Relações Étnico Raciais e Currículo: Movimentos Instituintes

Rejany dos Santos Dominick[1]

Cristiane Gonçalves de Souza[2]

Isaque Fernandes de Carvalho[3]

No processo de organização desse número enveredamos por diversas expressões culturais: da arte produzida pelas crianças nas escolas à arte de Abdias Nascimento; dos símbolos adinkras aos padrões das vestimentas de diferentes sociedades africanas. Não foi fácil escolher dentre as belezas encontradas imagens que pudessem expressar toda a criatividade que vem sendo gerada por mentes e corpos que transformam o mundo.

Este primeiro número da Revista ALEPH no ano de 2024 nasce de uma incrível parceria entre a UFF e a Secretaria Municipal de Educação/Subsecretaria de Projetos Educacionais Transversais. Partimos das escritas estimuladas pelo II Curso de Relações Étnico-Raciais e Currículo, realizado em 2021, promovido pela Coordenação de Educação na Diferença, e seguimos realizando novas pontes para aproximarmos ainda mais as reflexões do dia a dia da educação básica com as que acontecem nas universidades.

O tema da edição 41 partiu do recorte antirracista e seu importante papel no debate a respeito de uma educação para a inclusão da diversidade na educação básica.  Trabalhamos em conjunto, acompanhando, refletindo e agindo para produzir um número com o perfil de uma parceria que apresenta artigos inspiradores para novos fazeres docentes instituintes.

O simbolo  (Wo ne sa da mua) da escrita Adinkra nos ajudou a refletir sobre o processo que foi por nós desenvolvido: Se as suas mãos estiverem no prato ninguém irá terminar com tudo e deixá-lo sem nada para comer.  A escrita Adinkra[4] reflete um sistema de valores humanos e o simbolo escolhido nos remete ao fato de que todos podem comer e ninguém deve ficar de fora. Todos somos elaboradores na escola e na universidade e todos devemos valorizar as produções que são realizadas nestes espaços educacionais. Importante destacar que o ano de 2023 marcou a celebração dos 20 anos de criação da Lei 10639/2003 e os 15 anos da Lei 11645/2008. Celebração pela conquista de anos de luta dos movimentos negros e indígenas para produção de uma educação e currículos antirracistas, pelo Bem Viver e pela vida que floresce na potência de sujeitos com direito à diferença e à vida. Todos com as mãos no prato!

Ressaltamos que ao longo de décadas, desde o século passado, os movimentos de negros e negras, especialmente com o protagonismo cotidiano de professoras dos anos iniciais, trabalharam incansavelmente, em uma longa construção do que se tornou a Lei 10.639/2003. Importante mencionar o compromisso da Frente Negra Brasileira, de Abdias Nascimento e do Movimento Negro Unificado na produção dos sentidos que fortaleceram a instituição da referida lei.

Não podemos esquecer das importantes contribuições da Profa. Iolanda Oliveira, à frente do PENESBI/UFF, que vem investindo esforços para a ampliação da formação de professores e pesquisadores envolvidos com a temática antirracista. Destacamos também a figura singular de Beatriz Nascimento (UFRJ), cujo legado para a UFF foi sua participação na criação do Grupo de Pesquisa André Rebouças, as importantes reflexões relacionadas ao Ser Negro/Negra e seus atravessamentos, bem como seu pioneirismo nos estudos sobre Quilombos.

Por ocasião do parecer CNE 3/2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, com a relatoria da Profa Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, indicada pelo Movimento Negro, em 2002, para compor o Conselho Nacional de Educação, temos um importante registro da política educacional que convoca, desafia e apoia as mobilizações para produção de currículos e práticas pedagógicas radicalmente democráticas, compreendendo que a educação é um direito social e por isso deve ser garantida a todos, especialmente na escola pública.

Destacamos que esta edição apresenta importantes contribuições de professores e professoras da rede municipal pública de educação de Niterói, que vêm produzindo, ao longo destes anos, currículos marcados pela valente esperança e compromisso político de construção e afirmação de uma educação e de uma escola onde muitos mundos possam estar por inteiros.

Convidamos você a ler esta edição que tem como artigos do Dossiê Temático as seguintes produções: AÇÕES DOCENTES “INSTITUINTES”: IMPLEMENTANDO AS LEIS 10.639-03 E 11.645-08, FAZERES CURRICULARES E MÚLTIPLOS SABERES e HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA ESCOLA: DUAS DÉCADAS DA LEI 10.639/2003. No primeiro, temos uma escrita fundamentada nas proposições teóricas de Michel Foucault e as autoras analisam os discursos presentes em projetos "instituintes" da rede municipal de Educação de Niterói. Concluem que os mesmos trazem contribuições para a interculturalidade e autonomia dos professores, promovendo um espaço de abertura para uma "outridade". O segundo artigo faz um exame da Lei n° 10.639/2003, por meio de quadro teórico-metodológico que utiliza a análise retórica, baseada nos estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca. A discussão trás uma contribuição para valorizar a diversidade étnico-racial e cultural brasileira partindo de categorias como resistências e intolerâncias, atravessamentos presentes na educação escolar.

Na seção Experiências Instituintes, encontramos artigos que abordam diferentes aspectos das experiências presentes na rede municipal de ensino de Niterói. No artigo PROJETO INSTITUINTE: PROCESSOS FORMATIVOS POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA a educação é identificada como possibilidade de vivências que oportunizam a transformação na vida das pessoas. Autores compartilham algumas atividades provenientes de projeto instituinte com ênfase na educação antirracista e que fortalecem a formação integral dos indivíduos de modo igualitário. Na produção intitulada A CAPOEIRA COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL é abordada a importância desta prática em uma turma de primeira infância de uma UMEI do município de Niterói/RJ. Tomando como referenciais teóricos Carine (2023), Gomes (2011) e documentos  do município, autores relatam suas experiências sobre as relações étnico-raciais no cotidiano dos grupos envolvidos no processo.

Ainda nesta sessão o texto ANCESTRALIDADE AFRICANA DE NITERÓI SOB DIFERENTES OLHARES: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA trás um relato sobre projeto cuja proposta culminou em uma exposição de fotografias e, por meio de uma experiência sensorial, recontou-se a história da cidade a partir de foco nas relações étnico-raciais. Os conceitos de gêneros do discurso de Bakhtin (2011) e Maingueneau (2002) desenharam a concepção de interculturalidade crítica. A perspectiva decolonial vem a partir Walsh (2005; 2009). Para abordar a diáspora africana no processo de formação de Niterói, as contribuições de Ferreira (2021) deram a base para a escrita. O interesse pela atividade demonstrou que há muita relevância nesta abordagem nas escolas e a proposta pode contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária. Somos, ainda brindados com o artigo “ELA É UMA ANCESTRAL VIVA!” O ENCONTRO COM LIA DE ITAMARACÁ: MOVIMENTOS ANTIRRACISTAS E A EFETIVIDADE DA LEI 10.639 NA EDUCAÇÃO INFANTIL, que é um relato sobre o encontro, mediado pela canção “Minha ciranda”, entre crianças de cinco anos de idade e a cirandeira pernambucana Lia de Itamaracá.  O encontro e o diálogo são entrelaçados pelo fio da vivência problematizadora de valores civilizatórios afro-brasileiros. Abordam as múltiplas infâncias que habitam a Educação Infantil, trazendo reflexões da professora pesquisadora e anunciando movimentos da educação antirracista como compromisso ético, estético e político na luta por um mundo mais justo.

        Nas Questões Contemporâneas começamos pela abordagem autobiográfica de QUILOMBO, QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO: SENTIDOS EM-CONSTRUÇÃO. Nesta produção, a escrita e a teoria são identificadas como processo da subjetividade, movimentação de sentidos em-construção para o quilombo, o quilombola e a educação. Os marcadores quilombo e quilombola são apresentados como contingentes e abertos, atravessados por uma produção de sentidos políticos e de reconhecimento. Autor traz na perspectiva da interdependência com o mundo a possibilidade de que é possível à educação quilombola fornecer um olhar sobre a vida e sobre o engajamento político diferenciado. Nas elaborações de SISTEMA DE BIBLIOTECAS ESCOLARES MUNICIPAIS DE NITERÓI: PERCURSOS PARA UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA são identificadas algumas marcações das relações étnico-raciais feitas por mediações de leitura com potencial para uma pedagogia da diversidade. Neste contexto, apresentam aspectos de analise do trabalho realizado sobre o tema e as contribuições das bibliotecas escolares municipais de Niterói. Serviram de base os relatórios de acompanhamentos das unidades. O referencial teórico dialogou com Nilma Lino Gomes e Eliane Debus. As atividades de mediação de leitura e contações de histórias figuram como principais no fazer dos bibliotecários da rede e têm potencial para gerar narrativas plurais à formação discente.

Dando continuidade à seção, temos SOBRE VIVÊNCIAS NEGRAS, RESSIGNIFICAÇÕES E PRODUÇÕES DE SENTIDOS: OS VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS E SUAS POTENCIALIDADES EMANCIPATÓRIAS NOS ESPAÇOS E TEMPOS DA ESCOLA, trazendo discussões sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros. Buscou-se a reflexão sobre algumas experiências de uma escola majoritariamente negra, dialogando com alguns documentos que orientam o trabalho na Educação Infantil e no Ensino Fundamental para produzir reflexões, indagações e apontamentos a respeito dos valores civilizatórios afro-brasileiros e as suas potencialidades emancipatórias. O quarto artigo é EXPERIÊNCIAS ANCESTRAIS: DESCOLONIZANDO CURRÍCULOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL que, buscando o caminho trilhado pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, questiona mudanças ocasionadas após essa conquista. Além disso, identifica resistências e desconhecimentos na construção de trabalho pedagógico que respeita e abrange a diversidade étnico-racial do nosso país. Finaliza, trazendo reflexões sobre a cidade de Niterói e sobre os  apagamento históricos, propostas de resgate, entraves, desdobramentos e reverberações.

Finalizamos essa edição com as questões propostas pelo texto O NECESSÁRIO ENFRENTAMENTO ANTIRRACISTA E O PAPEL DO EDUCADOR DA ESCOLA PÚBLICA. Os dados analisados partem de um caráter subjetivo e advém da observação e da vivência cotidiana ao longo de mais de 10 anos como profissional da educação no chão da escola pública. As reflexões interagem com o enfrentamento às práticas antirracistas no espaço escolar que são iluminadas pelos Referenciais Curriculares da Rede Pública Municipal de Educação de Niterói (2022), o Estatuto dos Funcionários Públicos Municipais de Niterói (1985) e pelas interações com Paulo Freire, Ivanir dos Santos, Bárbara Carine e Kabengele Munanga. Abordamos neste texto indispensável formação continuada para todo educador da escola pública.

        Assim, concluímos esse número que foi especial desde sua proposta de construção até a publicação do volume completo. Temos muito a agradecer pela parceria com a Secretaria Municipal de Niterói e com o Instituto de Pesquisa de Estudos AfroBrasileiros (https://ipeafro.org.br/), que nos cedeu gratuítamente a linda imagem da obra de Abdias do Nascimento, que se denomina “A frontal de um templo”.  Muito a comemorar e sigamos buscando as sabedorias ancestrais.

[5]

Nós vemos em breve (Português),

Sien jou binnekort (Africâner)

Arak qariban (Árabe)

Is arag dhawaan (Somali)

Nitakuona hivi karibuni (Suaíli)


[1]   Doutora em História, Filosofia e Educação (UNICAMP). Professora, Extensionista e Pesquisadora da Faculdade de Educação da UFF e do Curso de Mestrado em Diversidade e Inclusão do Instituto de Biologia-UFF. 1ª Secretária da Associação Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica, Coordenadora de área do PIBID-UFF Pedagogia - Niterói 2024 e Editora da Revista ALEPH. E-mail: rejany_dominick@id.uff.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0456-4201

[2]  Doutora em Educação pelo PropEd UERJ. Professora da EM Levi Carneiro -SME Niterói e integrante do Grupo de Pesquisa: Políticas de Currículo e Docência - PropEd UERJ. Coordenadora da Coordenação de Educação na Diferença/SSPET/SME Niterói, no período de 2021 à 2023. E-mail: profacristianegoncalves@gmail.com

[3]  Licenciando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de Extensão da Revista ALEPH durante os anos de 2023 e 2024, tendo participado da diagramação dos números 40, 41 e 42. E-mail: isaquecarvalho29@gmail.com 

[4] Conjunto de símbolos pertencente ao povo Ashanti, atualmente localizados principalmente nos países Gana, Burkina Faso e Togo, na África Ocidental, mas também estão presentes em outros lugares do globo, devido à diáspora africana. Para eternizar a sabedoria ancestral divina frente a força do tempo, os Ashantes criaram ideogramas, os Adinkras, visando transmitir os saberes aos seus descendentes e manter um elo cultural e filosófico entre passado, presente e futuro (fonte: https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/tecnologia-ancestral-africana-simbolos-adinkra/ Consulta feita em Junho de 2024).

[5] “Sankofa” é um ideograma africano representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás ou também pela forma de duas voltas justapostas, espelhadas, lembrando um coração. A etimologia da palavra, em ganês, inclui os termos san (voltar, retornar), ko (ir) e fa (olhar, buscar e pegar). Representa a volta para adquirir conhecimento do passado, a sabedoria e a busca da herança cultural dos antepassados para construir um futuro melhor (fonte: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/acoes-e-programas/Sankofa.pdf/ Consulta feita em Julho de 2024).