DA ANCESTRALIDADE À OPÇÃO DECOLONIAL:
O QUE APRENDEMOS COM NOSSA PRÓPRIA HISTÓRIA
FROM ANCESTRALITY TO DECOLONIAL OPTION:
WHAT WE LEARN FROM OUR OWN STORY
Luiz Fernandes de Oliveira
10
Resumo
Este texto vai abordar alguns conceitos e concepções que surgem durante nossas vidas,
nossos percursos formativos e nossas atividades políticas que, ao final, orientam
profundamente nossas atitudes, posturas e ações didáticas e pedagógicas no campo da
educação. Ao longo do texto algumas marcas teóricas vão aparecer como: o marxismo,
a ancestralidade negra, as identidades docentes e a opção decolonial. Essas marcas
terão como instrumento a construção de um diálogo entre o percurso formativo do
autor e algumas concepções de Paulo Freire expressas no seu livro Aprendendo com a
própria história”. Não tratarei aqui simplesmente de uma narrativa autobiográfica, mas
a exposição de uma análise sobre um percurso formativo a partir da opção decolonial.
Palavras-chave: Percurso Formativo. Opção Decolonial. Paulo Freire.
Abstract
This text will discuss some concepts and conceptions that arise during our lives, our
formative paths and our political activities that, at the end, deeply guide our attitudes,
postures and didactic and pedagogical actions in the field of education. Throughout the
text, some theoretical marks will appear such as: Marxism, Black ancestry, teaching
identities, and the decolonial option. These marks will have as an instrument the
construction of a dialog between the author's formative journey and some conceptions
of Paulo Freire expressed in his book "Learning from history itself". I will not deal here
simply with an autobiographical narrative, but with the exposition of an analysis of a
formative journey from the decolonial option.
Keywords: Formative path. Decolonial Option. Paulo Freire.
Introdução
Este texto vai abordar alguns conceitos e concepções que surgem durante
nossas vidas, nossos percursos formativos e nossas atividades políticas que, ao final,
orientam profundamente nossas atitudes, posturas e ações didáticas e pedagógicas no
10
Professor Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail:
axeluiz@gmail.com Tel: 21 988033391 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3955-3732
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
22
campo da educação. Ao longo do texto algumas marcas teóricas vão aparecer, tais
como: o marxismo, a ancestralidade negra, as identidades docentes e a opção
decolonial. Tais marcas serão um importante instrumento para a construção de um
diálogo entre meu percurso formativo e algumas concepções de Paulo Freire expressas
no seu livro Aprendendo com a própria história”. Não tratarei aqui simplesmente de
uma narrativa autobiográfica, mas uma análise reflexiva sobre um percurso formativo a
partir da opção decolonial.
Precisamos começar, portanto, com minhas origens. Sou filho único de mãe
mineira, nascida no campo e pai nordestino, nascido no interior da Paraíba. Eles se
encontraram no Rio de Janeiro e em 1966 se casaram. Nasci em 1968 em Nova Iguaçu,
Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Meu pai era negro e minha mãe descendente
de povos indígenas, mas ela tem marcas fenotípicas misturadas entre branco e
indígena. No entanto, esta classificação racial de meus pais vai se evidenciar para
mim por volta de meus 25 anos de idade. Antes disso, vivenciei algumas
experiências que me formaram de modo profundo e estão presentes até os dias de
hoje.
Vivenciei uma infância pobre, sem conforto, mas sobrevivendo minimamente.
As brincadeiras de rua eram meus momentos mais marcantes: futebol, pipa, bola de
gude, etc. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe dona de casa. Ela, antes de se casar,
era uma operária da indústria xtil. A infância foi marcada por uma escolarização no
contexto da ditadura militar (1974-1986) onde a disciplina, o culto à pátria e os
símbolos nacionais eram presentes cotidianamente dentro da escola, sem falar na
presença da pedagogia tradicional e o reforço de uma cultura branca e eurocêntrica
perpassado por estereótipos pejorativos contra negros e indígenas. Estes estereótipos
foram presentes em minha vida até o início dos anos de 1990.
Em 1980 meu pai sofreu um acidente com seu caminhão no município de
Seropédica e faleceu. Daquela data em diante, minha mãe passou a viver e
necessita trabalhar fora como empregada doméstica. Assim, dos 12 anos de idade até
os 16, passava a maioria das horas do dia estudando, cuidando da casa e brincando na
rua.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
23
Em 1984 mudei de escola e conheci um professor no primeiro ano do ensino
médio que lecionava a disciplina de Educação Moral e Cívica. Entretanto, ele não
seguia o programa estabelecido pela ditadura militar. Era marxista e mobilizava os
jovens adolescentes, como eu, a debaterem sobre os problemas sociais brasileiros,
sobre a política e as desigualdades sociais. Essa influência pedagógica também foi
reforçada por alguns primos da parte da família de minha mãe, pois esses eram
participantes de organizações clandestinas de esquerda. Encantado com as ideias
deles, iniciei muitas leituras, muito além dos livros didáticos e, por conta disso, optei,
em 1985, por fazer o único curso profissionalizante disponível que mais se aproximava
dos debates políticos e sociais que me interessavam: o curso médio normal de
formação de professores. Naquela época não tinha a menor noção e consciência de
que minha vida estava traçada para sempre nesta profissão e na construção de minha
identidade.
Isto porque, também em 1985, depois que este professor saiu da escola,
procurei a sede do Partido dos Trabalhadores (PT) de Nova Iguaçu, pois o mesmo era
militante do PT e me sugeriu procurar os militantes de Nova Iguaçu. Passei alguns
meses procurando a sede do PT e após 6 meses a encontrei. Foi a partir desse
encontro que passei a ler muito mais do que antes, pois, além dos livros teóricos sobre
marxismo, ciência política, etc., li também muitos jornais da esquerda, documentos
internos de correntes políticas dentro do PT e participei de muitos eventos e
seminários. Portanto, foi um mergulho em um outro mundo enquanto cursava a escola
normal, até 1986.
Quando termino o ensino médio logo em seguida começo a trabalhar no setor
do comércio em Nova Iguaçu. Esta experiência, não como escolha voluntária, me
direcionou para uma participação além do PT, ou seja, o movimento sindical e a
organização das lutas e reivindicações dos comerciários de Nova Iguaçu. A partir dessa
militância, em 1988 fui eleito presidente do sindicato dos Comerciários de Nova
Iguaçu, Nilópolis, Paracambi e Itaguaí , seguindo neste cargo até 1991.
11
11
O município de Itaguaí nessa época englobava o distrito de Seropédica.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
24
Enfim, todo este período representou alguns dos momentos mais intensos de
meu percurso formativo, pois ainda reverberam até hoje as marcas do marxismo
crítico, do posicionamento político de esquerda e da prática pedagógica do diálogo
permanente com setores organizados ou não das classes populares e trabalhadoras,
visto que sempre tive como horizonte pedagógico e político uma perspectiva de
transformação das relações de poder e opressão capitalista.
Encerrada essa fase de sindicalista, retomo um desejado projeto: o de entrar
para a vida universitária. Em 1992, depois de passar no vestibular, ingresso no curso de
Ciências Sociais na UFRJ, entretanto, ao mesmo tempo, por conta de uma demanda
coletiva, me apresento como candidato a vereador pelo PT em Nova Iguaçu. Quis o
destino e graças às energias dos meus orixás de cabeça, eu não fui eleito, pois o
resultado mudou completamente minha trajetória de estudo e profissional.
A partir de 1993 retorno ao trabalho sindical, porém numa outra função,
agora como funcionário do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de
Janeiro (SEPE-RJ). Mas, era uma função provisória, que o meu foco era os estudos.
Neste momento, retomei os contatos com amigos italianos que conheci nos anos de
1987 a 1991 que militavam junto a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Eles, empenhados
junto aos meus desejos de estudo, me informaram da possibilidade de estudar na
Itália. Com esta informação, ousei tentar uma seleção na Universidade Degli Studi di
Roma. Não se tratava de uma ousadia subjetiva, mas de uma tentativa por ter a
possibilidade de ajuda de famílias italianas, pois jamais teria condições econômicas
para tal empreendimento. Assim, após ter passado na seleção para uma universidade
pública italiana, inicio meus estudos em Sociologia em setembro de 1993 até abril de
1998.
Viagem a Europa e a descoberta da ancestralidade
Como afirmei anteriormente, minha militância se iniciou em 1985 e foi
contínua até 1993. Em de julho de 1993 eu parti para Roma para começar meus
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
25
estudos universitários na faculdade de sociologia. Foi uma decisão difícil e radical,
que passaria no mínimo quatro anos de vida em outro país, com uma cultura diversa e,
no decorrer dos estudos, aprenderia outra língua. Meu ritmo de vida foi
completamente alterado. não era o militante “24 horas” e nem uma pessoa que era
identificada somente como um dirigente do PT, sindicalista e marxista.
Saí do Brasil com a perspectiva de não militar durante um bom tempo e
dedicar minhas energias a um projeto de estudo. Somente este fato era uma
mudança radical e, somado à vivência num cotidiano desconhecido, acabou por se
tornar ainda mais revolucionária para “meu pequeno grande mundo” que aprendi até
aquela época.
Os primeiros tempos foram difíceis porque, além das saudades do Brasil,
deveria me habituar aos novos padrões de vida europeus. Quando se vive em outro
país e numa perspectiva de integração mínima a ele, começa-se logo a perceber as
diferenças com o seu país de origem que, no meu caso, é o Brasil. O contato com as
pessoas na faculdade de Roma e na vizinhança se dava no sentido de que elas
começavam a me conhecer, querendo saber sobre minha vida no Brasil, querendo
saber como era meu país, a cultura, o futebol, as pessoas, a qualidade de vida, etc.
Porém, por mais que falasse do Brasil, sentia-me uma pessoa sem história, ou seja, no
contato com essas pessoas não existia um passado, era preciso começar do zero,
construir tudo, fazer histórias em patamares jamais feitos por mim neste novo
território desconhecido, com uma língua que não dominava completamente e onde o
cheiro era diferente e as intuições incompreensíveis.
Mas as pessoas eram sensíveis e compreendiam minhas dificuldades.
Contudo, não paravam de perguntar sobre o Brasil, como era, qual a sua história, como
será seu futuro, etc. Respondia na medida do possível e então comecei a perceber que
não sabia responder adequadamente sobre a história do Brasil e suas culturas. Além de
não saber responder sobre certos assuntos, achava complicado explicar determinadas
coisas “bem brasileiras”, sem vivenciá-las de perto.
Um exemplo disto foi um almoço organizado por mim e alguns colegas da
faculdade, quando me encontrava a seis meses na Itália. Neste, preparamos uma
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
26
feijoada, prato “típico brasiliano”. Num certo momento, alguém me perguntou qual era
a origem da feijoada. Por sorte, estava presente outro brasileiro que respondeu
imediatamente, sem esperar que eu desse a resposta. Digo sorte porque, até aquele
dia, eu não sabia a origem da feijoada como prato típico brasileiro. Descobri naquele
momento que os senhores de escravos (na versão desse colega) pegavam os restos de
carne e osso e jogavam pela janela da casa grande e, logo depois, os negros
escravizados pegavam esses restos e, na senzala, misturavam com o feijão, nascendo
assim a feijoada.
Foi um momento de crise para mim, pois comecei a me perguntar como eu,
um militante de esquerda, do PT e marxista não sabia a origem da feijoada. Esses e
outros momentos começaram a me fazer questionar se realmente conhecia meu país o
suficiente para contribuir num processo de transformação social. Além dessas
dificuldades identitárias, comecei a frequentar, no final de 1993, as aulas de
antropologia. Nestas aulas, encontrei um professor chamado Massimo Canevacci, cujo
olhar sobre o Brasil era muito diferente do meu. O que mais me impressionou nele era
a originalidade em ver coisas estranhas” nas coisas mais naturais para mim da cultura
brasileira. Nestas aulas, torcia para que ele não me perguntasse nada sobre o Brasil,
porque não me sentia seguro nas respostas sobre cultura brasileira. Enfim, percebi que
era um ignorante da “minha” cultura. Existia um Brasil que sempre esteve debaixo de
meu nariz, mas que eu não o via. Isto me obrigou e me incentivou a conhecer e
estudar determinados elementos da cultura “tupiniquim”.
Outro evento, em 1994, também contribuiu para esse despertar para a cultura
brasileira. Era o ano de eleições quando, no primeiro semestre, Lula e o PT estavam
cotados como certos para vencerem as eleições presidenciais. Mas a conjuntura
mudou, veio o plano real e Fernando Henrique Cardoso venceu logo no primeiro turno,
com mais de 50% dos votos. Para mim, junto a toda militância de esquerda no Brasil,
esse evento foi um momento de paralisia, pois as esperanças de mudanças escaparam
de nossas mãos. Não conseguia compreender aquela derrota, a porque estava muito
distante do Brasil. Esta derrota eleitoral foi um marco político em minha vida. A
angústia de saber por que o imaginário popular muda radicalmente em seis meses me
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
27
mobilizou ainda mais no sentido de pesquisar a cultura brasileira”, que não fazia parte
das análises da esquerda em minha época, mesmo tendo o marxismo como método de
pensamento e ação.
Naquele momento comecei a estudar em antropologia a força social dos
símbolos, da religião, do sincretismo. Combinado com a necessidade de começar a
pensar num trabalho de final de curso, comecei a ler tudo sobre Brasil, o que se
encontrava ao meu alcance na Itália. Influenciado por professores, comecei a me
indagar sobre o poder simbólico na cultura brasileira e como ela influenciava as
disputas políticas nacionais pelo poder, indagações essas bem abstratas.
Ao contrário da esquerda europeia, sob influência da queda do socialismo
real, eu não me preocupava em rever o marxismo, ou pelo menos a forma como o
interpretava, ou seja, como um dos métodos de análise da realidade. Estava
preocupado em como seria minha militância quando voltasse ao Brasil. Procurei então
me aprofundar nas questões que mexiam com minhas utopias: a prática socialista no
cotidiano, a complexidade da realidade para lutar por um mundo melhor, a diferença
entre as culturas.
Iniciei, em 1995, os meus estudos sobre sincretismo, religiosidade e o poder
dos símbolos. Na época, não eram claros os questionamentos, mas sempre me
perguntava: como era possível fazer com que as pessoas desejassem um mundo
melhor e daí decidissem lutar por ele? Acreditei que o caráter místico e enigmático
dessas perguntas me conduzia a refletir sobre a religiosidade, pois essa era, para mim,
um mistério que dominava a cabeça das pessoas; então, comecei a identificar muitas
afinidades com nossos desejos utópicos de transformação social. Combinando isto com
minhas leituras sobre Brasil e suas culturas, me dediquei a ler mais sobre candomblé e
umbanda, que desconhecia completamente.
Nesse processo de autoconhecimento, em junho de 1995, chegava em minhas
mãos um texto intitulado “Candomblé, Exclusão e Luta” de Jorge Carneiro (1995), um
militante do PT que conhecia desde 1990. Este texto cintilou as minhas intuições e caiu
perfeitamente como um tema que buscava para um trabalho de final de curso de
graduação na Itália. Neste texto, Jorge afirmava que o candomblé também contribuía
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
28
para a luta socialista, pois “Exú era o princípio que assegurava que é na contradição
que a ordem era estabelecida”.
À primeira vista, o texto me colocava diante de grandes perspectivas na
temática, mas, ao mesmo tempo, grandes dúvidas: como era possível ser do
candomblé e ser petista ao mesmo tempo? Como era possível conciliar magia e
revolução? Entrar em transe e racionalizar um projeto político? Ou seja, de início via
mais contradições que elementos comuns entre ser candomblecista e ser de esquerda.
Porém, logo depois percebi a lógica de meus raciocínios: estava de certa
forma contaminado pelo olhar eurocêntrico, pois fui despertado por amigos e
professores que era uma tolice pensar a partir de categorias supostamente objetivas,
que, para Jorge e outros militantes que descobri que existiam no Rio de Janeiro na
mesma condição, tinha um sentido profundo ser de esquerda, do PT e pertencer ao
candomblé. Percebi também que, através deste estudo, num viés antropológico,
poderia responder parcialmente minhas indagações e descobrir novas dimensões
utópicas na luta política.
Entretanto, este processo de descoberta de elementos de “minha” cultura não
foi somente racional. No aspecto emocional fiquei muito abalado por estar longe de
meus amigos e minha família. A saudade apertou, mas a maior saudade foi de meu pai
(falecido em 1980, quando tinha doze anos). Esta saudade cortou a pele e doeu muito,
pois aos doze anos eu não chorei seu falecimento e, quando as memórias de infância
inundaram minha mente devido à solidão profunda em um território distante, o choro
copiosamente foi diário por longos dias e longas semanas. O rosto do meu pai surgia
como espírito presente em cada momento de estudo e de reflexão sobre a vida, e esse
rosto era negro, como negro eram os africanos escravizados no Brasil, que começava a
identificar nas páginas de vários livros que devorava todos os dias. Assim,
acompanhando meus estudos sobre cultura brasileira, eu também descobri que sou
descendente de negros africanos. Nunca em minha vida, até aquele momento, eu
reconhecia que meu pai era negro, e esta condição emocional e racional me levou a
incorporar esta minha ascendência negra e a ascendência indígena de minha mãe. Daí
tudo se combinou, levando-me a tomar novos rumos na militância política,
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
29
profissional, de pesquisa e afetiva. Foi um período doloroso, mas também muito rico,
assim como o início de minha pesquisa, que me levou a outras reflexões teóricas além
do marxismo crítico.
O retorno ao Brasil: militância negra e a docência
Antes de voltar definitivamente ao Brasil, estive no Rio de Janeiro de
dezembro de 1996 a junho de 1997 realizando uma pesquisa de campo para meu
trabalho de monografia. Este período foi de intensa interlocução com o mundo do
candomblé. Levado pelos sujeitos de minha pesquisa, frequentei dezenas de rituais e
cerimônias públicas e privadas de terreiros de candomblé e umbanda. Passei a
conhecer um Brasil ignorado por mim até aquela época. E, na primeira festa de
candomblé que frequentei, em 1996, presenciei uma cena que muitos marxistas,
racionalistas europeus e ateus talvez não tivessem como explicar racionalmente.
Numa cerimônia do terreiro Axé Opó Afonjá , localizada no município de São
12
João de Meriti (Baixada Fluminense), presenciei a incorporação de Orixás em seus
filhos de santo, danças e canções em yorubá . A certa hora da madrugada, uma
13
senhora de mais de 80 anos de idade, que chegou ao terreiro portando uma bengala,
pois mal caminhava sozinha, incorporou o Orixá Obaluaê , e a partir da incorporação
14
seu corpo dançou até o amanhecer, não demostrando nenhuma dificuldade no
caminhar e na dança. Parecia que seus problemas de locomoção tinham desaparecido.
Minha primeira reação foi de espanto e, ao ser indagado por um amigo, eu afirmei:
“não tenho condições racionais de explicar isso, ou melhor, isso não tem explicação por
tudo que aprendi em minha vida”. De fato, aquele momento foi inexplicável para
mentes formadas por uma concepção iluminista, moderna e cristã. A dimensão
cognitiva racionalista não tem nenhuma capacidade de explicar este evento, fora de
14
Nome geralmente dado a Sànpònná, orixá da varíola e das doenças contagiosas. Obaluaê é aquele que
pune os malfeitores e insolentes, enviando-lhes a varíola.
13
Língua falada e cantada nas comunidades de terreiros em rituais públicos e privados.
12
Denominação do espaço comunitário que foi o primeiro terreiro de candomblé do Rio de Janeiro e que
veio a ser chamado de Axé Opô Afonjá, cujo significado em português é: Casa da Força sustentada por
Xangô.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
30
sua própria lógica racional. outras dimensões da vida humana que não são
explicáveis pela cultura eurocêntrica.
Depois deste evento, passei a frequentar muitos terreiros de candomblé e
umbanda e observando muitos outros eventos parecidos. Mas, após meu retorno
definitivo ao Brasil, em abril de 1998, passei a desenvolver minha militância política
junto ao Movimento Negro no Movimento Negro Unificado (MNU) e no setorial de
Negros e Negras do PT. Desliguei-me do partido em 2002; no MNU, militei de 1998
até 2003.
No mesmo período, ingresso através de concurso e seleção pública em mais
dois espaços: como professor do Ensino Médio da Rede Pública de ensino do Rio de
Janeiro e no mestrado em Ciências Sociais na UERJ, ambos em 1999.
Ao final do mestrado, em 2002, defendi a Dissertação “Caçadores de Utopia:
Religiosidade afro-brasileira e militância petista no Rio de Janeiro”, uma continuação de
minhas pesquisas iniciadas em 1996. Este trabalho significava um aprofundamento das
discussões teóricas que desenvolvi na graduação, tendo por referência as valiosas
contribuições de Michael Agier (2001), Stuart Hall (1997) e Marshall Sahlins (1997).
Estes, nas então recentes análises antropológicas sobre cultura e identidades,
rediscutiam as implicações teóricas contemporâneas desses conceitos.
No entanto, foi na experiência do magistério, a partir de 1999, aliada às
minhas preocupações em relação às temáticas africanas e afro-brasileiras, que me
motivaram e construíram meu percurso acadêmico. Do ponto de vista pedagógico, o
exercício da docência na educação básica se revelou fundamental para a compreensão
de processos educacionais, relativos à diferença étnico-racial e à militância
educacional.
Sob diversos aspectos, não somente restritos à relação pedagógica em sala de
aula, como também à possibilidade de participar e produzir seminários, debates e
projetos inter/multidisciplinares sobre a questão racial no Brasil, aprofundei meus
estudos sobre as relações entre esta temática e as práticas de ensino, tendo como
objeto de estudo as culturas e Histórias afro-brasileiras. Esta trajetória levou-me
também ao encontro das discussões realizadas no interior do movimento negro.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
31
Simultaneamente a estas reflexões, realizávamos eventos nas escolas sobre a
questão racial (entre 1999 e 2003), tentando mobilizar reflexões antirracistas entre
jovens. Entretanto, a partir de 2003 e 2004, obtivemos uma grande vitória em nível
nacional: a promulgação da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino
da História e Cultura afro-brasileira na educação, alterando a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional - LDBEN/ 96. Em 2004, a Lei foi regulamentada pelo Conselho
Nacional de Educação CNE, instituindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-raciais e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Essas diretrizes foram fundamentadas a partir do Parecer do Conselho Pleno
do CNE, aprovado por unanimidade, em março de 2004 .
15
A força simbólica desta legislação foi caracterizada por Pereira (2006) como
um “raio em céu azul”, pois obteve a força de mobilização de vários militantes,
professores e intelectuais no mundo acadêmico, inclusive para nós que, atuando nas
escolas desde antes da Lei, propiciou uma intervenção mais aguerrida na exigência de
cumprimento da lei, possibilitando uma maior repercussão dos debates sobre o
racismo, em espaços jamais penetrados pela militância negra.
Foram muitas as iniciativas por nós realizadas e, neste processo, retomo em
2005, a intenção de continuar os estudos em nível de doutorado, agora refletindo
sobre a implementação da lei 10.639/03 na educação pública. Assim, em mais um
processo de seleção, ingresso no doutorado em educação da PUC-Rio, tendo como
reflexão um pré-projeto intitulado “História da África e dos africanos na escola: mais
que um desafio, uma ferida aberta na formação docente”. Este trazia como tema
central pesquisar as possíveis limitações e desafios da formação docente para a
implementação da Lei 10.639/03, e suas implicações e dilemas no campo do currículo,
das práticas pedagógicas e dos saberes docentes sobre as questões das relações
étnico-raciais em educação. Entretanto, a partir de 2007, o projeto se tornou mais
específico e mais focado, em função do aprofundamento das questões relativas à
Interculturalidade e às diferenças étnico-raciais no Grupo de Pesquisa em Estudos
15
Foi nesse ano de 2004, que aprofundei meus estudos sobre História da África e dos negros no Brasil,
num curso de pós-graduação lato-sensu, promovido pela Universidade Cândido Mendes.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
32
sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s) (GECEC) da PUC Rio, coordenado pela Profª.
Drª. Vera Maria Candau.
A entrada no doutorado foi um rito de passagem para expressar mais uma
grande mudança em minha vida, semelhante ao que vivenciei em 1985, 1993 e 1998.
Pois, foi neste espaço que conheci uma perspectiva teórica denominada
Modernidade/Colonialidade que, com o aprofundamento de leituras e reflexões
teóricas, mobilizavam em mim uma conexão sobre a opção decolonial com as
formulações antes experienciadas com o marxismo crítico e os debates teóricos
realizados dentro do Movimento Negro no final do século XX.
A descoberta da colonialidade e um retorno a Paulo Freire
Em 2006, entrei em contato pela primeira vez com as formulações de um
grupo de pesquisadores denominados “Modernidade/Colonialidade” (MC). E a
primeira afirmação que me chamou atenção foi a de Catherine Walsh (2005), citando
um pensador árabe-islâmico Abdelkebir Khatibi: “Descolonizar-se, esta é a
possibilidade do pensamento” (p. 22).
À época não era claro para mim o significado profundo desta ideia da autora e dos
autores que veremos mais adiante. Porém, no contexto de reflexão sobre a luta
antirracista em educação, fui percebendo que as questões levantadas por estes autores
do grupo MC faziam referência às possibilidades de um pensamento crítico a partir dos
subalternizados pela modernidade capitalista e, na esteira dessa perspectiva, a
tentativa de construção de um projeto teórico voltado para o repensamento crítico e
transdisciplinar, caracterizando-se também como força política para se contrapor às
tendências acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica de construção do
conhecimento histórico e social.
Mergulhando nesta literatura, fui percebendo algumas afinidades com a questão
da luta antirracista em educação, que questiona os padrões eurocêntricos de
interpretação da realidade brasileira, pois uma das principais proposições
epistemológicas do grupo MC é o questionamento da geopolítica do conhecimento,
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
33
entendida como a estratégia modular da modernidade. Esta estratégia, de um lado,
afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais
e, de outro, invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem outros” conhecimentos
e Histórias. Para a perspectiva teórica decolonial foi este o processo que constituiu a
modernidade, cujas raízes se encontram na colonialidade. Implícita nesta ideia está o
fato de que a colonialidade é constitutiva da modernidade, e esta não pode ser
entendida sem levar em conta os nexos com a herança colonial e as diferenças étnicas
que o poder moderno/colonial produziu.
Essa perspectiva teórica me aproximou de um conceito denominado de
Pedagogias Decoloniais e da necessidade de revisitar os escritos de Paulo Freire,
especialmente em um de seus livros, “Aprendendo com a Própria história”.
Pedagogias Decoloniais fazem referência a uma luta política e epistêmica
contra a colonialidade. Este outro conceito significa um padrão de poder que surge
como resultado do colonialismo moderno europeu, porém, não se limita “a uma
relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como o trabalho,
o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através
do mercado capitalista mundial e da ideia de raça” (MALDONADO-TORRES, 2007, p.
131). A colonialidade sobrevive até hoje “nos manuais de aprendizagem, nos critérios
para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos,
nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência
moderna” (idem).
Como face da mesma moeda, a Modernidade foi uma invenção das classes
dominantes europeias a partir do contato com a América. A Modernidade não foi fruto
de uma autoemancipação interna europeia que saiu de uma imaturidade por um
esforço autóctone da razão que proporcionou à humanidade um pretenso novo
desenvolvimento humano. Foi necessário, segundo Dussel (2009), afirmar uma razão
universal a partir da Europa e estabelecer uma conquista epistêmica na qual o
etnocentrismo europeu representou o único que pôde pretender uma identificação
com a “universalidade-mundialidade”. A modernidade foi inventada a partir de uma
violência colonial. Em outros termos, conquistada a América, as classes dominantes
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
34
europeias inventaram que somente sua razão era universal, negando a razão do outro
não europeu, daí, constituindo a Modernidade/Colonialidade.
Se a colonialidade operou a inferioridade de grupos humanos não europeus
do ponto de vista da produção da divisão racial do trabalho, do salário, da produção
cultural e dos conhecimentos, foi necessário operar também a negação de faculdades
cognitivas nos sujeitos racializados. Neste sentido, o racismo epistêmico não admite
nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de pensamento crítico,
científico ou pedagógico. Isto é, a operação teórica que, por meio da tradição de
pensamento e pensadores ocidentais, privilegiou a afirmação de estes serem os únicos
legítimos para a produção de conhecimentos e como os únicos com capacidade de
acesso à universalidade e à verdade.
Apesar da colonialidade, desde quando os europeus chegaram ao Brasil,
dominando povos nativos e escravizando povos africanos, esses nunca se resignaram
ou se deixaram dominar completamente. Em meio às ruínas da colonização e da
colonialidade, povos indígenas e negros pensaram a partir dessas ruínas, das
experiências e das margens criadas pela colonialidade. Reconstruíram outras
subjetividades, outros conhecimentos e se constituíram como diferenças coloniais.
Foi uma reconstrução que representou também dimensões pedagógicas e de
pensamento, pois foi e é vivida a partir de experiências próprias em meio ao terror da
colonialidade, foi pensada a partir de visões de mundo não eurocêntricas e foi capaz de
produzir novos conhecimentos e outra compreensão simbólica do mundo, que, por sua
vez, questiona a hegemonia da Modernidade/Colonialidade (WALSH, 2005).
Portanto, quando emerge esse novo conceito de pedagogias decoloniais, as
afinidades entre este e as histórias e legados de povos africanos escravizados são
muito fortes. Pois as pedagogias decoloniais, enquanto projeto político (a opção
decolonial), faz expressar o colonialismo que construiu a desumanização dirigida aos
subalternizados pela modernidade europeia e pensa a partir da ideia de uma prática
política contraposta a geopolítica hegemônica monocultural e monoracional, pois se
trata de visibilizar, enfrentar e transformar as estruturas e instituições que têm como
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
35
horizonte de suas práticas e relações sociais a lógica epistêmica ocidental, a
racialização do mundo e a manutenção da colonialidade.
Segundo Walsh (2007), a construção teórica da noção de pedagogias
decoloniais, ou seja, uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva -
portanto não somente denunciativa - onde o termo insurgir representa a criação e a
construção de novas condições sociais, políticas e culturais e de pensamento, se
projeta muito além dos processos de ensino e de transmissão de saber, é uma
pedagogia concebida como política cultural, envolvendo não apenas os espaços
educativos formais, mas também as organizações dos movimentos sociais. A mesma
autora afirma que esta perspectiva ainda es em processo de construção nos sistemas
educativos, mas cita as formulações e práticas educacionais de Paulo Freire (1987),
além das teorizações de Frantz Fanon (1983 e 2005) sobre a consciência do oprimido e
a necessidade de construção da humanização dos povos subalternizados, como
referências fundamentais.
No diálogo com a colonialidade e a opção decolonial em educação, fui
mobilizado a reler Paulo Freire e, imediatamente, tendo em minhas mãos dois livros:
Aprendendo com a própria história” e “Pedagogia do Oprimido”. E foi o primeiro livro
que me mobilizou a essa narrativa e análise deste texto que ora escrevo.
Mas, antes de entrar na reflexão final sobre a opção decolonial, quero destacar
as últimas fases do meu percurso formativo, ligadas à minha conclusão de doutorado, a
iniciação no candomblé e uma nova jornada político-pedagógica profissional.
Em abril de 2010 defendi a tese “Histórias da África e dos africanos na escola''.
As perspectivas para a formação dos professores de História quando a diferença se
torna obrigatoriedade curricular, tendo como reflexão teórica os debates em torno
dos conceitos de Modernidade/Colonialidade, racismo epistêmico, diferença colonial,
pedagogias decoloniais, dentre outras.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
36
Alguns meses depois, dois outros eventos vão contribuir para mais um giro
epistêmico e político no meu percurso: minha iniciação ao candomblé como Ogã de
Ogum e meu ingresso, através de concurso público, na UFRRJ.
16
Alguns meses depois, dois outros eventos vão contribuir para mais um giro
epistêmico e político no meu percurso: minha iniciação ao candomblé como Ogã de
Ogum e meu ingresso, através de concurso público, na UFRRJ.
17
Desde 1996 frequentei centenas de rituais de candomblé e umbanda.
Conversas com Yalorixás, Babalorixás e outros sujeitos iniciados, me fizeram mergulhar
nessas cosmovisões e cosmopercepções de mundo, entretanto, sempre com um olhar
e atuação de fora, sem um compromisso visceral. Porém, em julho de 2010, numa festa
pública, o orixá Ogum me ofereceu sua espada, e isso representava que, daquele dia
em diante, eu seria um de seus pais na função de Ogã. Deste dia em diante não era
mais um sujeito de fora, pois meus compromissos existenciais caminhariam junto a
Ogum e meus orixás de cabeça.
Neste mesmo mês, presto concurso para a UFRRJ com o objetivo de trabalhar
na formação docente em ciências sociais. Com a aprovação, desde então passo a
exercer a docência num outro lugar profissional, não mais na educação básica, mas na
formação de futuros docentes. Esse lugar não era desconhecido por mim, pois exerci a
docência por longos 12 anos e, naquele momento, deveria utilizar esta experiência
anterior para dialogar com as futuras gerações.
Portanto, o ano de 2010 se constituiu como mais um rito de passagem, mais um
giro epistêmico e político pois, em minha identidade, são acrescidas novos
compromissos e novas implicações que vão se entrecruzar com o acúmulo experencial
anterior.
17
Ogã é um termo genérico para identificar os iniciados homens no candomblé que exercem várias
funções. Ele é escolhido por um Orixá. Segundo Verger (2018), os ogãs ajudam materialmente o terreiro
e contribuem para protegê-lo, além de formarem uma sociedade civil de ajuda mútua.
16
Ogã é um termo genérico para identificar os iniciados homens no candomblé que exercem várias
funções. Ele é escolhido por um Orixá. Segundo Verger (2018), os ogãs ajudam materialmente o terreiro
e contribuem para protegê-lo, além de formarem uma sociedade civil de ajuda mútua.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
37
Rememorar a própria história como um exercício decolonial
Mignolo (2003) afirma que precisamos fazer emergir a diferença colonial, ou
seja, pensar a partir das ruínas, das margens criadas pela colonialidade do poder, das
experiências e histórias subalternizadas para se contrapor a racionalidade de violência
da modernidade-colonialidade. Não se trata aqui de resgate de autenticidades
identitárias, mas sim de uma operação conceitual a partir de um lócus específico de
enunciação, marcada pelas várias opressões. A rememoração e a reescrita de histórias
locais e da própria história são operações que não são simplesmente pessoais, mas de
um tempo-contexto que fizemos parte (FREIRE e GUIMARÃES, 1987).
O diálogo que podemos ter com algumas formulações de Paulo Freire e meu
percurso formativo se encontra em algumas situações que este relata quando estava
na prisão e no exílio. Essas experiências o fizeram refletir a reescrita da própria história,
a rememoração das próprias experiências como pedagogia, a reflexão sobre a solidão
que midiatiza a presença do outro, a distância que nos faz transplantar e reeducar
quando saímos de um contexto original que nos encontrávamos e, uma das coisas mais
importantes:
(...) confesso que aprendi no Chile, quer dizer, não que o Chile me
tenha feito um homem completamente diferente do que eu era, mas
o que fez comigo foi exatamente aprofundar em mim uma
radicalidade já anunciada (FREIRE e GUIMARÃES, 1987, p 127).
Diferente de Paulo Freire, não vivenciei a prisão e nem o exílio, mas suas
reflexões borbulham nas minhas rememorações. Rememorar minha solidão emocional
profunda fora do Brasil foi capaz de provocar um sofrimento que me fez resgatar minha
ancestralidade, e esta, mobilizar uma imaginação como “forma antecipada de
conhecer (FREIRE e GUIMARÃES, 1987, p 52), de fazer parte de um conhecimento. Ou
ainda, como diz Freire quando a memória funciona como uma espécie de labirinto: a
gente entra por um caminho, descobre outros e outros” (p 58).
Minha identificação ancestral não representou uma construção de vítima de
preconceito e racismo, pois meu fenótipo sempre me colocou em situações de
privilégios. O que retrato aqui é uma nova consciência de enunciação subalterna que
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
38
começa com a consciência de classe e salta para uma consciência racial, que não pode
ignorar uma profunda ancestralidade negra. E aqui não interessa o fenótipo dominante
em mim, mas a necessidade de uma radicalidade anunciada pela ancestralidade. Ou
como diz alguns, um caminho sem volta na luta antirracista.
A distância me reeducou, me fez, como diz Freire, aprimorar os instrumentos
de compressão e análise da realidade” (p. 94). A presença do outro na solidão, o outro
no sentido mais radical do termo, me permitiu conversar com a ancestralidade e
comigo mesmo, na base da imaginação e que me possibilitou um reencontro.
o grande interesse em se rememorarem momentos passados é o de
vê-los como recursos que a gente, como leitor, como pessoa, pode
usar, com o intuito de melhor entender as ideias e melhor desocultar
o contexto humano, social e histórico em que o indivíduo que as
escreveu estava inserido (FREIRE e GUIMARÃES, 1987, p. 79).
No momento em que inicio o exercício da docência, e sou desafiado por
estudantes a como proceder, tive que mobilizar uma série de memórias de vida. A
primeira é que um grupo de jovens inseridos em uma instituição, que tem histórias
próprias, identidades variadas, a partir de minhas experiências, percebia muitas
semelhanças em relação ao que vivenciei como sindicalista. Pois, o trabalho político no
movimento social, exige uma didática própria, procedimentos próprios e, por vezes,
construções e formulações inovadoras, pois a realidade sempre nos coloca situações
inéditas aos quais devemos responder e que, portanto, nos exige produzir
conhecimentos.
Outra exigência, no exercício da docência, foi a necessidade de um trato
pedagógico diante do racismo e das discriminações de todos os tipos. Desde 1999, a
o momento em que escrevo este texto, onde passei pela Educação Básica (ensino
médio e anos iniciais) até a educação superior (graduação e pós-graduação), a
presença do racismo e várias opressões estavam e estão presentes. Portanto, meu
encontro com a ancestralidade não me permitiu, e não me permite, um não
tratamento pedagógico permanente sobre o racismo e o antirracismo. E as marcas
dessa postura pedagógica sempre se alimentaram do mergulho militante que fiz nos
movimentos negros. Estas marcas foram se construindo e reconstruindo durante os
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
39
processos didáticos e iniciáticos no candomblé que vivenciei ou fui desafiado a
vivenciar.
Enfim, alguns momentos de meu percurso formativo, rememorado e
reimaginado, me fazem dialogar com Paulo Freire, quando ele descreve e analisa suas
experiências de prisão e exílio. A experiência do pós-golpe civil-militar de 1964, o
mobilizou a perceber a “politicidade da Educação” (idem, p.15). Quando identifico esta
análise, imediatamente a memória estala e me faz perceber que minha experiência de
militância foi um dos elementos cruciais na mobilização do exercício de minha
docência a partir de 1999, pois não foi e não é possível não pensar a didática como um
ato político.
Paulo Freire ainda analisa, a partir de vários momentos rememorados
enquanto estava preso, que “há uma pedagogia no comportamento, na maneira de
interpretar os fatos” (p.60). Assim, no meu percurso formativo, desde a primeira vez
que entrei em sala de aula, não conseguia me perceber agindo como um mero
professor de sociologia sem posicionamento político e sem um lugar nas classificações
raciais brasileiras.
Em uma publicação recente Oliveira (2018) afirma que a descoberta da
colonialidade foi fundamental para outra compreensão de que as formulações da
opção decolonial:
(...) associadas às outras que construíram minha trajetória política e
acadêmica, encaminharam-me para a compreensão de que não é
possível um caminho de emancipação e libertação somente em
restritos espaços de militância partidária, e nem mesmo somente em
movimentos sociais. Hoje, mais do que nunca, faz-se necessário um
diálogo entre esses espaços com processos e dinâmicas societárias
mais amplas. Partidos de esquerda e movimentos sociais precisam
aprender com outras lógicas de resistência, negociação e organização
que foram construídas pela diferença colonial. muito que
aprender, construir e socializar. E isto vale também para o mundo
acadêmico, pois a construção do conhecimento não se restringe aos
espaços legitimados pela ordem hegemônica (OLIVEIRA, 2018, p.61).
E mais, pensar a partir da opção decolonial, assim como fez Paulo Freire, é
pensar a partir das margens da colonialidade, das próprias histórias que nos
perpassam, que nos implicam em lógicas epistêmicas e societárias de opressão e
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
40
dominação política. O lugar que a gente vive é o lugar onde pensamos (sou, onde
penso). Não vivemos sob uma lógica abstrata de existência a partir simplesmente da
lógica do pensamento (penso, logo existo).
Nossas próprias histórias, interseccionadas com nossos lugares de existência,
de opressão, de privilégios e de vontades políticas, produzem conhecimentos capazes
de mobilizar ações pedagógicas. Pois, como afirma Freire, não educação sem
intencionalidade, e esta, é repleta de implicações, sejam elas excludentes ou
emancipadoras. Nossos percursos formativos, embriagados pelas nossas opções
políticas, formam também nossas identidades docentes e os conceitos que nos guiam.
Referências
AGIER, Michael. Distúrbios identitários em tempos de globalização. In: Mana. nº. 7/2, 2001, p.
7-33.
CARNEIRO, Jorge. Candomblé, exclusão e luta. São Paulo: Jornal Em Tempo, 1995.
DUSSEL, Enrique. Meditações anti-cartesianas sobre a origem do anti-discurso filosófico da
modernidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula. (Orgs.).
Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 283-335.
FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Ed. Fator, 1983.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo e GUIMARÃES, Sergio. Aprendendo com a própria história. Rio de Janeiro: Ed.
Paz e Terra, 1987.
HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un
concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago. y GROSFOGUEL, Ramon. (Orgs.) El giro decolonial.
Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá:
Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores,
2007.
MIGNOLO, Walter. Histórias Globais / projetos Locais. Colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
41
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Educação e militância decolonial. Rio de Janeiro: Ed. Selo Novo,
2018.
PEREIRA, Amauri Mendes. Para além do racismo e do anti-racismo: a produção de uma
cultura de consciência negra na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado.
PPCIS/UERJ, 2006.
SAHLINS, Marshall. O Pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: por que a cultura
não é um objeto em via de extinção. In: Mana. nº. 3/2, 1997, p. 41-150.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador:
Fundação Pierre Verger, 2018.
WALSH, Catherine. Introducion - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH,
Catherine. Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito:
Ediciones Abya-yala, 2005.
WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder. Un pensamiento y
posicionamiento otro’ desde la diferencia colonial”. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago. y
GROSFOGUEL, Ramon. (Orgs.) El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica
más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad
Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007.
Data do envio: 09/09/2021
Data do aceite: 09/11/2021
ISSN 1807-6211 [Fevereiro 2022] Nº 38
42