DE UMA MÁQUINA A OUTRA: POLÍTICAS ATUAIS DE SUJEIÇÃO
SOCIAL E DESSUBJETIVAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS NO

BRASIL EM TEMPOS DE CRISTÃOCRACIA

FROM ONE MACHINE TO ANOTHER: CURRENT POLICIES OF SOCIAL
SUBJECTION AND DE-SUBJECTIVATION OF BLACK POPULATIONS IN BRAZIL IN

TIMES OF CHRISTIANCRACY

Andreia Alves Monteiro de Castro34

Luciana Pires Alves35

Resumo
O presente artigo pretende discutir a evangelização midiática e a reconversão da sociedade
brasileira, no período recente, em uma nação evangélica ou cristãocracia. Principalmente, o
agenciamento de populações historicamente marginalizadas pela fábula neopentecostal que
tem como alvo a subjetivação das mulheres negras ao defini-las como viga de sustentação
moral de um regime inimigo das tradições de terreiro, subserviente ao homem e temente a
deus. Nossa metodologia de análise compreende a leitura dos jornais, publicados a partir da
década de 1980, que registraram a emergência desses grupos religiosos e o uso dos
equipamentos culturais populares, como os antigos prédios dos cinemas e programas de
rádio e TV, enquanto meio de conversação de populações marginalizadas, principalmente as
mulheres negras.

Palavras-chave: Corpo. Subjetividade. Política. Educação.

Abstract
This article intends to discuss media education and the reconversion of Brazilian society, in
the recent period, into an evangelical nation or christocracy. Mainly, the agency of
populations historically marginalized by the neo-Pentecostal fable that targets the
subjectivation of black women by defining them as a beam of moral support of a regime that
is hostile to terreiro traditions, subservient to man and fearing God. Our methodology of
analysis comprises the reading of newspapers from the 1980s that recorded the emergence
of these religious groups and the use of popular cultural facilities, such as the old buildings of
cinemas and radio and TV programs, as a means of conversation for marginalized
populations, especially black women.

Keywords: Body. Subjectivity. Politics. Education.

1. Representações: as formas de chamar a mulher negra a existir na sociedade
brasileira

35Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: lualpires@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-8470-4966

34Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
andreiaacastro@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-2586-6789

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Segundo Chartier (1990), o conceito de representação se pauta em duas realidades

distintas, mas que se interpenetram. Uma diz respeito às identidades coletivas, aos ritos, aos

modos que fundamentam as instituições sociais. A outra se refere à identidade do sujeito, às

formas de exibição individual e à avaliação desse indivíduo pelo grupo. Por meio da

representação, fundam-se padrões, crenças e valores, muitos deles marcados pela

transitoriedade, pela instabilidade, pela fluidez, mas todos relacionados a questões estéticas,

morais, religiosas, filosóficas, políticas e econômicas, sustentando relações de poder, de

dominação e de resistência.

A arte, como instrumento de construção, de interpretação, de disseminação e de

questionamento das representações dominantes, obviamente, também projeta, mantém e

subverte identidades individuais e coletivas. Documentos oficiais, quadros, gravuras,

propagandas, romances, contos e poemas construíram e difundiram a imagem da mulher de

pele escura como um ser dotado de malícia, imoralidade e permissividade, consolidando, no

imaginário mundial, como o um corpo posto sempre à disposição, pronto para consumo.

As africanas e suas descendentes brasileiras, reificadas e exploradas, receberam, de

pronto, a imagem de “amantes mais quentes”, de mulheres sempre dispostas a realizar todo

e qualquer desejo masculino. A representação destas ardentes “morenas”, “pardas” ou

“mulatas”, trazendo à baila toda a carga significativa subjacente a estes termos, contribuiu

para a consolidação e a difusão desta visão, base para a estigmatização, a inferiorização e a

marginalização social. Fossem cor de jambo, de canela ou de trigo maduro, a menção às

diferentes tonalidades de pele resultantes da miscigenação, com frequência, estava aliada à

descrição estereotipada do corpo das brasileiras em geral: seios rijos, cintura fina, quadris

largos, glúteos avantajados e pernas bem-torneadas. Todo este conjunto de atributos

determinaria movimentos peculiaridades, apresentados, quase sempre, como gestos e

requebros atraentes e lascivos, sobretudo quando cantam e dançam os ritmos populares.

No entanto, visão, audição e tato não se separavam de paladar e olfato no que

tange à percepção do corpo feminino. Segundo Alain Corbin (1987), as sutilezas olfativas

permitiam uma nova gestão do desejo para os burgueses. Mães, irmãs, esposas e filhas

deveriam exalar o delicado perfume das flores, condizente com o recato e com a discrição a

elas convenientes. Jardins passam a ser separados das hortas domésticas e perfumes mais

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artesanais são superados pelas fragrâncias preparadas por perfumistas. Aromas almiscarados

ou aqueles que despertavam o apetite, como o de frutas, ervas e temperos, poderiam ser

interpretado como eróticas mensagens olfativas, sendo destinados àquelas que queriam

despertar a libido e estavam dispostas aos “gozos sensuais” (1987, p.239-265). Essa

representação, perpetrada pela ação conjunta do racismo e do sexismo, foi empregada para

justificar a exploração e o estupro dessas mulheres ao longo de séculos. Sem dúvidas, a

nossa cultura colonizadora e escravagista produziu uma vasta iconografia, insistindo em

representar esses corpos como dotados de uma sexualidade voraz, a perfeita encarnação de

um erotismo primitivo e desenfreado.

Muitas das teorias científicas oitocentistas a respeito das raças desenvolvidas com

base na cisão entre corpo e razão, e que ainda ecoam no século XXI, ajudaram a sustentar

esse imaginário. Segundo essas teorias, os povos colonizados eram destituídos de razão, o

que evidenciava sua inferioridade. Enquanto corpos não racionais, esses não-sujeitos

estavam muito mais próximos da natureza do que as pessoas brancas, e, como tais, deveriam

ser objeto de conhecimento, dominação e exploração.

Além da opressão racial, também a opressão sexual foi facilitada por esse

pensamento. A associação da mulher com a natureza – distanciada da capacidade de

raciocinar – colocou-a na posição do objeto que deve ser dominado, sustentando a

apropriação e a exploração de seus corpos e de seu trabalho. A iniquidade de toda essa

lógica atinge seu ponto mais alto quando analisamos a situação das mulheres não brancas:

sua objetificação, tanto por ser mulher, como por pertencer a uma “raça” dita inferior – e

quanto maior a inferioridade, mais próxima da natureza ela estará – sujeita a formas intensas

de exploração e dominação.

Como afirma Boaventura de Souza Santos, a mestiçagem marcada pelo “uso dos

corpos” das mulheres indígenas e negras pelo branco europeu é uma marca da colonização

portuguesa e explica a relação entre colonizador e colonizado nas colônias portuguesas,

como no Brasil:

No caso do pós-colonialismo de língua oficial portuguesa há que contar com
a ambivalência e a hibridação na própria cor da pele, ou seja, o
espaço-entre, a zona intelectual que o crítico pós-colonial reivindica para si,

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encarna no mulato e na mulata como corpo e zona corporal. O desejo do
outro em que Bhabha funda a ambivalência da representação do
colonizador não é um artefato psicanalítico nem é duplicado pela
linguagem: é físico, criador, multiplica-se em criaturas. A miscigenação não é
a consequência da ausência de racismo, como pretende a razão
lusocolonialista ou lusotropicalista, mas certamente é a causa de um
racismo de tipo diferente. Por isso, também a existência da ambivalência ou
hibridação é trivial no contexto do pós-colonialismo português. Importante
será elucidar as regras sexistas da sexualidade que quase sempre deitam na
cama o homem branco e a mulher negra, e não a mulher branca e o homem
negro. Ou seja, o pós-colonialismo português exige uma articulação densa
com a questão da discriminação sexual e o feminismo (SANTOS, 2003, p.
27).

Essa dupla discriminação racial e de gênero, Grada Kilomba (2020) apresenta,

através da ambígua relação entre presença e existência. Relação essa criada pelas sociedades

coloniais ao revelarem a condição da mulher negra como “a outra de outrxs”, aquela “sem

status suficiente para a Outridade”. Assim que criado pelo processo de significação colonial,

o lugar de identificação “mulher negra” foi constituído como duplamente inexistente,

justamente, por ser a outra em relação à categoria “mulher branca” e a outra em relação à

categoria “homem negro”, que por sua vez, são os outros em relação à categoria “homem

branco” (2020, p.15-16). Tornar ausente o existente é um dos expedientes mais usados pelas

estratégias de subjetivação do racismo. O modo de fabular das igrejas neopentecostais não é

diferente. Seu aparelho de captura marca como negativas ou ausentes as potências

matrilineares das populações negras. Criando, assim, um dispositivo de dessubjetivação, que

visa converter os sujeitos, fazendo com que tenham a sua subjetividade atada à

subjetividade do meio neopentecostal, visando a sujeição maquínica.

Por outro lado, é importante ressaltar que há, ainda, resistência a esse processo

advinda das mais diversas camadas populares, dos setores organizados da sociedade e de

instituições da educação pública, como: a defesa do povo de terreiro de seus espaços e

práticas; os trabalhos de pesquisa e ressignificação do ensino junto às escolas, incluindo a Lei

10.639 de 2003; e os movimentos sociais que promovem estudos e lutas entorno do

conceito de interseccionalidade.

Marcada por duas funções sociais, a condição da mulher negra, de acordo com

Gonzalez (2020), é regulada pelo lugar da “doméstica” e da “mulata”. Segundo a autora:

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O termo “doméstica” abrange uma série de atividades que marcam seu
“lugar natural”: empregada doméstica, merendeira na rede escolar,
servente nos supermercados, na rede hospitalar etc. Já o termo “mulata”
implica a forma mais sofisticada de retificação: ela é nomeada “produto de
exportação”, ou seja, objeto a ser consumido pelos turistas e pelos
burgueses nacionais. (...) Esse tipo de exploração sexual da mulher negra se
articula a todo um processo de distorção, folclorização e comercialização da
cultura negra brasileira (GONZALEZ, 2020, p. 44).

Considerando que a manutenção da ordem da representação é dependente do

modo de produzir subjetividade, manter compulsoriamente a mulher negra como alguém

que não é visto nem ouvido é possuir um território a explorar, é manter um corpo que serve

a diferentes fins por encontrar-se duplamente distante, e que, ao mesmo tempo, existe ao

alcance das mãos e da boca, como afirma Gonzalez (2020). Confrontar os modos de

representação, e, assim, desafiar a manutenção da ordem do sistema representativo,

depende de um trabalho ético e estético de confrontação das formas de dessubjetivação que

demonizam, que condenam e que abordam como espetáculo os ataques às religiosidades e

aos valores civilizatórios presentes nas religiões de matrizes africanas. É preciso reinscrever

subjetivamente, sob as normas da cristãocracia, os modos de perceber e representar o real e

o imaginário.

A cena trágica nossa de cada dia, encenada em nosso inconsciente colonial

capitalístico, tem como motor a cafetinagem generalizada, como afirma Rolnik:
A esse regime de produção da fábrica do inconsciente propusemos nomear
de “inconsciente colonial-capitalístico”. A espoliação dessa fábrica de
futuros se dá por meio de uma operação de cafetinagem: o movimento
pulsional é desviado de seu curso ético, no qual produziria “novos mundos”
em função do que pede passagem, para que, em seu lugar, produza
“novidades”, mais e mais cenários que multiplicam as oportunidades de
investimento e acumulação de capital e excitam a voracidade de consumo
numa velocidade exponencial. O abuso da pulsão é a medula micropolítica
do regime colonial capitalístico. Para viabilizá-lo, o inconsciente é um dos
alvos essenciais do megaempreendimento colonial operado pelo
capitalismo, que hoje tornou-se globalitário. Sendo assim, é impossível
transformar o atual estado de coisas sem intervir na esfera micropolítica:
descolonizar o inconsciente é o que almeja a insurreição nesta esfera
(ROLNIK, 2019, p. 29).

Como uma das tentativas de descolonizar o inconsciente e enfrentar política e

pedagogicamente essa questão, temos a produção da experiência com estudantes do curso

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de Pedagogia da UERJ/FEBF e do terceiro ano do CIEP 218 Ministro Hermes Lima, ambos

situados na Baixada Fluminense, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. No

coletivo de estudos, composto por jovens mulheres de áreas periféricas urbanas, nos

dedicamos a trazer referências discursivas diferentes das que estão presentes neste lugar e a

perceber as provocações vividas pelas estudantes e professoras durante o compartilhar das

vivências. Como os textos vão ressoar nos modos de significar instituídos? Quais são

incômodos? O que irromperá desse terreno? Nos permitirá tecer ou encontrar redes de

significação que possam criar uma esfera de insurreição? O sugerido nos possibilitará criar

uma via de emancipação real, que nos livre do reaparecer dos fantasmas civilizatórios que

julgávamos derrotados e avançar numa pauta de construção de uma sociedade emancipada

da condição colonial?

2. Religião e garantia da ordem representativa da mulher da Baixada

“Professora, apesar da minha crença... Minha mãe sempre foi feminista: cuidou da casa e trabalhou

fora. Apesar do meu pai ganhar mais que ela, foi o dinheiro dela que nos criou”

“Aqui, só tem abelha rainha. Elas criam os filhos sozinhas, são as donas da casa. Têm crush: ele pode

passar a noite na casa delas, mas só tem direito a uma refeição”

“Professora, só a verdade liberta!”

“Professora, quando vamos falar de criança?”

“Filho é da mãe!” “A mulher é a viga da família!”

Como enunciam as falas das praticantes, nosso trajeto docente é feito, muitas das

vezes, no confronto e no carinho, entre silêncios, sorrisos e lágrimas. A relação entre

infâncias e mulheres têm essa característica: é delicada e dura, é feita de memórias de

grandes esforços maternos e da vontade de retribuir a luta. “Comprar uma casa para minha

mãe”.

Essa representação da mãe como sacrificado esteio ou duro pilar que sustenta a

família, dividindo e sobrepondo o lugar da figuração da mais velha detentora de

conhecimentos e afetos, é legitimada pela igreja. Situação que conhecemos na prática, é

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confirmada pelas estatísticas do IBGE36 e IPHAN37, mais da metade dos lares brasileiros são

chefiados por mulheres. São elas as provedoras, as responsáveis pelas crianças. Mas também

são elas que se desdobram e pouco a pouco, com a ajuda das políticas afirmativas, garantem,

pelo menos, às filhas a permanência nas instituições de ensino.

Sobretudo o acesso à universidade é uma experiência nova para as famílias de

Duque de Caxias, muitas de nossas alunas fazem parte da primeira geração a chegar ao

Ensino Superior ou a participar de projetos de Extensão Universitária. Num contexto

desenhado pelo acesso à Escola Normal e ao ensino nas escolas dominicais, encontramos

traços de uma formação pelo espetáculo (a exemplo do teatro dos Jesuítas), amplamente

presente em nossos cotidianos. A presença das igrejas neopentecostais é marcada na rádio

da casa de sucos, nos adesivos nos cadernos, nas mensagens e nos agradecimentos a Deus

nos trabalhos monográficos, nas reclamações das mães e alunas: “só Jesus na causa”.

A multiplicação das igrejas evangélicas cresceu exponencialmente nos últimos

quarenta anos. As variadas designações e grupos foram avançando e dominando

ideologicamente os espaços periféricos como forma de conversão ao cristianismo

pentecostal. A “Guerra Santa Fabricada”, como definem Gomes & Oliveira (2019), foi declara

às casas de terreiro e aos valores e tradições dos Orixás entre a segunda metade da década

de 1980 e a década de 1990. A “Cruzada Pentecostal” representou uma luta aguerrida

através da demonização dos espaços, sujeitos, práticas e saberes populares de origens

africanas. A militância contou com o equipamento cultural à deriva nos bairros. A compra

dos cinemas de bairro garantiu a existência física da maioria dos templos da Igreja Universal

do Reino de Deus, que ficou conhecida através dos jornais, à época, como a Igreja Midiática

e lugar de milagres eletrônicos.

Na coluna “Tribuna Bis”, do jornal Tribuna da Imprensa, no dia 07 de fevereiro de

1988, é possível encontrar uma notícia intitulada “Exibindo fé e orações”, que não só

evidencia a ocupação das salas de cinema como também a infiltração das igrejas

neopentecostais nos espaços de sociabilidade e cultura populares, incluindo a Galeria Alaska,

37Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_acymailing&ctrl=archive&task=view&listid=10-

36Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0,43,432220,432360,432345,431550,430690,430930&cat=52,55,-17,
-18,128&ind=4704

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em Copacabana, que até então era um lugar de encontro e diversão voltada ao público

LGBTQIAP+.
Figura 1 – Exibindo fé e orações

Fonte: Tribuna Bis. In: Tribuna da Imprensa, 07 de fevereiro de 1988, ano XXXVIII, n. 11821, p. 1

O lugar de adoração e da fé se confunde com o palco do espetáculo. Com “Jesus em

Cartaz”, as igrejas evangélicas invadem cinemas, teatros, circos e até trios elétricos,

produzindo Shows Bíblicos em diferentes espaços, incluindo “inferninhos” da cidade, e a

coabitação, no mesmo espaço, de filmes pornôs e de cultos. Com o argumento já definido, a

luta contra o demônio, a redenção dos pecados mundanos e a teologia da prosperidade

garantem novos lugares sociais através dos bens de consumo. A fábrica de igrejas avança de

um território que compreendia os subúrbios e os bairros da zona sul carioca, prometendo

garantir a normalização e o controle moral desses espaços, e chega às favelas e aos bairros

da Baixada Fluminense, nos quais prospera fortemente, graças à ausência de equipamentos

culturais formais e de outras políticas de bem-estar social.

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Figura 2 – Religião X Erotismo

Fonte: Jornal do Brasil, 30 de março, ano XCVII, n. 553, p. 2

Pregando o ataque a vários símbolos da herança religiosa africana para uma

população especialmente vulnerável, às igrejas eletrônicas só progrediram. Por exemplo,

contando com os cinemas de bairro e com uma gráfica no bairro da Abolição, a Igreja

Universal do Reino de Deus (IURD) investiu em programas de rádio e em faixas de horário na

televisão, como o programa Despertar da fé, na Bandeirantes, chegando a comprar uma

emissora própria: a Rede Record de televisão. O poderio midiático e econômico garantiu

também o poder político, a “cristãocracia”38. Nos anos oitenta, no Estado do Rio de Janeiro,

esse movimento elegeu, como deputado constituinte, Roberto Lopes, da frágil legenda, à

época, o PTB. O então deputado sem experiência partidária, tinha em seu currículo o

passado de jogador de futebol em times do Rio de Janeiro e a atuação como pastor da IURD.

Dos idos de 1980 e 1990, o poder político acumulado pelas igrejas se sustentou pela forte

bancada evangélica, com a qual, atualmente, diferentes ocupantes do executivo mantêm

uma relação de dependência.

Como educadoras, nos cabe ressaltar que a aliança entre Estado e igrejas

evangélicas também usa os mecanismos e espaços educativos. Muitas das escolas de

38 “Cristãocracia” termo utilizado por Sidnei Nogueira (2020).

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educação básica têm a equipe diretiva composta por evangélicos indicados pelo chefe do

executivo local.

O êxito da evangelização midiática se explica por meio da sujeição social e da

servidão maquínica, uma vez que a máquina técnica nunca opera sozinha. Ela é parte de

maquinário social, cujo engendramento é produzido por conexões, enunciados e desejos.

Como afirma Lazzarato:
A servidão não age nem por repressão, nem por ideologia. Ela procede por
técnicas de modelização e modulação, que se conectam às “energias
mesmas da vida e da atividade humana”. Ela se apodera dos seres humanos
“por dentro” e “por fora” ao equipá-los com certos modos de percepção e
de sensibilidade, bem como de representações inconscientes. A formatação
exercida pela servidão maquínica intervém no “funcionamento de base dos
comportamentos perceptivos, sensitivos, afetivos, cognitivos, linguísticos”
(2010, p. 3).

A igreja eletrônica, como foi chamada pelo Jornal do Brasil nas décadas de 1980 e

1990, recorre a expedientes tecnológicos para, a partir da excitação dos sentidos, produzir as

sensações necessárias para a adesão da população à crença.

A partir dessa rede, geralmente, se estabelece uma mediação simbólica. Nem o

futebol escapou. Basta ver que a proibição de adoração a qualquer ídolo também atingiu

atletas consagrados, como o "rei Pelé”. Os cultos no Maracanã resultaram não só em grandes

somas em dinheiro arrecadadas, mas na prática política de interdição a toda a referência fora

do universo evangélico.

Figura 3 – Evangélicos informam: Sai Pelé o rei do futebol. Entra Jesus, o rei dos reis

Fonte: Jornal do Brasil, 18 de abril de 1887, ano: XCVII, n.10, p. 5

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A metodologia da “cristãocracia” funciona como uma máquina de subjetivação que

captura a massa através dos meios de comunicação tradicionais e digitais. Assim, o ocorrido

se encontra mais no campo de uma “guerra total” dissimulada pelo jogo ou encenação

midiática.

Huizinga (2007), ao estabelecer as relações entre a guerra e o jogo, afirma que só é

lícito falar da função cultural da guerra quando os antagonistas lutam ou jogam em igualdade

de condições e reconhecimento de legitimidade. Fora das circunstâncias dos direitos, não há

combate, mas uma investida na direção da pilharem e da eliminação total do outro, sob os

argumentos conhecidos “bárbaros, diabos, pagãos, hereges, “raças inferiores destituídas de

leis” (HUIZINGA, 2007, p. 102).

Podemos afirmar que a “cristãocracia’, pelos meios de comunicação analógicos e

posteriormente através dos meios digitais e nas redes sociais, serve como instrumento da

busca violentar a população negra, num exercício brutal e embrutecedor do poder

(MBEMBE, 2019).

A narrativa espetacular da “guerra santa” encobre a violência generalizada que tem

o corpo negro, físico e simbólico, como alvo de um extermínio normalizado como forma de

gestão apenas sem vinculação da esfera do Direito. Essa condição alimenta a perpetuação de

privilégios que sustenta o nosso inconsciente colonial. Uma “máquina coletiva de

enfrentamento” para arar o material sedimentado em nosso presente assombrado pelos

fantasmas e fantasias escravocratas, uma outra relação ética-estética que não a do super

estímulo e entorpecente.

Nossa pesquisa/intervenção enfrenta os elementos pertencentes ao dispositivo da

“cristãocracia”. Buscamos, com os estudantes, desemaranhar os fios das relações de fé e de

redenção; da pobreza e da falta de oportunidade que seriam vencidas pela teologia da

prosperidade e pelo rígido controle da figura do feminino através da vida para a família.

Reconfigurar nossa rede cultural, estética, lúdica através da formação é suturar

nosso trabalho de enfrentamento desse processo de aniquilação e da tentativa de retomada

de si através da diversidade de fontes para a produção da experiência estética e da tentativa

da produção do espectador emancipado acontece na cidade de Duque de Caxias.

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Castro e Alves

Nosso lócus de intervenção se situa em Duque de Caxias, cidade da Baixada

Fluminense, conta com uma população autodeclarada negra (preta e parda) de 542.300,

sendo 72% evangélica e católica e menos de 1% (5.172) declarada de religiões de matrizes

afro-brasileiras, segundo o censo do IBGE, 2010.

Encontramos resistência a partir de uma leitura de mundo alimentada pelas

imagens produzidas pela “Cristãocracia”. Verificamos, não só, a reprodução cotidiana da

intolerância e racismo religioso contra qualquer referência vinda das Comunidades

Tradicionais de Terreiro (CTTTro) como Nogueira (2020), como também, a pretensão de

tutelar ou funcionar como referência a todas as formações de sentido dos sujeitos.

Essa situação só se agravou no governo Bolsonaro, uma vez que o representante da

nação legitima tais ações, como noticia o site g1, no dia 30 de junho de 2019, na cobertura

da Marcha para Jesus, em São Paulo.

Figura 4 - Marcha para Jesus 2019, São Paulo

Fonte:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/06/20/27a-edicao-da-marcha-para-jesus-em-sao-paulo-fotos.

ghtml

Assim, quando discutimos as infâncias, os femininos, o sentido social da escola, as

relações com arte, natureza e cultura e objetos técnicos nos confrontamos com os discursos

e ordenações vindas das igrejas. Atualmente, nas periferias urbanas, encontramos a tarefa

educativa de enfrentar os discursos oriundos desse projeto de conformação da sociedade

brasileira através da conformação das famílias através do imaginário nutrido pela fábula

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neopentecostal. Nosso trabalho se inscreve na tarefa de criar imaginários a serviço da

emancipação e com a capacidade de interromper a cadeia de produção da normaliza a

violência e a brutalidade (MBEMBE, 2019).

Interpelar a fábula neopentescostal requer entre outras ações: enfrentar a

demonização das comunidades tradicionais de terreiro como violência simbólica. Isso nos

ajuda a desmontar um dispositivo negativo das políticas de inimizade (MBEMBE, 2019), que,

no lugar de evidenciar as desigualdades e injustiças sociais, se restringem a formular

culpados pelos infortúnios e fracassos resultantes das políticas socioeconômicas.

Novos personagens de uma trama “requentada”, os povos pretos como animais

desalmados, a mulher a serviço dos interesses (ora de exploração do corpo:

hipersexualizado, ora com o corpo a serviço da família) e o perigo vermelho, as mínimas

políticas de proteção social tomadas como doutrina comunista. Esses são fios de um tecido

social escravocrata, misógino e subserviente, como exemplo disso, temos “Marcha da família

com deus pela liberdade” que surgiu como contraponto ao comício de João Goulart, em 13

de março, pelas Reformas de Base.

A população feminina, que antes era representada apenas através de sua utilidade

sexual, reprodutiva e como força de trabalho, é capturada, após a sua redenção, pela

reconversão espiritual de cunho político. Essas mulheres são chamadas a participar como

instrumentos úteis ao exibir com orgulho a obediência e o ardor diante do soberano homem,

aqui deus soberano se equivale a um totem sexual (BEAUVOIR, 2016, p. 410). A mulher servil

e conservadora está sempre disposta a ajoelhar e a deitar-se aos pés do senhor humano ou

divino, sendo o homem o seu único meio e razão de viver. A figura feminina é representada

como pilar ou viga para a conservação dos costumes e da moral. Em diferentes momentos do

patriarcado, as mulheres são chamadas a lutarem contra o mal, como afirma Beauvoir:

Ela é sempre alguém ou alguma coisa, entre os antidreyfusistas, as
mulheres eram mais encarniçadas ainda do que os homens; elas nem
sempre sabem onde reside o princípio maligno, mas o que esperam de um
bom governo é que ele o expulse como se expulsa a poeira da casa. Para as
gaullistas fervorosas. De Gaulle se apresenta como o rei dos varredores; de
espanadores e trapos nas mãos, elas o imaginam limpando e fazendo
brilhar uma França “limpa” (BEAUVOIR, 2016 p. 427).

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Uma trama se completa: o perigo das teorias de gênero, do feminismo e dos

comunistas; o combate contra o demônio: os orixás e a limpeza da sociedade pela eliminação

da corrupção. As servas do senhor são recrutadas e recebem papel principal numa trama de

adoração e destaque dos homens representantes de deus na Terra. O uso das mulheres e o

domínio dos espaços são signos da disputa pelo poder de recriação de um corpo político do

território. A ascensão evangélica e o bolsonarismo andam juntos constituindo uma grande

ameaça às Comunidades Tradicionais de Terreiro, segundo Prandi (2021)39, em entrevista ao

Jornal Folha de São Paulo, como demonstração de força da Bancada Evangélica, vivemos a

destruição das políticas públicas de proteção aos cultos e a constante intimidação que visa

recriar a condição anterior à Constituição Cidadã de 1988. Tal conjuntura é evidenciada na

presença do presidente em pronunciamentos de pastores/políticos.

Figura 5 - Jair Bolsonaro (Presidente da República), Pastor Everaldo (preso por corrupção na Saúde do Estado do
Rio de Janeiro e Eduardo Cunha (preso por corrupção pela Operação Lava Jato)

Fonte:https://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/08/a-igreja-de-eduardo-cunha-vai-devolver-os-dizimos-q
ue-ele-depositou.html

Os slogans, tais como “Esta cidade pertence ao Senhor Jesus”, presentes até nas

placas oficiais da cidade, funcionam como instrumentos de normatização de espaços e de

corpos, sendo empregados na conversão em massa e ocupando o lugar como símbolos dos

poderes paralelos (LEEDS, 2006). Criado entre os anos de 2019 e 2020, o Complexo de Israel

tem como demarcação os símbolos do povo judeu, como a bandeira do país e a Estrela de

39 Folha de São Paulo, 23 de janeiro de 2021.

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Davi. Frases de advertência, como “Jesus é dono desse lugar”, são escritas nos muros, nos

espaços em que as tradições das comunidades de terreiro são proibidas e seus praticantes

agredidos e expulsos. Aliado ao proselitismo eleitoral, temos o proselitismo do crime que

afirma seu poder territorial pelo controle da fé.

Figura 6 - Terreiro de candomblé com mais de 50 anos é destruído no bairro Parque Paulista, em Duque de
Caxias, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro

Fonte:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/07/12/terreiro-de-candomble-e-destruido-em-duque-de-c

axias-na-baixada-fluminense.ghtml

A tríade rei, lei e fé afirma-se na rasura e na negação dos outros. No processo de

violência dos signos, os índices de território são tomados e combatidos tornando-se símbolo

do domínio do outro e são disseminados como ícones de uma superioridade fabricada. Esse

jogo/encenação esconde ou visa esconder um uso abusivo e violento do poder. A guerra

contra “orixás e pretos velhos” foi oficialmente permitida pela sociedade brasileira, que dela

se serviu como instrumento de racismo religioso, visando a manutenção de privilégios pela

via simbólica, como concentração de renda e poder político eleitoral.

Figura 7 – Guerra santa fabricada

Fonte: Jornal do Brasil, 3 de novembro de 1987, ano: XCVII, n. 209, p. 1

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Não tardou para que os poderes paralelos, como o tráfico e as milícias, utilizassem o

mesmo expediente narrativo, como noticia o site g1, no dia 24 de julho de 2020.

Figura 8 – O Complexo de Israel

Fonte:https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/24/traficantes-usam-pandemia-para-criar-novo-c
omplexo-de-favelas-no-rio-deixam-rastro-de-desaparecidos-e-tentam-impor-religiao.ghtml

Representando um traço de sofisticação desse processo de dominação religiosa,

cultural e política, é possível destacar a assimilação de vários elementos representativos da

africanidade no Brasil, alguns deles tombados como patrimônio nacional, antes proibidos

pelos pentecostais. Enquanto, nas instituições, os estudos de História e das Literaturas

Africanas ainda é repelido como “coisa do demônio”; nas ruas, a capoeira ancestral e funk

carioca são “revestidos” pelo título e pelo léxico do gospel, sendo aceitos por essas

comunidades.

Ainda sobre o funk é interessante perceber que, embora manifeste um discurso

moralizador sobre a sexualidade, preservam os movimentos da dança do “funk putaria” e a

glorificação ao luxo, ao poder e ao dinheiro do “funk ostentação”40. Como na letra da do hit

“Nóis tem montão”, do antigo integrante do bonde d’Os Havaianos, Tonzão:

Nóis tem montão, nóis tem montão
Deus deu muito pra nóis
Pra nóis dividir com os irmãos
[...]
O nosso carro não é luxo, é necessidade
Tem que ser 4x4 pra entrar na comunidade

40 Ver dissertação defendida de Ingrid Fernanda dos Santos Carvalho: Pode funk? O corpo cênico em ação: um
ensaio sobre a dança na escola
. UNESP, 2020.

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Sobe morro, desce morro, entre becos e vielas
Tem que ser uma moto zica, pra pregar lá na favela
[...]
Ter um monte de mulher, isso aí é pra covarde
Quero ver ter uma só e renunciar a própria carne
(TONZÃO, 2014).

Já o acarajé, uma das mais famosas iguarias da culinária baiana, a comida votiva de

Iansã, passa a “bolinho de Jesus”:
A conversão de baianas do acarajé às igrejas neopentecostais tentou afastar
do famoso bolinho de feijão fradinho os traços afro-religiosos, eliminando
os rituais que antecediam sua venda, retirando os símbolos que enfeitavam
o tabuleiro e as próprias baianas, mudando o nome africano. Para conter
esse movimento foi necessária a intervenção de uma lei, mas o estrago é
profundo, pois não se trata apenas de refutar os elementos específicos de
uma cultura. Estamos falando de dominação, de uma posse indevida que
visa exploração e lucro (D`GIYAN, 2017).

Figura 9 - Baianas de Acarajé

Fonte: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/58

O repertório religioso afro-brasileiro foi transformado em verdadeiro espetáculo de

afirmação e de conversão em massa. Tudo transmitido “pelas antenas de TV”, mudando

sentidos, cortando raízes, esvaziando símbolos de luta e resistência. Como diz a letra da

música Alagados, da banda Paralamas do Sucesso: “A arte de viver da fé, só não se sabe fé

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em quê”. A reconversão simbólica visou ajustar os modos de vida populares, da relação

visceral com o Exú, boca que tudo come e a todos alimenta, para a teologia da prosperidade,

para a adoração ao Deus que garante o acúmulo e consumo de bens de capital. A paulatina

substituição da fé na palavra dita, “Exú da meia-noite/ Exú da encruzilhada/ O povo da

umbanda/ Sem Exú não consegue nada” pela crença expressa na palavra grafada em

folhetos, propagandas e adesivos automotivos, “Foi Deus que me deu.”

Essa passagem da tradição, de um modo de vida, de uma cosmovisão milenar em

mero truque midiático, em um produto de consumo, teve como efeitos o enfraquecimento

ainda mais agudo das subjetividades, o aprofundamento de preconceitos e a promoção do

ódio a tudo aquilo que teima em revelar que somos a maior população negra fora da África.

Os meios de comunicação e as mídias sociais, que inoculam venenos, também

servem como antídoto. Essa mesma disseminação de auto ódio ou da negação de si mesmo,

como afirma Lucas Motta Veiga, em Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia

Preta, também é combatida por movimentos de aceitação e de afirmação estética, de

valorização dos artefatos culturais e da beleza dos corpos pretos e periféricos. Ainda que

muitos desses movimentos, ao se tornarem fenômenos das redes, acabem perdendo, por

vezes, um pouco da força como luta e resistência, se transformando em objeto de desejo e

de consumo das classes médias e altas.

Em um post publicado no portal Mundo Negro, sobre a apropriação do chamado

“loiro pivete”, Alexandre Santana afirma que antes “fazer a cabeça” de grandes

influenciadores brancos, de artistas e profissionais da moda, o cabelo loiro descolorido era

extremamente marginalizado:
O debate sobre apropriação e como membros de uma cultura dominante
incorporam elementos de grupos oprimidos é antigo e extenso. No nosso
caso a premissa continua sendo a mesma: O que é criado na favela é objeto
de desprezo até ser incorporado, virar moda e tendência em rostos, corpos
e espaços brancos. Amam a cultura preta mas odeiam gente preta
(SANTANA, 2020).

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Figura 10 – Loiro pivete

Fonte:https://mundonegro.inf.br/o-loiro-pivete-amam-a-cultura-preta-mas-odeiam-gente-preta/

Outro movimento que modificou a cabeça dos jovens da Baixada e que virou moda

nacional foi o de aceitação dos cachos. Impulsionada pelo surgimento de produtos e salões

de cabeleireiros especializados, como a rede Beleza Natural, localizada em Duque de Caxias,

a onda das cacheadas virou tsunami e alcançou notoriedade. Os cachos se tornaram pauta

de programas de massa e são usados orgulhosamente por atrizes, por apresentadoras e por

influenciadoras famosas, que, há décadas, alisavam seus cabelos ou usavam perucas,

apliques e outros artifícios do tipo. Fenômeno observável no interior dos muros do colégio,

no qual alunas e professoras não escondem os seus cabelos.

3. Emancipação, representatividade e valorização cultural

Ao enunciar a situação política vivida em termos de sujeição maquínica e
dessubjetivação, apostamos no que Guattari (1981) chamou de inconsciente maquínico,
que prioriza as aberturas e passagens de fluxos, sendo de natureza heterogênea, nele se
articulam todos os sistemas de potência que nos articulam e as formações de poder que
nos cercam. Dentro dessa perspectiva, a atuação no campo social dispara, ou pode
disparar, trajetos de desassujeitamento e retomada de potência sempre em disputa e
tensão com o sistema capitalista. Assim, a atuação nas escolas é de importante veículo

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para compor um agenciamento coletivo que enuncie e produza novas formas de ver e
viver as questões de gênero, raça, classe e território, entre outras formas de
micropolíticas e microfísica dos poderes.

Discutir representatividade e valorização da cultural são também atividades do

cotidiano docente como via política e epistemológica de enfrentamento com as classes

populares. Na feira literária da escola, a obra escolhida foi Negrinha, de Monteiro Lobato. Os

estudantes aproveitaram a encenação do texto para discutir temas como o racismo, a

objetificação dos corpos negros, a solidão da mulher negra. A menina que descobre sua

humanidade ao ver uma boneca pela primeira vez foi o ponto de partida para série de

perguntas feitas para uma plateia majoritariamente negra. Meninas e mulheres são

bonecas? Quem já sofreu discriminação pela cor da pele? Quem já foi preterido por ter a

pele escura e o cabelo crespo? Quem dita o que é beleza? Quem condiciona os seus afetos?

Quem ganha com a domesticação e a docilidade dos corpos?

Em um trabalho extensionista, propomos uma roda de conversa sobre a importância

da leitura de textos de autores africanos em sala de aula com alunos do curso de Pedagogia,

da FEBEF. As questões levantadas pelo conto A menina Vitória, de Arnaldo Santos, nos

levaram a (re)pensar nossas práticas docentes. Analisar o comportamento da professora

mestiça que, por entender que ascendeu socialmente, recrimina, ridiculariza e discrimina os

alunos de pele mais escura e valoriza os alunos com “cabelos alourados e sedosos”, mostra

como essa situação não pode ser admitida, não é possível admitir que docentes reproduzam

o racismo estrutural.

Em nosso fazer compartilhado, incluindo as produções monográficas, encontramos

possibilidades de tecer memórias de luta e potência em torno do vivido, como o trabalho de

Letícia Pedro com as suas lembranças e personagens intergeracionais. A aluna, que se

constitui como autora, escreve as memórias de Manoelinas, lugar narrativo criado a partir de

sua avó Manoelina, poetisa oral e narradora de histórias no município de Magé, na Baixada

Fluminense. Apesar de muitas histórias terem se perdido pela dispersão da vida de seus

familiares que se dividiram pelo trabalho na fábrica de tecidos e nas casas de família, Letícia

elabora uma trama ao pluralizar o nome Manoelina e incorporar a ele diferentes gerações de

mulheres de sua família. O que revelou a complexidade de um tecido social de

solidariedades e perdas, numa luta pelo viver que é intergeracional e parcial, como afirma

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Mbembe: “A memória coletiva dos povos colonizados procura maneiras de mostrar e viver

aquilo que não sobreviveu ao incêndio (p. 20, 2019). Na vida feito música, Letícia nos diz:
Mais que abrir os olhos, me emprestaram suas lentes para que eu pudesse
enxergar a vida em novas e melhores perspectivas. A vida é como música
na maioria das vezes. Feito uma dança, acontece através dos movimentos e
não foi justamente o que vocês fizeram? Enquanto a melodia tocava,
independente do ritmo que lhes era proposto, vocês se movimentavam,
seguiam os passos, em seu próprio tempo e mesmo cansadas não paravam
se reinventavam a cada compasso. Vida, feito música, que ecoa,
ultrapassando o tempo, as estações e atinge as gerações. É assim que vejo
vocês, com uma música cantada, que não foi só ouvida no passado, mas que
até hoje está presente em cada um de nós, fazendo com que pessoas como
eu, se encham de coragem para continuar dançando e cantando, falando e
lutando e jamais se calando. Sabendo que ainda há muito a se fazer,
influenciada e inspiradas por vocês, me comprometo a dar continuidade a
toda luta e esforço de vocês (PEDRO, 2020, p. 58).

Defendemos como tarefa político-epistêmica da docência, nos diferentes níveis de

ensino, como destramar ou desmontar desse dispositivo de destruição e desqualificação de

nossas heranças ancestrais. Defendemos invenções de novas cenas ou a emancipação do

espectador como criação de performances de resistência e cura contra as violências de

diversas ordens. As produções narrativas e discursivas com as mulheres das periferias ao

interpelarem os lugares sociais a nós destinados criam dentro das instituições acadêmicas

percursos de emancipação em vias éticas e estéticas.

Nossa pesquisa entrecorta artefatos literários, histórias de vida, e argumentos

oriundos de diferentes correntes de pensamento que promova o deslocar, um movimento

ambulatório de mergulho coletivamente nesse lugar estético, do pensado e do não pensado,

do lembrado e do imemorial, possamos criar outras vias de representação e fortalecer as

formas de significação que rivalizam com a condição colonial e afastam os seus fantasmas.

Não se trata de uma análise coletiva ou substituição da função médica, mas sim de lidar com

as feridas através da compreensão social e política e criar outros dizíveis e visíveis, tornar

plural e alterada a ordem representativa.

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Data do envio: 31 /05 /2022.
Data do aceite: 23 /08 /2022

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