DA GULA ALIMENTAR À TECNOLÓGICA: REFLEXÕES REDUTORAS DE DANOS
DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO
FROM FOOD GLUTTONY TO TECHONOGICAL GLUTTONY: HARM REDUCTION
AND THE CONSUMPTION SOCIETY
Francisco José Figueiredo Coelho59
Georgianna Silva dos Santos60
Maria de Lourdes da Silva61
Resumo
Uma característica da juventude atual é a frequente aquisição de novas tecnologias para
informação e comunicação para diversas finalidades. Essa nova relação com as tecnologias
digitais e com as mídias podem ocorrer dentro de relações estáveis ou produzirem cenários
de desequilíbrio e alienação. Partindo do conceito histórico e social do termo gula, trazemos
um novo conceito, o de gula tecnológica. Nesse caminho, a partir desse constructo, são
discriminadas relações com a sociedade do consumo e suas relações com o desejo cada vez
mais intenso de possuir novas tecnologias. A partir desta ótica, o artigo sublima aportes
teóricos e conceituais que oferecem um cenário de reflexão sobre uma educação para as
tecnologias que considere a gula tecnológica como fenômeno real e preciso na sociedade
contemporânea. Nessa lógica, brotam argumentos para se pensar uma educação para a gula
tecnológica, pautada no enfoque pedagógico da Redução de danos.
Palavras-chave: Educação para as tecnologias. Gula tecnológica. Redução de danos.
Sociedade do consumo.
61 Professora Adjunta da Faculdade de Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro na cadeira de
História da Educação. Realizou Pós-Doutorado em História da Educação no Programa de Pós-Graduação em
Educação - PROPEd/UERJ, na modalidade PNPD/FAPERJ; Doutora em História Política na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Interesses: História das Drogas; Educação para as drogas; materiais educativos(didáticos,
paradidáticos); Métodos: Análise de discurso, análise histórico-crítica. E-mail:lullua2@yahoo.com.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1188-9469
60 Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA. Mestrado e Doutorado
em Ciências pelo Programa de Pós-graduação em Ensino em Biociências e Saúde - EBS/FIOCRUZ/RJ. Atualmente
sou professora substituta da Universidade Federal do Piauí (DMTE/CCE-UFPI). Integrante do Grupo de Pesquisa
Educação e Drogas (GPED) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)(CNPq) e Colaboradora do
Programa de Pós-Graduação Lato Sensu. E-mail: georgiannas@gmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-2259-7859
59 Licenciado em Ciências Biológicas (FFP/UERJ/2003). Especialista em Planejamento, Implementação e Gestão
da EaD (LANTE/UFF) e em Educação de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão Social (NUEC/UFF). Mestre em
Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde (NUTES/UFRJ/2006). E-mail: ensinodeciencias.ead@gmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1522-2995
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Abstract
A characteristic of today's youth is the frequent acquisition of new technologies for
information and communication for different purposes. This new relationship with
communicative digital technologies and the media can occur within stable relationships or
produce scenarios of imbalance and alienation that are independent of the context. Starting
from the historical and social concept of the term gluttony, we bring a new concept, that of
technological gluttony. In this way, from this construct, relationships with the consumer
society and their relationships with the increasingly intense desire to have new technologies
are discriminated. From this perspective, the article sublimates theoretical and conceptual
contributions that offer a scenario for reflection on an education for technologies that
considers technological gluttony as a real and precise phenomenon in contemporary society.
In this logic, arguments arise to think about an education for technological gluttony, based on
the pedagogical approach of Harm Reduction.
Keywords: Education. Teaching practice. Socialization. Corporeity.
Eh, ôô, vida de gado. Povo marcado, eh
Povo Feliz
(Zé Ramalho, 1979).
Introdução
Comer é uma ação fundamental para a sobrevivência humana. Os modos como o
cheiro, o sabor, a cor e a textura do que comemos mobilizam vários órgãos do sentido se
misturam à oferta ou escassez do alimento, às modalidades de preparo e consumo, ao
cultivo do gosto como expressão, a um só tempo, da diversidade e da desigualdade etc. dão
mostras do essencial entrelaçamento do biológico/fisiológico com o sociocultural nas
atividades humanas e do econômico (CARNEIRO, 2003).
Para Fleck e Dillmann (2021), os diferentes significados já atribuídos à gula foram e
devem ser considerados em função do tempo, do espaço e das experiências culturais das
sociedades a que se referem. E, mesmo no interior de determinada sociedade, a gula
assumiu diferentes conotações, que se aproximam e se distanciam, se considerarmos os
discursos médicos e religiosos.
Mesmo sendo atividade vinculada à eterna relação do ser humano com as
necessidades de subsistência, não apenas o ato de comer, mas todo processo que recobre
desde a extensão da seleção do alimento na natureza, da introdução na dieta, do cultivo, do
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preparo e compartilhamento das refeições foi angariando ao longo do processo civilizatório
uma miríade de significados. O esbaldar-se com comida se torna um verdadeiro deleite,
como referenciado em plurais passagens bíblicas. Seja na parábola do filho pródigo ou nas
profecias de Isaías sobre o fim do mundo, abater um cabrito ou um novilho mencionam o
comer como fruto de uma vitória, referendando o banquete como um ato de celebração.
Para além dessas representações religiosas, o banquete é uma utopia universal, pois
ele materializa o momento em que o ser humano, nutrido e saciado da fome, abstrai,
graceja. O simpósio da Antiguidade Clássica (momento subsequente ao banquete, quando as
pessoas conversam à mesa) se caracteriza pela “ligação entre a palavra e o banquete”
(BAKHTIN, M, 1987, p. 248), uma alegoria à ação criativa e à arte, à interação social que dá a
ver aquilo que anima os espíritos desses seres em momento de relaxamento do corpo e
expansão do pensamento.
Na defesa dessa utopia universal, a abundância toma sentido de projeção de um
futuro desejável. Liberto momentaneamente do labor, o ser humano investe na conversação,
símbolo da interação social, da produção de cultura, convertendo o banquete no fenômeno
da consagração da abundância e, ao mesmo tempo, do prazer. Em vários cenários de
diferentes épocas é possível vislumbrar essa representação do banquete.
A linha tênue entre o excessivo e o prazeroso transforma o ato biológico de comer
em acontecimento social. Ele é coletivo, gregário, festivo, libertador. A capacidade de sonhar
e ter esperança são potencializados na ausência da fome, na subjugação da natureza, na
superação da morte culminada no ato de devorar o mundo conquistado e vencido. Esses
significados profanos da comensalidade abundante também fizeram parte do universo da
Igreja medieval, que considerava sagrado o direito à recreação e ao banquete. Essa imagem
universal da partilha comunitária do resultado do trabalho realizado em conjunto foi, na Era
Moderna, transposta à vida privada e aos indivíduos, onde a abundância se consubstanciou
em exagero, usurpação e egoísmo.
Entre o comer e o esbaldar-se há uma linha tênue. O esbaldar-se está ancorado no
excesso, qualidade permanente da gula. Esta, foi bem descrita no livro Origens sagradas de
coisas profundas, escrito pelo monge grego Evagrius Ponticus (345-399), adepto do
ascetismo, doutrina filosófica marcada pela abstinência aos prazeres mundanos a fim de
disciplinar o corpo e a mente. Nessa obra, a gula, bem como a avareza, a ira e outras ações
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humanas, são vistas como ações pecaminosas que, no ano de 590, passaram a ser
reconhecidas pelo Papa Gregório (540-604) como pecados capitais (do latim caput – parte
superior, chefe, cabeça, líder).
Na tradição cristã, a gula teria sido o primeiro pecado capital. A partir dela, o
homem se alimentou do fruto proibido, culminando em oposição ao que foi ordenado por
Deus. Se num primeiro momento, a ação de comer estava atrelada ao prazer e a necessidade
de sobrevivência, o “esbaldar-se em comida” – enquanto ação excessiva, individual e
princípio de diferenciação e excludência – adquiriu um contorno pecaminoso e passível de
punição. A partir dessa relação com o excesso, surge a imagem do glutão, aquele que cultua
a gula.
Orientado pelo princípio da acumulação como fator de distinção, mas uma distinção
ociosa e parasitária, a glutonaria abandona a aura do triunfo coletivo pelo individual,
centrado no prazer em comer em excesso, desacompanhado do simpósio entre os comensais
– não que o banquete desapareça, ele apenas é sobrepujado pelas forças do individualismo
da sociedade do consumo. Nesse caso, o prazer não está no ato de comer em si, mas no
deleite do consumo, que aumenta à medida que o indivíduo se esbalda (Figura 1).
Figura 1 – Pecado da gula, retratado por Hieronymus Bosch (1450 – 1516 d.c)
Fonte: https://cidmarcus.blogspot.com/2020/01/dos-pecados-gula.html
A chegada das especiarias à Europa maximizou o prazer à mesa. A popularização da
pimenta-do-reino, cravo-da-Índia e do açúcar, por exemplo, realçando sabores e aromas,
agregou valores ao alimento, nutrindo “corpo e alma”. Com o tempo, o ato de comer e se
alimentar em excesso começaram a ser contestados. Especificamente no século XVII, a ideia
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da gula passou a ser vista como algo desnecessário. Em outras palavras, o ato de comer
passou a ser visto de forma mais equilibrada, com “bons modos” e regras. Boa parte dos
manuais pedagógicos da época tratavam da educação à mesa – mesma época da
popularização dos utensílios individuais, sobretudo o garfo, nas cortes europeias.
Fleck e Dillmann (2021) sinalizam que, nos séculos XVII e XVIII, a gula era tida como
um pecado capital pela Igreja e como uma prática que corrompia a saúde dos indivíduos
pelos médicos, razão pela qual era preocupação regular e constante nos livros religiosos e
médicos, apesar de ocupar pouco espaço nos impressos publicados em Portugal à época, se
comparada com outros temas. Para os pesquisadores, à gula foram atribuídos diferentes
significados em um universo social coletivamente marcado pela força da crença católica e
pelas concepções médicas hipocrático-galênicas, concluindo que as compreensões a respeito
do comer desordenado apontavam para interesses médicos na reafirmação de seus saberes
sobre saúde e doenças e interesses religiosos na revigoração de uma fé capaz de indicar
prejuízos aos caminhos da salvação (FLECK; DILLMANN, 2021).
Esse comportamento moderado à mesa passa a ser visto como algo mais refinado e
– embora esta mudança não implique necessariamente em alterações no corpo – a gordura é
sinal de fartura, se convertendo em status de poder, como retratado nas pinturas de Sandro
Botticelli, que retratavam figuras gordas com corpo abundante. Ou seja, o corpo gordo era
visto como sinônimo de “fartura” e “riqueza financeira”. Mais tarde, no século XIX, a
concentração populacional nas cidades, aliada às novas formas de lutas por direitos entre as
classes mais pobres, assim como o esvaziamento do campo trouxeram a urgência de
repensar formas de distribuição dos alimentos, entre outras questões.
Nessa lógica, estabelece-se a indústria dos alimentos com suas conservas e
enlatados – uma nova etapa nas estratégias de aproveitamento da produção agrícola,
prolongamento da vida útil dos alimentos com diminuição do desperdício. Também o refino
dos grãos – espécie de assepsia que os tornavam livres das cascas e outras impurezas –
levava às classes abastadas alimentos mais “limpos e puros” (aspas nossos). A conservação
de alimentos em recipientes hermeticamente fechados, junto com a pasteurização e a
refrigeração aumentaram a vida útil dos alimentos, acabaram com a escassez e permitiram,
entre outras coisas, o surgimento das grandes cidades (MATTOS, 2006). É possível dizer que a
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proliferação da nossa espécie nesse planeta se deve em boa medida ao fato de termos
dominado algumas técnicas de produção e distribuição de alimentos.
Foi apenas no decorrer do século XX que se percebeu os perigos das técnicas de
refino e conserva. Somente a partir de meados do século XX, a preocupação deixou de ser
apenas comer e passou a ser “comer bem”, isto é, com qualidade e numa medida adequada.
Isso nos forneceu subsídios para compreender como a gordura passou a se tornar um quadro
indesejado e, por vezes, associado a processos de adoecimento e sintomas de doenças. O
corpo magro, esbelto, esculpido pela ginástica (malhação) passou, portanto, a ser padrão de
vitalidade, beleza e autocontrole, perdurando até os dias atuais.
Dado o caráter introdutório que assumimos nessa primeira seção (1) - ao definirmos
histórica e socialmente o fenômeno da gula, na seção que segue (2) apresentaremos
pontuais considerações acerca do que chamaremos de gula tecnológica e suas relações com
a sociedade do consumo e, a partir de tais argumentos, ofereceremos aportes pedagógicos
(3) para se pensar uma educação para a gula tecnológica, pautada no enfoque pedagógica da
Redução de danos.
A SOCIEDADE DO CONSUMO E A GULA TECNOLÓGICA
Esse brevíssimo (e arriscado) histórico acerca da alimentação e da gula nos subsidia a
pensar em como o ato de comer e a ingestão excessiva de alimentos tiveram significados
distintos ao longo da história. Hoje, além de pecado capital, simboliza desregramento, falta
de controle, incapacidade, fraqueza moral, em que pese o fato de o alimento ter se
transformado em mercadoria e a indústria da alimentação se lançado à propaganda dos
alimentos, tomado como outro ramo qualquer da indústria. As massivas propagandas pela
televisão, pelos aplicativos de celular, em nossas caixas de e-mail e nos outdoors das
avenidas não deixam dúvidas de que somos bombardeados a cada instante com
propagandas que nos fazem acreditar que temos necessidade de consumir. Em outras
palavras, o ato de consumir em demasia e de forma acelerada – aprendido socialmente, cabe
ressaltar – se configura enquanto prática motivada pela indústria cultural soberana
(ADORNO, 2021), estimulada sistematicamente pelo uso cotidiano das ferramentas
tecnológicas. Haja vista que os suculentos hambúrgueres e pizzas das propagandas de
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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO
televisão ou dos anúncios do YouTube perturbam nosso cérebro a ponto de ficarmos com
água na boca. É um não real (imagético) que nos permite sensações de prazer que cobiçam o
ato de se apropriar daquilo que nos atrai. Nessa ocasião, toda energia é canalizada para a
aspiração do consumo e o prazer congela-se no enfado (ADORNO, 2021). Em outras
palavras, “o espectador não deve trabalhar com a própria cabeça; o produto prescreve toda
e qualquer reação (...)” (ADORNO, 2021, p. 28).
A lógica perversa da indústria cultural busca neutralizar todo alento intelectual e
desprover o indivíduo de toda conexão lógica, promovendo – inclusive - repentinas
mudanças de humor e comportamento, fazendo-o crer na necessidade que tem de consumir
imediatamente o produto. Note na figura seguinte (Figura 2), uma propaganda visual da
internet, a relação afetiva que o marketing digital propõe, filiando a ideia de sabor com a
possibilidade da vida se tornar mais aprazível, reavivando as tradições do banquete e da
comensalidade agora deturpada pela lógica individualista e segregadora capitalista, onde a
gula adquire novos sentidos. Essa figura, uma das diversas propagandas disseminadas pelas
redes sociais e publicidades do Youtube, representa o teor capitalista e perverso da indústria
cultural midiática, por vezes sequer sentida pela sociedade.
Figura 2 – Apelo midiático para a gula, visto com frequência nas páginas da internet
Fonte: https://www.montarumnegocio.com/frases-para-vender-pizza/
Amparado nas artimanhas e interfaces da indústria cultural, não é nenhuma novidade
que basta consultar um aplicativo de fast-food para, tempos depois, começarmos a receber
propagandas de uma compra não realizada. E isso não acontece apenas com comidas, mas
com todos os produtos dos sites ou aplicativos de compras. Somos mapeados, monitorados e
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temos, em certas ocasiões, a nossa privacidade surrupiada por um mercado empenhado em
vender e estimular o consumo.
Não se pode negar o poder psíquico do apelo da indústria midiática que estimula o
excesso e corrobora para que tomemos como necessidade uma plêiade de sentimentos e
valores. A cultura, o entretenimento e a diversão dividem o mesmo espaço, justificando a
hegemonia da indústria cultural sinalizada por Adorno (2021). Para o autor, as ideias de
dominação, difusão e velocidade na circulação de informações estão imbricadas, sendo
oferecidas pelo cardápio capitalista (ADORNO, 2021). Um bom exemplo disto está nas
propagandas de tecnologias digitais. Concomitante à obsolescência programada,
vivenciamos a prematura perecibilidade das coisas estimulada pelo permanente apelo às
trocas (consumo sucessivo) em função da superação tecnológica dos novos modelos dos
bens de consumo. Atendendo a pecha das novas tendências, somos motivados a trocar o
celular, o fone de ouvido, o relógio digital, a televisão, o carro etc. Vivemos em uma
sociedade de consumo que estimula o pensamento da perecibilidade tecnológica, nos
motivando a substituir uma tecnologia adquirida por outra mais recente. Chamaremos aqui
de gula tecnológica a esse permanente estado de considerar efêmero e transitório os
artefatos implicados no modus vivendis do mundo que nos cerca. Embora este estado tenha
conotações mais profundas e deletérias à vida contemporânea, nos limitaremos aqui a tratar
daquele aspecto.
Essa gula pelo consumo tecnológico configura um mundo de aparências, do poder da
imagem e das mídias em modular a forma como pensamos e agimos. Essas formas excessivas
de consumir denotam esse fenômeno de gula coletiva para além do alimentar, realçado pelo
alcance da fartura de opções na internet 24 horas por dia, todos os dias da semana, em
diferentes regiões do planeta. Além das lojas físicas, as vendas on-line, por meio de suas
ferramentas de marketing, impactam na forma como as pessoas enxergam suas
necessidades. Em outras palavras, é a indústria que desenha e planeja seus produtos para
atender a “massa populacional”. Mas, será que temos consciência de que somos impactados
por essa indústria que nos monitora e tenta nos fazer reféns dessa gula tecnológica?
Essa persuasão ostensiva tem maior impacto entre as gerações mais jovens, cada vez
mais precocemente alvo dos investimentos da indústria cultural, cada vez mais suscetíveis
aos apelos de consumo que articulam modos de vida, valores e crenças como condicionantes
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de aceitação e pertencimento sociais. Para compreender a necessidade geracional de
substituir com brevidade seus aparatos tecnológicos, reforçando a ideia da gula tecnológica,
cabe lembrar o entendimento do historiador francês Roger Chartier (2002), ao considerar
dois apontamentos importantes: o primeiro deles é que os discursos são produzidos e
difundidos em um espaço social específico que tem seus lugares, suas hierarquias e seus
objetivos próprios. O segundo, não menos importante, é que tais discursos são
constituidoras de significados e de sentidos para determinadas práticas partilhadas por um
mesmo segmento grupal. Quer dizer, na lógica Chartieriana todas as formas de pensar e agir
e a essência dos discursos que veiculam resultam de uma relação social com o mundo que
implica em considerar as variações entre o texto e as realidades sociais, o texto e as
significações e apropriações plurais, o texto e as diversas formas de transmissão e recepção
(CHARTIER, 2002).
Ainda partindo de Chartier (2002), é possível aferir o locus desses discursos como um
espaço de disputas e negociações culturais, em que uma delas apresenta configuração
hegemônica. Isso significa, em nosso entendimento, que toda a indústria cultural, bem
explícita na obra de Adorno (2021), reproduz um cenário perverso desenhado e atingido pela
indústria cultural midiática, fortalecendo o discurso de que a necessidade de possuir
tecnologias mais inovadoras promova bem-estar, sucesso pessoal e profissional. Em outras
palavras, veiculam a falsa ideia de que tecnologias mais recentes abrem espaço para uma
maior conexão com o mundo e com as pessoas, o que fortalece o discurso da necessidade de
explorar mais e mais recursos tecnológicos, conferindo significados à gula tecnológica e
alastrando sentidos múltiplos ao ato de consumir para se manter atualizado (e porque não
dizer aceito e reconhecido) no bojo de uma sociedade marcada pela aquisição de produtos
tecnológicos e – em certo ponto – de perda da privacidade. Em ambos os casos, revelam e
justificam os discursos, as práticas de pensar e agir das novas gerações (CHARTIER, 2002).
Alinhada com tais pressupostos, cabe considerar que toda esta gama geracional para
se manter atualizada pelas novas tecnologias - sobretudo pelo hábito afoito que justifica o
conceito de gula tecnológica – tende a ignorar o emaranhado infodêmico que circula nos
discursos midiáticos, amparados por uma sociedade consumista centrada na aquisição do
novo. Isso, a nosso ver, carrega um problema: as redes sociais se tornam cada vez mais
uniformizadas, buscando condicionar o usuário a ter satisfação e prazer com o acesso virtual.
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Esta sociedade uniforme, tende a padronizar os comportamentos e ações digitais,
consolidando uma falta de precisão e alteridade que culmina numa aparente agradabilidade.
Quer dizer, uma real sociedade do me agrada, como pontua Byung-Chul Han (2020). Nesse
caminho, entendemos que gestos mecânicos e ausentes de racionalidade fazem parte dessa
agradabilidade aparente. O autor traz um exemplo intrigante ao reconhecer o desinteresse
do Facebook em introduzir um emotion de dislike (o equivalente a não curtir ao invés de
gostar de uma postagem). Nesse circuito, essa uniformização das formas de agir no mundo
virtual evita a despadronização e amplia a velocidade na troca e disseminação de
informações (HAN, 2020). Indo além, diríamos que evita a compreensão da complexidade do
mundo onde se vive e desmobiliza os suportes cognitivos envolvidos na elaboração da
argumentação, na construção do manancial cultural simbólico que arregimenta o novo de
cada geração.
Outro ponto trazido por Han (2020) é acerca da necessidade de exposição das
pessoas/mercadorias nas redes sociais. Circunscrevendo uma sociedade onde o expor é
peculiar e cultural, se uma mercadoria não é exposta, perde – aos poucos ou imediatamente
– o seu valor expositivo. Logo, se o que não é exposto não é visto, não carrega visibilidade e
sucumbe no mundo virtual (HAN, 2020). Partindo de uma sociedade consumista,
compreende-se a emergência do marketing digital em disseminar rapidamente novos
recursos tecnológicos. A partir desse refluxo midiático, a necessidade de adquirir o novo, de
possuí-lo, conquista. A gula pela tecnologia se acentua e o indivíduo se sente inferior por não
estar atualizado. Se sente como um alienígena em plena era digital. Tendo extirpado o seu
direito de pensar sobre a aquisição, as desculpas mais esdrúxulas são assumidas para
justificar uma nova apropriação. O valor expositivo do produto supera a real necessidade do
consumo.
Instaura-se, então, uma paixão pelo novo artefato até que outro mais novo o torne
obsoleto. Uma imensidão de aplicativos acaba deixando o celular mais lento e o usuário
questiona sua tecnologia. Obter o aparelho novo seduz, encanta. E o pior de tudo, é a
situação dolorosa e exclusiva que as pessoas enfrentam quando lhes é imputada essa
pseudonecessidade de possuir as tecnologias mais recentes, uniformizando um padrão social
(HAN, 2020) que consome, sem racionalizar e que passa a aceitar, sem questionar. A
indústria de telefonia, dos canais de streaming e dos aplicativos digitais nos apresentam
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múltiplos serviços e produtos equiparados a conforto e bem-estar que, por vezes, sequer
indagamos se damos conta de utilizar “confortavelmente” todas essas ferramentas. Olha a
gula tecnológica ganhando terreno novamente! Quase uma paixão inconsciente (ou
consciente, por que não?) pelo digital.
O que tangemos acerca da gula pelos recursos tecnológicos invade tanto o campo dos
produtos quanto o dos serviços. Isso vai desde o desejo de ter um celular novo como a
necessidade de possuir um novo eletrodoméstico. Extrapola, de alguma forma, apenas a
dimensão da aquisição do produto. Ela aliena para o uso frequente e rotineiro que, mediante
o prazer causado ou a justificativa da necessidade de comunicação, aos poucos enclausura o
indivíduo em seu auto-isolamento (Figura 3).
Figura 3 – O poder sedutor da tecnologia
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/215328425921996647/
Isso pode ser notado com facilidade quando parte das jornadas diárias são dedicadas
ao uso das mídias sociais, revelando a coexistência da presencialidade em disputa com o
mundo paralelo da virtualidade (MARTINS, COELHO, 2020).
Toda essa “gula” para/pelo consumo tem suas motivações, das internas –
principalmente pelo prazer e atuação no sistema de recompensa cerebral – às externas –
influenciados pela aprendizagem social, via cultura. Para o mercado industrializado
altamente evoluído, o homem é atraído pela indústria do marketing que o seduz para o
eterno prazer do consumo. Para satisfazer seus prazeres e necessidades, ele está sujeito “a
fraudes e mentiras enganosas” (COELHO, M. L, 2002, p. 22).
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APORTES PEDAGÓGICOS PARA UMA EDUCAÇÃO REDUTORA DOS DANOS DA GULA
TECNOLÓGICA
Dado o cenário de hegemonia da indústria cultural previamente estabelecido,
convém reconhecer - em princípio – duas condições: (1) a constatação de que toda a
comunicação digital evolui e se expande como parte da cultura humana; e (2) a
potencialidade do uso tecnológico como fomentadora de novas interfaces educativas,
estabelecendo novos caminhos informativos e comunicativos na sociedade vigente.
Acerca da primeira condição, cabe lembrar as palavras de Stuart Hall (2003), ao
considerar que a cultura se dá por meio do seu contexto, da realidade de vida dos seres que
interagem. Quer dizer, a cultura é uma produção social, tendo sua matéria-prima, seus
recursos e seu trabalho produtivo. Portanto, se pensarmos na cultura digital e nos usos
comunicativos por meio das diferentes tecnologias, avançamos no entendimento de que
nossas identidades culturais são mutantes, em constante movimento de formação cultural
(HALL, 2003).
Estabelecida essa primeira condição, cabe reconhecer a dimensão educativa da
suposta segunda condição. Nesse âmbito explorar as tecnologias se converte como caminho
informativo e, ao mesmo tempo, comunicativo. Isso, a nosso ver, oferece suporte e
dissemina a dinâmica cultural-digital vigente. Em outras palavras, da mesma forma que ousar
lidar com as tecnologias aprimora/estimuladora novas interfaces comunicativas dentro ou
fora da escola, uma atenção especial deve ser dada às práticas abusivas de tais recursos.
Exatamente nesse sentido, retomamos a importância do enfoque pedagógico da Redução de
Danos (RD) em diferentes situações do cotidiano.
Obras paradidáticas como o Sol na cabeça (MARTINS, 2018) e Disfarces do medo
(COELHO, 2021) têm exatamente tal intuito: permitir ao leitor a simulação de situações
cotidianas que perpassam episódios de prazer, violência e práticas abusivas de drogas do
universo juvenil. Fogem das típicas narrativas de adestramento e pedagogia da proibição, se
convertendo em canais informativos, mas não enclausurados na alienação proibicionista de
pensar o prazer e o bem-estar como receitas de bolo. Especificamente no livro Disfarces do
medo, há um certo destaque para as relações da juventude com os aparelhos tecnológicos e
com as mídias digitais, caminhando rumo ao entendimento de que não são as práticas do
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uso tecnológico que pode afetar o bem-estar, mas sim as relações de abuso que se instauram
ao longo do processo.
Nessa ótica, embora reconheçamos toda a interface das novas relações via mídias
digitais e seu abarcamento enquanto cultura digital, cabe a preocupação sobre como tais
demandas influenciam as relações intrínsecas e interpessoais entre os seres humanos
(COELHO, 2021). Quer dizer, ao mesmo tempo em que estamos fadados ao isolamento
(medidas tecnofóbicas), caso recusemos amplamente o porte das inovações tecnológicas,
também nos inclinamos a uma possível ausência da presencialidade, por vezes marcada pela
perda real da sensibilidade. Por isso, brota a urgência das práticas educativas escolares
debaterem e sensibilizarem para o uso das tecnologias e das mídias digitais, não
exclusivamente educando para as tecnologias, mas, sobretudo, para as práticas redutoras de
danos.
Ou seja, da mesma forma que a tecnofobia e a recusa às tecnologias podem ser
alienadoras, também sua apropriação irracional e abusiva pode fomentar situações
deletérias que impactam no próprio exercício de interação e construção dos elos de
pertencimento ao mundo, a cidadania. Legitima-se, assim pensamos, uma educação
antialienadora, que estimule a considerar as mensagens subliminares e os pretensos
conteúdos de fachada divulgados pelas mídias digitais. Trata-se não apenas de uma educação
crítica como uma educação para/com as tecnologias (MARTINS; COELHO, 2020), mas para a
racionalidade e contra as artimanhas implantadas pela gulosa (e por vezes alienadoras!)
indústria cultural das tecnologias. Nesse sentido, cabe explorar e compreender a nuance
dada ao termo gula tecnológica, não descrevendo o porte da tecnologia em si, mas as
relações desenfreadas (e por vezes obsessivas) de filiação a um mercado de aquisição e
consumo extremamente lesivos (ADORNO, 2021).
Sinalizando um cuidado para o uso das mídias digitais e suas implicações no âmbito
educativo e nos ideais democráticos da convivência social, Josh Stumpenhorst em seu livro A
nova revolução do professor: práticas pedagógicas para uma nova geração de alunos (2020),
reconhece o desafio de educar frente ao cenário do século XXI. Se por um lado a tecnologia
favorece estarmos informados sobre o mundo, sua apropriação inadequada pode alienar,
pensamento compartilhado por Martins e Coelho (2020). Nesse caminho, acerca do uso das
tecnologias no âmbito escolar, Stumpernhorst declara que:
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(...) Não podemos simplesmente presumir que isso irá de alguma forma
aprimorar o ensino e o aprendizado em nossas aulas. Como professores,
devemos ser cautelosos com relação a esses objetos brilhantes e às modas
(grifo nosso), que podem servir como distrações (STUMPENHORST, 2020, p.
109).
Nessa ótica, o autor entende parte das tecnologias atuais oferecida aos jovens e à
sociedade como um todo como objetos potencialmente distrativos. Quer dizer, se apoia nas
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICS) como objetos de brilho e luminosos que
competem com as ferramentas tradicionais que a escola oferece. Para o autor, essas
apropriações frenéticas de novos aparatos tecnológicos – o que aqui no artigo denominamos
de gula tecnológica – se aproxima muito das oscilações e da perecibilidade do mundo da
moda.
Comungando com as ideias de Stumpenhorst (2020), Martins e Coelho (2020),
entendem que a escola atual vivencia muitos desafios de ordem teórica e prática. Não existe
uma preparação da escola e dos seus profissionais para se pensar sobre os desafios que a
escola deve enfrentar para se posicionar e realizar um trabalho consciente de
questionamento de ideologias que impregnam os veículos midiáticos. Do contrário, há um
certo mito de achar que tudo o que é tecnológico é bom e moderno, sobretudo as redes
sociais. Mas, em que momento as mídias, as notícias, as FakeNews e as propagandas
televisivas são trabalhadas de forma crítica e estimuladora de uma educação emancipatória?
Nesse viés, os autores percebem um cenário atual da naturalização da invisibilidade da
pluralidade sociocultural, que subalterniza, inferioriza e desumaniza segmentos
representativos da sociedade brasileira. Nessa perspectiva, uma Educação para/com as
tecnologias digitais pode ser pensada sob ótica redutora de danos, evocando a possibilidade
de usos não problemáticos com as tecnologias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do manuscrito, nossa intenção foi problematizar algumas situações acerca
da gula em seus diferentes aspectos, do alimentar ao tecnológico. Não questionamos o livre
mercado, mas sim o consumo tecnológico excessivo que, pode tornar- se tornar agressivo e
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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO
abusivo. Não se trata de recusar a cultura digital ou manter-se abstêmio a tal, mas de
repensar o uso da tecnologia de forma reflexiva e ponderada, considerando seus riscos em
potencial e estratégias de minimizar os danos de práticas abusivas.
Autores como Han (2020), Stumpernhorst (2020) e Martins e Coelho (2020)
questionam exatamente o caminho do excesso para o próprio uso da tecnologia que
caminha rumo à uma sociedade da uniformização menos preocupada com a diversidade e
com a democracia. Diante disso, a reflexão, a compreensão das implicações dos contextos
culturais (CHARTIER, 2002) e a ponderação para o uso das tecnologias são questões
relevantes em nosso cenário educativo atual para serem pensadas nas atividades escolares e
no âmbito da formação inicial e continuada de professores, dado o reconhecimento da
cultura digital, das classes mais abastadas às de menor status social.
Dadas as interlocuções realizadas nesse artigo, não se pode desconsiderar os aportes
pedagógicos acerca da apropriação tecnológica vigente e toda a complexidade cultural que
ela carrega. Não se trata apenas do uso mecânico da tecnologia, mas de todo o impacto
biopsicossocial e relacional com o uso das mídias. De forma invasiva, a mídia e os discursos
da gula tecnológica são geracionais e pontuais. Inclinam-se à alienação e à uniformização de
comportamentos e padrões receitados pela interface nas mídias sociais, como bem
pontuado por Han (2020).
Se nos ampararmos nos pressupostos de teóricos como Chartier (2002) e Adorno
(2021), nas experiências pedagógicas de autores como Coelho (2020;2021) e Stumpenhorst
(2020), estamos convencidos de que a Redução de Danos, enquanto enfoque pedagógico,
reconhece e tange um caminho de equilíbrio para a exploração, manipulação e
entendimento das relações cotidianas para e com as tecnologias, sobretudo do celular e dos
aplicativos digitais.
No caminho que consideramos acima cabe salientar iniciativas recentes como as do
Programa de Formação Continuada para Professores da Fundação CECIERJ, RJ, Brasil, que –
dentre seus cursos no campo de Educação e Drogas – oferece desde 2021 o curso Educação
sobre Drogas: do alimentar ao digital, com a proposta de permitir aos professores e demais
profissionais de ensino momentos de refletirem acerca dos usos e abusos das tecnologias,
mídias e das manipulações da indústria cultural pouco visíveis aos olhos dos educadores das
escolas públicas.
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Seríamos nós usuários de carteirinha em face dessa agressiva indução velada de
“boas opções” para o consumo? Será que a indústria midiática não seria um lobo em pele de
cordeiro? Essas são boas questões para levarmos para as escolas, sensibilizando cada vez
mais os jovens. Que tal? Somos realmente capazes de refletir, ponderar e avaliar - com
prudência - se precisamos daquilo de forma imediata? Podemos recusar ou – pelo menos -
adiar o consumo? Ou nos resta a única possibilidade de consumir? Conhecer nossas reais
necessidades e pensar duas vezes antes de ser fisgado pela propaganda pode ser um bom
caminho educativo.
A educação tem compromisso com a formação dos indivíduos para a vida em
sociedade, sendo parte constitutiva de seu trabalho mostrar como os problemas sociais se
constituem, por um lado, e como é possível enfrentá-los de modo coletivo e organizado para
construir a superação das iniquidades e injustiças no caminho da transformação não apenas
individual, mas social, por outro lado. As prescrições individuais de resistência ganham outra
proposição e terminalidade quando consorciadas aos movimentos e mobilizações coletivas
para superação do atual modelo de sociedade.
O fato é que não existem soluções, tampouco receitas para lidar com os ataques
perversos e sistemáticos da mídia. Contudo, inclinar-se à abstinência da indústria cultural
pode ser um caminho também alienador e, quiçá, doloroso para os imersos na sociedade da
gula tecnológica. Por isso nos parece mais eficiente o exercício de compreender de forma
clara as intenções das mídias e suas micro e macro influências sobre nós mesmos. Analisar
cautelosamente as propagandas e questionar as reais necessidades de consumo antes da
aquisição são caminhos possíveis e viáveis. Guerrear contra a indústria cultural pode ser um
caminho árduo, embora sucumbir não seja a melhor estratégia. Tudo se pauta no campo do
equilíbrio. Afinal, quem de nós não se nunca consumiu... que atire a primeira pedra!
Agradecimentos
Agradecemos ao Grupo de Pesquisa Educação e Drogas (GPED/UERJ), ao Programa de
Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz
(PPGEBS/IOC/FIOCRUZ) e ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Química
(PEQui/UFRJ).
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DIANTE DA SOCIEDADE DO CONSUMO
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BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
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Elsevier, 2003.
FLECK, Eliane Cristina; DILLMANN, Mauro. “Para a alma, & para o corpo he a gula o mais mortal
peccado”: discursos religiosos e médicos sobre os entendimentos e os efeitos do consumo alimentar
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2021.
CHARTIER, Roger. À Beira da falésia. A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS,
2002.
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Lumus, 2021. 66p.
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Cortez, 2002.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HAN, Byung. Sociedade da transparência. Petrópolis: Editora Vozes, 2020. 116 p.
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MATTOS, José. Os aspectos socioculturais dos transtornos alimentares na constituição da
subjetividade de mulheres portadoras destes distúrbios. Dissertação (Mestrado em Psicossociologia
de Comunidades e Ecologia Social). Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
p. 187. 2006.
STUMPENHORST, Josh. A nova revolução do professor: práticas pedagógicas para uma nova geração
de alunos. Rio de Janeiro: Vozes, 2020. 225 p.
Data do envio: 31/05/2022.
Data do aceite: 20/07/2022.
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