POR UM CURRÍCULO DA INTEIREZA: DESAFIOS DA IMPLEMENTAÇÃO DE
UMA POLÍTICA CURRICULAR PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL
TOWARDS A CURRICULUM OF WHOLENESS: CHALLENGES IN
IMPLEMENTING A CURRICULUM POLICY FOR EARLY CHILDHOOD
EDUCATION
Anelise Monteiro do Nascimento
31
Isabele Lacerda Queiroz
32
Rejane Peres Neto Costa
33
Resumo
Este texto apresenta os resultados de uma pesquisa que acompanhou a
implementação de uma política curricular em Nova Iguaçu, município do estado do Rio
de Janeiro. O referencial teórico apoiado em Paulo Freire busca refletir sobre as
categorias currículo e política numa perspectiva social e crítica. De tal maneira, Freire
nos auxiliou no exame de alguns aspectos desta política e do que tem emergido da
proposta de oferta para a Educação Infantil em uma rede pública. Há, também, no ano
de 2021, a celebração dos 100 anos de seu nascimento. O tanto que Freire auxilia no
pensamento e nas políticas para a educação brasileira marca os avanços e aponta para
o que ainda por fazer. É em tal perspectiva, em torno do que estamos construindo e
do que se pretende alcançar, que organizamos este artigo.
Palavras-chave: Política curricular. Base Nacional Comum Curricular. Educação Infantil.
Paulo Freire.
Abstract
This article presents the results of a search following a curriculum policy
implementation in Nova Iguaçu, a municipality in the state of Rio de Janeiro. The
theoretical framework, supported by Paulo Freire, seeks to reflect on the curriculum
and policy categories in a social and critical perspective. In this way, Freire helped us
examine some aspects of this policy and what has emerged from the proposed offer
33
Integra o GRUPIS (Grupo de Infância até 10 anos) que acompanha as políticas educacionais para a
primeira infância na Baixada Fluminense. Professora da rede municipal do Rio de Janeiro da rede
estadual do Rio de Janeiro. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos
Contemporâneos e Demandas Populares PPGEduc/UFRRJ. rejaneperescosta@hotmail.com. (21)
981032701. https://orcid.org/0000-0002-7152-590X.
32
Integra o GRUPIS (Grupo de Infância até 10 anos) que acompanha as políticas educacionais para a
primeira infância na Baixada Fluminense. Professora da rede municipal de Nova Iguaçu e de Belford
Roxo. Doutoranda em educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PROPED). isabele.lacerda@gmail.com. (21) 26681200. https://orcid.org/0000-0003-1276-3200.
31
Coordena o GRUPIS (Grupo de Infância até 10 anos) que acompanha as políticas educacionais para a
primeira infância na Baixada Fluminense. Professora Adjunta do Departamento de Educacão e Sociedade
na area de Educacão Infantil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, Instituto Multidisciplinar Unidade de Nova Iguaçu. anelise.ufrrj@yahoo.com.br. (21)
988705905. https://orcid.org/0000-0003-4911-8301.
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for early pre-school in a public school. There is also, in the year 2021, the celebration
of the 100th anniversary of his birth. With respect to Freire’s help in Brazilian
educational thinking and policies, it defines the advances and what remains to be
done. It is in this perspective, regarding what we are building and what is intended to
be achieved, that we organize this article.
Keywords: Curriculum policy. Common National Curriculum Base. Childhood
Education. Paulo Freire.
Introdução
Qualidade da educacão; educacão para a qualidade; educacão e
qualidade de vida, nao importa em que enunciado se encontrem,
educacão e qualidade sao sempre uma questao politica, fora de cuja
reflexao, de cuja compreensao nao nos e possivel entender nem uma
nem outra.
Nao ha, finalmente, educacão neutra nem qualidade por que lutar no
sentido de reorientar a educacão que nao implique uma opcão
politica e nao demande uma decisao, tambem politica de
materializa-la (FREIRE, 2001, p. 24).
A epígrafe escolhida para abrir este trabalho traz uma reflexão acerca de um
conceito muito debatido e assumido como um desafio na oferta da educação
escolarizada: a qualidade. Esta é uma questão importante para este trabalho que
pretende dar visibilidade a uma política que se colocou como balizadora da qualidade
da educacão: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A implementação desta
política nas instituições tem se dado em um momento que jamais foi pensado quando
tal política foi elaborada, no contexto de uma pandemia que fechou as escolas,
impediu os encontros e tem interpelado as formas de educação institucionalizada até
então conhecidas.
Desde 2013 temos acompanhado as estratégias de municípios da Baixada
Fluminense para a efetivação de políticas públicas para a Educação Infantil. Este texto
apresenta os resultados de uma dessas pesquisas, a que acompanhou a
implementação de uma política curricular em Nova Iguaçu. O referencial teórico
apoiado em Paulo Freire ocorre devido ao diálogo que o autor condiciona em sua obra
ao refletir sobre as categorias currículo e política numa perspectiva social e crítica. De
tal maneira, Freire nos auxiliou no exame de alguns aspectos da política de
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implementação curricular e do que tem emergido na proposta de oferta para a
Educação Infantil em uma rede pública municipal. Para além deste diálogo com o
presente texto, também há, no ano de 2021, a celebração dos 100 anos de seu
nascimento. O tanto que Freire contribuiu e continua auxiliando no pensamento e nas
políticas para a educação brasileira marca os avanços e aponta para o que ainda por
fazer. É dentro de tais perspectivas, do que estamos construindo na premência do que
se pretende alcançar, que organizamos este artigo.
BNCC: uma política de âmbito nacional em prol da qualidade para a educação?
Tratar de qualidade para a educação é adentrar num território de disputas e
de difícil resolução. O conceito de qualidade é abrangente e tensionado por diferentes
questões, ele dialoga com as diversas dimensões de uma política, bem como com os
sujeitos envolvidos, e por isso é complexo de ser elaborado e anunciado. Tal temática
tem sido objeto de diferentes estudiosos, como Dahlberg, Moss e Pence (2003), Cury
(2010) e Campos (2013). Afinal, se fosse fácil estabelecer a qualidade, não estaríamos
mais uma vez questionando acerca do que ela representa e de como pode ser definida.
O texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) se declara como elemento
promotor de tal categoria a qualidade para a educação. E é diante desta proposição
que destacamos a necessidade de problematizar o que está sendo entendido como
qualidade: quais são os parâmetros para o estabelecimento da qualidade para esta
política? Neste ponto, enfatizamos que “assim como é impossível pensar a educação
de forma neutra, é impossível igualmente pensar a valoração que se a ela
neutramente” (FREIRE, 2001, p. 22). Logo, é propício discutir e refletir sobre as
concepções de qualidade subjacentes às proposições estabelecidas na BNCC.
O ponto de partida desta política foi a Lei n. 12.796, promulgada em 2013 e
que previa no seu Artigo 26 uma Base Nacional Comum:
Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do
ensino médio devem ter base nacional comum, a ser
complementada, em cada sistema de ensino e em cada
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
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características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e dos educandos (BRASIL, 2013, s/p).
O trecho destacado acima estabelece uma base nacional comum para todo o
país em todas as etapas da educação básica e orienta para a criação de uma parte
diversificada, que será construída segundo as características regionais e pelos atores da
localidade.
O Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), aprovado pela Lei n.
13.005/14, deu adesão à pretensão de formulação de uma base comum curricular a
ser implementada em todo o país. Dando um passo adiante, em suas estratégias, o
PNE consolida o objetivo de construção de uma base nacional como instrumento para
alcançar diferentes metas da educação básica, expressando a intenção de que a BNCC
pudesse contribuir de diferentes formas para a melhoria da qualidade da educação
nacional e, desta forma, à efetivação do direito à educação. Podemos verificar tal
objetivo expresso na Meta 7 do PNE, que estabelece “Fomentar a qualidade da
educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e
da aprendizagem de modo a atingir médias nacionais para o Ideb” (BRASIL, 2014, p.
115). A melhoria da educação básica será expressa através das notas medidas pelo
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) a cada dois anos e estabelecidas
nas estratégias do Plano como meta para a educação básica. Logo, melhoria de
qualidade pode ser lida, na primeira estratégia do plano, como melhoria mensurável
pelo Ideb, fluxo e nota de prova externa, a aposta é de que o conteúdo estará
estabelecido e acessível para todos igualmente. A base comum, neste sentido, é a
garantia de acesso a um conjunto de “aprendizagens essenciais” (BRASIL, 2017, p. 7).
A homologação da BNCC ocorreu em 22 de dezembro de 2017 com a
Resolução CNE/CP n. 2, incumbindo aos sistemas de ensino de todo o país um
trabalho: a (re)formulação de seus currículos a partir da implementação da BNCC, que
deveria ser realizada, preferencialmente, até 2019 e, no máximo, no início do ano
letivo de 2020. Esta Resolução foi uma resposta às políticas anteriores que
apontavam para a necessidade de uma normatização entre os conteúdos dos
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currículos existentes nos diferentes segmentos da educação brasileira (BRASIL, 1988;
BRASIL, 1996).
A Base é base”, como explica a apresentação do MEC (BRASIL, 2017), que a
descreve como um documento de caráter normativo e definidor de um conjunto de
aprendizagens essenciais que pretende assegurar direitos de aprendizagem que visam
à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. O currículo é
apresentado no texto da Base como um instrumento que objetiva a melhoria
qualitativa de aprendizagem e desenvolvimento para toda a educação escolar, é o
ponto de partida para todas as instituições de educação do país e, somando-se a isso,
se estabelece como um direito (BRASIL, 2017). Uma política que promete, por meio do
currículo, uma melhoria qualitativa de aprendizagem e desenvolvimento para toda a
educação escolar, se refere a uma certa educação, dentro de uma qualidade fixada e
com um determinado objetivo.
Considerando a possibilidade de diálogo entre as reflexões de Paulo Freire
sobre qualidade e a política curricular da BNCC para a educação infantil que
salientamos, tal como o autor, que “não uma qualidade substantiva, cujo perfil se
ache universalmente feito, uma qualidade da qual se diga: esta é a qualidade” (FREIRE,
2001, p. 23). Diferente de uma crença em torno de uma qualidade transcendente,
universal e imutável, Freire alerta que diferentes perspectivas de qualidade. No que
se refere à perspectiva de currículo, para o autor, ele se coloca como um instrumento
que dá materialidade ao quê e quando é apropriado ensinar.
A política da BNCC para a Educação Infantil parte de concepções ampliadas da
experiência infantil e termina com o quê e quando ensinar. Nesse sentido, temos uma
certa qualidade, com um certo objetivo, uma qualidade que foi escolhida para constar
na Base, naquilo que Freire afirma, ao tratar de currículo, ser a qualidade que
atribuímos às coisas, aos seres e, também, aos conteúdos e às práticas educativas.
Logo, o currículo aparece como uma prática educativa que é prescrita, que se centra
em certos valores e que desconsidera outros, definição esta que diverge das Diretrizes
Curriculares para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2009). Na definição das DCNEI,
currículo é o conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes
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das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico,
ambiental, científico e tecnológico” (BRASIL, 2009, p. 12). A BNCC, embora não se
intitule como um currículo, mas sim como uma base curricular, ao definir na educação
infantil o quê e quando ensinar se torna ela mesma o próprio currículo.
A qualidade que a BNCC anuncia não é uma qualidade em si. Mas se trata de
uma certa qualidade, daquela que se caracterizou sendo normatizada no texto da Base.
Esta quer assegurar exatamente o que deve ser ensinado e, ao mesmo tempo, oferece
dados possíveis de se mensurar a atividade educativa, supostamente ao medir e
controlar o que foi ensinado. Desta feita, é uma qualidade que apresenta uma
uniformidade dos conteúdos e do processo educativo. Ao trazer esta concepção de
qualidade para a educação, a BNCC também fixa um sentido de currículo, que parece
limitado a conteúdos prescritivos, progressivos e lineares como possibilidade de
hegemonização das experiências das crianças nas escolas. Pensar essas perspectivas
como proposta para a educação infantil nos convoca a um olhar crítico para as
infâncias e suas experiências nas instituições.
Nessa dimensão política, qualidade para Paulo Freire é aquela em que os
sujeitos estão conectados com o mundo e suas indagações sobre ele (FREIRE, 1987;
1992; 1996; 2001). Sua obra revela uma perspectiva de qualidade na educação em que
está inserido o diálogo, a diferença, a solidariedade, a autonomia, a participação, a
criticidade, a ética, enfim, a democracia. Uma educação que assuma a
responsabilidade ética de se colocar favorável às transformações democráticas da
sociedade, no sentido de superar as injustiças sociais (FREIRE, 1993).
Na obra À Sombra desta Mangueira (1995), Freire discute uma série de temas
sociais e rememora aspectos de sua vida, inclusive sua infância, refletindo sobre sua
condição humana. Assim, nos ajuda a pensar uma educação infantil na inteireza do ser,
aquela que compreende a integralidade do sujeito.
Sou uma inteireza, e não uma dicotomia. Não tenho uma parte
esquemática, meticulosa, racionalista, e outra desarticulada,
imprecisa, querendo simplesmente bem ao mundo. Conheço com
meu corpo todo, sentimentos, paixão. Razão também (FREIRE, 1995,
p. 18).
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Ao lembrar sua infância e primeiros contatos com a leitura, que se dava à
sombra da mangueira de seu quintal, onde foi amorosamente alfabetizado por seus
pais, Freire se recorda da ida à escola formal como uma continuidade, uma ampliação
desse mundo que se lia do seu quintal. Não ruptura entre corpo, sentimentos,
emoções e cognição. Há inteireza.
Para o autor, a natureza humana se constitui social e historicamente, e, por
sermos incompletos, na relação com o outro. A ideia de currículo de qualidade, numa
tentativa de tradução de Paulo Freire, como um currículo que atenda à inteireza do ser,
tem um olhar para o humano como ser inconclusivo, incompleto, e como tal, sempre
aberto às infinitas possibilidades que as experiências de cada um possam contribuir
para a formação de todos. Em um currículo da inteireza inspirado em Freire cabe muito
mais do que conteúdos ou experiências predeterminadas; cabe justamente a abertura
para que, sabendo-se incompletos, os sujeitos da relação educativa possam se
constituir numa relação dialógica.
Segundo Freire (1996), para ensinar que se ter disponibilidade, esta
fundamentada na ética do diálogo. “O sujeito que se abre ao mundo e aos outros
inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e
curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História” (FREIRE, 1996,
p. 154). Fugindo de uma perspectiva homogeneizadora, um currículo da inteireza tem
o olhar para os sujeitos que se atenta às diferenças, dentro de uma ética de estar
sendo, ou seja, sempre em construção, sempre aberto ao outro.
A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a
sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar
de cima para baixo. Nesse caso, falar a, que, na perspectiva
democrática é um possível momento do falar com, nem sequer é
ensaiado. A desconsideração total pela formação integral do ser
humano, a sua redução a puro treino fortalecem a maneira
autoritária de falar de cima para baixo a que falta, por isso mesmo, a
intenção de sua democratização no falar com (FREIRE, 1996, p. 113).
Um currículo de qualidade em Freire, que aqui chamamos de currículo da
inteireza, é um currículo que fala com”, que se constrói na experiência com outro, que
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não fala de cima para baixo, que está aberto ao diálogo e firmado no compromisso
com a justiça social.
BNCC para a Educação Infantil?
O direito à educação infantil é bastante claro nos dispositivos legais,
presentes naqueles anteriores à BNCC. Desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), uma produção significativa de documentos
publicados para a educação infantil pelo MEC, tais como: os Critérios de Atendimento
de uma Creche que respeita os Direitos Fundamentais da Criança de 1995 e reeditado
pelo MEC em 2009 (BRASIL, 2009), o Referencial Curricular Nacionais para a Educação
Infantil (BRASIL, 1998), as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010)
que orientam as formas de organização em diferentes âmbitos da educação infantil.
Podemos afirmar que eles auxiliaram na produção de currículos nas instituições de
educação infantil ao longo deste tempo (KRAMER, 1997). No documento da Base a
ratificação e ênfase dessa noção dos direitos das crianças à educação. Sendo a
educação infantil a primeira etapa da educação básica, a proposição curricular também
se coloca para ela. Logo, invocamos a reflexão das nuances que atravessam esta
política, que é apresentada como promotora da melhoria e da qualidade da educação
por meio do êxito escolar dado nos conhecimentos comuns e assumindo um contorno
de currículo como lista de conteúdos.
A Base como política nacional propositiva de (re)formulação curricular seguiu
um percurso particular nos municípios. Dentro do pacto federativo colaborativo
previsto constitucionalmente (BRASIL, 1988), os municípios são entidades
administrativas autônomas e com poderes para gerir suas políticas. Há, inclusive, no
texto da Base, a previsão da implementação local da BNCC através da (re)elaboração
dos currículos com a participação da comunidade:
São essas decisões que vão adequar as proposições da BNCC à
realidade local, considerando a autonomia dos sistemas ou das redes
de ensino e das instituições escolares, como também o contexto e as
características dos alunos. Essas decisões, que resultam de um
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processo de envolvimento e participação das famílias e da
comunidade (BRASIL, 2017, p. 16).
A pesquisa que desenvolvemos acompanha as políticas para a educação
infantil no município de Nova Iguaçu, região metropolitana da cidade do Rio de
Janeiro. O município de Nova Iguaçu realizou sua reformulação curricular a partir das
orientações da BNCC entre os anos de 2018 e 2019 (COSTA, 2020), obedecendo a
proposta do calendário nacional. Cabe destacar que o município possuía uma
proposta curricular que datava de 2007 (SEMED NOVA IGUAÇU, 2007) e que tinha
como parâmetro o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI)
(BRASIL, 1998), que também tinha uma proposta de currículo estruturado por
conteúdos divididos por faixas etárias e objetivos a serem alcançados. O documento
curricular foi nomeado pelo município como Proposta Curricular Pedagógica do
Município de Nova Iguaçu (SEMED NOVA IGUAÇU, 2019) e anuncia a sua reformulação
tendo como parâmetro organizador a BNCC. O seu texto é muito próximo da Base
seguindo pelo caminho da homogeneização da experiência das crianças através da
definição de campos de experiência que são sistematizados em direitos de
aprendizagem e desenvolvimento progressivos por faixas etárias existentes na BNCC. A
versão final do documento demonstra o quanto a compreensão, anunciada na BNCC,
de que a Base não é o currículo, se distancia da leitura do município.
No que se refere à transposição da Base em currículo nos municípios,
estudiosos da área (PANDINI-SIMIANO; BUSS-SIMÃO, 2016; ARELARO, 2017;
BORTOLANZA; FREIRE, 2018; BARBOSA; MARTINS; MELLO, 2019) alertavam para as
dificuldades e questões que iriam se impor aos currículos municipais diante de um
documento que trazia como referência as DCNEI reafirmando como eixos estruturantes
da educação infantil as interações e a brincadeira, mas que nas suas proposições
reduziu essas interações e brincadeiras a aprendizagens vinculadas ao desempenho
das crianças para o ensino fundamental. Apresentamos a seguir alguns destes
apontamentos.
O modo como a BNCC colocou para a educação infantil o protagonismo das
crianças em seus processos de interão e de desenvolvimento está em consonância
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significativa com os postulados das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação
infantil. Porém, ao longo da análise da reformulação do currículo municipal, um
importante aspecto a ser considerado: a forma como ficaram estabelecidos os direitos
de aprendizagens das crianças, por meio dos campos de experiência, foi bastante
arriscada para uma elaboração que desse a centralidade para a criança e pouco
desafiador para que os formuladores municipais transpusessem o que já estava posto.
Ainda que o texto da Base aponte para a não linearidade da aprendizagem, tal
perspectiva é bastante perceptível no que é proposto e foi corroborada na produção
em nível municipal. Isso porque, embora na BNCC o texto indique a necessidade de
adaptação aos contextos locais, a forma como os conteúdos estão dispostos, seus
vínculos com os direitos de aprendizagens e campos de experiências, desafiaram pouco
seus formuladores a fazerem diferente do proposto em sua matriz. Como Arelaro
(2017, p. 216) advertiu sobre a forma como a proposta se apresentava, “há um risco
inclusive, de que a educação infantil seja considerada uma etapa escolarizante e
preparatória para o ingresso no ensino fundamental”. Primeiramente, a proposta
separa por faixa etária e campo de experiência. Feito isso, reforça em cada um desses
quadros os direitos de aprendizagem e estabelece os objetivos de aprendizagem e as
experiências e objetos de conhecimento. Categorizado por Campos de Experiência e
faixa etária, os objetivos de aprendizagem estão assim dispostos, entre as páginas 43 a
50 na Base para a educação infantil (BRASIL, 2017):
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Quadro 1 - Os campos de experiência e os objetivos de aprendizagens na BNCC para a
Educação Infantil
CAMPO DE EXPERIÊNCIAS
“O EU, O OUTRO E O NÓS”
Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento
Bebês (zero a 1 ano e 6
meses)
Crianças bem pequenas (1
ano e 7 meses a 3 anos e 11
meses)
Crianças pequenas (4 anos a 5
anos e 11 meses)
(EI01EO01) Perceber que suas
ações têm efeitos nas outras
crianças e nos adultos.
(EI02EO01) Demonstrar
atitudes de cuidado e
solidariedade na interação
com crianças e adultos.
(EI03EO01) Demonstrar
empatia pelos outros,
percebendo que as pessoas
têm diferentes sentimentos,
necessidades e maneiras de
pensar e agir.
(EI01EO02) Perceber as
possibilidades e os limites de
seu corpo nas brincadeiras e
interações das quais participa.
(EI02EO02) Demonstrar
imagem positiva de si e
confiança em sua capacidade
para enfrentar dificuldades e
desafios.
(EI03EO02) Agir de maneira
independente, com confiança
em suas capacidades,
reconhecendo suas
conquistas e limitações.
(EI01EO03) Interagir com
crianças da mesma faixa
etária e adultos ao explorar
espaços, materiais, objetos,
brinquedos.
(EI02EO03) Compartilhar os
objetos e os espaços com
crianças da mesma faixa
etária e adultos.
(EI03EO03) Ampliar as
relações interpessoais,
desenvolvendo atitudes de
participação e cooperação.
Fonte: Elaborado com base no documento da BNCC (BRASIL, 2017).
Na forma como os campos de experiências são apresentados, com as
diferentes faixas etárias e em estágios de desenvolvimento, com atividades mais
simples para as mais complexas, acabam por sustentar essa concepção de evolução de
aprendizagens. Souza (2016) alertava para os riscos de um formato que poderia
resultar numa sistematização das matrizes restritas à dimensão cognitiva e a um
conjunto de habilidades socioemocionais. Para Barbosa, Martins e Mello (2019), a Base
para a educação infantil acabou incorporando pressupostos de natureza
didático-metodológica propostos por grupos e instituições privadas de educação que
passaram a ter maior influência na política quando o texto se encaminhava para a
sua terceira versão (Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Movimento Todos pela
Educação, entre outros). Para as autoras, uma apresentação prescritiva dos conteúdos,
formas de ensinar ou quando ensinar, acabou se contrapondo aos referenciais que
sustentavam a Base.
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Uma reformulação curricular seguindo a BNCC
O acompanhamento da política em Nova Iguaçu evidenciou no documento
final do currículo uma abordagem que prescreve as atividades de forma evolutiva e
linear dentro das faixas etárias. Esta perspectiva acabou se concretizando no texto
municipal e pode ser verificada em diferentes atividades da proposta curricular de
Nova Iguaçu, conforme o quadro abaixo:
Quadro 2 - Campo de Experiência: O Eu, o Outro e o Nós (Maternal)
CAMPO DE
EXPERIÊNCIA
DIREITOS DE
APRENDIZAGEM
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM E
DESENVOLVIMENTO
EXPERIÊNCIAS E OBJETOS DE
CONHECIMENTO
O EU, O OUTRO E
O NÓS.
CONVIVER
BRINCAR
EXPLORAR
PARTICIPAR
COMUNICAR
CONHECER-SE
Perceber que suas ações têm
efeitos nas outras crianças e nos
adultos.
Perceber as possibilidades e os
limites de seu corpo nas
brincadeiras e interações das
quais participa.
Interagir com crianças da mesma
faixa etária e adultos ao explorar
espaços, materiais, objetos,
brinquedos.
Comunicar necessidades,
desejos e emoções, utilizando
gestos, balbucios, palavras.
Reconhecer seu corpo e
expressar suas sensações em
momentos de alimentação,
higiene, brincadeira e descanso.
Favorecimento de experiências às
crianças que enriqueçam suas
vivências, despertando,
estimulando e ampliando os
objetos de conhecimento
propostos:
Período de acolhimento e
adaptação.
A descoberta do entorno.
Percepção de si e do outro.
As regras de convivência.
Respeito aos diferentes contextos
familiares.
A casa e o lar: Pessoas e ambientes
que o bebê interage.
A escola: O primeiro lugar de
interação além do lar, da família.
Como me comunico com o outro?
Ainda não sei falar, uso o corpo
para me comunicar (expressões,
ações, gestos, olhares, choro).
A Árvore Genealógica.
Fonte: SEMED Nova Iguaçu, 2019.
Freire (1987), ao criticar o conteúdo programático numa perspectiva de
educação bancária , alerta que esta escolha não pode ser algo dado ou imposto de
34
34
Conceito desenvolvido por Paulo Freire e apresentado no livro Pedagogia do Oprimido (1987), no qual
critica a relação entre educador e educando numa perspectiva técnica/tradicional, onde o aluno é visto
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forma autoritária. Ao contrário, a construção curricular numa perspectiva crítica e
emancipatória deve surgir do diálogo com os educandos, partir das suas experiências e
dos seus contextos na relação com o outro e com o mundo.
A educação autêntica, repitamos, não se faz de A para “B” ou de A”
sobre “B”, mas de A com “B”, mediatizados pelo mundo. Mundo
que impressiona e desafia a uns e a outros, originando visões ou
pontos de vista sobre ele. Visões impregnadas de anseios, de dúvidas,
de esperanças ou desesperanças que implicitam temas significativos,
à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da educação
(FREIRE, 1987, p. 54).
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
(BRASIL, 2009), o currículo é um conjunto de práticas que busca articular saberes e
experiências das crianças com os conhecimentos acumulados historicamente pelo
homem, através da cultura, da arte, da ciência e da tecnologia. Essa perspectiva que
traz a criança para o centro do processo de aprendizagem, que busca nas suas
experiências com a cultura o ponto de partida para o diálogo, se alia à concepção
freireana narrada em Educação como Prática de Liberdade (1967), em que o autor
expõe seu método de alfabetização para adultos. A educação, para ser democrática,
necessita ser humanizada, sendo imprescindível o diálogo e a compreensão crítica da
realidade. Para Freire (1967, p. 108), quem dialoga, dialoga com alguém sobre alguma
coisa. Esta alguma coisa deveria ser o novo conteúdo programático da educação que
defendíamos”. Assim, Freire propõe uma concepção de currículo integrador com a vida
das pessoas, não apenas uma lista de conteúdos e objetivos vindo de fora, pois o
aprendizado, nesta perspectiva, se dá de dentro pra fora, e não o contrário.
Barbosa et al. (2016) esclarecem como muitos demonstravam temor de a
Base Nacional Comum Curricular levar a um engessamento dos currículos nas unidades
de educação, devido a uma possível submissão a uma programação predefinida.
Podemos afirmar que tal temor exposto pela autora se concretizou na Proposta
Curricular de Nova Iguaçu. A proposta sistematizou as orientações da BNCC através de
como um caixa de banco cujos conhecimentos são depositados pelo professor, sendo recebidos
pacificamente, sem questionamento e diálogo. Nessa perspectiva, não se considera o saber do
educando, a relação de aprendizagem é centrada no professor, sendo autoritária, além de não contribuir
para a conscientização e autonomia dos alunos.
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quadros, colocando em uma mesma página as diferentes orientações sugeridas pela
BNCC faixas etárias diferentes, campos de experiências, direitos de aprendizagem e
objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Os Campos de Experiências, do modo
como foram organizados, parecem ter a função de servir como áreas do conhecimento,
dentro de uma perspectiva de separação por disciplinas: O Eu, O Outro, e O Nós: com
atividades voltadas para a dimensão social; Corpo, Gestos e Movimento: com uma
proposta de conhecimento do corpo e de atividades motoras; Traços, Sons, Cores e
Formas: com atividades artísticas; Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação: atividades
voltadas para a linguagem oral e escrita; Espaço, Tempo, Quantidades, Relações e
Transformações: atividades matemáticas e conhecimentos da natureza. Este é um
recurso utilizado pela própria BNCC e que repercutiu no documento municipal.
Da maneira como estão organizados na BNCC, na atual proposta do município,
cada um dos cinco campos de experiência tem como princípio garantir os seis direitos
de aprendizagem conviver, brincar, explorar, participar, comunicar, conhecer-se. Isso
está expresso em todos os grupos etários, que trazem, ainda, os objetivos de
aprendizagem, neste quesito o que está expresso na BNCC e outros acréscimos dos
GTs. Há, por exemplo, determinações específicas, como o formato da letra que os
textos coletivos devem ser escritos, em letra bastão, situação sugerida no campo de
experiência Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação, para as crianças do Infantil 2-3 e o
Infantil 4-5, ou orientações mais genéricas, como o ensinamento de boas maneiras no
campo de experiência O Eu, O Outro e O Nós, também para as crianças do Infantil 2-3 e
Infantil 4-5. O portfólio é sugerido para o Infantil 2-3 no campo Escuta, Fala,
Pensamento e Imaginação, sugerindo desenvolvimento e acompanhamento do
grafismo e no Infantil 4-5 no campo Espaço, Tempos, Quantidades, Relações e
Transformações. Para as três faixas é sugerido que se tenha atenção ao silêncio e ao
relaxamento. Fica a questão: como isso será produzido no cotidiano, vivido muitas
vezes de forma majoritária dentro de “salas de aula”, com turmas compostas por 25
bebês e crianças de até 5 anos?
Tanto a BNCC quanto o novo documento municipal de Nova Iguaçu buscam
evidenciar um compromisso com uma educação democrática e de qualidade. No
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entanto, analisar, na perspectiva freireana, o processo de reformulação curricular
instituído pela BNCC, nos exige este olhar crítico para tais objetos. Não se pode voltar
para esses documentos desconsiderando as relações de poder implícitas na sua
elaboração. Também não como pressupor a existência de um documento que se
coloque de forma neutra, no caso da Base está implícita em suas orientações a
percepção da educação como um processo técnico e mecânico de transferir
conhecimentos. Tal percepção se distancia das considerações de Freire (2001) sobre a
prática educativa, em que, a natureza formadora da docência e seu caráter
permanente de fazer escolha enfatizam sua exigência ético-democrática de respeito ao
pensamento e à curiosidade do educando. Nesse sentido, cabe questionar inclusive a
necessidade de uma base para a Educação Infantil, visto que temos diretrizes e
parâmetros que orientam a formulação das propostas curriculares.
De acordo com Silva, o currículo tem uma posição estratégica nas reformas
educacionais, pois
[...] é o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno
dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por
meio do currículo, concebido como elemento discursivo da política
educacional, que os diferentes grupos sociais, especialmente os
dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua
“verdade”. Mesmo que não tivessem nenhum outro efeito, nenhum
efeito no nível da escola e da sala de aula, as políticas curriculares,
como texto, como discurso são, no mínimo, um importante elemento
simbólico do projeto social dos grupos de poder (2001, p. 10-11).
Ao afirmar a educação como um ato político, não neutro, Freire (2001) atenta
que é preciso assumir a politicidade da educação, saber a favor de quem e contra
quem se pratica o ato educativo:
Do ponto de vista, porem, dos interesses dominantes, e fundamental
defender uma pratica educativa neutra, que se contente com o puro
ensino, se e que isto existe, ou com a pura transmissao asseptica de
conteudos, como se fosse possivel, por exemplo, falar da “inchacão”
dos centros urbanos brasileiros sem discutir a reforma agraria e a
oposicão a ela feita pelas forcas retrogradas do pais. Como se fosse
possivel ensinar nao importa o que, lavando as maos,
indiferentemente, diante do quadro de miseria e de aflicão a que se
acha submetida a maioria de nossa populacão (FREIRE, 2001, p. 49).
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Não se pode pensar uma proposta de currículo democrático não sendo
democrático. A BNCC, ao fazer suas escolhas não considerando plenamente os
diferentes atores envolvidos no processo educacional, ao se fechar numa proposta
nacional homogeneizadora, leva ao entendimento de currículo como algo mágico,
capaz de resolver por si os problemas da educação. Freire (1992) chamou atenção à
importância de não magicizar o currículo, como se ele fosse neutro e pudesse ser
aplicado indiscriminadamente a todos os grupos e construir a necessária
transformação social. Não como assumir uma postura educativa democrática,
portanto, um currículo democrático, sem discutir criticamente a realidade social,
cultural, política e econômica que se pretende transformar.
O saber, o sujeito e o currículo, essa relação, não se constitui em algo que é
dado a priori, mas em algo que está sendo, tecido na dialogicidade, no conflito, nas
relações de poder, na ética, na justiça. É preciso olhar para as crianças e para os
adultos dessa relação, considerando suas incompletudes, que refletem na busca
constante, na curiosidade permanente, na imprevisibilidade de possibilidades de
construção de conhecimento que atenda suas reais necessidades enquanto grupo.
Considerações Finais
O diálogo que este texto estabelece com a teoria de Paulo Freire e as questões
postas para uma política curricular tem a pretensão de assentar os princípios firmados
no compromisso com a democracia, com o diálogo, com a liberdade, com a autonomia
e com o trabalho coletivo. A partir da premissa de que “não podendo tudo, a prática
educativa pode alguma coisa” (FREIRE, 2001, p. 47), Paulo Freire recusa o otimismo
ingênuo, mas ao mesmo tempo rejeita o pessimismo de que a educação está
imobilizada diante do condicionamento de transformações infra estruturais. Tal
perspectiva nos leva a observar as conquistas da educação infantil ao longo dos últimos
30 anos seu reconhecimento como primeira etapa da educação, as normativas que
organizam e estruturam as condições mínimas para o atendimento das crianças
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pequenas e a ampliação de suas vagas. Porém, ao mesmo tempo, nos possibilita saber
do tanto que ainda há por se fazer.
Embora as crianças tenham seus direitos reconhecidos pela Constituição
brasileira, sendo, portanto, cidadãs (CURY; FERREIRA, 2010), tal cidadania é restrita na
sua concretização diante de tantos entraves sociais presentes no país. Uma parte
desses direitos passa pelas instituições que devem oferecer serviços de qualidade para
a primeira infância. Os aspectos que compreendem a qualidade do serviço ofertado
vão desde a formação dos professores, passando pelos prédios e materiais, até a
proposta organizacional da instituição uso do espaço, do tempo e das relações
empreendidas na instituição entre os adultos, com as crianças e com a comunidade. A
qualidade passa também pelo valor social que tem a comunidade que está sendo
atendida. Não como ter uma qualidade encontrada apenas dentro de um
determinado lugar, de modo que, ao sair dele, não seja mais possível encontrar esta
qualidade. Em um país com uma enorme diversidade cultural e uma abissal
desigualdade social, que construiu nos últimos anos uma base curricular comum como
principal política para a melhoria da educação básica no país, parece minimizar, se não
desconsiderar, em grande medida, as perversas condições de vida de muitas de suas
crianças e jovens. Parece a interpretação simplista de um sistema educativo com
grandes desafios.
No que se refere à garantia da diversidade dentro das especificidades locais, a
Base está tratando da formação, em espaços de educação institucionalizada, de seres
expressivos e falantes, produtores e reprodutores de cultura, construídos por suas
próprias palavras e a de outrem. Tal dimensão é tensionada frente à formulação de um
documento normativo que distribui campos de experiência e lista objetivos de
desenvolvimento por grupo etário em contextos muito diversos. A infância trazida pela
BNCC nos seus campos de experiências contradiz a ideia de múltiplas infâncias
presentes nas dimensões continentais do país e nas diferentes condições sociais e
econômicas.
Considerando que o CNE estabeleceu o prazo de dois anos para a finalização
deste processo que estamos narrando, de (re)formulação curricular, este seria
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encerrado em dezembro de 2020 com sua implementação nas creches, pré-escolas e
escolas. Desse modo, esta etapa da implementação da BNCC ocorreu em meio a uma
crise sanitária mundial, a pandemia da Covid-19 iniciada no ano de 2020, quando
foram decretadas medidas de isolamento social e o fechamento das instituições de
educação. Interessa, portanto, entender como as políticas foram ajustadas no período
tratado, no sentido de cumprimento do dever e do compromisso para com as crianças.
O acompanhamento da política curricular tem apontado para a justificativa
apresentada pelo município, e chancelada pelo CNE, de que as atividades pedagógicas
enviadas por plataformas e dispositivos digitais, durante a pandemia e o
estabelecimento do ensino remoto, tinham como objetivo evitar retrocessos de
aprendizagem e a perda de vínculo com a escola (BRASIL, 2020). A Secretaria de
Educação demonstrou preocupação acerca de que tais atividades correspondessem
aos Campos de Experiência e aos Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento, tal
como expressos na BNCC e no currículo municipal. Para tanto, apontamos a
necessidade de pesquisas que auxiliem em tal compreensão e dos usos da política
curricular em tal conjuntura. Também destacamos que ainda que não tenha sido o
intuito primeiro deste artigo, tal contexto compôs o cenário da implementação
curricular, política que temos acompanhado e que apresentamos alguns aspectos neste
texto.
O contexto da pandemia revelou muitas contradições e limitações da política
curricular. A falta de acesso aos itens tecnológicos e as precárias condições de moradia
e de subsistência das crianças atendidas pelas instituições de educação pública do
município de Nova Iguaçu fez ver tantas mais necessidades das crianças. Tal situação
revela que ter acesso a atividades orientadas por um currículo não cumpre o direito de
aprendizagem e menos ainda a uma educação de qualidade. Esse cenário nos faz
reafirmar, a partir das palavras de Freire, que prioridades para a classe dominante e
prioridades para a classe dominada: e preciso que as maiorias trabalhem, comam,
durmam sob um teto, tenham saude e se eduquem. E preciso que as maiorias tenham
o direito a esperanca para que, operando o presente, tenham futuro” (FREIRE, 2001, p.
51). Assim, diante da exposição trazida neste texto, finalizamos com a pergunta: Que
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horizonte de vida e de esperança essa política curricular denota para as crianças
pequenas?
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Data do envio: 29/08/2021
Data do aceite: 09/11/2021
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