RELAÇÕES ENTRE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DESVALORIZAÇÃO DE PROFESSORES

 RELAÇÕES ENTRE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DESVALORIZAÇÃO DE PROFESSORES

RELATIONSHIPS BETWEEN EVALUATION OF EDUCATION AND DEVALUATION OF TEACHERS

Érika Christina Kohle[1]

Resumo

Este enunciado analisa relações entre avaliação da educação básica e a desvalorização de professores na sociedade neoliberal. Para atingir o objetivo mencionado, foi utilizado o estudo bibliográfico, tendo em vista a reunião das informações necessárias para análise, sistematização e elaboração de conclusões acerca do objeto de estudo. Após análise das múltiplas determinações do tema em enfoque, conclui-se que as escolas têm que ser conceituadas como um patrimônio de elaboração de cultura e de ciência pelas nações, e como um ambiente propício para a vivência de relações democráticas, para isso elas têm que ser planejadas com seus professores, estudantes e não contra eles.

Palavras-chaves: Educação. Neoliberalismo. Avaliação da educação básica. Valorização de professores.  

Abstract

This statement analyses the relationship between the evaluation of basic education and the devaluation of teachers in neoliberal society. To achieve the afore mentioned objective, were used the study bibliography, in order to gather the necessary information for analysis, systematization and elaboration of conclusions about the object of study. After analysing the multiple determinations of the theme in focus, it is concluded that schools have to be conceptualized as a heritage for the elaboration of culture and science by nations, and as an environment conducive to the experience of democratic relations, for that they have to be planned with your teachers, students and not against them.

Keys words: Education. Neoliberalism. Evaluation of basic education. Valuing teachers.


Introdução

Desde a redemocratização do Brasil, há a presença de políticas e de legislações destinadas à avaliação educacional. Sob influência do neoliberalismo, tais políticas afetam diretamente o cotidiano das salas de aula de todas as etapas da Educação Básica brasileira, por meio da criação de propostas de bonificação de professores com base no desempenho nas avaliações padronizadas externas de seus alunos. Entretanto, na prática a adoção de tais políticas tem impossibilitado que existam ações profícuas para a materialização da qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem, uma vez que, nos moldes já mencionados, o sistema educacional, com base nos ideais de acumulação do capital, separa a escola da vida e faz com que suas ações percam sentido para seus atores à medida que passa a subordinar tanto alunos quanto professores à lógica do mercado, externas a eles. Ademais, é necessário considerar que a política neoliberal de reforma empresarial da educação, com a ênfase no ensino das “disciplinas básicas” e na avaliação em testes padronizados, desenvolve seu discurso de legitimação com forte aceitação do senso comum, e, com ajuda da mídia, cria pressão para as redes de ensino sucumbirem a ela.

Nos últimos anos, o movimento de reforma empresarial na educação, reproduzido pelo mundo todo no âmbito de governos neoliberais após década de 70, ampliou-se no Brasil e, em 2018, aliou-se eleitoralmente com setores conservadores e militares. Do lado conservador surgiram ações como o movimento escola sem partido e a militarização de escolas, do lado neoliberal, este modelo educacional aprofunda o que já vinha se estabelecendo desde as discussões sobre a base nacional comum curricular (BNCC) e na construção do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB, alinhando a BNCC aos materiais de ensino (impressos ou online) para as avaliações nacionais, como forma de controlar conteúdos e abordagens nas escolas.  (FREITAS, 2020). O objetivo final de tais políticas, além do controle curricular, é facilitar os processos de privatização da educação, que têm início com ações de terceirização de escolas e se direcionam à criação de vouchers educacionais que funcionam na prática por meio da transferência de recursos da educação pública para ONGs e empresas privadas educacionais.

Além disso, vale lembrar que

O cenário educacional está, mais do que a qualquer tempo, sofrendo ataques sistemáticos, e conquistas, em nome de supostos avanços, têm sido desmontadas diante dos desacordos de quem participa da escola, da formação, da educação. A reforma do Ensino Médio, a imposição de uma Base Nacional Comum Curricular e de uma Base Nacional da Formação de Professores, referendadas à revelia das inúmeras manifestações públicas em contrário, ilustram o panorama de enfrentamentos necessários e urgentes. (CARDOSO; MENDONÇA; MARCATO, 2020, p. 51).

No Brasil, o conjunto de políticas neoliberais, que estão em curso, estrutura-se no tripé responsabilização, meritocracia e privatização, objetiva, simultaneamente, não apenas criar as condições para a privatização das escolas públicas que não atingirem padrões pré-determinados, mas também aumentar o controle ideológico sobre o que e como se ensina nas escolas públicas. (FREITAS, 2018).

Metodologia de pesquisa

Utilizou-se os procedimentos técnicos próprios da pesquisa teórica, que supõem um estudo da bibliografia de apoio, bem como a identificação e a localização das fontes de informações, a consulta às obras de referência sobre os temas: neoliberalismo, avaliação da educação básica, valorização de professores e controle educacional como objetos a serem pesquisados, tendo em vista a reunião das informações necessárias para análise, sistematização e elaboração de conclusões acerca das relações entre tais objetos.

 A pesquisa teórica dedica-se a reconstruir teorias, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tendo em vista aprimorar fundamentos teóricos e aprimorar práticas, tendo em vista a relevância crucial de saber manejar criticamente conceitos para aperfeiçoar ações; trata-se de desconstruir teorias, para construí-las em outros patamares e em outros momentos (DEMO, 2000).

Ademais, no momento em que se conceitua a realidade social como determinada, e estruturada nas suas determinações, ela passa a ser, por esta razão, passível de ser racionalmente conhecida e explicada. Isso acontece no mundo dos conceitos, no plano teórico, por meio do abstrato que tem a pretensão de reproduzir o concreto, não na sua realidade imediata e sim na sua totalidade real. Visto que, de acordo com Marx (1979) o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, almeja-se que as reflexões aqui dispostas contribuam para as práticas pedagógicas e para novos estudos, representativos de acréscimos de valor tanto à teoria quanto à prática educativa.

Em educação, a pesquisa teórica objetiva, entre outras possibilidades, o aprofundamento de estudo de conceitos, biografias de educadores e discussões de visões dos processos de ensino e de aprendizagem. Tendo como base os referenciais teóricos, esta pesquisa é resultado de ações de localização, reunião e análise das teorizações contidas em publicações, textos, artigos e livros de autores dessa teoria que discutem as questões centradas no tema proposto, buscando a “representação que capta o momento da interação geral dos fenômenos em suas manifestações” (DAVIDOV, 1988, p. 131), considerando, entretanto que o primordial “consiste em representar este concreto como algo em formação, no processo de sua origem e mediatização, porque só esse processo conduz à completa diversidade das manifestações do todo” (DAVIDOV, 1988, p. 131).

Nesta perspectiva os fenômenos não estão dispostos apenas de modo contemplativo e sim de forma a desvendar as conexões internas que revelam as contradições de seus elementos (CLARINDO, 2015). Assim, essas formas de reflexo da realidade estão alicerçadas em nossa sociedade no pensamento teórico, como produto da criação e acumulação dos conhecimentos científicos, que estão sempre em transformação para se adaptar às novas realidades produtivas de uma determinada sociedade.

Breve histórico da interferência do neoliberalismo na educação brasileira

Em 1989, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Fundo das Nações Unidas propuseram a reforma empresarial para várias áreas dos setores públicos de diversos países da América Latina (PEREIRA, 2018) 

A partir desse momento, sob a influência do neoliberalismo (difundido em escala mundial desde a década de 1930), reformas estruturais do aparato de funcionamento dos setores públicos se consolidaram, por meio da privatização das empresas produtivas estatais, da abertura de mercados, da reestruturação dos sistemas de previdência social, de saúde e de educação, descentralizando seus serviços, sob justificativa de otimizar seus recursos (FREITAS, 2018)

Como consequência disso, no Brasil e em muitos outros países, a presença do setor privado na educação aumentou de modo exponencial. Vale lembrar que essas organizações não deixam de ser pessoas jurídicas de direito privado, atuando nas áreas de cunho social (COSTA & RESSINETI, 2013).

Além disso, a escola passou a ser vista como espaço de preparo para o mercado de trabalho, estimulando as crianças para a competição, desagregando-se da educação humanizada e dos ideais de transformação social. Ao professor foi dada a incumbência de disputar com o patronato o controle e os conteúdos e de seu trabalho, uma vez que ele se tornou objeto de controle por parte das políticas públicas (FREITAS, 2012).

Do ponto de vista pedagógico, há o retorno ao “tecnicismo” - o processo que define o que professores e alunos devem fazer, e, também, quando e como o farão. Tal processo, inspirado nos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, esquece-se outras dimensões da matriz formativa, como a criatividade, as artes, a afetividade, o desenvolvimento corporal e da cultura (SAVIANI, 1983). 

As mudanças nos cursos de licenciatura e de pedagogia e fazem parte de um conjunto de reformas do Estado, iniciado nos anos de 1990, cujo objetivo foi o de adaptar a educação às novas demandas da sociedade neoliberal. Tais mudanças articulam-se aos interesses do capital tendo em vista manter a ordem, o controle social e a hegemonia burguesa (MÉSZÁROS, 2005).

Na prática, no Brasil dos anos 90, os governos federais neoliberais fortaleceram e consolidaram a política de reformas do Estado para que o país entrasse para a modernidade, as quais levavam as camadas mais pobres da população à exclusão de direitos, pois buscavam instituir o modelo do Estado Mínimo, que apenas apontam, mas não garantem os direitos sociais (FREITAS, 2018).

No estado neoliberal, a sociedade é concebida como mediadora entre interesses mercadológicos e estatais. Isso, na prática, se consolida na colaboração das organizações da sociedade civil na administração dos setores públicos. A partir da recomendação da reforma pelos órgãos internacionais financiadores da educação brasileira, os planos de municipalização têm início a partir de 1996, porém de forma mais lenta do que a esperada. Com isso, nesse mesmo ano, o Governo Federal criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), implantado em 1998, para legitimar e consolidar a reforma na política educacional. Esse Fundo modificou as concepções expressas na Constituição Federal de 1988, no que se refere à priorização exclusiva de oferta do Ensino Fundamental sob a justificativa de redistribuir recursos dessa etapa do ensino para diminuir as diferenças regionais, estabelecendo um valor anual mínimo de gastos por aluno. Entretanto, a motivação para municipalizar, concentrava-se, sobretudo na obrigatoriedade dos Estados e municípios de garantia do ensino fundamental para o recebimento de recursos e no receio de perder recursos (FREITAS, 2012).

Trata-se da gestão pública assumindo procedimentos e adotando padrões do setor privado, sob a alegação de ser necessária para a produção de qualidade educacional. Neste sentido, o setor público assume o modelo gerencial como referência para a organização do trabalho da escola e introduz, por exemplo, diferenciações de remuneração por produtividade, procedimentos de medida de qualidade por resultados, ações de estímulo à competividade entre profissionais e unidades escolares. Desta forma, o modelo gerencial é apresentado como solução para os problemas da educação e, a avaliação externa em larga escala passa a ser seu instrumento de regulação. Introduz-se assim uma nova concepção de controle, realizado indiretamente pelos resultados obtidos pelos alunos nas avalições externas de larga escala. Passa-se a controlar o produto do sistema, e não o processo que o originou. Nessa lógica, a autonomia da escola passa a ter outro sentido, pois a instituição passa a ser monitorada de outra maneira, ficando a autonomia submetida aos resultados obtidos pelo Sistema Avaliativo (MIRANDA, 2003).

Sob influência da política do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, a implementação do FUNDEF, além de induzir os municípios a aderirem à municipalização do ensino, também induziu a criação do sistema de bonificação do professor, estabelecendo como critérios: o número de alunos aprovados, números de alunos evadidos e dias de frequência do professor na escola e a não-evasão dos alunos (MIRANDA, 2003).

Por volta do fim do século XX, apesar da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional definir, pela primeira vez, o conceito de autonomia escolar; o Plano Nacional de Educação atribui ao Estado o controle do produto dos sistemas educativos, e não o processo que o originou, por meio do monitoramento dos resultados das aprendizagens dos estudantes, obtidos nas Avalições de larga escala, tais como SARESP e Prova Brasil. O processo de avaliação adquire centralidade na escola porque faz parte da gênese do aparecimento de sua nova forma – separada da vida (FREITAS, 2012).

Nessa lógica, a qualidade educacional significa o cumprimento de metas estabelecidas externamente às escolas por meio das avaliações em larga escala, que servem para responsabilizar o professor, o aluno ou a instituição escolar pelo seu fracasso (BERTAGNA & BORGHI, 2018). “Com a avaliação dos sistemas de ensino, está aberta a porta para privatização das escolas “improdutivas”, como vem acontecendo em outros países” (FREITAS, 2020, p. 100).

A interferência do neoliberalismo na educação brasileira

As políticas de responsabilização pressionam os professores a obterem desempenho sempre crescente de seus alunos. Para concretizar tal feito, associam o desempenho do aluno ao pagamento de bônus aos professores. Assim, os professores pressionam seus alunos, aumentando a tensão entre suas relações e a incumbência de apresentar bons resultados afasta das salas de aula alunos com dificuldades de aprendizagem (FREITAS, 2018).

Ademais, a busca por resultados cada vez mais altos estimula os profissionais da educação a competirem entre si. A educação, entretanto, tem que ser uma atividade colaborativa, estabelecida nas relações interpessoais que se estabelecem no interior da escola (FREITAS, 2012).

Como foi observado por Junqueira e Oliveira (2016, p. 24)

[...] principalmente a partir de 2007, ano de criação do Ideb, o número de estados que fazem uso de testes como parte de suas ações educacionais tem aumentado. Esse aumento pode estar baseado na crença de que seu uso, por si só, seja capaz de garantir a qualidade da educação.

O mesmo movimento em direção aos testes, à criação de sistemas de avaliação, pode ser observado nos municípios. Pesquisa realizada pelo INEP em parceria com a Fundação Carlos Chagas, junto aos secretários de educação municipais, respondido por 4.309 deles, indicou que 1.784 municípios (41% dos respondentes) contavam com avaliações próprias e, ainda, que 905 deles (21% dos respondentes), apesar de não a possuírem, pretendiam desenvolvê-la (BAUER et al., 2015). A maior parte dessas avaliações se refere unicamente a testes aplicados aos alunos, os quais, assim como aconteceu com os estados, também passaram a ser intensificados depois do ano de 2007.

A questão da periodicidade (anual ou bianual) modela, se a aplicação ocorrer de maneira censitária, uma cultura de naturalização de provas e testes. Tal lógica incita a competividade e desgasta o trabalho da escola com a intensidade de testes e exames quantitativos de desempenho dos alunos em determinados conteúdos, (BERTAGNA; BORGHI, 2018). Pesquisas revelam que esta lógica tem gerado consequências para a organização do trabalho da escola, para o seu currículo, para a atuação dos seus profissionais e, a conformação a determinada lógica (empresarial, mercantil) de realização sistemática de testes de proficiência e obtenção de metas em detrimento de espaços de formação crítica, política, criativa, artística, física e social dos alunos (SORDI, et al., 2016).

As escolas, aos poucos, naturalizam práticas de trabalho que acabam por concentrar e limitar o ensino ao treinamento dos alunos nas áreas/disciplinas avaliadas, cerceando o conteúdo e a formação das crianças e dos adolescentes. Essa é uma questão preocupante, se a escola pública for considerada um dos poucos espaços de acesso e produção do conhecimento de crianças e de jovens das camadas populares, porque provoca e/ou acentua, mais uma vez, restrições do direito à cultura mais elaborada.

A atenção está voltada para o ensino de disciplinas (em especial português e matemática) e não para a formação. Esta é a visão de qualidade que informa as políticas públicas neoliberais que se valem de sistemas nacionais de “avaliação” (Saeb, Enem, ENC-Provão, Saresp etc.) para monitorar os resultados das escolas de forma quantitativa e genérica (comparativa), criar competição (segundo elas a mola mestra da qualidade) e reduzir gastos – o modelo é amplamente conhecido e aplicado no campo empresarial (FREITAS, 2002, p. 306).

A luta pela qualidade da escola pública esbarra em múltiplos interesses, o que explica a centralidade que a avaliação assumiu nas políticas educacionais e o quanto essas parecem orientar-se pelo viés mercadológico. A lógica de resultados que se busca imprimir na cultura escolar por meio dos processos de regulação da qualidade não foi produzida de modo inocente.

Esse processo põe fim à perspectiva de uma educação de qualidade para todos. Nesse sentido, no mercado, a qualidade se conforma a diferentes públicos e possibilidades de pagamento. Entretanto, como bem público e direito de todos, numa perspectiva de universalidade, a educação não pode estar no âmbito privado de mercado. (BERTAGNA; BORGHI, 2018, p. 28).

Nessa conjuntura, para aumentar os resultados das escolas nas avaliações externas, surgiram as parcerias público-privadas no campo educacional em que são vendidos serviços de assessoria administrativa e pedagógica; planejamento educacional; capacitação para professores; recursos didáticos, como jogos educacionais, vídeos, software, livros didáticos, apostilas, entre outros. Atualmente, a compra de sistemas de ensino apostilado têm sido uma constante no contexto educacional brasileiro (FREITAS, 2012).

Portanto, embora as instituições escolares públicas não estejam sendo vendidas, o sistema educacional público está sendo privatizado.

Os processos de avaliação, então, tornam-se os motivadores para o estudo – além da pressão social e familiar. Como na escola a meta do que se aprende e do que se ensina são os resultados da avaliação. Ela assume o papel de uma mercadoria a ser usada ou trocada para algum fim.

O aluno é cada vez mais conformado a ver a aprendizagem como algo que só tem valor a partir da nota (ou aprovação social), que lhe é externa, e a troca pela nota o próprio conhecimento como construção pessoal e poder de interferência no mundo. O processo de avaliação adquire centralidade na escola porque faz parte da gênese do aparecimento da forma escolar – separada da vida (ainda que não do mercado) (FREITAS, 2002, p. 313).

O estudante deve responsabilizar-se pela sua aprendizagem, caso não o faça, será reprovado pela vida e culpabilizado por isso. A desresponsabilização do professor faz parte de uma redefinição de seu papel no processo de aprendizagem, com base em um modelo individualista de desenvolvimento pessoal: a cada um segundo o seu esforço (FREITAS, 2002).

Ademais, no Plano Nacional de Educação (2014-2024), no que tange à avaliação e à qualidade educacional, o documento reduz, em sua meta 7, a qualidade educacional ao cumprimento do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), desconsiderando os processos educacionais, aprisionando e limitando potencial das escolas na produção da qualidade da educação.

Vale lembrar que, o Estado de São Paulo, que utilizou exaustivamente a política de bônus por mérito, revelou, em 2018, para o jornal A Folha de São Paulo, que o bônus foi mantido apesar de sua ineficácia, por uma decisão política. Foram gastos desde 2008 cerca de 4,2 bilhões de reais com bônus para docentes que, segundo avaliações do próprio governo do estado, “não promoveu melhorias no desempenho dos alunos” (SALDAÑA, 2018, p.2).

E, ainda, há o problema dos custos da duplicação de sistemas de avaliação da educação para uma mesma rede de ensino. Há redes municipais que realizam avaliações do sistema municipal, do sistema estadual e do sistema federal, quase todos de maneira censitária, o que consequentemente impõe um custo financeiro alto para a sua realização. Tais valores poderiam ser investidos na efetivação do direito a uma educação de qualidade para todos (FREITAS, 2018).

A adoção acrítica da pedagogia das competências, por parte de redes educacionais da maioria dos municípios e dos estados brasileiros, justifica-se pelo consenso mundial, uma vez que ela teria sido selecionada por diversos outros países. Entretanto, essa escolha se concretiza porque o seu domínio é condição básica para um bom posicionamento no ranking internacional da Educação que é sistematizado a partir dos resultados do programa internacional de avaliação do rendimento escolar, o PISA, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que possui o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina (BRASIL, 2018).

A proposta pedagógica das competências está presente na Base Nacional Comum Curricular atual (2018) e oferece o acesso ao básico para formar a mão de obra dos países em desenvolvimento, e não para promover o desenvolvimento das máximas potencialidades humanas (FELIPE et al., 2021).

Os conteúdos exigidos pela Base Nacional Comum Curricular ocasionam o apostilamento das redes contribui para que o professor fique dependente de materiais didáticos estruturados, retirando dele a qualificação necessária para fazer a adequação metodológica, segundo requer cada estudante (FELIPE et al., 2021).

Tal política de responsabilização do jovem pelo seu processo de aquisição de conhecimentos ocasiona uma pressão sobre alunos cada vez mais jovens - levando a uma escolarização antecipada da pré-escola -, ao apostilamento dos sistemas e das redes de ensino para garantir o alinhamento entre o ensinado e o avaliado, produzindo ainda mais estreitamento curricular (FREITAS, 2018). 

Ademais, o pagamento de professores por meio de bônus definidos pelo desempenho dos alunos contribui para agravar as fraudes nos testes de larga escala, desmoralizando ainda mais o magistério. (FREITAS, 2012).

Por isso, institui processos de valorização seletiva do magistério através de várias formas de avaliação e premiação por bônus (como nas empresas). Em uma lógica perversa, os professores passam a ser empresários de si mesmos, contrariando a concepção sócio-histórica construída pelo movimento dos educadores de que a formação continuada é direito e dever dos professores e dever e responsabilidade do estado, portanto, os processos avaliativos não devem ser punitivos e excludentes, tal como propõe a resolução, referenciando-se na experiência internacional. (FREITAS, 2020, p. 106).

Soma-se ainda a esses problemas, o controle do processo pedagógico, por meio de uma Base Nacional Comum Curricular e da avaliação censitária, soma-se ao controle das agências formadoras do magistério e ao controle da própria organização da instrução, por meio de materiais didáticos e plataformas de aprendizagem interativas. Assim, passa a existir um mercado de consultorias e assessorias destinadas a lidar com todas essas exigências. Nesse processo, o setor público vai sendo asfixiado enquanto a iniciativa privada se desenvolve utilizando o dinheiro público que deveria estar sendo aplicado em melhorias para a educação pública (FREITAS, 2018).

Como na docência a dimensão social é de grande relevância, uma vez que o conhecimento possibilita a transformação social, por meio do contato da classe trabalhadora com todos os elementos necessários para a constituição de uma visão crítica de mundo e de sociedade. Daí a urgência no controle sobre o trabalho do professor, seja no que tange aos conteúdos do ensino, seja dos métodos, por meio da avaliação do rendimento escolar dos alunos, que chancela o que deve ser aprendido (COSTA, 2016).

Para que os professores não participem como interlocutores legítimos da definição de diretrizes educativas. Eles se tornam alvo preferencial de desqualificação política e profissional, especialmente nos documentos do Banco Mundial, por meio de três tipos de argumentos: 1) o professor é corporativista, obsessivo por reajustes, descomprometido com a educação dos pobres; 2) o professor é incapaz tanto teoricamente quanto metodologicamente, uma vez que é responsável pelas falhas na aprendizagem dos alunos; 3) o professor se submete ao subemprego, porque não foi aceito em carreiras de maior prestígio, é incapaz para outras funções e a docência foi o que lhe restou, não se preocupa com a qualidade do que faz porque seu salário é irrisório (EVANGELISTA & SHIROMA, 2006).

Em contrapartida, os docentes tiveram o alargamento de suas funções, tais como: atender mais alunos na mesma classe, exercer funções de psicólogo, assistente social e enfermeiro; participar nos mutirões escolares; participação em atividades com pais; atuar na elaboração do projeto político-pedagógico da escola; procurar controlar as situações de violência escolar; envolver-se na elaboração de estratégias para captação de recursos para a escola (EVANGELISTA & SHIROMA, 2006).

Para ampliar a desvalorização da profissão docente, em 2016, Michel Temer, como presidente da República, aprovou a Medida Provisória nº 746, com texto que não apenas extingue da obrigatoriedade de quatro disciplinas — Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física, mas também traz como possibilidade de atribuição do exercício da docência a pessoas com “notório saber” em alguma especialidade técnico-profissional, sem a obrigatoriedade de possuírem licenciatura ou mesmo diploma de Ensino superior na área em que atuarão.

O problema da valorização dos professores se agrava ainda mais com a

[...] aprovação da EC nº. 95/ 2016 - que congela por 20 anos os investimentos nas áreas sociais, em especial, a da saúde e da educação.  Estudos realizados por entidades científicas e movimentos sociais (Fineduca e Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2016) mostram que em vinte anos, os 18% de recursos de impostos constitucionalmente vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino terão se transformado, no máximo, em 10%.  Isso significa que nenhuma das metas previstas no PNE  2014/2024 para expansão e universalização da educação básica e superior, bem como as de valorização do magistério ou de qualidade de ensino, terão condições de ser implantadas. (ARELARO, 2017).

Durante décadas, subestimou-se o poder da vida escolar na educação das crianças e dos jovens para a implementação reformas educacionais. Na verdade, as propostas neoliberais de reformas nos setores educacionais foram feitas contra os atores da escola, baseada em uma responsabilização verticalizada e autoritária. (FREITAS, 2018). Entretanto, existe vida inteligente dentro das escolas, suficiente para submeter à crítica a reforma empresarial da educação, principalmente, na atualidade com o relatos de que os seus resultados que não se objetivaram.

Alguns pontos ajudariam à resistir à implementação da reforma empresarial na educação: 1) a exclusão da Lei de Responsabilidade Fiscal que impõe o limite de investimentos na educação; 2) o apoio aos dispositivos que garantam investimentos na educação; 3) a promoção de estratégias contra os processos de privatização do serviço público em suas variadas formas; 4) a condenação dos tratados internacionais reguladores de serviços educacionais; 5) a valorização da gestão democrática no cotidiano escolar por meio de fortalecimento de seus órgãos colegiados; 6) a constituição de conselhos municipais de educação; 7) a troca de testes censitários de avaliação de larga escala (nacionais e estaduais) por testes amostrais; 8) a diminuição de número de alunos por turma para garantir a melhora da qualidade da educação; 9) a diminuição das discrepâncias entre o desempenho dos estudantes mais pobres e os mais ricos; 10) o combate as discriminações baseadas em gênero e raça; 11) a recusa de processos de escolarização na Educação Infantil que antecipem a Educação Fundamental e desrespeitam o desenvolvimento das crianças; 12) a democratização das relações internas entre professores, estudantes e a própria gestão das escolas, começando pela participação desses atores na organização escolar; 13) a oposição aos processos de padronização da educação que conduzem à eliminação de experiências inovadoras e destroem especificidades de culturas locais; 14) a luta pela revogação da Base Nacional Comum Curricular atual, substituindo-a por outra construída com a participação de educadores e dos pais; 15) a luta pela revogação da Lei da Reforma do Ensino Médio; 16) a valorização do magistério ao assegurar condições adequadas para a formação de professores e a obrigatoriedade do pagamento do piso salarial para esses profissionais; 17) o combate ao fechamento de escolas públicas nas comunidades urbanas e no campo; 18) o apoio à regulamentação do número máximo de horas que os estudantes podem ser envolvidos em plataformas digitais de aprendizagem nas escolas; 19) o fortalecimento da luta pela desmedicalização de estudantes etc (FREITAS, 2018).

As escolas têm que ser conceituadas como um patrimônio de elaboração de cultura e de ciência pelas nações, um ambiente propício para a vivência de relações democráticas e de aprendizagens democráticas, para isso elas têm que ser planejados com seus professores, estudantes e gestores e não contra eles, uma vez que

[...] as forças neoliberais e os reformadores educacionais em nosso país se articulam interna e internacionalmente para impor um projeto de educação que coloca em risco a educação pública como um bem público, abrindo as portas para a mercantilização e a privatização das escolas de educação básica. (FRETIAS, 2020, p. 108).

Educadores cumprem um papel importante na resistência aos processos que os oprimem, que comprometem a formação das novas gerações, que pretendem extinguir os processos de inclusão das classes populares dos processos de formação do docentes ao transformar os jovens em empresários de si mesmos como anunciam as concepções neoliberais.

Conclusão

Historicamente a falta de valorização dos profissionais da educação, especialmente dos professores, que recebem salários incompatíveis com a função que exercem, não possuem condições de trabalho adequadas e, inclusive, sofrem com a falta de recursos pedagógicos, amplia ainda mais as dificuldades de as escolas cumprirem seu papel na sociedade.

É preciso introduzir políticas para melhorar a qualidade da educação com os professores e estudantes, e não contra eles. As condições de aprendizagem dos estudantes estão diretamente ligadas às condições de trabalho dos professores.

A luta por modificações desejadas para a escola deve estar ancorada nos movimentos sociais que lutam pela emancipação do homem, e não nas necessidades que o sistema capitalista tem de adequar a escola à lógica da reestruturação produtiva.

Os processos de ensino e de aprendizagem dos estudantes não podem continuar a não ser para todos, reféns de testes padronizados para rotular comunidades escolares.

Os dilemas enfrentados na atualidade são marcados pela necessária opção política dos educadores, entre aprofundar e aprimorar o desenvolvimento do capitalismo de maneira a torná-lo palatável em suas constantes crises, ou, em oposição, abraçar proposições nas quais possamos vislumbrar e defender em todos os espaços, o que poderiam ser as novas formas de organização escolar e da educação emancipatória em uma outra sociedade: igualitária, democrática, socialista, qualquer que seja a forma que queiramos construí-la, sem as marcas da exclusão, da opressão e da exploração sem limites do capitalismo que, mesmo em sua fase de esgotamento, aniquila nossa humanidade. (FREITAS, 2020, p. 110).

Além disso, as universidades, com apoio dos sindicatos dos professores e com as organizações estudantis, podem ajudar a desvendar os verdadeiros objetivos de tais reformas. É para isso que eles servem e é por isso que são temidos e difamados pela política neoliberal ao redor do mundo.


Referências

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Data do envio: 14/04/2023.

Data do aceite: 09/04/2024.

                 Revista Aleph, Niterói, Maio. 2024, p. 1 - 18                ISSN 1807-6211                   


[1] Doutora pela Universidade Estadual Paulista - UNESP – Marília. Pesquisadora vinculada ao Programa de Estágio de Pós-Doutorado da Fundação Carlos Chagas na linha de pesquisa - Educação e Infância: políticas e práticas. Diretora de Escola de Educação Infantil do Município de Marília, professora da Educação Básica II. E-mail: erika.kohle@unesp.br e Telefone: (14)998730245 https://orcid.org/0000-0003-0907-4420