QUILOMBO, QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO: SENTIDOS EM-CONSTRUÇÃO

QUILOMBO, QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO: SENTIDOS EM-CONSTRUÇÃO[1]

QUILOMBO, QUILOMBOLA AND EDUCATION: MEANINGS IN-CONSTRUCTION

Maria Santos[2]

Resumo: Neste artigo, busco a partir de uma proposta autobiográfica, em perspectiva pós-estrutural, e que anuncia a escrita e a teoria como processo da subjetividade, movimentar sentidos em-construção para o quilombo, o quilombola e a educação. Nele, argumento que esses marcadores, quilombo, quilombola, são contingentes e abertos, e os seus significados são atravessados por uma produção de sentidos políticos e de reconhecimento. Para a educação, faço a aposta na confiança. Confiança como linguagem possível à educação quilombola e como modo de interdependência nossa com o mundo, sabendo que isto irá requerer olhar a vida e o nosso engajamento político.

Palavras-chave: Educação. Quilombola. Quilombo. Sentidos.

Abstract: In this article, I seek, from an autobiographical proposal, in a post-structural perspective, and which announces writing and theory as a process of subjectivity, to move meanings in-construction for the quilombo, the quilombola and education. In it I argue that these markers, quilombo, quilombola, are contingent and open, and their meanings are crossed by a production of political meanings and recognition. For education, I'm betting on trust. Trust as a possible language for quilombola education and as a way of our interdependence with the world, knowing that this will require looking at life and our political engagement.

Keywords: Education. Quilombola. Quilombo. Meaning.

Introdução

Tenho assumido nas minhas pesquisas (SANTOS, 2022, 2023; SANTOS; MACEDO, 2022; 2023) que todo texto é, em si, autobiográfico. Ele é parte do narrável das nossas experiências e, por isso, é impossível produzir qualquer discussão sem que o auto da biografia da vida esteja implicado. É impossível separar experiência, estudo, pesquisa e o sujeito professor daquilo que implica a vida, pois tudo do mundo e todos do mundo estão em relação – tudo está baseado na interdependência, e o modo como é produzida faz diferença para uma prática de vida e de educação. Por isso, desde agora, assumo um caráter narrativo autobiográfico para o texto, como modo de anunciar lugares, pessoas, pensamentos e a teoria como processo da subjetividade. Animada pela perspectiva pós-estrutural, em que qualquer significado remete a outro e, portanto, é produzido por uma formação discursiva histórica (LOPES; MACEDO, 2011), trata-se de um modo contínuo de apresentar a natureza das minhas experiências na relação com a temática quilombo, quilombola e educação. Ele não é, esclareço, um modo de descrição densa em que apresento minhas histórias em quilombos e com quilombolas e o exercício de responder os fazeres de professores que atuam com sujeito desses territórios e de nomeação quilombola. Ao contrário: lida com o dinâmico, o filosófico e o político e assume modos de significação cuja narrativa sobre os marcadores em destaque – quilombo, quilombola e educação – se apresentam de maneira fluida e não fixa (SANTOS, 2022).

Na verdade, meu intuito é explorar construções políticas e sociais para o quilombo, quilombola e educação, na tentativa de, quem sabe?, outros sentidos sejam produzidos por quem faz uso deste texto. Movimento o que também já venho fazendo em meus estudos (SANTOS, 2022, 2023, TOMÉ; SANTOS, 2021; SANTOS; MACEDO, 2022, 2023), e sobre outras categorias, não como tentativa de desqualificar aquilo que já existe no campo teórico. Mas, sim, como produção de sentidos políticos de reconhecimento – outros reconhecimentos. Assim sendo, a ideia é que ele seja mais um modo de produzir significados para esses marcadores do que uma tentativa de dizer dos fazeres de professores e professoras no exercício da docência. Por isso, já articulo, qualquer sentido atribuído ao quilombo, ao quilombola e à educação não se esgota. Contingentes e abertos, resistem a definições fechadas, posto que os sentidos emergem como possibilidades, essas que projetam as políticas públicas, o currículo, as teorias, e animam nossa forma de pensar a produção didática. Como reconheço essa abertura, o que espero é explicitar certa compreensão dessas nomeações (categorias) nas páginas que seguem; logo, devo falar primeiro do quilombo e quilombola e, depois, da educação e, com isso, articular o lugar do quilombo e do quilombola na educação a partir do efeito do reconhecimento. Sigo esse roteiro imaginando que algo aconteça aqui: a produção de outros sentidos sobre o proposto nesse encontro [nosso] com o texto.

Aliás, é preciso que se diga, os sentidos que emergirão procedem de aspectos históricos, políticos, sociais, econômicos, filosóficos etc. e reiteram certa herança de saberes sobre esses marcadores. Apesar disso, minha tentativa será fugir de qualquer reprodução discursiva do quilombo e do quilombola como lugar de resistência-escravidão, ainda que assuma, do ponto didático, ser um conteúdo importante da história africana e afro-brasileira. Interessa-me mais a categoria política, como aqueles que se reconhecem ser do quilombo, que postulam o reconhecimento quilombola, do que reiterar aspectos que já conhecemos das histórias de negros, negras, africanos e afro-brasileiros deste país. No que tange à educação, aposto na confiança como modo de interdependência nossa com o mundo, o quilombo e o quilombola, sabendo que a confiança de que falo exige uma política ética do reconhecimento.

Do quilombo e quilombola

Qualquer representação do quilombo e do quilombola não requereria o aparecimento se não postulássemos certo reconhecimento de existência. É a existência e o reconhecimento que dão lugar ao quilombo e ao quilombola. Marcados por inúmeros sentidos políticos, sociais, econômicos e históricos, em perspectiva de formação de grupo, não são espaço de antigos quilombos. Não é mais lugar (sítios geográficos) onde negros e negras se agrupam para a liberdade e para lutar contra o sistema escravista da época. Embora ainda alimentada por esse discurso, como demanda de luta coletiva pela existência, hoje essa ideia detona outras perspectivas: da exclusão social, da busca por uma vida suportável, da luta contra a precarização econômica etc. (SANTOS, 2022). No que respaldam Schimit et al. (2002), Arruti (2008) Rodrigues (2014) e Santos (2015), ainda que se reconheça o conceito clássico de quilombos e quilombolas – lugar de pessoas com parentesco de antigos e ex-escravos; o termo é fluido e contingente. Isto porque, por mais que a compreensão do termo inclua as fugas e ocupação de terras para busca da liberdade, há também os casos de heranças e doações de terras, compras de terras por moradores de grupos quilombolas e apropriação de territórios, entre outros; sabendo que é a terra (e o território), enquanto categoria social, antropológica e do direito, que localiza o lugar dos quilombolas, já que a terra não é qualquer terra. E sim, a que faz emergir o território do quilombo e, nele, o corpo quilombola (SANTOS, 2022, SANTOS, MACEDO, 2023).

Das análises que faço, os sentidos para o quilombo e o quilombola respondem ao aparecimento como demanda corporal para um conjunto de vida mais vivível (SANTOS, 2022; BUTLER, 2018), em que todos possam exercitar a liberdade e o direito de reconhecimento. Logo, o reconhecimento vai além do direito à demarcação da terra e à apropriação territorial, pois inclui: a) o processo de identificação não fixo, mas diferente para cada quilombo e quilombola; b) a luta por uma vida menos precária; c) a busca por melhores condições de trabalho; d) participação social, política e educacional; e) reivindicações por liberdade e mais justiça social; f) assistência médica etc. Isso consolida um modo performático de representação dos quilombos e quilombolas que é enunciado pelos discursos, sabendo que o performático de que falo não se refere a algo teatral, mas sim se caracteriza pelos efeitos do viver junto dos quilombolas e em contato com as diferenças – o que faz alguma coisa do quilombo existir ou faz “revelar suas identidades” (SANTOS, 2022, p. 79).

Na verdade, tenho apostado (SANTOS, 2022) em que o evento do reconhecimento do quilombo e do quilombola anuncia diferentes vozes onde o lugar do quilombo não é apenas para o aparecimento dos quilombolas, mas sim para significar a identidade, o território, a terra, a religião, a subsistência, o parentesco, a educação, as brincadeiras, o direito de ocupar todos os lugares onde queiram estar, entre outros. É por isso que a referência a um passado quilombola a ser relembrado não pode ser a ideia única do quilombo e quilombola – o que não significa que não tenha importância, e, sim, que a força para outras significações, quando articulado a outros marcadores – raça, povo, grupo, convivialidade, religião, etnia etc. – produzem outras legitimidades de aparecimento. Produzem a luta por novas demandas políticas e outros reconhecimentos e valorização dos corpos quilombolas que não condensam “só o direito à terra, mas todos os demais direitos de assistência básica” (SANTOS, 2022, p. 83). Se inclinássemos apenas para a ideia de lugar de resistência, escravidão, luta por sobrevivência, resistência física e resistência política, estaríamos admitindo certo fechamento para outros reconhecimentos, ainda que assumíssemos que todos esses marcadores ajudam a produzir outras demandas sociais e políticas.

Quero chamar a atenção para o fato de que quilombo e quilombola são atravessados por muitos sentidos. Mesmo que haja uma normativa para definição de quilombo e quilombola nos atos da Constituição Federal de 1988 – Art. 64, “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988, grifo meu), há outros modos de reconhecimento que se inter-relacionam: “identidade étnica, território e parentesco” etc. (SANTOS, 2022, p. 83), o que significa que qualquer definição não está dada ao encerramento. Como insistido (SANTOS; MACEDO, 2023), quando sentidos são evocados ao quilombo e quilombola, “dentro de uma esfera pública ou privada, novas situações são acionadas, e nisso, um conjunto de efeitos” (p. 50). Desse modo, os sentidos para quilombo e quilombola estão na força política e emergem como modo estratégico para algo que defendo: a prática do aparecimento – “como aparecer ou como pode aparecer” (SANTOS, 2022, p. 85, grifo da autora) –, que de alguma forma marca o pertencimento, o reconhecimento e a identificação (identidade quilombola), ou o direito ao aparecimento como possibilidade de viabilizar como o quilombo é apresentado – considerando tanto os aspectos ou normas do reconhecimento como os “processos antológicos dos sujeitos” do quilombo (SANTOS, 2022, p. 84).

É aqui que rememoro a fala de uma das moradoras do quilombo do Arrojado, interior do Rio Grande do Norte, ao anunciar que “a noção morena é quilombola”. Esse reconhecimento da moradora torna-se um acontecimento que produz outros efeitos de sentido para os quilombolas e, em consequência, para o quilombo: “a nação morena”. A representação da “nação morena” é incalculável ao quilombo e inscreve assim um modo de manifestação e de aparecimento que não está condicionado à cor negra, mas, ainda assim, garante força e poder aos moradores do Arrojado. Anuncia uma marca para o lugar do grupo do Arrojado que não é essência, e sim pura diferença, o que lembra um fato importante: cada quilombo é cada quilombo e cada quilombola é cada quilombola, e podem aparecer como nomeações distintas: os negros do quilombo, os morenos do quilombo, o grupo quilombola, comunidade quilombola, comunidade negra rural, comunidade negra urbana, sítio quilombola etc.[3] Essas nomeações e diferenças ocorrem enquanto categoria de quilombo urbano e rural, ainda que sabendo que o que esses grupos buscam, no modo de se anunciar, é uma vida em que todos possam existir no quilombo e em todos os espaços que queiram, sem perda de direitos e sem que estejam em condições precárias. Mesmo assim, proponho que compreendamos o que chamamos de quilombo rural e urbano, haja vista que essas categorias trazem relações com a terra e o território de maneira diferente – não no sentido da demarcação do espaço, e sim de que o jogo de interesse ou luta política atravessa demandas de cada um e de cada outro.

Desse modo, na literatura quilombola o quilombo rural é descrito como comunidades negras rurais (ARRUTI, 2008) e se forma em terras ocupadas por grupos negros que, nos limites de sua territorialidade, mantêm práticas e modos de vida próximos na medida em que também são distintos. Mas essa é apenas uma maneira de pensar o quilombola rural. Embora tenha primeiro exposto essa noção, é possível encontrar outro modo com a descrição de grupos de pessoas negras com relação de descendência de africanos escravizados e com laços de parentescos que, em seu território, mantêm práticas características (OLIVEIRA et al., 2015), ou ainda que abrange a relação com a terra e o trabalho do campo. Por sua vez, o quilombo urbano, o espaço do quilombo, é significado como constituído de um território urbano dinâmico que mobiliza critérios étnicos em diálogo com algo que é comum do quilombo e quilombola. Em Oliveira et al. (2015), descrevem que os quilombos urbanos se configuram como grupos de resistência “a um sistema de exclusão, comunidades de ascendência marcadamente negra [...] com ethos e costumes diferenciados dos grupos que lhes circundam” (p. 269). Outro estudo (CARRIL, 2006) coloca a categoria como uma nova estética e manifestação política e cultural, recomendando repensar o conceito de fuga e resistência escravista. Mas isso não sugere separar os quilombos urbanos e rurais como reconhecimento e luta política; apenas chama a atenção como esses espaços objetivam o aparecimento de corpos e vida e como os grupos estão lutando por menos precariedade uns com os outros e com o mundo.

Seja qual a forma de nomeá-los, são possibilidades de sentidos, de modo que qualquer forma com que façamos compreender trará agenciamentos simbólicos e políticos – como reconhecimento, pertencimento e identidade (SANTOS, 2022), talvez naquilo que postulou Almeida (2011) sobre a categoria quilombo, “não é discutir o que foi, mas sim discutir o que é e como essa autonomia foi sendo construída com o tempo” (p. 170). Ou, se quisermos fugir da ideia de que o quilombo é... postular o que ele emerge (SANTOS, 2022). O que ele produz como sentido de ser sendo quilombo, pois é isso que o torna pertencimento como o quilombola e com mundo. Como já afirmei, não significa jogar fora os aspectos da história do quilombo, mas abrir para outros modos de sentidos, haja vista que, no bojo da política pública e de educação, ajudam na produção de demanda de reconhecimento – afinal, na política e no mundo, todos buscam e merecem igual reconhecimento (BUTLER, 2018; SANTOS, 2022). Todos buscam e invocam uma política de aparecimento em que as condições de persistência e de poder em relação às condições precárias sejam mais bem evidenciadas, já que não podemos nos livrar delas, pois compõem também as normas do mundo.

Por fim, se a proposta de significar o quilombo e quilombola até aqui tenha ressoado como sentidos contingentes e não fixos, alerto que, para aquilo que ainda vá se produzir (eu, você, nós), o quilombo é sempre como sentido de captura e da relação que o quilombola produz com os sujeitos, a terra, o território e o mundo – e sempre em-construção política. Não devemos nos esquecer disso!, pois, se tomarmos os seus sentidos (somente) como fuga, resistência e escravidão, estamos nos colocando à sombra da fatalidade como o outro – o outro do quilombo, o outro quilombola.

Educação... o que é possível para o quilombo e o quilombola

A produção de sentidos sobre quilombo e quilombola elabora um repertório político e de políticas à educação. É por isso que a defesa que venho fazendo sobre ampliar os sentidos para além do que aprendemos nas nossas aulas de História e nos livros didáticos sobre quilombo como símbolo de resistência e escravidão não deve ser a única tradução possível, até mesmo porque, “do ponto de vista didático, da reprodução discursiva da resistência-escravidão, acode um movimento conteudista sempre em disputa para sentidos da história africana e afro-brasileira no país” (SANTOS, 2022, p. 60, grifo da autora).

Ainda que haja uma literatura própria para a educação escolar quilombola e, de alguma forma, vá falar sobre isso, quero propor pensar que essa educação antes da escola é construída no próprio quilombo – muito mais no sentido de educar como experiência no mundo do que mesmo o processo de escolarização. Quando falo em educar, minha preocupação é a de que se compreenda mais o reconhecimento para a alteridade do que a lógica de conhecimento a ser ensinado, admitindo também que o repertório a ser ensinado é importante, visto que delineia as muitas formas de aparecimento dos corpos quilombolas, seja na escola, seja no lugar de moradia, seja na cidade etc.; mas, antes de aprofundar essa ideia, quero falar sobre educação quilombola e educação escolar quilombola e, nisso, a complexidade que esses termos como definição carregam e como nós podemos estar articulando produções a partir dos sentidos já postos.

Alguns pesquisadores (VITOR; SANTANA, 2020; OLIVEIRA, 2019) têm apresentado a educação quilombola como aquela que acontece no quilombo e com as relações sociais e políticas dos moradores. Por sua vez, a educação escolar quilombola atravessa os portões da escola numa série de conteúdos nos quais o grupo racial que transita no espaço da escola possa estar envolvido; e “fundamenta-se a partir da coletividade, da memória, da tradição, dos costumes, das crenças, devoções, da territorialidade e de conhecimentos simbólicos" (OLIVEIRA, 2019, p. 35). Outros (SANTANA et al., 2016), porém, têm afirmado que a educação escolar quilombola, estando ou não inserida no espaço dos quilombos, deve propor dialogar com os conhecimentos de grupos quilombolas, de modo que os processos educativos se relacionem com as propostas oficiais à educação quilombola. Outros ainda (CARRIL, 2017; NAZARIO; ROCHA, 2022) trazem definições da educação quilombola a partir do que delibera o Art. 1º, parágrafo IV, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola na Educação Básica, de que a educação escolar “deve ser ofertada por estabelecimentos de ensino localizados em comunidades reconhecidas pelos órgãos públicos responsáveis como quilombolas, rurais e urbanas, bem como por estabelecimentos de ensino próximos a essas comunidades e que recebem parte significativa dos estudantes oriundos dos territórios quilombolas”. Uma normativa que, junto a outras produções de significados, constitui mais um modo de pensar a educação para o grupo racial e  que, por sua vez, está associado à produção de significação do quilombo. No entanto, a pergunta que aqui talvez se deva fazer é: como esses sentidos afetam a educação?

Em Arruti (2017), com base em desdobramentos políticos da política para quilombola – Parecer CNE/CEB nº 16/2012, que aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, e Resolução CNE/CEB nº 8, de 20 de novembro de 2012, que define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica –, a educação escolar quilombola como normativa passou a ser analisada como uma Educação Diferenciada, orientada para o “diálogo com a realidade sociocultural e política das comunidades e dos movimentos quilombolas” (p. 117) e constituída como uma das principais formas de combate ao racismo. Surgida no cotidiano da vida, sua proposta, explicam Cruz et al. (2022), atravessa uma “ruptura com um modelo de educação onde escola e comunidade encontram-se separadas por ‘muros organizacionais’ que inibem a efetiva participação destas na condução daquela” (p. 112, grifo dos autores).

Articulada a partir de movimentos sociais, negros e quilombolas, a Educação Diferenciada foi pensada tanto como escola diferente quanto como educação escolar diferenciada. Mas há algo para que o pesquisador Arruti (2017) chama a atenção: para a definição de escolas quilombolas, de que ela se refere a números de instituições que estão situadas em terras de quilombos. Associada a dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), sem que implique existência de diferenciação quanto a formação de professores, materiais didáticos, gestão, metodologias de ensino etc. ou “mesmo no tipo de atenção dada pelo corpo docente a temas fundamentais nesse contexto, como as relações raciais e a própria questão dos quilombos” (p. 119), a classificação de escola em área quilombola, do seu ponto de vista, pode não situar a Educação Diferenciada – que “se ancora na participação da comunidade no processo como um todo” (SILVA, 2012, p. 148) e “em conseguir socializar os conhecimentos gerais já normatizados e convencionados nos sistemas de ensino e aqueles conhecimentos que a comunidade entende serem importantes, mas ainda não são vistos ou aprendidos por meio da escola” (SILVA, 2012, p. 166).

Embora considere o desdobramento político de Educação Diferenciada importante, pois não se pode negar o quanto de reconhecimento isso traz aos quilombos e quilombolas, aposto que ela não precisa ser pensada como diferente – no sentido do diferir – e sim, confiar em deixar que a diferença como diferença apareça. Significa, pois, do ponto de vista do currículo, como já venho defendendo (SANTOS, 2022; SANTOS, 2020; SANTOS, 2015), que tenhamos de pensar que o lugar do quilombo componha o próprio currículo da escola. Na verdade, “o quilombo é também a própria escola, o próprio currículo, a própria política curricular” (SANTOS, 2022, p. 65). Sua educação é algo em curso e, por isso, ao invés da afirmativa da Educação Diferenciada, articular que o próprio quilombo integra a educação. Para mim, é impossível responder a uma educação escolar quilombola sem que o quilombo seja visto – sem olhar para as vidas, o reconhecimento e as vulnerabilidades quilombolas. Requer, admito, o esforço político e ético de fazer uma defesa pela vida e “uma política que aborde as suas próprias e vidas e necessidades corporais” (SANTOS, 2022, p. 67). Isso não significa, portanto, jogar fora as leis e diretrizes direcionadas ou com menção a esse grupo racial – Resolução nº 8, de 20 de novembro de 2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica; Lei nº 10.639/2003, que determina no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira; e Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana –, mas articular também que as vidas dos sujeitos quilombolas, os modos como lutam por elas, os rituais de brincadeiras, as práticas de sustentação, compõem o currículo em relação ao reconhecimento ético da alteridade.

Ainda que os estudos revelem (GUSMÃO, 2020; MIRANDA, 2018) que a educação quilombola desponte de dois espaços para os grupos quilombolas, “um no cotidiano do grupo, nas brincadeiras das crianças, na vivência com os adultos e suas práticas no interior do quilombo e outro na escola fora do quilombo” (GUSMÃO, 2020, p. 4), há algo no currículo, na sua produção, que é oferecer outras respostas à educação quilombola e à política quilombola que não sejam, advirto, no sentido da prescrição. Do contrário, que sejam tomadas pela experiência – não como ensaio de um acontecimento, e sim no sentido da experimentação –, já que a educação quilombola e escolar “não pode ser o futuro como expectativa reguladora” (MACEDO, 2018, p. 166), o que significa, pois, olhar a experiência como algo que nunca está dada a encerramentos – nunca é a mesma possibilidade, nunca a mesma experimentação.

Então, se posso propor algo, está em olhar o quilombo como instituinte de sentidos para a educação do quilombo e a escolar, sabendo ser necessário que o quilombo seja ele mesmo ato de criação ao educar, que seja ele mesmo lugar da educação. Certamente isso exige de nós responsabilidade como ação responsiva, de responder àquilo que nos chega do quilombo e do quilombola à educação e à escola. E, claro, confiar que as respostas irão produzir um encontro com o reconhecimento com a vida de todos. É um desafio, bem sei, mas, afinal, não seria isso que nos faz insistir no ato de educar? Não seria isso também que nos faz confiar na educação?

Mote final: por uma educação quilombola da confiança

Mesmo que os grupos quilombolas se organizem para construir prédios escolares e contratar docentes com recursos próprios (ARRUTI, 2017), a luta pela educação formal não precisa da “autonegação da sua origem, da sua cor, do seu modo de falar, de seu modo de existência rural, de sua religiosidade, de seus modos de organizar, casar e trabalhar ou de suas demandas territoriais” (ARRUTI, 2017, p. 136). Minha ideia ao trazer essas acepções é apostar em uma educação quilombola para a confiança, o que induz a pensar o ato de educar como um processo de dependência de uns com os outros, bem como agir responsavelmente ao outro, ao que é diferente daquilo que julgamos a nós. Para isso, não é necessário que conheçamos primeiro o quilombo e o quilombola, e sim que nos coloquemos responsivamente a eles, porque essa é nossa responsabilidade. Em um sentido muito fundamental, a linguagem da confiança não consiste em uma base. Ela se torna presença diante do outro, em resposta à outridade do outro. Isso significa que a educação se torna uma criação, um processo de experiência no mundo, de reconhecimento da diferença. E isso é o que faz com que assumamos, mesmo não querendo, a responsabilidade, pois ela não é um bem próprio, mas algo que está posto no mundo – é algo que não conhecemos de antemão, mas nos obriga a nos colocarmos responsavelmente no mundo e com os outros. Então, se temos responsabilidade pela educação, é preciso não amputar o quilombo e o quilombola. É preciso acolher a ideia da interdependência nossa com o lugar do quilombola e com o quilombola, aceitando, em diálogo com Butler (2021), que “as condições infraestruturais de vida estão em perigo” (p. 151) – as nossas, as deles e as do mundo.

Embora haja menção a pesquisadores e professores de Educação Diferenciada para quilombolas, sou inclinada a acreditar que mesmo quem aposta nessa proposta precisa reconhecer a inter-relação com mundo e a diferença. Nós, professores e pesquisadores, devemos estar cientes de que isso não reduz nossa subjetividade, tampouco a eleva. Apenas nos coloca diante do encontro de uma política ética do reconhecimento. É precisamente por essa razão que localizo a confiança como linguagem possível à educação quilombola, pois ela requer que olhemos para a vida; requer um engajamento coletivo “que, queiramos ou não, obriga-nos a acionar uma luta por estar junto e pela própria educação” (SANTOS, 2022, p. 187).

O ponto aqui não é dizer o que a educação quilombola precisa (e desejo que isso esteja claro), mas produzir sentidos de educação quilombola e fazeres porque estamos todos nesta vida e neste mundo como resultados da diferença. Se por algum momento ocorrer de ficar (eu e você [nós]) frente à interpelação de como faremos ações didáticas e pedagógicas com a escola quilombola e com os quilombolas, confesso já aqui que é preciso aprender com aqueles dos quilombos cujo espaço é currículo, é aparecimento dos corpos, é reivindicação para uma vida mais suportável. E se isso não recair na confiança, penso que é preciso começar a buscar esse caminho ... confiar nessa relação nossa com o quilombo, o quilombola e o mundo. Confiar!

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Data do envio: 19/02/2024

Data do aceite: 24/04/2024

Revista Aleph, Niterói, Abril. 2024, p. 1 - 15                ISSN 1807-6211                   


[1] Pesquisa realizada com o apoio financeiro do CNPq.

[2] Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  E-mail: santtosmaria.m@gmail.com,  ORCID:  https://orcid.org/0000-0001-9297-4539

[3] Algumas dessas distinções podem ser verificadas em trabalhos de Santos (2015), Rodrigues (2014), Assunção (2009), entre outros. Nesses estudos, a construção da identificação de quilombo e quilombola é feita a partir de desdobramentos da política para quilombola, ecoando nomeações para o grupo racial.