PAULO FREIRE E A ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UMA
PERSPECTIVA SOBRE O ANALFABETISMO NA CONTRAMÃO DO
PRECONCEITO CONTRA O ANALFABETO
PAULO FREIRE AND YOUTH AND ADULTS' LITERACY: A PERSPECTIVE ON
ILLITERACY AGAINST THE PREJUDICE AGAINST THE ILLITERATE
Renato Pontes Costa
23
José Elesbão Duarte Filho
24
Resumo
O presente artigo apresenta a contribuição de Paulo Freire para o campo da
alfabetização. Para tanto, faz um histórico de como se produziu, no início do século XX,
uma visão preconceituosa contra os analfabetos e como essa visão foi sendo
modificada a partir do final dos anos 1950, destacando a presença fundamental de
Paulo Freire nesse debate. O texto discute a concepção freiriana de alfabetização, a
partir de três aspectos fundamentais: a alfabetização como ato criador do sujeito em
processo de aprendizagem; a alfabetização como direito de todos/as e a alfabetização
como uma forma de potencializar a leitura de mundo. Na conclusão, observa-se a
construção da educação popular como um campo epistemológico próprio da América
Latina e de como a alfabetização de adultos é herdeira desse legado.
Palavras-chave: Alfabetização de jovens e adultos. Educação de Jovens e Adultos.
Paulo Freire. Educação popular.
Abstract
This article presents Paulo Freire's contribution to the field of literacy. Therefore, it
provides a history of how, in the beginning of the 20th century, a prejudiced view
against the illiterate was produced and how this view was being modified from the end
of the 1950s onwards, highlighting the fundamental presence of Paulo Freire in this
debate. The text discusses Freire's conception of literacy, based on three fundamental
aspects: literacy as a creative act of the subject in the learning process; literacy as a
right for all and literacy as a way to enhance the reading of the world. In conclusion, it
24
Bacharel em Direito (2004) e Licenciado em Filosofia (2018) pela PUC-Rio, onde atualmente é
mestrando. Bolsista FAPERJ Mestrado Nota 10 (2021). Integra o Grupo Formação de Professores,
Currículo e Cotidiano Escolar (GEFFOC). E-mail: elduartef@gmail.com Telefone: (21) 964521718. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0624-7229
23
Licenciado em Filosofia, Mestre em Educação Brasileira (2001) e Doutor em Ciências Humanas
Educação (2018) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente é
professor do Departamento de Educação da PUC-Rio. Integra o Grupo de Estudos e Pesquisa em
Educação de Jovens e Adultos (GEPEJA) na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/Instituto
Multidisciplinar de Nova Iguaçu. E-mail: recostta@puc-rio.br Telefone: (21) 996068743. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-7654-7593
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is observed the construction of popular education as an epistemological field specific
to Latin America and how adult literacy is heir to this legacy.
Keywords: Young and adults’ literacy. Young and adults’ education. Paulo Freire.
Popular education.
Educação de Jovens e Adultos, analfabetismo e a produção do preconceito contra o
analfabeto
A história da educação de adultos no Brasil em muito se confunde com a
história da alfabetização de jovens e adultos. Em termos históricos, não como
dissociar os dois campos. Muitos estudos como os de Freire (1989), Beisiegel (1974) e
Paiva (1973), que se ocuparam em remontar o percurso e os percalços que
caracterizam a educação de adultos no país, tratam, de certo modo, da alfabetização
de adultos, alguns recorrendo até ao tempo colonial. Beisiegel (1974, p. 59), por
exemplo, afirma que a educação de adultos no Brasil somente passa a ter uma história
mais consistente, com iniciativas governamentais e orientações próprias, a partir do
final dos anos 1940. Mas esse mesmo autor aponta que existem alusões e dispositivos
legais desde o final do período imperial. Beisiegel (1974) afirma, ainda, que a própria
atividade catequética dos jesuítas orientava-se sobretudo para adolescentes e adultos.
Contudo, apesar dessa amplitude histórica, os mesmos estudos mostram o quanto o
processo de escolarização de jovens e adultos na história brasileira representava muito
fortemente um processo de alfabetização. O analfabetismo sempre foi (e ainda
continua sendo) uma grande questão que atravessa o tempo e está intimamente ligado
a um processo longo, excludente e muito mais amplo, que é a democratização do
ensino no Brasil. Freire (1989) alerta para essa questão:
Uma estrutura social que “não podia” privilegiar a educação
escolarizada, estendendo conteúdos alienados e de concepção
elitista, com “sistema” esfacelado de aulas avulsas”, fecundada pela
ideologia da interdição do corpo, que excluía da escola o negro, o
índio e quase a totalidade das mulheres (sociedade patriarcal), gerou,
inexoravelmente, um grande contingente de analfabetos. Isto porque
uma sociedade dual (senhor x escravo) de economia
agrícola-exportadora-dependente” (economia colonial) não
necessitava de educação primária, daí o descaso por ela (p. 57).
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Beisiegel (1974) faz um bom histórico das ações governamentais levadas a
cabo pelos estados, no ensino dos adultos, entre meados do século XIX e início do
século XX. Segundo o autor, todas as experiências foram pequenas e sem maior
expressão; ele chega, inclusive, a afirmar que até o início do século XX o ensino de
adultos não chegava efetivamente a aparecer como uma educação que se procurava
levar para toda coletividade” (BEISIEGEL, 1974, p. 78). É importante destacar, como
lembram Di Pierro e Galvão (2012), a promulgação da Lei Saraiva, em 1881, que retirou
dos analfabetos o direito ao voto. A negação desse direito atravessou décadas,
assembleias constituintes e todas as outras constituições posteriores a esse período,
até 1988, quando foi reestabelecido a essa parcela da população, ou seja, mais de 100
anos depois.
Uma primeira ação de nível nacional no campo da alfabetização de adultos foi
a Liga Brasileira Contra o Analfabetismo (LBCA), fundada em 7 de setembro de 1915.
Uma ação implementada pela sociedade civil que, de forma organizada, assumia como
missão patriótica enfrentar o problema do analfabetismo em todo o Brasil. Como
afirma Freire (1989), a LBCA foi a primeira campanha que pretendia abranger todo o
território nacional através de uma ação articulada, embora não fosse diretamente
induzida pelo governo federal. Tinha na sua composição militares oriundos da Marinha
e do Exército e, talvez por conta disso, seus programas e conteúdos eram marcados por
forte sentido nacionalista, patriótico e cívico. Segundo Freire (1989), mais do que
reduzir significativamente os índices de analfabetismo no país, a Liga foi responsável
por massificar e difundir uma visão preconceituosa a respeito do analfabetismo e,
consequentemente, do analfabeto. Reproduzimos, a seguir, um longo trecho no qual
Freire (1989, p. 190) explicita essa questão:
A Liga idealizou juntar seus esforções aos poderes públicos federais,
estaduais e municipais e aos de toda a população (Art.3º); criar
escolas gratuitas, urbanas e rurais, diurnas e noturnas (Art. 3º, A);
arregimentar um professorado ambulante (Art. B); criar Leis de
Exclusão dos ANALFABETOS das funções públicas de qualquer
natureza a partir improrrogavelmente de 7 de setembro de 1920 (Art.
3º, E); criar impostos municipais sobre estabelecimentos industriais,
agrícolas e comerciais que tiverem a seu serviço ANALFABETOS DE
QUALQUER IDADE OU SEXO (art. 3º, F); ensinar leitura, escrita,
aritmética, desenho geométrico e noções de instrução cívica (Art. 4º);
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e ser uma associação composta de sócios em número ilimitado,
residentes no BRASIL ou no estrangeiro, quando brasileiros natos”
(Art. 8º).
E continua:
Quanto aos resultados quantitativos, pude obter apenas um dado. A
Liga, explicitando a herança da República quanto ao analfabetismo,
diz que entrou em ação em 1915, e conseguiu um decréscimo anual
de 5% até 1920 e 1921 até atingir a 65%” (Liga Brasileira contra o
Analfabetismo, 69). Entendi, no entanto, que a grande força da Liga
foi a ideológica. Incomparavelmente maior que seus resultados
numéricos, foram seus produtos qualitativos. Gerando, fermentando
e difundindo uma compreensão de educação altamente
discriminatória e elitista a partir “apenas” dos qualificativos para o
analfabeto e analfabetismo com seus discursos, impregnavam a
população brasileira, de um modo geral e até muitos educadores, até
os dias de hoje, da inferioridade intrínseca dos analfabetos. São
expressões constantes em seus discursos: “muralhas do
obscurantismo” (p. 21); expurgar-se da praga negra” (p. 23); “maior
inimigo do Brasil” (p. 60); “libertarem do cativeiro do
ANALFABETISMO” (p. 60) “UMA VERGONHA QUE O PODE
CONTINUAR” (p. 75); etc. E mais: “um grande desgraçado [...]
duplamente nocivo: a si e ao seu país”; “o mais funesto de todos os
males”; cancro social da nossa Pátria” ao qual deve ser declarada
guerra de morte”; “urge vibrar este grito de salvação de redenção
nacional”. (FREIRE, 1990, p. 191).
A Liga e outras campanhas de alfabetização de adultos do início do século XX
25
são marcadas por uma compreensão de que era necessário reduzir os índices de
analfabetismo e isso significava salvar os analfabetos das “trevas da ignorância”.
Somente assim seria possível implementar o desenvolvimento do país. Freire (1989)
identifica no desenvolvimento da LBCA uma aproximação que começa a ser feita entre
a noção de analfabetismo e a concepção higienista da educação, ideia que marcará o
pensamento educacional nesse campo até meados da década de 1930. Segundo a
autora:
É oportuno transcrever texto da Memória apresentada ao Congresso
Nacional dos Práticos, realizado em setembro de 1922, escrito por
membros da Liga, numa clara concepção higienista e, ao mesmo
tempo, economicista e nacionalista da educação, próprias do
capitalismo em franco desenvolvimento nesta década brasileira,
25
Além da LBCA, também podemos destacar a existência da “Liga da Defesa Nacional” (1916), a “Liga
Nacionalista”, a “Liga Pró-Saneamento” (1916), entre outras. Sobre essa questão, ver: Nofuentes (2008).
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concepções que aprofundavam a consagrada” inferioridade do
analfabeto e, portanto, da ideologia da interdição do corpo. “O
problema do saneamento do Brasil pela educação popular envolve
duas questões importantes: a da alfabetização do povo e a do ensino
sistemático das noções capitais de higiene nas escolas e ao público
leigo [...]. Porque não se gasta instruindo-se ao povo, capitaliza-se
criando novas fontes de riqueza que asseguram a formação de uma
raça sadia e vigorosa, para o triunfo decisivo de uma nação [...] contra
esse fantástico inimigo que embrutece a alma, compromete a saúde,
nulifica a espécie, avilta os ideais, enfraquece o país, retardando as
indústrias, desprezando os campos, incendiando florestas e mais
ainda do que isso, embotando o sentimento patriótico. Esse inimigo
cruel que não se vê, mas que está de posse de setenta por cento da
nossa população, quatrocentos anos, é uma palavra só, o
analfabetismo! (VASCONCELOS, 1924) (FREIRE, 1989, p. 201).
26
Se por um lado a LBCA é uma das primeiras experiências de alfabetização de
adultos com pretensão de abranger todo o território nacional, por outro, essa
experiência possui um conteúdo ideológico que molda toda uma visão e um discurso
sobre a inferioridade dos analfabetos. Tal discurso acompanhará toda a história
posterior (quiçá até os dias de hoje).
De acordo com Paiva (1973, p. 26-27), a imagem do analfabeto como um
cego, um incapaz, é parte de fenômeno presente em muitos grupos e movimentos
educativos nos anos 1910, chamado de entusiasmo pela educação”. Esse fenômeno
está baseado numa crença que supervaloriza a educação, entendendo-a como um
elemento capaz de proporcionar o desenvolvimento e o progresso da nação. Um dos
principais expoentes dessa concepção foi o médico sanitarista Miguel Couto, que
relacionava diretamente educação e desenvolvimento, identificando nas questões
higienistas todos os problemas nacionais, entre os quais o próprio analfabetismo. Paiva
(1973) traz duas citações do próprio Miguel Couto, que reproduzimos a seguir, nas
quais é possível identificar muito claramente a visão que se tinha do analfabeto
naquele período:
Ocupava-se da ignorância”, considerando-a “não somente uma
doença, mas a pior de todas porque a todas conduz; e quando se
instala endemicamente, como na nossa terra, assume as proporções
de verdadeira calamidade pública. É ela que reduz o nosso homem e
26
VASCONCELOS, Aleixo de. Luta contra o analfabetismo: de como esta campanha favorece o
saneamento do Brasil. Rio de Janeiro: Empresa Graphica Editora, 1924.
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a meio homem, a um quarto de homem e a nossa população à
metade ou a um quarto da realidade; ele e somente ela é a
responsável pelo relativo atraso de nossa pátria, que não pode sofrer
o confronto com as outras.
O analfabetismo é o cancro que aniquila o nosso organismo com as
suas múltiplas metástases, aqui a ociosidade, ali o vício, além o crime.
Exilado dentro de si mesmo como em um mundo desabitado, quase
repelido para fora da espécie pela sua inferioridade, o analfabeto é
digno de pena e a nossa desídia indigna de perdão enquanto não lhe
acudirmos com o remédio do ensino obrigatório (PAIVA, 1973, p. 28).
Não é difícil perceber nesse discurso a direta associação do analfabetismo
como uma doença, como um mal que precisa ser erradicado”. A expressão: erradicar
o analfabetismo”, aliás, é usada para se referir a políticas de alfabetização até os dias
atuais.
A primeira iniciativa governamental implementada para enfrentamento do
analfabetismo foi a Campanha Nacional de Adolescentes e Adultos (CEAA), criada e
coordenada por Lourenço Filho. Além da alfabetização, a campanha se ocupava em
estender também o ensino primário a adolescentes e adultos não alfabetizados. De
acordo com Beisiegel (2010, p. 23): em artigo de 1945, Lourenço Filho alertava
também para a necessidade de respeitar as características do aluno analfabeto,
especialmente o desuso da capacidade de aprender e a ‘falta de treino para
aprender. A CEAA, segundo Paiva (1973) foi regulamentada a partir do Fundo
Nacional do Ensino Primário, que havia sido criado pelo decreto 19.513, de 25 de
agosto de 1945, e como forma de responder às demandas internacionais criadas pela
Unesco no pós-guerra. Quanto aos objetivos da campanha, Paiva (1973) afirma que:
[...] ela acenava para a possibilidade de preparar mão de obra
alfabetizada nas cidades, de penetrar no campo e de integrar os
imigrantes e seus descendentes nos Estados do Sul, além de se
constituir como um instrumento para melhorar a situação do Brasil
nas estatísticas mundiais de analfabetismo (p. 178).
Ao se referir à CEAA, a autora mostra que essa campanha retoma em grande
medida aspectos do entusiasmo pela educação” do início do século XX, em uma visão
consolidada sobre a inferioridade do analfabeto e a necessidade de erradicar essa
chaga” do país. Tais afirmações, segundo Paiva (1973, p. 180), justificavam-se numa
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ideia consolidada de “insuficiência cultural” da população e que isso era, de certa
forma, responsável pelos atrasos no desenvolvimento e na industrialização do país.
Apesar dos esforços de uma campanha que dura de 1947 até meados da
década de 1960, os resultados da CEAA não conseguem modificar em muito o quadro
do analfabetismo no Brasil, como aponta Paiva (1973, p. 181):
O declínio da Campanha chega ao seu auge em 1958 quando é
convocado o II Congresso Nacional de Educação de Adultos, onde se
reconhece de público o fracasso do programa do ponto de vista
propriamente educativo. Nesse momento, observa-se que a CEAA
havia se mantido fiel ao seu fundamento político, formando novos
contingentes eleitorais, e por outro lado havia efetivamente
contribuído para a diminuição dos índices de analfabetismo no Brasil.
Sua atuação, entretanto, excetuada uma pequena parcela, carecia de
profundidade, reduzindo-se à mera alfabetização: apontavam-na
como “fábrica de eleitores”.
Convém, ainda, registrar, como aponta Beisiegel (2010), que durante a década
de 1950 três outras campanhas subsidiadas pelo governo federal foram criadas: em
1952, a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) e em 1958 a Campanha
Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA) e o Sistema Radioeducativo Nacional
(SIRENA).
A contribuição teórica de Paulo Freire no final dos anos 1950 no contexto da
formação de uma nova postura sobre alfabetização de jovens e adultos
No final dos anos 1950 e início de 1960, é possível perceber alguns
posicionamentos fortes de Paulo Freire sobre a questão do analfabetismo, fruto de
intenso debate em torno da questão durante a segunda metade dos anos 1950 e que
vai, de certo modo, suscitar um questionamento da concepção de analfabetismo
existentes no Brasil até então. A antiga visão, decorrente de ações e práticas
desenvolvidas nas campanhas de alfabetização do início do século XX, estava ainda
plenamente instaurada e seu questionamento provocava amplos confrontos sobre o
tema.
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67
Em âmbito governamental, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)
discutia a relação entre educação e desenvolvimento. A escalada desenvolvimentista
presente no o governo Juscelino Kubitschek tem forte ligação com essa questão,
influenciando diretamente as ações e campanhas de alfabetização de jovens e adultos
naquele período. Beisiegel (2010) afirma que no final dos anos 1950 se pode
perceber, de forma tímida, uma nova postura sobre alfabetização de adultos no país
sendo discutida. Essa postura estava presente, inclusive, em ações governamentais,
como a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958). De acordo com o
autor, nesse momento, começava-se a afirmar que o analfabetismo, como fenômeno
social, teria causas sociais e econômicas que deveriam ser conhecidas, controladas e
dominadas.” (p. 26).
No campo específico da educação de adultos essa discussão impulsionou,
como apontam Paiva (1973) e Fávero (2000), a realização do Congresso Nacional de
Educação de Adultos, em 1958. No ISEB, destaca-se a figura de Álvaro Vieira Pinto, que,
entre outros, ocupava-se em discutir o tema do analfabetismo sob outro prisma. Ele
apontava para a necessidade de separar o debate técnico sobre o analfabetismo de um
debate mais pedagógico, ou seja, o enfrentamento do analfabetismo implicava sim na
gestão técnica, que demandava um ordenamento dos sistemas de ensino, mas
também exigia uma mudança de postura pedagógica na tentativa de aproximar a
discussão dos sujeitos diretos dessas ações os analfabetos e da sua compreensão
desse processo. Nos trechos destacados a seguir, Vieira Pinto (1956) trata
especificamente sobre essa questão:
[...] torna-se indispensável criar um novo conceito de educação como
parte essencial daquele projeto e condição do seu completo êxito.
Não estamos ainda preparados para dizer qual o plano educacional a
realizar, porque se trata justamente de abordá-lo desde os
fundamentos. O que nos parece necessário, no entanto, é imprimir
novo rumo à nossa educação, a fim de orientá-la, sem compromisso
com qualquer credo político, no sentido da ideologia do
desenvolvimento econômico social. Uma teoria da educação deverá
surgir, cuja tarefa inicial será a de definir que tipo de homem se
deseja formar para promover o desenvolvimento do país. Educar para
o desenvolvimento não é tanto transmitir conteúdos particulares de
conhecimento, reduzir o ensino a determinadas matérias, nem
restringir o saber exclusivamente a assuntos de natureza técnica; é
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muito mais do que isto, despertar no educando novo modo de pensar
e de sentir a existência, em face das condições nacionais com que se
defronta; é dar-lhe a consciência de sua constante relação a um país
que precisa de seu trabalho pessoal para modificar o estado de
atraso; fazê-lo perceber tudo quanto lhe é ensinado por um novo
ângulo de percepção, o de que todo o seu saber deve contribuir para
o empenho coletivo de transformação da realidade (VIEIRA PINTO
apud FÁVERO, 2000, p. 168-169) .
27
Essas ideias aparecem com bastante força no Congresso Nacional de
Educação de Adultos, sobretudo no documento apresentado por Paulo Freire, como
relator do estado de Pernambuco. Elas vão também, de alguma maneira, influenciar as
experiências implementadas por muitos dos movimentos de educação e cultura
popular no início dos anos 1960, podendo ser percebida, inclusive, no trabalho de
Paulo Freire, em Recife e em Angicos. É possível, então, afirmar que uma concepção
sobre alfabetização de adultos estava sendo gestada no interior dos movimentos de
educação e cultura popular.
A presença marcante de Paulo Freire nesse debate mostra, naquele
período, o seu envolvimento com o tema da alfabetização de adultos, no bojo das
preocupações engendradas pelos movimentos de educação e cultura popular. Como
mostram Beisiegel (2010), Góes (1991) e Soares (2009), alguns textos de Freire desse
período revelam um posicionamento próprio sobre o tema e a construção de uma
concepção sobre alfabetização de adultos que ele estava construindo no final dos anos
1950:
a. Em 1958, Paulo Freire foi relator do estado de Pernambuco no
Congresso Nacional de Educação de Adultos, realizado no Rio de
Janeiro. Nesse evento, apresentou o documento intitulado A
educação de adultos e as populações marginais: o problema dos
mocambos” , como a síntese das discussões feitas na sua região sobre
28
a temática da educação de adultos. O documento apresenta uma visão
bastante avançada para a época, defendendo a ideia de que o
28
O relatório final completo do Seminário Regional de Educação de Adultos (RECIFE, 1958), es
publicado na revista Em Aberto (Brasília, v. 26, 90, jul./dez. 2013) “Sobre as 40 horas de Angicos, 50
anos depois”.
27
VIEIRA PINTO, Álvaro. Ideologia e desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: MEC/ ISEB, 1956. p. 41-42.
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analfabetismo era uma questão social com origem na desigualdade
social;
b. Em 1961, Paulo Freire fez um concurso para a Cadeira de História e
Filosofia na Escola de Belas-Artes de Pernambuco, na Universidade de
Recife. Um dos requisitos dessa contratação era a defesa de uma tese.
Na ocasião, apresentou o documento intitulado “Educação e
atualidade brasileira” . De acordo com Beisiegel (2010, p. 17), nesse
29
texto Paulo Freire: “focaliza o analfabetismo como uma expressão da
situação global da existência do homem analfabeto” e mostra que o
adulto analfabeto, suas condições de vida e suas experiências
existenciais deveriam determinar as orientações e as características
dessa prática educativa”.
c. Em 1963, Paulo Freire publica o artigo, intitulado: “Conscientização e
Alfabetização: uma nova visão do processo”, em um número especial
da Revista de Estudos Universitários, da Universidade do Recife,
totalmente dedicado à questão da alfabetização de adultos. Naquele
período, é preciso lembrar que algumas experiências de alfabetização
realizadas por ele em Recife haviam sido feitas e esse texto
representa, de certa maneira, uma primeira sistematização de uma
concepção prática sobre a alfabetização de adultos.
A memória de toda essa trajetória nos ajuda a perceber a relevância da
contribuição de Paulo Freire para um campo específico que é a alfabetização de jovens
e adultos no Brasil. Essa contribuição não se deu apenas como um “metodólogo”,
como ele dizia, mas como um pensador que ousou enfrentar a cultura vigente e
conceber o processo de alfabetização em outras bases. Alfabetização de jovens e
adultos era uma temática urgente, desafiadora e um campo de ação que sintetizava
muitas lutas colocadas no campo político, educacional e cultural. A ação de Freire e dos
muitos movimentos de educação popular na época foram responsáveis por um amplo
debate sobre o que significava, de fato, alfabetizar jovens e adultos. O resultado de
29
A tese foi publicada como livro pelo Instituto Paulo Freire (FREIRE, 2003).
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muitas experimentações feitas nesse período possibilita a construção de alguns
importantes indicativos que, sistematizados por Paulo Freire, são hoje assumidos pelas
pessoas que militam nesse campo e ousam pensar e fazer uma educação outra.
Paulo Freire e a alfabetização de jovens e adultos: mais que uma metodologia a
sistematização de uma teoria do conhecimento sobre alfabetização
Conforme apresentamos, a alfabetização de jovens adultos é um problema
histórico que Freire e muitos/as outros/as educadores/as ousaram enfrentar do ponto
de vista prático, experimentando caminhos e possibilidades de fazer, mas também a
partir da perspectiva teórica, indagando-se profundamente sobre o significado de tal
tarefa. Um dos pilares da reflexão proposta por esses educadores era pensar os
processos de alfabetização concentrando-se na figura do educando, ou seja, em
desenvolver um olhar atento ao contexto e se perguntar: quem é esse alfabetizando?”
Como desdobramento desse questionamento inicial, passava-se também a perguntar
sobre qual o sentido que a alfabetização tinha para esse sujeito.
Partir dessas questões para pensar o processo de alfabetização de jovens e
adultos mudava completamente a forma de encarar a questão, porque mais do que um
ato isolado, mecânico, a proposta de alfabetização gestada no âmbito dos movimentos
de educação e cultura popular dos anos 1960 se caracterizava como um ato de criação,
um ato de conhecimento produzido pelo sujeito em processo de aprendizagem da
língua escrita. Reforçando a questão, Barreto (2006, p. 82) destaca que: “para Freire,
nesta teoria do conhecimento, não é possível: a) separar prática de teoria; b) separar o
ato de conhecer o conhecimento hoje existente do ato de criar o novo conhecimento;
c) separar ensinar de aprender; educar de educar-se.
Na visão freiriana de educação, considerar a necessária e adequada
articulação entre teoria e prática significa, em grande medida, estar atento ao outro e a
iniciativas que respeitam esse outro como sujeito de direito, como sujeito histórico, e
principalmente, como sujeito de conhecimento e aprendizagem. Nesse sentido, a
alfabetização assume uma perspectiva emancipatória, na medida em que age em
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sintonia com o contexto no qual está inserida e da qual produz sentido e relevância
para o alfabetizando, a partir da realidade da qual ele também faz parte. Tudo isso para
que se possa efetivamente potencializar a alfabetização como uma “ação fértil”, “um
movimento produtivo”. Afinal, conforme enunciado por Barreto (2006, p. 82-83), Paulo
Freire costumava afirmar que:
Todas as vezes que tenho discutido o problema da alfabetização de
adultos, tenho sublinhado que, numa perspectiva libertadora, ela
de ser sempre um ato criador, em que o conhecimento livresco cede
lugar a uma forma de conhecimento que provém da reflexão crítica
sobre uma prática concreta de trabalho. Daí a insistência com que
falo da relação dialética entre o contexto concreto (realidade vivida
pelo alfabetizandos), em que tal prática se dá, e o contexto teórico
(sala de aula), em que a reflexão crítica sobre aquele que se faz.
No livro “Paulo Freire para educadores”, Vera Barreto (2006) publica uma
carta de Paulo Freire respondendo a uma educadora que o havia questionado: “para
que alfabetizar? Respondendo de maneira simples e ensaística, Freire enuncia o que
denomina, de modo muito sugestivo, de “solidariedade entre perguntas” (p. 76). O
autor sinaliza que, na sua perspectiva, a indagação “para quê? decorre da curiosidade
para saber a finalidade da ação de que se está falando. Assim como, quando a
pergunta é o que é?, ela emerge do desejo de compreender o que faz algo ser uma
coisa e não outra. Nessa mesma esteira, o autor enuncia que quando nos interpelamos
como?”, estamos nos lançando na perspectiva de conhecer os caminhos, meandros e
estratégias usados para obtenção do que se pretende. Seguindo o horizonte freiriano,
ainda nos deparamos com a interrogação do “por que?, quando a intenção é
desvendar a razão de ser das coisas. Ou, ainda, se a pergunta é quando?”, segundo
Freire, tem a ver com o tempo delas (das coisas). No diálogo (escrito) com essa
educadora, ele não responde de antemão à questão a ele direcionada, mas, antes
disso, expressa bem clara e sinteticamente o que entende por alfabetização de jovens
e adultos, com a seguinte reflexão:
Agora, quando você me pergunta para que alfabetizar? me sinto
levado a dizer algo sobre o que é alfabetizar. Para fazer isso vou
tentar um caminho simples e muito concreto. Veja bem, neste
momento, tenho algo na minha mão. Pego a coisa que tenho nos
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dedos, apalpo-a, sinto-a. Ganho a sensibilidade da coisa, percebo-a,
falo o nome da coisa e escrevo o nome da coisa. Assim sinto a caneta
nos dedos, percebo a caneta, pronuncio o nome caneta e depois
escrevo ca-ne-ta. O mesmo, quase, se quando falamos palavras
abstratas, que não pegamos a significação delas. Eu não pego a
saudade do Recife com as mãos. Eu sinto a saudade inteira no meu
corpo. Eu falo e escrevo saudade. Veja, a pessoa chamada analfabeta,
que não sabe ler nem escrever, sente como nós, a coisa, pegando-a
ou não, percebe e fala, não escreve, portanto não também.
Alfabetizar, num sentido bem direto, é possibilitar que as pessoas a
quem falta o domínio desta operação criem este domínio. Por mais
importante e é muito importante o papel da educadora ou do
educador na montagem deste domínio, o educador não pode fazer
isto em lugar do alfabetizando. A alfabetização é um ato de criação de
que fazem parte o alfabetizando e o educador. O educador é
fundamental. Ele tem mesmo que ensinar desde porém que jamais
anule o esforço criador do alfabetizando (BARRETO, 2006, p. 76-77).
A concepção de alfabetização apontada por Freire neste trecho, como ele
mesmo diz, é simples e muito direta, mas também bastante significativa se pensarmos
na profundidade que tais afirmações representam no interior das relações
pedagógicas. Na educação de jovens e adultos ações pedagógicas que estimulem os
indivíduos a enunciarem a “sua palavra” é condição sine qua non para a aprendizagem
e, consequentemente, para potencializar a maneira desses sujeitos se colocarem no
mundo, expressando seu conhecimento também de forma escrita.
Conforme assinala Barreto (2006, p. 77), na carta supracitada Paulo Freire “faz
referência a importantes pontos da forma como compreende a alfabetização”. Entre os
pontos por ela elencados, destacamos aqui três aspectos fundamentais para
caracterizar a concepção que esse autor desenvolve sobre alfabetização de jovens e
adultos e que, para além de uma pretensão puramente metodológica, representam
princípios que devem estar presentes em qualquer processo alfabetização, seja de
jovens e adultos ou de crianças.
a) “Enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetização
tem, no alfabetizando, o seu sujeito.” (BARRETO, 2006, p. 78)
Quando se trata de alfabetização de jovens e adultos, reconhecer e respeitar
os interesses do educando pressupõe uma das primeiras regras que contribuem para
dinamizar uma relação na qual o alfabetizando é o sujeito e não objeto da
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alfabetização, reconhecendo seus interesses e abrindo espaço para a expressão do seu
pensamento. Partir desse pressuposto significa colocar em xeque a relação de poder,
presente em qualquer relação pedagógica, sobretudo numa situação de aprendizagem
da língua escrita, que carrega todo um histórico de negação do outro. Contrariamente
a uma postura impositiva e adestradora da relação, deve emergir uma prática, por
parte do educador democrático, consubstanciada em um ethos que reconheça e
valorize os indivíduos em sua diversidade e, como tal, permita apostar no
conhecimento do outro. Essa relação parte da realidade concreta do homem/mulher
alfabetizando/a, reconhecendo-o/a como sujeito de conhecimento , valorizando e
30
promovendo o seu caráter histórico e transformador. Afinal, conforme enuncia Paulo
Freire (1979):
Os homens enquanto “seres-em-situação” encontram-se submersos
em condições espaço-temporais que influem neles e nas quais eles
igualmente influem [...]. Para ser válida, toda educação, toda ação
educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão
sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do
homem concreto a quem queremos educar (ou melhor dito: a quem
queremos ajudar a educar-se) [...] faltando uma tal reflexão sobre o
homem, corre-se o risco de adotar métodos educativos e maneiras de
atuar que reduzem o homem à condição de objeto [...]. Assim, a
vocação do homem é de ser sujeito e não objeto. Pela ausência de
uma análise do meio cultural, corre-se o perigo de realizar uma
educação pré-fabricada, portanto, inoperante, que não está adaptada
ao homem concreto a que se destina (p. 19).
Analogamente à perspectiva freiriana, conceber uma ação educativa capaz de
conferir ao educando a condição de sujeito, e não mero objeto contribui para
promover o pensamento crítico e a possibilidade de um cidadão concreto, alinhado às
conjunturas de ordem prática e, consequentemente, capaz de interagir com as
realidades dos diferentes contextos, suas historicidades e nelas intervir.
Na perspectiva do que aponta Freire, uma prática de alfabetização que tem
sua base numa reflexão sobre a realidade concreta dos diferentes sujeitos (educadores
e educandos) e que, além de conhecer essa realidade busca transformá-la se configura
como uma educação libertadora. Nessa perspectiva, o educando não pode ficar
30
Sobre essa questão ver Oliveira (1999).
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subjacente à condição de objeto, adstrito a uma postura tradicional que modela e, em
certa medida, aliena e subalterniza. Por isso, o processo começa justamente por
discutir o conceito antropológico de cultura, através das fichas de cultura. Antes de
qualquer movimento em direção à mecânica da alfabetização propriamente dita, era
necessário que os educandos entendessem a sua condição de sujeito produtor de
cultura e, com isso, reconhecessem o seu lugar ativo no processo de ensino e
aprendizagem. Na visão de vero e Siqueira (2014), esse é o “pulo do gato” da
formulação freiriana. Todos os movimentos de educação e cultura popular da época
trabalhavam com os mesmos conceitos e assumiam as mesmas utopias, mas o mérito
da sistematização desse processo nas fichas de cultura é de Paulo Freire, afirmam os
autores.
b) “Ninguém é analfabeto porque quer, mas como consequência das
condições de onde vive. casos onde o analfabeto é o homem ou mulher
que não necessita ler e escrever, em outros é a mulher ou o homem a
quem foi negado o direito de ler e escrever” (BARRETO, 2006, p. 78).
Alfabetização é um direito! Um direito de todos/as. Isso significa dizer que ela
precisa acontecer com qualidade com as crianças, no momento destinado ao início do
processo de escolarização, mas também precisa estar acessível a adolescentes, jovens,
adultos e idosos. A afirmação desse direito da forma como foi feito por Paulo Freire no
contexto do final dos anos 1950 e início de 1960 representou um avanço imenso nas
discussões que se faziam naquele período. No final da carta a que nos referimos acima,
publicada por Barreto (2006), Freire responde à indagação “para que alfabetizar? da
seguinte maneira:
Para que alfabetizar? Numa primeira aproximação ao problema [...],
poderia dizer a você: para que as pessoas que vivem numa cultura
que conhece as letras não continuem roubadas de um direito o de
somar à “leitura” que fazem do mundo a leitura da palavra, que
ainda não fazem (p. 77).
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Na visão freiriana, promover a alfabetização de adultos, mais que enfrentar de
forma metodológica e prática uma enorme questão que sempre esteve presente na
história da educação brasileira o analfabetismo era/é afirmar um direito básico e
universal que é o direito à educação escolar. A alfabetização é a porta de entrada para
esse direito. Como aponta Sacavino (2006), do ponto de vista conceitual:
De acordo com o Relatório Nacional sobre Direito Humano à
Educação, conceber a educação como Direito Humano, diz respeito a
considerar o ser humano na sua vocação de ser mais”,
diferentemente dos outros seres vivos, buscando superar a sua
condição de existência no mundo (p. 458).
Temos clareza de que a educação” é muito mais que a educação escolar, mas
na atualidade, lutar pela educação de todos/as significa fundamentalmente lutar pelo
acesso à escola. A educação escolar e, no caso da nossa reflexão especificamente, a
alfabetização potencializa a forma dos homens e mulheres se colocarem no mundo,
podendo exercer o direito de expressar seu pensamento “também” de forma escrita.
c) “O ato de aprender a ler e a escrever começa a partir de uma compreensão
abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem
antes de ler a palavra” (BARRETO, 2006, p. 77).
A afirmação acima retrata um processo de alfabetização em que,
minimamente, incluam-se como conteúdo de aprendizagem os traços identitários
desse educando adulto, as expressões de seu agir no mundo e as referências de sua
própria história como agente ativo de sua realidade. Para o desenvolvimento de um
processo dessa natureza é fundamental perceber que a ação alfabetizadora perpassa,
precipuamente, pela adesão espontânea do educando a esse processo, demandando,
por sua vez, uma dinâmica de negociação de saberes no interior da relação
pedagógica.
A partir desse pensamento chegamos a uma compreensão que, consoante
assevera Barreto (2006), “a alfabetização, na perspectiva de Paulo Freire, não é
entendida como uma memorização de ba-be-bi-bo-bu e nem como uma transferência
de conhecimento da escrita do alfabetizador para o alfabetizando” (p. 81). O processo
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de alfabetização tem como fio condutor uma articulação entre os diferentes saberes
que se apresentam dentro e fora da escola. Ou seja, uma dualidade que realça a
importância e validade de um saber “outro”, popular e peculiar, que não se confunde
com o conhecimento escolar, que não lhe é antagônico, superior ou inferior; apenas
diferente. Normalmente não é pensado em moldes formais, não confere status de
intelectualidade a quem o possui; nem por isso é marginal e, como tal, não pode ficar
oculto. Precisa ser trazido à luz, para não continuar sendo o lado escuro do
conhecimento, quando na relação com o saber escolar. Nesse sentido, a relação
pedagógica democrática se estabelece quando se objetiva a negociação entre
diferentes sistemas de conhecimento, que entram em jogo na relação pedagógica.
Assim sendo, quanto mais se estabelece um diálogo e negociação no trato
com o conhecimento e com os diferentes atores, um tanto mais o educando percebe
sentido na alfabetização, para além de simplesmente decifrar o código escrito. Assim,
na alfabetização na perspectiva freiriana, o educando precisa ser afetado por um
estado de consciência e ter aguçado o seu instinto crítico e sua atitude
interventiva/transformadora face à realidade. Nas palavras de Barreto (2006, p. 81),
como ato de conhecimento que tem como objeto a ser conhecido a língua escrita, a
alfabetização é um processo de busca e tentativas de revolução, portanto, nunca uma
recepção passiva.
A novidade proposta por Freire é que muito mais que pensar a dinâmica
metodológica da alfabetização, ele discute filosoficamente a qualidade da relação
pedagógica no interior da experiência educativa, seja de alfabetização ou qualquer
outro nível. A relação dialética que se estabelece numa alfabetização feita nessa
perspectiva potencializa educando e educador de forma positiva, propositiva e
perspicaz. A relação é participativa, pautada em premissas e ações democráticas, mas
sem perder de vista o jogo de interesses políticos, econômicos e sociais, presentes em
qualquer experiência educativa. Isso significa ter consciência de que é esse jogo que
esteriliza a educação em sua dimensão epistemológica fundamental. Em diferentes
momentos, Paulo Freire discute essa questão:
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Uma educação que procura desenvolver a tomada de consciência e a
atitude crítica, graças à qual o homem escolhe e decide, liberta-o em
lugar de submetê-lo, de domesticá-lo, de adaptá-lo, como faz com
muita frequência a educação em vigor num grande número de países
do mundo, educação que tende a ajustar o indivíduo à sociedade, em
lugar de promovê-lo em sua própria linha (FREIRE, 1979, p. 19).
[alfabetização] não se trata de uma memorização visual e mecânica
de sentenças, de palavras, de sílabas soltas, aleatórias, desgarradas
de um universo existencial, configura-se, basicamente, numa atitude
de criação e recriação. Implica numa dinâmica de autoformação da
qual possa resultar uma postura interventiva do homem sobre o seu
contexto (FREIRE, 1967, p. 110).
A partir do pensamento acima, ousamos refletir com Freire na perspectiva de
que, possivelmente, construir e dinamizar um ambiente formativo capaz de fomentar
também, pela leitura e escrita, uma percepção ainda mais abrangente do ato de ler o
mundo tende a ampliar horizontes e fazer emergir condições capazes de potencializar
a alfabetização como prática de uma teoria do conhecimento” (BARRETO, 2006, p.
81). Essa configuração coaduna com a perspectiva freiriana de conceber o
alfabetizando como sujeito da aprendizagem, que traz consigo um conhecimento
consubstanciado no acúmulo de vivências e experimentações, sensível ao diálogo e
que têm na sua própria leitura do mundo a fonte a partir da qual constrói e dimensiona
percepções de e para a vida.
Considerações finais
Paulo Freire é, sem dúvida, um grande pensador da educação. Dada a
amplitude e complexidade de seu pensamento, ele é referência em muitas áreas das
ciências da educação e também em outros campos do saber. Contudo, é na área
originária de sua atuação a alfabetização, leitura e escrita que constrói as maiores
reflexões sobre a educação” em si. Isso se deu por conta de um contexto histórico que
estigmatizava a figura do analfabeto, responsabilizando-o pelo problema do
analfabetismo e que Paulo Freire, como outros tantos educadores de seu tempo,
ousaram enfrentar. Os movimentos de educação e cultura popular dos anos 1960, no
qual se insere a figura de Paulo Freire, tinham na alfabetização de jovens e adultos, de
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maneira geral, mais que um campo de trabalho, eles buscavam, nessa atuação, um
horizonte mais amplo de discussão que problematizava a educação no seu sentido
mais original.
A alfabetização de jovens e adultos significava, inicialmente, estratégia para a
promoção de uma cidadania ativa que, naquele momento, os analfabetos estavam
alijados do direito à participação social porque não votavam. Mas seu enfrentamento
do ponto de vista teórico representou também num campo de experimentação de
possibilidades e de construção de metodologias, sendo terreno fértil para o
desenvolvimento no Brasil de um campo de conhecimento que mais tarde passamos a
chamar de educação popular.
A educação popular é entendida, aqui, como uma perspectiva de educação,
ou seja, uma forma de pensar e de fazer educação na contramão das concepções
hegemônicas e instituídas naquele momento da história. Essa educação assume
múltiplas formas em diferentes contextos em toda a América Latina, o que dificulta sua
conceitualização de forma única. Em pesquisa recente sobre o tema, Jara H. (2020)
afirma que:
A educação popular como concepção educativa não possui um corpo
categorial sistematizado em todos os seus extremos (em toda sua
extensão ou suficientemente sistematizado), todavia, podemos
afirmar que aponta para a construção de um paradigma educacional,
que confronta o modelo autoritário, reprodutor, predominantemente
escolarizado e que dissocia teoria e prática (p. 25).
Assim, educação popular pode não ter uma definição única e completa, mas
tem princípios que aprendemos com Paulo Freire e com todos os movimentos de
educação e cultura popular levados a cabo nos primeiros anos da década de 1960.
Aprendemos com esses movimentos a deslocar o olhar e enxergar a fundo a realidade
dos educandos e considerar essa realidade como matéria de aprendizagem. Com eles,
aprendemos que as relações pedagógicas são permeadas por relações de poder e que
o diálogo e a negociação de saberes são um caminho possível e, sobretudo,
aprendemos que qualquer ato educativo é um ato político. Essas são lições da história
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que hoje permeiam a prática de muitos/as educadores/as e que, na sua simplicidade,
assustam os poderes instituídos e fazem tremer suas estruturas.
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Data do envio: 08/09/2021
Data do aceite: 09/11/2021
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