INSPIRAÇÃO FREIRIANA SOBRE AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE
EDUCAÇÃO FÍSICA: A PROPOSTA DE UM GLOSSÁRIO EM LIBRAS
FREIRIAN INSPIRATION ON PHYSICAL EDUCATION PEDAGOGICAL
PRACTICES: THE PROPOSAL OF A GLOSSARY IN BRAZILIAN SIGN
LANGUAGE
Ingrid Lourenço de Amorim Corrêa
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Maíra Soares Henriques
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Tathianna Prado Dawes
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Ludmila Veiga Faria Franco
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Resumo
Olhar os alunos com suas especificidades e identidades é desafiador para os
professores, mas pensar em uma educação inspirada por Freire nos faz ver além das
diferenças. A presente pesquisa, fruto de um trabalho de conclusão do curso de
educação física da Universidade Federal Fluminense, objetivou discutir a importância
da produção de glossários em Libras dentro do contexto da educação física escolar,
abarcar conceitos da surdez, Libras e educação de surdos como proposta de
aprendizagem pelas diferenças e compreender a inclusão na educação física escolar
através da relação dos alunos surdos com os professores ouvintes. Foi realizada uma
coleta de sinais sobre esportes e posterior catalogação dos resultados, possibilitando a
expectativa de criação de um glossário sobre esportes com bola.
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Doutoranda em Ciências e Biotecnologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em
Diversidade e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduada em Direito pela
Universidade do Rio Grande (UNIGRANRIO). Professora Assistente de Libras na Universidade Federal
Fluminense (UFF), Coordenadora do Projeto Produzindo Materiais Bilíngues para Promoção da Saúde
das Pessoas Surdas. E-mail: ludmilaveiga@id.uff.br Telefone: (21) 99136-6005 ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-2596-4730.
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Doutoranda em Estudos de Linguagem na Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em
Diversidade e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduada em Pedagogia no Centro
Universitário Plínio Leite (UNIPLI). Professora Assistente de Libras na Universidade Federal Fluminense
(UFF), Coordenadora do Programa de Extensão Libras, Linguística e Divulgação (LILINDIV). Líder do
Grupo de Pesquisa Estudos do Bilinguismo: LIBRAS e Língua Portuguesa para o surdo (EBILPS). E-mail:
tathiannadawes@id.uff.br Telefone: (21) 99753-1717 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5573-8139.
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Graduada no Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas e Graduanda no Curso de Bacharel em
Ciências Biológicas, ambos na Universidade Federal Fluminense (UFF). Integrante do Projeto de Extensão
Libras, Linguística e Divulgação (LILINDIV). Membro do Grupo de Pesquisa Estudos do Bilinguismo:
LIBRAS e Língua Portuguesa para o surdo (EBILPS). E-mail: masoares@id.uff.br Telefone: (21) 99820-3421
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8161-0094.
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Graduanda do Curso de Licenciatura em Educação Física na Universidade Federal Fluminense (UFF) e
integrante dos Projetos de Extensão Libras, Linguística e Divulgação (LILINDIV) e Produzindo Materiais
Bilíngues para Promoção da Saúde das Pessoas Surdas. Membro do Grupo de Pesquisa Estudos do
Bilinguismo: LIBRAS e Língua Portuguesa para o surdo (EBILPS). E-mail: ingridamorim@id.uff.br Telefone:
(21) 98015-6029 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4313-0783.
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Palavras-chaves: Glossário. Surdez. Educação Física Escolar. Inclusão. Libras.
Abstract
Looking at students with their specificities and identities is challenging for teachers but
thinking of an education inspired by Freire makes us see beyond the differences. This
research, the result of a final paper in the physical education course at Universidade
Federal Fluminense, aimed to discuss the importance of the production of glossaries in
Libras within the context of school physical education; encompass deafness, Libras and
deaf education concepts as a proposal of learning throughout the differences; and
comprehend the inclusion in school physical education through the relationship of deaf
students with hearing teachers. A collection of signs on sports and subsequent
cataloging of the results were held, making possible the expectation of creating a
glossary on sports with balls.
Keys words: Glossary. Deafness. School physical education. Inclusion. Brazilian Sign
Language.
Introdução
Este trabalho é fruto de uma pesquisa iniciada nos projetos de Extensão
Libras, Linguística e Divulgação (LILINDIV) e Produzindo Materiais Bilíngues para
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Promoção da Saúde das Pessoas Surdas , ambos aprovados pela Pró-Reitoria de
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Extensão (PROEX) e pertencentes à Universidade Federal Fluminense. Do envolvimento
nos projetos, originou-se o trabalho de conclusão de curso que possui o foco na criação
de um glossário em Língua Brasileira de Sinais (Libras) relacionado aos esportes que se
utilizam de bolas.
Buscamos refletir sobre uma educação física escolar através do olhar
Freiriano, acreditando na necessidade de um ensino que exige a criticidade e a
mudança da curiosidade ingênua desses alunos surdos para a curiosidade
epistemológica (FREIRE, 2021). Acreditamos nas potencialidades da educação física na
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O projeto Produzindo Materiais Bilíngues para Promoção da Saúde das Pessoas Surdas possui o
objetivo de criar materiais bilíngues (Libras/português). São utilizados vídeos e materiais produzidos,
traduzidos e interpretados em Libras com o foco de promover e divulgar direitos e informações sobre
saúde de forma acessível para o público surdo.
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O projeto LILINDIV desenvolve seus trabalhos desde o ano de 2017 e possui o intuito de divulgar e
produzir materiais com os sinais coletados nas diferentes áreas do conhecimento, contribuindo para a
difusão da Língua Brasileira de Sinais.
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desconstrução e reconstrução dessas curiosidades, desfazendo e refazendo discursos e
ações que afetam as diversidades presentes na sociedade.
De acordo com Soares et al. (1992), entre as quatro primeiras décadas do
século XX, a educação física foi marcada por fortes influências das Instituições
Militares. Possuía o foco na disciplina e no desenvolvimento da aptidão física pautada
na repetição mecânica de movimentos, impondo aos alunos o respeito e a
conformidade à hierarquia social, correspondendo então à execução do projeto de
sociedade idealizado pela ditadura do Estado Novo” (SOARES et al., 1992, p. 36). Tendo
vista essa perspectiva, concordamos com Soares et al. (1992) ao pensar que as aulas de
educação física escolar devem abranger:
[...] a compreensão das relações de interdependência que jogo,
esporte, ginástica e dança, ou outros temas que venham a compor
um programa de Educação Física, têm com os grandes problemas
sócio-políticos atuais [...]. A reflexão sobre esses problemas é
necessária se existe a pretensão de possibilitar ao aluno da escola
pública entender a realidade social interpretando-a e explicando-a a
partir dos seus interesses de classe social. Isso quer dizer que cabe à
escola promover a apreensão da prática social. Portanto, os
conteúdos devem ser buscados dentro dela (SOARES et al., 1992, p.
42).
Soares et al. (1992), ao pensar que a organização dos conteúdos na educação
física deve estar em concordância com o objetivo de promover a leitura da realidade
dos alunos, “isso quer dizer que o aluno atribui um sentido próprio às atividades que o
professor lhe propõe” (p. 41), dialoga com Freire (2013, p. 35), visto que o autor
enfatiza que os estudantes necessitam desenvolver em si a consciência crítica de que
resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele”.
Freire (2013) evidencia que, quando se coloca o foco unicamente no educador
como sujeito central do processo educativo, acaba-se tratando os educandos como
recipientes vazios a serem preenchidos, sendo meros depósitos”. Surge, a partir disso,
a concepção de educação “bancária”, na qual os alunos recebem informações e as
arquivam. O autor explicita que através dessa distorcida visão da educação, não
criatividade, não transformação, não saber (FREIRE, 2013, p. 34). É almejada
uma educação problematizadora, em que ocorre diálogo entre educador e educando,
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na qual ambos “se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os
argumentos de autoridade’ não valem” (FREIRE, 2013, p. 39). Freire destaca ainda
que os educandos, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora
investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também”
(2013, p. 40). Para ele, essa concepção se compromete com a libertação, se apoiando
no diálogo como desvelador da realidade.
Atualmente, ainda é perceptível a existência de algumas barreiras, em
determinados casos, na atuação da educação física como mediadora na mudança das
curiosidades ingênua e epistemológica citadas por Freire (2021). Uma dessas situações
ocorre na educação de surdos, na qual existe uma barreira linguística entre os
envolvidos (PUPIM et al., 2016) e, por vezes, prevalece a ideia de que o surdo deve
copiar mecanicamente o que é visto em aula, tratando-se, portanto, de uma mera
repetição de movimentos (ALVES e PINTO, 2016). Acreditamos que tal prática se
aproxima muito da concepção de educação “bancária” proposta por Freire (2013), o
que deve ser contestado. No presente trabalho, a produção do glossário visa contribuir
para a educação de surdos reconhecendo tais barreiras linguísticas encontradas por
esses sujeitos nas aulas de educação física escolar. Logo, encaramos ser urgente a
necessidade de proporcionar um ambiente inclusivo, dispondo de materiais
pedagógicos que possam contribuir para um ensino que se utiliza da Libras no contexto
das aulas de educação física.
Antes de aprofundarmos as discussões sobre os alunos surdos na educação
física escolar, de acordo com a perspectiva Freiriana, e a proposta de criação do
glossário, iremos abordar alguns conceitos importantes quando se trata dos estudos no
campo da Libras, surdez e educação de surdos.
Alguns conceitos importantes relacionados à surdez e à LIBRAS
A surdez, por vezes, acaba sendo definida levando em consideração
unicamente a visão adotada pela área da saúde e, tradicionalmente, também, pela
área educacional, na qual os diferentes graus de surdez leve, moderada, severa e
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profunda são avaliados em decibéis. Existem materiais fornecidos pelo Ministério da
Educação (MEC) que traçam um limiar para a designação de um indivíduo como surdo,
considerando apenas aqueles com surdez severa ou profunda, enquanto os indivíduos
com surdez leve ou moderada são considerados deficientes auditivos (DA) (LIMA et al.,
2006).
Todavia, segundo Garcia , os sentidos de “surdez” e de “surdo” não são
equivalentes, visto que o primeiro é dado médico, criação clínica [...], o segundo,
identidade de um povo” (2015, p. 81). Existe, portanto, a importância da manifestação
cultural na conceituação de uma pessoa como surda, como destacado a mesmo pelo
Decreto 5.626/2005 (BRASIL, 2005), que, em seu art. 2º, salienta o uso da Libras
como forma de interação com o mundo.
Corroborando tal pensamento e em contradição à perspectiva estritamente
médica, Cardoso e Francisco (2017, p. 109) acreditam que ao falar em surdez e pessoa
surda, entendemos a surdez a partir de sua marca enquanto diferença e não enquanto
deficiência, que necessita ser corrigida”. Lopes (2007) sugere a compreensão da
diferença surda como uma diferença cultural, o que demarca uma questão de luta para
a comunidade surda. De acordo com Garcia (2015):
Surdo, no Brasil e em pleno século XXI, é um dos possíveis
fundamentos para agrupamentos sistêmicos cujo objetivo político
parece ser sustentar a visibilidade de determinada comunidade
formada por pessoas que compartilham entre si uma mesma língua:
Libras. [] Surdo é enunciado como indicativo de povo que se
agrupa em função de similaridades coletivizadas: comportamento,
necessidades, linguagem, espaços e lugares próprios e especializados
para sua permanência momentânea ou para sua circulação (GARCIA,
2015, p. 67).
É necessário reforçar que a Libras é de fato uma língua, reconhecida
oficialmente através da Lei 10.436/2002 (BRASIL, 2002). Mesmo sendo um sistema
linguístico de natureza visual-motora, a Libras possui sua estrutura gramatical própria e
é capaz de transmitir ideias e fatos como qualquer outra língua. Quadros e Stumpf
(2019) evidenciam que existem diferentes perfis de pessoas que utilizam a Libras,
podendo ser surdos filhos de pais surdos, surdos filhos de pais ouvintes, ouvintes filhos
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de pais surdos (CODAs, Children of Deaf Adults) e até mesmo ouvintes que aprendem a
Libras e se desenvolvem de modo fluente. De qualquer forma, considerando os
diferentes modos de contato com a língua, é inegável que a Libras desempenha um
papel fundamental para a comunidade surda brasileira.
No que diz respeito à educação, sabe-se que ela é assegurada a todos os
cidadãos brasileiros, conforme estabelecido pela Lei 9.394/1996 (BRASIL, 1996).
Entretanto, a trajetória dos surdos foi marcada por muitas adversidades desde a
Antiguidade, com a privação de direitos essenciais e, séculos depois, no campo da
educação, com a imposição do oralismo como base teórico-prática empregada para a
educação de surdos , cujo principal fundamento era a proibição do uso da língua de
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sinais e a imposição da língua falada. Dessa forma, o oralismo e a supressão da língua
de sinais acarretaram uma deterioração marcante no aproveitamento educacional das
crianças surdas e na instrução dos surdos em geral” (SACKS, 2010, p. 21).
O oralismo esteve em vigência a a década de 1970, quando surge a proposta
da comunicação total que, segundo Honora e Frizanco (2009), se apoiava em todas as
formas de comunicação possíveis para efetivação da educação, o que incluía língua de
sinais, língua oral, escrita e qualquer tipo de gestos e mímica para transmitir
determinada mensagem. Goldfeld relata que, a partir da década de 1970, em alguns
países como Suécia e Inglaterra percebeu-se que a língua de sinais deveria ser utilizada
independentemente da língua oral” (1997, p. 32). Assim, na década de 1980 o
bilinguismo surge como proposta para a educação de surdos e vai ganhando mais
adeptos mundialmente ao longo da década seguinte.
O bilinguismo é a metodologia utilizada ainda nos dias de hoje e entende o
surdo como sujeito bilíngue utilizando a língua de sinais como sua língua materna
(L1) e a língua oral oficial de seu país, através da escrita, como segunda língua (L2). No
Brasil, para assegurar o direito à educação de crianças surdas, foi necessária a
implementação de diversas políticas de inclusão.
Além da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, e da mencionada Lei
10.436/2002 e Decreto 5.626/2005 que instituiu a inclusão da Libras como
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O oralismo saiu como método vitorioso na votação que ocorreu em 1880, no Congresso Internacional
de Educação de Surdos, realizado em Milão.
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disciplina curricular obrigatória em todos os cursos de Licenciatura e Pedagogia, além
de tornar obrigatória a presença de intérpretes para o atendimento de alunos surdos
é importante destacar a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI, Lei
13.146/2015). Esta lei implementada em 2015, além de reforçar propostas previstas
em outros dispositivos legais, concebe inovações importantes no campo da educação,
como a afirmação de a obrigatoriedade da inclusão escolar de pessoas com deficiência
não ser restrita às escolas públicas, mas também aplicadas às instituições privadas de
ensino.
O aluno surdo na educação física escolar: um olhar acerca das corporeidades que
emergem das diferenças nos cotidianos escolares
A educação física apresenta uma relação com a exclusão e marginalização dos
corpos que não cumprem um modelo de aptidão física e habilidades motoras. Oliveira
(1994) afirma que esses corpos são formados (ou deformados) para exibir um caráter
acrítico e dependente perante as relações de poder existentes na sociedade,
acarretando, segundo Soares et al. (1992), a utilização da educação para adaptar e
adestrar o indivíduo nessa sociedade, alienando-o da sua condição de sujeito.
Levando em consideração esse passado, concordamos com Alves et al. (2013,
p. 196) ao defenderem a educação física escolar desvinculada dos aspectos de
rendimento esportivo, técnica pela técnica, exclusão dos menos habilidosos e qualquer
outra prática excludente”. Quando pensamos sobre o esporte na educação física
escolar, defendemo-lo para além dos movimentos técnicos, dessa forma, dialogando
com Ginciene (2016) ao afirmar que não é que a técnica não deva ser ensinada ou seja
menos relevante, apenas não compartilhamos da ideia da aprendizagem por aspectos
técnicos com movimentos repetidos e mecânicos, descontextualizados e focados
apenas no desenvolvimento da habilidade motora.
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