Nem tudo é para todos! Memória autobiográfica de um estudante
de museologia da Universidade Federal do Pará
NEM TUDO É PARA TODOS! MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA DE UM ESTUDANTE DE MUSEOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
NOT EVERYTHING IS FOR EVERYONE! AUTOBIOGRAPHICAL MEMORY OF A MUSEOLOGY STUDENT AT THE UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
Everton Cordeiro Serêjo [1]
Diogo Jorge de Melo[2]
Silvilene de Barros Ribeiro Morais[3]
Ana Cristina Silva Souza[4]
Resumo
Este trabalho se constitui em uma análise de processo de memória autobiográfica a partir da trajetória acadêmica de Everton Cordeiro Serêjo (1991-), estudante do curso de bacharelado em Museologia da Universidade Federal do Pará caracterizado como pessoa com deficiência. Aspecto que se encontra em consonância com a categoria 'instituinte' da revista, referente a movimentos de resistência de sujeitos que pensam e fazem educação e desbravam possibilidades transformativas. Ele adentrou na universidade com aspectos de deficiência física, adquirida em um acidente de trabalho no qual perdeu a mobilidade do braço. Ao longo do curso de graduação, em meio à pandemia de Covid-19, um Acidente Vascular Cerebral e a Covid-19 o caracterizaram com outras questões, já que ficou com diversas sequelas, como questões cognitivas de memória. Esse exercício autobiográfico foi utilizado como um processo avaliativo e reflexivo sobre questões de inclusão na universidade, aqui estabelecido a partir da expressão “Nem tudo é para todos!”.
Palavras-chaves: Inclusão. Museologia. Memória Autobiográfica. Ensino Superior.
Abstract
This paper constitutes an analysis of the autobiographical memory process based on the academic trajectory of Everton Cordeiro Serêjo (1991), a student on the Bachelor's degree in Museology at the Federal University of Pará, characterized as a person with a disability. An aspect that is in line with the magazine's 'instituting' category, referring to resistance movements of individuals who think and carry out education and explore transformative possibilities. He entered at university with aspects of physical disability, acquired in a work accident in which he lost mobility in his arm. Throughout the undergraduate course, in the midst of the Covid-19 pandemic, a stroke and Covid-19 characterized him with other issues, as he had several sequelae, such as cognitive memory issues. Therefore, this autobiographical exercise is used as an evaluative and reflective process on issues of inclusion at the university, established here based on the expression "Not everything is for everyone!".
Keys words: Inclusion. Museology. Autobiographical Memory. University education.
Apresentação
Inicio este trabalho na primeira pessoa, por se tratar de uma pesquisa de memória autobiográfica, da qual sou protagonista, apesar de ter tido auxílio dos demais coautores para a formatação desta escrita. Com isso, cabe a minha apresentação e das minhas perspectivas acerca deste produto, aqui apresentado como um artigo acadêmico. Eu me chamo Everton Cordeiro Serêjo (1991), hoje com 32 anos, e me encontro atualmente como estudante do curso de Museologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Gostaria de destacar que minha trajetória de vida teve uma grande mudança após um aneurisma cerebral ocorrido em 2020, do qual obtive diversas sequelas, como confusão mental, déficit de memória e redução de compreensão, além de episódios de ansiedade e depressão. Este fato gerou diversas questões a serem superadas, principalmente com relação à minha vida acadêmica, pois mesmo com todas as questões apresentadas tenho seguido no meu curso, com a perspectiva de me formar em 2024.
Me deparei, então, com mais uma das barreiras a serem superadas — no caso, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), no qual eu precisaria desenvolver um texto acadêmico mais complexo que os trabalhos cobrados nas disciplinas, e minhas dificuldades com a escrita se tornariam uma questão chave deste processo. Por exemplo, essa dificuldade se tornou nítida durante as minhas atividades no Ensino Remoto Emergencial[5], quando, ainda em processo pós-operatório, tive que estudar textos em meu celular e tive grande dificuldade de compreensão e labirintite durante a leitura; a questão do tempo de elaboração dos trabalhos também não se adequava à minha condição. Nesse momento, fui buscar alternativas, explicando minha situação aos professores, e percebi que tinha uma melhor compreensão das disciplinas a partir de materiais audiovisuais, obtendo maior facilidade em cursar disciplinas que se utilizavam desse recurso.
Foi nesse aspecto que a equipe que me auxiliou nesse trabalho, meus coautores, se formou, conforme escolhi minha orientação a partir de um professor que me deu maior segurança ao cursar as suas disciplinas, por sempre trabalhar com materiais audiovisuais junto com seus textos e me dar a possibilidade de realizar meus trabalhos conforme as minhas escolhas. A partir deste ocorrido, os demais integrantes foram convidados a participar deste artigo, trazendo suporte e contribuições ao meu processo de escrita, e trazendo seus conhecimentos sobre Museologia, inclusão, acessibilidade e aportes para o desenvolvimento da minha escrita.
A ideia deste trabalho surgiu após uma aula durante uma disciplina em que a temática de acessibilidade foi abordada, evidenciando a realidade dos espaços museais na contemporaneidade. Foi quando surgiu à tona a questão do Desenho Universal que produzisse uma inclusão ampla nesses espaços, vindo a exclamação: nem tudo é para todos! Por exemplo, um cadeirante, ao visitar o museu, provavelmente não conseguirá usufruir plenamente do espaço, pois muitos dos objetos não serão expostos para sua perspectiva, por mais que existam sistemas de acessibilidade na instituição. Nesse aspecto, as barreiras se apresentam sempre como mecanismos para superação com os quais constantemente nos deparamos. Por isso, a exclamativa apresentada se tornou o agente condutor da minha escrita autobiográfica, construída a partir das narrativas de um estudante em busca de mudanças sociais, e que aqui supera mais uma barreira, isto é, a construção do seu TCC, mas que visualiza tantas outras em seu futuro. Dentre elas, a da minha inserção no mercado de trabalho, a da não existência de cotas mínimas específicas para a área, a de poder ser capaz de cuidar de minha família e ter autonomia, dentre tantas outras questões que possam surgir.
Introdução
Conforme a apresentação, definimos este como um artigo que se constitui a partir da proposição temática de TCC do Bacharelado de Museologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), sendo ele produzido a partir de reflexões geradas pelas memórias autobiográficas do primeiro autor, Everton Cordeiro Serêjo (1991-) — um estudante concluinte que se compreende como pessoa com deficiência (PcD) e cujo percurso como estudante apresenta singularidades que podem gerar reflexões críticas sobre práticas institucionais e contribuir para melhorias de práticas inclusivas, principalmente para com os docentes e técnicos da instituição; indicando, inclusive, possíveis adequações de aprimoramento de questões sociais, ensino e inclusão nos processos acadêmicos.
Devemos ressaltar o desenvolvimento metodológico no qual aporta-se a proposição deste artigo, exaltando a caracterização de cada autor em sua função. O primeiro autor é o protagonista, cujas memórias e narrativas serão apresentadas. Inclusive, quando a escrita for utilizada na primeira pessoa, conforme na apresentação, estamos destacando a referenciação de sua fala. Os demais autores são orientadores deste processo, auxiliando na escrita e nas articulações de ideias apontadas. O segundo autor configura-se como orientador acadêmico que soma expertises com a terceira autora, especializada em inclusão, e com a quarta, que exerceu um trabalho de suporte e tutoria, assumindo um acompanhamento mais próximo ao longo do processo. Aqui destacamos que, apesar do somatório de forças e de uma escrita cruzada, ora realizada por oito mãos, evidenciamos o trabalho como uma produção intelectual essencialmente do primeiro autor.
A estrutura do trabalho se inicia a partir da identificação do primeiro autor com a discussão apresentada em vídeos na internet que se utilizam da prerrogativa da frase “Nem tudo é pra todos!”, configurada em vídeos que destacam questões de superação de indivíduos, normalmente com alguma barreira a ser transposta nesse processo. Com isso, adentramos nessa discussão para inserirmos as acepções das trajetórias do primeiro autor enquanto estudante do curso de bacharelado em Museologia, cuja trajetória foi demarcada pela pandemia de Covid-19, por um Acidente Vascular Cerebral que lhe deixou diversas sequelas e lhe colocou barreiras a serem vencidas, além dos próprios desafios de qualquer outro estudante em um curso de graduação.
Devemos evidenciar que a metodologia deste trabalho se constitui a partir dos vídeos da internet apresentados por Everton e comentados por ele, assim como da gravação de sua narrativa, os quais conduziram o processo da escrita, sendo este auxiliado pelos demais autores. Foram realizadas gravações no dia 11 de julho de 2023, tendo mais de uma hora e meia de duração. Foram realizados diversos encontros presenciais em que os vídeos foram apresentados para que a escrita do artigo fosse produzida. Com isso, se desenvolveu o conteúdo da pesquisa, refletindo inicialmente a questão apresentada de que “Nem tudo é pra todos!”, a qual alicerça a base teórica estrutural do trabalho. Posteriormente, adentramos nas questões mnêmicas, referentes às narrativas autobiográficas de Everton Cordeiro Serêjo, focando na sua trajetória ao longo do curso de Museologia, diante de suas dificuldades, superações e adequações ao longo desse processo. Gerou-se, assim, um exercício reflexivo que nos possibilita identificar e potencializar práticas inclusivas no ensino superior, especificamente no curso de Museologia, com suas especificidades, como práticas de conservação, de documentação, expositivas e teóricas. Logo, a apresentação desta trajetória nos leva a refletir o quanto um corpo docente e técnico consegue ou não se adequar às especificidades dispostas, possibilitando uma formação inclusiva diante de distintas necessidades.
Memória e inclusão na Universidade Federal do Pará e no Curso de Museologia
Memória e identidade são construções sociais que influenciam diretamente o nosso viver e nosso comportamento em sociedade, onde os sujeitos utilizam os aparatos da memória como recordações, lembranças que criam suas memórias autobiográficas e, consequentemente, sentimentos de pertença e aporte de saberes, assim como crenças, sensações, sentimentos e percepções de nós mesmos. Portanto, se há um tempo para transmitir e um tempo para receber, há igualmente um tempo de calar e um tempo de falar, pois a memória se organiza em laços sociais e muitas vezes recusa a ideia de submissão. Por isso, quando o indivíduo constrói sua história em suas narrativas, ele se empenha em renovar-se para dar sentido à sua trajetória de vida (Candau, 2011).
Especificamente, sabemos que a memória autobiográfica se configura por meio de uma relação íntima e indissociável da identidade, configurando-se como histórias de vida recontadas que eram entendidas como tendo pouco valor científico para a compreensão do comportamento humano. No entanto, esse aspecto se alterou na década de 1980, quando surgiram novas perspectivas de estudos sobre a temática, no sentido do desenvolvimento das novas compreensões para aspectos vinculados à experiência de vida. O principal avanço foi a compreensão de que a memória autobiográfica se configura como um local de reconstrução e reflexão, no qual é possível retrabalhar e ressignificar aspectos pessoais de um indivíduo, passando a representar um desafio para a psicologia cognitiva e para a compreensão do significado pessoal, confrontando aspectos da cognição humana (Goodson, 2015).
Esta memória, que atua de forma improvisada, construtiva e criativa, se configura como um ponto crucial da ação e agenciamento humano, já que a memória autobiográfica se localiza em um espectro de possibilidades intrínsecas ao papel da construção e manutenção das identidades, assim como da atividade de aprendizagem. Por este fato, estudos de socialização têm indicado fortes relações de aprendizados comportamentais, e por isso John Dewey afirma que a educação é uma constante reorganização ou reestruturação da experiência, possibilitada no processo mnêmico na constituição de uma autobiografia (Armstrong, 2013). O ato de desenvolver um senso coerente de nossa história de vida nos possibilita escapar da escravidão do passado, se abrindo para o futuro, aportando intervenções reflexivas do passado, não se constituindo meramente como uma crônica de eventos decorridos (Giddens, 1991).
Nesse aspecto, assumimos que o exercício de um processo de memória autobiográfica, realizada por um estudante do curso de Museologia da UFPA, pode se configurar como um processo significante e reconstrutivo para ele e outras pessoas, indo além das suas questões pessoais, por evidenciar suas experiências em seu processo educacional, compondo uma narrativa de experiências que podem auxiliar novas conduções de estudantes que, como ele, necessitaram de apoio institucional e dos docentes; assim como identificar possíveis ações indevidas decorridas desse processo, evitando traumas e favorecendo assertivas. Compreendemos esse trabalho como uma composição dupla de saberes, por perpassar, a esta construção autobiográfica, questões reflexivas pessoais e suas indicações para melhoria das práticas inclusivas dos docentes, que devem sempre aprender a se adaptar e lidar com novos e distintos desafios.
As políticas de inclusão de pessoas com deficiência são relativamente recentes em relação à sua inserção no contexto educacional, principalmente nas universidades. No entanto, encontramos diversas legislações que trouxeram aportes para essa questão desde meados do século XX, se estruturando de maneira mais intensa no seu final e no início do século XXI, momento no qual essas questões foram incorporadas nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)[6]. Esta legislação, em seu artigo 58, compreende a educação especial como uma modalidade de ensino transversal em todos os seus níveis. Destacamos que, no ensino superior, até então não havia diretrizes operativas para essa demanda (Nogueira et al., 2019; Ribeiro; Castro, 2020; Gonçalves; Teixeira, 2022).
Gonçalves e Teixeira (2022) destacaram que políticas mais específicas para melhor atender as pessoas com deficiência no ensino superior se concretizaram a partir da Portaria Normativa nº 14 (BRASIL, 2007); da Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (BRASIL, 2008); do Decreto Federal nº 7.234 (BRASIL, 2010), referente ao Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES); do Decreto Federal nº 7.611 (BRASIL, 2011a), reportando-se ao Atendimento Educacional Especializado; e do Decreto Federal nº 7.612 (BRASIL, 2011b), referente ao Programa Viver sem Limites. São políticas que consideram definidoras para que as universidades criassem seus núcleos de acessibilidade.
No entanto, para além das legislações apresentadas, destacamos aqui o conceito de inclusão, utilizado a partir das concepções de Booth & Ainscow (2012), que consideram que “a inclusão é um processo incessante que envolve o descobrimento e a remoção progressiva dos limites à participação e à aprendizagem” (p. 40). Igualmente, Santos (2009) conceitua inclusão como um processo compreendido pelo seu caráter mais incompleto, incessante e dinâmico, já que se relaciona com o empreendimento “de todos os esforços no sentido da garantia da participação máxima de qualquer cidadão, em qualquer arena da sociedade em que viva, ao qual ele tem direito e sobre o qual ele tem deveres” (p. 12). Ou seja, envolve conscientização pela eliminação de barreiras que impedem a plena participação dos indivíduos em condição de igualdade num mesmo espaço social (Morais, 2019). E como Aguiar e Queiroz (2020) destacam, a inclusão deve se constituir a partir de uma perspectiva construtiva formada de múltiplos olhares, que emergem em defesa de ações educativas mais participativas.
Com relação à Universidade Federal do Pará, foi em 2009 que a instituição criou, por iniciativa própria, vagas específicas para pessoas com deficiência na sua Resolução 3883/2009 (UFPA, 2009). Esta política institucional visava a ampliação de acesso à Universidade, antecedendo a política de cotas nacionais, que implementou essa política em 2016, com a Lei Federal n° 13.409 (BRASIL, 2016), ano em que a UFPA criou o seu Núcleo de Inclusão Social (NIS), que deu origem à Coordenadoria de Acessibilidade (CoAcess) da Superintendência de Assistência Estudantil (SAEST) e Gabinete da Reitoria (Gonçalves; Teixeira, 2022).
No curso de Museologia da UFPA, a presença de pessoas com deficiência ainda não se intensificou, tendo sido identificados a partir de 2015 seis estudantes, sendo dois estudantes com deficiência visual/monocular, dois estudantes com deficiência física, um estudante com deficiência intelectual e um estudante com deficiência múltipla. Desta diversidade, a maioria dos estudantes com deficiências não tiveram grandes impactos nas práticas dos docentes e da equipe pedagógica do curso, por suas necessidades não carecerem de grandes reformulações, no máximo o uso de aparelhos que os auxiliassem. Ressaltamos que o maior desafio nesse processo ocorreu com a estudante caracterizada com deficiência intelectual, pois dependia de uma atenção diferenciada. Com ela, os docentes tiveram que reestruturar suas práticas e aprender a lidar com esse desafio, como considerar distintos modos de trabalhar os conteúdos e as avaliações.
Nesse contexto, a CoAcess foi fundamental, realizando diversas reuniões e apontando essas novas possibilidades de ensino, bem como apresentando distintas formas de lidar com a discente. O apoio da equipe pedagógica da Faculdade de Artes Visuais, à qual o curso está vinculado, também se tornou essencial, assim como monitores de tutoria designados a acompanharem a estudante. Devemos destacar que na Faculdade de Artes Visuais existem outras pessoas com deficiência, mas aqui nos focamos na experiência do curso de Museologia.
Mathis (2007) nos lembra da dificuldade de inclusão em regiões de modernidade periférica, como Belém, indicando que a inclusão se caracteriza mais pela omissão/incompetência, já que as tentativas facilitadoras no processo comunicativo são praticamente inexistentes, algo que se manifesta “pela falta de meios físicos que impedem o acesso a determinados serviços e bens públicos, à informação, à recuperação ou à reabilitação”, processo que compreende uma tentativa velada e ofuscante do poder público com relação às pessoas com deficiência em sua vida social. Reconhece-se, assim, uma ausência de conscientização da população sobre as suas necessidades, assim como a omissão política, por não inserirem as pessoas com deficiência em suas agendas políticas. Segundo o autor, essas questões são vistas não “como um problema de responsabilidade social, mas como uma característica específica do indivíduo”, não levando em consideração “as condições materiais objetivas da sociedade”, já que qualquer indivíduo pode vir a ser uma pessoa com deficiência (Mathis, 2007, p. 237).
Todos esses aspectos aqui apresentados alicerçam o exercício de memória autobiográfica aqui apresentado em seu contexto teórico de superação, relacionado à expressão “Nem tudo é para todos!”. Depois dessa contextualização metodológica e teórica, damos continuidade à narrativa de Everton Cordeiro Serêjo.
“Nem tudo é para todos!” e a trajetória de um Estudante do Curso de Museologia
Retomo aqui a minha narrativa autobiográfica, contextualizando minha trajetória de vida, principalmente as questões que envolvem a minha vida universitária. Nasci no dia seis de agosto de 1991 e fui morador do Conjunto Tapajós até os dezessete anos, localizado em um bairro mais periférico da cidade de Belém, denominado de Tapanã. Após esse período, passei a viver no bairro do Marco, um bairro mais central, mais especificamente na rua Pirajá. Sou filho da belenense Maria de Nazaré Lisboa Cordeiro (1960-) com o pescador maranhense da cidade de Cajari, Walter de Jesus Pereira Serêjo (1952-2015). Meu pai veio para Belém na década de 1970, com o intuito de melhorar de vida. Tenho sete irmãos paternos, mas só conheço um, Ronny Walter Nogueira Serêjo (1977-), nascido em Santarém (PA). Da união dos meus pais, tenho um irmão mais novo, Wilson Cordeiro Serêjo (1987-). Meus pais só estudaram até a quarta série do ensino fundamental; contudo, fomos educados para termos respeito ao próximo e sermos do bem. Logo, ter um filho universitário significava muito para o meu contexto familiar. Minha mãe sempre foi dona de casa e meu pai, em Belém, tornou-se funcionário da antiga Centrais Elétricas do Pará (CELPA).
Destaco que nossa vida familiar ficou bem difícil e instável quando meu pai constituiu outra família e saiu de casa. Nesse momento passamos por muitas dificuldades financeiras, principalmente em relação ao estudo e alimentação. As coisas só foram melhorar quando meu pai resolveu voltar para casa. Nessa circunstância, meus pais se reconciliaram e seu retorno foi bem aceito por toda a família. Destaco que tinha uma relação boa com ele, pois, nesse período de distanciamento, ainda era muito criança; mas depois ele se tornou mais presente, não nos deixando faltar nada, e me tornei muito apegado a ele e aos seus conselhos.
Fui um jovem tranquilo na escola, sempre com um bom livro para ler. No entanto, durante o ensino médio essa realidade se transformou, na Escola Estadual Lauro Sodré, quando passei a faltar aulas com a desculpa de querer aproveitar melhor minha vida, me interessando mais pelas meninas do que pelos estudos. Logo após os meus dezessete anos, tomei a decisão de parar de estudar. Fui procurar trabalho, pois entendia que já tinha uma vida de adulto e precisava me manter, ter capital para sair e convidar as paqueras para um cinema. Devido a nossa realidade, meus pais nunca nos deram mesadas e, com relação à minha decisão, diziam que, se fosse para parar de estudar, eu deveria escolher o lado bom de não mexer com ninguém, pois haveria a colheita do que eu poderia plantar.
Então, fiz a minha escolha: dignamente decidi ver como é o mundo lá fora. Comecei lavando carros, capinei quintais e calçadas de moradores do bairro do Marco, até começar a trabalhar em um barzinho tipo taberna do mesmo bairro. Pedi para trabalhar limpando mesas e lavando os banheiros, logo depois passei a atender os clientes, até virar caixa do estabelecimento, tendo outras responsabilidades e ganhando plena confiança do dono.
Este barzinho se chamava Taberna do Saul e seu proprietário, o Sr. Saul Carneiro, o moldava a um estilo de antiquário, com diversos objetos antigos que colecionava (Figura 1), e seu estabelecimento era muito frequentado por estudantes da Universidade Federal do Pará e da Universidade Federal Rural da Amazônia, além de funcionários públicos, profissionais liberais e pessoas que gostavam de objetos antigos e boa música. O contato com essa diversidade de pessoas me fez despertar a vontade de voltar a estudar e entender questões ligadas ao passado, como a história dos objetos e, consequentemente, como eles poderiam ser expostos e conservados, como os que faziam parte das paredes do bar. Pouco tempo depois, o dono do bar me ofereceu a administração geral do estabelecimento. Agradeci, mas recusei e saí do trabalho.
Figura 1 – Fotografia na Taberna do Saul, com amigos da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). No fundo, podem-se ver alguns objetos de sua coleção ao lado dos produtos que eram vendidos.
Fonte: Acervo pessoal de Everton Cordeiro Serêjo, 2008.
Com o dinheiro da indenização dos meus serviços, investi no curso de vigilante, tirei a minha carteira de habilitação, e voltei a estudar pela modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Foi quando decidi me focar no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Não consegui êxito por duas vezes. Neste período consegui emprego em um Shopping Center, onde trabalhei até sofrer um acidente de trabalho e ficar com o braço esquerdo com uma mobilidade reduzida, apresentando irregularidades cortais, com desgaste ósseo da cabeça do rádio e adquirindo o que os especialistas denominam de CID10M21[7]. Assim, me tornei uma pessoa com deficiência física.
Continuei estudando, agora almejando o curso Museologia. Não conhecia muito sobre o curso, mas já tinha armazenado o gostar e cuidar das coisas antigas. Achava que isto fazia parte do curso de História e, se fosse aprovado em Museologia, planejava fazer prova de mobilidade interna para trocar de curso, o que reconheço ter sido uma grande falta de conhecimento da minha parte! Então, no início de 2019, entrei no curso de Bacharelado em Museologia, com a cota de pessoa com deficiência física (Figura 2). Pouco tempo depois, no segundo semestre do mesmo ano, eu já estava completamente integrado ao curso e não pensava mais em trocar para História. Contudo, fui me adaptando à rotina da graduação; mesmo trabalhando, eu conseguia acompanhar a turma, pois já tinha a certeza de ter escolhido o curso certo.
Figura 2 – Everton comemorando com a família sua aprovação na UFPA, em sua casa no Conjunto Tapajós. Com ele, sua esposa Amanda e tia Socorro Serêjo.
Fonte: Acervo pessoal de Everton Cordeiro Serêjo, 2019.
Recordo que, no dia 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou emergência de saúde pública de importância internacional por decorrência do surto de coronavírus, o Covid-19. Recordo também do primeiro caso da doença no Brasil, em fevereiro de 2020 em São Paulo. Aqui em Belém do Pará, o primeiro caso se deu no dia 18 de março de 2020. As notícias ainda eram muito vagas sobre o que estava acontecendo, aqui e do outro lado do mundo. Enquanto isso! Vivia minha vida normalmente, com a rotina de trabalho, afazeres pessoais e da graduação. Durante este período, eu não acompanhava muito os noticiários da televisão e das mídias em geral.
No dia 14 de fevereiro de 2020, senti fortes dores de cabeça pelo horário da noite; era uma dor insuportável, pela qual fui forçado, às pressas, a procurar uma Unidade de Saúde. Lá, durante o atendimento, o médico me repassou imediatamente um exame de tomografia e ressonância, onde infelizmente constatou que eu estava com um aneurisma cerebral. Tudo caiu! Imediatamente, pensei na minha mãe, irmãos e na minha esposa que estava ao meu lado. Impactado com o diagnóstico recebido do médico naquele momento, eu não sabia como informar minha família de algo tão grave. Como minha situação era bem delicada, fui internado para me submeter com urgência a uma cirurgia no cérebro, a qual esperei por longos vinte e três dias internado no Hospital Clínica Hapvida.
Cabem considerações sobre a minha esposa, Amanda de Matos Cravo Serêjo (1992-). Nos conhecemos no primeiro ano do Ensino Médio, no Colégio Lauro Sodré no Bairro do Marco. No dia 15 de novembro de 2008, iniciamos nosso namoro. Noivamos no dia 22 junho de 2019 e nos programávamos para casar, fato que só aconteceu em 18 de fevereiro de 2021, depois da minha recuperação do aneurisma. Destaco que ela sempre foi uma pessoa romântica, presente e companheira, que nunca desistiu de mim, mesmo em momentos difíceis, tanto financeiros como de saúde.
Durante esse período de internação, tive a oportunidade de viver de perto todo o começo da transmissão de Covid-19 dentro do hospital, mas sem saber exatamente o grau do impacto desta doença no mundo, já que estava se tornando uma pandemia. Percebi que o fluxo de pessoas caiu drasticamente dentro do hospital; só chegavam as notícias de um vírus mortal que circulava em todos os lugares e aquele hospital era o último lugar onde alguém queria estar. Nesses dias me vi muito aflito, pois o meu destino era muito incerto, pelos riscos da cirurgia no cérebro e os boatos do vírus Sars-Cov 19 pelos corredores do hospital.
Os meus dias eram uma tortura, pois tomava inúmeras medicações fortes, que me deixavam sonolento; precisei ser muito forte nesse momento, pois tinha a sorte de contar com o apoio incondicional de amigos e familiares. Foram longos dias, que para mim pareciam anos. Era um enorme tormento não poder fazer movimentos bruscos, pois poderia perder a vida, por ter uma hemorragia prolongada. O meu psicológico estava profundamente abalado com a demora da cirurgia e, em decorrência da pandemia, as pessoas evitavam falar comigo, por medo de eu pegar a doença naquele momento de fragilidade. Eu não aguentava mais, dizia para as enfermeiras que eu não aguentava ficar só de peito pra cima e tomando as doses de medicações injetáveis na veia todos os dias. Me restava apenas chorar, querendo aceitar meu fim; só não queria dar trabalho para ninguém.
Chegou o dia da cirurgia, todo mundo muito apreensivo; eu estava com tanto medo que nem sei descrever em palavras o tamanho da angústia que se prendia em meu peito, mas, graças a Deus, a cirurgia foi um sucesso. Todos se animaram, eu me animei, mas aí começava a outra parte da história que ainda estava por vir, a piorar antes de melhorar. Eu deveria passar três dias de internação pós-cirúrgica para poder continuar o repouso em casa, mas, por complicações no meu estado de saúde, esses três dias viraram longos e dolorosos dez dias, pois estava com minha saúde muito fragilizada. Justamente foi quando começaram a chegar pacientes com Covid-19 no hospital (Figura 3). Não tive contato direto com eles, mas podia ver e sentir a preocupação no olhar dos médicos, que tenho certeza que estavam com tanto medo quanto eu. Inclusive, passei a admirá-los ainda mais, pois, diferente de mim, eles tinham a opção de sair dali, mas mesmo com medo permaneciam fazendo o seu trabalho.
Ao final dos dez dias de internação, pós-cirurgia, tive alta e fiquei muito feliz. Ainda estava debilitado; porém, o que eu mais queria era sair daquele lugar, mesmo tendo o desequilíbrio das pernas, a boca amarga, onde meus olhos já tinham perdido o costume da vida livre, onde só tinha o costume de olhar o sofrimento e um quarto. Em diversos momentos, pensava que não sairia mais, pois achava que ali poderia ser o fim de tudo. Os meus olhos lacrimejaram após trafegar o portão da saída do hospital e finalmente ter o privilégio de ver a luz do sol, de sentir o vento sutil percorrer na minha pele; pois, durante todo esse processo, a única luz ou vento que eu via era das lâmpadas no centro médico e do ar-condicionado.
No mundo externo, fora do espaço de onde eu havia saído, percebi que as pessoas nas ruas pareciam totalmente diferentes. Existiam protocolos que não sabia. Só após a explicação da minha família, quando começava a perceber a pandemia por outro ângulo, como as precauções com o isolamento social ou a necessidade do uso de máscaras e álcool em gel, que passei a ter noção do que realmente se passava, mas estranhava tudo aquilo. Um cenário sinistro, onde não se via pessoas, poucos eram os carros em vias que tinham uma enorme movimentação.
Figura 3 – Recuperação pós-cirurgia no Hospital Clínica Hapvida.
Foto: Acervo pessoal de Everton Cordeiro Serêjo, fotografia de Amanda de Matos Cravo, 03/03/2020.
Já em casa, me recuperando, via pela televisão o número de mortes no Brasil crescer de uma forma muito alta. Só se falava em mortes por Covid-19 em todo o lugar. Eu, totalmente debilitado, me isolei; passava 24 horas do dia na cama, evitando ao máximo qualquer contato com algo de fora do ambiente do meu quarto. Tive muito medo de morrer, e pensava qual o propósito de passar por tudo aquilo no hospital e agora morrer por um vírus; aquilo não encaixava na minha cabeça. Pensamentos negativos que foram se intensificando, entranhando-se no meu subconsciente. Tinha pesadelos frequentes, que me direcionavam para acabar com tudo aquilo, tirando a minha própria vida. Não percebia, mas estava em um quadro de depressão. Minha esposa, mesmo passando por inúmeras pressões em seu trabalho, ainda conseguia me dar forças durante esse tempo (Figura 4).
Passando alguns dias de minha alta, senti que perdi meu paladar. Confesso que chorei muito, pois só vinha na minha mente que eu estava com a doença. Sentia frio e tinha febre, passava todos os dias e noites embaixo das cobertas, nem televisão eu queria mais assistir, pois eu já estava no limite. Se algo mais acontecesse, não sei se iria resistir e hoje não estaria aqui compartilhando essa experiência. Por vontade divina ou não, meu quadro de febre melhorou no terceiro dia e me senti mais forte. Nesse momento, procurei maneiras de não me entregar a toda a situação. Comprei pela internet um hamster e um porquinho da índia e passava horas os vendo correrem na gaiola; eles se tornaram meus grandes amigos, já que o distanciamento social me impedia de ter contato com outras pessoas. Comecei também a desenhar, criar livros com folhas de papel A4 e consegui criar um ambiente mais agradável dentro do meu quarto. Esse foi o começo da evolução, foi onde eu consegui ver a luz no fim do túnel.
Figura 4 – Momento de recuperação em sua residência, com exames médicos e remédios.
Foto: Acervo pessoal de Everton Cordeiro Serêjo, 01 de dezembro de 2020.
Os exames que estavam marcados após a cirurgia foram cancelados, e eu mesmo tive que buscar conteúdos que permitissem me reabilitar a voltar a falar, lendo alguns livros e assistindo vídeos. Andava apenas pelo quarto para adquirir forças nas pernas; pois, como foi dito, passei 33 dias deitado na cama de um hospital. Na volta à vida “normal”, percebi que tudo era incerto, já que todos esses processos me deixaram algumas sequelas. Destaco as limitações com minhas lembranças — às vezes as palavras se embaralham; no entanto, consegui superar essas limitações temporárias, pois a partir daquele momento teria uma outra realidade e precisaria me fortalecer para aprender a me adaptar à minha nova condição. E, por ironia do destino, estou apresentando minhas narrativas nesse artigo, falando justamente de memória, a antítese do esquecimento.
Justamente no curso de Museologia, tudo mudou: tive muitas dificuldades pelas sequelas. Pensei em desistir do curso, mas minhas amigas sempre estavam me motivando, principalmente a Samara Carolina Ferreira da Silva, a qual muitas vezes ligava chorando e sempre tinha o tempo para conversar e me confortar, dando forças e falando que eu iria conseguir. Destaco que ainda não estou 100% — dependo de remédios controlados, onde tenho gastos em média de 400 reais por mês, sem nenhuma ajuda do Estado. No entanto, por tudo que eu passei, sinto que ganhei uma nova oportunidade de viver. Hoje, com 32 anos, me pergunto: será que algumas sequelas com que eu fiquei foram devido ao aneurisma ou ao Covid-19? Eu ainda não tenho muitas respostas, mas quero motivar outras pessoas a seguirem em suas carreiras, a continuarem buscando melhorias e fazer "tudo ser possível para todos”.
“Nem tudo é para todos!” E por que a Museologia é para mim?
Retomei o curso de Museologia, que ficou em modo de ensino remoto emergencial, estando as aulas sendo ministradas pela internet ou por outras metodologias ativas de ensino, com atividades propostas a serem realizadas e cujos resultados eram avaliados. Nesse momento, cursei diversas disciplinas e considero que tive um desempenho até que bom em relação às minhas novas dificuldades, com as quais estava aprendendo a lidar. Minhas maiores dificuldades foram em questões de concentração e em criar coragem para expor minha situação aos professores, para que tomassem ciência de minha condição. No entanto, meu maior medo era o de não conseguir atender às expectativas daquele momento, além da ansiedade em relação ao retorno do ensino presencial, que sabia ser uma outra realidade com a qual teria que me reinventar novamente, superando outros obstáculos.
Nesse período de ensino remoto, foi na disciplina Museologia, ministrada pelo professor Diogo J. de Melo, que realizei o primeiro exercício autobiográfico sobre o período da pandemia. Como avaliação final, ele propôs que a turma desenvolvesse um espaço museal virtual, com a temática das memórias da pandemia, que deu origem à web página do Museu das Memórias em Tempo de Pandemia (MEMOPAN)[8], no qual escrevi o texto “Minhas percepções durante a pandemia”. Devo destacar que este trabalho foi um dos pontos iniciais deste artigo (Serêjo, 2020) e que me fez fazer uma autoanálise e perceber que era capaz de prosseguir em minhas atividades.
Com a volta do ensino presencial, como esperado, surgiram outras questões que iam para além das disciplinas e de minhas questões físicas e de memória, pois começava a refletir sobre que tipo de profissional eu poderia ser, ou se conseguiria completar o curso. Nesse processo, fui vivendo cada dia de uma vez e fui me apegando a professores com metodologias diferenciadas, que me ajudavam muito, pois as minhas dificuldades com os textos escritos eram realmente uma questão. Lembro de ter auxílio de diversos profissionais da universidade, que me mostravam técnicas e caminhos possíveis, como a equipe pedagógica da Faculdade de Artes Visuais e da CoAcess. Com eles, aprendi a ler o texto por capítulos e a fazer esquemas imagéticos, desenhos, sobre as minhas compreensões. Percebia que metodologias híbridas[9] facilitavam a minha compreensão e com elas tinha maior capacidade de apreensão dos conteúdos. Percebia também um maior sucesso em determinadas disciplinas que se utilizavam de vídeos associados aos textos, o que me facilitava bastante.
A partir desse contexto, me enxerguei superando meus obstáculos e conseguindo avançar no curso, mas sempre com muitas questões — a principal, de como e se conseguiria sustentar minha família e se conseguiria adentrar no mercado profissional da área. Começava a me indagar: a Museologia realmente era para mim? Existiam cotas e aberturas para inserção profissional para pessoas com deficiência em espaços como os Museus? Nesse intermédio e dentre essas questões, que muitas vezes me tiravam o sono, tinha que trabalhar. Precisava contribuir financeiramente para o sustento da minha família, pois minha mãe e esposa tinham assumido muitas dívidas em decorrência desse meu processo de adoecimento. Fui entregador de lanches, mototaxista, lavador de calçada, vendi ovo na Feira do Cordeiro, fiz fiscalização ambiental para que não jogassem lixo em uma área ambiental, e hoje estou como controlador de acesso do Colégio Sesi Ananindeua. Eram trabalhos que me deixavam cansado e me obrigavam a perder horários de aula, o que tornou o meu percurso um pouco mais difícil.
Claro que, antes de chegar no mercado de trabalho especializado e ter que lidar factualmente com as minhas questões mentais, tive que passar por dois processos acadêmicos de destaque: a Exposição Curricular e o Trabalho de Conclusão de Curso. Com relação à Exposição Curricular, esta é uma disciplina em que uma turma do curso de Museologia precisa desenvolver uma expografia a ser apresentada, cuja temática é definida pela turma. No caso da minha turma, a exposição foi realizada em 2022, intitulada “Themônias a Arte Drag na Amazônia” e tinha como objetivos apresentar o movimento e coletivo social de arte drag Themônias (Figura 5). Confesso que, nesse processo, tive muito medo e nutri um forte sentimento de culpa, achando que estava sendo um estorvo para turma, contribuindo muito pouco para com o coletivo. Destaco, nesse momento, o incentivo e ajuda dos meus colegas, que foram cruciais para mim, principalmente da Samara Carolina Ferreira da Silva. Eles sempre me incluíam nas diversas atividades e eu fazia de tudo um pouco; no entanto, não podia pegar peso, fazer movimentos bruscos e ficar muito tempo abaixado.
Figura 5 – Abertura da exposição curricular Themônias a Arte Drag na Amazônia, 16 de maio de 2020. Everton Cordeiro Serêjo com as Drags homenageadas na exposição, integrantes da Haus of Lafon.
Fonte: Acervo pessoal de Everton Cordeiro Serêjo, autor da fotografia desconhecido, 2020.
Com relação ao Trabalho de Conclusão de Curso, estou aqui, tentando construir esta memória autobiográfica, pautada na expressão “Nem tudo é pra todos!”, compartilhando um pouco do meu processo de superação, e tendo auxílio dos meus coautores, pois sem eles não estaria conseguindo finalizar esse processo. Destaco que, de acordo com a Instrução Normativa No 01/2022 da PROEG/UFPA, prorrogada para 2023, os Trabalhos de Conclusão de Curso foram flexibilizados e poderiam ser apresentados em forma de “texto científico na forma de resumo expandido, artigo científico, resenha, memorial formativo”, dentre outras possibilidades, como “publicação ou aceite de publicação de artigo em periódico científico qualificado, adequado”. Nesse contexto, este artigo foi proposto como um composto de memorial formativo e artigo científico.
Sei que ainda tenho muitos percursos para atravessar e que as respostas das minhas questões, mesmo que ainda me provoquem bastante ansiedade, ainda estão para serem respondidas. O que posso aqui tentar explicar e responder é a questão do porquê a Museologia é para mim.
A Museologia é fundamental para mim, por alguns motivos essenciais em minha vida. Primeiramente, esse campo de estudo proporciona uma visão ampla da história, arte, preservação e construção das identidades culturais e históricas da sociedade. Isso se alinha com a minha paixão por enxergar o lado positivo da vida, principalmente após superar esses diversos desafios, me permitindo encontrar significado e propósito na preservação e compreensão da cultura e da história, assim como da minha existência.
Além disso, destaco que estou me dedicando a pensar e implementar iniciativas que promovam a inclusão de pessoas com deficiência na área de Museologia, o que se reflete na busca por vozes e representatividades da comunidade de pessoas com deficiência, combatendo as negligências enfrentadas por esse grupo. A Museologia, para mim, é um espaço onde consigo unir minhas paixões pela história e cultura com o interesse em promover a inclusão e representatividade de pessoas com deficiência, tornando-me um arauto dessa causa que é minha e de muitas outras pessoas. Não consigo prever meu futuro na Museologia, mas reconheço minha força e espero superar essas últimas barreiras, me tornando um excelente profissional e abrindo caminho para outras pessoas, que precisam mostrar para sociedade que somos sempre capazes de nos superar e assim almejar nossos lugares no mundo. Destaco, por fim, que a expressão “Nem tudo é para todos!” só nos serve como uma expressão desafiadora, nunca devendo ser encarada como limitadora.
Considerações finais
O exercício autobiográfico de Everton Cordeiro Serêjo nos aponta diversas circunstâncias relevantes a serem consideradas a partir de sua trajetória enquanto estudante universitário. Nós gostaríamos de destacar alguns aspectos, principalmente os relacionados à exclamação condutora deste trabalho — nem tudo é para todos! A primeira é sua retomada aos estudos e seu gosto adquirido pela Museologia, por meio de sua experiência como atendente de bar. Um bar diferenciado, que o direcionou para o universo acadêmico, estimulando e fazendo despertar seu maior interesse por história e aspectos culturais. Este possuía o que podemos compreender como um aspecto museal, pois o dono era um colecionador de objetos antigos e isso, conforme a narrativa, formou um laço simbólico que o fez escolher o curso de Museologia, apesar de seu interesse inicial ser o curso de História. Neste processo, se destaca também o convívio com diversos universitários, que o fez olhar para o universo acadêmico e perceber que queria e poderia fazer parte dele.
Em seu percurso universitário conturbado, destacaram-se em suas narrativas diversas questões de superação, porém também de conflito, não em relação à sua condição, mas como ele poderia, a partir dela, se estabelecer como um sujeito social em sua plenitude, assim como conseguir realizar seus sonhos e atuar em um contexto profissional especializado. Nesse sentido, perceber garantias e visualizar outras pessoas com deficiência seria um aspecto positivo em relação a estes anseios, assim como a visualização de políticas públicas que auxiliariam nesse processo, o qual ele compreende como tendo que ser aprimorado, carecendo de uma militância, sendo este um dos principais propósitos de compartilhar sua experiência e de ter realizado esse exercício autobiográfico. Questões como a de se perceber como um peso social também surgiram em suas narrativas, e sua experiência mostra que o círculo de pessoas, o contexto social, são fundamentais para transformar essa compreensão, pois as pessoas com deficiência são muitas vezes colocadas como incapazes; embora o seu relato venha mostrando o contrário. Para isso acontecer em sua plenitude, elas precisam de um amparo psicossocial e de empatia dos indivíduos que os cercam, para motivar a pessoa com deficiência a alcançar a plena conscientização de suas verdadeiras capacidades e não cair em um processo de vitimização.
A experiência de Everton evidencia que as questões da acessibilidade física do campus são importantes, mas que elas não bastam. Destacamos que é relevante garantir a acessibilidade atitudinal, programática, instrumental, comunicacional, como bem define Sassaki (2010), para que principalmente o direito das pessoas com deficiência seja garantido, mas compreendendo também que essas ações favorecem a sociedade como um todo. Destacamos assim a atuação do corpo docente universitário, pois se fez evidente que em muitas das vezes não possuem ou não conseguem ter pleno conhecimento da vida e da necessidade de seus discentes, enquanto determinadas atitudes e ações podem ser fundamentais para as pessoas com deficiência. Neste quesito, devemos destacar diversos aspectos, principalmente sobre o papel das universidades frente à diversidade representada na comunidade acadêmica. É um fator que demanda mudanças estruturais para que as barreiras que ainda permanecem e dificultam a plena participação destas pessoas sejam eliminadas e a aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes e profissionais sejam superados.
Alguns princípios e valores inclusivos favoreceram a trajetória de Everton na Universidade e propiciaram a conclusão do curso e a realização deste artigo. Como a flexibilidade na metodologia utilizada nas aulas pelos professores, as formas de avaliação, bem como a empatia dos colegas. Aspectos que representaram um suporte importante para a permanência do aluno na universidade e para o sentimento de pertencimento a uma comunidade de amigos. Esta última formadora de uma rede de apoio que deu sustentação ao aluno para que ele pudesse cumprir os requisitos necessários à conclusão do curso, principalmente graças à confiança na relação estabelecida com os professores, com base no diálogo aberto e horizontalizado. Por exemplo, na presença de uma monitoria que desempenhou uma função importante no recurso de apoio para o desenvolvimento de acessibilidade, possibilitando esta produção da escrita.
A flexibilização das normas para a conclusão do curso representa um avanço importante para a consolidação de um ambiente inclusivo de aprendizagem, mas é necessário que outras ações sejam institucionalizadas para que seja criada uma cultura inclusiva na comunidade acadêmica, com o comprometimento de professores, técnicos e alunos. Dentre elas, consideramos importantes: a identificação de barreiras que ainda permanecem na instituição, presentes nas normas, metodologias e práticas; a ampliação de conhecimento sobre a temática da inclusão, a partir da promoção de reuniões de estudo, debate e avaliação, envolvendo a comunidade acadêmica; a identificação e apoio a grupos vulneráveis; a criação de canais de comunicação acessíveis; a criação de grupos de trabalho representativos da diversidade que compõe a comunidade; e o estabelecimento de parcerias com instituições e profissionais especializados.
Referências
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Data do envio: 16/04/2024.
Data do aceite: 08/10/2024.
Revista Aleph, Niterói, Nov . 2024. nº 2024, p. 1 - 27 ISSN 1807-6211
[1] Bacharel e, Museologia pela Universidade Federal do Pará. E-mail evertonccss@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0009-0005-7387-9110.
[2] Doutor em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Museu de Astronomia e Ciência Afins (MAST) e em Ensino e História de Ciências da Terra na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Cidades, Territórios, Identidades e Educação (PPGCITIE) e do Bacharelado em Museologia, ambos da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: diogojmelo@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7266-2570.
[3] Doutora em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Museu de Astronomia e Ciência Afins (MAST). E-mail: silvilene2@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5801-389X.
[4] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cidades, Territórios, Identidades e Educação (PPGCITIE) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduada em Moda pela Universidade Estácio de Sá em Museologia pela UFPA. E-mail: anacrisweyl@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1475-0609.
[5] O Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) da Universidade Federal do Pará aprovou o Ensino Remoto Emergencial por meio da Resolução de N. 5.294, de 21 de agosto de 2020. Considerando as dificuldades advindas do cenário da pandemia de Covid-19.
[6] Nos referimos a: Lei Federal nº 4024 (BRASIL, 1961); Lei Federal nº 5692 (BRASIL, 1971); e Lei Federal nº 9394 (BRASIL, 1996).
[7] Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Especificamente, o código se refere a outras deformidades adquiridas dos membros.
[9] Se refere a formas distintas de linguagem e que valorizem aspectos das inteligências múltiplas, conforme Antunes (2006).