INTELIGÊNCIA BANDIDA – ESBOÇO DE UMA EPISTEMOLOGIA DAS FAVELAS EM
DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E VIGOTSKI

BANDIT INTELLIGENCE – SKETCH OF AN EPISTEMOLOGY OF THE SLAMS IN
DIALOGUE WITH PAULO FREIRE AND VIGOTSKI

Rodrigo Torquato da Silva30

Fábio Rodrigues31

Willian Alencar32

Resumo
O artigo que segue é resultado do amálgama de 50 anos de “Leitura de Mundo” com pelo
menos 30 anos de experiência com a Educação Popular em favelas e escolas. Trata-se de uma
formulação teórica banhada na potência criativa (VIGOTSKI, 1984) que emerge de vivências e
experiências de classe nesses espaços. O artigo é o resultado de um desdobramento, com
aprofundamento, de estudos anteriores. É deste aprofundamento teórico que emerge a
problemática que será apresentada a seguir, ora denominada de INTELIGÊNCIA BANDIDA. É
importante ressaltar que não se trata de uma ode à bandidagem das favelas e sim do
resultado de experiências de classes que se forjaram à revelia das conformações mais cruéis
impostas às Classes Trabalhadoras das Favelas, pelo capitalismo brasileiro, um capitalismo
dinamizado pela “Dialética da Dependência” (MARINI, 2000) e por uma educação bancária
(FREIRE, 1987).
Palavras-chave: Educação Popular. Favelas. Inteligência Bandida.

Abstract
The following article is the result of the combination of 50 years of “Reading the World” with
at least 30 years of experience with Popular Education in favelas and schools. It is a
theoretical formulation immersed in the creative power (VIGOTSKI, 1984) that emerges from
experiences and class experiences in these spaces. This article is the result of the deepening
of previous studies. It is from this theoretical deepening that emerges the issue that will be
presented below, now called BANDIT INTELLIGENCE. It’s important to emphasize that this is
not about the exaltation of the banditry of the favelas, but the result of class experiences,
which they were forged despite the cruelest conformations imposed on the Working Classes,
by Brazilian capitalism, capitalism dynamized by the “Dialectic of Dependence” (MARINI,
2000) and the banking education (FREIRE, 1987).
Keywords: Popular Education. Slams. Bandit Intelligence.

32 Professor de sociologia da rede estadual do Rio de Janeiro (SEE-RJ). Cria do Complexo da Maré. E-mail:
william_alencar@yahoo.com. Telefone: (21) 96649-7003. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4300-1471

31 Professor/Analista de Educação – Escola SESI / RJ. Cria da Favela Nova Holanda-Maré. E-mail:
frodriguesdasilva76@gmail.com. Telefone: (21)99187-5685. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7365-158X

30 Professor Associado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Líder do Grupo de Pesquisa ALFAVELA;
Advogado e Presidente da Comissão de Educação da OAB/MARICÁ-RJ. Cria da Favela da Rocinha. E-mail:
rtorquato@id.uff.br. Telefone: (21) 986517058. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8381-3821.

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Silva, Rodrigues e Alencar

Introdução

O Capítulo que segue é resultado do amálgama de algo em torno de 50 anos de

“Leitura de Mundo” – considerando aqui a perspectiva mais radical trazida por Paulo Freire –

com pelo menos 30 anos de experiência com a Educação Popular em favelas e escolas.

Trata-se de uma formulação teórica banhada na potência criativa que emerge de vivências e

experiências de classe nesses espaços. Aqueles que subscrevem este artigo, além de

professores de distintas Instituições de Ensino, são “Crias” de favelas do Rio de Janeiro. Suas

trajetórias os levaram a se constituírem como Professores-Pesquisadores dos três Níveis de

Ensino Brasileiro (Fundamental, Médio e Superior), atravessados pela Educação Popular em

Favelas. No entanto, ao problematizarem e teorizarem sobre as próprias práticas de

pesquisas, constataram, em estudos anteriores já publicados, que estavam diante de um

conceito novo, denominado “Pesquisas Viscerais”. O artigo é o resultado de um

desdobramento, com aprofundamento, dos supracitados estudos e pesquisas. É deste

aprofundamento teórico que emerge a problemática que será apresentada a seguir, ora

denominada de INTELIGÊNCIA BANDIDA.

É importante ressaltar que não se trata de uma ode à bandidagem das favelas, mas

sim do resultado de experiências de classes que se forjaram à revelia das conformações mais

cruéis impostas pelo capitalismo brasileiro às Classes Trabalhadoras das favelas; um

capitalismo dinamizado pela “Dialética da Dependência” (MARINI, 2000) e por uma

educação bancária (FREIRE, 1987).

Cabe explicitar que a reivindicação da radicalidade da “Leitura de mundo” em Paulo

Freire tem o objetivo de preparar o terreno contra críticas meramente moralistas daqueles

que desconhecem os contextos e circunstâncias de existência do Brasil-Favela, visto que a

categoria Inteligência Bandida não é um recurso discursivo, mas sim uma realidade que está

presente nas favelas e se constrói na experiência histórico-social das classes trabalhadoras

que ali sobrevivem.

Os que aqui assinam são ávidos por compreender e problematizar as suas

circunstâncias e a dramaticidade de se conceber na favela. Isso nos permite dialogar com

Paulo Freire, no sentido de compreender a essência da Pedagogia do Oprimido, exatamente

porque ao nos encontrarmos

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(...) desafiados pela dramaticidade da hora atual, [homens e mulheres] se
propõe a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de
seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no
reconhecimento do seu pouco saber de si, uma das razões desta procura.
Ao se instalarem na quase senão trágica descoberta do seu pouco saber de
si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas
respostas os levam a novas perguntas [grifo nosso] (FREIRE, 1987, p. 29).

Embora “Crias” de favelas distintas, os pesquisadores vivenciaram situações que

confirmam a existência de um tipo de inteligência forjada a contrapelo da epistemologia

científico-hegemônica. Tal inteligência, supostamente oriunda dos mais fracos, desafia a

epistemologia da ordem burguesa.

Para melhor compreensão do que está sendo defendido aqui, será apresentado um

capítulo de empirias, no qual será possível constatar as fontes de origem da Inteligência

Bandida, por meio de situações viscerais que expõem as entranhas do capitalismo de

dependência brasileiro e, paradoxalmente, a potência de uma epistemologia engendrada na

favela.

Inteligência bandida – Bases e Fundamentos

A tese central aqui defendida funda-se na ideia de que a Inteligência é o resultado

de complexas interações entre um ser cognoscente – o bicho humano, capaz de internalizar a

representação daquilo que não conhecia, a partir da atribuição de sentido – e a

externalidade cognoscível – aquela que, ao ser estudada, ganha um sentido de existência a

partir do que ela passa a representar. Dito de outra forma, a Inteligência é o que permite

conhecer o que já existe e criar o que ainda não existe. Assim, temos uma espécie de

paradoxo, pois a Inteligência é, ao mesmo tempo, produto dos contextos e criadora de

contextos.

Nesse sentido, os ‘crias’ de favelas são, concomitantemente, produzidos por ela e

criadores dela. Ou seja, são forjados inicialmente a partir de conformações sociais, culturais

e normativas das favelas, ao mesmo tempo em que são criadores de lógicas de sobrevivência

nas circunstâncias que lhes são postas, nas quais o uso da força e a sociabilidade violenta

impõem, dentre o conjunto de possibilidades, a construção e as operações cognitivas das

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pessoas nascidas e criadas em favelas.

O aporte teórico que sustenta e impulsiona as reflexões e as bases da tese

apresentada origina-se do diálogo com outras categorias, oriundas de árduas pesquisas, em

especial as de Pesquisa-Pesquisador/a Visceral e Sociabilidade Violenta. Elegemos como foco

empírico-analítico as vivências de pessoas nascidas e criadas em contextos de favelas

distintas, porém dentro de uma mesma contemporaneidade. Assim, a partir dessas

experiências, serão consideradas três fases/dimensões de usos distintos da Inteligência

Bandida: a 1ª, a qual denominamos Gênese, que se limita a uma prática internalizada, mas

ainda não refletida; a 2ª, aqui chamada de Conscientização, que é o agir deliberado e dotado

de uma consciência estratégica; e a 3ª, a Teorização, que se materializa no uso de categorias

para a teorização desse agir.

Cabe ressaltar, porém, que essa categoria é datada a partir de vivências e contextos

históricos específicos. Isso, de algum modo, leva-nos a uma ponderação em relação a sua

aplicação (generalizada) em contextos distintos. No entanto, há uma potência analítica, visto

que ela se consubstancia na problematização aqui proposta.

Aspectos da genealogia da inteligência

Não é possível desconsiderar Piaget como pioneiro nas pesquisas sobre o

desenvolvimento da inteligência e a construção das estruturas cognitivas que vão desde o

nascimento do bebê até a juventude. No entanto, é Vigotski quem vai melhor contribuir para

o que estamos problematizando aqui. Este autor propõe a noção de “Internalização das

funções psíquicas superiores”, na qual inclui a importância das palavras/conceitos (ou seja,

da língua/cultura) na construção do pensamento e da inteligência.

Chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação
externa (...). A internalização das atividades socialmente enraizadas e
historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da
psicologia humana. Até agora, conhece-se apenas um esboço desse
processo (VIGOTSKI, 2007, p. 56-58).

Nota-se: “Até agora, conhece-se apenas um esboço desse processo.” Isso justifica a

nossa hipótese. Coadunados com Vigotski e instigados pela práxis oriunda das nossas

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vivências e estudos, defendemos que a sociabilidade que se constitui na favela é uma

externalidade que implica o desenvolvimento de um tipo de inteligência distinta da que se

convencionou como padrão. Por isso, entendemos a “escavação” que estamos realizando

como um processo de descobrimento das raízes das inteligências forjadas nas favelas, na

medida em que as relações sociais e culturais que se dão nesses contextos são fontes

genealógicas dessas inteligências.

Noutra perspectiva, mas na mesma direção, Paulo Freire aduz que:

(...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior
leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.
Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do
texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações
entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato
de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a "reler" momentos
fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as
experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de
minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de
ler se veio em mim constituindo (FREIRE, 2000, p. 11).

Assim, ao apresentarmos as bases teóricas e etimológicas que sustentam a

categoria Inteligência Bandida, problematizamos a tese de que as relações e os contextos das

favelas constituem a condição de possibilidade predominante para a formação do

pensamento. A necessidade de resolver – “desenrolar” – problemas extremamente

complexos nesses espaços (o que, na favela, se chama “DESENROLO”) faz emergir conceitos

originais – sejam eles espontâneos ou reflexos de alguma base científica – resultantes da

dialética entre pensamento e linguagens que estão ali disponíveis. É nesse caldo de culturas

efervescentes que se formam as Inteligências não mapeáveis, radicais (de raiz), distintas do

padrão formal mediano, tal como a Inteligência Bandida. Corroborando com o exposto,

Vigotski, em outra obra, propõe que “a formação dos conceitos surge sempre no processo de

solução de algum problema que se coloca para o pensamento do adolescente. Só como

resultado da solução desse problema surge o conceito” (VIGOTSKI, 2009, p. 237).

Isso permite sugerir que a peculiaridade da inteligência que se forja na favela se dá

a partir de outras bases de mediação, possibilitando, a nosso ver, o desenvolvimento da

Inteligência Bandida. Para Vigotski, a interação social mediatizada pelas

culturas-palavras-circunstâncias em que os sujeitos estão inseridos, e interagem, é condição

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sine qua non para o desenvolvimento da inteligência. Isso nos possibilita dar outro sentido, e

até mesmo outra valoração, para os contextos socioculturais que servem de base para as

internalizações dos sujeitos cognoscentes ‘crias’ de favelas.

Considerando que as palavras-conceitos-culturais são ferramentas mediadoras que

permitem internalizar e reproduzir mentalmente o que ocorre na externalidade, podemos

afirmar que as estratégias de sobrevivência formadas no cotidiano da favela são

instrumentos de mediação fora do padrão. É isso que permite a coexistência de

pensamentos operando dentro da cabeça das crianças das favelas, por exemplo. Se por um

lado, elas sabem quando devem utilizar a inteligência padrão para resolver os problemas de

Língua Portuguesa ou Matemática propostos pela escola, por outro, sabem também operar

com a Inteligência Bandida, quando, por exemplo, escutam um boato ou assistem a uma

cena que pode implicá-las como testemunha de um fato que as coloque em risco. Isso fica

evidente quando, por exemplo, um comerciante nos traz a seguinte narrativa:

“As crianças vêm aqui comprar bala e evitam falar o número três e
dizem que querem 2+1 de balas… e quando eu perguntava o porquê
disso, ainda brincavam: Qual é tio? aqui é dois mais um...”

Trata-se de um exemplo de uma determinada favela onde se convencionou associar

o número três à facção dominante da favela vizinha: o Terceiro Comando. Nesse caso, as

crianças evitavam pronunciar o número três ao comprarem balas e doces no referido

estabelecimento. Essas crianças sabiam operar com o raciocínio lógico matemático (2+1),

mas ao mesmo tempo operavam com uma estratégia que as colocavam afastadas de riscos,

evitando a pronúncia do número três. Esse fato corriqueiro aponta a capacidade de acionar a

inteligência padrão e/ou a Inteligência Bandida.

Em outra perspectiva, buscamos o sentido etimológico da segunda categoria que

forma o outro pilar de sustentação da tese aqui defendida, a categoria “Bandida”. Apesar da

escolha por essa adjetivação possuir um verniz provocativo, como forma de ressignificar os

estereótipos criminalizantes colados pelo senso comum a tudo que remete à favela, optamos

por afastar o sentido tradicional que relaciona bandido à delinquência ou a alguém fora da

lei. Nesse sentido, nos remetemos ao dicionário Houaiss (2009), que nos lembra a raiz

oriunda do termo italiano bandito, originário do verbo bandire, que significa banir, exilar. Ou

ainda, a raiz etimológica na forma latina bannire. Assim, optamos por acionar tal categoria

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visando retomar seu sentido original para designar uma Inteligência que está à margem,

banida, não legitimada e não reconhecida.

Por isso, as narrativas que iremos apresentar são fundamentais para estabelecer os

nexos lógicos da tese aqui defendida. Essas narrativas serão apresentadas mais adiante, bem

como os exemplos dos usos e operações da Inteligência Bandida no cotidiano, os quais não

somente estão presentes o tempo todo no processo de produzir este artigo a seis mãos, mas,

sobretudo, formam os pilares empíricos de sustentação da tese. Por isso, são cruciais para a

compreensão do que estamos defendendo.

1ª Dimensão – Gênese da Inteligência Bandida. Das Infâncias à Adultização Precoce:
interações, internalização e operações com a Inteligência Bandida

Diante do exposto, temos aqui o que podemos classificar como a 1ª dimensão da
Inteligência Bandida
, pois os sujeitos cognoscentes e a realidade cognoscível da favela se

forjam num processo dialógico no qual inquietudes e cautelas formam um amálgama. Ou

seja, a necessidade de se construir estratégias de sobrevivência e ao mesmo tempo refletir

sobre a sua condição circunstancial de classe impulsiona a elaboração de processos criativos

que materializam o desenvolvimento de uma inteligência para além do padrão. Por isso,

muitas crianças das favelas munidas dessa Inteligência Bandida “zombam” da inteligência

padrão exigida pela educação bancária formal. Embora numa tenra idade, essas crianças

estão tentando se compreender nesses mundos distintos em que elas estão inseridas: na

escola, tentam enquadrá-las num modelo padrão de infância; na favela, elas precisam estar

“ligadas” o tempo todo, senão...

É possível admitir que a Inteligência Bandida se desenvolve tal como a inteligência

padrão, em sucessivas fases, no entanto, a fase inicial, a da infância, se dá submetida a um

conjunto de possibilidades sociais e culturais nas quais a opressão, a escassez e a violência

passam a nutrir a criatividade sagaz, a expertise da escuta e do que se pode falar, a opressão

do trabalho infantil, o ter que fazer dinheiro para ajudar em casa e a violência da adultização

precoce.

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Essa adultização precoce impacta por toda a vida do indivíduo, inclusive pode

comprometer o desenvolvimento cognitivo do adulto em sua forma plena no sentido de

poder operar com reflexões que lhe permitam superar a consciência ingênua. Assim, é

possível identificar alguns comportamentos de indivíduos em sua fase adulta operando

apenas na primeira fase.

No entanto, a questão não é tão simples, ela é constituída de uma complexidade

descomunal. Vejamos.

Vigie os ricos, mas ama os que vêm do gueto

A mãe de um dos que assinam este artigo, tal como a mãe do Mano Brow (Grupo de

Rap Racionais MC’s), ensinou-lhe que deveria sempre olhar para os ricos e prestar muita

atenção nas suas escolhas, naquilo que eles faziam para enganar os pobres. Em seguida,

completava: “temos de ter o compromisso é com a nossa gente, os pobres!” Essa foi a base

ideológica sobre a qual ele foi formado. À guisa de exemplo, segue o relato de um fragmento

que aponta as rotas da Inteligência bandida dessa fase. Para melhor fluidez do texto, a

narrativa abaixo segue na primeira pessoa:

“Minha mãe trabalhou como babá, durante 15 anos, para uma família muito rica, no

Rio de Janeiro. Criou as três filhas dessa família, desde a mais tenra idade. Em função da falta

de tempo dos patrões (pais) para cuidar das suas crianças, e seguindo a lógica do “vigiar os

ricos”, ela desenvolveu uma metodologia de sobrevivência para a luta de classes, dentro dos

limites que o capitalismo lhe impôs, como não saber ler e escrever. Ao levar as filhas dos

patrões às consultas médicas de rotina, ela percebeu que havia um elemento ali que

impactava na luta de classes entre pobres e ricos: as vitaminas que os médicos receitavam

para as filhas dos ricos, com o objetivo de melhorar o desenvolvimento físico e intelectual

das crianças. Ela me contava que enchia os médicos de perguntas acerca dos medicamentos.

Com isso, ela selecionava e categorizava os medicamentos entre aqueles que eram para a

inteligência e os que eram para o desenvolvimento físico. Como não sabia ler e escrever,

tampouco tinha dinheiro suficiente para comprar todos, ela optava pelos medicamentos

vitamínicos, pois ajudavam a desenvolver a inteligência. Ela recortava as frentes das caixas

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desses medicamentos e guardava. Quando voltava para casa, na favela, comprava os

mesmos medicamentos e me dava para tomar, seguindo a mesma orientação médica dada

para as filhas dos patrões. Para me convencer de encarar o amargo das vitaminas, dizia:

“Bebe, meu filho, porque senão os ricos estarão sempre na nossa frente. Isso é para você

ficar tão inteligente quanto os filhos deles.”

A experiência narrada demonstra que a atitude dessa mãe está muito além da mera

sagacidade. Há, nessa narrativa, o desenvolvimento de um método de enfrentamento para a

luta de classes, ainda que ingênuo, pois prevalecia um certo moralismo religioso na busca

por agir de forma correta. Isso é a configuração do primeiro nível de uso da Inteligência

Bandida, pois não se configura ainda a tomada de consciência, tal como sugere Paulo Freire,

pois:

Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização, porque esta
consiste no desenvolvimento crítico da tomada de consciência. A
conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de
apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a
realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma
posição epistemológica (FREIRE, 1980, p. 26).

Nestes termos, coadunando com o Patrono da Educação Brasileira, ressaltamos aqui

a demarcação que distingue essa primeira fase da segunda, sobre a qual falaremos a seguir.

2ª Dimensão – A Conscientização e a interação com o asfalto: Nós cá e eles lá, a vida é
assim.

A 2ª dimensão da Inteligência Bandida configura-se em um momento/estágio em

que os ‘crias’ de favela tomam consciência da existência de um tipo de sagacidade oriunda

da sua socialidade na favela. Compreendem que há formas específicas de interpretar

contextos, pois estão munidos de ferramentas cognitivas que possibilitam interpretações de

contextos distintos. Ou seja, eles lidam com uma ambiguidade de se relacionarem com os

diferentes grupos em que se inserem, sejam da favela ou fora dela, como por exemplo na

escola, no emprego ou em qualquer espaço relacional da vida cotidiana, da vida social.

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De forma geral, é nesse momento que “os/as ‘crias’” percebem que possuem uma

espécie de sagacidade distinta dos conhecimentos formais oriundos de contextos que se

constituem fora da favela. Ao tomarem consciência dessa sagacidade, passam, aos poucos, a

fazer uso dela nos diversos contextos, tornando-a um elemento estruturante do seu

pensamento-raciocínio nas tomadas de decisões. A partir daí, com base na perspectiva

histórico-social de Vigotski, o que era apenas um elemento rudimentar de interpretação de

contextos – a sagacidade – torna-se um elemento estruturante do pensamento: a

INTELIGÊNCIA BANDIDA.

Dito de outra forma, a sagacidade, um tipo de operação intelectual rudimentar que

se pauta na espontaneidade e no “calor dos acontecimentos”, por meio da malícia oriunda

das sociabilidades apreendidas na favela, transforma-se em uma lógica estruturante para a

tomada de decisões e construção de estratégias de sobrevivência. Tudo isso se desenvolve

sob uma esfera do capitalismo de extrema exploração e opressão.

Esse é o segundo momento da constituição/consolidação da Inteligência Bandida. É

o momento em que se toma consciência de que a nossa operação intelectual conta com

ferramentas cognitivas-conceituais que só estão presentes dentro da favela. Os indivíduos

nascidos e criados em favelas estão umbilicalmente conectados com os contextos que os

formam. É nesse sentido que o grupo de rap paulista Racionais MC’s afirma que “a gente sai

da favela, mas a favela nunca sai da gente”. Em outras palavras, a favela não se limita a um

espaço geográfico, mas se constitui também como um conjunto de relações que são

internalizadas no indivíduo e passam a fazer parte da sua subjetividade. A essa conexão,

chamamos, em outro trabalho, de visceralidade, pois, ao externalizar a favela que nunca sai

da gente, estamos também expondo as nossas próprias vísceras.

As ferramentas intelectuais construídas primeiramente na relação com a lógica da

favela e, posteriormente, com as lógicas formais, independem do fato de o sujeito se

conscientizar sobre isso. Elas operam à revelia da sua vontade ou da sua consciência. No

entanto, defendemos que, num determinado momento, muitos dos ‘crias’ de favelas passam

a ter consciência de que eles possuem uma forma de “Ler o mundo” diferente daqueles que

não se socializaram em favelas. Esse é o momento que estamos considerando aqui como a

segunda dimensão do processo que evidencia a existência e o funcionamento da Inteligência

Bandida.

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Objetivamente, podemos definir essa dimensão como uma espécie de ethos que,

gestado a partir de um conjunto de vivências e práticas inerentes às favelas, vai dando forma

a uma expertise, uma habilidade para o enfrentamento das situações complexas do

cotidiano. Esse conjunto de práticas pode ser constituído basicamente por três pilares: a

escassez de recursos, imposta pela limitação financeira; a contiguidade geográfica da

violência e/ou da sociabilidade violenta; e o ethos religioso que permeia direta ou

indiretamente as relações sociais nos espaços de favela.

Permitindo-nos fazer uma analogia com o futebol, essa segunda dimensão, tal como

um drible, não é um conhecimento que se aprende por meio de métodos, tampouco com

uma educação bancária, mas é uma solução criativa possível (ginga) para se desvencilhar do

impeditivo (marcador). A criança, ao brincar de futebol, vai adquirindo ginga, malemolência,

sagacidade para ludibriar seu adversário, encontrar o espaço vazio e avançar com a bola em

direção ao gol. Ou seja, são as circunstâncias que se impõem no jogo, no caso nas relações

da favela e fora dela, que fazem com que o “jogador” encontre soluções imediatas e consiga

inclusive pensar à frente do seu adversário. Vê-se aqui que não é apenas um acionamento

automático da sagacidade, mas, ao contrário, é um uso consciente da Inteligência Bandida.

Desse modo, a sociabilidade típica do cotidiano da favela forjaria então uma

expertise que, uma vez tendo consciência dela, o indivíduo poderá acioná-la para enfrentar

um conjunto de situações que tentará colocá-lo para fora do jogo.

Para demonstrar de forma mais concreta o que argumentamos acima, seguem

outras situações empíricas.

Preto no banco de trás? Quem dá esse mole? – O perrengue é meu workshop

No ano de 2011, um grupo de intelectuais da favela instituiu o CRIA. Esse grupo se

propunha a promover reflexões, a partir das vivências de cada integrante em sua favela de

origem e, assim, sistematizá-las. Os encontros ocorriam mensalmente nas casas dos próprios

‘‘crias’’, em diferentes favelas, dentre as quais, Rocinha, Maré, Acari, Timbau. Cabe destacar

que foram desses encontros que surgiu a inspiração para gestarmos o conceito-chave deste

artigo.

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Silva, Rodrigues e Alencar

Era uma tarde de sábado, quando finalizávamos um desses encontros na Nova

Holanda, uma das 16 comunidades da Maré, conjunto de favelas que fica às margens da Baía

de Guanabara, entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha. Como de praxe, após as nossas

discussões, algumas rodadas de cervejas eram quase que necessárias para fluirmos os

desdobramentos dos debates com a leveza que uma “trocação” de ideias proporciona. Além

dos componentes de favela do Cria, participavam ativamente um professor de Geografia da

Universidade Federal Fluminense e sua companheira. Ainda que não pertencente ao espaço,

o referido professor estava contido – tomando aqui emprestado os conceitos da matemática

– e como tal não abria mão desses pós encontros etílicos.

Na ocasião, seguimos para um bar numa das movimentadas ruas da Nova Holanda,

onde o fluxo de gente se intensifica naturalmente aos sábados, como em qualquer outra

favela. Passava das 17h quando fomos surpreendidos pela entrada do veículo blindado da

Polícia Militar do Rio de Janeiro, popularmente conhecido como “caveirão”, embora isso não

fosse surpresa para os moradores, já que incursões ostensivas (e ofensivas) desse tipo

compõem o cotidiano desses espaços. Apesar de não surpreender quem é cria, estas

incursões se dão sob uma tensão generalizada, dadas as marcas traumáticas guardadas na

memória dos moradores. Nesse cenário, observávamos do bar a movimentação de pessoas

se abrigando à medida que o “caveirão” avançava. Alguns minutos depois, ouvimos alguns

tiros. O professor da UFF se abismava diante da sua primeira experiência com esse tipo de

medo. Comentava que aquele alvoroço observado era sintomático e muito dizia sobre a

relação polícia x favela.

Passado o breve período de tensão, não nos restava outra opção que não fosse

fechar a conta e cada um seguir o seu caminho de retorno. Um rapper e fotógrafo integrante

do CRIA, de talento e inteligência singular, seguiria para a Avenida Brasil, de onde pegaria seu

ônibus de volta para casa, na região do subúrbio. Por estarem de carro, já estacionado no

interior da favela Nova Holanda, o professor e sua companheira oferecem carona ao

rapper/fotógrafo, que, sem titubear, recusa a oferta. Em princípio, tal gesto soa

incompreensível para o professor. Seria um acanhamento? Um gesto de humildade? Ou até

mesmo o entendimento de que não era mesmo necessário a carona do amigo?

Como quem explicasse o óbvio, o rapper esclarece o motivo da recusa: certamente

a polícia ainda estaria nas entradas da favela, como geralmente ocorre após as incursões e,

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com isso, ele previa uma abordagem policial. Afinal qual é a leitura do servidor público de

farda ao avistar um homem preto no banco de trás do carro de um casal branco?

O professor compreende então que a atitude foi uma forma de poupar a vida do

casal ou no mínimo evitar um constrangimento e tensões na possível abordagem e revista

policial, ainda que não tivessem absolutamente nada que os colocasse sob suspeita. No

entanto, tomamos esse fato como um exemplo de acionamento da Inteligência Bandida em

seu segundo nível: possui a sagacidade apreendida nas vivências na favela, tem consciência

que a possui e passa a acioná-la em situações complexas que exigem estratégias para

alcançar algum objetivo ou desvencilhar-se de possíveis problemas.

O nosso fotógrafo e rapper, homem negro da favela, traz consigo um sem-número

de situações em que foi vítima de constrangimentos e violências perpetradas pelo racismo.

Ele não seria “otário” de dar “esse mole” e passar de carro saindo da favela, após a entrada

do caveirão. Dito de outro modo, o nosso artista consegue pensar alguns passos à frente e se

antecipa prevendo também a lógica que rege a norma do “asfalto” para se proteger.

É possível que se argumente que essas marcas que o nosso rapper traz no corpo, e

suas consequentes estratégias apreendidas, originam-se das vivências em um país racista. O

que não podemos negar, no entanto, é que a inteligência ali posta em prática, em que se

prevê os movimentos de uma incursão policial e seu modus operandi, adveio do olhar sagaz

obtido nos becos e vielas das periferias.

Cabe ainda uma outra reflexão, embora secundária, mas não menos importante,

para delinearmos o conceito de Inteligência Bandida. A bagagem intelectual e acadêmica do

estimado professor não lhe proporcionou uma leitura e análise daquele cenário, para aquele

momento vivenciado na Nova Holanda, em julho de 2011. A Inteligência Bandida não se

desenvolve como um conjunto de competências apreendidas na educação formal, mas

absorvidas na necessidade de dar soluções imediatas e criativas diante do “perrengue”.

Isso quer dizer que, independentemente do fato de o sujeito ter consciência de que

a forma como ele se relaciona com a favela e com o “asfalto” são distintas e contíguas, a sua

práxis está orientada por essa contiguidade. O modus operandi de pensar e responder aos

desafios da externalidade (asfalto-favela) está umbilicalmente conectado à Inteligência

Bandida. Logo, essa segunda dimensão é uma ferramenta de operação cognitiva, resultante

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da capacidade do sujeito de acionar essas inteligências de acordo com os desafios que

emergem nesses distintos contextos.

Uma proposta inversa: da favela para escola

No livro A Magia dos Invencíveis: Os meninos de rua na Escola Tia Ciata, Ligia Costa

Leite (1991) nos traz a narrativa de um fato que pode elucidar e, de certa forma, prever a

elaboração da ideia de Inteligência Bandida. A autora, que também era professora na

referida escola, apresenta uma proposta de passeio a um ponto turístico da cidade do Rio de

Janeiro. Na ocasião, ocorrida na década de 1980, os alunos – entre os quais alguns que

passavam muito tempo nas ruas da cidade – iriam ao Cristo Redentor, monumento localizado

em uma área nobre da cidade, o bairro do Cosme Velho. É bom lembrar que a Escola Tia

Ciata se localiza no centro do Rio de Janeiro, em uma área relativamente afastada da qual

aconteceria o passeio.

A professora Ligia, no entanto, aponta um problema objetivo que é o fato de se ter

apenas um ônibus disponível para o passeio. Dessa forma, seria preciso dividir o grupo em

dois. Ela logo percebe o descontentamento geral. “Tia vamos todos, sem essa de dividir a

galera, a gente só anda junto”, diz um dos alunos. A professora argumenta: “Não há vagas

para todos, aí está a lista do grupo 1 e a do grupo 2. Grupo 1 vai na segunda-feira e grupo 2

na terça-feira. Sendo assim o pessoal do grupo 2 não precisa vir para a escola segunda feira.”

Os alunos descontentes falavam “qual é tia? A senhora não entende. A gente vai junto”.

Na segunda-feira, dia do passeio, para a surpresa da professora, mas não para

nenhum dos grupos, todos os alunos estavam na escola. Os dois grupos unidos da sua forma.

Vamos, tia?” A professora pega a lista do grupo 1 e diz: “Eu avisei: só vai o grupo 1”. Outra

vez, todos descontentes. “Qual é, tia? Nada a ver.” “O ônibus sai com o grupo 1 e o grupo 2

fica na escola.”

Depois de algum tempo, o ônibus com o grupo 1 chega ao Cristo Redentor. Para

espanto apenas da professora, os alunos do grupo 2 já estavam lá. “Porra, tia! Demoraram

hein...”. A professora faz uma observação: “Não vai ter lanches para vocês!”. Tanto o grupo 1

quanto o grupo 2 respondem: “A gente se vira, tia...

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No final do passeio, a professora ressalta: “Amanhã só vai o grupo 2, vocês do grupo

1 não precisam vir para a escola”. Ninguém prestou a atenção ao aviso da professora. Na

terça-feira, a mesma cena, os dois grupos estavam na escola, agora com menos espanto por

parte da professora. “A gente vai outra vez, tia. Gostamos.”

O elemento central da narrativa sobre a escola Tia Ciata é a limitação da escola em

lidar com as múltiplas inteligências e, fundamentalmente, com as inteligências que não se

apresentam com uma metodologia para ser ensinada. A escola fundada com teorias

eurocêntricas é incapaz de entender a lógica criativa e sem método teórico. E, por não

entender, despreza, bane e até tem medo, uma vez que não tem capacidade criativa de

entender. Esse banimento se dá desde a infância, no ensino primário, até os bancos

universitários.

No caso desses meninos, não houve por parte da escola o entendimento de que

eles, além de demonstrarem conhecimento sobre o espaço da cidade, traçaram uma

estratégia e “se viraram” ou foram astutos o suficiente para chegarem até o ponto turístico

em que a professora levaria parte da turma e que era distante da escola. Isso sem ao menos

terem o dinheiro para pagamento da passagem33. A professora ignora essa inteligência, que é

tratada na maioria das vezes como desobediência, falta de educação ou falta de limites,

porque está mais interessada em apresentar o que é considerado culturalmente elevado,

que é a visita a um ponto turístico.

Além da inteligência desses meninos sobre a espacialidade, também é interessante

destacar o senso de união “a gente só anda juntos”. Esses jovens aprenderam a viver e a se

defender em coletivo, e suas estratégias são organizadas e realizadas em grupo. O que a

escola faz é justamente tentar separá-los por causa de “bagunça”, entretanto é nessa suposta

bagunça que esses meninos vão se fazendo presentes e visíveis na cidade e na escola.

O que é possível ver em mais essa narrativa é que a Inteligência Bandida sempre

esteve presente, em diferentes épocas, entre as crianças crias de favela ou ocupadoras das

33 Cabe ressaltar aqui que a experiência narrada ocorreu na década de 1980, período ainda de transição do
passe escolar para a gratuidade da entrada dos estudantes pela porta da frente do ônibus (governo Leonel
Brizola). No entanto, o mais importante é notar que, mesmo na atualidade, o deslocamento dos estudantes das
escolas públicas ainda acontece com dificuldade, visto que muitos motoristas nem param o ônibus quando
percebem um ponto cheio de estudantes. Os meninos da situação descrita chegaram mais rápido ao local
porque dominavam os atalhos da cidade e as estratégias para percorrê-los.

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ruas, configurando o germe para que tal categoria pudesse ser pensada e elaborada

teoricamente.

3ª Dimensão – A Teorização: A Favela e a Universidade

“A vida é diferente da Ponte pra cá…”
Racionais MC’s

A terceira dimensão se consolida quando, para além da tomada de consciência, a

Inteligência Bandida passa a ser problematizada e transformada em teoria. Ou seja, como

categoria analítica e dimensão política, a consolidação da Inteligência Bandida é a teorização

acerca do seu valor e da sua operacionalidade para além da espontaneidade da vida

cotidiana. Isso exige uma compreensão mais aprofundada e uma ressignificação de conceitos

construídos historicamente e, sobretudo, a construção de novas categorias semânticas e

ferramentas conceituais próprias, tal como o que se propõe neste capítulo.

Nessa terceira dimensão, emerge uma compreensão mais sofisticada que permite

perceber que tais ferramentas conceituais e categorias são distintas, visto que sua origem se

dá em contextos cujas sociabilidades se forjam numa ambiguidade de mundos que

coexistem: o mundo formal-constitucional-legal e o mundo no qual as regras e sociabilidades

se fundam na sagacidade da favela.

Assim, o cerne está na capacidade de transformar a própria existência, e suas

circunstâncias, em objeto de teorização, fazendo uso de categorias analíticas. A diferença

nesta dimensão é que, agora, os/as “crias” das favelas ascendem a outro nível de

conscientização e passam a operar com a compreensão de que para fazer uso de uma

categoria analítica mais complexa é necessário acionar um rol de conhecimentos históricos

que ultrapassam as vivências nas favelas, embora as categorias necessárias, tais como a de

Inteligência Bandida, emanem das favelas, já que são estes espaços que permitem o

nascimento desses conceitos.

Dito de outra forma, mas na mesma direção, uma categoria analítica é construída e

enriquecida ao longo do tempo e em diversos contextos. Na medida em que os “crias”

passam a ter inserção nas Universidades e acesso às teorias sociais, aprofundam seus

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estudos e desenvolvem pesquisas diferenciadas. Isso permite, a partir de um acúmulo e de

um arcabouço teórico multifacetado, construir categorias “viscerais”, tais como a que

estamos apresentando.

Nesse sentido, é fundamental ressaltar a importância do que vimos chamando de

Pesquisas e Pesquisadores/as Viscerais (SILVA, 2012; 2020), em que podemos identificar um

embrião da categoria Inteligência Bandida:

Desse modo, os/as Pesquisadores/as Viscerais, ao narrarem os contextos
nos quais estão inseridos, são obrigados a expor as próprias vísceras, isto é,
as suas NARRATIVAS VISCERAIS, criam uma vulnerabilidade para si, pois,
após narrar, são obrigados a conviver com as consequências que a sua
narrativa vai gerar.
As vísceras existenciais do/da Pesquisador/a se materializam numa relação
social em que a reflexão crítica acerca da sua vivência com a história local
cria os nexos necessários para a conexão dos contextos com a produção de
conhecimento científico, o que configura a Pesquisa Visceral. Ou seja, o/a
Pesquisador/a Visceral é um sujeito do conhecimento comprometido
politicamente que, ao se valorizar na pesquisa, enquanto sujeito, cria nexos
entre contextos históricos diferentes, que amalgamam a sua biografia às
histórias locais.
O/a Pesquisador/a Visceral estuda aquilo que expõe as próprias vísceras,
tentando compreender as Favelas e as Quebradas das suas experiências,
percebendo que está dentro e fora, ao mesmo tempo, daquilo que
pesquisa. Não há como esse/a pesquisador/a se distanciar dos marcos
históricos e identitários que o/a constroem (SILVA, 2020, p. 169).

Nossos estudos-pesquisas-vivências, dentro e fora da favela, nos levaram a

problematizar a própria existência e a transformá-la em objeto de análise. Embora se tenha,

aqui, a ideia do “nós, por nós mesmos”, a discussão não se esgota apenas nisso. Trata-se de

experiências específicas que se coletivizam na troca com outras pessoas ‘crias’ de favelas.

Nas narrativas de outrem, se confirma a hipótese de que a favela é um contexto gerador de

estratégias coletivas de sobrevivência, cujo resultado é o desenvolvimento de um tipo de

inteligência distinta do padrão: a Inteligência Bandida (muitas vezes banida).

Nesse sentido, a terceira dimensão é a capacidade de articular as categorias

analíticas tradicionais da academia com a sagacidade oriunda da favela e operar de forma

dialética essas categorias, pleiteando novas epistemologias periféricas. Dentro de uma

disputa semântica e conceitual, o que se galga com isso é que a Inteligência Bandida seja

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entendida como uma ferramenta analítica nos espaços da educação formal e,

fundamentalmente, entre outros ‘crias’.

Considerações Finais

Historicamente, as classes que se apropriam e dominam os conhecimentos

reconhecidos como científicos guardam para si, nos “cofres das mansões”, não somente as

ferramentas conceituais que operam na construção de teorias, mas, sobretudo, as chaves

que abrem as portas dessas mansões. Para isso, criam uma rede blindada de “solidariedade”

de classe que permite perpetuar os privilégios oriundos desse poder, o de teorizar acerca da

própria condição de existência no capitalismo. O uso dessas ferramentas como propriedade

de classe é avalizado pela sociedade acadêmica.

No entanto, ao nos apropriarmos, a partir de nossas condições, das “chaves dessas

mansões” e das ferramentas conceituais necessárias, essa inteligência toma forma e é

aguçada à medida que o indivíduo intensifica a problematização acerca da sua existência,

dialogando com seus pares nos contextos da sua vivência na favela.

Precisamos ressaltar que o esboço dessa categoria analítica pretendida encontra um

limite de recorte de tempo e espaço. Estamos nos debruçando sobre vivências das décadas

de 1980, 1990 e 2010. Geograficamente, nossas percepções foram construídas a partir do

ângulo que as favelas da Maré e da Rocinha nos proporcionaram. O apontamento das

características de uma certa inteligência se justifica prioritariamente em conseguirmos

entender as capacidades de ações, as formas de sentir e de interpretar o mundo de um

grupo social cujas leituras possuem limites, embora seja um dos objetos mais estudados da

sociologia urbana moderna: a favela.

Tais limites desencadeiam ideologias e estigmas que geram prejuízos tanto para os de

dentro como para os de fora e provocam consequências que vão nortear de forma

equivocada, tanto as políticas no campo da segurança pública (reconhecimento por fotos de

suspeitos, caveirão, etc.) como também a capacidade de compreensão por parte da classe

média que, ao desconhecer todos os códigos da cidade (incluídos aí também os da favela),

tem a sua liberdade de circulação limitada, ferindo frontalmente o tão almejado Estado

Democrático de Direito.

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Além disso, acreditamos que uma análise mais sofisticada e precisa sobre as práticas

sociais que caracterizam as sociabilidades dos moradores de favelas pode nos indicar formas

metodológicas de atuação, seja na educação, na saúde, assim como no mundo do trabalho.

Por fim, e com a intenção de instigar o debate, o que estamos denominando

Inteligência Bandida são as acepções, os desenvolvimentos e as aplicabilidades de uma

inteligência que se desenvolve e se aplica tanto nos espaços das favelas quanto fora dela. Por

tal motivo, se fez necessário um aprofundamento da genealogia dessa categoria bem como

das operações cognitivas ressaltadas, a partir das três fontes de sua materialidade: a

escassez de recursos, a violência recorrente e o que podemos chamar de uma espécie de

mística que transcende a imanência e que permeia as relações de solidariedade na favela.

Esses três elementos são os genes de uma inteligência própria e que sempre se dá a

posteriori na sua aplicabilidade.

Referências

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Paulo Freire
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Cortez, 2000.

LEITE, Ligia Costa. A magia dos invencíveis: os meninos de rua na Escola Tia Ciata. Petrópolis: Vozes,
1991.

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Martins Fontes, 2009.

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Data do envio: 25/05/2022.
Data do aceite: 06/07/2022.

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