BILINGUISMO NO INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE SURDOS:
PRÁTICAS INSTITUINTES E INOVÕES PEDAGÓGICAS
BILINGUALISM AT THE NATIONAL INSTITUTE OF DEAF EDUCATION:
INSTITUTING PRACTICES AND PEDAGOGICAL INNOVATIONS
Mario Missagia1
Erika Souza Leme2
Rejany dos Santos Dominick3
Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem e,
afinal, suas circunstâncias. Mais que um decifrador ou um vingador, mais que um
sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansavel labirinto de sonhos
regressei, como a minha casa, a dura prisao (BORGES).
A ideia que deu origem a este número especial poderia ser contada de várias formas,
mas subitamente ela retorna ao organizador deste número quando de sua leitura da
passagem acima. O conto que a contém es em um livro de Jorge Luis Borges, chamado O
Aleph (1949)4. Nele, em "A Escrita do Deus”, o autor recorre à passagem não para enxergar
neste ou naquele homem a resultante passiva de um conjunto de circunstâncias que o move.
Não, antes disto é para perceber que o caminho feito é, ele próprio, parte do lugar onde se
chega e que não existiria fora das experiências que constituem homem e caminho. Neste
sentido, o autor nota que a forma encontrada, por cada um de nós, para buscar o fim a que
nos propomos não pode ser outra que não as próprias circunstâncias que nos encarceram
neste único mundo concreto, existente frente a tantos outros mundos possíveis.
O debate trazido pelo autor argentino não é a respeito da autonomia do Homem
frente às circunstâncias que o condicionam. É, sim, um debate sobre a constituição do
4Disponível gratuitamente em https://doceru.com/doc/n505n.
3Doutora em História, Filosofia e Educação (UNICAMP). Professora, extensionista e pesquisadora da Faculdade
de Educação da UFF e do Curso de Mestrado em Diversidade e Inclusão do Instituto de Biologia-UFF. 1ª
Secretária da Associação Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica, coordenadora de
área do PIBID-UFF Pedagogia - Niterói 2022 e Editora da Revista Aleph. E-mail: rejany_dominick@id.uff.br.
2Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em
Educação (UFF). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas LaIFE - Laboratório de Inclusão, Formação Cultural e
Educação. Membro da AIIIIPE - Associação Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica.
Editora da Revista Aleph. E-mail: erikaleme@id.uff.br
1Professor Adjunto do Departamento de Ensino Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).
Doutor em Ciência Política (UFF) e membro do grupo de pesquisa Narrativas Sobre Surdez, História e Sociedade.
Organizador deste número da Revista Aleph.
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Homem em suas próprias experiências, essas são expressões da vontade e das influências
que nos impelem em algum sentido. A forma da existência do Homem tem, como condição
necessária, à própria circunstância, que é sua existência. Um novelo que nos enreda!
Borges, ao tomar o mesmo caminho trilhado por José Ortega y Gasset (1967)5, em suas
Meditações do Quixote, tenta desfazer a distinção entre o Homem e o mundo
compreendendo que o que pode existir é o homem no mundo. Talvez, o homem aprisionado
da epígrafe valha como metáfora também para a educação de surdos. A concreta frustração
daqueles que esperavam seus filhos nascerem ouvintes fundou as bases de muitas das
experiências educacionais que enxergaram os surdos por suas ausências. Tais experiências,
por sua vez, foram, também, a condição objetiva que fez nascer uma militância orientada ao
combate da concepção, então hegemônica, ligada à falta. As escolas de surdos, que
ensinavam jovens surdos a falar, os colocavam diante de professores ouvintes. A
identificação entre os discentes e a busca pela interação entre pessoas de mesmas condições
potencializaram o embrião de uma língua e esta como um lugar exclusivo de pertencimento.
Mas, poderia existir este lugar sem os outros? Desde então, os desafios travados
historicamente, alguns com avanços significativos para a inclusão das pessoas surdas e da
língua de sinais, capilarizaram-se nas mais diversas esferas da vida social.
No INES uma busca pela superação de antigas fórmulas pelas vias das práticas
pedagógicas dos próprios docentes que se retiram dos lugares de conforto. O nascimento do
curso de Pedagogia indicou a ênfase na educação bilíngue de surdos, ao propor tomar a
Libras como língua de instrução. Nesta perspectiva, foi ofertada a tradução simultânea da
Libras e da língua Portuguesa em todos os seus espaços pedagógicos. Tal ação não
solucionou os desafios anteriores, embora significando avanços, ela também propôs novos
desafios.
Tal como o prisioneiro descrito por Borges, que alimentou a esperança de fugir de sua
prisão, surdos e ouvintes viram como condição necessária decifrar a língua na qual o Deus
teria escrito o mundo. Ao longo dos anos em que passou encarcerado, com a "formula de
catorze palavras casuais”, o prisioneiro poderia finalmente "abolir este carcere de pedra, para
que o dia entrasse em minha noite”. Contudo, o desejo por uma língua que decifrasse os
enigmas e abrisse o mundo para que os surdos e ouvintes o lessem de forma igual tem se
5Leia grátis em https://doceru.com/doc/nn0xnnv
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mostrado um sonho, especialmente a partir do momento em que voltamos às circunstâncias
concretas e complexas desta condição que tem se constituído na reorganização das nossas
relações. Ao conquistarmos acessibilidade linguística para os surdos nos deparamos com
outro desafio: a complexidade prática da educação bilíngue para surdos e ouvintes. Essa vai
muito além das dificuldades trazidas pelo maior ou menor domínio de suas condições
básicas: a Libras e a língua portuguesa escrita são desafios para os dois grupos de
estudantes.
Os textos reunidos neste número especial trazem em comum o esforço de buscar
refletir e registrar estas novas circunstâncias e desafios da educação de surdos e ouvintes no
contexto das iniciativas no INES.
Nunca tínhamos experienciado um curso a distância que se propôs a usar Libras como língua
de instrução: um desafio. Os problemas que vivenciamos não foram os que imaginávamos:
nesta perspectiva, aprendemos a nos inovar pedagogicamente. Vivemos assim, o desafio de
colocar em interação tecnologias, Libras e Língua Portuguesa, tudo junto e embolado, para
conseguirmos viver uma escola que inclui não apenas alunos surdos, mas também
professores surdos e ouvintes, todos com diferentes níveis de proficiência em Libras. Neste
contexto, a bidocência e o bilinguismo se afirmaram neste espaço educacional.
Ferramentas como: o Manuário Acadêmico e Escolar, online, em construção, com sinais
específicos das áreas de Pedagogia e de Ensino; a plataforma do curso de graduação em EAD;
o repositório digital para agregar e disponibilizar materiais; e recursos audiovisuais
contemporâneos têm sido essenciais para organizar e viabilizar as interações entre surdos e
entre surdos e ouvintes. No ensino superior, o desafio é ensinar os dois ao mesmo tempo,
propondo uma relação entre a Libras e a Língua Portuguesa falada e escrita que não seja a
alternância na forma da tradução, mas sim com o uso complementar que permite a surdos e
a ouvintes construírem sentidos, assim como a própria Libras se constitui no processo.
Com este fomos levados a refletir sobre temas como o encerramento das atividades da TV
INES, que foi uma grande perda para todos. O dia a dia nos bastidores da TV foi exigindo dos
dois grupos uma mudança de paradigma com relação à comunicação, espaço bilíngue e
aceitação das diferenças. A experiência gerou a inclusão na dinâmica de trabalho de novas
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técnicas que possibilitaram a construção de um material bilíngue totalmente acessível à
comunidade surda.
Todas as experiências aqui abordadas foram possíveis por força do desdobramento das
circunstâncias desafiadoras que impulsionaram mudanças, desterritorializando saberes e
fazeres. A afirmação de uma educação bilíngue de surdos tem se apresentado como o fim de
uma educação calcada no esforço de normalizar os surdos, mas provou ser também o ponto
de partida de novas questões que antes não podíamos antever.
Qual o papel dos ouvintes na educação bilíngue de surdos? Qual sua relação com a Libras?
Qual a relação dos surdos e dos ouvintes com a escrita em língua portuguesa? Como será
organizado um espaço educacional frequentado por surdos e ouvintes com diferentes
competências linguísticas? Como disponibilizar conteúdos de forma bilíngue em um
repositório virtual ou na forma de programas de TV? Como professores ouvintes constroem
suas práticas pedagógicas com alunos surdos do primeiro segmento do ensino fundamental,
tendo a língua Portuguesa como segunda língua? Estas questões colocam em fluxo saberes
instituídos e tecem saberes instituintes propostos por autores que nem sempre estão
seguros nas margens.
A Libras e o INES, como espaço bilíngue, seguem sendo construídos em suas
circunstâncias que dão aos que por eles transitam limites e possibilidades de expressão em
entre lugares”. Os autores e o organizador desta edição da Aleph, em suas próprias
trajetórias, revelam os processos de deslocamento. autores egressos do curso de
Pedagogia bilíngue que hoje refletem sobre suas práticas como professores do nosso colégio
de aplicação. autores que são professores surdos e ouvintes, dentre eles codas.
Autores-professores que atuam nas modalidades presencial e semipresencial no curso de
Pedagogia. Profissionais dedicados a estudar a educação de surdos em espaços escolares e
não escolares. Diretores de departamentos do INES em diferentes momentos da educação
de surdos. Com esta diversidade esperamos dar conta de compartilhar com os leitores os
desafios de nossas novas circunstâncias.
Concluímos deixando para a reflexão de todos e todas uma citação do livro Mil Platôs
1, de Deleuze e Guattari (1995)6, que nos instiga a sair do território da separação para a
perspectiva de uma espécie de “entre” lugar:
6Leia grátis em https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=3808352
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Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as
coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore impõe o verbo ser mas o rizoma tem como
tecido a conjunção e...e...e... nessa conjunção força suficiente para sacudir e
desenraizar o verbo ser. [...] Entre as coisas não designa uma correlação localizável
que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um
movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que
rói as margens e adquire velocidade no meio (p. 37).
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