EXPERIÊNCIAS ANCESTRAIS: DESCOLONIZANDO CURRÍCULOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
EXPERIÊNCIAS ANCESTRAIS: DESCOLONIZANDO CURRÍCULOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
ANCESTRAL EXPERIENCES: DECOLONIZING RESUMES ON EARLY CHILDHOOD EDUCATION
Roberta Dias de Sousa[1]
Caroline do Nascimento Macedo[2]
Resumo
A promulgação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 completou, no ano de 2023, 20 e 15 anos, respectivamente. Depois destes anos, olhamos para o caminho trilhado e, inevitavelmente, questionamos se realmente houve e quais teriam sido as mudanças ocasionadas após essa conquista. Apesar do direito assegurado legalmente, esbarramos em inúmeras resistências e desconhecimentos quando intentamos construir um trabalho pedagógico que respeita e abrange a diversidade étnico-racial do nosso país. Neste artigo, temos como objetivo trazer reflexões sobre a cidade de Niterói e o apagamento histórico das culturas africanas e indígenas no processo de construção da cidade e da sociedade brasileira, fruto do colonialismo e epistemicídio, e de como esse apagamento adentra o espaço escolar. Narramos também movimentos de práticas antirracistas ocorridas em nossa Unidade de Educação Infantil, envolvendo toda a comunidade escolar. Por fim, refletimos como esses movimentos ocorreram, com seus entraves, desdobramentos e reverberações. Utilizamos, para esse fim, a metodologia da pesquisa narrativa.
Palavras-chave: Decolonização. Educação Infantil. Práticas antirracistas.
Abstract
The promulgation of laws 10.639/03 and 11.645/08 turned, in 2023, 20 and 15 years, respectively. After those years, we see the trodden paths and inevitably, ask ourselves if there really were and which would be the changes caused after the promulgation of the laws. Although they became legally secured rights, we bump in many resistances and unfamiliarity when trying to build a pedagogical work that respects and reaches the ethnic and racial diversity in our country. In this article, in addition to bringing reflections about the city of Niterói, and its historical erasure, we show some anti-racist practices occurred on an Early Childhood Education Unity involving its scholar community, and reflect about how this process went, with its obstacles, developments and reverbs. For this purpose, we used the methodology of narrative research.
Key Words: Decolonization. Early Childhood Educatio. Anti-racist practices
Introdução
No presente artigo, apresentamos narrativas de experiências e práticas antirracistas ocorridas em uma Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI) por meio da metodologia da pesquisa narrativa (Clandinin, Connelly, 2015). A partir das experiências e práticas construídas, objetivamos repensar os espaços de Educação Infantil, suas práticas e discursos que, em muitos aspectos, continuam a perpetuar culturas hegemônicas.
Inicialmente, fazemos um breve relato trazendo as leis que alteraram a lei de diretrizes e bases, inserindo as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas nos currículos escolares. Posteriormente, apresentamos os três movimentos realizados em nossa UMEI, com famílias, docentes e crianças, com o objetivo de lançar luz e ampliar as discussões sobre o tema, repensando práticas monoculturais e fortalecendo as diferentes culturas que formam nosso povo. Entendemos que este movimento precisa estar além de datas comemorativas e efemérides, as quais constituem propostas que pouco contribuem para a formação de cidadãos conscientes de sua origem e história.
No ano de 2023, a Lei 10.639/03, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, tornando obrigatório o ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas públicas e privadas nos diferentes níveis de ensino, completou 20 anos da data de sua promulgação. A Lei 11.645/08[3] ampliou a obrigatoriedade estabelecida na lei anterior para o ensino das histórias e culturas indígenas, completando, no mesmo ano, 15 anos da data de sua promulgação. A primeira lei citada estabelece que:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira: § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (BRASIL, 2003).
As referidas leis representam um grande marco na luta dos movimentos sociais, como o Movimento Negro Unificado - MNU, que tomou forma entre os anos de 1978 e 1979, com pequenos movimentos de bairro que realizavam reuniões em busca de igualdade de direitos e representação negra na sociedade, movimentando diferentes grupos em torno de um mesmo objetivo.
As leis que resultam de anos dessa luta se constituem enquanto política de ação afirmativa e reparação histórica, visando - entre outros - o combate a discriminações étnicas e raciais e a promoção da correção das desigualdades sociais e raciais promovidas pelo Estado brasileiro, desde a invasão e colonização do Brasil e a escravização de africanos(as) e indígenas. Tais desigualdades se revelam em diversos campos da vida social, como no campo da educação.
Historicamente, a ocupação majoritária nos estabelecimentos de ensino sempre foi um privilégio de grupos que compunham as chamadas elites sociais ou classes sociais dominantes, responsáveis ainda pela organização e disseminação dos conteúdos considerados legítimos e científicos, necessários ao processo de escolarização.
Há que se ressaltar que vivemos em uma sociedade que se construiu e prosperou escravizando a população negra trazida da África, o que veio a perpetuar o racismo acobertado pelo mito da democracia racial[4] e por séculos deixou de garantir à população negra seus direitos enquanto cidadãos. O acesso à escolarização e à educação como um desses direitos sempre foi uma luta e um objetivo dos grupos não hegemônicos, justamente por acreditarem serem estes os instrumentos que poderiam tirá-los do lugar social e econômico imposto.
Azoilda Loretto da Trindade (2008) afirma que a oferta à educação/ensino se constitui como prática de dominação à medida que:
As classes dominantes se utilizam da escola (e não só da escola) para, oficial e sistematicamente, ministrar a ‘sua educação’, difundindo, perpetuando, reproduzindo os valores que lhes interessam e/ou beneficiam como sendo os válidos, verdadeiros, superiores e, se possível, os únicos, para assim através dessas ideias que legitimam sua dominação garantir a sua hegemonia na sociedade. (Trindade, 2008, p. 30).
Desta forma, uma sociedade historicamente fundamentada sobre desigualdades raciais e atravessada por conflitos de classe e gênero irá reproduzir essas ideologias através do currículo escolar, que se coloca a serviço da manutenção dessas realidades, naturalizando-as e perpetuando-as, bem como reproduzindo uma lógica de marginalização de grupos minoritários. Sendo assim, a luta dos referidos grupos não era apenas por acesso ao espaço escolar, mas por se verem representados neste espaço e na organização curricular, assim como em toda a sociedade.
As Leis 10.639/03 e 11.645/08 trazem para o debate o estabelecimento de um currículo escolar hegemônico e monocultural frente às histórias múltiplas que o constitui, questionando o "perigo de uma história única", como nos alerta Chimamanda Ngozi Adichie (2019). Assim como a autora nigeriana afirma que a legitimação e propagação de determinadas narrativas em detrimento de outras fontes de conhecimento (como a da população negra e indígena) afetam a construção dos sujeitos, dos grupos sociais e das nossas visões de mundo, entendemos que elas impactam diretamente na construção das nossas subjetividades e identidade, sejam elas individuais ou coletivas, produzindo ideais de superioridade e inferioridade entre os grupos sociais, o que resulta em relações de poder e opressão, como o racismo.
Silvio Almeida (2019) soma-se ao debate e nos ajuda a pensar essas relações ao afirmar que a escola, enquanto instituição social, não está isenta dos conflitos raciais presentes na sociedade, e se o racismo é parte da ordem social, ele será reproduzido pelas instituições. É o que o autor caracteriza como racismo institucional, alocado em uma categoria de análise maior e mais complexa: o racismo estrutural.
O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. [grifos do autor] (p. 36).
O autor afirma ainda que, se os sujeitos que operam nos espaços escolares não compreenderem as desigualdades raciais como um problema real a ser tratado, facilmente irão reproduzir práticas racistas tidas como normais na sociedade, como os extremos das violências explícitas e da omissão e/ou silenciamento. A ausência de posicionamento pode gerar uma grande cadeia de transmissão de privilégio e de exclusão, que só poderá ser combatida com a implementação de práticas antirracistas efetivas.
Nos últimos anos, temos acompanhado o avanço dessas pautas no espaço escolar, porém, ainda encontramos dificuldades em fazer reverberar no chão da escola a multiplicidade cultural e toda a herança indígena e afro-brasileira que constitui o povo brasileiro. O que acompanhamos de mudanças de olhares e perspectivas, e de ações antirracistas que colocam as questões étnico-raciais e indígenas como centro da discussão ainda é pouco, tendo em vista o passar dos anos, em que duas importantes leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que obrigam a inserção dessa discussão no currículo, foram promulgadas. No cotidiano escolar, precisamos pensar práticas e discursos que contribuam efetivamente para a construção de um currículo e uma educação decolonial[5] e antirracista, rompendo com a reprodução das violências discriminatórias e dos estereótipos a respeito dos povos indígenas e afro-brasileiros, fazendo emergir as epistemologias destes, historicamente silenciadas e subalternizadas.
Nesta perspectiva, assumimos a dimensão racial da profissão docente, compreendendo nossa responsabilidade como um compromisso ético diante desta questão, assim como nos provoca Nilma Lino Gomes (2017). A autora questiona se é possível educar para a diversidade em uma sociedade marcada pelo colonialismo e pelo racismo. Assim como Nilma, respondemos que sim, é possível. Ressaltamos ainda que, enquanto professoras negras, essas questões nos atravessam cotidianamente, em nosso trabalho, em nossa vida pessoal e nos diferentes espaços e instituições em que convivemos. Logo, o tema nos é caro e de extrema importância e urgência.
É possível construir uma luta contra-colonial[6] (Bispo, 2015) concebendo outras formas de ser e estar no mundo, fora da lógica colonialista. É possível construir uma luta antirracista, em busca de reparação e equidade. Para isso, é preciso resgatar os saberes vitimados pelo epistemicídio[7], que desvaloriza, nega e oculta a produção de conhecimentos não hegemônicos.
Sueli Carneiro (2005, p.97) amplia a definição de epistemicídio “para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados”. Segundo a autora, epistemicídio é:
um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção de interiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento ‘legítimo’ ou legitimado. Por isso, o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender (Carneiro, 2005, p. 97).
Diante disso, na qualidade de professoras das infâncias, nos propusemos a construir e vivenciar experiências - juntamente com as crianças e corpo docente - que, no cotidiano escolar, possibilitassem a construção de novas narrativas a partir de outras referências, para além da lógica hegemônica. Uma prática educativa que contempla a diversidade no dia a dia, a partir do resgate, valorização e preservação dos saberes, das histórias, culturas, estéticas e poéticas indígenas e afro-brasileiras.
Tecendo os fios…
Os estudos decoloniais (Quijano, 2005) propõem reflexões e questionamentos sobre as consequências sofridas por países colonizados, sobre como nossa cultura, linguagem, afetos e formas de conceber o mundo foram moldadas pela ótica do colonizador e a necessidade de rompermos com esta realidade, que interfere inclusive em nossa forma de ver, pensar e validar um conhecimento e os processos educacionais. De acordo com Leda (2015 p. 102), estes estudos “se disseminaram no sentido comum de questionar a narrativa ocidental da modernidade e, a partir de suas margens, revelar o subalterno como parte constitutiva dessa experiência histórica”.
Para pensarmos todas as questões que apresentamos até aqui, tomamos como ponto de partida a cidade de Niterói, na qual está localizada a Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI), em um bairro da zona norte de Niterói, onde vivemos as experiências que iremos narrar. Para além do cumprimento das Leis 10.639/03 e 11.645/08, neste território, temos marcadores significativos para a construção deste trabalho: o primeiro é o fato de o bairro apresentar o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade[8]. Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), IDH é o índice que compara indicadores de países nos itens riqueza, alfabetização, educação, esperança de vida, natalidade e outros, com o intuito de avaliar o bem-estar de uma população, especialmente das crianças. O segundo marcador é a presença majoritária de famílias e crianças negras em um bairro com fortes marcas de violência e vulnerabilidade social.
Tendo essa realidade como lócus de nosso trabalho pedagógico, nos foi posta a seguinte questão: como oferecer e garantir educação de qualidade a sujeitos que, muitas vezes, não têm direitos básicos assegurados pelo poder público? Omitirmo-nos de tal responsabilidade seria violar mais um direito das crianças e de suas famílias. Por isso, lançamos mão de estratégias e caminhos pedagógicos em busca de uma educação plural e antirracista.
A cidade de Niterói tem, em sua história, forte influência indígena e africana, a começar por seu fundador, o indígena Araribóia[9], que recebeu o território onde hoje se situa a cidade, ao aceitar lutar contra os franceses para a fundação da cidade do Rio de Janeiro.
Durante o seu desenvolvimento, vivenciamos o sistemático apagamento desse passado, devido às marcas e a influência do eurocentrismo, pensamento que coloca a Europa como centro do mundo e tem sua raiz no processo de colonização, escravização e extermínio de povos indígenas e africanos, deixando de lado, inclusive nos espaços escolares, os rastros e memórias deixados por esse tempo. Atualmente, a cidade possui poucos espaços em que as histórias e as memórias dos povos originários e dos africanos e afro-brasileiros se mantêm vivas.
Nos estudos de Maria de Fátima Barbosa Pires (2021), podemos perceber as marcas da interculturalidade presentes em nossa cidade, e como elas vão entrando em disputa através dos tempos:
[...] a própria cidade é nossa fonte histórica, seu patrimônio cultural, suas configurações do espaço urbano, muitas vezes com interesses em disputas. Mas isso não nos impede de nos apropriarmos de outros documentos históricos. Na atividade de campo, a ser apresentada adiante, utilizamos também diversos documentos históricos que nos traziam elementos das condições de vida e papel da mulher na sociedade; os costumes das famílias; a exploração do trabalho indígena e afro-brasileiro, entre outros. [...] Citando alguns exemplos: Niterói (RJ) abarca toponímias das tribos rivais tapuias e guaranis. Já o bairro Cubango é de origem angolana. A presença do colonizador também encontra-se ali abrigada, muitas vezes em conflito, como no nome do próprio mito fundador da cidade, o Arariboia, “cobra da tempestade” em tupi-guarani recebeu o nome católico de Martim Afonso de Souza. Há então, um entrecruzamento dessas multiplicidades de povos, suas histórias em diversas temporalidades, neste tecido social urbano (Pires, 2021, p. 1084).
Percebemos com Pires que a cidade se encontra impregnada de elementos herdados das culturas afro-brasileiras e indígenas, porém um apagamento histórico, principalmente na arquitetura da cidade, por muito tempo inviabilizou que conhecêssemos essa história.
Em 2023, temos três datas significativas para pensarmos sobre a descolonização dos currículos. A cidade de Niterói completou 450 anos, além das já citadas Leis 10.639/03 e 11.645/08 e seus 20 e 15 anos de promulgação, respectivamente. Neste contexto, acreditamos ser oportuno pensar o nosso território escolar como parte de uma grande pluralidade que envolve a cidade de Niterói, revisitar nossa ancestralidade, as diferentes influências que herdamos dos diferentes povos que ocuparam o território niteroiense e construíram a nossa multiplicidade.
Os estudos de Pires apontam, ainda, as marcas dessa pluralidade e os apagamentos dos diferentes povos que hoje buscam seu reconhecimento como parte da história.
Niterói (RJ) traz a marca indígena no nome e significa águas escondidas na Língua Tupi, com muitas histórias a serem reveladas. E nestas histórias, há a presença e não presença dos chamados povos tradicionais, indígenas e afro-brasileiros em múltiplas camadas temporais nos tecidos conectivos e conflitivos, bem como de outros grupos não diretamente mencionados na Lei nº 11.645/2008 mas buscando igualmente, por representatividade, justamente por também terem sido alvos de violências históricas, como por exemplo, os povos ciganos, entre outros grupos socioculturais pensados a partir da literalidade do texto legal (Pires, 2021, p. 1086).
O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, publicado em 2013 pelo MEC/SECADI[10], em celebração aos 10 anos da Lei 10.639/03, traz alguns apontamentos sobre a importância do papel da Educação Infantil para o desenvolvimento humano e a formação da personalidade.
O documento afirma que os espaços que recebem crianças em seus primeiros anos de vida “são privilegiados para promover a eliminação de qualquer forma de preconceito, racismo e discriminação racial” (Brasil, 2013, p. 48), possibilitando o envolvimento das crianças em ações que conheçam, reconheçam e valorizem a importância dos diferentes grupos étnico-raciais para a história e a cultura brasileira.
Em seguida, o Plano traça algumas ações centrais para a Educação Infantil no que diz respeito à construção da educação para as relações étnico-raciais, das quais destacamos: Explicitar nas Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil a importância da implementação de práticas que valorizem a diversidade étnica, religiosa, de gênero e de pessoas com deficiência, pelas redes de ensino; Implementar nos Programas Nacionais do Livro Didático e Programa Nacional Biblioteca na Escola ações voltadas para as instituições de Educação Infantil, incluindo livros que possibilitem aos sistemas de ensino trabalhar com referenciais de diferentes culturas, especialmente a negra e a indígena; Efetuar ações de pesquisa, desenvolvimento e aquisição de materiais didáticos-pedagógicos que respeitem e promovam a diversidade, tais como: brinquedos, jogos, especialmente bonecas/os com diferentes características étnico-raciais, de gênero e de pessoas com deficiência (Brasil, 2013).
Pensando nas diferentes possibilidades culturais que os povos africanos e indígenas nos trazem e a multiplicidade presente em nossa UMEI, entendemos a importância de resgatar, explorar, vivenciar e potencializar histórias, lendas, brincadeiras, literaturas e formas outras de ser e estar no mundo que tenham tais influências.
Das experiências vividas
Fundamentadas nestas ações, à luz das Leis 10.639/03 e 11.645/08 e dos Referenciais Curriculares da Rede Pública Municipal de Educação de Niterói, que nos convida a "enxergar a cidade em sua totalidade, viva e pulsante", construímos três propostas para repensarmos o trabalho pedagógico, visando possibilitar às crianças, docentes, funcionários e comunidade escolar[11] o acesso às histórias e culturas dos povos indígenas e afro-brasileiros que constituíram e ainda constituem a cidade niteroiense. Trata-se de uma forma de legitimar, valorizar e resguardar os saberes produzidos por estes povos que compõem o patrimônio imaterial e material da nossa cidade e do nosso país. Desta forma, objetivamos contribuir com a construção de um currículo e de uma educação decolonial e antirracista, fazendo emergir epistemologias historicamente silenciadas e marginalizadas.
Instalações Afrorreferenciadas - reeducando tempos, espaços e olhares
A proposta das instalações constitui uma iniciativa voltada, de forma especial, para as professoras e demais funcionários(as) da nossa Unidade Municipal de Educação. Nossa intencionalidade foi provocar a curiosidade e despertar o interesse por pessoas, lugares e símbolos da cultura afro-brasileira, principalmente porque a proposta que se daria posteriormente, no primeiro sábado letivo de nossa UMEI, girava em torno das relações étnico-raciais.
Nesse sentido, organizamos os materiais a serem utilizados e distribuímos pelos corredores da UMEI imagens com as histórias de vida de personalidades negras brasileiras[12], imagens de espaços e monumentos[13] que constituem patrimônio material afro-brasileiro e imagens de manifestações artísticas e culturais[14]. Na sala dos professores, colocamos elementos que remetiam à culinária africana, afro-brasileira e indígena para degustação[15].
As instalações tiveram o objetivo de provocar e tocar as subjetividades dos sujeitos, além de reeducar tempos, espaços e olhares em meio a uma rotina escolar muitas vezes corrida e engessada, que não nos permite enxergar além do que já está posto, problemática que afeta também a construção do currículo e as possibilidades de construções de propostas pedagógicas críticas e reflexivas. Quem perceberia os cartazes informativos colocados nas paredes dos corredores? Quem pararia para lê-los? Quais personalidades negras seriam reconhecidas? Quais espaços e monumentos já foram visitados? Quais elementos lhes seriam familiares? A quais memórias lhes remeteriam? Um olhar sensível para as sutilezas da vida cotidiana também implica um olhar sensível para identificar as nada sutis violências racistas, propondo formas de enfrentamento e combate.
Pensar a reeducação dos tempos, espaços e olhares é pensar a reeducação da nossa prática pedagógica. Precisamos pensar em como utilizamos o tempo com as crianças, quais propostas pedagógicas estamos construindo junto com elas, se é que realmente essa construção é coletiva, principalmente ouvindo as crianças. Ouvi-las nos faz refletir ainda mais se a educação para as relações étnico-raciais ocupa real espaço em nosso planejamento pedagógico ou se revela enquanto efemérides e movimentos pontuais.
Neste sentido, devemos estar atentas à forma como esses movimentos acontecem, se realmente a criança está sendo respeitada em sua individualidade e subjetividade ou se estereótipos de racismo e violência acabam se reproduzindo. Os espaços que utilizamos com as crianças muitas vezes são organizados sem pensarmos nas crianças. Será que realmente a organização desses espaços refletem a pluralidade étnico-racial do corpo discente e da comunidade escolar? É um espaço que consegue acolher todos os corpos ou estigmatiza, inferioriza e exclui? Será que o nosso olhar está sensível a tais questões, atento à construção de uma educação decolonial e antirracista? Que possamos nos inquietar com essas perguntas.
Sábado letivo: experiências ancestrais
Em maio, tivemos o primeiro sábado letivo do ano. Esse encontro geralmente abarca um café da manhã e reuniões com as famílias sem um tema ou objetivo predefinidos, razão pela qual observamos uma crescente queda na participação da comunidade escolar e um esvaziamento desse momento − que poderia ser potente e integralizador − por ter se tornado um evento com programação repetitiva e sem novidades.
Enquanto docentes, temos discutido as razões desse esvaziamento e percebemos a necessidade de mobilizar as famílias no sentido de fazê-las compreender o papel dos encontros e a importância de estarem presentes. Afinal, o sábado letivo é uma extensão do trabalho construído no dia a dia com os grupos de crianças, é um convite aos pais, responsáveis e familiares à tomada de conhecimento das propostas pedagógicas desenvolvidas por esses grupos; é uma forma de possibilitar à comunidade escolar a construção de um sentimento de pertencimento ao espaço escolar, interagindo e prestigiando construções que têm as crianças como protagonistas de todo o processo de aprendizagem.
O tema “experiências ancestrais” já estava reverberando pela unidade a partir das instalações que foram realizadas desde meados do mês de março, e os diferentes grupos de crianças e professoras buscavam suas formas de fazer desse movimento propostas para a afirmação da identidade negra e suas diferentes formas de cultura.
A princípio, tínhamos como principal objetivo romper com a lógica da maioria dos calendários letivos escolares, os quais abordam a luta dos povos originários e do movimento negro como efeméride, geralmente no mês de abril e novembro. Trazer essa discussão no primeiro sábado letivo do ano objetivou mostrar que o debate não é pontual, mas precisa e deve atravessar o currículo, independente de datas comemorativas.
O sábado foi então organizado a partir do que chamamos de oficinas. Cada uma traria elementos constitutivos das histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas, versando a estética, a culinária, as literaturas, a musicalidade e as artes.
As oficinas ficaram assim divididas: oficina culinária, com a preparação de cuscuz de tapioca; contação de histórias, a partir de um repertório que contemplasse a temática apresentada; roda de Capoeira; oficina de confecção da boneca Abayomi[16]; e oficina de tranças.
As oficinas realizadas abrangeram conhecimentos e saberes produzidos e sistematizados por esses povos ao longo dos anos, compreendendo uma dimensão estética e cultural ligada às tradições, ao artesanato, à culinária, religiosidade, oralidade, danças e músicas, possibilitando a apropriação desses elementos como forma de afirmação de uma identidade nacional, de caráter histórico e político. Importante ressaltar que parte das oficinas foram oferecidas pelas famílias das crianças, membros da comunidade escolar que se sentiram representados nesse espaço e, por isso, parte desse movimento.
Nilma Lino Gomes (2017) elenca, como recurso analítico e didático, três saberes produzidos pelo movimento negro no Brasil, os quais dialogam com as propostas apresentadas na organização do sábado letivo de nossa UMEI. Para a autora, trata-se de saberes que emergem da experiência e ação da comunidade negra e devem ser conhecidos e introduzidos pelas escolas como um importante componente curricular. São eles os saberes identitários, os saberes políticos e os saberes estético-corpóreos.
Os saberes identitários referem-se ao debate sobre raça e racismo no Brasil. Para a autora, nos últimos anos, principalmente com os avanços da tecnologia e da era digital, uma nova visibilidade da questão racial e da identidade negra, de forma positiva, tem se feito presente nas literaturas, nas artes e diversos campos de conhecimento, afirmando a identidade negra, com toda a sua complexidade, na cena pública e política.
Os saberes políticos contemplam os debates sobre a raça enquanto critério para superação das desigualdades, mediante a adoção e institucionalização de políticas públicas que colocam negras e negros como cidadãos de direitos. As Leis 10.639/03 e 11.645/08, que já tiveram suas relevâncias mencionadas neste texto, são exemplos dessas medidas.
Os saberes estético-corpóreos estão ligados às questões da corporeidade e da estética negra. Na luta pela superação da visão do corpo negro como feio, medonho, erótico, exótico, violento ou indisciplinado, os debates e as políticas de ações afirmativas reeducam o olhar da sociedade brasileira sobre os corpos negros. A estética negra passa a ser concebida como parte do direito à cidadania e a reivindicação de um corpo negro livre.
Gomes (2017) afirma que esses saberes rivalizam com o lugar da não existência das histórias e culturas, saberes e conhecimentos africanos e afro-brasileiros impostos pelo racismo. Eles afirmam a presença da ancestralidade negra e africana como motivo de orgulho e empoderamento ancestral.
Com as oficinas do sábado letivo, pudemos observar a diversidade de elementos que compõem a herança afro-diaspórica brasileira e como eles se fazem presentes em nossa história e vida cotidiana, rompendo com estigmas e estereótipos e fortalecendo a construção de nossa identidade individual e coletiva.
Projeto educacional instituinte - experiências ancestrais: um convite ao resgate das histórias e culturas da cidade de Niterói
No município de Niterói, existe uma política pensada pela Fundação Municipal de Educação que valoriza e estimula a construção de projetos que emergem da realidade local das escolas. Dentro dessa política, há um edital[17] que estabelece algumas regras, como um tema gerador, de modo que as escolas se organizem em projetos instituintes para a realização de um trabalho potente, que possa englobar toda a comunidade escolar, recebendo, para isso, um auxílio financeiro.
O edital para apoio de Projetos Educacionais Instituintes (Niterói, 2023) previu, no ano de 2023, o “Projeto Niterói 450 anos”, em que se pretendeu homenagear, experienciar e acolher propostas que trouxessem elementos da cultura da cidade para serem trabalhadas com as crianças. De acordo com o edital, compreendia-se por Projetos Educacionais Instituintes:
propostas de atividades pedagógicas, de ferramentas e de materiais didáticos que, articulados com o trabalho das Unidades Municipais de Educação, fossem favoráveis à transformação da realidade educativa, evidenciando sólida fundamentação teórica e coerência metodológica (Niterói, 2023).
Ainda de acordo com o documento, alguns objetivos dos projetos deveriam ser:
A partir destes objetivos e de aportes teóricos e metodológicos consonantes à construção da educação para as relações étnico-raciais, pensamos em uma metodologia que, prioritariamente, pudesse referenciar nossa ancestralidade e os elementos constitutivos dela.
Na condição de professoras regentes de grupos de crianças de 2 e 4 anos de idade, com aproximadamente 20 crianças em cada um dos grupos, pensamos em propostas que pudessem atender a ambos os grupos e que fizessem um trabalho de valorização da cultura negra e indígena, fortalecendo a identidade racial das crianças e ampliando seus repertórios culturais, musicais, artísticos e orais. Assim, para o desenvolvimento do Projeto, selecionamos literaturas infanto-juvenis permeadas por referências, elementos e/ou personagens afro-brasileiros, africanos e indígenas.
Pontuamos os objetivos que esperávamos serem alcançados pela comunidade escolar a partir da construção e desenvolvimento das propostas do Projeto Educacional Instituinte: − Conhecer as histórias, as culturas e os saberes dos povos indígenas e afro-brasileiros que constituíram e ainda constituem a cidade de Niterói; − Construir um sentimento de pertencimento, reconhecendo as histórias, as culturas e os saberes dos povos indígenas e afro-brasileiros como parte fundante e constituinte da nossa identidade até os tempos atuais; − Resgatar, valorizar e preservar os saberes produzidos pelos povos indígenas e afro-brasileiros através de experiências ancestrais múltiplas e diversas; − Tensionar e questionar um currículo escolar historicamente embranquecido e eurocentrado a serviço do status quo, que invisibiliza, silencia e marginaliza as epistemes de grupos sociais minoritários; − Contribuir com a construção de um currículo e uma educação decolonial e antirracista, rompendo com discursos e práticas discriminatórias, preconceituosas e estereotipadas a respeito dos povos indígenas e afro-brasileiros.
As leituras, ou o que chamamos de “momento de contação de histórias”, ocorreram em movimento de roda, relembrando a grande relevância desta, tanto para os povos indígenas como para os africanos. Para estes últimos, significa a potência da circularidade da palavra[18], como nos ensina Azoilda Trindade ao ponderar sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros: “a roda tem um significado muito grande, é um valor civilizatório afro-brasileiro, pois aponta para o movimento, a circularidade, a renovação, o processo, a coletividade” (Trindade, 2005 p. 34).
Após esses momentos, utilizamos os dispositivos que as leituras nos ofereciam[19] e propusemos brincadeiras, vivências e experiências referenciadas em nossa ancestralidade, a partir da aquisição de bonecas(os) pretas(os) para momentos de livre brincar; plantios de mudas e sementes; contato e manuseio de diferentes instrumentos musicais; realização de receitas culinárias carregadas de influências dos povos indígenas e afro-brasileiros; confecção de máscaras, capas e fantasias como elementos para compor as brincadeiras de faz de conta e brincadeiras de cuidado com o outro e com os cabelos, pensando na construção dos nossos vínculos e afetos.
Salientamos pontos importantes que levamos em consideração na seleção dos materiais e desenvolvimento da proposta. Foram eles: a criticidade na curadoria das literaturas que foram disponibilizadas para a apreciação das crianças, de forma que fossem representativas e não se construíssem como instrumento de reprodução de estereótipos; o cuidado com a seleção dos brinquedos, em especial, bonecas e bonecos, questionando e rompendo com os padrões de beleza socialmente impostos; a apresentação de estilos e instrumentos musicais diversos, como forma de ampliar o repertório artístico e musical; e a diversidade de elementos que pudessem compor o faz de conta, possibilitando outras construções imagéticas, fora da lógica hegemônica da branquitude[20].
Apesar de toda a nossa preocupação com a escolha de materiais e elementos que iriam constituir esse movimento com as crianças, percebemos que mesmo nós, que estamos envolvidas e engajadas na luta antirracista, apresentamos falhas, pois fomos formadas por uma sociedade racista, machista e sexista, e esses traços estão presentes em nós, por mais que estejamos lutando por uma sociedade outra. As referências a partir das quais fomos formadas estarão sempre à espera de qualquer pequena fissura para se revelarem. Isto ocorreu após a leitura de um texto sobre príncipes, cuja proposta era a confecção de capas e coroas com as crianças. Em meio ao movimento de recorte e colagem com os grupos, nos demos conta de que as coroas produzidas remetiam aos modelos europeus. Prontamente, resolvemos alterá-las, fazendo coroas com cortes e estilos outros.
Esse episódio nos indica que a construção de uma educação antirracista não é estática, mas permeada por avanços e retrocessos, incoerências e acertos. Precisamos estar atentas e em permanente movimento de ação-reflexão, reconhecendo nossas falhas, revendo nossos passos e recalculando as rotas sempre que for necessário. Como nos disse Silvio Almeida, no início deste texto, vivemos em uma sociedade moldada pelo racismo estrutural e suas marcas aparecem a todo tempo, mesmo quando tentamos apagá-las.
AINDA PARA REFLETIR…
Para nós, professoras das infâncias atravessadas pelas questões raciais comprometidas ética, histórica e politicamente com a construção de uma educação pública, gratuita e de qualidade, o debate em torno da educação para as relações étnico-raciais, educação decolonial e antirracista é muito caro. Levantar esta pauta enquanto direito a ser garantido e assegurado por lei, e lutar por uma educação inclusiva, plural e libertadora, é uma responsabilidade da qual não podemos abrir mão, uma vez que a nossa omissão e silenciamento se constituiriam também como formas de violência.
Um currículo monocultural e hegemônico produz violência discriminatória e racista, que afeta de forma negativa a construção da identidade individual e coletiva das nossas crianças. Em contrapartida, uma prática decolonial e antirracista é instrumento de construção de uma sociedade mais justa e igualitária, especialmente para as crianças que são vilipendiadas diariamente pela discriminação e pelo racismo.
Neusa Santos Souza (1983) afirma que uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo, que se constrói como um discurso "do negro sobre o negro". Acessar outras narrativas, sejam elas afro-brasileiras e/ou indígenas, é ter a oportunidade de escrever sua própria história e adquirir autonomia. Somente assim nossas crianças terão o direito de viver dignamente, performando livremente múltiplas formas de ser e estar no mundo.
Nestas poucas linhas compartilhamos angústias, experiências e alegrias, a partir da construção de propostas que se pretendem emancipatórias, que se constituem como ferramenta pedagógica que reverbera nossos anseios.
As propostas tiveram como ponto de partida o resgate das histórias e culturas indígenas e afro-brasileiras, elementos fundamentais na construção da nossa identidade como cidade e país. Ao levarmos isso ao conhecimento de nossas crianças e da comunidade escolar, esperamos que a existência e toda a contribuição material e imaterial desses povos para a história sejam valorizadas e preservadas, rompendo com narrativas discriminatórias e inferiorizantes.
Vivenciamos, durante o ano de 2023, principalmente nos meses em que experimentamos com as crianças dos nossos grupos etários as práticas sugeridas pelo projeto instituinte, muitos momentos que nos fazem acreditar que é possível uma mudança de paradigmas e de conceitos na educação.
As crianças puderam ter contato com literaturas, narrativas e personagens outros, que não da cultura hegemônica, e esse movimento nos mostrou o quanto elas se sentiram visibilizadas e representadas. Em muitos momentos, elas se comparavam às personagens do texto, ressaltando que havia semelhanças entre elas e dizendo serem parecidas; como tinham uma mãe ou um pai que lembravam as personagens das histórias; que seus cabelos eram iguais ou, ainda, um determinado penteado que já haviam feito. Poder se deslocar para o universo literário, vendo-se representados, foi um dos melhores momentos que experimentamos.
Os instrumentos musicais e os brinquedos escolhidos também mobilizaram as crianças, que já conheciam muitos instrumentos por terem alguém na família que os tocavam, e os brinquedos também traziam representatividade, o que, visivelmente, tornou os momentos mais prazerosos.
Reconhecemos que, assim como em muitos espaços, a caminhada ainda é difícil. Vivenciamos em muitos momentos os olhares questionadores, as práticas equivocadas, a dificuldade em ouvir e dialogar, vindos de nossos pares. Entretanto, percebemos, a partir das crianças, o impacto positivo dessas práticas, que nos apontam que estamos no caminho certo. Entendemos que a mudança não se faz sozinha, precisamos de professores comprometidos, de estudo, pesquisa e conhecimento para que práticas antirracistas sejam construídas, as leis aqui mencionadas sejam cumpridas e toda forma de discriminação e preconceito sejam rompidas.
O currículo, como campo de constante tensão e disputa, precisa ser criticamente reconhecido em seu potencial papel na colonialidade do ser, do saber e do poder, compreendido como instrumento de manutenção e garantia de privilégios e de dominação. Propostas como as apresentadas neste trabalho são potencializadoras de um currículo decolonial e antirracista na medida que, por meio de experiências ancestrais diversas, tensiona e questiona o currículo escolar historicamente embranquecido e eurocentrado, a serviço do status quo e do modus operandi, possibilitando que as narrativas e os elementos que compõem as identidades de grupos sociais minoritários e marginalizados sejam visibilizados e legitimados.
Por último, mas não menos importante, reiteramos que a discussão e o planejamento das propostas pedagógicas para a inserção das histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas precisam estar presentes de forma permanente e diária, na construção do currículo oficial das instituições de ensino. Trouxemos, para elucidar a discussão, algumas propostas trabalhadas com os nossos grupos etários e que julgamos significativas, mas que não expressam a totalidade e muito menos a complexidade do nosso trabalho.
A educação para as relações étnico-raciais não cabe em projetos ou datas comemorativas, tampouco tem data para culminância. Nem mesmo cabe em um artigo. Este trabalho é processual e deve atravessar o ano letivo, revelando-se nas micro e macroações do cotidiano pedagógico, ocupando o espaço que lhe cabe por direito constituído legalmente.
Referências
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Letras, 2019.
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Acesso em: 03 maio 2023.
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BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm Acesso em: 03 maio 2023.
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Data do envio: 08/02/2024
Data do aceite: 06/05/2024
Revista Aleph, Niterói, V. 1, Junho . Ano 2024, nº 41, p. 1 - 23 ISSN 1807-6211
[1] UMEI Zilda Arns Neumann. Email: betadias3112@gmail.com Telefone (21) 970307288 Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1137-8351
[2] UMEI Zilda Arns Neumann. Email: caroline.nm@live.com Telefone: (21) 976171254 Orcid: https://orcid.org/0009-0005-4862-3068
[3]A lei 11.645 estabelece que: § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008).
[4] O mito da democracia racial sugere uma realidade em que os grupos sociais viveriam plenamente, usufruindo de igualdade em qualquer esfera da sociedade, independente da raça ou etnia.
[5] No próximo tópico explicaremos o termo.
[6] O termo foi cunhado pelo quilombola, poeta e escritor Antônio Bispo dos Santos. É uma perspectiva que se opõe à colonialidade e se refere aos povos que não foram colonizados.
[7] Em sua tese de doutorado, intitulada “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”, Sueli Carneiro traz a definição de epistemicídio.
[8] Confira em: https://niteroi.rj.gov.br/2023/04/28/ecosocial-e-programa-no-caramujo-sao-temas-de-palestras-na-cupula-das-cidades-das-americas/
[9] Estudos biográficos atuais apontam a realidade social vivida pelo indígena Araribóia, esclarecendo a dualidade experimentada por ele, visto que a sociedade a que ele pertenceu já estava posta com a presença de europeus; apontam, ainda, que mesmo se convertendo ao catolicismo e defendendo pautas europeias, o indígena não teria deixado de dividir terras com seu povo e libertá-lo da escravidão. Disponível em: Aniversário do RJ: cacique fundou cidade junto com portugueses (uol.com.br)
[10] Ministério da Educação / Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão.
[11] A equipe pedagógica da unidade, pensou conosco essas propostas e propuseram ampliar para além das turmas em que o projeto iria ocorrer, reverberando por toda a unidade.
[12] Algumas dessas personalidades foram: Emicida, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Babalorixá Ivanir dos Santos.
[13] Busto de Mercedes Batista, no Largo da Prainha; Quilombo da Pedra do Sal e a Baobá na cidade de Paraty, entre outras.
[14] Capoeira, Jongo e Roda de Samba, entre outras.
[15] Bala de coco, doce de abóbora e a bala e fruta de tamarindo.
[16] A história da boneca Abayomi é comumente contada remetendo ao período do tráfico Atlântico. Segundo a narrativa, mulheres africanas faziam pequenas bonecas com pedaços de tecidos de suas vestimentas para acalentar suas crianças durante a travessia do Oceano. Entretanto, não há um único registro histórico que associe a origem da boneca ao período colonial. Essa narrativa, que tende a romantizar um episódio da história mundial tão trágico e cruel, na verdade corrobora o apagamento da verdadeira história da boneca. A técnica para a criação das bonecas foi desenvolvida em 1987 pela artesã maranhense Waldilena “Lena” Serra Martins, nascida em 1950.
[17] Edital disponível em: Edital para Apoio a Projetos Educacionais Instituintes SME/FME Nº 02/2023 - SME / FME (niteroi.rj.gov.br)
[18] Quando utiliza a expressão “valores civilizatórios Afro-brasileiros”, Azoilda destaca as diversas contribuições de África e dos africanos e africanas trazidas para o Brasil, bem como de seus/suas descendentes. Além da Circularidade e Oralidade, constituem valores civilizatórios Afro-brasileiros: Religiosidade, Energia Vital (axé), Corporeidade, Ludicidade, Musicalidade, Memória, Ancestralidade e Cooperativismo/Comunitarismo.
[19] As literaturas utilizadas para a construção das propostas do Projeto Educacional Instituinte foram: Amoras (Emicida, 2019); O pequeno príncipe preto para pequenos (Rodrigo França, 2020); Princesas Negras (Edileuza Penha de Souza e Ariane Celestino Meireles, 2019); Lulu adora histórias (Anna McQuinn, 2014); O meu crespo é de rainha (bell hooks, 2018); O mundo no black power de Tayó (Kiusam de Oliveira, 2013); Minha dança tem história (bell hooks, 2019); Contos africanos para crianças brasileiras (Rogério Andrade Barbosa, 2004); e O Tupi que você fala (Cláudio Fragata, 2015).
[20] Desde nossas infâncias, o nosso imaginário sobre super-heróis e super-heroínas, príncipes e princesas, por exemplo, ainda é moldado a partir da estética e da lógica hegemônica da branquitude, que representa o bem e o belo, sem permitir a ideia de que estes personagens podem ser concebidos a partir de outras estéticas.