 1950) e salienta a
impossibilidade de afirmar a existência de uma democracia de massa. Na prática,
conquistamos alguns direitos substanciais, mas fica difícil afirmar que havia uma
democracia plena” ou condições cidadãs (sociais) que abrangessem as classes
trabalhadoras mais empobrecidas.
Precisamos relembrar que o país teve uma nova Constituição Federal (CF)
nesse período. Promulgada, em 18 de setembro de 1946, a CF de cunho liberal
resgatou valores democráticos suprimidos pelo Estado Novo (1937-1945). Dentre os
principais pontos, ressaltamos: o “voto universal” e secreto; um crescimento do
número de eleitores no Brasil, uma vez que os cidadãos maiores de 18 anos tinham
direito ao voto, contudo, permaneceu a exclusão dos analfabetos do direito de votar; a
Constituição estabeleceu o fim da censura e permitiu o direito de greve, fazendo a
manutenção do abandono das áreas rurais, isto é, não atribuiu aos trabalhadores do
campo os mesmos direitos trabalhistas obtidos nos anos anteriores pelos
trabalhadores das cidades.
Sofia Lerche Vieira (2007, p. 300), no tocante à Educação, ressalta que
ressurgiu o tema da educação como direito de todos, definindo-se a incumbência da
União para “legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional” (art. 5º, XV).
Todavia, não existiu um vínculo direto expresso em artigo para com o dever do Estado,
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como foi posto na Constituição Federal de 1934. Salienta, ainda, a determinação de
que “O ensino primário oficial é gratuito para todos: o ensino oficial ulterior ao
primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos” (art. 168, II).
Com isso, a expressão “ensino oficial” surge pela primeira vez em texto legal.
O país, entretanto, sustentava índices alarmantes de analfabetismo. De acordo
com o Mapa do Analfabetismo no Brasil (INEP), entre as décadas de 1940-1970, a taxa
de analfabetismo, referente à população com 15 anos ou mais (que abarca os sujeitos
jovens e adultos), reduziu de 56,1% e 33,7%. Mas o número absoluto continuou a
aumentar e, por mais que tenha havido uma diminuição notável da taxa à medida
que compreendemos educação como direito básico –, esse percentual ainda é
considerado extremamente deplorável. Foi nessa conjuntura que Carolina de Jesus
construiu seu livro. Ela foi uma mulher dentre os milhares de seres humanos afetados
pelos descasos com as políticas públicas, excluída de seus direitos fundamentais.
Concluindo este tópico, verifiquemos como foi tratada a escolarização de
jovens e adultos nessa época (que hoje corresponderia à EJA). Segundo Haddad e Di
Pierro (2000, p. 111), o Estado passou a dar mais atenção e “aumentou suas
atribuições e responsabilidades em relação à educação de adolescentes e adultos”.
Em 1945, o Fundo Nacional do Ensino Primário criado em 1942 definiu que
25% dos recursos de cada auxílio seriam destinados ao plano geral de Ensino Supletivo
destinado a adolescentes e adultos analfabetos. Em 1947, criou-se o Serviço de
Educação de Adultos (SEA), com o intuito de coordenar os planejamentos anuais de
ensino supletivo destinados a adolescentes e adultos analfabetos. No mesmo ano, a
Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) fortaleceu a infraestrutura
de estados e municípios em prol de atender essa parcela da população. Além disso, o
Ministério da Educação e Cultura criou a Campanha Nacional de Educação Rural (1952)
e Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958), porém, essas duas
últimas não foram tão eficazes (cf. HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 111).
Nessa perspectiva, a primeira metade da década de 1960 foi um momento
assaz significativo para a educação de jovens e adultos, pois os educadores mostraram
preocupação em mudar a forma de enxergar esse setor educacional, redefinindo suas
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especificidades e passaram a pensar num ambiente próprio destinado a esses
educandos. Dessa forma, compreendemos essas ações como ampliação dos direitos
sociais de cidadania, que, “presentes anteriormente nas propostas liberais,
concretizavam-se agora em políticas públicas” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 111).
Portanto, num país que, recentemente, iniciava sua efetiva industrialização,
com uma população predominantemente rural, podemos conferir que houve avanços
expressivos ainda mais se considerarmos que a sociedade esteve entre duas
ditaduras ao refletirmos sobre direitos sociais, sobretudo na atenção dada à
educação de jovens e adultos. No entanto, por mais que tenhamos assegurado direitos
legais com a contribuição inenarrável das lutas/movimentos sociais –, os esforços por
parte do poder público não foram suficientes para com os cidadãos brasileiros (e até
hoje não são).
Visto isso, a seguir, iremos analisar como o livro de Carolina de Jesus serve,
ainda hoje, como ferramenta para denunciar a exclusão social em nosso país.
Quarto de despejo: expressão literária de denúncias da exclusão social
A obra literária de Carolina de Jesus é uma espécie de ponte, na qual uma
escrita de natureza particular nos permite vislumbrar a realidade da favela. Ao
adentramos no Quarto de despejo, deparamo-nos com uma narrativa profunda em que
a autora relata a miséria e o descaso social, dentre eles discorreremos sobre: fome,
educação, moradia, trabalho e uma grande desigualdade entre classes sociais.
O diário foi escrito, majoritariamente, no período do governo de Juscelino
Kubitschek (1956-1961), época do chamado período dos “50 anos em 5”, que tinha por
objetivo desenvolver economicamente o país priorizando o processo de
industrialização através do “Plano de Metas”. Embora grandes obras estivessem sendo
construídas, a situação da favela continuava muito difícil.
Na maior parte do seu texto, Carolina denuncia a ausência de políticas
públicas voltadas para pessoas de classes economicamente desfavorecidas, trazendo
uma extensa crítica aos políticos, salientando o descaso com que o Estado olhava para
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os moradores da favela. As denúncias de Carolina de Jesus reverberam a falta de
condições humanas e a expropriação dos direitos socais das classes populares no
Brasil. Em diversos momentos, a autora contesta o posicionamento dos políticos, os
altos gastos eleitorais e o conformismo do povo que presencia toda essa negligência:
“Eles gastam nas eleições e depois aumentam qualquer coisa. [...] Quem paga as
despesas das eleições é o povo!” (JESUS, 2019, p. 128).
Carolina ficava abismada com a inercia das pessoas e acrescentava: “O povo
não sabe revoltar-se. Deviam ir no Palácio do Ibirapuera e na Assembleia e dar uma
surra nestes políticos alinhavados que não sabem administrar o país” (JESUS, 2019, p.
129). Sua voz clama pelos direitos sociais em defesa dos grupos menos privilegiados
socialmente, à medida que realiza duras críticas aos políticos e exterioriza falta de
políticas públicas para os sujeitos socialmente invisíveis.
Percebemos que os diários de Carolina eram uma maneira que autora
encontrou de denunciar o abandono social vivido pelos moradores da favela. Bisneta
de escravos, Carolina fez uma reflexão histórica unindo presente e passado através de
pensamentos críticos sob a ótica da escravidão. Para a autora, os pobres ainda se
encontram presos, mas não por correntes, e sim, aos grilhões da miséria e do descaso
social: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual a
fome!” (JESUS, 2019, p. 32).
Permanecendo até hoje como como pilar nas discussões sociais e políticas em
nossa sociedade, a fome apontada por Carolina de Jesus mostrava-se como fator de
subumanidade dos favelados, cujos direitos que deveriam garantir as mínimas
condições humanas (a alimentação básica, por exemplo) não chegavam (e ainda não
contempla) as massas populares. Sendo assim, os escritos no diário da autora ancora
a questão da fome como um problema social vigente no país, algo que se acentua
consideravelmente nas zonas periféricas dos grandes centros urbanos” (CORDEIRO,
2016, p. 6).
A subsistência alimentar de sua família, diversas vezes, era conquistada no
lixo, confessando a miséria flagrante a qual são submetidos. A fome é o pivô da
angústia cotidiana de Carolina e da população empobrecida: “na favela é a minoria
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quem toma café. Os favelados comem quando arranjam o que comer [...] Eu estou
começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é
justa” (JESUS, 2019, p. 35).
As desigualdades estão com as suas raízes enterradas na construção da
estrutura de nossa sociedade, a falta de oportunidades concernentes à educação,
trabalho, moradia, participação política e cuidados de saúde são fatores que detêm as
pessoas reféns da condição de miséria extrema. A pobreza é um fenômeno que
impossibilita que grande parte da população de nosso país tenha acesso a alimentação;
o desequilíbrio social faz com que a pobreza e a fome caminhem lado a lado.
Por sua vez, refletindo acerca da negação da educação, podemos afirmar que
ela surge antes mesmo dos relatos apresentados no livro. Carolina de Jesus deixou de
seguir sua escolarização para poder trabalhar, para sustentar sua família. Contudo,
percebemos que a educação era algo valioso para Carolina, que em diversos trechos de
seu diário menciona a escola e o quanto considera importante que seus filhos ocupem
aquele espaço. Em certa altura de seus escritos, a autora demonstra bastante
preocupação com a formação escolar das crianças que precisam trabalhar e
estudar, revelando-se sensível às condições de vida das pessoas com quem convive.
Embora o Plano de Metas de JK tivesse o objetivo de gerar o desenvolvimento
em todo o território nacional, a educação, em prática, ocupava lugar secundário.
Apesar do modelo econômico desenvolvimentista implantado na segunda metade da
década de 1950 ter afetado diretamente a educação voltando-se para formação de
mão de obra qualificada para o mercado de trabalho –, o acesso à educação
permaneceu longe das camadas em estado de vulnerabilidade social, não atendendo,
portanto, as reais demandas educacionais de populações marginalizadas.
Sabe-se que uma real exigência de maior investimento na
educação, para fins de diminuição do analfabetismo, que predomina,
sobretudo, na população concentrada na favela. Embora o Plano de
Metas de JK tivesse o objetivo de gerar o desenvolvimento em todo o
território nacional, a educação ocupava lugar secundário (SANTOS;
SANTOS; OLIVEIRA, 2016, p. 48).
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Todavia, podemos dizer que Carolina, mesmo tendo frequentado a escola por
pouco tempo, nunca deixou de estudar. Fez dos livros que encontrava nas ruas e dos
poucos que conseguia comprar uma companhia constante, incentivando os estudos
das crianças, acreditando que os desenvolvimentos econômico, social e cultural
poderiam ser alcançados mediante à educação. A esperança de que os filhos poderiam
ter uma vida melhor estava presente na educação (que lhe foi furtada), e um dos
relatos de felicidade descritos no texto é o momento em que o progresso escolar
das crianças: “Eu estou contente com meus filhos alfabetizados. Compreendem tudo”
(JESUS, 2019, p. 140).
Além disso, sabemos que a distribuição de renda, a falta de planejamento
público e o desemprego são alguns dos principais motivos que levam as pessoas a
morar em favelas, e com Carolina não foi diferente. A maternidade a afastou do
mercado de trabalho, a condição de mãe solteira com três filhos para cuidar a deixou
mais vulnerável, sem o apoio de parentes, sem a oferta de creches públicas e gratuitas,
o afastamento do emprego formal foi inevitável. Carolina, mulher negra, pertencente a
estratos sociais de baixa renda, se viu obrigada a morar na favela do Canindé e a catar
papel nas ruas para garantir o sustento e o cuidado de seus filhos.
Vale ressaltar que a condição existente entre a maternidade e o trabalho não é
hegemonia para todas as mulheres. Existem aquelas que podem e querem abdicar do
trabalho temporariamente ou definitivamente para se dedicarem aos cuidados dos
filhos, mas esta opção não é acessível, sobretudo quando o enfoque está nas mulheres
que possuem condições econômicas menos favoráveis, principalmente as mulheres
negras que são, historicamente, as mais afetadas pela pobreza.
Para Carolina, a favela simbolizava o lugar da falta e da precariedade, onde
quase tudo é improvisado, o abastecimento de água era irregular e nem sempre
tratado pelo órgão responsável; quanto à coleta de lixo, os detritos eram depositados
em lugares impróprios. A energia elétrica não era legalizada, para ter acesso à
iluminação, os moradores faziam as ligações clandestinas popularmente conhecidas
como gatos”, arriscando suas vidas diante da possibilidade de incêndios gerados por
curtos-circuitos. A mesmo as casas ou barracos, como a autora dizia, eram
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levantados de forma improvisada, sem saneamento básico, quase sempre de madeiras
em loteamentos irregulares, em ruas estreitas sem nenhum projeto ou segurança
estrutural.
Se olharmos atentamente para o Quarto de despejo, não veremos apenas o
direito à moradia violado, mas também a falta de dignidade humana, a negligência do
Estado diante dos mais necessitados os sem teto, os desempregados, os sem acesso à
educação formal que lutam diariamente tentando fugir da massificação da
desigualdade social.
Os diários de Carolina que deram origem a obra Literária aqui citada foram
escritos mais de meio século, mas, infelizmente, os dilemas neles relatados não se
distanciam da realidade de muitos brasileiros, que, ainda hoje, vivenciam experiências
semelhantes no silêncio do abandono e descaso social. A exclusão social em nosso país
está longe de chegar ao fim, pois as desigualdades e as dificuldades encontradas nas
pessoas das classes de baixa renda não param de aumentar.
A aproximação de Carolina com o mundo dos livros a fazia esquecer um pouco
as dificuldades da vida na favela, seu quase analfabetismo não impediu que ela
tomasse gosto pela leitura. A Literatura era um refúgio para onde Carolina ia se abrigar
do efeito devastador causado pelo abandono social. Essa paixão da autora por livros
possibilitava e ampliava o seu entendimento sobre o mundo, ela se destacava dos
demais moradores daquele universo marcado pelo analfabetismo.
A leitura e a escrita realizavam uma função libertadora na vida de Carolina,
pois era através da escrita que ela formava e transformava sua realidade marginal,
processava e reprocessava suas dores e angústias: quando estou na favela tenho a
impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar no quarto de despejo”
(JESUS, 2019, p. 37).
As experiências descritas pela autora revelam o efeito discriminatório e
excludente causado pelo abandono social. Assim como Carolina, muitos(as)
brasileiros(as) vivem em situações de extrema pobreza, formando grupos cada vez
mais marginalizados, sofrendo com as mesmas mazelas que nos afligiam décadas atrás.
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Inferimos, por fim, que o trabalho precarizado, a falta de suporte para acabar
com a fome assustadora, a oferta insuficiente de educação à população empobrecida e
as moradias desumanas intensificam amplamente as desigualdades existentes entre as
classes sociais. Em outras palavras, a negação de direitos atua como ferramenta
propulsora das desigualdades sociais, basta olharmos para o lado que veremos diversas
Carolinas ao nosso redor padecendo com a ausência de políticas públicas, buscando
sobreviver em meio à selva do capitalismo, sufocadas por um silêncio imposto aos que
pertencem às camadas populares.
Considerações em torno do contexto anunciado
Ao fazermos apologia e optarmos por utilizar a Literatura como fonte histórica,
tomamos os mesmos cuidados que tomaríamos ao lidar com todas as categorias de
fontes, nos voltando para ela de maneira adequada, entendendo que um livro é
expressão tanto de um autor quanto de sua época. A Literatura, enquanto
matéria-prima propícia para investigarmos as realidades sociais, nos permite perceber
particularidades no universo amplo dos bens culturais que outras fontes não nos
fornecem.
Dessa forma, nos valemos deste impactante e maravilhoso livro para
apontarmos o desprezo para com a população excluída. Para isso, resgatamos o
período histórico para compreendermos as condições político-sociais e educacionais da
época e a realidade vivida, como bem acentua Thompson (2002), em uma análise das
relações entre dominantes e dominantes escrita por uma mulher negra, trabalhadora e
favelada.
A discussão social que permeia a obra de Carolina foi escrita com base no
vivido. Todo realismo que a autora retrata tem por objetivo denunciar a realidade
amarga e repleta de privações em que viviam os pobres, marginalizados, como ela. Em
condições muitas vezes desumanas, como ter que catar comida podre do lixo para
comer e não morrer de fome. Com esta reflexão, evidenciamos a falta de ações
governamentais aos invisíveis sociais, os diários denunciam as condições precárias
vivenciadas por aqueles que moravam nas favelas como: a fome, a miséria, o
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preconceito, o abandono social. E, acima de tudo, a negação de direitos, como a
moradia, a educação, a saúde, o lazer e a cultura. A literatura de Carolina se apresenta
como uma denúncia contra a invisibilidade construída socialmente que fixa a pobreza
como inferioridade, bem como mostra uma cidadã que não foi atendida pelas políticas
públicas destinadas à educação de jovens e adultos da época.
Carolina tinha esperança que as pessoas que desconhecem a triste realidade
vivida pelos favelados lessem o seu livro e tentassem acabar com as favelas, com a
pobreza e a miséria de modo geral. Seu sonho era sair do quarto de despejo” (da
favela) e ir para “sala de visitas” (a cidade), contudo, o abandono e os descasos sociais
impediram que as promessas de desenvolvimento trazidas pelo sistema capitalista
nunca fossem cumpridas. Afinal, a autora traz um grito de socorro que mais de 60
anos vem ecoando e sendo ignorado, por muitos, em nossa sociedade.
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Data do envio: 19/08/2021
Data do aceite: 10/11/2021
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
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