Lygia de Oliveira Fernandes

SOBRE VIVÊNCIAS NEGRAS, RESSIGNIFICAÇÕES E PRODUÇÕES DE SENTIDOS: VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS E SUAS POTENCIALIDADES EMANCIPATÓRIAS NOS ESPAÇOS E TEMPOS DA ESCOLA

ON BLACK EXPERIENCES, RESIGNIFICATIONS AND THE PRODUCTION OF MEANINGS: AFRO-BRAZILIAN CIVILIZATIONAL VALUES AND THEIR EMANCIPATORY POTENTIAL IN SCHOOL SPACES AND TIMES

Lygia de Oliveira Fernandes [1]

Resumo

Os valores civilizatórios afro-brasileiros são plurais. Muito embora não possam ser admirados separadamente, os destaques feitos ao longo deste texto têm o propósito de refletir sobre algumas experiências vividas no cotidiano de uma escola pública, cuja comunidade escolar é majoritariamente negra. Na escola, a partir de aprendizagens proporcionadas pelas mais diversas expressões da cultura afro-brasileira, é possível observar modos de ser e estar no mundo que não apontem somente na direção de uma história ocidental, branca e eurocêntrica. Assim, este ensaio, em diálogo com alguns documentos que orientam o trabalho realizado na Educação Infantil e Ensino Fundamental, traz reflexões, indagações e apontamentos a respeito dos valores civilizatórios afro-brasileiros e as suas potencialidades emancipatórias, em prol da promoção de uma educação comprometida com a luta antirracista e com a efetivação da Lei nº 10.639/2003.

Palavras-chaves: valores civilizatórios afro-brasileiros. cultura escolar. educação antirracista.

Abstract

The Afro-Brazilian civilizational values are plural. Although they cannot be admired separately, the highlights made throughout this text are intended to reflect on some experiences lived in the daily life of a public school, whose school community is majority black. At school, through the learning provided by the most diverse expressions of Afro-Brazilian culture, it is possible to observe ways of being in the world that point not only in the direction of a Western, white, and Eurocentric history. Thus, this essay, in dialogue with some documents that guide the work carried out in Early Childhood Education and Elementary Education, provides reflections, questions, and notes on Afro-Brazilian civilizational values and their emancipatory potential to promote an education committed to the anti-racist struggle and the implementation of Law No. 10.639/2003.

Keywords: Afro-Brazilian civilizational values. school culture. anti-racist education.

Palavras Introdutórias

Nós, povos negros da diáspora, seja pela desterritorialização e/ou apagamento das nossas memórias, estamos em constante processo de reinvenção das formas de viver nossa identidade étnico-cultural. Esse processo de torna-se acontece de formas diversas, conforme aponta Neusa Santos Souza (1983), inclusive a partir da abertura de novos campos de contestação acerca daquilo que nos constitui e do que nos diferencia dos outros. Pensando assim, a fim de refletir sobre elementos capazes de imprimir identidade às populações afro-brasileiras, em diálogo com alguns documentos que orientam o trabalho realizado na Educação Infantil e Ensino Fundamental, o presente ensaio pretende trazer reflexões, indagações e apontamentos a respeito dos valores civilizatórios afro-brasileiros, mapeados pela professora Azoilda Trindade (2006), e suas potencialidades emancipatórias, em prol da promoção de uma educação comprometida com a luta antirracista e com a efetivação da Lei nº 10.639/2003. Para isso, também serão consideradas as experiências vividas no cotidiano de uma escola pública comprometida com a efetivação de uma educação antirracista e afro referenciada.

Nos últimos anos, a Escola Municipal Noronha Santos[2], localizada em uma região periférica da cidade de Niterói, no estado Rio de Janeiro, por meio do comprometimento de seus profissionais e em diálogo com a história das crianças que vivem aquele espaço tempo, tem desenvolvido ações educativas que valorizam e exaltam os modos de ser e estar no mundo das populações negras. À luz dos Referenciais Curriculares da Rede Pública Municipal de Educação de Niterói[3] (NITEROI, 2022) e outros documentos que orientam o trabalho realizado na Educação Infantil e Ensino Fundamental, o presente ensaio traz ponderações que reafirmam e ampliam aquilo já apontado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira.

Combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social e racial, empreender reeducação das relações étnico – raciais não são tarefas exclusivas da escola. As formas de discriminação de qualquer natureza não têm o nascedouro na escola, porém o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na sociedade perpassam por ali. (BRASIL, 2005, p. 14)

        Nesse sentido, ainda que não seja tarefa exclusiva da escola, essa instituição não pode se esquivar daquilo que também a afeta. Embora a escola não seja responsável por produzir o racismo, esta violência traz contornos ao trabalho efetivado e às relações que são estabelecidas nas instituições escolares.  Se o racismo enquanto prática de violência comprometida com a eliminação do outro está entrelaçado nas práticas escolares e se manifesta das mais diferentes formas, é necessário e urgente reagir. Deste modo é preciso reconhecer o potencial criador dos currículos sobretudo aqueles se efetivam no cotidiano por meio da singularidade e protagonismo de seus sujeitos.

 As formas de reação são diversas, e sob a perspectiva do antirracismo podem ser elaboradas práticas cujo objetivo principal está na ampliação e qualificação do repertório cultural de toda a comunidade escolar. Assim, será possível construir ações e práticas capazes de promover a exaltação e a celebração da diferença, uma vez que a existência do outro, numa perspectiva emancipatória, precisa ser entendida como condição fundamental para uma existência plena.

Começo, meio, começo

Não falo do lugar dos derrotados

(Antônio Bispo dos Santos)

Nós, negros e negras, vitimados e vitimadas pela escravização daqueles que nos antecederam, bem como organizados à luz das compreensões acerca da negritude, somos o acúmulo de histórias distintas que trazem contornos sobre aquilo que nos identifica, sempre em processo de negociação. Levando em conta todo o acúmulo de discussão sobre o conceito da negritude, a partir de Munanga (2012) é possível afirmar que a negritude é uma construção política e sociológica de identidade, solidariedade, fraternidade e fidelidade, fundamentada em uma reação racial negra a uma agressão racial branca.

As maneiras de viver a negritude são plurais, e deste modo é possível compreender toda a multiplicidade do que é ser negro e negra em uma sociedade racial e socialmente hierarquizada. Também, o plural pretende contemplar todas as possibilidades de reação e ação protagonizadas pelas populações negras diante do racismo que, para além da denúncia, ousam enunciar de maneira criativa e, às vezes, inesperada.

Enunciar a diferença também faz parte dessa luta por sobrevivência, ressignificação e produção de sentidos. E é a existência da luta que torna concreto aquilo que o intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo[4], nos informa quando diz “Não falo do lugar dos derrotados”.

Ao negar o lugar da derrota, o intelectual quilombola convoca as populações negras a afirmar possibilidades vitoriosas apesar das políticas de apagamento e silenciamento. Conforme aponta Fernandes (2019)[5], a partir de reflexões apuradas acerca da sabedoria de Antônio Bispo dos Santos, “Não falo do lugar dos derrotados” pode nos oferecer pistas ou sugerir caminhos, muito embora não haja a intenção de determinar respostas.

O enunciado nega, mas afirma. Enuncia um lugar de recusa e aceita o desafio de elaborar novos tempos e espaços férteis, potentes e emancipatórios. É uma narrativa outra, sobretudo, reinventiva das linhas demarcatórias do isso ou aquilo. Na verdade, não é isso e/ou tão pouco aquilo. Se não falo do lugar dos derrotados, abro caminhos para estar em múltiplos lugares, inclusive exerço o direito de não querer habitar o lugar dos que venceram. Se minha voz não traduz a versão dos vencidos da história, assumo então o lugar de autoria para elaborar uma narrativa para além da derrota. Na invenção, vislumbro nas frestas pequenas vitórias contra o instituído. Se não falo do lugar dos derrotados, falo do lugar daquele que narra possibilidades ou elabora outras possibilidades narrativas. (FERNANDES, 2019, p, 45).

É prudente lembrar que as populações negras estão vivas e em processo de luta para celebrar suas diferenças porque não foram derrotadas pelas crises. Resistimos aos tumbeiros, resistimos à escravidão, à violência colonial, e assim – reinventando a existência - seguiremos no enfrentamento contra a imposição da derrota.

As existências negras foi (é e está sendo) resistente ao abandono, à desumanização, ao racismo. E se somos sobreviventes não é possível falar do lugar dos derrotados. O silenciamento, a invisibilidade, o desmérito, o desperdício não eliminou as populações negras. Ao contrário, tais violências nos obrigaram a agir, com esperança, resistência e valentia, em prol da reconfiguração e do fortalecimento dos nossos modos, costumes e redes. Se, por um lado, o cativeiro – de modo desumano e violento - reduziu os sujeitos negros à condição de mercadoria, por outro, provocou a enunciação de vozes e consciências resistentes a coisificação, à fixidez e ao estereótipo. Não fomos derrotados pelo desafio coletivo imposto pelo processo de escravização.

A marca da resistência das populações negras do continente africano e da diáspora ao longo da história são muitas e variadas, bem como se faz presente em muitas e variadas instâncias sociais. No campo da Educação, o Estatuto da Igualdade Racial[6] traz alguns avanços que motivam a celebração da luta contra discriminação e desigualdades organizada pelo movimento negro[7] e membros da sociedade civil. Conforme está no documento (Art. 11º), os estabelecimentos públicos e privados de Ensino Fundamental e de Ensino Médio são obrigados a oferecer o ensino da História Geral da África e da História da população negra no Brasil. Sendo assim, a partir de formação inicial e continuada dos professores, bem como por meio de produção de material didático adequado, os conteúdos referentes à história da população negra no Brasil serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, com destaque para o resgate da contribuição decisiva da população negra para o desenvolvimento social, econômico, político e cultural do país. Deste modo, seguindo as linhas do documento legal, as instituições públicas e privadas de Ensino Superior também devem direcionar suas atividades de pesquisa, ensino e extensão para o desenvolvimento de temas relacionados às questões de interesse das populações negras. Além disso, o mesmo documento, responsabiliza o poder público no sentido de adotar programas de ação afirmativa, bem como estimular e apoiar ações socioeducativas realizadas por entidades do movimento negro que desenvolvam atividades voltadas para a inclusão social, mediante cooperação técnica, intercâmbios, convênios, incentivos, entre outros mecanismos.

A inclusão dos saberes das populações negras nos currículos da Educação Básica a partir da Lei nº 10.639/2003, que altera a Lei nº 9394/96, tem impacto direto nos processos de ensino e aprendizagem do Ensino Superior, sobretudo na formação de professores. Ao ser transformada em ação concreta, a prerrogativa da lei tem a potência de elaborar caminhos rumo a processos descolonizadores e emancipatórios de produção de conhecimento. De acordo com os estudos da educadora Nilma Lino Gomes (2017), a legislação supracitada pode ser entendida como um campo de possibilidades, denúncias, enunciação e emancipação.

Nos Referenciais Curriculares da Rede Pública Municipal de Educação de Niterói (NITEROI, 2022), a Lei nº 10.639/2003 possui protagonismo, assim como a Lei nº 11.635\2008, responsável por tornar obrigatória a inclusão das histórias e culturas indígenas nos currículos da Educação Básica. O documento reconhece a efetivação dessas legislações no cotidiano e nos currículos das Unidades Escolares Municipais por meio de desdobramentos instituintes. A Escola Municipal Noronha Santos exemplifica esse movimento quando incorpora as histórias e culturas negras e indígenas em suas práticas cotidianas e documentos oficiais. Nesse caso, geralmente os primeiros passos rumo a uma educação que valoriza as diferentes formas de ser e estar no mundo acontece a partir da história do lugar e das pessoas que ali habitam. O território no qual a escola está inserida é capaz de nos contar histórias de existências e resistências e nos ensinar aspectos sobre o repertório cultural das populações negras no Brasil. Do mesmo modo, a cidade de Niterói instiga seus habitantes ao aprofundamento relacionado às histórias e culturas indígenas.

As Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, por meio dos sujeitos e atores sociais, tem a capacidade de denunciar e enunciar realidades e grupos silenciados, ignorados, esmagados, demonizados e trivializados. Além disso, de modo bastante ambicioso, é possível nutrir esperanças, a partir da força da lei e suas mobilizações correlatas, acerca da potencialização de modos outros e/ou formas outras de ser e estar no mundo, capazes de sugerir possibilidades outras de sociabilidades, a partir e por meio das histórias e culturas das populações africanas e afro-brasileiras.         

Acerca dos modos outros, Catherine Walsh (2009, p. 25), intelectual norte-americana radicada no Equador, refere-se aos jeitos de ser e fazer “que estão assentados sobre as histórias e experiências da diferença colonial, incluindo as da diáspora africana e sua razão de ser, enraizada na colonialidade”. Assim, a real efetivação das legislações supracitadas, nos cotidianos escolares, com o intuito de propor modos outros de ser e estar no mundo, precisa estar para além da simples inclusão de determinados conteúdos nos currículos, conforme pensam aqueles que pouco ou nada refletem sobre o assunto. Conforme instiga este ensaio, fazer de um jeito outro, a partir dos aspectos culturais e históricos das populações negras do continente africano e da diáspora também requer modificações nas estruturas coloniais que organizam os diferentes espaços e tempos da escola.

A partir de Quijano (2010) enquanto o colonialismo “refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos da produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial” (p. 84), um dos núcleos principais de sustentação da colonialidade está na “concepção de humanidade segundo a qual a população do mundo se diferenciava em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos” (p. 86). A lógica da colonialidade, sintetizada nas palavras de Mignolo (2008, p. 315), está fundamentada na perspectiva de “nivelamento do mundo”. Assim sendo, um dos desafios, que pode ser enfrentado pela escola, mas não somente, está no questionamento acerca dos processos de hierarquização dos diferentes saberes e fazeres dos povos e sociedades. Sobre a diferença nos processos de produção e socialização de conhecimentos no contexto da Educação Infantil e Ensino Fundamental, os Referenciais Curriculares da Rede Pública Municipal de Educação de Niterói (NITEROI,2022) apontam a importância da sua celebração, uma vez que o documento advoga em favor de um currículo que seja lugar de enunciação das muitas formas de existir. “Consideramos o ato de educar como espaço de interações entre os sujeitos e, portanto, espaço de experiências vividas, de práticas pedagógicas que potencializem a diferença em si, em que o sujeito singular emerge por meio de atos de criação.” (NITEROI, 2022, p. 57).

Nesse sentido a luta se estabelece contrária a domesticação das diferenças e/ou simplificação do currículo, posto que este documento deve se manifestar favorável a um mundo, onde todos os mundos sejam possíveis. De modo contrário ao que estabelece a colonialidade, o documento que organiza as práticas curriculares das Unidades Escolares do município de Niterói, deseja uma educação que dialogue com outras epistemologias, pois nisso está a possibilidade potente de produzir currículos na diferença.

A colonialidade imprime marcas nas nossas dimensões de poder, de ser, de saber e nas nossas cosmogonias, e por isso orienta as nossas práticas comumente experimentadas de ensino e aprendizagem. “A colonialidade do poder capitalista moderno e ocidental consiste em identificar diferença com desigualdade, ao mesmo tempo em que se arroga o privilégio de determinar quem é igual e quem é diferente” (SANTOS, 2010, p. 110). Concretizada nas instituições, o que inclui as escolas, os fios da colonialidade costuram tecidos hierárquicos racializados e estabelecem categorias binárias de compreensão de mundo.

Por meio do aspecto cosmogônico da colonialidade é possível explicar as muitas práticas educativas e escolares capazes de “anular as cosmovisões, filosofias, religiosidades, princípios e sistemas de vida, ou seja, a continuidade civilizatória das comunidades indígenas e as da diáspora africana” (WALSH, 2009, p. 15) tão marcadas pela coletividade e oralidade, por exemplo. “É a colonialidade cosmogônica ou da mãe natureza, que se relaciona à força vital-mágico-espiritual da existência das comunidades afrodescendentes e indígenas, cada uma com suas particularidades históricas” (p. 5). No campo da Educação, as ações contrárias a essa perspectiva da colonialidade, permitiria “ (…) perceber, por exemplo, na árvore, nas andorinhas, nos rios, possibilidades de estabelecer relações de alteridade com todos os seres, em um compromisso moral com o futuro planetário. ” (NITEROI, 2022, p.58).

Apesar das diferentes formas de hierarquização ou apagamento das histórias, saberes, fazeres e modos de vida daqueles povos considerados inferiores pela colonialidade, conforme nos diz Bispo dos Santos (2023, p. 47), essas populações seguem existindo, posto que não há conformidade com o lugar dos derrotados. Aprender a perceber os sentidos e significados daquilo enunciado como resistência, bem como exaltar as práticas inventivas e autorais de existência, pode ser mais uma entre as muitas missões da escola. O êxito desta tarefa pode estar na observação do cotidiano das famílias, que são parte da comunidade escolar, e na escuta de suas narrativas.

A luta contra todo esse projeto de eliminação e inferiorização do outro assentado sob as determinações da colonialidade, pode encontrar aliados entre os muros da escola e/ou em seu entorno. A partir da análise concentrada neste ensaio, os valores civilizatórios afro-brasileiros, mapeados pela professora Azoilda Trindade (2006), em diálogo com a cultura escolar, podem sugerir elementos e/ou contribuir para forjar modos outros de ser e estar no mundo, distinto da norma ocidental, branca e eurocêntrica.

Valores civilizatórios afro-brasileiros e a cultura escolar

Somente somos e nos reconstruímos na interação com muitos outros que nos atravessam e, por conseguinte, nos modificam. Só se pode ser, de fato e de modo pleno, na relação com o outro. Assim, é possível considerar que a existência, e nisso está incluso os processos educativos, somente acontece no coletivo. Sob a perspectiva das populações africanas, é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.

Ao mapear os valores civilizatórios afro-brasileiros[8], a professora Azoilda Trindade traz o cooperativismo/ comunitarismo como marca das populações negras (SILVA, 2021). Deste modo, reconhecer as marcas das organizações coletivas nas instituições escolares e relacioná-las aos ajuntamentos de resistência elaborados pelas populações negras ao longo da história, sem querer ser prescritiva, pode ser um caminho valoroso para o desenvolvimento de ações em direção ao ensino das histórias e cultura das populações africanas e afro-brasileiras.                

Ao observar as populações negras é perceptível que a sobrevivência até os dias atuais somente foi sustentada por meio de organizações fincadas na ideia de coletividade, vide as inúmeras expressões culturais que nos ensina sobre as muitas formas de ser negro e negra.  Também, se observamos as aldeias, os quilombos e as favelas, somente para citar algumas organizações que protagonizam as populações negras, o coletivo será percebido como destaque. E as escolas, ao olhar para esses territórios, tem a chance de repensar sobre a concretude de seus muros, aprender com o entorno e incluir nas suas espacialidades e temporalidades aspectos do local. Ao olhar no entorno e identificar a favela como forma de organização local, a Escola Municipal Noronha Santos tem o privilégio de aprender e ensinar sobre algumas dimensões do que é ser negro e negra na diáspora a partir das estratégias de existência a partir da coletividade, cooperação, partilha do cuidado e reivindicação de autonomia política.

Conforme nos diz a professora Azoilda Loreto da Trindade (2006), no material “A Cor da Cultura”, amplamente distribuído nas escolas em um passado não muito distante, não se come feijoada sozinho ou não se faz uma roda de samba sozinho. Se ampliarmos a análise acerca da cooperação para outras dinâmicas sociais observaremos que muito do que acontece nas escolas se torna impossível ou escasso de valor se a ação ocorrer na individualidade.

Assim como no jongo, no candomblé, na capoeira e no samba, podemos dizer que também não existe Educação Infantil sem musicalidade, expressão oral ou trabalho coletivo. Não é possível fazer uma roda de jongo sozinho, assim como não é possível dar conta das interações e brincadeiras, preceitos básicos do trabalho com as infâncias conforme preconizado pelas DCNEIS (2009), sem um grupo de crianças. (OLIVEIRA, GONÇALVES, FERNANDES, SANTOS, 2022, p. 70).

Se ampliado para outros segmentos da Educação Básica, como os anos Iniciais do Ensino Fundamental, a partir das Orientações e Ações Para a Educação das Relações Étnico Raciais (BRASIL, 2006) é possível reconhecer os valores civilizatórios afro-brasileiros em muitos fazeres escolares, caso exista olhos educados para isso. Um rápido exemplo está na hora do recreio e/ou em outros tempos e espaços voltados ao riso, ao jogo, à brincadeira e que não podem ser totalmente dominados pela verticalidade da norma instituída e/ou não se submetem à uma norma temporal imposta. Nesses tempos e espaços há destaque para as rodas, aglomerações, brincadeiras, cantorias, risadas e tudo mais que esteja relacionado à ludicidade, circularidade da vida e à integralidade do ser humano. Inclusive, quando se refere ao Ensino Fundamental, o documento acima mencionado, sob a coordenação de Rosa Margarida de Carvalho e Azoilda Trindade, aponta o desejo de “(...) inspirar às educadoras e educadores à efetivação de uma cultura escolar cotidiana de reconhecimento dos valores civilizatórios africanos como possibilidade pedagógica na construção dos conhecimentos. ” (BRASIL, 2006, p.54), posto que é importante que sejamos capazes de reconhecer, até mesmo nas ações mais corriqueiras ou nas rebeliões contra o instituído, o quão impregnado de memória negra podem ser alguns modos de fazer escolares e o quanto os olhos de crianças e adultos são educados para não enxergar isso.

A despeito de um currículo às vezes pré-estabelecido ou de uma visão ocidental do tempo que tende a disciplinar e mecanizar, há uma escola que resiste à individualidade e/ou a linearidade do tempo, quando para além do instituído experimenta-se interações entre diferentes pessoas, espaços e tempos. No entanto, apesar dos avanços, a estrutura curricular, ainda oferece às crianças e adultos experiências que pouco protagoniza as narrativas negras, e por isso acabam sugerindo caminhos que apontem somente para uma história ocidental, branca e eurocêntrica.

Ainda que muitas vezes pré-estabelecido e pouco dialógico com as histórias do lugar, o currículo que se efetiva na prática escolar cotidiana muitas vezes é resistente e acontece na coletividade e na troca entre os adultos e as crianças. Esses sujeitos, que são e vivem a escola, imprimem marcas inegáveis em seu cotidiano, posto que suas ações estão acompanhadas de suas histórias e memórias.   Afirmar a presença da memória, bem como dos demais valores civilizatórios afro-brasileiros nos cotidianos escolares, pode significar a afirmação de vidas e vitórias apesar das mortes e derrotas a que são acometidos determinados povos e culturas que, muito embora vencidos em certas batalhas, seguem na guerra por direito a enunciação.        

A sobrevivência que atravessou e atravessa os tempos e os oceanos advém da astúcia daqueles inconformados com a possibilidade do não ser, do não poder e do não existir. O ser, poder e existir apesar da, ou devido à violência colonial acontece de diversas maneiras, inclusive por meio da narrativa das experiências, que podem afetar, atravessar e, por isso, produzir reflexões. As experiências que habitam o passado e ganham vida nova com a narrativa do presente são capazes de ensinar sobre vivências, resistências e existências, por isso memória, oralidade e ancestralidade também estão no repertório de valores civilizatórios afro-brasileiros e podem nos ensinar sobre muitos aspectos das culturas negras.

Cada pessoa ou grupo é esconderijo de uma história, de uma memória. Pensando assim, a memória da população negra é múltipla, e se há somente relatos de derrota, a insistência dessa narrativa está por conta daqueles que por algum motivo passaram a ser detentores da escritura caracterizada como oficial. Deste modo, um meio outro de produzir conhecimento poderá estar, primeiramente, na luta contra a produção de inferioridade intelectual ou na negação da possibilidade de determinados povos acessar a sua memória e torná-la pública por meio da narrativa, seja ela oral ou escrita. O não privilégio de uma determinada memória em detrimento de outra pode também ser um ponto de partida para uma produção e socialização outra de conhecimentos, que não exclua ou negue a presença dos valores civilizatórios afro-brasileiros.

A arte da narrativa e o conto de histórias podem ser considerados como uma das características comuns das comunidades organizadas por meio e a partir das práticas das populações negras. Amadou Hampete Bâ (2011, p. 174) faz menção ao poder da oralidade como algo bastante recorrente nas culturas africanas. “O que a África tradicional mais preza é a herança ancestral. O apego religioso ao patrimônio transmitido exprime-se em frases como: ‘Aprendi com meu mestre’, ‘Aprendi com meu pai’, ‘Foi o que suguei no seio de minha mãe’.”.

Ao olhar as Áfricas reinventadas na diáspora, é possível observar a mãe de santo ensinar a seus filhos os saberes dos terreiros por meio de histórias. Também é possível ver um velho jongueiro partilhar, com os mais novos, as lembranças do cativeiro contadas por outros mais velhos. Do mesmo modo, os sambas enredos nos informam sobre passado e presente, bem como nos dão pistas sobre o futuro. Prova disso é o samba enredo da Escola de Samba Portela, no carnaval 2024. Nasci quilombo e cresci favela.

O Brasil das rodas, das redes e do tambor foi (e segue sendo) contado em histórias aos mais novos que, ao ressignificarem as experiências dos mais velhos, imprimiram e imprimem outros sentidos aos seus fazeres e pensares. Afinal, conforme nos ensina a sabedoria quilombola de Antônio Bispo dos Santos (2023), nós somos começo, meio e começo.

O saber daquele que narra sua experiência ao ser partilhado precisa de um estado oposto ao isolamento em que a sociedade atual nos impulsiona, pois do contrário não haverá possibilidade do desencadeamento de outras histórias ou sentidos às experiências daquele ou daquela cuja narrativa está direcionada. A narrativa sobretudo oral, então, nos convoca a estar em comunidade e a compreender a existência como uma experiência coletiva, de reconhecimento do outro.  

Reconhecer-se na experiência do outro seria o primeiro passo para a construção de um espaço suscetível à narrativa. Para isso, é preciso estar atento ao outro, reconhecer a sua humanidade e suas potencialidades, para que assim, seja possível imprimir sentidos e significados às suas experiências.

A esperança na escola aldeia-quilombo – favela

O projeto colonial tentou, e ainda tenta, nos apartar de muitos saberes cuja marca se aproxima dos valores civilizatórios afro-brasileiros. Às vezes, o intento colonial logra êxito, mas não se torna vencedor absoluto, posto que, nas aldeias, quilombos e nas favelas, por exemplo, sobrevivem compreensões acerca de relações e organizações coletivas, ancestrais, lúdicas, circulares que fazem frente aos modelos branco, eurocêntrico e ocidentais de existência.  

Os modos de interagir existentes nos territórios habitados por maioria negra podem ser entendidos como campos de possibilidades para a elaboração de modos emancipatórios de aprender e ensinar. Os saberes das aldeias, quilombos e favelas, ainda que sejam apenas uma fagulha de tudo que há para ser reaprendido acerca dos diferentes modos de ser e estar no mundo, nos dão pistas sobre “romper as correntes que ainda estão nas mentes, como dizia o intelectual afro-colombiano Manuel Zapata Olivella; desescravizar as mentes, como dizia Malcolm X; e desaprender o aprendido para voltar a aprender, como argumenta o avô do movimento afro-equatoriano Juan García” (WALSH, 2009, p. 24).        

Para a educadora Nilma Lino Gomes (2017), o movimento negro, território de enfrentamento e enunciação da população negra em torno da luta antirracista e, por isso, produto e produtor de experiências sociais diversas, é considerado um ator político e sujeito de conhecimentos por conta, principalmente, da promoção de debates e indagações que protagoniza com o intuito de superar as profundas desigualdades raciais instauradas na sociedade. No Brasil, ao ressignificar a ideia de raça e de questão étnico racial, o movimento negro imprime, nessas relações, um valor de potência, devido à possibilidade de repensar e transformar a própria história do Brasil e das populações negras, bem como de reconstruir suas identidades.

        No campo da Educação, com recorte a partir das primeiras décadas do século XX, é possível perceber alguns movimentos advindos da organização coletiva das populações negras em luta. O Teatro Experimental do Negro atuou na alfabetização de seus primeiros participantes e na oferta de elementos para que seus integrantes pudessem indagar acerca dos espaços ocupados pelas populações negras no contexto nacional. Além disso, a presença da discussão sobre raça no processo de tramitação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação no Brasil esteve a cargo do movimento negro. Também, a trajetória acadêmica e política de intelectuais engajados na temática da negritude se tornou responsável por apontar e propor a desconstrução do racismo nas dinâmicas escolares, bem como discutir a importância do estudo das histórias da África nas instituições escolares e acadêmicas.

        A partir da Lei nº 10.639/2003, as escolas se tornam obrigadas a ensinar as histórias e culturas negras com o propósito de forjar novas relações étnico-raciais entre os sujeitos e instituições formadoras da sociedade. Conforme apontam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2004), é de responsabilidade do Estado a promoção e o incentivo de políticas públicas de ação afirmativa cujo propósito é reparar, reconhecer e valorizar as histórias, culturas e identidades das populações historicamente discriminadas.  E a partir disso, é possível sonhar dinâmicas educativas outras comprometidas com a transgressão do projeto colonial. 

Na escola, com destaque para aquelas instituições públicas cujo espaço tem o privilégio de localizar-se nas aldeias, quilombos e favelas, corpos negros com memórias ancestrais marcadas pelos valores civilizatórios afro-brasileiros se encontram, trocam e se mobilizam coletivamente. A lógica da coletividade que se impõe na escola mobiliza afetos, criações, improvisações e negociações. Tudo isso extrapola a previsibilidade curricular, ainda que as normas instituídas também apontem para a dimensão da imprevisibilidade, visto que sua concretude depende fundamentalmente da ação humana disposta, sempre, a obedecer e/ou a desobedecer.

Há uma reinvindicação pelo coletivo na escola em seus diferentes espaços, seja na dimensão docente ou discente. O coletivo é convocado de modo oficial ou extraoficial. Seja para dar conta da institucionalidade ou para questionar o instituído. O coletivo é o pressuposto da escola. E o coletivo engloba o plural, no qual estão as diferenças, bem como constrói e promove rupturas que também antecede novas construções.

         A força do coletivo é incontestável, vide às formas de sobrevivência daqueles violentados pelas políticas de silenciamento, apagamento e morte organizados pelo projeto colonial. As aldeias, os quilombos e as favelas são algumas dessas instâncias de sobrevivência, e guardadas as suas especificidades, ao serem observadas pelas lentes da contemporaneidade, apresentam suas formas próprias de experimentar o tempo e o espaço e podem ser compreendidos como espaços e tempos de reinvenção e manutenção coletiva da vida.

Lá os modos de existência próprios acontecem em contraponto e apesar do projeto colonial. Lá o entendimento de comunidade familiar é ampliado e as famílias são estendidas, de modo que as pessoas nomeadas como tias e tios, pela linha do parentesco, também compartilham a vizinhança e não somente os laços de sangue. As famílias estendidas, por meio das tias e dos tios, no contexto das populações submetidas ao deslocamento forçado e/ou ao genocídio, dinamizaram processos de educação e cuidado de crianças, grupos e de comunidades inteiras.

Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (2004, pp. 649-650), nos ajuda a compreender a ideia de família estendida quando explica que a denominação tia e tio está para além de uma ligação consanguínea.

TIAS BAIANAS. Denominação pela qual foram conhecidas as líderes, em geral ialorixás, da comunidade baiana estabelecida no centro da cidade do Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do século XIX, no espaço mais tarde referido como “Pequena África”. (...) TIO [1]. Tratamento reverente que, na América Hispânica e no Brasil, se dava aos negros velhos. Sua origem está no fato de que, nas sociedades patrilineares africanas, o jovem deve respeito e obediência filiais ao irmão do seu pai: se ele tornar-se órfão, seu tio paterno substituirá o pai e exercerá sobre ele a autoridade de sua linhagem. No Rio de Janeiro, o uso desse tratamento para pessoas mais velhas, corrente entre a população negra, foi, a partir dos anos 1980, reabilitado na linguagem popular geral.

        Ao observarmos a escola, a ideia de família estendida ou o significado ancestral do ser tia ou tio está lá em cada criança ou família que atribui este título aos profissionais de educação. Somos tios e tias. Somos parte desse coletivo responsável pela manutenção e continuidade da vida de toda uma comunidade. E assim as crianças e suas famílias tornam concreto, real e cotidiano a sabedoria africana sobre a importância, a urgência e a necessidade de uma aldeia inteira para educar uma criança.  

        A coletividade está nas escolas, assim como nas aldeias, quilombos e favelas. A coletividade também está na Escola Municipal Noronha Santos, cujas dinâmicas oferecem elementos a este ensaio.         Ao observar os modos de ser e estar no mundo daqueles que vivem nesses territórios podemos aprender sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros e apontar outros. Naqueles territórios, considerados ilhas de sobrevivência para tantas e tantos, podem ser elaboradas muitas noções explicativas do mundo, a partir e por meio dos inúmeros saberes que podem ser encontrados, advindos das mais infinitas experiências. 

        O conceito da ecologia de saberes, fundamentado no reconhecimento da pluralidade de saberes heterogêneos, da autonomia de cada um deles e da articulação sistémica, dinâmica e horizontal entre eles (SANTOS, 2010, p. 157) é imprescindível para pensar dinâmicas de ensinar, aprender, produzir e socializar conhecimentos, fundamentadas no valor e no fortalecimento das múltiplas experiências. Um processo de ensino, aprendizado, produção e socialização de conhecimentos sob os alicerces da diversidade epistêmica poderá reconhecer o outro como lugar de saber e, por isso, estabelecer com ele uma relação profundamente alteritária, a partir e por meio das suas muitas possibilidades de ser.

Alguns apontamentos finais

Nas instituições escolares repousam muitas esperanças, desejos e ambições. De modo bastante ambicioso este ensaio pretende nutrir esperanças na efetivação de uma escola que caiba o riso, a brincadeira, a roda, a memória, as histórias ancestrais e tudo aquilo que nos aproxima dos modos negros de ser e estar no mundo. O desejo partilhado está no reconhecimento e no destaque dos valores civilizatórios afro-brasileiros existentes no cotidiano escolar. Aprender a reconhecê-los pode ser um dos caminhos para a criação de uma comunidade educativa que promova o entusiasmo e o interesse genuíno entre todas as pessoas envolvidas, posto que a escola que se deseja está profundamente afetada por ouvir e reconhecer a voz e a presença de seus sujeitos. Afinal, o desejo aqui defendido está em uma escola que acredite no potencial do coletivo, posto que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Esta aldeia, composta por pessoas que reúnem histórias em sua sabedoria, será capaz de educar uma criança, bem como pode ensinar futuros às gerações presentes. Ainda que as experiências dos sujeitos não seja condição exclusiva para a produção e socialização do conhecimento, tais processos podem se tornar mais efetivos quando no centro estão as histórias daqueles que dão vida àquela instituição.  

A partir das histórias dos mais velhos, a Escola Municipal Noronha Santos, por meio do Projeto Raízes, elaborou uma cartilha com histórias sobre o lugar e sobre a instituição. O projeto, cuja base foi a memória das pessoas envolvidas, aconteceu há pouco mais de dez anos e a sua importância é comprovada no dia a dia, já que, vez ou outra, seu impacto na comunidade escolar é mencionado e o Projeto Raízes se torna central nos momentos de debate e reflexão.  

A memória, conforme mencionado ao longo do texto, é considerado um valor civilizatório afro – brasileiro, e o processo de recolhimento das histórias por meio de uma atividade pedagógica apontou caminhos para muitas outras ações de potencialização das populações negras, que apesar dos avanços seguem de maneira subalterna em muitas das dimensões sociais. Muito embora a desqualificação dos saberes e fazeres dos povos subalternizados siga como projeto político, um meio outro de produzir conhecimentos poderá estar, primeiramente, na luta contra a produção de inferioridade intelectual e a negação da possibilidade do outro. O outro é lugar de saber e nele repousam histórias importantes para toda uma comunidade.

O não privilégio de uma experiência em detrimento de outra, e sim o encontro entre as experiências vividas nos mais diferentes espaços poderá ser o ponto de partida para uma produção e socialização de ressignificações, significados e sentidos. Vale destacar que, trazer à tona as múltiplas experiências pelo advento da memória, por exemplo, por si só não se torna uma ação transgressora. É a força das experiências daqueles que se reinventaram a partir da escassez, das ausências e da interdição que podem proporcionar elementos transgressores a estrutura colonial.

        Walter Benjamin (2012, p. 244) expõe que “tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer”, pois com suas narrativas silenciadoras, o inimigo é capaz de provocar o esquecimento de tantas outras narrativas, bem como motivar o levante revolucionário de outros montes. Por isso, é necessário inconformar-se com essas vitórias incessantes com o propósito de preservar a memória e tornar vivos os feitos de determinados mortos que estão em vias de desaparecimento devido à narrativa insistente de uma história única e parcial, que se quer universal.

        Para a transformação dessa estrutura fundamentada sob o direito de somente alguns grupos possuírem e conseguirem acessar seu passado, é necessário evocar o inconformismo de vivos e mortos, para que deste modo seja possível “reinventar o passado de modo a restituir-lhe a capacidade de explosão de redenção” (SANTOS, 2010, p. 54). Afinal, todo mundo tem experiências que, se narradas, podem se tornar potentes em significados.

A potência dos significados está concentrada na relação dessas histórias que podem ser transformadas em outras. Na lacuna produzida pelo esquecimento da memória de um, poderá estar a memória do outro, e a produção de novos sentidos acontecerá a partir das interações, fluxões e conexões.

        A escola pode ser o local privilegiado para a construção coletiva de histórias e memórias positivas sobre as populações negras, capazes de alimentar o orgulho de crianças e jovens negras e negros acerca do seu pertencimento étnico racial.  No entanto, como campo de disputa, a escola também é permeada por histórias que insistem em aspectos negativos sobre determinados povos ou comunidades, e isso contribui para a criação de estereótipos. “E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história” (ADICHIE, 2015, s.p.).

As instituições escolares, por meio dos seus muitos dispositivos e sujeitos, carregam algumas ideias acerca das histórias e culturas das populações negras. E naquele espaço essas ideias são perseguidas de modo a serem concretizadas a qualquer custo, ainda que às vezes reduza toda uma população a determinados estereótipos. É importante lembrar que o estereótipo como estratégia discursiva colonial de simplificação do outro, na verdade, “é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório” visto que o próprio discurso colonial “se apoia no reconhecimento e repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas” (BHABHA, 2013, p. 123). 

Valorizar, exaltar, destacar e tornar currículo os valores civilizatórios afro-brasileiros está para além de reduzir todo um grupo populacional a determinados estereótipos. Ao contrário, esses princípios apresentados por Azoilda Trindade e em diálogo com a escola, em suas especificidades, podem propor, de maneira justa e com profundidade, um ensino verdadeiramente comprometido com as histórias e culturas das populações negras.

 A exaltação e reconhecimento dos valores civilizatórios afro-brasileiros não pode estar restrito a uma data em um determinado mês ou a uma prática de determinado educador ou educadora. O reconhecimento poderá extrapolar os muros da escola se toda a comunidade escolar for estimulada a despertar olhos de aprender.

Se de algum modo os sujeitos que compõe a escola entendem que o diálogo, o embate ou a crítica à instituição tem mais força na coletividade, há nisso a marca dos valores civilizatórios afro-brasileiros. Ainda que não saibam objetivamente, ouso dizer que o sussurro das vozes ancestrais ensina adultos e crianças sobre a organização coletiva, instância que permitiu o adiamento do fim do mundo de todo um grupo populacional e pode semear futuros para a escola que ainda se quer viva.

Referências

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Data do envio: 16 /04 /2024

Data do aceite: 24/04/2024.

        Revista Aleph, Niterói, V. 1, Junho . Ano 2024, nº 41, p. 1 - 23           ISSN 1807-6211          


[1] Escola Municipal Noronha Santos/ Coordenação de Educação na Diferença (CEDIF) E-mail: lygiaof@gmail.com. Telefone: (21) 98538-3922. ORCID (https://orcid.org/0009-0005-6634-6930)

[2] A Escola Municipal Noronha Santos localizada na Palmeira, região do Bairro Fonseca, na Zona Norte da cidade de Niterói, tem um longo histórico de ações educativas exitosas no que diz respeito às histórias e culturas negras e indígenas. Em um passado recente, no ano de 2014, a escola recebeu uma moção honrosa da Câmara dos Vereadores por conta do desenvolvimento do Projeto Raízes. De modo geral, o objetivo do projeto foi contar um pouco da história da escola e do bairro por meio da narrativa de moradores antigos da comunidade e pessoas que foram estudantes da escola. Ao longo do desenvolvimento do projeto foi possível descobrir histórias que ajudam a compreender um pouco a história das populações negras naquela região. Além disso, em 2018, foi elaborado um cartaz informativo à comunidade sobre o posicionamento da escola a respeito da Lei nº 11.645/2008. O cartaz colado no muro da escola foi postado em uma rede social e tem motivado milhares de comentários e artigos acadêmicos. Mais recentemente, em 2024, a escola foi matéria jornalística em virtude da participação no projeto Escola Cria. O projeto proporcionou uma vivência às crianças por meio de atividades envolvendo Yoga Kemética, Capoeira Angola e Percussão Corporal.

[3]  A Portaria Conjunta SME/FME Nº 04/2023 institui na Rede Municipal de Educação, as Diretrizes e os Referenciais Curriculares, para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, incluindo a modalidade Educação de Jovens e Adultos. Conforme seu Art. 2º, os Referenciais Curriculares da Rede Municipal de Educação de Niterói deverão subsidiar as Unidades de Educação no processo de construção de seus currículos locais. Nesse sentido, alguns de seus princípios estão fundamentados no reconhecimento e inserção dos valores civilizatórios africanos, afrodiaspóricos, afro-brasileiros nas produções curriculares e nos Projetos Políticos Pedagógicos.

[4] O intelectual quilombola Nêgo Bispo, liderança do Quilombo Saco do Curtume no Piauí, antes de nos deixar precocemente, no final de 2023, transcreveu para a linguagem escrita toda a sua sabedoria adquirida por meio da oralidade. O seu último livro “A terra dá, a terra quer” publicado em 2023 pela Ubu Editora, para além de muitas contribuições, nos convoca a enfrentar os desafios atuais do Brasil e do mundo por meio da coletividade. “No dia em que os quilombos perderam o medo das favelas, que as favelas confiarem nos quilombos e se juntarem às aldeias, todos em confluência, o asfalto vai derreter! ” (BISPO DOS SANTOS, 2023, p.45). Além disso, em convocação à continuidade da vida de maneira circular, e encorajando as gerações mais novas a semear suas sementes, Nêgo Bispo afirma que existimos a partir do começo, meio e começo, ou seja, em circularidade.

[5] A tese de doutoramento ‘“Não falo do lugar dos derrotados”: o Encontro de Saberes e suas potencialidades emancipatórias’, cuja as ponderações estão presentes ao longo deste texto, entre muitas e outras tensões, pretende compreender as potências e as possibilidades existentes nos atravessamentos, aproximações e vizinhanças entre diferentes compreensões de ser e estar no mundo. Para isso, a pesquisa que deu origem a tese lançou o olhar sob o projeto “Encontro de Saberes nas Universidades Brasileiras”, que pode ser configurado como um movimento novo relacionado à vinda e à presença, na universidade, de mestres e mestras das mais variadas tradições de conhecimento não europeias e não ocidentais existentes no território brasileiro. Além disso, nas palavras do antropólogo José Jorge de Carvalho (2006), o projeto “Encontro de Saberes nas Universidades Brasileiras” pode ser considerado como um desdobramento das políticas de ações afirmativas, ao defender a inclusão e o acolhimento de saberes negros e indígenas nas universidades. E nesse movimento, o intelectual Antonio Bispo dos Santos atuou como professor.

[6] No momento de sua apresentação e nas disposições preliminares, o Estatuto da Igualdade Racial é compreendido como um documento legal que expressa legítimas demandas das populações negras que devem ser reconhecidas e abordadas em diferentes níveis de governo com o propósito de garantir às populações negras a efetivação da igualdade de oportunidades por meio também da defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos, enfrentamento do racismo e das desigualdades raciais.

[7] Nilma Lino Gomes (2017, p.23), nos ajuda a compreender os múltiplos significados atrelados a ideia de movimento negro. Conforme dito por ela: “Entende-se como movimento negro as mais diversas formas de organização e articulação das negras e negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse fenômeno na sociedade.”.

[8] Em Azoilda Loretto da Trindade: o baobá dos valores civilizatórios afro-brasileiros, Gisele Rose da Silva (2021) apresenta as muitas dimensões dos princípios e normas mapeados por Azoilda Trindade que podem ajudar a compreender sobre as identidades e subjetividades das populações negras que se organizaram em terras brasileiras a partir do fenômeno forçado da diáspora. Ainda que não sejam elementos exclusivos das culturas negras do continente africano ou da diáspora, a energia vital ou axé, a circularidade, a corporeidade, a memória, a ancestralidade, a territorialidade, a religiosidade, a cooperação/ comunitarismo, a oralidade, a corporeidade, a musicalidade e a ludicidade (...) forjam uma virada epistêmica na promoção de uma educação que seja efetivamente antirracista, tendo como elo a afetividade que perpassa por todo diagrama (...). ” (p.58).